Revista Querubim 2006 Ano 02 Nº 02 Vol 01 200 pgs. (jan/jun

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Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e
Ciências Sociais – Ano 02 Nº 02 Vol 01 – 2006
ISSN 1809-3264
ISSN 1809-3264
Revista Querubim 2006 Ano 02 Nº 02 Vol 01 200 pgs. (jan/jun-2006)
Rio de Janeiro: Querubim, 2006
1. Linguagem 2. Ciências Humanas 3. Ciências Sociais - Periódicos. I. Título: Revista
Querubim Digital.
CONSELHO EDITORIAL
Presidente: Aroldo Magno de Oliveira (UFT-TO)
Secretária: Flora Magno de Jesus Oliveira
Consultores
Alice Akemi Yamasaki (UFT-TO)
Mônica Cairrão Rodrigues (UNI-SÃO LUÍS-SP)
Geralda Therezinha Ramos (UNIBH-MG)
Luiza Helena Oliveira da Silva (UFT-TO)
Janete Silva dos Santos (UFT-TO)
Elanir França Carvalho (USP-SP)
Venício da Cunha Fernandes (C. F. PEDRO II-RJ)
João Carlos de Carvalho (UFAC-AC)
José Carlos de Freitas (UFT-TO)
EDITOR
Aroldo Magno de Oliveira
DIAGRAMAÇÃO E REVISÃO TÉCNICA
Aroldo Magno de Oliveira
PROJETO GERAL
Aroldo Magno de Oliveira
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Ciências Sociais – Ano 02 Nº 02 Vol 01 – 2006
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Sumário
Título
01 Utopia para quem? O desenvolvimento da literatura de utopia
feminina
02 Vygotsky e a importância da linguagem para o desenvolvimento do
ser humano
Autor
Alexander Meireles da
Silva
Ana Cecília Teixeira
Gonçalves
03 Enunciados de problemas de matemática ou jogos de quebra-cabeça? Ana Elizabeth Dreon de
pág.
03
12
20
04 Transitividade e os planos discursivos figura e fundo nas orações
Albuquerque
Anderson Godinho Silva
subordinadas adverbiais modais
05 O elemento lúdico no ensino-aprendizagem da pronúncia em inglês
como língua estrangeira
06 Palavras: mais, ainda, palavras
Ângela de Alencar
Carvalho
Angélica Alves Ruchkys
44
Camillo Cavalcanti
Carmen Pimentel
Cristine Gorski Severo
Daniela Zimmermann
Machado
Darlan Roberto dos Santos
65
84
95
106
Elzimar Pereira
Nascimento
Enéias Farias Tavares
122
Eric Duarte Ferreira
Francisca Patrícia Pompeu
Brasil
Gislene Teixeira Coelho
Geruza Zelnys de Almeida
141
148
07
08
09
10
Álvares de Azevedo: Sentimental É Moderno
Vc tb escreve axim? uma análise do léxico nos blogs de adolescentes
Sobre o discurso anti-manicomial
Estudo do gênero na perspectiva do interacionismo sócio-discursivo
11 Os direitos de Maria: uma crítica ao papel da mulher na sociedade
androcêntrica
12 A sedução pelo conhecimento na relação pedagógica
13 A ofélia de shakespeare nas pinturas do pré-rafaelita John Everett
millais e do simbolista Paul Steck: o peso e a leveza da loucura
14 O estatuto do outro na prática do cuidado de si
15 Guimarães rosa no ensino médio
16
17
18
19
20
As Duas Margens
Vidas Secas: identidades que se fundem e se repelem
Fatores relevantes na construção do sentido de um texto
Aspectos básicos da teoria ockhamista da suposição própria
Ensino de língua estrangeira e cultura no espaço digital
32
59
114
129
161
169
Greici Quéli Machado
176
Guilherme Wyllie
185
Jacqueline Ramos da Silva 194
Roseanne Rocha Tavares
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Utopia para quem? O desenvolvimento da literatura de utopia feminina.
Alexander Meireles da Silva
Doutorando em Literatura Comparada-UFRJ RJ
Resumo: A literatura de utopia, exemplificada por obras como A República (367 a.C), de
Platão e Utopia (1516), de Thomas More, se alicerça sobre um discurso racionalista patriarcal
que subestima o papel da mulher enquanto ser social. A contestação dessa ideologia nos anos
60 por parte de escritoras feministas revelou utopias literárias femininas que, desde o século
XVII, vêm criticando a representação da mulher nas sociedades em que elas se inserem.
Visando discutir tal crítica, este artigo irá analisar O Mundo Resplandecente (1666), de
Margaret Cavendish, Herland (1915), de Charlotte Perkins Gilman e Swastika Night (1937),
de Katharine Burdekin. Tais obras são elementos chaves para se entender tanto a evolução da
literatura de utopia quanto o próprio papel da mulher na sociedade.
Palavras-chave: Literatura Fantástica – Literatura de utopia – Feminismo.
Abstract: Utopian literature, exemplified by works such as Plato´s The Republic (367 b.C)
and Thomas More´s Utopia (1516), is founded upon a rationalistic patriarchal discourse that
underestimates woman role as social being. The contestation of this ideology in the 60s by
feminist women writers, revealed feminine literary utopias that since the XVII century have
been criticizing woman representation in the societies in which they are inserted. Aiming at
discussing such criticism, this article will analyze Margaret Cavendish’s The Blazing World
(1666), Charlotte Perkins Gilman’s Herland (1915) and Katharine Burdekin’s Swastika Night
(1937). These works are key elements to understand both the evolution of utopian literature
and woman role in society.
Key-words: Fantastic Literature – Utopian Literature – Feminism.
Introducão
Talvez nenhuma outra forma literária seja mais emblemática da relação sujeito e
espaço do que a literatura de utopia. Presente na história da humanidade desde o Jardim do
Éden, passando pelos Campos Elíseos grego e chegando até o primeiro projeto político do
Ocidente com A República (367 a.C.), 1 de Platão a utopia representa a inerente tentativa do
homem em buscar ou criar um lugar perfeito para viver. Mas, apesar das várias visões
utópicas contidas nas religiões e nos mitos, foi a efervescência cultural e social da Renascença
representada nas descobertas marítimas na África e no Novo Mundo que promoveu o
ambiente ideal para nascimento da utopia como forma literária através de a Utopia (1516), de
1
Todas as obras mencionadas neste artigo escritas originalmente em língua estrangeira que tiveram sua
publicação em língua portuguesa terão seus títulos referidos no texto neste último idioma. Nos casos de falta de
tradução no Brasil, estas obras terão seus títulos mencionados em língua inglesa.
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Thomas More. Outros trabalhos seguiram a obra de More, combinando eventos reais e
ficcionais que cada vez mais aumentavam a fascinação por essa literatura. Como ponto em
comum entre essas narrativas, se observa a presença de um racionalismo de cunho
eurocêntrico e masculino que negligenciou o papel social da mulher por muito tempo. Desde
os anos 70 do século XX, no entanto, essa ideologia passou a ser sistematicamente contestada
por escritoras tais como Joanna Russ, Marge Piercy, Margaret Atwood e Octavia E. Butler
através da descrição de utopias feministas que traziam uma nova representação do papel
social da mulher. Mas talvez a maior contribuição dada por estas escritoras à causa feminista
tenha sido a descoberta de que desde os seus momentos iniciais como forma literária, a
literatura de utopia já vinha sendo utilizada como um instrumento de crítica social por parte
de escritoras. A fim de discutir tal ponto, este artigo pretende analisar como O Mundo
Resplandecente (1666), de Margaret Cavendish; Herland (1915), de Charlotte Perkins Gilman
e Swastika Night (1937), de Katharine Burdekin são obras chaves para se entender tanto a
evolução da literatura de utopia quanto o próprio papel da mulher na sociedade.
Desenvolvimento
A Utopia de Thomas More inaugurou uma tradição de literatura que desde a época de
sua publicação vem influenciando escritores e pensadores de forma geral. Ela gerou um
corpus de fórmulas fixas e conceitos para essa nova ficção dentre as quais podem ser
mencionados: o naufrágio ou desembarque acidental no litoral de uma terra em que se mostra
uma perfeita representação social, a comparação entre este mundo perfeito e o mundo do
narrador, um retorno para o mundo original do viajante, e a narração do que foi visto. A
importância de um locus visava estimular a idéia de que um projeto utópico era possível e que
poderia ser implementado aqui, em um plano terrestre tangível no país do narrador. Exemplo
imediato dessa influência é A Nova Atlântida (1627), de Francis Bacon onde é mostrado o
impacto da ciência e da tecnologia sobre a sociedade humana. Fazendo uso das convenções
estabelecidas por More, A Nova Atlântida narra a descoberta acidental por parte de viajantes
de uma sociedade justa em suas estruturas econômicas e sociais devido à aplicação da ciência.
A organização dessa sociedade utópica pertence aos sábios da Casa de Salomão. Cabe a eles o
planejamento e execução das pesquisas e dos projetos científicos que visavam facilitar a vida
dos cidadãos da ilha Nova Atlântida. Refletindo a filosofia de Bacon, ‘conhecimento é poder’,
a harmonia e o bem-estar dos habitantes da ilha repousavam no controle científico alcançado
sobre a Natureza. Exemplo disso é que o ciclo das chuvas e até mesmo a temperatura era
controlada pelos sábios da Casa de Salomão. Ou seja, homens controlando uma força que
desde tempos imemoriais sempre esteve associado ao feminino. Um dos fundadores da
ciência moderna e do empirismo, Francis Bacon foi um dos grandes incentivadores do método
experimental e da divulgação científica durante o século XVII. Tendo falecido em 1626,
Bacon não viveu para ver um de seus projetos mais esperados, a Sociedade Real de Londres,
ser inaugurada em 1662. Neste local, pesquisadores se reuniam para debater e divulgar as
mais recentes teorias científicas do século das Luzes. Esse espaço elitista de debate
estabeleceu uma representação institucional para a ciência com sentido, função e,
principalmente, interesses específicos. Como Stepan e Gilman atestam:
A ciência como forma de conhecimento se destacou dentre os outros sistemas de
saber, no processo, as dicotomias entre o puro e o impuro, o racional e o irracional, o
objetivo e o subjetivo, o duro e o suave, o macho e a fêmea, foram imbuídas de
naturalidade (1991, 89).
Se a ciência era então o produto de mentes masculinas que alegavam imparcialidade
crítica e objetividade, o impuro, o irracional, o subjetivo e o suave, se tornaram
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automaticamente relacionados às mulheres e classes sociais que diferiam do grupo elitista. O
resultado dessa dicotomia foi um abismo social entre a ‘alta’ cultura, incorporada pelos
homens de conhecimento, e a cultura popular representada pelas mulheres e o povo. A
ciência, com seus procedimentos e vocabulários específicos, propagava idéias que só
poderiam ser contestados por aqueles que possuíam conhecimento acadêmico. Apenas o
cientista treinado era capaz de falar coerente e legitimamente sobre os assuntos científicos.
Dessa maneira, textos científicos escritos por mulheres e por pesquisadores amadores eram
recusados ou desconsiderados pelos membros da Sociedade Real por terem suas origens fora
do círculo dos especialistas científicos. É nesse contexto que se insere O Mundo
Resplandecente (1666), de Margaret Cavendish.
Quase dois séculos antes de Bulwer-Lytton descrever em A Raça Futura (1871) uma
raça subterrânea vivendo abaixo da civilização humana, Margaret Cavendish, Duquesa de
Newcastle, publicou seu A Descrição de um Novo Mundo, Chamado o Mundo
Resplandecente, uma das primeiras utopias escritas por uma mulher de que se tem
conhecimento. Como comenta Paquot (1996, 16), “Cavendish antecipou Bulwer-Lytton, H.
G. Wells e Poe na criação de um mundo subterrâneo ficcional como cenário para o
desenvolvimento do enredo”.
Essa ficção, entrelaçada com as opiniões de Cavendish sobre a ciência de seu tempo,
foca nas aventuras de uma mulher cujo nome não é mencionado. Única sobrevivente de um
naufrágio no qual seu amado morreu, a heroína de Cavendish acaba encontrando uma cidade
abaixo do pólo Norte. Nesse mundo, ela entra em contato com uma sociedade utópica
altamente desenvolvida que é governada por uma Imperatriz. Seguindo as convenções dessa
literatura, a Imperatriz explica à viajante a organização da terra recém descoberta e estabelece
comparações com a sociedade real da autora. O Mundo Resplandecente é, ao mesmo tempo,
uma utopia feminista e compêndio científico muito similar a A Nova Atlântida de Bacon. A
própria Margaret Cavendish, era uma figura peculiar à frente de seu tempo. Conhecida por
sua excêntrica personalidade, vestimentas coloridas e repetidas transgressões às normas
sociais, Cavendish era uma prolífica e popular escritora de tratados históricos, ensaios,
poemas e peças teatrais. Sendo também uma cientista amadora, ela foi à única mulher em fins
do século XVII que obteve permissão para visitar a Sociedade Real. Apesar dessas ações (ou
devido a elas), Cavendish era alvo de pesadas críticas de seus contemporâneos que a
consideravam esquizofrênica, ridícula e louca. Não é de se admirar, pois, que tais comentários
fossem igualmente aplicados à sua obra utópica. De fato, longe de ter sido avaliado por suas
possíveis qualidades literárias, O Mundo Resplandecente ainda é considerado por alguns
estudiosos como os devaneios de uma mulher problemática. Na introdução de seu amplo
estudo do desenvolvimento do pensamento utópico no mundo ocidental, Manuel e Manuel
consideraram que a utopia de Cavendish não era merecedora de atenção crítica com o
seguinte argumento:
Os devaneios pessoais com suas fixações idiossincráticas têm de ser excluídas. A
condição ideal deve ter alguma medida de generalidade, se não universalidade, ou se
torna meramente um anseio narcisista. Existem utopias tão particulares que bordam
a esquizofrenia. A Descrição de um Novo Mundo, Chamado o Mundo
Resplandecente (1666) por Margaret Cavendish, Duquesa de Newcastle, tem muito
em comum com as delusões do Dr. Schreber analisadas por Freud em um famoso
ensaio…. ( 1979, 7).
É impossível negar o componente machista presente na opinião dos dois estudiosos
que vêem O Mundo Resplandecente, como o produto de uma mente (feminina) perturbada
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psicologicamente. O próprio apelido de Cavendish, ‘Louca Meg’ (Mad Meg) dado a ela por
seus contemporâneos, reflete esse preconceito. Os critérios de seleção desses críticos reforçam
essa restrição feminina. A menção de Frank E. Manuel e Fritzie P. Manuel de que as utopias
que merecem atenção crítica devem possuir, ‘alguma medida de generalidade, se não
universalidade’, razão pela qual esta utopia feminina é excluída, parece se basear no fato de
que seus principais personagens são mulheres, algo diferente de outras obras analisadas por
eles. Baseado nesse ponto, a agressiva opinião sobre Margaret Cavendish, pode ser lida como
um emblemático exemplo da posição da sociedade perante as manifestações artísticas
femininas não apenas nas utopias ficcionais, mas na literatura em geral.
Gradual e continuamente, todavia, escritoras começaram a quebrar a barreira machista
imposta pelo patriarcado, expressando suas idéias e sentimentos em relação às suas restrições
individuais e sociais. Nos primeiros anos do século XX essas restrições tornaram-se mais
evidentes na América, onde o rápido desenvolvimento da sociedade levava mulheres a querer
participar ativamente dos avanços sociais. Essa reivindicação se manifestava sob diferentes
formas, que, tinham em comum a idéia de que a simples inclusão feminina na força de
trabalho levaria a uma valorização das mulheres. Em Herland (1915), no entanto, Charlotte
Perkins Gilman, apresenta outra idéia: a valorização da mulher na sociedade depende, antes
de tudo, da revisão do próprio conceito de gênero pelo patriarcado.
Devido ao trabalho de seu pai como editor, algo que o levava a deixar a família por
longos períodos de tempo durante o ano, Charlotte Perkins Gilman passou grande parte de sua
infância e adolescência com suas tias-avós, que eram Catherine Beecher, ativista dos direitos
das mulheres; Isabella Beecher Hooker, uma ardente sufragista defensora do direito das
mulheres ao voto; e Harriet Beecher Stower, autora de A Cabana do Tio Tomás. É
desnecessário enfatizar a imensa influência que tais figuras exerceram sobre a formação da
carreira artística e política de Gilman. Além de ser a autora de vários poemas e contos, entre
eles o famoso “O Papel de Parede Amarelo” (1892), Gilman também escreveu trabalhos de
não-ficção em que discute a questão feminina. Sua obra mais conhecida nessa área é Women
and Economics (1898), na qual é argumentado que os papéis sexuais e maternais femininos
foram supervalorizados em detrimento do social e do econômico. No seu ponto de vista,
somente a independência econômica poderia trazer a liberdade definitiva para a mulher. Tais
idéias foram posteriormente desenvolvidas em uma série de ensaios publicados em Human
Work (1904), e Man-made World (1911), onde Gilman advoga a importância do trabalho da
mulher fora da esfera doméstica como uma maneira de trazer benefícios para a sociedade
como um todo. Escrito em 1915, Herland reflete as preocupações de Gilman sobre os papéis
sociais limitados que a sociedade designava às mulheres. A despeito da relevância dessa
discussão (ou devida a ela), é óbvio constatar que em termos de repercussão Herland
apresentou destino diferente de outras utopias de fins do século XIX e começo do XX, tais
como A Raça Futura (1871), de Bulwer-Lytton; Erewhon (1872), de Samuel Butler; Looking
Backward (1888), de Edward Bellamy e “The Machine Stops” (1909), de E. M. Foster.
Seguindo claramente as tendências temáticas dos romances de aventuras da época de
escritores como H. Rider Haggard (As Minas do Rei Salomão / 1885) e Arthur Conan Doyle
(O Mundo Perdido / 1912), comentadas por Clute (1995, 38-39), o enredo de Herland trata de
uma exploração perpetrada por americanos que descobrem um mundo isolado do restante da
civilização nos confins da terra. Fascinados pela organização, limpeza e beleza do lugar, os
exploradores decidem procurar por algum sinal dos homens que construíram tal paraíso visto
que, nos seus pontos de vista, tal obra só poderia ser produto de mãos e mentes masculinas.
Percebe-se, desde esse primeiro momento, a utilização por parte de Gilman da figura do
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estrangeiro como um olhar crítico em relação à sociedade da autora. Em Herland, todavia,
Gilman faz uso não de um, mas de três protagonistas masculinos, Jeff, Van, e Terry, para
discutir várias esferas de comportamento que compõem o pensamento masculino na sociedade
e o preconceito em relação às mulheres. Tão logo os americanos chegam nesse utópico
mundo, se percebe que eles representam diferentes versões masculinas. Jeff representa o
homem cortês na sociedade. Para ele, as mulheres são consideradas seres a serem idolatradas,
nunca tocadas. Terry, por outro lado, é representado pelo estereótipo do machista que vê as
mulheres como meros objetos de desejo; é a submissão o que mais lhe atrai nelas. Van, o
terceiro explorador, é apresentado como um ponto de equilíbrio entre Jeff e Terry devido ao
seu desenvolvimento à medida que ele aprende mais e mais sobre esse mundo utópico. Apesar
de no começo do seu contato com as mulheres ele apresentar muito dos preconceitos de Terry,
aos poucos Van muda suas concepções por um verdadeiro respeito a elas que não chega aos
excessos de Jeff. O desenvolvimento de Van é especialmente contrastado com as
personalidades de Jeff e Terry, pois, apesar de sua exposição à estrutura desse mundo, eles
não mudam suas concepções sobre a natureza feminina.
Herland lida com vários assuntos de relevante importância aos leitores de hoje, tais
como a necessidade do equilíbrio entre os sexos como meio de formação de uma sociedade
justa, a discussão da posição da mulher na nossa sociedade “bi-sexual”, o papel decisório da
mulher quanto à maternidade, assim como especulações de como essa mesma sociedade seria
se fosse composta apenas pelo sexo feminino. A questão do gênero é portanto o tema central
nessa utopia lidando especificamente em como esse conceito é construído visando propósitos
específicos. Nessa abordagem contudo Gilman não discute a sexualidade das mulheres de seu
mundo fictício. As mulheres de Herland são percebidas pelos homens como seres assexuados
e não há menção de envolvimento sexual entre os membros dessa sociedade. Tem-se a
impressão então que, para serem perfeitas, as mulheres devem abdicar de sua sexualidade.
Talvez, dada a época na qual esse romance foi escrito, Gilman evitou a discussão da temática
do relacionamento homossexual. A problemática racial também não foi abordada de forma
direta por Gilman, pois ao se ler que as mulheres parecem ser descendentes da nobre
linhagem dos arianos, presume-se que as mesmas sejam brancas, uma idéia condizente com as
teorias científicas das primeiras décadas do século XX que relacionavam o conceito de
civilização com a raça caucasiana. A falta de discussão desses dois pontos porém não
diminuiu em nada a importância de Herland como uma obra que antecipou vários tópicos de
fundamental relevância não somente para o feminismo, mas também para o desenvolvimento
da literatura de utopia. Mas, se Herland exemplifica a utilização das convenções literárias das
utopias para tecer uma subversão à ideologia patriarcal, Swastika Night (1937) de Katharine
Burdekin se apresenta não apenas como uma das primeiras obras que colocam a mulher como
vítima central da máquina opressora, como aponta Baccolini (2000, 19), mas também como
um dos primeiros exemplos da literatura que desde a metade do século XIX vem explorando
as inerentes contradições do projeto utópico: a literatura de distopia.
Segundo o crítico literário Booker (1994, 19), “O utopianismo é baseado em uma
crítica sobre as deficiências do presente, enquanto que o pensamento distópico se baseia em
uma crítica sobre perceptíveis deficiências no futuro”. Essa distinção leva a uma constatação:
enquanto as utopias são predominantemente localizadas espacialmente (uma ilha deserta, um
mundo perdido dentro da terra ou um novo planeta) a fim de exporem os males já
estabelecidos, as distopias são localizadas distante temporalmente da época vivida pelo
próprio autor, mas as referências são claras quanto ao fato de que o cenário distópico é
decorrente de tendências do presente. É exatamente devido a esse recorrente impulso para o
futuro em histórias de marcante ambientação tecnológica que Williams explica que as
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distopias tornaram-se associadas na literatura moderna com a ficção científica. (1979, 54).
Mas enquanto as utopias satirizam características específicas de suas sociedades, as distopias
podem ser lidas, em meu ponto de vista, como sátiras de características específicas de
sociedades utópicas. Nesse sentido, as distinções entre utopias e distopias dependem
meramente do ponto de vista. De fato, pode ser dito que as distopias destacam elementos que
nas utopias estão como pano de fundo. No influente trabalho de Platão, por exemplo, podem
ser encontrados vários elementos que se tornaram parte de projetos utópicos e foram
satirizados em distopias e histórias de ficção científica. A ênfase utópica na ordem e na vida
racionalizada, por exemplo, é essencial na visão de Platão. O poeta e o artista de forma
generalizada não têm espaço na Republica porque esses não consideram a razão como seu
guia de vida. Não há, pois, nenhuma manifestação artística como a pintura ou o drama. A
utopia de Platão é, em termos básicos, o protótipo do estado totalitário explorado mais tarde
por, entre outros romances distópicos, Admirável Mundo Novo (1932), de Aldous Huxley e
Mil Novecentos e Oitenta e Quatro (1949), de George Orwell. O estabelecimento de uma
rígida hierarquia também faz parte do projeto de Platão. Nesse há uma divisão de classes e
todos devem obedecer a cada ordem proferida por um grupo de filósofos guiados pelo
‘Supremo Guardião’ afim de que a individualidade não perturbe o grupo. Esse grupo de
filósofos anciões – uma Soficracia – também antecipou a representação de sociedades
distópicas onde o exercício do poder é relacionado ao domínio do conhecimento. Como
resultado desse padrão, os cidadãos de utopias são muitas vezes descritos como marionetes
sem vozes ou sem vontades.
Desde seu primeiro momento, portanto, o projeto utópico já despertava desconfiança e
ceticismo naqueles que conseguiam entrever na promessa do paraíso uma tendência para o
inferno. O poeta Grego Aristofanes, por exemplo, já mostrava em seu O Parlamento das
Mulheres (360 a.C.) uma sátira à utopia de Platão, constituindo-se em uma das primeiras
distopias que, como tal, contestavam a fé na evolução humana. Outro trabalho chave que
forneceu inúmeras direções a serem seguidas pela ficção científica e que expõe as intrínsecas
contradições dos projetos utópicos é As Viagens de Gulliver (1726), de Jonathan Swift. Nesse
livro, Swift critica duramente a Inglaterra em uma narrativa que mistura ironia e sátira tendo
como alvo principal a ciência. No livro IIII, por exemplo, Gulliver descreve a ilha voadora de
Laputa, alimentada por um magneto gigante e habitada por matemáticos teóricos perdidos em
seus pensamentos abstratos. Com essa descrição, Swift caçoa do conhecimento que não traz
benefício prático para a humanidade. Esse debate sobre a presença e efeito da ciência e
tecnologia na vida individual e social tornou-se parte da estrutura da literatura de distopias
fornecendo seu laço com a ficção científica. Tal debate alcançou sua expressão máxima
durante a Revolução Industrial, quando pensadores como Friedrich Nietzsche discutiram
sobre as implicações de ciência e do progresso para o homem.
Da segunda metade do século XIX em diante, os efeitos desagradáveis do progresso
trouxeram à tona um sentimento predominantemente negativo acerca da ciência e tecnologia
evidenciado em muitas obras literárias. A Raça Futura, de Bulwer-Lytton, onde é mostrada a
poderosa raça subterrânea Vril-ya e sua fonte de energia, o Vril, como uma crítica da idéia de
que o grau de civilização é medido pela tecnologia, e Erewhon, de Samuel Butler, na qual
homens banem as máquinas por completo devido a sua tendência para a tirania, são exemplos
deste fato. O temor das profundas conseqüências dos avanços tecnológicos resultou numa
visão cética do mundo e numa erosão dos valores religiosos. Paradoxalmente, como salienta
Abrams, um fervor quase religioso definia a relação entre o ser humano e a ciência durante
esse período. (1993, 896-897). Essa adoração de ciência como uma quase nova religião
chamou a atenção de Nietzsche que observou em “Para a Genealogia da Moral” (1887):
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É sempre ainda sobre uma crença metafísica que repousa nossa crença na ciência
/.../ também nós, conhecedores de hoje, nós os sem-Deus e os antimetafísicos,
também nosso fogo, nós o tiramos ainda da fogueira que uma crença milenar
acendeu, aquela crença cristã, que era também a crença de Platão, de que Deus é a
verdade, de que a verdade é divina... (1996, 364).
Foi exatamente essa constatação de tal adoração que levou Nietzsche a observar em
outros trabalhos que, ao invés de serem diametricalmente opostos, o Cristianismo e a ciência
compartilhavam pontos em comum. Ambas as filosofias situam-se como discursos centrais de
autoridade e fontes de projetos utópicos da civilização ocidental. Como tais, elas impõem
interpretações simplistas sobre o mundo. Nietzsche também acreditava que a defesa de
verdades inequívocas por parte das instituições religiosas e científicas confina o indíviduo
dentro de uma esfera limitada sem possibilidades de escolhas. A crítica de Nietzsche
formalizava, portanto, as idéias apresentadas nos romances vitorianos de Lytton e Butler entre
outros, evidenciando a formula literária seguida pelas ficções distópicas desde então, que
focam na oposição entre vida individual e obediência social. Essa idéia foi usada na criação
de estados totalitários comandados através da tecnologia, da religião e da manipulação da
linguagem como nos romances Revolução no Futuro (1952), de Kurt Vonnegut e A História
da Aia (1985) de Margaret Atwood. Essa decepção com o projeto utópico, decorrente dos
rumos da Revolução Industrial, se aprofundou nas primeiras décadas do século XX em
virtude das atrocidades das duas guerras mundiais e pela radicalização de sistemas de governo
que eram aparentemente ideais. Obras clássicas da literatura de distopia nasceram neste
período como uma resposta direta às ansiedades de seus momentos históricos semelhantes,
isto é, a ascensão de governos totalitários na União Soviética e na Alemanha, e ao crescente
poder de sistemas tecnocráticos nos Estados Unidos. São desta época, Nós (1924), de
Yevgeny Zamiatin, Admirável Mundo Novo (1932), de Aldous Huxley e Mil Novecentos e
Oitenta e Quatro (1949), de George Orwell e Swastika Night (1937), de Katharine Burdekin.
Assim como Herland reflete o ambiente político-social americano na primeira década
do século XX, Swastika Night ecoa o ceticismo hegemônico que permeou o pensamento
ocidental durante o período pós-Primeira Guerra Mundial e pré-Segunda Guerra Mundial
derivado, conforme aponta Booker, da crise econômica mundial e das inquietações políticas
resultantes do advento do Fascismo e do Comunismo na Europa. (1994, 17). Frutos dessa
época, os romances Nós, Admirável Mundo Novo, e Mil Novecentos e Oitenta e Quatro,
apresentam em suas estruturas similaridades que, se em meu ponto de vista confirmam a
influência do meio social como principal razão das semelhanças intratexto, têm todavia
suscitado longos debates sobre o plágio de uma obra sobre a outra e até mesmo sobre qual
distopia estabeleceu as convenções do gênero. Baccolini argumenta a respeito do muitas vezes
desconsiderado Swastika Night que a obra:
... segue algumas das convenções tradicionais da distopia, ainda que seria mais
correto dizer que este romance as estabelece. De fato, publicado doze anos antes da
distopia mais conhecida de Orwell, Swastika Night compartilha com o romance de
Orwell um número de elementos que se tornaram convenções distópicas somente
após a publicação de 1984 (2000, 19).
Dois aspectos presentes na opinião acima me levam a discordar de Baccollini: em
primeiro lugar, a sugestão de que o romance de Burdekin possa ter estabelecido a estrutura
das distopias modernas. De fato, esse estabelecimento se deu com a publicação de Nós de
Eugene Zamiatin em 1924, como uma resposta crítica do escritor russo à fé no progresso
representada por Uma Utopia Moderna (1905) de H. G. Wells de quem Zamiatin era editor.
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Nós, portanto, precede Swastika Night tanto pela data de publicação quanto como crítica
social. O segundo ponto de discórdia, derivado do primeiro, aparece quando Baccolini
argumenta que Swastika Night estabeleceu convenções que só foram aceitas como tais após
Mil Novecentos e Oitenta e Quatro. Como Peter Davison salienta na introdução de uma
edição de Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, o próprio Orwell deixa claro que as convenções
da distopia já estavam disponíveis em Nós e que esse romance foi uma de suas fontes de
inspiração para a criação de Oceania: “Ele [George Orwell] foi apresentado a Nós de Yevgeny
Zamiatin por Gleb Struve, e disse-lhe em 17 de Fevereiro de 1944, ‘Estou interessado nesse
tipo de livro, e até estou tomando notas para um meu que deve ser escrito mais cedo ou mais
tarde’”. (1989, v). Mesmo que a ficção de Burdekin, ao meu ver, não tenha desempenhado o
papel mencionado por Baccolini, é inegável sua relevância como uma dos mais contundentes
exemplos do gênero e, mais ainda, como a primeira distopia feminista em língua inglesa de
que se tem conhecimento.
Swastika Night é ambientado em um cenário que desde 1924, com a publicação de
Nós, mostrou-se recorrente nas distopias: um estado totalitário altamente hierarquizado onde
as instituições mantenedoras do poder atuam sobre seus cidadãos através de diferentes
estratégias e recursos, visando mantê-los alienados de sua condição. Nessa situação, conforme
discutido anteriormente, um individuo geralmente tenta se opor ao regime com resultados
diversos. No caso da distopia de Burdekin esse papel cabe ao personagem Alfred que, assim
como o herói de Nós, toma conhecimento dos mecanismos do regime através do contato com
um rebelde ao mesmo e passa a questionar a ideologia dominante. É interessante mencionar a
capacidade crítica da autora de Swastika Night de antecipar as tendências de seu tempo e de
especular o que poderia acontecer caso nenhuma ação fosse tomada para evita-las. Assim
como Zamiatin antecipou o regime totalitário de Stalin com base nos acontecimentos de sua
Rússia Leninista pós-revolução, Burdekin soube já em 1937 prever, com a ascensão do
Fascismo, como este sistema faria uso da propaganda para manipular a verdade a favor de
conceitos discriminatórios em relação a minorias. Através da retratação de uma Europa
fictícia no ano 721 da dominação do império de Hitler, Burdekin mostra como esse continente
está em processo de autodestruição devido à própria falta de capacidade dessa sociedade de
perceber os malefícios causados a um dos seus grupos: as mulheres.
A principal distinção dessa distopia em relação às demais de seu tempo é sua
discussão da questão de gênero e de como esse conceito é construído pelo patriarcado,
restringindo a percepção da mulher como sujeito social e individual. Nesse pesadélico mundo,
as mulheres foram reduzidas a um estado quase animalesco de ignorância e apatia. Vivendo
em gaiolas dentro de locais segregados similares a campo de concentração, a única função
destinada a elas é a biológica. Tomando conhecimento da história anterior ao império
Hitleriano, Alfred aprende que as mulheres não são naturalmente inferiores, mas sim levadas
a essa condição pelo tratamento que o regime lhes dispensa. Como uma moderna versão de
Pigmaleão, Alfred pondera sobre sua capacidade de construir a identidade de sua recémnascida filha Edith, de torná-la uma mulher real, revelando em sua linguagem a construção do
conceito de gênero do sistema patriarcal. Constatando a impossibilidade de efetuar seu desejo
ainda na sociedade de seu tempo, Alfred passa o conhecimento proibido da verdade histórica
para seu filho Fred. Assim, quando condições sociais mais favoráveis surgirem, a subversão
poderá emergir.
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Conclusão
Ainda que Swastika Night não faça da mulher agente direta de sua mudança em uma
sociedade na qual é a maior vítima, o questionamento presente em seu enredo a torna uma
obra ímpar na história da literatura de distopias. A despeito disso, a meu ver esse romance foi
eclipsado pelas distopias ‘masculinas’ de Aldous Huxley (Admirável Mundo Novo) e até
mesmo pela posterior Mil Novecentos e Oitenta e Quatro de George Orwell. De fato,
considerando-se as utopias e a distopia escritas por mulheres descritas aqui, constata-se que O
Mundo Resplandecente de Margaret Cavendish, Herland de Charlotte Perkins Gilman e
Swastika Night de Katharine Burdekin tiveram destinos semelhantes como vítimas de seus
momentos históricos e foram esquecidas por críticos e leitores de forma geral. Essas obras,
que considero como pré-feministas devido ao momento de suas criações em relação ao
movimento feminista dos anos 70, só obtiveram reconhecimento décadas após sua publicação.
Apesar da discriminação de Frank E. Manuel e Fritzie P. Manuel citada anteriormente,
a utopia de Cavendish tem recebido crescente atenção em discussões sobre a presença das
mulheres na evolução da ficção científica e das utopias literárias. Herland, juntamente com a
obra de Gilman como um todo foi reconhecido nos anos 70 como um clássico do movimento
feminista e Swastika Night teve seu valor reconhecido como uma das primeiras distopias
modernas. Tais obras encontraram no movimento feminista sua valorização como trabalhos
que deram vozes a protagonistas femininos lidando com os problemas específicos das
mulheres de cada época além de terem sido importantes influências na própria estrutura das
utopias feministas dos anos 70.
Bibliografia
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VYGOTSKY E A IMPORTÂNCIA DA LINGUAGEM PARA O
DESENVOLVIMENTO DO SER HUMANO
Ana Cecília Teixeira Gonçalves
Pós-Graduanda em Letras-Universidade Federal de Santa Maria RS
Resumo: Este trabalho tem por objetivo demonstrar o papel central da linguagem no
desenvolvimento do ser humano. Para isso, buscamos fundamentá-lo na perspectiva do
interacionismo social, cujos princípios básicos foram formulados por Vygotsky. Segundo este
autor, a linguagem é central para o desenvolvimento humano, pois é por meio dela que se dá a
relação com o mundo exterior. Nesse sentido, buscamos analisar alguns conceitos
desenvolvidos por Vygotsky e, principalmente, salientar sua preocupação em evidenciar o
papel da linguagem no desenvolvimento humano. Assim, enfatizando a função que tem a
linguagem nessa relação entre sujeito e contexto social, buscaremos, ainda, demonstrar seu
caráter sócio-histórico e interativo, e seu papel como signo mediador.
Palavras-chave: linguagem; interação social; desenvolvimento humano.
Abstract: This work has as aim to demonstrate the language central role in the human being
development. In order to this, we seek to base it on the social interacionist perspective from
the language studies, whose basic principle were formulated by Vygotsky. An analysis from
the studies developed by this author allows us to identify the language as an essential tool to
the human being development, since it enables his relation with the external world and his
fellow beings. In this sense, we seek to analyze some concepts developed by Vygotsky (such
as the mediation and the internalization concepts, etc) and, mainly, to focus his worry in
showing the language role in the human development. Thus, emphasizing the central function
that the language has in this relation between individual and social context we still will seek
to demonstrate its social –historical and interactive character and its nodal role as a mediator
sign, which is in chart of the human being development since the moment in which it is
immersed in a cultural environment.
Key-words: language, interaction, development.
Introdução
Neste trabalho, pretendemos fazer uma análise sobre o importante papel que a
linguagem tem no desenvolvimento dos homens. Assim, por entendermos a linguagem como
processo de interação, a base teórica que fundamentará esta pesquisa será o interacionismo
social, cujas idéias principais são, ao nosso ver, as do autor russo Vygotsky. Nesse sentido,
pretendemos, primeiramente, traçar um quadro epistemológico acerca da teoria interacionista,
a fim de situarmos o autor que dá base para o trabalho, bem como o nosso entendimento de
linguagem. Em seguida, analisaremos alguns conceitos vygotskyanos que apontam para o
papel da linguagem no desenvolvimento dos seres humanos.
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1 Quadro epistemológico sobre o interacionismo social
Conforme Bronckart (1999, p. 21),
a expressão interacionismo social designa uma posição epistemológica geral, na
qual podem ser reconhecidas diversas correntes da filosofia e das ciências humanas
(...) essas correntes têm em comum o fato de aderir à tese de que as propriedades
específicas das condutas humanas são o resultado de um processo histórico de
socialização, possibilitado especialmente pela emergência e pelo desenvolvimento
dos instrumentos semióticos.
Assim, como podemos observar, a teoria do interacionismo social propõe que os
processos psicológicos tipicamente humanos (ou, como denominou Vygotsky, as funções
psicológicas superiores), como por exemplo, o controle consciente do comportamento, a
atenção, a lembrança voluntária, o pensamento abstrato, o raciocínio e outras capacidades,
têm origens sócio-culturais e emergem de processos psicológicos elementares de origem
biológica. Esse processo de desenvolvimento está arraigado nas relações entre história
individual e social. Nesse sentido, o que possibilita o desenvolvimento dessas funções
psicológicas superiores é o aparecimento e desenvolvimento de instrumentos mediadores
dessa relação entre indivíduo e contexto social. Dessa maneira, como procuraremos mostrar
por meio dos estudos de Vygotsky, a linguagem é a forma principal dessa mediação e, por
isso, fundamental para a evolução dos seres humanos.
O contexto histórico que antecede o interacionismo social, no século XX, é o da
ciência da linguagem marcada fortemente pelo psicologismo. Assim, conforme Morato
(2004), inicialmente, a perspectiva interacionista, em Lingüística, mostra-se como uma reação
a essa tendência, visto que apresenta uma postura radicalmente oposta às correntes mentalistas
e biologizantes, principalmente as perspectivas cognitivistas e as chomskianas. Em meio a
tantos questionamentos, tinha-se consciência de que havia a necessidade de uma teoria que
considerasse a interação entre os fenômenos físicos e psíquicos dos seres humanos. Assim, as
idéias de Vygotsky surgem para explicar o papel do social no desenvolvimento dos seres
humanos, superando tal contexto através da aplicação dos métodos e princípios do
materialismo dialético. Daí dizer que foi ele quem formulou os princípios básicos do
interacionismo social. Sua influência, entretanto, tem início somente nos anos 70, como uma
crítica ao inatismo de Chomsky e “como uma alternativa ao cognitivismo construtivista
piagetiano” (Scarpa, 2003, p. 213).
Para Vygotsky (1988, 1989), os processos de transformação do desenvolvimento dos
seres humanos têm origens sociais. Ao contrário dos outros autores antes citados, propõe que
organismo biológico e meio social não podem ser analisados separadamente, ao contrário,
são indissociáveis. Nesse sentido, concede à linguagem um papel fundamental no
desenvolvimento dos homens, pois, para o autor, é ela a base de outras habilidades mentais do
ser humano. Defende que o desenvolvimento dos mecanismos psicológicos mais sofisticados
está extremamente relacionado com o contexto social, e, desse modo, ocorre de fora para
dentro, no chamado processo de internalização (que será analisado no decorrer desse estudo).
Assim, também quanto ao aspecto psicológico, a abordagem do interacionismo social apóia-se
(sobretudo) nos princípios defendidos por Vygotsky que, conforme Bronckart, “constitui o
fundamento mais radical do interacionismo em psicologia” (1999, p. 24). Segundo Bronckart,
a abordagem interacionista defende, então, que é ilusório tentar compreender o homem
considerando-o apenas sob o aspecto de propriedades biológicas ou comportamentais, ou seja,
assumir uma posição em detrimento da outra e ignorar o papel que tem, de fato, o contexto
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social em seu desenvolvimento. Ao contrário, numa perspectiva interacionista, é inevitável
que essas duas dimensões – organismo interno e contexto externo – sejam integradas, ou
melhor, que seja assumida a interação entre o organismo humano e o meio social. Nesse
sentido, interessada na forma através da qual a linguagem se relaciona com o mundo exterior,
a abordagem interacionista tem colaborado para a valorização dessa relação.
Como afirma Morato (2004), na perspectiva interacionista, “a linguagem é entendida
como atividade constitutiva do conhecimento humano”. Nesse sentido, além de ser
estruturada pelas circunstâncias e referências do mundo social, a linguagem é ao mesmo
tempo “estruturante do nosso conhecimento e extensão (simbólica) de nossa ação sobre o
mundo” (p. 317). Em suma, ao mesmo tempo em que a linguagem é uma ação humana, é
também influenciada por essa ação que atua sobre ela – relação dialética de interioridade e
exterioridade, na qual a linguagem encontra na produção de sentido sua principal função.
Morato ainda ressalta que, nesse contexto, a língua é entendida como ação, trabalho coletivo
(não é apenas um conjunto de signos). Essa relação propiciada pela linguagem é conseqüência
de nossas propriedades físicas e psíquicas e por nossa necessidade de viver em organizações
sociais e integrar essas propriedades através da interação.
O interacionismo social busca investigar o curso da evolução da espécie humana
considerando, de fato, sua “historicidade”, isto é, analisa em primeiro lugar o
desenvolvimento das organizações sociais, como e por quê, no decorrer da evolução da
espécie humana, os indivíduos se organizaram socialmente, e de que modo, ao mesmo tempo,
deu-se o aparecimento e o desenvolvimento de formas de interação (Bronckart, 1999, p. 22).
Conforme esse mesmo autor, o interacionismo social inscreve-se numa teoria marxista, isto é,
preserva o caráter “dialético do desenvolvimento da atividade e do psiquismo humano”,
integrando a ele o papel fundamental que os “instrumentos, a linguagem e o trabalho (ou
cooperação social) desempenham na construção da consciência” (1999, p. 22).
Nesse sentido, conforme as considerações de Bronckart, é entendendo as
manifestações lingüísticas como atividades associadas às condutas humanas socialmente
contextualizadas que se pretende buscar base em teorias que integrem as dimensões
psicológicas e sociais ou “psicossociais”, como denomina o autor.
2 Vygotsky e o estudo da linguagem
Vygotsky (1988) tinha por objetivo caracterizar os aspectos tipicamente humanos do
comportamento e formular hipóteses a respeito da emergência e do desenvolvimento destas
características ao longo da história da humanidade. Buscava, ainda, analisar como se dá o
desenvolvimento dessas características durante a vida de um indivíduo. Para alcançar seu
objetivo, preocupou-se com três aspectos fundamentais que não vinham sendo adequadamente
analisados pelos estudiosos de sua época:
• analisar a relação entre os seres humanos e o seu ambiente físico e social;
• identificar quais foram as novas formas de atividade que fizeram com que o trabalho fosse
o meio fundamental de relacionamento entre o ser humano e a natureza, e, nesse sentido,
quais as conseqüências psicológicas dessas atividades;
• saber qual a natureza das relações entre a utilização de instrumentos e o desenvolvimento
da linguagem.
Defendia que o desenvolvimento das características típicas do comportamento humano
não era apenas uma questão de amadurecimento, mas se caracterizava por “transformações
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complexas, qualitativas, de uma forma de comportamento em outra” (1988, p. 21). Assim, em
seus estudos, Vygotsky enfatiza o papel dominante da experiência social no desenvolvimento
do ser humano, e, nesse sentido, afirma que a linguagem tem um papel essencial na
organização das funções psicológicas superiores. Desse modo, atribui à atividade simbólica
propiciada pela linguagem uma função organizadora específica que invade o processo de uso
de instrumentos e produz formas novas de comportamentos entre os indivíduos:
o momento de maior significado no curso do desenvolvimento intelectual, que dá
origem às formas puramente humanas de inteligência prática e abstrata, acontece
quando a fala e a atividade prática, então duas linhas completamente independentes
de desenvolvimento, convergem. (1988, p. 27)
Nesse sentido, no momento em que a fala e o uso de signos são agrupados em uma
ação, esta se transforma e se organiza, ocorrendo, então, a utilização de instrumentos
especificamente humanos. A criança começa a controlar o ambiente com a ajuda da fala antes
mesmo de controlar o próprio comportamento. Conseqüentemente, são produzidas novas
relações com o meio, além de uma nova organização do próprio comportamento. A “criação
dessas formas caracteristicamente humanas de comportamento produz, mais tarde, o intelecto,
constitui a base do trabalho produtivo: a forma especificamente humana do uso de
instrumentos” (idem). Assim, as ações e a linguagem da criança ocorrem como uma tentativa
de atingir seus objetivos. Dependendo de sua necessidade, isto é, toda vez que ela se vê diante
de situações mais complexas, e à medida que seus objetivos vão se tornando mais difíceis de
serem alcançados, a linguagem infantil “aumenta a intensidade” e se torna mais “persistente”
(idem).
A utilização da linguagem torna a criança capaz até mesmo de planejar ações futuras.
Assim, as operações práticas de uma criança que já fala se tornam consideravelmente menos
impulsivas e espontâneas. Conforme Vygotsky (1988), a criança que usa a linguagem divide
sua atividade em duas partes consecutivas:
•
•
por meio da linguagem ela planeja formas de solucionar um problema e, em seguida,
executa a solução através de uma “atividade visível”;
essa atividade direta é substituída por um processo psicológico complexo através do qual a
motivação interior e as intenções estimulam seu próprio desenvolvimento e realização.
Essa forma nova de estrutura psicológica é típica da espécie humana. Assim, a
linguagem não só facilita a manipulação de objetos pela criança, como também controla o seu
comportamento. Dessa forma, conforme o autor ressalta, por meio da linguagem as crianças
“adquirem a capacidade de ser tanto agente como objeto de seu próprio comportamento”
(Vygotsky, 1988, p. 29).
Vygotsky (1989) observou que o processo segundo o qual a linguagem é utilizada
como instrumento do pensamento apresenta estágios diferenciados. Em síntese,
primeiramente, há uma evolução da fala que passa de exterior para egocêntrica; em seguida,
esta evolui para uma fala interior. Dessa forma, a fala egocêntrica, conforme o autor, pode ser
definida como um estágio de transição entre a fala exterior, relacionada a atividades
interpsíquicas, isto é, referente ao contexto social, e a fala interior, aquela relacionada a uma
atividade intrapsíquica ou individual. Quando a criança descobre que não é capaz de resolver
um problema sozinha, dirige-se a um adulto e descreve verbalmente a situação. Vygotsky
(1989) denominou o discurso utilizado nesta ação de fala socializada; esta, mesmo
apresentando muitas funções, não é ainda um planejamento de seqüências, isto é, não é
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utilizada como instrumento do pensamento. Numa fase posterior de seu desenvolvimento,
ocorre, segundo o autor, uma mudança significativa na capacidade infantil para usar a
linguagem como um instrumento para solucionar problemas: “no momento em que a fala
socializada (que foi previamente utilizada para dirigir-se a um adulto) é internalizada”
(Vygotsky, 1988, p. 30). Essa grande mudança é notada porque ao invés de pedir ajuda a um
adulto, a criança apela a si mesma. Nesse momento, a linguagem passa a adquirir uma função
intrapessoal além do seu uso interpessoal. Assim, a criança desenvolve um método para
conduzir o seu comportamento que já havia sido utilizado em relação a outra pessoa. Há,
nesse sentido, uma organização de sua atividade que está de acordo com uma forma social de
comportamento, o que demonstra que ela já consegue impor a si mesma uma atitude social.
Assim, conforme Vygotsky (1988), a relação entre linguagem e ação é dinâmica no
decorrer do desenvolvimento infantil:
-
num primeiro momento, a linguagem acompanha a ação; ela é provocada e dominada pela
atividade;
depois, a linguagem começa a se deslocar cada vez mais para o início da atividade, até
chegar a um determinado momento em que vai preceder a ação;
a partir desse ponto, a linguagem dirige, determina e domina a ação; surge, então, a função
planejadora da linguagem.
Quando a criança alcança esse estágio, a linguagem não só funciona como reflexo do
mundo exterior, seu papel também é o planejamento. Tem-se, aí, a noção de futuro e a
conseqüente independência em relação ao meio ambiente em que se encontra. A criança,
conforme o autor, não age mais apenas em função do espaço imediato evidente; há uma
mudança radical no seu campo psicológico. Dessa maneira, Vygotsky (1989) ressalta que os
signos e as palavras representam para as crianças, primeiro e acima de tudo, um meio de
contato social com outras pessoas. Podemos dizer, então, a partir da leitura feita sobre os
estudos deste autor, que quando a criança se vê diante de um problema de difícil solução,
apresenta diferentes respostas na busca de realização: tenta atingir o objetivo diretamente;
utiliza instrumentos auxiliares; faz uso da fala dirigida a uma pessoa mais experiente; fala
sozinha consigo mesma enquanto realiza uma atividade. É possível observarmos, assim, que a
linguagem tem extrema importância para o desenvolvimento infantil. A criança está inserida
num ambiente em que há a presença do outro; este é quem vai mediar a relação da criança
com seu objeto. Diante das relações que se dão a sua volta, e que, aos poucos, vão lhe
apresentando seu contexto social, a criança vai se desenvolvendo e utilizando para isso a
linguagem. Aos poucos percebe que seus objetivos podem ser alcançados por meio desse
sistema mediador. A criança passa a compreender de forma natural que, através da linguagem,
é capaz de agir no meio exterior e sobre seu próprio comportamento. A estrutura humana
complexa é o resultado de um “processo de desenvolvimento profundamente enraizado nas
ligações entre história individual e história social”, e, nessa relação entre sujeito e contexto
social, a linguagem tem papel central, demonstrando seu caráter sócio-histórico e interativo e
ressaltando o fato de que, desde a imersão da criança num ambiente cultural, a linguagem é
considerada como uma forma de produção social.
3 A origem social dos signos
Vygotsky (1988) fez estudos acerca das mudanças que os signos acarretam nas
funções psicológicas básicas, revelando, dessa forma, a origem social dos signos e a sua
função fundamental no desenvolvimento individual. O autor, ao falar sobre a operação de
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memória, conceitua os signos como estímulos artificiais ou autogerados que são incorporados
às dimensões biológicas do sistema nervoso humano. Esta incorporação é própria dos homens
e significa um modo novo de comportamento. Mesmo em povos iletrados, a memória natural
não é a única encontrada, há, conforme Vygotsky, outras formas de memória possibilitadas
pelo uso de signos (pedaços de madeira, nós, escrita primitiva etc). Assim, notamos que
mesmo nos estágios mais primitivos do desenvolvimento histórico os seres
humanos foram além dos limites das funções psicológicas impostas pela natureza,
evoluindo para uma organização nova, culturalmente elaborada, de seu
comportamento. (1988, p. 44)
Nesse sentido, podemos diferenciar as funções elementares – que têm como principal
característica o fato de serem determinadas por estímulos ambientais – das funções
psicológicas superiores – que são responsáveis pela estimulação autogerada, ou melhor, pela
criação e pelo uso de estímulos artificiais que não fazem parte do organismo biológico.
Conforme Vygotsky (1988), as formas elementares de comportamento pressupõem
uma relação direta à situação-problema defrontada pelo organismo: tem-se um estímulo e a
conseqüente resposta. Entretanto, quando incorporamos os signos a determinadas estruturas
de operações, estamos utilizando um elo intermediário entre o estímulo e a resposta. Segundo
o autor, esse elo é um estímulo de segunda ordem e apresenta uma função especial: uma vez
que é colocado no interior da operação, ele cria uma nova relação entre o estímulo e a
resposta 2. Vygotsky ressalta a característica que tem esse signo de ação reversa, ou seja, o
signo age sobre o indivíduo e não sobre o ambiente. O que temos, então, é a substituição de
um processo simples (descrito pelo processo estímulo/resposta) por uma operação complexa e
mediada. A função de ação reversa proporciona à operação psicológica formas
qualitativamente novas e superiores, o que permite aos seres humanos controlar o seu próprio
comportamento. O uso de signos, conforme o autor, conduz os seres humanos a uma estrutura
específica do comportamento que se destaca do desenvolvimento biológico e cria novas
formas de processos psicológicos enraizados na cultura.
Através de suas pesquisas, Vygotsky (1988) constatou que as operações com signos
surgem como resultado de um processo longo e complexo, sujeito a todas as leis básicas de
evolução psicológica. Isso mostra que, de fato, a atividade de utilização de signos nas crianças
não é inventada e tampouco ensinada pelos adultos, ao contrário, “ela só se torna em uma
operação com signos após uma série de transformações qualitativas” (p. 51). Essas
transformações formam uma cadeia em que a ocorrência de cada uma cria condições para o
próximo estágio e, da mesma forma, também é condicionada pelo estágio anterior. Notamos,
assim, que fazem parte de um mesmo processo de caráter histórico e, nesse sentido, as
funções psicológicas superiores estão sujeitas a leis do desenvolvimento, ou seja, surgem no
curso evolutivo da vida do indivíduo como resultado de um processo dialético entre
organismo e meio social. Por essa razão, o autor defende que as funções tipicamente humanas
são de origem sócio-cultural.
Assim, Vygotsky (1988) afirma que na vida do indivíduo há entre o nível inicial
(comportamento elementar) e os níveis superiores (formas mediadas de comportamento)
muitos sistemas psicológicos de transição que, na história do comportamento, estão entre o
biologicamente dado e o culturalmente adquirido; em suma, Vygotsky refere-se a esse
processo como a história natural do signo.
2
É preciso considerar a presença ativa do indivíduo no estabelecimento desse elo de ligação.
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O signo tem um papel essencial, visto que auxilia a humanidade em atividades que
envolvem a memória. A invenção e o uso de signos são meios auxiliares para que o homem
possa solucionar um problema psicológico, como lembrar de algo, fazer comparações ou
escolhas etc; essa invenção ocorre no campo psicológico, isto é, o signo age como um
instrumento da atividade psicológica.
Vygotsky (1988) diferencia os signos dos instrumentos, alegando que a linguagem é
um meio de interação social e o instrumento um meio de trabalho para dominar a natureza. O
autor procurou investigar a ligação entre estas duas ferramentas auxiliares dos seres humanos.
Concluiu que a analogia básica entre signo e instrumento se dava pela característica de ambos
terem uma função mediadora. A essência do uso de signos consiste em os homens afetarem o
seu comportamento através dele, por isso, é chamado de atividade mediada. Afirma, então,
que a principal diferença entre o signo e o instrumento consiste nas distintas maneiras com
que cada um deles orienta o comportamento humano, ou seja, o instrumento tem a função de
servir como um condutor da influência humana sobre o objeto da atividade; “ele é orientado
externamente” e serve para modificar o objeto. Assim, o instrumento é um meio pelo qual “a
atividade humana externa é dirigida para o controle e o domínio da natureza”. Já o signo, por
sua vez, não modifica o objeto da operação psicológica; é um “meio da atividade interna
dirigido para o controle do próprio indivíduo”; é orientado internamente (p. 62). Nesse
contexto, é possível compreendermos o quanto são diferentes essas duas atividades.
O autor analisa a ligação real entre essas atividades e, por isso, busca estudar seus
desenvolvimentos na filogênese e na ontogênese: “o controle da natureza e o controle do
comportamento estão mutuamente ligados, assim como a alteração provocada pelo homem
sobre a natureza altera a própria natureza do homem” (Vygotsky, 1988, p. 62).
Vygotsky (1988) chama de internalização a reconstrução interna de uma operação
externa. Esse processo consiste numa série de transformações:
a) Uma operação que inicialmente representa uma atividade externa é reconstruída e
começa a ocorrer internamente;
b) Um processo interpessoal é transformado num processo intrapessoal. Vygotsky
afirma que todas as funções no desenvolvimento da criança aparecem duas vezes: num
primeiro momento, no nível social, e, depois, no nível individual; primeiro, entre
pessoas (interpsicológica), e, a seguir, no interior da criança (intrapsicológica).
Assim, segundo o autor, todas as funções superiores originam-se das relações reais
entre indivíduos.
c) A transformação de um processo interpessoal num processo intrapessoal é o
resultado de uma longa série de eventos ocorridos ao longo do desenvolvimento. O
autor ressalta que o processo transformado continua a existir e a mudar como uma
forma externa de atividade por um longo período de tempo, antes de internalizar-se
por definitivo.
Segundo Vygotsky (1988), a linguagem tem grande importância nesse processo, uma
vez que participa fundamentalmente da reconstrução da atividade psicológica. A
“internalização das atividades socialmente enraizadas e historicamente desenvolvidas
constitui o aspecto característico da psicologia humana” (p. 65).
Nesse contexto, percebemos através dos estudos de Vygotsky, sobretudo pelo conceito
de internalização, a importância que tem a linguagem para o ser humano, seja por possibilitar
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ao indivíduo o acesso à cultura, tornando-o, dessa forma, um ser histórico e social, seja por
proporcionar o desenvolvimento psicológico dos seres humanos, através da mediação com o
meio social.
Considerações finais
A análise dos estudos desenvolvidos por este autor nos permite identificar a linguagem
como uma ferramenta fundamental para o desenvolvimento do ser humano, uma vez que
possibilita a relação deste com o mundo exterior e com seus semelhantes. Por meio dessa
relação, a linguagem proporciona ao indivíduo interagir dialeticamente com o social, o que
acarreta no seu desenvolvimento e o torna um agente desse contexto. Assim, ela é central para
que o homem domine seu meio social e seu próprio comportamento. Nesse sentido, as idéias
defendidas por Vygotsky expressam sua preocupação em integrar características biológicas e
sociais, e, principalmente, em salientar o papel da linguagem no desenvolvimento humano.
Portanto, através da ênfase dada pelo autor na função central que tem a linguagem na
relação entre sujeito e contexto social, é possível compreendermos o caráter sócio-histórico e
interativo dessa atividade e seu papel nodal como signo mediador, responsável pelo
desenvolvimento do ser humano desde o momento em que este é imerso num ambiente
cultural.
Referências bibliográficas
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sócio-discursivo. São Paulo: educ, 1999.
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Fernanda; BENTES, Anna Cristina (Orgs.). Introdução à lingüística: fundamentos
epistemológicos. São Paulo: Cortez, 2004.
SCARPA, Éster Mirian. Aquisição da linguagem. In: MUSSALIN, Fernanda; BENTES,
Anna Cristina (Orgs.). Introdução à lingüística: domínios e fronteiras. São Paulo: Cortez,
2003.
VYGOTSKY, Liev S. A formação social da mente. 2ed. brasileira. São Paulo: Martins
Fontes,1988.
______ . Pensamento e linguagem. 2ed. brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
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Enunciados de problemas de matemática ou jogos de quebra-cabeça?
Ana Elizabeth Dreon de Albuquerque
Mestre em Lingüística-UFRJ
Resumo: Existe uma reclamação corriqueira nos corredores das escolas quanto ao
desempenho dos alunos no que diz respeito à resolução de problemas de matemática. Muitos
professores culpam ao pouco conhecimento matemático. Outros, por sua vez, creditam o mau
desempenho à falta de atenção dos alunos na hora de ler os enunciados. Mas os professores se
esquecem do que o enunciado está escrito na língua materna e que ler um texto exige mais do
leitor do que uma mera decodificação. O leitor contribui com sua vivência, com seu
conhecimento de mundo, faz inferências, na busca por interagir com o texto. E, às vezes, essa
busca de sentido é mal sucedida pelo fato do texto ser sintético, sem contexto, como costuma
ocorrer com os enunciados de problemas de matemática. O presente trabalho tenta
demonstrar a importância de um texto bem escrito para se chegar à solução do problema, ou
de uma boa percepção por parte do professor quando, mais do que apontar o erro do aluno, ele
procura entender que a leitura equivocada é fruto da vivência desse aluno.
Palavras-chave: problemas de matemáticas, leitura, problemas de compreensão de leitura.
Resumen: Existe un reclamo corriente en los pasillos escolares respecto al bajo desempeño
de los alumnos en la búsqueda por solventar los problemas de matemáticas. Muchos
profesores culpan al escaso conocimiento matemático. Otros, por su turno, creen que el bajo
desempeño se debe a que los alumnos no se fijan cuando leen los enunciados. Sin embargo,
los profesores se olvidan de que el enunciado está escrito en lengua materna y que leer un
texto exige de su lector más que una simple decodificación. El lector contribuye con su
vivencia, con su conocimiento de mundo, con sus inferencias, al buscar interaccionar con el
texto. Y, muchas veces, esa búsqueda de sentido se frustra porque el texto es sintético,
descontextualizado, como suele ocurrir con los enunciados de problemas de matemáticas. Este
trabajo intenta demostrar la importancia de un texto bien escrito para que se llegue a la
solución del problema o de una buena percepción por parte del profesor cuando, más que
señalar el error el alumno, busca entender que la lectura errónea es fruto de la vivencia de ese
alumno.
Palabras-llave: problemas de matemáticas, lectura, problemas de comprensión lectora.
Introdução
A linguagem faz-se presente em todos os lugares: numa boa conversa, nos letreiros
luminosos, no pisca-pisca de um carro, num sorriso. De todas as linguagens existentes, a
articulada é que nos interessa. Através dela, trocamos idéias, interagimos com outros homens,
estabelecemos elos, expressamos nossas dúvidas e vontades. É através dela, que nós nos
comunicamos. E, como já dizia o Velho Guerreiro, Chacrinha: “Quem não se comunica, se
trumbica”.
Eis aí a nossa questão: o ensino de matemática parece desconhecer-lhe a importância.
Enunciados de problemas de matemática exigem muitas vezes uma ginástica mental apenas
para que se possa entender o seu conteúdo. Resolvê-los já é uma outra tarefa.
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Não são raros os casos de alunos que incorrem em erros por não compreenderem o que
se pergunta, mas, uma vez entendida a mensagem, mostram-se capazes de resolverem a
questão.
Seria o caso, então, de indagar quais possíveis sentidos podem existir num mesmo
texto, e até que ponto uma sintaxe confusa ou o emprego de um léxico ainda não dominado
chegam a interferir na linha de raciocínio.
Para tanto, o trabalho foi dividido em duas partes: a) analisar enunciados que têm
como objetivo básico confundir a quem se pergunta, e b) analisar enunciados que tentam, por
meio de “pistas”, conduzir o aluno a uma determinada conclusão (os enunciados comumente
encontrados nos livros didáticos).
A primeira parte, como veremos, é bem conhecida de todos e já foi testada várias
vezes: os resultados estão presentes no dia-a- dia. A segunda, contudo, merece maior cuidado,
O pouco que fizemos foi pensar sobre os anos de escola, as dificuldades de então, os enganos
que ainda persistem e algumas observações provenientes de conversas e pequenos testes com
crianças que já estão no segundo segmento do ensino fundamental ou com adultos que, ainda
que sejam bons em matemática, há muito se afastaram do estudo formal da escola.
Este trabalho visa tão-somente levantar pontos de discussão e contribuir de algum
modo com aqueles que desejem entender o mundo da matemática, através do estudo da
linguagem.
Quebra-cabeça I
Todos sabemos da existência de problemas cujo objetivo é o de apenas medir a
capacidade de atenção que se lhe dá. Eentretanto, sabemos também que somente quem está
preparado para resolvê-los (por já ter tido uma experiência prévia) tem possibilidade de
acerto.
Ora, tais “jogos de raciocínio”, em realidade, medem somente a habilidade de detectar
falhas no enunciado; falhas que fogem ao exercício básico da linguagem: a comunicação entre
os homens.
Apresentados dentro de um “cerimonial de seriedade”, eles divertem aos que o fazem,
enquanto exigem dos pretensos elucidadores algo que não diz respeito nem a matemática,
nem a linguagem: malícia.
Vejamos os enunciados que se seguem.
(1): Uma pessoa foi à feira. Comprou três abacates, doze laranjas, um abacaxi e dois limões.
Quantas verduras ela comprou?
(2): Um trem elétrico segue do Rio para São Paulo a uma velocidade de 100 km/h. Se o vento
sopra na direção contrária, para onde vai a fumaça?
(3): O que pesa mais: um quilo de chumbo ou um quilo de algodão?
(4): Quanto é dois e dois?
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Pessoas com razoável conhecimento lógico-matemático tendem a responder “18”, “a
fumaça vai para onde o vento sopra”, “chumbo” e “4”, respectivamente, para (1), (2), (3) e
(4), sem titubear.
Por que o fazem?
Imaginemos, por exemplo, uma situação em que alguém relate a quantidade e
variedade de peças de vestuário compradas e, por outro lado, uma pessoa que, ao escutar esta
enumeração, indague sobre agulhas adquiridas. O estranhamento e a falta de lógica ao “nonsense” da pergunta, indica que há algo no mínimo absurdo ou óbvio demais para que se lhe dê
a devida atenção.
Tais comportamentos podem explicar por que o erro aparece. Um estudo da linguagem
utilizada também. Passemos a eles.
No exemplo (1), o que se observa é uma estrutura sintática muito comum na
elaboração de enunciados de problemas de matemática: sujeito, verbo, objeto (sobre o qual
incide a pergunta) e o uso de um pronome interrogativo.
Em geral, pouca coisa é modificada. Os verbos sempre se referem a ganhos (achar,
comprar, ganhar, receber) ou a perdas (dar, rasgar, quebrar, vender, perder); ou seja, numa
hora se possui o objeto, numa outra não se é mais dono.
Sujeitos e objetos variam, mas o foco da questão não recai sobre eles, e sim sobre o
verbo com o qual se trabalha.
Como esse esquema se baseia em substituições paradigmáticas que pouco influem na
resolução do problema, ao lado de outras que são essenciais para que se possa equacioná-lo, é
sobre estas que o desafiado concentrará a sua atenção. Por isso ele desconsidera a palavra
verduras e se prende ao fato de somar, já que a ação de comprar significa ganho.
O que parece solidificar esse raciocínio (ou engano) é a insistência em elaborar
questões que obedecem sempre à mesma construção frasal – “Quantos Y (objeto) X (sujeito)
comprou/ ganhou/ gastou?(verbo)” -, quase automatizando o “input” para a resposta. Em
outras palavras, se o que se deseja é alcançar a solução correta (nenhuma verdura) é preciso
estar atento para uma mudança não esperada, a fim de se desvencilhar daquele
comportamento condicionado criado pela escola.
No exemplo (2) — o do trem elétrico — há o cuidado de se inserir, no meio de várias
palavras, aquela que evidenciará o absurdo da formulação (elétrico). Mais uma vez, conta-se
com o descuido provável que se tem ao se ouvir uma frase qualquer.
Segundo Slobin (1980),
o sentido de uma frase não é exatamente uma cadeia de palavras, mas uma idéia que
dá origem a essa cadeia e determina sua seqüência temporal (...) o sentido provém
do nosso conhecimento sobre como as regras de ordem devem ser interpretadas em
nossa língua. (...) A imagem, ou a idéia, não têm ordem própria; as frases têm. Os
significados das frases, entretanto, vêm de uma atividade cognitiva que abrange
tanto o conhecimento dos sentidos da palavra, quanto o conhecimento de
convenções ou regras lingüísticas particulares (...) (p. 4 - 5).
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Em suma, é muito comum, numa leitura de um texto qualquer, enunciar uma palavra
escrita semelhante à da que se lê e a ela retornar por não existir coincidência entre forma/
significado e contexto. Isso ocorre porque a leitura não se faz letra por letra, ou palavra por
palavra, mas pelo conjunto de palavras que transmite um significado global.
O mesmo acontece quando a formulação é oral: ouve-se o todo e não as partes,
isoladamente.
No caso que estamos estudando, a palavra elétrico encontra-se distanciada da
pergunta, que, por sua vez, não se refere ao tipo de trem. Pelo contrário, esta cria elos entre as
palavras velocidade, vento, direção e distância.
Este conjunto lexical irá favorecer a apreensão de um semantema que abarque tais
relações: fumaça. Por esse motivo, não há estranhamento quando se faz uso dela. Todo o
enunciado favorece o seu aparecimento.
O exemplo (3), que questiona sobre o peso do chumbo e do algodão, traz em si alguns
ruídos: a) a alternância, que remete à escolha de uma das partes; b) a presença de um metal
reconhecidamente pesado (chumbo) em contraste com um conjunto de pelos macios
(algodão); e c) o mesmo peso.
Ao se buscar a diferença (Quem pesa mais?), elimina-se o que parece não ter
importância para se resolver o problema (1 kg) e evidenciam-se as qualidades materiais de
cada um dos objetos. Ou seja, o que se entende, na verdade, é: quem pesa mais - chumbo ou
algodão?
A disposição das palavras na frase favorece esse tipo de raciocínio. Se a construção
frasal fosse outra (“Ao serem colocados na balança, chumbo e algodão pesaram - ambos - um
quilo. Quem pesa mais?”), muito provavelmente a resposta seria: “os dois têm o mesmo
peso”.
Mas, se o objetivo for o de confundir, este - claro - não deverá ser o critério a ser
adotado.
O exemplo (4) envolve um caso de ambigüidade; portanto, se a resposta for 4 ou se for
22, não se pode dizer com convicção que houve “erro”.
A conjunção coordenativa e, classificada como aditiva pelas gramáticas normativas,
tem duas funções: colocar lado a lado palavras, termos, orações, frases, sem imbricá-los, ou
dispô-los lado a lado, mas tornando-os integrantes um do outro.
Podemos ter, em português uma frase simples como “João e Ma ria saíram”, que pode
conter dois significados: (a) João saiu e Maria também, mas cada um para o seu lado; e (b)
João saiu com Maria.
No primeiro caso, a conjunção reúne ações, mas ações paralelas. Há uma elisão do
verbo sair: João saiu e Maria saiu. No segundo caso, a conjunção reúne duas pessoas num
mesmo fato: sair. Note-se que é possível “transformar” a conjunção aditiva e na preposição
com, que, por sua vez, remete à idéia de simultaneidade e companhia.
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Para que tenhamos certeza de qual das opções se trata, necessitaremos conhecer o
contexto em que estão inseridas as frases.
O mesmo ocorre com o enunciado (4). A conjunção apresenta uma idéia de soma
(2+2), ao lado de uma outra que procura reunir os algarismos (22), mantendo, contudo, a
individualidade deles. De qualquer modo, 22 (vinte e dois) é a soma ou conjunto de 22
unidades, ou, como queiram alguns, duas dezenas e duas unidades.
Como a linguagem escolar apresenta fórmulas cristalizadas, tendendo ao ato de somar,
o fato de a conjunção e servir apenas para reunir algarismos, e não adicioná-los, é que causará
espanto.
Se os enunciados, ora apresentados, contêm pequenas armadilhas “para pegar o bobo”,
outros, que porventura estejam descontextualizados do real, acarretarão igualmente respostas
não adequadas.
Vejamos, por exemplo, o que acontece na historinha do personagem CALVIN 3
Quadro nº 1: “Sr. Jones vive 50 km distante de você. Vocês dois saem de casa às 5.00 h e se
dirigem um em direção ao outro”.
Quadro nº 2: “Sr. Jones viaja a 50 km/h e você dirige a 60 km/h.. A que horas você vai cruzar
com Sr. Jones na estrada?”
Quadro nº 3 “Considerando-se o trânsito daqui, só Deus sabe”.
Quadro nº 4 “Eu sempre me saio bem dessas perguntas capciosas”.
Como se viu, os dois primeiros quadros são utilizados para formular a pergunta. Os
dois seguintes se referem à resposta dada pelo personagem e ao seu comentário sobre o tipo
de enunciado.
Conhecendo o mundo real de uma cidade grande, Calvin sabe ser no mínimo
desconfiável uma questão como esta. Não é à-toa que tenta ver um quê de maldade por detrás
do enunciado.
Talvez por saberem que o mundo ideal dos problemas não existe, os químicos tenham
o cuidado de salientar a existência de condições normais de temperatura e pressão (C.N.T.P.),
quando desejam conhecer resultados não muito prováveis no mundo em que vivemos.
Quebra-cabeça II
Até o momento, os enunciados vistos foram do tipo “propositalmente matreiros”,
porém, quando nos deparamos com aqueles denominados “sérios”, o nível de ruídos
existentes não diminui.
Objetivando mostrá-los, apresentaremos alguns problemas que tratam de diferentes
dificuldades matemáticas. Sem maiores pretensões, escolhemos aleatoriamente enunciados
3
O texto apresentado foi proveniente de uma adaptação/tradução feita pelo jornal O GLOBO. Como não
tínhamos referência de data, decidimos manter este texto, dando como referência, no entanto, a que está presente
na coletânea publicada pela CEDIBRA.
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presentes em livros de ensino fundamental 4, e que são muito comuns em testes ou trabalhos
de casa. Ei-los:
(5): “Dois barris de óleo têm juntos 945 litros. Se tirarmos 140 litros do primeiro e 125 litros
do segundo, os dois barris ficarão com quantidades iguais. Quantos litros tem cada um?”
Para solucioná-lo, é preciso que se entendam alguns pontos:
a) a primeira frase, apesar de ser importante para a resolução do problema, deverá ser
desvinculada, temporariamente, do restante do enunciado;
b) a segunda frase se refere a cada um dos barris, isoladamente;
c) a palavra barril foi suprimida duas vezes;
d) apesar de a frase trabalhar com uma hipótese (se tirarmos), o verbo na pergunta (“Quantos
litros tem cada um?”) se re fere a um momento presente, fatual; e
e) o dado final (quantidades iguais) é conseqüência das retiradas de líquido feitas em cada
barril, em duas fases.
Sem compreender esse mínimo, o aluno poder incorrer em enganos sucessivos que o
conduzirão a um resultado errado. A palavra juntos proporciona esse caminho que não é de
todo impossível. Vejamos o que poderia provocar uma segunda leitura, caso se desconhecesse
o que foi dito acima:
a) se forem retirados 140 litros de um barril e 125 de outro (ou seja, 265 litros), para se
descobrir quanto havia em cada um é muito fácil: basta subtrair o total de líquido
recolhido (265) do total existente (945);
b) se a diferença entre eles (945-265) é igual a 680, esse de verá ser o conteúdo de um dos
barris;
c) e, finalmente, se se retirar 15 litros de 680 (já que ao retirar 15 de um dos barris,
obtiveram-se quantidades iguais), o resultado será o conteúdo do outro barril (665).
Resposta: 680 e 665.
Se o aluno não perceber que a soma da quantidade de líquidos existentes, em cada
barril, deverá ser 945 (680 + 665 = ?), ele acreditará que o seu raciocínio foi correto, e
persistirá no erro. Caso contrário, é provável que leve muito tempo para descobrir onde errou.
Vale a pena salientar que algumas das pessoas consultadas 5 fizeram este caminho e, só
após a soma, se deram conta do que acontecera.
Para que o aluno possa resolvê-lo, terá de compreender que: a) um dos barris tem 945
litros menos o segundo barril, e b) que esse mesmo barril tem 15 litros a mais do que o
segundo.
Com isso ele poderá chegar s equações matemáticas “X= 945-y” e “X= 15+y”, ou
seguir um outro caminho: subtrair 265 de 945, dividir o resultado por 2 e obter assim a
quantidade de litros restantes em cada barril (340), após a retirada de 140 e 125,
respectivamente de cada um deles.
4
Apesar dos enunciados de problemas de matemática serem semelhantes aos dos livros atuais, o livro didático
escolhido se deu em função da faixa etária dos informantes e do livro didático por eles utilizado quando estavam
na escola.
5
As pessoas em questão eram adultas, com no mínimo curso médio completo, algumas com curso superior
completo. Todas eram boas em matemática, mas estavam distanciados da escola há algum tempo.
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De qualquer modo, essas etapas dizem respeito ao conhecimento de operações, tais
como: igualar expressões, reunir letras de um lado e número de outro, operar com troca de
sinais, dividir, subtrair, etc. Mas tudo isso já faz parte da matemática.
Vejamos o problema seguinte:
(6): “Num dia de Natal foram distribuídos brinquedos a um grupo de crianças, e tendo sido
dados dois a cada um, sobraram treze. Distribuíram-se, então, quatro a cada uma e sobraram
apenas três. Quantas eram as crianças? Quantos eram os objetos?”
Sem nenhum contexto que melhor explique o enunciado, o aluno é obrigado a
adivinhar o que pretendia transmitir o autor ao dizer que distribuíram mais 4, sem dizer de
onde saíram. Por outro lado, como não fica claro o que sobrou – sabe-se apenas que
“sobraram 13”, pode haver dúvidas entre “objetos” e “crianças”.
Da forma como está, e, tomando-se como base o real, o dia-a-dia, observaremos que
existem, pelo menos, quatro maneiras de se compreender a mensagem:
a) De um total X de brinquedos, foram distribuídos dois a cada criança e sobraram 13
brinquedos. Estes 13 foram redistribuídos e, ao final, sobraram 3 brinquedos.
b) De um total X de brinquedos, foram distribuídos dois a cada criança e sobraram 13
brinquedos. Recolheu-se, então, tudo para se fazer uma nova redistribuição, segundo outro
critério (4 para cada uma).
o) De um total X de brinquedos, foram distribuídos dois a cada criança e sobraram 13
brinquedos. Estes 13 foram adicionados a um novo X (de mesmo valor que o anterior); tanto
que deu para oferecer dois brinquedos a mais do que a primeira vez. No entanto, ainda
continuaram a sobrar 3.
d) De um total X de brinquedos, foram distribuídos dois a cada criança e sobraram 13
brinquedos, que não foram reaproveitados, ou melhor, foram guardados em algum canto.
Apanhou-se, então, um outro total X de brinquedos (de valor igual ao primeiro X) e
distribuíram-se, desta vez, quatro para cada criança, ao invés de 2. Desta nova fase, sobraram
3. Resumindo: no cômputo geral, deixaram de ser distribuídos 16 brinquedos.
Nos três primeiros casos, há uma preocupação em se distribuir o número máximo de
brinquedos, enquanto que, no quarto caso, a regra evidentemente não é esta.
Sendo Natal ou tendo-se como objetivo dar presentes, parece-nos que as três primeiras
hipóteses são mais lógicas, contudo espera-se que o aluno não considere uma série de
possibilidades e opte pela quarta, que é a chave do problema.
Como compreensões diferentes levam a resultados diferentes, não fica difícil prever o
que pode acontecer.
No primeiro caso, por exemplo, o aluno entenderá que cada criança recebeu 6 objetos
(4 + 2), ao final de tudo. E imaginará que, se sobraram 3, o total de objetos deverá ser a soma
de 3 + (6 x Y), onde Y corresponde ao número de crianças. Quanto às crianças, bastará dividir
10 (nº total de objetos distribuídos na 2ª fase) por 4 (nº de objetos por criança, na 2’ fase), o
que dá 2,5 (sic).
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Diante desse resultado, o aluno perceberá, é quase certo, que existe erro, mas
dificilmente saberá localizá-lo 6.
Para os curiosos, eis o resultado do livro: 23 objetos em cada fase e 5 crianças, ou seja,
na 1ª fase tivemos 5 crianças x 2 objetos + 13 que sobraram (o que dá 23); na 2ª fase, 5
crianças x 4 objetos + 3 que sobraram (o que dá 23).
Segue mais um problema:
(7): “Se, numa soma de quatro parcelas, adicionarmos quatro centenas e meia a cada uma das
duas primeiras e meia dezena a cada uma das outras, a soma aumentará de
__________________ dezenas”.
Para chegar à solução, o aluno terá de saber:
a) o que significa parcela, adicionar, soma, centena, dezena e meia;
b) que a palavra parcela foi suprimida duas vezes, bem como o verbo adicionar;
c) que as 4 centenas e meia, assim como as meias dezenas se repetirão duas vezes;
d) que há uma pergunta indireta referindo-se ao total de dezenas;
e) que os números apresentados deverão se distribuir nas 4 parcelas;
f) que é preciso somá-los; e
g) que, do total resultante, interessam as dezenas.
Mas isso não é o suficiente. É importante, ainda, entender o significado de centena,
dezena, meia dezena e centena e meia. Ou seja, não basta saber que uma centena é 100, pois
há que se compreender o que está por trás da palavra.
Embora não fosse nossa intenção imiscuir-nos tanto na área de matemática, iremos
fazê-lo para esse exemplo a fim de demonstrarmos quão complexo é o conhecimento das
classes e ordens numéricas.
Quando estamos na escola, aprendemos que os numerais são divididos em classes:
unidades, dezenas e centenas; que as unidades são indicadas por 0, 1, 2 ....... 9, as dezenas por
10, 20 ..... 90, e as centenas por 100, 200 ...... 900. e que o primeiro algarismo, escrito à
direita, representa unidades simples. Assim, em 553, haverá 5 centenas, 5 dezenas e 3
unidades.
Aprendemos, também, que o algarismo assume um valor X conforme sua posição no
número. Dessa forma, em 553, o algarismo 5 que se encontra na 3ª ordem vale dez vezes mais
que o algarismo que está na 2ª ordem, já que na 3ª ele vale 500, enquanto que na 2ª só vale 50.
Ao final, concluímos que o número 50 contém 5 dezenas ou 50 unidades, enquanto
que o número 500 contém 5 centenas ou 50 dezenas ou 500 unidades.
Se a prática é simples (500 vale dez notas de 50), a teoria complica. Como entender
que 5 dezenas seja maior do que 5 unidades ou 500 unidades seja igual a 5 centenas
6
A leitura equivocada se deu com boa parte dos informantes
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O que podemos perceber é que se há dificuldades, elas estão presentes na combinação
de nomes, algarismos e valores. Para que fique mais claro, observemos os exemplos abaixo,
considerando-se que todas as escalas sejam decrescentes:
a) centena > dezena > unidade.
b) 10 > 9 > 8 > 7 > 1 > 0.
c) 5 centenas >5 dezenas > 5 unidades.
d) 8 centenas >3 centenas >1 centena.
e) 9 dezenas > 7 dezenas > 2 dezenas.
f) 8 unidades > 5 unidades > 2 unidades.
Nos vários exemplos trabalha-se um mesmo tipo de noção: nome das classes, valor
dos algarismos, algarismos iguais em diferentes classes e valor de diferentes algarismos numa
dada classe. Comparam-se, portanto, os iguais. Assim, no exemplo c, destacam-se as classes,
enquanto que no d, os algarismos.
Até esse ponto não parece haver dificuldades. No entanto, quando se reúnem
diferentes algarismos em diferentes classes, surgem problemas: 40 unidades se iguala a 4
dezenas Nesse caso o aluno tem de perceber que um algarismo maior nem sempre equivale a
um número maior.
Se ele chega a compreender esse fato, resta-lhe entender mais um: o significado de
meia dezena ou centena e meia.
Sabe-se que meia está. ligada à metade, assim meia dúzia equivale à metade de 12,
meia dezena à de 10, meia centena à de 100. O estranho é que, ao apresentarmos esse
problema a um informante ciente de todas essas noções, ele não conseguiu entender o
significado de centena e meia. Apesar de saber que 4 centenas equivalem a 400 e que meia
dezena equivale a 5, pensava que 4 centenas e meia equivalia a alguma coisa préxima a 200
(400- 4 centenas - : 2 - meia). Após perceber o significado, conseguiu solucionar o problema:
91 dezenas 7.
Vale ainda um lembrete: caso o resultado fosse 915 (unidades), não se poderia dizer
que o resultado 91,5 dezenas estaria errado, já que 0,5 também se refere a dezenas.
Como se pôde notar, um exemplo aparentemente simples exigiu não só um
conhecimento complexo do mundo dos números, como também um bom grau de
compreensão do enunciado.
Vejamos o nosso último exemplo.
(8): “Que alteração sofre a soma S= a+b se aumentarmos a parcela a de 5 unidades e a b de
7?”
Este enunciado traz em si um problema a mais do que o sugerido pela questão: a
ambigüidade. Vimos no problema anterior (6), os diversos transtornos causados por ela, mas
achamos interessante observá-la num problema que fosse mais simples pelo menos na
aparência.
7
Nesse caso específico, tratava-se de um aluno – 9 anos - da 4ª série de ensino fundamental.
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A primeira dificuldade é entender o significado de soma pois ora pode se referir ao
total resultante, ora ao processo de adição. Por outro lado, o que é que se pede: o aumento
nominal (quantia agregada ao valor inicial) ou o aumento percentual?
A preposição de no lugar de em pode levar o aluno a entender que as parcelas a e b são
fixas, valendo 5 e 7, respectivamente.
Partindo-se do enunciado abstrato, poder-se-ia chegar a 12 ou a 2. Se o que se busca é
o total, o valor será 12 (5+7); mas se se pensa no processo, o valor será 2 (7= 5+2), que é o
excedente e trará modificações a ambos.
As dúvidas, entretanto, não se resumem a isso.
Supondo que a seja 10 e b seja 4 ... a diferença entre eles será 6. Acrescentemos,
agora, os valores 7 e 5, ora a um, ora a outro:
1) a= 10+7; b= 4+5 ......... a diferença será 8.
2) a= 10+5; b= 4+7 .......... a diferença será 4.
Reduzir estas situações a resultados como 12 e 2, é simplificar demais o problema.
Explorá-lo, talvez fosse o caso.
Conclusão
Quando Mequinho, um dos melhores enxadristas brasileiros, ganhou um campeonato
mundial, Millôr Fernandes, parodiando a famosa frase “Jogar xadrez desenvolve o
raciocínio”, saiu-se com esta: “Jogar xadrez desenvolve a capacidade de jogar xadrez”.
Parodiando Millôr, diríamos: “Estudar Matemática desenvolve a capacidade de
compreender os enunciados dos problemas de matemática”.
Talvez essa frase seja um pouco forte. Há sem dúvida os dois lados da questão:
aqueles que entendem o enunciado, mas não conseguem resolver o problema, ao lado
daqueles que só conseguem resolvê-lo a partir do momento em que decifram o enunciado.
Optamos por estudar este segundo caso, ou seja, o que há por detrás das construções
frasais que perturbam o acesso ao significado?
Ao analisarmos os problemas capciosos (enunciados de 1 a 4), observamos que a
ambigüidade, uma palavra importante mas perdida entre outras, a disposição das palavras nas
frases ou a cristalização de formas para perguntar, impeliam o desafiado ao erro. Vimos,
também, que o mesmo ocorria com aqueles enunciados que são ensinados na escola. Por quê?
Percebemos que, na tentativa de redigir um texto sintético, sem obedecer a uma
seqüência de organização de pensamento, descontextualizado e, muitas vezes, irreal,
preparava-se uma armadilha para quem tencionasse responder a uma questão.
Além disso, os anos de escola nos mostraram que, se as respostas não fossem
satisfatórias ou não coincidissem com o gabarito, recebia-se uma nota baixa; afinal,
matemática é uma só.
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Douady (1988), em conferência proferida no Instituto de Matemítica Pura e Aplicada
(IMPA), no Rio de Janeiro, diz-nos que:
Para transmitir os conceitos que criou, o matemático procura desvinculá-los do
contexto, dos aspectos acidentais e do tempo, expressando-os na forma mais simples
e direta possível, num grau de generalidade adequado para seu reemprego ou sua
adaptação, integrando-os de maneira coerente ao corpo de conhecimentos, já
constituído, dando-lhes um status cultural: deste modo, tais conceitos assumem o
status de objeto (...) Essas desvinculações do contexto, dos aspectos acidentais e do
tempo são três condições que alicerçam a construção e a capitalização do saber.
E talvez aí se encontre o erro.
A matemática precisa utilizar a língua para poder se fazer entender, mas a língua é
riquíssima. Já dizia Platão que a linguagem é “talvez o maior de todos os assuntos”.
E a língua é social, é produto do homem, de sua vivência, do seu conhecimento. Ela
não surge do nada. Não se pode, por isso, exigir que o aluno desconsidere as diversas
possibilidades de leitura que um texto pode oferecer, porque a matemática “pode se isolar do
mundo”.
Num quadrinho em que aparece a personagem Susanita 8, amiga da Mafalda, Quino
tenta retratar que a visão pessoal de mundo, às vezes, pode ser mais forte do que a “exatidão”
que se deve ter quando se resolve um problema: Susanita responde o que considera ser a
resposta adequada.
Quadro nº 1: “Resolva: Se um pedreiro levanta 2 metros de parede em 1/2 dia, quantos metros
levantaria em 3 dias?”
Quadro nº 2: “Vejamos: 3 dias 6 meios dias, ou seja
Quadro nº 3: “6 meios dias x 2 metros são 12 metros.”
Quadro nº 4: “Solução: levantará 6 ou 7 metros, porque neste país ninguém quer trabalhar.”
Embora não concordemos com a visão de Susanita, o exemplo clarifica o que
tentamos expor. Segundo Kamii (199O),
Se as crianças cometem erros porque, geralmente, estão usando sua inteligência a
seu modo. Considerando que todo erro é um reflexo do pensamento da criança, a
tarefa do professor não é a de corrigir a resposta, mas de descobrir como foi que a
criança fez o erro.
Aliado a isso, faz-se necessário elaborar textos compreensíveis que não se traduzam
em mais um empecilho a se vencer, para equacionar um problema. Faz-se necessário observar
as outras leituras possíveis de um mesmo texto.
Acreditamos que procedimentos como esses tornarão a matemática mais palpável e
próxima da resolução de problemas que surgem todos os dias.
8
Susanita é uma das personagens criadas pelo argentino Quino.
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Caderno 1 da RPM (Revista do Professor de Matemática). Vol. 1. São Paulo, USP, 1: 10—21
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Piaget. São Paulo, Ática.
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KAMII, Constance. (1990). A criança e o número Campinas, Papirus.
KURY, Adriano da Gama. (1978) Gramática fundamental da língua portuguesa. São Paulo,
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LIMA, Carlos da Rocha. (1982) Gramática normativa da língua portuguesa Rio de Janeiro,
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WATERSON, Bill. (1988) Algo embaixo da cama mais uma coletânea de Calvin e Haroldo.
Campinas, CEDIBRA.
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Transitividade e os planos discursivos figura e fundo nas orações subordinadas
adverbiais modais
Anderson Godinho Silva
Mestrando em Letras Vernáculas Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Resumo: Apresenta-se, neste trabalho, uma descrição das orações subordinadas adverbiais
modais reduzidas de gerúndio e reduzidas de infinitivo. Tal descrição justifica-se pelo fato de
alguns autores como Hopper e Thompson (1980) e Silveira (1990) considerarem que as
formas nominais citadas e a circunstância de modo conferem às cláusulas em que se
encontram um grau de transitividade baixo e um papel discursivo de fundo.
A fim de detectar i) se as modais apresentam diversos graus de transitividade; ii) se há um
tipo de reduzida que apresenta um grau maior de transitividade; iii) se há a possibilidade de se
propor diferentes níveis de fundidade para as modais; iv) se os tipos semânticos dos verbos
das orações em questão influenciam na transitividade e v) se há um parâmetro específico da
transitividade que é mais responsável pelas diferenças de comportamento entre os tipos de
orações reduzidas, estabeleceu-se um corpus constituído por anúncios, editoriais e notícias
dos séculos XIX e XX retirados do corpus VARPORT (Projeto de Variação Contrastiva do
Português) referentes ao Português do Brasil. Adota-se, neste trabalho, uma visão
funcionalista, em que a língua é observada no seu uso real.
Palavras-chave: Transitividade, Figura, Fundo.
Abstract: This paper presents a description of the adverbial clauses of manner with the verbal
forms infinitive and gerund. Such description is justified by the fact that some authors such as
Hopper and Thompson (1980) and Silveira (1990) consider that the cited forms and the
circumstance of manner represent a low level of transitivity and a discursive role of
background in the clauses where they appear.
In order to detect i) if the adverbial clauses of manner present different levels of transitivity;
ii) if there is a kind of clause (with gerund or with infinitive) which presents a higher level of
transitivity; iii) if it is possible to attribute different levels of backgrounding to the adverbial
clauses of manner; iv) if the semantic types of verb of the studied clauses have an influence
on the transitivity and v) if there is a specific parameter of transitivity which is more
responsible for differences of behavior between the types of clauses (with gerund or with
infinitive), it was established a data composed by advertisements, news and editorials from
the 19th and 20th centuries taken from the data VARPORT (Project of Contrastive Variation of
Portuguese) referred to Brazilian Portuguese. This paper adopts a functionalist view , in which
language is observed in its real usage.
Key-words: Transitivity, Foreground, Background.
1. Revisão bibliográfica
1.1. Transitividade por Hopper e Thompson (1980)
Hopper e Thompson (1980) discutem a noção de transitividade, que é tão presente nas
gramáticas tradicionais. A visão adotada pelos autores difere significativamente da
tradicional. Esta associa o termo apenas a verbos enquanto que aquela considera não só o
verbo presente em uma sentença, mas também todos os outros termos que a compõem.
Tradicionalmente, têm-se verbos transitivos, os que são complementados com objeto, e
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verbos intransitivos, os que não precisam de complementação. Dessa forma, os verbos que
são agrupados em transitivos são tratados como se fossem iguais, isto é, da mesma natureza, o
que não é verificado no uso real da língua. De acordo com Hopper e Thompson (1980), a
transitividade envolve a efetividade com a qual uma ação se dá. Quanto mais efetiva a ação,
mais transitiva é a sentença. Para esses autores, a transitividade envolve um número de
componentes, em que apenas um deles é a presença de um objeto do verbo. Os objetivos
desses autores são: i) mostrar que a transitividade é uma relação crucial na língua, tendo um
número de conseqüências previsíveis universalmente na gramática e ii) mostrar que as
propriedades que definem a transitividade são determinadas discursivamente. O termo
“transitividade” é utilizado porque trata de uma ação que “transita” do agente para o paciente
e, por isso, quanto mais trânsito, mais transitiva será a sentença. Os componentes
considerados por Hopper e Thompson (1980) são os apresentados na tabela 1.
Tabela 1: Componentes considerados em relação à Transitividade por Hopper e Thompson
COMPONENTES
ALTA TRANSITIVIDADE
BAIXA TRANSITIVIDADE
Participantes
2 ou mais (Agente e Objeto)
Um
Cinese
Ação
Não-ação (estado)
Aspecto
télico
atélico
Punctualidade
pontual
Não-pontual
Volitividade
proposital
Não-proposital
Polaridade
Afirmativa
Negativa
Modalidade
Realis
Irrealis
Agentividade
Mais agente
Menos agente
Afetamento do Objeto
Objeto totalmente afetado
Objeto parcialmente afetado
Individualização do Objeto
Objeto muito individualizado
Objeto não-individualizado
Para os autores, em relação aos participantes, só se pode ter a transferência de uma
ação se houver pelo menos dois participantes. Em relação à cinese, ações podem ser
transferidas de um participante para outro, enquanto que estados não. Em relação ao aspecto,
uma ação é mais efetivamente transferida quando é vista como completa do que quando está
em progresso. Em relação à punctualidade, ações que se dão sem uma fase de transição são
mais efetivas que as que envolvem uma duração maior. Dessa maneira, um verbo como
“chutar” é punctual e um verbo como “carregar” não é punctual. Em relação à volitividade,
quando o agente tem o propósito de fazer algo, a ação se dá mais efetivamente do que quando
não há uma intenção definida. Em relação à polaridade, sentenças afirmativas indicam que as
ações de fato ocorreram, enquanto que sentenças negativas indicam que as ações não se
efetivaram. Em relação à modalidade, uma ação que não ocorreu ou que é possível de ocorrer
é menos efetiva que uma que ocorreu ou que corresponde a um evento real. Em relação à
agentividade, um participante que é mais ativo pode transferir uma ação mais efetivamente
que um participante não tão ativo assim. Em relação ao afetamento do objeto, uma ação é
transferida num grau maior se o objeto é afetado completamente do que se ele é parcialmente
afetado. Em relação à individualização do objeto, Hopper e Thompson (1980) consideram os
fatores presentes na tabela 2.
Tabela 2: Fatores considerados na Individualização do Objeto por Hopper e
Thompson.
Individualizado
Não-individualizado
Próprio
Comum
Humano, animado
Inanimado
Concreto
Abstrato
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Singular
Contável
Determinado, específico
34
Plural
Incontável
Não-determinado
Os autores relacionam a transitividade com as partes do discurso figura e fundo e
comentam que estas devem ser analisadas a partir de um conjunto de propriedades, e não de
uma só. Os autores afirmam que essas propriedades são as mesmas que caracterizam alta e
baixa transitividade. Uma cláusula recebe uma interpretação como figura ou como fundo
proporcionalmente à escala que recebe de transitividade. Num estudo feito pelos autores,
cláusulas-figura apresentaram uma média 8 de transitividade, enquanto que cláusulas-fundo
apresentaram uma média 4.1 de transitividade, numa escala de 0 a 10.
1.2. Por Silveira (1990)
Silveira (1990) redefine o conceito de transitividade proposto por Hopper e Thompson
(1980) considerando-a “como uma propriedade discursiva relacionada à efetividade de
realização de uma situação”. Além disso, a autora reestrutura a pontuação dada por Hopper e
Thompson (1980) a cada parâmetro. Enquanto estes atribuem apenas as pontuações zero e
um, aquela considera as dimensões eneárias, e não binárias, e determina escalas com
amplitude de zero a cinco. Isto foi feito principalmente pela necessidade sentida pela autora
diante do corpus analisado por ela, que é constituído de narrativas orais. Os parâmetros
Punctualidade e Modalidade foram desmembrados em três níveis (0, 2.5 e 5) e o parâmetro
Aspecto continuou com marcação binária (0 e 5).
Em relação ao parâmetro Participantes, a pontuação foi atribuída da seguinte maneira: 0 para
cláusula sem agente, sem paciente e sem local, que também foi considerado pela autora como
um participante; 1 para cláusula com um único participante; 2 para cláusula com paciente e
local; 3 para cláusula com agente e local; 4 para cláusula com agente e objeto, o que
caracteriza o esquema transitivo canônico e 5 para cláusula com os traços agente, objeto e
local.
Em relação à cinese, Hopper e Thompson (1980) só consideram verbos de ação e
verbos de estado, enquanto que Silveira (1990) baseia-se nos tipos de verbo propostos por
Chafe (1972). A pontuação 0 é dada para verbos de estado-ambiente, que fazem referência a
um todo abrangente, e não apenas a um participante dentro do contexto, não havendo
percepção do traço movimento; a pontuação 1 é dada para verbos de estados ou condições que
são caracterizados pela ausência de movimento em cláusulas que apresentam o traço objeto
equivalente a um dos participantes; a pontuação 2 é dada para verbos de ação-ambiente,
propostos por Chafe (1972), que caracterizam cláusulas sem agente e situações que abrangem
fenômenos da natureza e marcação temporal; a pontuação 3 é dada para verbos processuais,
que se referem a mudanças de estado ou condição de um objeto; a pontuação 4 é dada para
verbos de ação em cláusulas que apresentam um agente e a pontuação 5 é dada para verbos de
ação-processo propostos por Chafe (1972), em que uma ação parte de um agente e implica
uma mudança no estado de um objeto.
Em relação ao aspecto, a autora baseia-se em Comrie (1976), que considera este
parâmetro como uma propriedade relativa à estrutura temporal inerente às situações expressas
pelo verbo. Silveira (1990) atribui 0 às situações imperfectivas e 5 às situações perfectivas.
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Em relação à punctualidade, Silveira (1990) considera dois aspectos: a duração da
situação verbal e a possibilidade de identificação de sua terminalidade. A autora atribui 0 a
verbos de ação-linha, isto é, aqueles em que não se percebe o ponto terminal; 2.5 a verbos
cuja ação perdura durante um período de tempo, mas que é possível de se perceber seu ponto
final e 5 a verbos de ação-ponto, isto é, aqueles cuja duração é tão curta que o momento em
que a ação se dá e o momento em que o objeto recebe o impacto é o mesmo.
Em relação à volitividade, Silveira (1990) considera os traços vontade e consciência
do agente. A autora atribui 0 a cláusulas sem agente que são caracterizadas pela nãovolitividade, como os atos referentes à percepção; 1 a cláusulas que se referem a atos
humanos que se dão como resposta a estímulos externos e internos, que fogem total ou
parcialmente ao controle da vontade do agente; 2 a cláusulas referentes a instintos animais,
que são vistos como uma resposta a estímulos externos e internos; 3 a cláusulas que
representam hábitos convencionalizados de determinados grupos sociais, como cumprimentar,
despedir-se e atos mecânicos de uma categoria profissional específica; 4 a cláusulas referentes
à rotina diária de uma coletividade, como acordar, levantar, se vestir, etc e 5 a cláusulas que
representam atos realizados por iniciativa e vontade próprias do agente.
Em relação à polaridade, a autora eliminou este parâmetro e, para isso, baseou-se em
Martelotta (1986), que afirmou que “a negação de uma situação corresponde,
equivalentemente, à afirmação de uma outra”.
Em relação à modalidade, Silveira (1990) atribui 0 a cláusulas que representam
situações irreais em que os verbos se encontram no modo Subjuntivo; 2.5 a cláusulas com
verbos no Futuro do Presente e Futuro do Pretérito, pois, apesar de estarem no modo
Indicativo, que representa a certeza, se referem a atos que ainda não se realizaram, ou seja, a
atos prováveis de ocorrer e 5 a cláusulas com verbos no Pretérito do Indicativo ou no Presente
Narrativo, ou seja, se referem a situações reais.
Silveira (1990) optou por unir os parâmetros Agentividade e Individualização do
Objeto em um único parâmetro: Individualização do Agente/ Individualização do Objeto por
considerar difícil identificar o que é baixa e o que é alta atividade do sujeito. A autora, então,
afirma que o agente e o objeto têm participação igual e que a relação entre eles explicita
melhor a efetividade da realização de uma situação. Além disso, a autora baseou-se nos
princípios de sintaxe de referência investigada por Givón (1983) e por Tomlin (1986), que
consideram que o referente, ao ser introduzido no discurso, sofre na cadeia tópica,
transformações de SN pleno a 0, de acordo com as informações compartilhadas, em relação à
sua identificação entre falante/ouvinte. A autora atriubui 0 a cláusulas em que não é possível
registrar o agente ou o objeto; 1 a cláusulas em que o agente ou os objetos se referem a nome
próprio, cuja atualização, sem a especificação de um SN constituído de nome comum, se dá
apenas em situações discursivas particulares; 2 a cláusulas em que a referência é feita por SN
constituído de nome comum; 3 a cláusulas em que se utiliza o pronome de 3ª pessoa para se
fazer a referência, pois a autora afirma que isto ocorre quando o ouvinte já compartilha de
informações que lhe permitem pronominalizar o SN pleno; 4 a cláusulas em que o pronome
de 1ª pessoa é utilizado, pois se refere ao enunciador do discurso e, por isso, a identificação de
seu referente é, com freqüência, mais automática e 5 a cláusulas em que há o apagamento do
participante.
Em relação ao afetamento do objeto, Silveira (1990) considera “as mudanças físicas e
espaciais sofridas pelo objeto e pelo contexto, no momento em que a ação o atinge”. A autora
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atribui 0 a objetos que são acompanhados pelos verbos de estados; 1 a objetos que não sofrem
deslocamento, mas com a ação sendo exercida, há uma alteração no campo ambiental; 2 a
objetos que sofrem um deslocamento físico no campo ambiental, sem haver reação deles; 3 a
objetos que sofrem mudança física ou psíquica, havendo reação destes; 4 a objetos que sofrem
um intenso deslocamento espacial no campo ambiental e 5 a objetos que sofrem mutilação ou
total eliminação através do impacto decorrente da ação.
Com essa redefinição dos parâmetros da transitividade, Silveira (1990) aplica a nova
pontuação a cláusulas de narrativas orais e compara com a pontuação atribuída por Hopper e
Thompson (1980).
2. Análise do corpus
2.1. Descrição do corpus
No corpus analisado, composto por três gêneros textuais diferentes, foram
consideradas 36 orações modais, sendo 18 reduzidas de gerúndio e 18 reduzidas de infinitivo.
Um número equivalente entre esses dois tipos de oração permite uma melhor comparação e
um resultado mais coerente. Foram lidos 11 editoriais, 12 anúncios e 13 notícias. Essa
comparação parece ser importante, pois permite uma melhor visualização do comportamento
das orações em estudo de acordo com a forma em que se apresentam.
2.2. Distribuição das modais pela transitividade
Pôde-se perceber que essas orações apresentaram diversos graus de transitividade, o
que é possível de se relacionar com os conceitos de figura e fundo. Foi possível observar que
houve desde modais com grau de transitividade 0 até um caso com transitividade 7, o que é
considerado alto. Na tabela 3, podem-se encontrar os diferentes graus de transitividade
distribuídos pelas 36 orações analisadas.
Tabela 3: Distribuição das modais pelos graus de transitividade.
Transitividade
Número de Orações
0
2 (5,6%)
1
4 (11,1%)
2
6 (16,6%)
3
8 (22,2%)
4
10 (27,8%)
5
2 (5,6%)
6
3 (8,3%)
7
1 (2,8%)
Total
36 (100%)
Um exemplo de modal com grau 7 é o seguinte:
a. “No silencio da prisão, diz a Gazeta dos Tribunaes, Clementina ouvia de continuo os
ultimos gritos de sua desditosa mãi, e quando chegava a noite, seu cadaver ensanguentado se
lhe apresentava diante dos olhos, [accusando-a da sua morte].” (E-B-81-JN-022)
Apesar de se tratar de um cadáver, o agente, aqui, foi visto como capaz de exercer uma
ação, já que representa o que Clementina realmente sentiu. Feita essa consideração, os
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parâmetros foram analisados da seguinte maneira: Participantes (1), pois há dois
participantes- o cadáver e Clementina; Cinese (1), pois o verbo “acusar” é um verbo de ação;
Aspecto (0), pois a forma verbal é o gerúndio e não se refere a uma ação completa;
Punctualidade (0), pois o ato de acusar não é punctual, mas sim um processo que tem uma
certa duração; Volitividade (1), pois, apesar de se tratar de um cadáver, pensa-se que ele
acusou por vontade própria; Polaridade (1), pois a cláusula é afirmativa; Modalidade (0), pois
o verbo não se encontra no modo Indicativo; Agentividade (1), pois o agente é humano,
apesar de ser cadáver, e tem um potencial forte para exercer a ação de acusar;
Individualização do Objeto (1), pois “Clementina”, representada pelo pronome pessoal
oblíquo “a” possui os traços i) próprio, ii)humano, iii) concreto, iv) singular e v)
referencial/definido e Afetamento do Objeto (1), pois Clementina foi totalmente afetada pela
acusação do cadáver.
Um exemplo de modal com grau 0 é o seguinte:
b. “Finalmente que tem por muito reccomendado que não consintam nos pulpitos
discursos que não tenham o caracter exclusivamente evangelico e circunscriptos aos
assumptos de que os oradores sagrados podem occupar-se, e que procedam de forma que
sempre tenham bem presente o estado melindroso a que chegou a igreja, pelos erros daquelle
que melhores catholicos se dizem, os quaes a cada passo, provocam novos conflictos [sem se
lembrarem do] que era a igreja no seculo XVI e o que é hoje.” (E-B-83-JN-009)
Esse exemplo é analisado da seguinte maneira: Participantes (0), pois só há um
participante- os católicos, não há um objeto específico do verbo lembrar, há um fato (“do que
era a igreja no século XVI e o que é hoje”), mas esse fato não foi considerado como objeto na
presente análise; Cinese (0), pois o verbo “lembrar-se” não é um verbo de ação, e sim um
verbo cognitivo; Aspecto (0), pois o verbo não se refere a uma ação completa; Punctualidade
(0), pois o ato de lembrar-se não é punctual já que é um processo que tem uma certa duração;
Volitividade (0), pois os católicos provocam conflitos e, naturalmente não se lembram de
como era a igreja- o ato de lembrar, nesse exemplo, é algo natural, que não depende da
vontade do agente-; Polaridade (0), pois a preposição SEM dá uma idéia de negação;
Modalidade (0), pois o verbo não se encontra no Indicativo; Agentividade (0), pois, apesar de
o agente ser animado- os católicos- ele não tem um potencial forte para exercer a ação, já que
não se trata de uma ação por excelência; Individualização do Objeto (0), pois, como já foi
mencionado, não há um objeto específico e, portanto, o Afetamento do Objeto também será
(0).
Um exemplo de modal com grau 4 de transitividade é o seguinte:
c. “[Cantando] espalharei por toda parte. Fazendas, modas e roupas brancas.” (E-B83-JA-016)
O exemplo c é analisado da seguinte maneira: Participantes (0), pois há apenas um
participante-eu (1ª pessoa do singular); Cinese (1), pois o verbo “cantar” expressa uma ação
em que há um certo movimento envolvido; Aspecto (0), pois o verbo “cantar” não se refere a
uma ação completa; Punctualidade (0), pois o verbo em questão se refere a um processo que
tem uma certa duração, e não algo punctual; Volitividade (1), pois o agente está cantando por
vontade própria; Polaridade (1), pois a cláusula é afirmativa; Modalidade (0), pois o verbo
não se encontra no modo Indicativo; Agentividade (1), pois, além de o agente ser animado,
ele tem um potencial forte de exercer a ação de cantar; Individualização do Objeto e
Afetamento do Objeto recebem grau 0, pois não há um objeto na cláusula.
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A partir do resultado obtido na tabela 3, pode-se dividir as modais em três grupos,
considerando níveis de fundidade: Grupo 1 (Fundidade Máxima): são as modais que se
afastam mais do plano da figura. Elas recebem graus 0, 1 e 2 de transitividade; Grupo 2
(Fundidade Intermediária): são as modais que se aproximam um pouco mais do plano da
figura, mas ainda carregam um grau intermediário de transitividade. Elas recebem graus 3 e 4
de transitividade e são as que ocorrem com mais freqüência e Grupo 3 (Fundidade Mínima):
são as modais que se aproximam mais do plano da figura. Elas recebem graus 5, 6 e 7 de
transitividade e não são tão freqüentes.
2.3. Comparação da transitividade em modais reduzidas de infinitivo e de gerúndio
Para que a comparação fosse feita de uma forma adequada e coerente, foi necessário
analisar um número igual de modais reduzidas de infinitivo e de gerúndio. Portanto, foram
consideradas 18 modais com o verbo no infinitivo e 18 modais com o verbo no gerúndio.
Pretende-se verificar se um dos tipos de modais mencionados, de uma forma geral, apresenta
graus de transitividade maiores e, conseqüentemente, se aproximam mais do plano da figura.
Para isso, foram contabilizados os graus de transitividade de cada oração analisada e foi feita
a divisão entre reduzidas de gerúndio e reduzidas de infinitivo. O resultado pode ser
encontrado na tabela 4, em que na horizontal, encontram-se os números das modais com
verbos no infinitivo e no gerúndio e, na vertical, os graus de transitividade. Na parte de baixo,
é mostrado o total de orações, tanto com verbo no infinitivo como com verbo no gerúndio.
Tabela 4: Distribuição da transitividade em relação ao tipo de modal reduzida.
Transitividade
Reduzidas de GERÚNDIO
Reduzidas de INFINITIVO
0
0 (0%)
2 (11,1%)
1
0 (0%)
4 (22,2%)
2
1 (5,6%)
4 (22,2%)
3
3 (16,7%)
6 (33,3%)
4
6 (33,3%)
4 (22,2%)
5
2 (11,1%)
0 (0%)
6
2 (11,1%)
1 (5,6%)
7
1 (5,6 %)
0 (0%)
TOTAL
18 (100%)
18 (100%)
Pela tabela 4, pode-se perceber que, dentre as reduzidas de gerúndio, as mais
freqüentes apresentaram graus 3 e 4 de transitividade, o que equivale ao grupo 2, isto é, se
encontram num nível de fundidade intermediária. Um exemplo de reduzida de gerúndio com
grau 3 de transitividade é o seguinte:
d. “... e este pretendente procurando saber de V.Ex. se V.Ex. havia recebido o mesmo
requerimento, V.EX. em desrespeito ao Monarcha ameaçou esse pretendente, e concluio
[dizendo- ‘S.M. quer, e eu não quero’].” (E-B-82-JE-001)
Dentre as reduzidas de infinitivo, as mais freqüentes apresentaram graus 1 e 2 de
transitividade, o que equivale ao grupo 1, isto é, se encontram num nível de fundidade
máxima e grau 4 de transitividade, o que equivale ao grupo 2, isto é, se encontram num nível
de fundidade intermediária. Um exemplo de reduzida de infinitivo com grau 1 de
transitividade é o seguinte:
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e. “Geléa Americana de oleo de figado de bacalhao // preparada por E.H. Treux // Para
molestias do peito. Toma-se, como indicada a instrucção, [sem sentir-se o menor gosto de
oleo].” (E-B-82-JA-073)
Pela tabela 4, pode-se perceber também que houve dois casos de reduzida de infinitivo
com grau 0 de transitividade (cf. b), enquanto que não houve nenhum caso de reduzida de
gerúndio com esse grau de transitividade. Além disso, houve dois casos de reduzida de
gerúndio com grau 5 de transitividade, enquanto que não houve nenhum caso de reduzida de
infinitivo com esse grau de transitividade. O grau 6 de transitividade pôde ser observado em
dois casos de reduzida de gerúndio e em um caso de reduzida de infinitivo e o grau 7 pôde ser
observado apenas em um caso de reduzida de gerúndio (cf. a).
Por esse resultado, pode-se perceber que, apesar de o número de dados ser pequeno, de
um modo geral, as reduzidas de gerúndio apresentaram um grau de transitividade ligeiramente
maior que as reduzidas de infinitivo e, conseqüentemente, pertenceram a um grupo
equivalente a um nível de fundidade um pouco menor, aproximando-se mais do plano da
figura.
2.4. Transitividade e tipos semânticos de verbo
Nesta seção, o fator a ser observado é o tipo de verbo. Para isso, foram levados em
consideração os tipos semânticos de verbo propostos por Halliday (1994), baseados em três
experiências humanas: ser, sentir e fazer. As categorias são as seguintes: cognitivo,
existencial, sensitivo, material, perceptivo, relacional e verbal. Além desses sete tipos de
verbo, foram considerados o corpóreo, proposto por Dixon (1991) e o possessivo / relacional,
que surgiu durante a análise dos dados feita por Scheibman (2001). Os tipos semânticos se
referem ao verbo principal. Portanto, se um verbo modal ou auxiliar for utilizado, o que será
analisado semanticamente não é ele, mas sim o verbo principal a ele associado. Na tabela 5,
são encontrados alguns exemplos de verbos para ilustrar os tipos semânticos verbais
utilizados.
Tabela 5: Tipos semânticos verbais.
TIPOS SEMÂNTICOS DE VERBO
Cognitivo
Corpóreo
Existencial
Sensitivo
Material
Perceptivo
Possessivo / relacional
Relacional
Verbal
EXEMPLOS
Presumir, saber, entender, pensar
Repousar, fumar
Acontecer, estar, haver
Prezar, sofrer, querer, sentir
Fazer, ir, proceder
Verificar, ver
Ter, conter, conseguir
Ser, tornar-se
Dizer, sublinhar*
As 36 orações analisadas foram divididas, de acordo com o tipo semântico de verbo,
da seguinte maneira: dentre as reduzidas de gerúndio, foram analisadas 7 com o tipo material,
3 com o tipo verbal, 3 com o tipo corpóreo, 3 com o tipo possessivo/relacional e 2 com o tipo
perceptivo; dentre as reduzidas de infinitivo foram analisadas 9 com o tipo material, 1 com o
tipo verbal, 1 com o tipo corpóreo, 2 com o tipo possessivo/relacional, 1 com o tipo
perceptivo, 1 com o tipo sensitivo, 1 com o tipo cognitivo e 1 com o tipo relacional. Os três
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últimos tipos não permitem uma comparação entre as modalidades de reduzida por não serem
considerados nas reduzidas de gerúndio.
De um modo geral, todos os verbos estão associados a um grau de transitividade
intermediário. Os verbos do tipo material ocorreram mais freqüentemente com os graus 3 e 4
de transitividade; os verbos do tipo verbal e corpóreo com o grau 4 e os verbos do tipo
possessivo/relacional com o grau 3. Os verbos do tipo perceptivo ocorreram com graus 1,3 e 4
(1 ocorrência cada) e os verbos do tipo cognitivo ocorreram com graus 0 e 2. Houve apenas 1
ocorrência dos verbos sensitivo e relacional, ambos com grau 1 de transitividade. Portanto, os
verbos do tipo perceptivo obtiveram não só um grau de transitividade intermediário, mas
também um grau de transitividade baixo, já que houve 1 ocorrência com grau 1. Por um lado,
esse resultado, por conter um número muito reduzido de dados, não pode levar a uma
conclusão definitiva. O mesmo se aplica aos verbos dos tipos sensitivo e relacional, que
obtiveram grau de transitividade baixo (grau 1). Por outro lado, o resultado obtido pode ser
entendido porque os verbos dos tipos perceptivo, sensitivo, cognitivo e relacional não estão
associados a uma ação efetiva, mas sim aos sentidos (sensitivo), à percepção (perceptivo), ao
pensamento (cognitivo) e a um determinado estado (relacional). Dessa forma, ocorrem com
grau de transitividade baixo. O fato de não estar associado a uma ação efetiva influencia nos
outros parâmetros considerados no cálculo da transitividade. Por exemplo, se não há uma ação
efetiva, conseqüentemente, não há um agente com potência forte, não há verbos de
movimento e não há um objeto totalmente afetado.
Os tipos semânticos de verbo mencionados anteriormente também foram analisados
fazendo-se uma comparação entre o comportamento das cláusulas em que eles se encontram,
isto é, nas reduzidas de gerúndio e de infinitivo, no que tange à transitividade.
Foi observado que, dentre as 7 cláusulas reduzidas de gerúndio que apresentam verbo
material, 2 contêm grau 6, 2 contêm grau 4, 1 contém grau 3, 1 contém grau 5 e 1 contém
grau 7, enquanto que, dentre as 9 cláusulas reduzidas de infinitivo que apresentam verbo
material, 3 contêm grau 3, 3 contêm grau 4, 1 contém grau 1, 1 contém grau 2 e 1 contém
grau 6. Pôde-se perceber, portanto, que, nas cláusulas com verbo no gerúndio e do tipo
material, houve maior ocorrência dos graus 4 e 6 de transitividade e que, nas cláusulas com
verbo no infinitivo e do tipo material, houve maior ocorrência dos graus 3 e 4 de
transitividade.
Foi observado que, dentre as 3 cláusulas reduzidas de gerúndio que apresentam verbo
do tipo verbal, 2 contêm grau 4 e 1 contém grau 3 de transitividade, enquanto que a única
cláusula reduzida de infinitivo que apresenta verbo do tipo verbal contém grau 2 de
transitividade.
Foi observado que, dentre as 3 cláusulas reduzidas de gerúndio que apresentam verbo
do tipo corpóreo, 1 contém grau 2, 1 contém grau 4 e 1 contém grau 5 de transitividade,
enquanto que a única cláusula reduzida de infinitivo que apresenta verbo do tipo corpóreo
contém grau 4 de transitividade.
Foi observado que as 3 cláusulas reduzidas de gerúndio que apresentam verbo do tipo
possessivo/relacional contêm grau 3 de transitividade, enquanto que, dentre as 2 cláusulas
reduzidas de infinitivo que apresentam verbo do tipo possessivo/relacional, 1 contém grau 0 e
1 contém grau 2 de transitividade.
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Foi observado que, dentre as 2 cláusulas reduzidas de gerúndio que apresentam verbo
do tipo perceptivo, 1 contém grau 3 e 1 contém grau 4 de transitividade, enquanto que a única
cláusula reduzida de infinitivo que apresenta verbo do tipo perceptivo contém grau 1 de
transitividade. Os verbos dos tipos sensitivo, cognitivo e relacional só foram analisados em
cláusulas reduzidas de infinitivo.
Como o número de dados é muito pequeno, não é possível se fazer uma generalização,
mas pôde-se perceber que as cláusulas com verbo no gerúndio e dos tipos material, verbal,
possessivo/relacional e perceptivo apresentaram graus maiores de transitividade do que as
cláusulas com verbo no infinitivo. Em relação ao tipo corpóreo de verbo, não se percebe
muita diferença entre as duas modalidades de cláusulas reduzidas no que tange à
transitividade. Pode-se dizer, portanto, que já aparecem algumas diferenças entre as cláusulas
reduzidas de gerúndio e de infinitivo no que tange à transitividade e aos tipos semânticos de
verbo. Resta saber se há algum parâmetro específico que exerce maior influência nas
diferenças entre as duas modalidades de cláusulas reduzidas no que diz respeito à
transitividade.
2.5. Influência dos parâmetros na transitividade das modais reduzidas de infinitivo e de
gerúndio
A fim de detectar se um ou mais parâmetros exercem maior influência neste resultado,
foi feita uma comparação entre cada parâmetro considerado no cálculo da transitividade
referentes às modalidades de cláusulas estudadas. De acordo com Hopper e Thompson
(1980), cada parâmetro recebe grau 0 ou 1. Portanto, no que se refere às modais, foram
contabilizados todos os dados em que cada parâmetro recebeu grau 0 e grau 1 e estes dados
foram separados em relação às cláusulas com verbos no infinitivo e às cláusulas com verbos
no gerúndio.
Em relação ao parâmetro Participantes, das 18 cláusulas reduzidas de gerúndio, 9
receberam grau 0 e 9 receberam grau 1. Coincidentemente, em relação às cláusulas reduzidas
de infinitivo, o resultado foi o mesmo. Em relação ao parâmetro Cinese, das 18 cláusulas
reduzidas de gerúndio, 10 receberam grau 0 e 8 receberam grau 1, enquanto que das 18
cláusulas reduzidas de infinitivo, 9 receberam grau 0 e 9 receberam grau 1. Em relação ao
parâmetro Aspecto, todas as cláusulas, tanto as reduzidas de infinitivo como as de gerúndio,
receberam grau 0. Em relação ao parâmetro Punctualidade, as 18 cláusulas reduzidas de
gerúndio receberam grau 0, enquanto que, das 18 cláusulas reduzidas de infinitivo, 15
receberam grau 0 e 3 receberam grau 1. Em relação ao parâmetro Volitividade, das 18
reduzidas de gerúndio, 5 receberam grau 0 e 13 receberam grau 1, enquanto que, das
reduzidas de infinitivo, 10 receberam grau 0 e 8 receberam grau 1. Em relação ao parâmetro
Polaridade, todas as cláusulas reduzidas de gerúndio receberam grau 1 e todas as cláusulas
reduzidas de infinitivo receberam grau 0 devido à preposição SEM, que carrega em si a idéia
de negação. Em relação ao parâmetro Modalidade, todas as cláusulas, tanto as reduzidas de
infinitivo como as de gerúndio, receberam grau 0. Em relação ao parâmetro Agentividade, das
18 cláusulas reduzidas de gerúndio, 3 receberam grau 0 e 15 receberam grau 1, enquanto que
das 18 cláusulas reduzidas de infinitivo, 9 receberam grau 0 e 9 receberam grau 1. Em relação
ao parâmetro Individualização do Objeto, das 18 cláusulas reduzidas de gerúndio, 12
receberam grau 0 e 6 receberam grau 1, enquanto que das 18 cláusulas reduzidas de infinitivo,
14 receberam grau 0 e 4 receberam grau 1. Finalmente, em relação ao parâmetro Afetamento
do Objeto, das 18 cláusulas reduzidas de gerúndio, 14 receberam grau 0 e 4 receberam grau 1,
enquanto que todas as cláusulas reduzidas de infinitivo receberam grau 0.
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Pode-se concluir que, no corpus analisado, os parâmetros Participantes, Aspecto e
Modalidade não podem servir como diferencial entre os tipos de cláusulas analisados, pois
houve coincidência nos valores atribuídos a eles. Os parâmetros Cinese e Individualização do
Objeto também não podem exercer grande influência na transitividade das cláusulas em
estudo, pois os valores são semelhantes. O parâmetro Punctualidade serviria para constatar
um resultado contrário do que foi obtido, pois as ocorrências de reduzidas de infinitivo com
grau 1 referente a esse parâmetro foram maiores que as de reduzidas de gerúndio. Entretanto,
não se pode analisar um parâmetro isoladamente. Portanto, Punctualidade não serve como
contribuidor para uma maior transitividade das reduzidas de gerúndio. O parâmetro que
parece ser mais influenciador no resultado observado é Polaridade, pois as reduzidas de
gerúndio apresentaram grau 1 em sua totalidade e as reduzidas de infinitivo apresentaram grau
0 em sua totalidade. O segundo parâmetro que pode também ter influenciado é Afetamento do
Objeto, pois todas as cláusulas reduzidas de infinitivo apresentaram grau 0, enquanto que
algumas cláusulas reduzidas de gerúndio apresentaram grau 1. Há outros dois parâmetros que
podem ter influenciado para o resultado obtido, apesar de não ter havido grande diferença se
comparadas as modalidades de reduzidas. Esses parâmetros são Volitividade e Agentividade.
Em relação ao primeiro, a maioria das cláusulas reduzidas de gerúndio apresentou grau 1 e a
maioria das cláusulas reduzidas de infinitivo apresentou grau 0; em relação ao segundo, a
maioria das cláusulas reduzidas de gerúndio apresentou grau 1, enquanto que houve um
número igual de reduzidas de infinitivo com grau 0 e com grau 1.
Com isso, pode-se dizer que, de um modo geral, as modais reduzidas de gerúndio, no
corpus analisado, apresentaram grau maior de transitividade do que as modais reduzidas de
infinitivo, estando mais próximas, portanto, do plano da figura. Parece que os parâmetros que
mais contribuíram para esse resultado foram: Polaridade, Afetamento do Objeto, Volitividade
e Agentividade.
3. Conclusão
Pôde-se perceber, neste trabalho, que, apesar de alguns autores como Hopper e
Thompson (1980) e Silveira (1990) comentarem que o gerúndio e a circunstância de modo
geralmente funcionam como fundo numa narrativa, as orações subordinadas adverbiais
modais reduzidas de infinitivo e de gerúndio não apresentam um comportamento tão
homogêneo assim. Foi possível observar que essas orações apresentaram diferentes graus de
transitividade, o que, de certa forma, pode influenciar no papel discursivo como figura ou
como fundo. As orações estudadas podem ser organizadas em três grupos diferentes no que
tange à transitividade: Grupo 1 (graus 0, 1 e 2), Grupo 2 (graus 3 e 4) e Grupo 3 (graus 5, 6 e
7). O grupo 1, por conter as orações com menor grau de transitividade, representa as orações
que funcionam essencialmente como fundo (Fundidade Máxima); o grupo 2, por conter as
orações com um grau intermediário de transitividade, representa as orações que funcionam
como fundo, mas que já se aproximam um pouco do plano da figura (Fundidade
Intermediária) e o grupo 3, por conter as orações com maior grau de transitividade, representa
as orações que se aproximam mais ainda do plano da figura (Fundidade Mínima).
Além dessa variedade de comportamento das modais, ainda pôde ser percebido que
entre as reduzidas de infinitivo e as reduzidas de gerúndio houve algumas diferenças. A maior
parte das modais reduzidas de gerúndio apresentaram um grau intermediário de transitividade,
ficando no grupo 2, o que equivale a um nível de fundidade intermediária. A maior parte das
modais reduzidas de infinitivo apresentaram um grau baixo (1 e 2) e um grau intermediário
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(4) de transitividade, ficando, respectivamente, no grupo 1, o que equivale a um nível de
fundidade máxima, e no grupo 2, o que equivale a um nível de fundidade intermediária.
Procurou-se saber o que levaria as modais reduzidas de gerúndio do corpus analisado
a apresentar um grau de transitividade um pouco maior que as modais reduzidas de infinitivo.
Primeiramente, foram observados os tipos semânticos dos verbos. De um modo geral, as
cláusulas ficaram num grau intermediário de transitividade, comparando-se os tipos verbais.
Os tipos verbal, corpóreo e possessivo/relacional ocorreram mais freqüentemente com graus 3
e 4 de transitividade, o tipo material, além desses graus, também ocorreu com grau 6 de
transitividade, o tipo perceptivo, além dos graus 3 e 4, também ocorreu com grau 1 de
transitividade e os tipos sensitivo, cognitivo e relacional apenas ocorreram com grau baixo de
transitividade. Este último resultado provavelmente se deve ao fato de que sentimentos,
pensamentos e estados não caracterizam uma ação efetiva. Fazendo-se uma comparação entre
as reduzidas de gerúndio e as reduzidas de infinitivo no que tange aos tipos semânticos de
verbo, as primeiras apresentaram graus maiores de transitividade do que as segundas quando
os verbos eram dos tipos material, verbal, possessivo/relacional e perceptivo.
Após observar a influência dos tipos semânticos de verbo nos graus de transitividade,
foi verificado se algum parâmetro específico da transitividade exercia maior influência na
diferença entre as modalidades de orações reduzidas. Constatou-se que os parâmetros que
puderam influenciar mais para as reduzidas de gerúndio obterem um grau ligeiramente maior
que as reduzidas de infinitivo foram: Polaridade, Afetamento do Objeto, Volitividade e
Agentividade.
Referências bibliográficas
DECAT, Maria Beatriz Nascimento. Capítulo 3. A articulação hipotática adverbial
no português em uso. In: Aspectos da gramática do português : uma abordagem
funcionalista. Mercado de Letras, 2001.
HOPPER, Paul J. & THOMPSON, Sandra A. Transitivity in Grammar and Discourse.
In: Language, Volume 56, number 2, 1980.
SCHEIBMAN, Joanne. Local patterns of subjectivity in person and verb
type in American English conversation. In: Bybee & Hopper. Frequency and the
emergence of linguistic structure. Amsterdam / Philadelphia: John Benjamins, 2001.
SILVEIRA, Elisabeth Santos da. Relevância em narratives orais. Tese de doutorado
em Lingüística apresentada à Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação da Faculdade de
Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1990.
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O elemento lúdico no ensino-aprendizagem da pronúncia em inglês como língua
estrangeira
Ângela de Alencar Carvalho
Mestranda em Letras – Lingüística Aplicada Universidade Estadual do Ceará (UECE)
Resumo: Aprender uma língua estrangeira é uma experiência emocional que exige uma
atmosfera favorável e agradável, especialmente quando se trata da pronúncia desta língua.
Apesar de não adotarem um ensino sistemático dos aspectos fonológicos, muitos professores
exigem pronúncia impecável, causando um sentimento de desconforto e tensão nos alunos.
Este relato de pesquisa apresenta os resultados da aplicação de um jogo de dominó adaptado
para o ensino da pronúncia do morfema de passado (- ed), do morfema de 3ª pessoa do
singular do presente simples (-s), e do morfema de plural de substantivos (-s), com vistas a
auxiliar o professor a promover momentos de aprendizagem e descontração, bem como de
desenvolvimento da oralidade. O jogo foi aplicado a 15 alunos de três escolas de Fortaleza em
quatro turmas de níveis distintos. Os resultados mostraram a aceitação do material pelos
respondentes como forma descontraída de lidar com aspectos da pronúncia do inglês, por
vezes, difíceis de serem assimilados. O formato do jogo baseia-se em YOZO (1996),
BROWN (2000; 2001), JONES (2002) e LEFFA (2003).
Palavras-chave: ensino de pronúncia, materiais didáticos, interação
Abstract: Learning a foreign language is an affecting experience that demands confidence
and a favorable and pleasant atmosphere, especially when it comes to the pronunciation of
this language. In spite of not adopting a systematic teaching of the phonological aspects, some
teachers demand an impeccable pronunciation from their students, causing them to feel
discomfort and tension. This report presents the results of the use of a domino game adapted
for the teaching of the pronunciation of the simple past morpheme (-ed), the morpheme of 3rd
person singular of the simple present (-s), and the morpheme of plural of some nouns (-s), in
order to help the teacher promote moments of learning and enjoyment as well as of
development of the speaking ability. The game was applied to 15 students of three schools in
Fortaleza in four groups of different levels. The results showed the acceptance of the material
by the respondents as a relaxed way of working with pronunciation aspects of the English
language, sometimes, difficult to be understood. The format of the game is based on YOZO
(1996), BROWN (2000; 2001), Jones (2002) and LEFFA (2003).
Key-words: teaching of pronunciation, teaching materials, interaction
Introdução
O ensino da pronúncia parece ser o calcanhar de Aquiles de professores de línguas
estrangeiras (LEs). Atuando como professora de inglês em cursos livres há onze anos, durante
os quais tenho sido, também, aluna de italiano e de francês, percebo que nós, professores,
temos uma preocupação constante com a forma correta de se pronunciar os sons do novo
código, com suas regras de pronúncia e com a entonação apropriada. Curiosamente, tal
preocupação não vem acompanhada do ensino sistemático de conceitos fonológicos, nem da
aplicação de atividades que contribuam com o desenvolvimento da pronúncia do aluno,
tampouco, de um trabalho prévio de conscientização dos aspectos segmentais e
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suprasegmentais envolvidos. O que parece haver em excesso são exercícios de repetição de
fonemas, palavras ou sentenças ou a correção imediata da fala do aluno.
A ausência de direcionamento sobre o como e o quê aprender gera uma situação
desconfortável para ambas as partes: cobramos dos alunos uma pronúncia correta, os alunos,
por seu turno, não sabem como fazê-lo, pois não praticam em sala de aula, tampouco fora
dela, na maioria dos casos. Como aluna e professora de LE, percebo que essa cobrança em
testes orais leva a uma tensão desnecessária e que, durante as aulas, alunos não participam por
medo de errar, ou de parecerem tolos perante os colegas.
Há que se perguntar o porquê de não ser feito um trabalho eficaz e contínuo com o
ensino da pronúncia desde o primeiro nível de estudo da língua. Há livros didáticos que
trazem atividades com músicas e exercícios comunicativos nos quais a pronúncia é
contextualizada. Existem, ainda, livros e materiais didáticos voltados apenas para este fim,
contudo, entre os alunos paira quase sempre o clima de temor e embaraço.
Em congressos e seminários, são comuns as indagações acerca de que atividades
podem ser aplicadas ao ensino das peculiaridades fonológicas da língua-alvo. Esta
inquietação parece ser um sinal positivo da conscientização de professores e, principalmente,
de formadores de professores sobre o ensino dos aspectos fonológicos da LE. Com efeito, é
somente a partir da nossa conscientização que podemos auxiliar no aprendizado dos alunos.
Ante o exposto acima, diluem-se neste artigo duas questões principais que permearam
a pesquisa aqui relatada. A primeira questão diz respeito à importância da construção de uma
consciência fonológica em professores e alunos e a segunda refere-se ao papel instrumental
que a ludicidade tem nessa construção. Desse modo, o objetivo último desta pesquisa é
contribuir com ensino lúdico da pronúncia em aulas de língua inglesa como LE, auxiliando o
professor na explicação das regras e convidando o aluno a um estudo agradável, portanto
menos tenso dos sons da LE.
É sabido que o elemento lúdico proporciona benefícios que o ensino tradicional ignora
ou, muitas vezes, descarta. Assim a pesquisa se justifica pela necessidade de uma cultura de
ensino sistemático da pronúncia permeado pela ludicidade. Esta deve ser encarada como um
caminho para tornar este ensino mais envolvente para os alunos e mais humano para os
professores.
Para explicar melhor a pesquisa, o artigo está dividido em cinco partes. A primeira
parte versa sobre o papel do elemento lúdico na aprendizagem (Yozo, 1996), em especial no
ensino humanístico (Moskowitz, 1978) da pronúncia do inglês. A segunda parte tece
considerações acerca do papel da consciência fonológica (Jones, 2002). A terceira parte
explica o jogo proposto, Pronunciation Dominoes 9, enquanto a quarta parte mostra a
metodologia utilizada. Finalmente, a quinta parte apresenta a discussão dos resultados
obtidos.
9
Nome provisório do jogo de pronúncia.
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Emoção e aprendizagem: o lúdico no ensino da pronúncia do inglês 10
Ao iniciar um curso de LE, sentimo-nos eufóricos e ao mesmo tempo ansiosos pela
nova experiência. A euforia deve-se, entre outras razões, à possibilidade de comunicação em
outro idioma, de compreender os falantes e os escritos desta língua. No entanto, este
sentimento de alegria, pode vir acompanhado de incertezas e inquietações sobre a nossa
capacidade de aprender as habilidades lingüísticas (ouvir, falar, ler e escrever) que serão
ensinadas e cobradas em avaliações escritas e orais. Ouvir e falar, ou melhor, compreender e
comunicar-se, são habilidades que requerem o domínio dos fonemas, do ritmo e da entonação
do novo idioma. Essa tarefa não é de todo fácil, especialmente pela experiência de aprender
ser algo bastante individual.
Aprender novos sons, articulando-os frente aos colegas e aos olhos e ouvidos atentos
do professor pode ser uma experiência atraente, mas também pode ser tensa, intimidadora e
frustrante. Por vezes, dependendo da personalidade do aluno, de suas experiências prévias
com a língua, de seu estilo de aprendizagem, da resposta dos colegas e da reação do próprio
professor, pode haver um bloqueio de aprendizagem, levando o aluno a desistir do seu projeto
inicial. Portanto, o aspecto afetivo é essencial na aprendizagem dos sons da língua.
Brown (2000: 142-160) elenca alguns fatores da personalidade que concorrem
diretamente para sucesso ou para o fracasso do aprendiz de línguas. São eles: a auto-estima, a
extroversão, a impulsividade, a empatia, a ansiedade e a inibição. Segundo o autor, um aluno
cuja auto-estima é alta, que não tem medo de se expressar, que aceita arriscar-se nas tentativas
de comunicar-se na língua-alvo e que compreende a si e aos outros, tem grandes chances de se
tornar um bom falante desta língua. Ao passo que, o principiante que se mostra ansioso,
introvertido, inibido e apreensivo ao tentar falar a LE levanta barreiras, por vezes
intransponíveis no futuro, atravancando seu aprendizado. A nossa tarefa primordial, como
professores, é trabalhar para que os fatores negativos sejam diminuídos e, quiçá, eliminados
da atmosfera de sala de aula. De fato, conforme Lightbown e Spada (1993: 38-9), pesquisas
indicam que fatores de personalidade estão intimamente relacionados à habilidade
comunicativa do aprendiz. Conseqüentemente, estarão relacionados, também, à pronúncia.
Reside nessa informação a necessidade de se falar em ensino humanista.
Moskowitz (1978), na obra Caring and Sharing in the Foreign Language Class,
ressalta que professores devem enxergar o aluno como um ser total, ou seja, intelectualmente
e emocionalmente. A educação humanista deve ser divertida, permitindo ao aluno conhecer a
si mesmo e ao outro, promovendo momentos de crescimento intelectual e emocional. A aula
de LE parece ser o ambiente propício para esta educação, pois, segundo a autora, “Nós
precisamos de um lugar na escola onde professores e alunos possam ser humanos,
experimentem empatia, e aproveitem o tempo para compartilhar. Nós devemos estabelecer
nossos objetivos em ensinar não só a língua-alvo, mas também a língua do OKness” 11. É
nesse ambiente que deve ser erigida a consciência fonológica do aprendiz.
10
Na produção do jogo apresentado neste trabalho não se levaram em conta as diferenças entre as
pronúncias da língua inglesa nos diversos países onde é língua oficial ou materna.
11
“We need a place in school where teachers and students can be human, get empathy, and take time to
share. We must set our goals on teaching not only our target language, but also the language of “OKness”. (As
traduções deste artigo são de minha responsabilidade)
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Para Moskowtz, esta forma de ensinar segue oito premissas:
1. Promover aprendizagens e um ambiente que facilite o alcance do potencial completo
pelos alunos.
2. Responsabilizar-se pelo crescimento pessoal e o cognitivo do aluno.
3. Reconhecer e permitir a prática dos sentimentos dos alunos a fim de que a
aprendizagem seja significante.
4. Ajudar o aluno a descobrir a aprendizagem significante.
5. Compreender que seres humanos desejam realizar seus potenciais.
6. Manter relacionamentos saudáveis com os colegas de classe leva ao aprendizado.
7. Aprender mais sobre si é um fator motivador da aprendizagem.
8. Aumentar a auto-estima do aluno desenvolve a aprendizagem.
Como proposta de atividades humanistas, a autora apresenta as atividades de baixo
risco. Estas envolvem a discussão de tópicos que não despertam nos alunos sentimentos ou
comportamentos negativos. Sabemos que é saudável discutir tópicos que tragam à memória
momentos agradáveis, pois a sensação de ameaça, de medo e de desconforto pode impedir a
aprendizagem. Foi pensando na proposta de Moskowitz e observando uma gama de jogos de
pronúncia presentes no mercado que optei por mais uma adaptação do jogo clássico de
dominó para ensino da pronúncia.
Jogos auxiliam na descontração e ao descontrair-se, o aluno relaxa naturalmente,
permitindo-se tentar produzir os sons que, de forma tensa, não conseguiria. Segundo o
dicionário Novo Aurélio Século XXI (1999), o vocábulo jogo originou-se do latim jocu que
significa gracejo; zombaria. O dicionarista apresenta duas acepções para a palavra: a primeira
diz ser o jogo uma “atividade física ou mental organizada por um sistema de regras que
definem a perda ou o ganho” (grifo meu); a segunda definição diz que é uma brincadeira, um
passatempo, um divertimento. É esta acepção que representa a essência do Pronunciation
Dominoes: uma forma de aprender brincado.
Yozo (1999: 11-14) descreve o jogo como uma atividade anterior à Antigüidade e à
cultura, sendo mais antiga do que qualquer organização social, pois é, também, parte do
mundo animal. O autor assevera que o jogo oferece contentamento ao indivíduo que o joga,
independentemente de sua classe social ou idade, pois sua essência é o divertimento. Para
Yozo, os jogos são os melhores veículos de comunicação, principalmente os jogos lúdicos,
que para o autor são os verdadeiros jogos. Estes têm o poder de desfazer tensões provenientes
do “excesso de responsabilidades” e do “ritmo estressante dos compromissos do dia-a-dia”.
Tal atmosfera pode levar a uma aprendizagem mais significativa do conteúdo.
Aberastury (1992:15) apud Yozo (1996:13) afirma que “ao brincar, a criança desloca
para o exterior seus medos, angústias e problemas internos, desmistificando-os por meio da
ação”. Partindo dessa afirmação, entendo que o adulto, também, pode beneficiar-se de uma
atividade lúdica, já que, devido à rigidez que lhe é imposta pela rotina de vida, precisa
reaprender a brincar, a descontrair-se, transferindo para o seu comportamento em sala de aula
o que Yozo denomina ordem lúdica, isto é, “a interrupção temporária da vida real para jogar”
que “permite ao indivíduo (adulto) libertar-se de suas amarras sociais, sem se preocupar com
censuras ou críticas” (grifo do autor). Esta afirmação vai ao encontro das considerações
tecidas anteriormente sobre o papel da afetividade na aprendizagem. Destarte, é salutar
utilizar jogos em sala de aula, sobretudo quando se trata de desfazer tensões e ansiedade
geradas.
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Embora o tempo tenha distorcido o real sentido do jogo lúdico (de brincadeira,
passatempo e diversão) para um sentimento de competição, de individualidade e de poder, há
espaço para o jogo na aula de línguas. Infelizmente, este não parece comparecer com
freqüência às aulas de inglês, por exemplo. Geralmente, a causa mais habitual é a
preocupação constante com o conteúdo a ser ministrado. Logo, há que se compreender e
internalizar que o jogo pode aliar a ludicidade ao conteúdo.
Consciência fonológica no ensino da pronúncia
Manter esta atmosfera de descontração e confiança entre os alunos é, certamente, um
dos papéis mais importantes que o professor de línguas deve assumir, mas, além do aspecto
emocional, há o conteúdo a ser aprendido. Pesquisas assinalam a necessidade de se inserir nos
currículos os aspectos segmentais e suprasegmentais da língua-alvo, para que se gere nos
aprendizes a consciência fonológica. Jones, por exemplo, acredita que métodos para se
ensinar pronúncia devam ser direcionados esta conscientização. Estudos sugerem, também,
que o ensino da pronúncia deva acontecer concomitantemente ao ensino das demais
habilidades lingüísticas, não figurando como um capítulo à parte do que é comumente
estudado.
Outros estudos sugerem que há pesquisadores, professores e alunos que acreditam na
força da presença do sotaque nativo do falante ao utilizar a língua-alvo. Para eles, mostrar
claramente os traços fonológicos da língua materna (LM) naquela pode ser sinal de identidade
cultural (Jones, 2002). Por outro lado, sabe-se que uma influência extremamente forte da LM
pode causar problemas de compreensão que levam ao fracasso na comunicação ou a malentendidos. É importante, pois, colocar para o aluno a diferença entre um falar identificado
culturalmente (idem) e aquele que parece incompreensível aos falantes nativos.
Outro aspecto a ser observado são as manifestações fonológicas da interlíngua na
produção oral do aprendiz. Alguns profissionais parecem negligenciar os estágios de
interlíngua 12 (Mclaughlin, 1987:60) tão importantes para conscientizar o aluno de que sua
produção oral transforma-se, passando por estágios diversos até que atinja o nível inteligível
de fluência oral. Conforme pesquisas citadas por Jones (2002), atividades que promovam esta
conscientização e sensibilizem aprendizes sobre as diferenças entre os sistemas da LM e da
língua-alvo, bem como dos estágios de interlíngua, são mais eficazes do que repetições em
demasia e correções imediatas à fala do aluno. Vale salientar que pesquisas levadas a efeito
por Jones e outros autores (1994) evidenciaram que a conscientização fonológica gera uma
produção oral mais cuidada e que alunos expostos às regras e aos princípios fonológicos da
língua-alvo tornaram-se aptos a avaliar sua própria habilidade oral, isto é, conseguiram
autonomia.
Elaboração do jogo: bases teóricas
A confecção do jogo Pronunciation Dominoes 13 originou-se da observação de três
características do ensino da pronúncia em cursos livres: uma aparente negligência do ensino
12
Ao aprender uma LE, o aprendiz desenvolve sistemas formulados a partir da sua exposição ao sistema
da língua-alvo, estes sistemas não são estáticos, ao contrário, transformam-se à medida que o aprendiz também
se desenvolve no aprendizado da LE. Reside aí a importância do erro como ponte para formação da consciência
desses estágios e não como algo a ser evitado.
13
Este jogo é fruto do trabalho Teaching pronunciation through games escrito para a disciplina Fonética
e Fonologia da Língua Inglesa do Curso de Especialização em Ensino de Língua Estrangeira – Inglês (2002-
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sistemático da pronúncia em inglês; a ausência do elemento lúdico baseado em uma
abordagem humanista favorável ao desenvolvimento da habilidade oral; a ausência de
trabalho de conscientização fonológica nos alunos. O jogo foi adaptado conforme
considerações de Leffa (2003) sobre produção de material didático. Sobre esse assunto, o
autor propõe quatro momentos distintos e indissociáveis: análise, desenvolvimento,
implementação e avaliação.
A análise deve partir das necessidades do aluno, do seu nível (o que já sabe), do que
precisa aprender e do seu estilo de aprendizagem. Ao propor mais uma conversão do popular
jogo de dominó em material didático, observei, empiricamente, a fala docente 14 sobre a
dificuldade em ensinar e consolidar os fonemas representados graficamente pelo morfema de
passado regular (–ed final), pelo morfema (–s) de 3ª pessoa do singular do presente simples, e
pelo morfema (–s) de plural. As perguntas mais freqüentes dos professores são geralmente:
1 – Por que ensinar estes sons?
2 – Como fazer para que os alunos compreendam as variações de cada som?
3 – Como consolidar as regras?
4 – Como tornar as atividades de pronúncia comunicativas?
A razão de se ensinar os sons acima reside no desejo de facilitar a compreensão e a
produção da língua-alvo. Como afirma Nobre-Oliveira (2003: 93), “Se os alunos não
percebem a diferença entre os sons da LM e os sons da LE, eles, muito provavelmente, não
fazem essa distinção no momento da produção oral”. Nesse sentido, aspectos
suprasegmentais, como a entonação, devem ser ensinados, pois constituem parte fundamental
da mensagem veiculada pelo falante e daquilo que compreende o ouvinte, pois são traços que
definem o que é dito.
Outro elemento importante na adaptação do jogo foi o estudo sobre os estilos de
aprendizagem – considerações que este relato certamente não abarcaria. Apresento apenas o
posicionamento de Brown (2000:113) que os define como tendências ou preferências de um
indivíduo que regem o seu modo de pensar, sentir ou agir, caracterizando-o. Estas variam de
indivíduo para indivíduo, mas o seu conhecimento é crucial para o bom trabalho do professor.
Para citar alguns estilos, temos a tolerância à ambigüidade, a preferência por inputs visuais ou
auditivos e a preferência por atividades que envolvam movimento.
O segundo momento é o desenvolvimento do material, no qual estão presentes
segundo Leffa (2003), a definição dos objetivos, da abordagem, do conceito, das atividades,
dos recursos, bem como o ordenamento das atividades e a questão da motivação. O terceiro
momento, a implementação, refere-se a quem aplicará o material e para quem este foi
planejado. Finalmente, a avaliação, momento em que o material é testado. Diante do exposto,
passaremos à descrição do jogo.
2003), ministrada pela Profª Drª Vera Lúcia Santiago Araújo. Após alguns testes e modificações optamos por
publicá-lo como opção de material didático.
14
Refiro-me à fala dos professores em formação do curso livre onde ministrei a disciplina de metodologia
de ensino da língua inglesa (2001-2004), mas também às queixas de professores veteranos acerca do mesmo
assunto. As perguntas acima representam o resultado de uma observação empírica.
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O jogo Pronunciation Dominoes: versão I e versão II
Pronunciation Dominoes é um jogo para praticar, fixar ou relembrar as regras de
pronúncia de sons da língua inglesa de forma lúdica e comunicativa, apesar de limitações.
Este modelo visa à prática e à consolidação dos fonemas /t/, /d/ e /Id/, representados pelo
morfema (–ed), bem como dos fonemas /s/, /z/ e /Iz/, representados pelo morfema (–s)e suas
variações.
Esta adaptação do jogo de dominó tem por objetivo primordial auxiliar o professor a
trabalhar com os símbolos fonéticos de forma lúdica e livre de pressão. Desse modo, ao jogar,
o participante deverá ser capaz de:
1 – pronunciar os finais em –ed (ou –s) conforme as regras estudadas.
2 – identificar os fonemas correspondentes às terminações de verbos ou
substantivos (que há nas peças).
3 – produzir pequenos diálogos.
4 – usar entonação e acentuação adequadas.
Para jogar são necessários, no mínimo, 2 alunos. Caso a Tuma seja numerosa, o
professor poderá formar grupos de até 6 participantes. Para jogar, o aprendiz precisa
conhecer, mesmo que superficialmente, as regras de pronúncia dos morfemas acima
relacionados. Se estiver trabalhando estes sons pela primeira vez, o professor não poderá
prescindir do uso de um dicionário que apresente os símbolos fonéticos, preferencialmente
dicionários que tragam o alfabeto fonético internacional (IPA), para que os alunos possam
consultá-lo. Este procedimento permitirá o manuseio mais consciente dessa ferramenta de
aprendizagem, além de proporcionar autonomia aos alunos.
Há duas versões do Pronunciation Dominoes: a Versão I para o morfema final –ed e a
Versão II para o morfema final –s. Por esta razão as regras são as mesmas para ambas as
versões. Há, ainda, jogadas possíveis que poderão levar leitor a compreender exatamente
como o material funciona.
Regras do jogo
Versão I: instruções
1 – Joga-se com 36 peças (peça-fonema, peça-pergunta, peça-verbo e peça-mista).
Embaralham-se as peças (Ver anexo.) com a face dos sons, verbos e sentenças, voltada para
baixo.
2 – Cada jogador recebe 6 peças (ou o número determinado pelo professor ou pelos alunos;
pode-se deixar uma pilha de peças para comprarem durante a partida).
3 – Inicia a partida o jogador que tiver um dos carroções com os fonemas /d/, /t/, /Id/, nesta
ordem. Ex.
/d/
/d/
4 – O jogador seguinte deverá jogar uma peça que contenha um verbo cujo som do morfema –
ed final seja /d/.
5 – Ao jogar qualquer peça, o aluno deverá pronunciar, em voz alta, o que está nela.
6 – Caso alguém jogue uma peça-pergunta, este deve fazê-lo lendo-a em voz alta, com a
entonação apropriada, colocando-a junto à peça anterior que a responda, por exemplo:
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O jogador 1 lança a peça-fonema (a) abaixo e pronuncia o som /d/. O jogador 2 lança a
peça-verbo (b) e pronuncia a forma verbal loved. O jogador 3 lança a peça-mista (c),
formulando uma pergunta com a palavra interrogativa What...?, como ‘What did Pamela do
yesterday night?’. O jogador 2 formula uma resposta utilizando a forma danced, como ‘She
danced all night long’.
(a)
/d/
/d/
Loved (v.)
Danced (v.)
What…?
(b)
/d/
(c)
Pode-se criar qualquer frase que faça sentido gramatical e funcionalmente. Se o
jogador esquecer-se de fazer a frase ou não pronunciá-la apropriadamente, perderá sua vez na
próxima jogada, o mesmo ocorrerá com o jogador 2, caso não pronuncie o som final do verbo
jogado na peça (b).
7 – Caso o jogador jogue uma peça em a uma peça-pergunta, este deve fazê-lo em voz alta,
formando a nova frase, sob pena de perder a vez na próxima jogada.
8 – Vence o jogo quem primeiro ficar sem as peças.
Mas atenção:
• Quando a palavra não estiver flexionada, o aluno jogará a peça, pronunciando a
palavra e flexionando-a em seguida em voz alta.
• As peças-fonema só poderão ser combinadas com as peças-verbo; as peças-pergunta
só poderão ser combinadas com as peças-verbo. Peças-verbo poderão ser combinadas
com outras peças-verbo de mesmo som final, desde que o jogador pronuncie ambos
em voz alta.
Além das regras acima, há uma variação na forma de jogar o Pronunciation Dominoes
com vistas a torná-lo mais desafiador, no sentido de ativar e testar conhecimentos prévios dos
alunos sobre a língua.
Variante do Pronunciation Dominoes (-ed final)
O professor pode requerer dos alunos que formem enunciados verdadeiros sobre si
sempre que jogarem peças-verbo, pedindo que o outro jogador observe se o enunciado é
possível e se o aluno pronunciou o som de modo apropriado.
Ex:
/t/
Danced
Talked
What did __ do ___?
(a’)
(b’)
Uma possibilidade é: ‘I danced and talked a lot at the party yesterday.’
Versão II: instruções
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O jogador 1 lança a peça-fonema (a’’) abaixo e pronuncia o som /s/. O jogador 2 lança
a peça-verbo (b’’) e pronuncia o verbo cuts. O jogador 3 lança a peça-mista (c’’), formulando
uma pergunta com a palavra interrogativa Who...?. Por exemplo, ‘Who dances tango?’ O
jogador 2 elabora uma resposta, utilizando a forma dances: ‘Sheryl does. She dances very
well’. Ex:
/s/
(b’’)
/s/
Cuts (V.)
(c’’)
Dances (V.)
Who?
(a’’)
/z/
Mas atenção:
• Quando a palavra não estiver flexionada, o aluno jogará a peça, pronunciando a
palavra e flexionando-a em seguida, em voz alta.
• As peças-fonema e as peças-pergunta só poderão ser combinadas com as peças-verbo
e peças-substantivo.
• As peças-verbo e as peças-substantivo poderão ser combinadas entre si, caso tenham o
mesmo som final.
Desde a sua elaboração, em 2002, este jogo foi testado em várias turmas, todavia, sem a
utilização de quaisquer instrumentos de pesquisa. Apenas a observação do comportamento
dos alunos ao jogarem, como também suas considerações sobre o material, resultou em uma
reestruturação das regras de jogo. Assim, em 2005, quando optei publicá-lo, este foi testado
por professores e alunos por meio de questionários.
Metodologia
Como instrumentos de pesquisa, utilizei dois modelos de questionários (Ver anexo.), u
direcionado aos professores e outro aos alunos. Os questionários foram aplicados em duas
escolas de língua em Fortaleza e em um seminário bíblico onde são ministradas aulas de
língua inglesa como LE. Optei por três escolas a fim de ter uma amostra diversificada quanto
ao nível, à idade e ao objetivo dos alunos. Esta escolha foi baseada em três critérios:
acessibilidade, língua inglesa ensinada como LE e o mínimo conhecimento sobre os fonemas
–ed e –s finais. A acessibilidade foi crucial para que não houvesse empecilhos à realização da
pesquisa. Era importante realizar a pesquisa em uma escola onde o inglês é ensinado como
língua estrangeira. Finalmente, era decisivo para a pesquisa que os alunos já tivessem
conhecimento, mesmo que elementar, dos sons em questão.
A pesquisa foi realizada durante o segundo semestre de 2005 quando o questionário
dos professores foi aplicado a 5 professores de níveis diferentes, a saber, duas turmas de nível
básico, duas de nível intermediário e uma de nível avançado. O questionário dos alunos foi
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aplicado a 15 aprendizes que manifestaram vontade de participar da pesquisa 15. Vale salientar
que os próprios professores explicaram as regras do jogo e aplicaram o questionário aos
alunos após a atividade. Isto foi feito, pois era preciso testar, também, a clareza e a eficácia
das regras.
Assim, o questionário dos professores pretendeu identificar:
1. A avaliação da eficácia do jogo.
2. A receptividade dos alunos.
3. A clareza das regras.
4. O interesse pela pronúncia durante e após o jogo.
5. O resultado da aplicação do material.
6. A reutilização do jogo pelo professor.
7. As possíveis variações de jogo sugeridas pelos professores.
Já o questionário dos alunos foi elaborado com vistas a:
1. Obter opiniões sobre o jogo.
2. Saber se consideram ter aprendido com o material.
3. Descobrir se gostariam de jogá-lo novamente.
4. Descobrir se a regras estavam claras.
5. Coletar sugestões.
Na análise, identificamos os professores pela letra P seguida de um número arábico e
os alunos, pela letra A seguida, igualmente, de um número.
Discussão dos resultados
O questionário dos professores
Dos cinco professores informantes, todos aplicaram o jogo, colheram as respostas dos
alunos e entregaram os questionários respondidos. Sobre a eficácia do jogo, 2 professores
(P1 e P2) avaliaram-no como um bom material didático, enquanto 3 (P3, P4 e P5) avaliaramno como excelente. P1 e P2 avaliaram a receptividade dos alunos como boa, enquanto os
demais, como excelente. Ao serem questionados sobre a clareza das regras, 100%
responderam que estas são fáceis de seguir. Entretanto, P4 fez observações pertinentes que
nos levaram a reescrever algumas instruções já presentes na seção Regras do Jogo 16:
“Achei-as fáceis, mas, mesmo assim, gostaria de que estas regras fossem mais
detalhadas em formas de itens (...) mais precisas. Acho que a regra 3 deve ser
dividida em 2 partes (por exemplo, “joga-se c/ 36 peças” deve ser o primeiro item.
Já “inicia a partida...” deve ficar no item em que se encontra)”.
Os 5 informantes notaram o interesse dos alunos em tirar dúvidas de pronúncia
durante o jogo, mas, apenas 1 respondeu que este interesse persistiu após a atividade. É
curiosa a falta de interesse pelo assunto após o jogo, já que o resultado foi positivo em todos
níveis (básico, intermediário e avançado) em que o material foi aplicado.
15
Recomendamos aos professores que não impusessem o jogo aos seus alunos, mas que explicassem as
regras e o motivo da pesquisa, testando o material com aqueles que realmente estivessem dispostos a cooperar.
Entendemos que, jogando com interesse, os alunos respondessem o questionário mais conscientemente.
16
Algumas sugestões ainda estão sendo estudadas, como aquelas dadas por P2 na tabela 1.
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Ao serem questionados se utilizariam o jogo novamente como ferramenta de ensino,
todos responderam que sim. P2, por exemplo, afirmou que o jogo “parece interessante e pode
estimular a interação e descoberta de conteúdo”. P4, por seu turno, disse que o jogo
“promove a aprendizagem da pronúncia de forma interessante e descontraída”, igualmente,
manifestou-se P3 ao afirmar que usaria o jogo outras vezes por este ser “eficaz e divertido”
(grifos meus). Vale lembrar que, apesar de termos incluído uma forma variante de jogar, esta
não foi utilizada por nenhum dos professores o que não foi explicado por eles no questionário.
Perguntamos se os professores fariam mudanças no jogo proposto. Apenas 1 professor
(P1) não se manifestou. A tabela 1 traz as sugestões e opiniões expressas.
Tabela 1 – Sugestões e opiniões dos participantes
Professor
Sugestões/ Opiniões
P1
Não emitiu sugestão ou opinião
P2
“Material em formato menor e com maior espessura; cores diferentes para
os três sons e verbos correspondentes; tábua de verbos categorizados para
que os próprios alunos pudessem interagir sem o professor e saber se
estavam certos – com um aluno mestre”.
P3
“É só um pouco time-consuming pelo número de cartas, mas pode ser
diminuído (ex. cada aluno ter, só três, ao invés de 6 cartas) (...) Ensinar as
palavras antes do jogo”.
P4
Ver comentário anterior sobre a reorganização das regras na página anterior.
P5
“Quatro alunos participaram ajudando os alunos que estavam jogando, de
forma que a atividade ficou bastante participativa”.
O comentário de P2 é pertinente, pois se refere ao material do qual o jogo é feito.
Foram confeccionados três dominós (2 com as variações do –s final, 72 peças, e 1 com as
variações do –ed final, 28 peças). As peças foram produzidas no computador, nas cores azul e
bege, amarelo e azul e verde e rosa, aleatoriamente escolhidas, impressas em papel 40 kg, e
cobertas com papel adesivo incolor. No entanto, a intenção é confeccionar o jogo em
madeira, com 28 peças, como um dominó clássico, assim, seria espesso o bastante para ser
utilizado; todavia, não acredito na mudança das cores dos sons, como sugere P2, pois, talvez,
torne-se confuso para os alunos.
Já a segunda sugestão de P3 é válida, mas como o uso do dicionário pode ser um
aliado no desenvolvimento da autonomia dos alunos durante o jogo, caberá ao professor
discutir ou não o significado dos verbos e dos substantivos, por exemplo. Talvez possa ser
uma nova variante ou, ainda, ser adicionada à observação da variante já proposta nas regras
do jogo. Ainda sobre a sugestão de P3, o fato de ser ou não uma atividade longa depende
menos do número de cartas do que do conhecimento das regras de pronúncia a serem
trabalhadas. Isto é, mais uma vez, a decisão sobre o número de peças que cada aluno receberá
pode ficar a critério do professor e dos alunos.
O modo como P5 organizou seus alunos para jogarem, estimulando o que foi dito
antes sobre o jogo lúdico com objetivo de divertimento e brincadeira, mostrou-se bastante
pertinente e eficaz. É importante despertar um sentimento de competição positiva que possa
vir a harmonizar o ambiente de aprendizagem.
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O questionário dos alunos
Ao analisar os dados, percebi que a resposta dos alunos foi tão positiva quanto à
resposta dos professores. Interessante notar que os 15 alunos participantes da pesquisa têm
entre 12 e 61 anos e que a média de idade observada foi de 15 anos. Por essa razão, durante a
análise, dividimos os participantes em dois grupos, a saber, o grupo mais adulto e o grupo
mais jovem.
Segundo o critério idade, o jogo agradou a quase todos os informantes. Para os alunos
entre 21 e 61 anos, 6 ao todo (A1 – A7), o jogo foi considerado: “legal”, “fácil e prático”,
“interessante”, “bom”, “ótimo”, “dinâmico e divertido”. Para os alunos mais jovens, entre 13
e 16 anos (A8 – A14), o jogo foi considerado “interessante”, “bom”, e “instrutivo”. Contudo,
para o informante mais jovem (A15), de 12 anos, o jogo foi “chato”, opinião comentada mais
adiante.
Os alunos foram questionados se haviam aprendido ou revisado regras de pronúncia
com o jogo. No grupo adulto, 4 informantes (A1, A2, A4 e A6) disseram ter aprendido com o
jogo, enquanto 2 informantes (A3 e A7) afirmaram ter revisado aquilo que já conheciam e
apenas 1 (A5) disse ter revisado e aprendido regras de pronúncia com a atividade. Os
informantes mais jovens afirmaram ter aprendido com a atividade, exceto A15 para quem o
jogo não proporcionou nem uma coisa nem outra.
Os alunos foram indagados se gostariam de jogar o Pronunciation Dominoes outra
vez. 93% dos respondentes, isto é, 14 alunos, responderam que sim, com exceção de A15 que
achou as instruções difíceis. Creio que, talvez, o aluno tenha participado da atividade sem
entender as regras do jogo tampouco as de pronúncia. Talvez, possa ter experimentado um
sentimento de frustração durante a atividade que o fez achá-la sem graça e sem sentido. No
entanto, quando indagado se era a favor da utilização de atividades como aquela em sala de
aula, afirmou que estas ajudavam o tempo “a passar mais rápido”. A fala de A15 pode refletir
várias insatisfações: com a atividade, com o assunto, com os colegas, com o professor, ou
ainda, com a aprendizagem da língua inglesa em si. Talvez, não esteja satisfeito em estudá-la,
como comumente ocorre aos pré-adolescentes forçados a irem às escolas de línguas.
Infelizmente, o instrumento não permitiu saber o porquê de A15 ter rechaçado o jogo
sugerido.
Os demais alunos tiveram opiniões diversas sobre as instruções. 86% dos participantes
consideraram-nas fáceis ou muito fáceis, mas A4, como A15, achou-as difíceis. Já 14 alunos
disseram ser a favor da reutilização da atividade.
De modo geral os alunos se manifestaram a favor do jogo e de atividades lúdicas em
sala de aula como amostra a tabela 2.
Tabela 2 – Opiniões e sugestões dos alunos
Alunos
Opiniões
Sugestões
A1
“Aprende mais, tem mais interesse”.
A2
“Estimula o exercício mental do aluno
“Pesquisar mais sobre utilização de
e facilita a memorização”.
visuais, e jogos educativos para o
aprendizado”.
A3
“È uma nova maneira para
“O design pode ser melhorado”.
aprendermos inglês; é divertida”.
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A4
A5
A6
“Ajuda a treinar a pronúncia”.
“Interage e quebra o gelo”.
“Dinamiza mais as aulas”.
A7
Quebra a rotina e ajuda os alunos a
terem um pouco mais de contato”.
“Jogos ajudam os alunos a
compreenderem e aprenderem o inglês
mais rápido”.
São atividades como essa que levam o
interesse do aluno a utilizar o raciocínio
e a compreender mais rápido”
“Aprende mais”.
“Você pode aprender mais”.
“...jogar com mais pessoas para ficar
competitivo”.
A8
A9
A10
A11
A12
“Ajuda os alunos na pronúncia”.
A13
“Leva o aluno a aprender brincando, o
que torna a aula mais atraente”.
A14
“Aprendemos o inglês brincando”.
56
“Fazer outros jogos interativos”.
“Gostei do jogo e gostaria demais
jogos”.
-
“...jogar com mais pessoas para ficar
competitivo”.
“Inserir regras de pronúncia em
algumas peças, induzindo o aluno a
revê-las, já que terá de repeti-las em
voz alta para os demais”.
-
Os respondentes perceberam no jogo proposto a presença da aprendizagem, de
brincadeira e diversão, de interação, enfim, manifestações que corroboram o fato do
elemento lúdico ter papel importante na aprendizagem e no estabelecimento da interação em
sala de aula. Exemplificando, a palavra “contato“ em A7, parece ser sinônimo de “interação
entre os alunos”. Contudo, torna-se aparente que a ludicidade não é elemento freqüente nas
aulas de inglês destes aprendizes, como expressam as palavras de A2, A5 e A6, acima.
Considerações finais
Embora o objetivo primeiro da elaboração do Pronunciation Dominoes tenha sido
atingido, ou seja, assistir o professor de inglês a trabalhar com os símbolos fonéticos de forma
lúdica e livre de pressão, e o resultado geral da pesquisa ter sido positivo para a utilização do
jogo nas aulas de pronúncia, a pesquisa e o jogo em si têm limitações. Explicando melhor, os
resultados obtidos de um universo pesquisado de 5 professores e 15 alunos não pode ser
generalizado. Portanto, há que se testar o Pronunciation Dominoes com um número maior de
sujeitos com vistas a verificar a recorrência desses resultados. Isto será feito no primeiro
semestre de 2006, quando o jogo será testado com estudantes universitários do Curso de
Letras da UECE.
Concluindo, é importante que haja mais pesquisas sobre o ensino da pronúncia aliado
a ludicidade para que se confirmem (ou se refutem) os resultados obtidos por esta pesquisa. O
que precisamos ter sempre em mente, como professores de LEs, é que a emoção permeia
qualquer atividade humana, principalmente a expressão oral em outro idioma, sendo
fundamental que a tentativa de expressão seja realizada em uma atmosfera amigável, onde o
aluno sinta que o erro faz parte de um processo maior de amadurecimento lingüístico e que
aprender pronúncia seja divertimento e não uma tarefa repleta de frustração.
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LEFFA, V.J. (org.). Produção de materiais de ensino: teoria e prática. Pelotas: Educat, 2003,
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YOZO, R.Y.K. 100 jogos para grupos: uma abordagem psicodramática para empresas,
escolas e clínicas. 6ed. São Paulo: Agora, 1996.
Anexos
Questionário do professor
Escola:________________________________________Nível: _________________
1.Como você avalia a eficácia do jogo?
( ) Excelente ( ) Boa ( ) Regular ( ) Fraca
2.Como você avalia a receptividade dos alunos em relação ao jogo?
( ) Excelente ( ) Boa ( ) Regular ( ) Fraca
3.As regras são claras e fáceis de seguir?
( ) Sim
( ) Não
Caso sua resposta anterior tenha sido NÃO, liste as dificuldades que encontrou (ou que os
alunos encontraram). ..................................................................................................
4.Você notou interesse dos alunos em tirar dúvidas sobre a pronúncia durante o jogo?
( ) Sim
( ) Não
5.Você notou interesse dos alunos em tirar dúvidas após o jogo?
( ) Sim
( ) Não
6.Você testou o jogo com que níveis? ...............................................................................
7.Em que níveis o resultado foi positivo? ..........................................................................
8.Em que níveis o resultado foi negativo? .........................................................................
9.Você usaria este jogo como ferramenta de ensino nas suas aulas?
( ) Sim
( ) Não
Por quê? ..............................................................................................................................
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10. Você usou a variante dada?
( ) Sim
( ) Não
11.Que mudanças você faria neste jogo? ..........................................................................
Questionário do aluno
Escola: ____________________________Nível: _______________Idade: _________
1.Na minha opinião o jogo é ..............................................................................................
2.Eu ........................................ regras de pronúncia da língua inglesa.
( ) aprendi
( ) revisei
( ) nenhuma das respostas anteriores
3.Eu GOSTARIA / NÃO GOSTARIA de jogar este jogo novamente.
4.As regras são MUITO FÁCEIS /FÁCEIS/ DIFÍCEIS/ MUITO DIFÍCEIS de serem
compreendidas.
5.Eu sou A FAVOR/ CONTRA a utilização de atividades como esta em sala de aula porque
...............................................................................................................................
6.Minhas sugestões: ...........................................................................................................
Exemplo de peças
/d/
/d/
 Peça-fonema
Loved (v.)
What...?

 Peças-mistas
Print (v.)
/t/
Where...?
Who…?
Walked (v.)
Talked (v.)

 Peça-pergunta

 Peça-verbo
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Palavras: mais, ainda, palavras
Angélica Alves Ruchkys
Doutoranda em Estudos Lingüísticos - UFMG
Resumo:Tendo em vista a relação do homem com a linguagem, o presente artigo analisa os
trechos dos livros Infância e As palavras, respectivamente de Graciliano Ramos e de Jean
Paul Sartre, que relatam o momento inaugural da introdução da escrita na vida de seus
protagonistas. Tais obras retratam o período da alfabetização na vida de seus personagens
principais. Este momento revela-se um interessante ponto de vista a partir do qual se pode
estudar a relação do homem com a linguagem, uma vez que é quando ocorre um controle mais
intenso sobre a estruturação do pensamento da criança em virtude do grau de formalização
imposto pela escrita.
Palavras-chave: 1- psicanálise, 2- literatura, 3- língua escrita
Abstract: Taking into account the relationship between man and language, this paper
analyzes passages from Infância (Childhood), by Graciliano Ramos, and As palavras
(Words), by Jean Paul Sartre, both dealing with the moment when their protagonists are first
introduced to written language. These works portray the period in which their main characters
are taught how to read and write, which provides an interesting vantage to investigate the
relationship between man and language, in face of the greater control upon the structuring of
thought in the child at this particular moment, due to the degree of formalization imposed by
that modality.
Key-words: 1- psychoanalysis 2- literature 3- written language
Introdução
O projeto de investigação deste trabalho busca se orientar pelo seguinte esquema
apresentado em aulas da disciplina Literatura, Linguagem e lalangue realizada no Programa
de Pós-Graduação em Estudos Literários da UFMG, no primeiro semestre de 2004:
LINGUAGEM
Lalangue →
INCONSCIENTE
Tendo como foco a relação do homem com a linguagem, tema amplamente pesquisado
durante o curso da referida disciplina, proponho analisar os trechos do livro As palavras de
Jean Paul Sartre, que relatam o momento inaugural da introdução da escrita na vida do seu
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protagonista. A escolha do referido livro se justifica não só porque foi objeto de estudo da
disciplina como também porque retrata o período da alfabetização na vida de seu personagem
principal. Este momento revela-se um interessante ponto de vista a partir do qual se pode
estudar a relação do homem com a linguagem uma vez que é quando ocorre um controle mais
intenso sobre a estruturação do pensamento da criança em virtude do grau de formalização
imposto pela escrita.
Estudar essa passagem do estado “não-alfabetizado” para o estado “alfabetizado” nos
leva a pelo menos tocar numa outra, mais obscura; aquela pela qual o bebê humano passa do
“estado” de lalangue para o de linguagem. Lalangue é traduzido em português como alíngua
e significa o estado anterior ao da aquisição da linguagem organizada. O termo foi construído
por Lacan por meio da junção do artigo definido com o substantivo. Essa transição de que
falei não se faz, entretanto, pelo total abandono do estado anterior, uma vez que a lalangue
continua “funcionando” seja mais abertamente, sob a forma do chiste ou do lapso, seja
subsumida em nossa linguagem aparentemente domesticada.
Se tomo o momento da alfabetização é porque nessa fase, os estímulos físicos oferecidos
pela realidade circundante passam a se tornar letra e esta passa a se tornar uma idéia fixada
por um código: a língua. E se o tomo no contexto literário é porque a linguagem literária por
referir-se ao puro ato de escrever, por reencontrar a linguagem em seu estado incondicionado
e por dobrar-se sobre o mistério de sua própria origem, aproxima-se da lalangue. Além disso,
a escolha de uma autobiografia coloca em evidência outro aspecto da relação do homem com
a linguagem, pois se admitimos com Lacan que há uma distância entre a leitura e a escrita que
engendra nela outra distância, entre o que se lê do inconsciente e o que se escreve a respeito
disso; então, até que ponto, em uma autobiografia, o sujeito do inconsciente adulto consegue
se ler como sujeito do inconsciente criança? Se, levados pela afirmação de Lacan (1985,
p.190) de que “o inconsciente é o testemunho de um saber, no que em grande parte ele escapa
ao ser falante”, podemos também nos indagar, diante de uma autobiografia: Afinal, um sujeito
consegue se ler? Se expandirmos ainda mais – “mais, ainda” – a questão, lembramos que o
próprio sujeito é posto à prova por Lacan (1985, p.195):
O significante é signo de um sujeito. Enquanto suporte formal, o significante atinge
um outro que não aquele que ele é cruamente, ele, como significante, um outro que
ele afeta e que dele é feito sujeito, ou, pelo menos, que passa por sê-lo. É nisto que o
sujeito se acha ser, e somente para o ser falante, um ente cujo ser está alhures, como
mostra o predicado. O sujeito não é jamais senão pontual e evanescente, pois ele
só é sujeito por um significante, e para um outro significante. (Grifos meus).
Dito de outra forma, o “próprio sujeito” – neste caso, o sujeito que protagoniza a
autobiografia de Sartre - seria apenas uma hipótese construída pela língua do escrevente Jean
Paul Sartre. A essa altura, vejo-me na necessidade de admitir que, aparentemente, também eu,
que escrevo agora, sou sujeito apenas em relação a outro sujeito, neste caso, aquele me lê.
Uma coincidência arriscada: a linguagem como instrumento e como objeto de estudo
Antes de prosseguir, prefiro assumir o risco do qual não me parece possível escapar: o
risco da contradição. O fim último de um relato acadêmico é o de esclarecer para uma dada
comunidade – a científica ou acadêmica – determinados conceitos, resultados, considerações
de uma pesquisa. Este relato, por desenvolver-se em um âmbito acadêmico e apresentar um
aparelhamento conceitual – de uma maneira ou de outra – enquadra-se nesse paradigma.
Entretanto tal característica confronta-se com seu objetivo particular: o de estudar um
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território avesso à lógica e à tentativa de apreensão: o território do encontro/desencontro entre
um estado anterior à linguagem – o que chamamos aqui, como Lacan, de lalangue e o estado
posterior a ela, um estado em que o sujeito entrou na linguagem; em que ele está alfabetizado.
Como afirma Miller (1996, p. 61), citando Cícero:
Salvo o sábio, ninguém sabe o que quer que seja, e isso Zenão mostrava com um
gesto. Ele mostrava sua mão, os dedos estendidos. Eis a representação, visum, dizia.
Depois, dobrava um pouco os dedos. Eis o assentimento, assensus. Em seguida
quando fechava completamente a mão e mostrava o punho, declarava que ali estava
a compreensão, comprehensio. Daí ter dado o nome de catalepse, que não era
utilizado antes dele. Em seguida, ele aproximava a mão esquerda da mão direita e,
com força, fechava completamente seu punho; dizia: eis a ciência, scientia que
ninguém possui, salvo o sábio.
Assim, é um risco real fazer da linguagem e de sua relação com o homem (ou do
homem com ela?) um objeto de estudo, uma vez que a tentativa de apreensão/compreensão
leva a esse “fechamento do pulso”, ao aprisionamento, em suma.
Considerações metodológicas
A primeira dificuldade com que me deparei foi delimitar - eis o “primeiro”
procedimento de apreensão - na autobiografia de Sartre, os trechos que, citando-me, “relatam
o momento inaugural da escrita na vida do seu protagonista”. Se admitirmos com Lacan
(1985, p.194) que tudo é significante e que, portanto, nossa relação com o simbólico é anterior
a nossa entrada na linguagem, qual o momento em que não estamos “lendo” um mundo
escrito? Qual é o instante em que se inaugura a escrita em nós? De fato, o momento que
proponho focalizar aqui é, como já disse, aquele em que nos é legada a leitura alfabética o que
já é uma primeira demarcação. Além desta, há outra. O momento inaugural da escrita na
autobiografia de Sartre é precedido de um longo ensaio que deixa entrever reações de seu
protagonista à letra ainda desorganizada e não fonetizada, cujo exame interessa à análise das
reações da personagem após sua entrada “de fato” na linguagem, ou seja, após sua
alfabetização. Neste caso, procedi, portanto, a outro recorte, adotando como critério a relação
de Sartre com os livros que, aliás, é apresentada por ele como uma experiência intensa,
freqüente e, por isso, significativa. É ele quem declara na página 26: “Comecei minha vida
como hei de acabá-la, sem dúvida, no meio dos livros”. É a partir daí que começo minha
análise.
Linguagem: o eterno lugar da ficção?
Desde o primeiro momento em que Sartre fala sobre o escritório de seu avô - a
biblioteca de sua casa da infância - ele o sacraliza. Por isso, desde cedo, é um lugar envolto
em mistério:
No escritório de meu avô, havia-os [livros] por toda parte; era proibido espana-los
exceto uma vez por ano antes do reinício das aulas em outubro. Eu ainda não sabia
ler e já reverenciava essas pedras erigidas: em pé ou inclinadas, apertadas como
tijolos nas prateleiras da biblioteca ou nobremente espacejadas em aléias de
menires, eu sentia que a prosperidade de nossa família delas dependia. Elas se
pareciam todas; eu folhava num minúsculo santuário, circundado de
monumentos atarracados, antigos, que me garantia um futuro tão calmo como o
passado. Eu os tocava às escondidas para honrar minhas mãos com sua poeira,
mas não sabia bem o que fazer com eles e assistia todos os dias a cerimônia cujo
sentido me escapava: meu avô – tão canhestro, habitualmente, que minha mãe lhe
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abotoava as luvas – manejava esses objetos culturais com destreza de oficiante.
(Grifos meus).
Essa reverência pela biblioteca, pelo livro, enfim pela linguagem, fruto do mistério que
os encobre persiste acentuada até o momento em que é revelado a Sartre o som das letras,
após o qual tais objetos perdem em alguma medida sua divindade. Eis uma descrição da letra
feita por Sartre antes de sua alfabetização:
Às vezes, eu me aproximava a fim de observar aquelas caixas que se fendiam como
ostras e descobria a nudez de seus órgãos interiores, folhas amarelecidas e
emboloradas, ligeiramente intumescidas, cobertas de vênulas negras, que bebiam
tinta e recendiam a cogumelo. (p.27)
Após ter sido alfabetizado, Sartre descreve a letra como ele passa a vê-la então, ora
atribuindo a ela uma idéia de lugar, ora encarando-a como simples caractere tipográfico:
Mas o Grand Larousse substituía para mim tudo; eu pegava um tomo ao acaso, atrás
da escrivaninha, na penúltima prateleira. A-Bello, Belloc-Ch ou Ci-D, Mele-Po ou
Pr-Z (estas associações de sílabas estavam convertidas em nomes próprios que
designavam os setores do saber universal: havia a região Ci-D, a região Pr-Z,
com sua fauna e sua flora, suas cidades, seus grandes homens e suas batalhas) [...]
(p.32; grifos meus).
Eu virava a página; caracteres tipográficos me demonstravam o meu engano: era
preciso absolver o sororicídio. (p.35; grifo em itálico presente no original e os grifos
em negrito são meus).
Mas, se por um lado, após revelada sua “natureza” fonética, a letra perde um pouco de
sua divindade, por outro, ela ganha realidade. Para Sartre a letra adquire o estatuto de coisa;
em outras palavras, o nome da coisa passa a ser mais real do que ela própria:
[...] eu o [ o Grand Larousse] depositava penosamente sobre a pasta da mesa de meu
avô, abria-o, desaninhava dele os verdadeiros pássaros, procedia à caça às
verdadeiras borboletas pousadas em verdadeiras flores. Homens e animais se
encontravam lá em pessoa: as gravuras eram seus corpos, o texto sua alma, sua
essência singular; fora dos muros, eram encontrados vagos esboços que se
aproximavam mais ou menos dos arquétipos sem atingir a sua perfeição: no
Jardin d’Aclimatation, os macacos eram menos macacos, no Jardin du
Luxembourg, os homens eram menos homens. Platônico por condição, eu ia do
saber ao seu objeto; achava na idéia mais realidade do que na coisa. Foi nos
livros que encontrei o universo: assimilado, classificado, rotulado, pensado e ainda
temível; confundi a desordem de minhas experiências livrescas com o curso
aventuroso dos acontecimentos reais. (p.33; grifo em itálico presente no original,
os grifos em negrito são meus).
Essa inversão do senso de realidade aprofunda-se a tal ponto que a personagem toma o
universo ficcional dos livros mais próximo à vida do que o universo material dos homens; este
passa a se tornar aos seus olhos de recém-alfabetizado mais próximo à idéia de morte. De sua
paixão pela letra ouvida e pela linguagem cuidadosamente trabalhada, Sartre prefere a
linguagem aos homens, as personagens às pessoas:
Nossos visitantes despediam-se, eu ficava só, evadia-me deste cemitério banal, ia
juntar-me à vida, à loucura nos livros. (p.33; grifos meus)
Eu assistia a acontecimentos que meu avô julgaria certamente inverossímeis e que,
não obstante, possuíam a deslumbrante verdade das coisas escrita. (p.34; grifos
meus)
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Na visão de seu protagonista, as palavras escritas assumem independência em relação
às coisas que nomeiam de tal modo que a incompreensão do sentido delas continua, ao seu
ver, oferecendo-lhe mais realidade do que a própria “realidade”. No relato de suas impressões
sobre a leitura do livro Madame Bovary - muito além da compreensão de sua faixa etária –
Sartre encontra no non sense um outro sentido na ausência daquele tradicional e controlado
pelo léxico:
Eu gostava daquela resistência coriácea que eu nunca conseguia vencer; mistificado,
estafado, degustava a ambigüidade voluptosa de compreender sem
compreender: era a espessura do mundo; o coração humano de que meu avô
falava de bom grado em família, parecia-me insípido e oco em toda parte, salvo
nos livros. Nomes vertiginosos condicionavam meus humores, mergulhavamme em terrores ou melancolias cujas razões me fugiam. (p.36; grifos meus)
Essa forma de saber lidar com o non sense (ou com o que, pelo menos para Sartre à
época de sua infância, não estava claro) é um “saber-fazer” com a lalangue de que nos fala
Lacan, uma vez que a multiplicidade de sentidos e a não fixação de um em particular não
impede que se estabeleça entre o protagonista e a letra uma relação de afeto, de gozo. Ao
invés de quebrar o pacto de leitura, abandonar o livro, negar essa experiência com a revolta da
língua, Sartre, pelo contrário, procura expandir o sentido por sua própria conta; para o
personagem, a palavra desconhecida é que permite a concepção de uma “outra” realidade,
aquela por ele criada:
[...] advinhava que aqueles desfiles de frases ofereciam aos leitores adultos
significações que se me furtavam. Eu introduzia em minha cabeça, pelos olhos,
palavras venenosas, infinitamente mais ricas do que eu pensava; uma força
estranha recompunha em mim, pelo discurso, histórias de loucos furiosos que
não me concerniam, uma tristeza atroz, a ruína de uma vida: não ia eu
contaminar-me, morrer envenenado? Absorvendo o Verbo, absorvido pela
imagem, eu só me salvava, em suma, pela incompatibilidade desses dois perigos
simultâneos. (p.36; grifos meus).
Ao se deixar afetar pelo non sense, o protagonista de As palavras lida com os efeitos
da lalangue. A linguagem literária lhe fornece o instrumental para dizer um pouco – não tudo
– o que essa experiência significa. É por meio da literatura que Sartre consegue expressões
como as que se apresentam na passagem supracitada: “absorvido pela imagem”, “absorvendo
o Verbo” e a metáfora do envenenamento pelas palavras. Com afirma Lacan (1985, p.190), “o
que se sabe fazer com alíngua ultrapassa de muito o de que podemos dar conta a título de
linguagem”. A origem dessa “dificuldade” humana em lidar com a lalangue, Lacan (1985,
p.190) a atribui à relação do inconsciente com os afetos:
O inconsciente é testemunho de um saber, no que em grande parte ele escapa ao ser
falante. Este ser dá oportunidade de perceber até onde vão os efeitos da alíngua, pelo
seguinte, que ele apresenta toda sorte de afetos que restam enigmáticos. Esses afetos
são o que resulta da presença de alíngua no que, de saber, ela articula coisas que vão
muito mais longe do que aquilo que o ser falante suporta de saber enunciado.
Alfabetizado, Sartre lê outros livros não adaptados à sua faixa etária. Mesmo não
compreendendo sentido de muitas palavras, ele as considera suas, pois ele as “ouve” e isso lhe
basta. Antes de ter aprendido a ler, o protagonista tenta vários rituais de apropriação do texto
escrito; entretanto, todos malogram até o momento em que ele aprende o alfabeto, como
mostram os trechos seguintes:
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Eu não sabia ainda ler, mas já era bastante esnobe para exigir meu próprios livros.
Meu avô foi ao patife de seu editor e conseguiu de presente Os Contos do poeta
Maurice Bouchor, narrativas extraídas do folclore e adaptadas ao gosto da infância
por um homem que conservava, dizia-ele, olhos de criança. Eu quis começar na
mesma hora as cerimônias de apropriação. Peguei os dois volumezinhos, cheirei-os,
apalpei-os, abri-os negligentemente na ‘página certa’, fazendo-os estalar. Debalde:
eu não tinha a sensação de possuí-los. (p. 29; grifos em itálico presentes no
original e os grifos em negrito são meus).
[Sartre descreve sua alegria por ter aprendido a ler] Fiquei louco de alegria: eram
minhas aquelas vozes secas que meu avô reanimava com o olhar, que eu ouvia e
eu não! Eu iria escutá-las, encher-me-ia de discursos cerimoniosos e saberia
tudo. (Grifos presentes no original e os grifos em negrito são nossos; p.31).
Desse relato autobiográfico que enfatiza, sobretudo, a relação de um indivíduo com a
linguagem antes e depois de ela organizar-se, considero que da mesma forma que não somos
totalmente passivos em relação à lalangue (Mandil, 2004; nota de aula) também não somos
totalmente passivos em relação caráter fascista da linguagem (Barthes). Em outras palavras,
assim como consentimos entrar na linguagem para que esta nos instrumentalize a dominar
parcialmente a multiplicidade de sentidos, também admitimos – uns mais, outros menos – que
a realidade pode ser pensada sob uma outra perspectiva além daquela que a linguagem
organizada nos impõe, a da dualidade: claro/escuro, masculino/feminino, etc.
Além disso, esse relato atesta - como outros que se comprometem a produzir outras
subjetividades além das estereotipadas - que a literatura é um dos percursos possíveis que
permite a insubordinação tanto diante do caos completo de sentidos quanto da ditadura de um
único sentido. Portanto, a passividade total e incondicional à realidade fabricada pela língua
tem sua explicação no recalque de um trauma que é talvez a matriz de todos os outros por que
passamos ao longo da vida: o trauma da alfabetização. Só mesmo negando completamente
uma certa opacidade da língua é que entramos nela “cegos dos dois olhos”.
Considerações finais
Nada do que aqui – ou em outro veículo qualquer - se pôde dizer abarca tudo aquilo que
poderia ter sido dito sobre o tema colocado na introdução deste trabalho, por que há sempre
algo que o sujeito não suporta ver enunciado. Como afirma Lacan (1985, p.188):
[...] uma coisa é clara, a linguagem é apenas aquilo que o discurso científico elabora para dar conta da
alíngua.
Posto de outra forma: o que é este texto senão uma elocubração de saber sobre a linguagem? Se
lucubração é, de acordo com Houaiss (2001, p.1789):
1, ant. trabalho manual ou intelectual prolongado feito à noite, à luz artificial. 2. p. ext. qualquer estudo laborioso,
de concepção trabalhosa 2.1. obra literária feita em vigília 3 meditação, reflexão profunda 4. p. ext. iron.
Especulação vasta, artificiosa e intrincada © ETIM lat.lucubratio, onis, vigília, serão; trabalho de madrugada;
ver lu(c) – © SIN/VAR elocubração.
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Ciências Sociais – Ano 02 Nº 02 Vol 01 – 2006
ISSN 1809-3264
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Álvares de Azevedo: Sentimental É Moderno
Camillo Cavalcanti
(UFRJ/CAPES/UFF)
Resumo: O presente trabalho reflete sobre as primeiras categorias modernas, nascidas no
primeiro-Romantismo e, por isto, presentes na obra de Álvares de Azevedo. O
individualismo, visto como alicerce maior da literatura romântica e da modernidade, será
analisado nas relações com o objeto de desejo amoroso e com o meio circundante, a fim de
sondar os foros íntimos do sujeito romântico.
Palavras-chave: Álvares de Azevedo; Modernidade Romântica; Individualismo
Abstract: This work presents a reflection about the first modern categories, from PrimerRomanticism, and, thus, insight Álvares de Azevedo’s poetry. The individualism, viewed like
a major foundation of romantic literature and the modernity, will be studied on the subject
relations with the loved object and with the environment, for discovery the romantic subject’s
interior.
Key-words: Álvares de Azevedo; Modernity Romantic; Individualism
Determinar a cronologia da Modernidade é, sem dúvida, motivo de muitas
divergências. Entretanto, a posição assumida neste estudo é entrever a Modernidade já nas
formas românticas. No Brasil, deve-se atentar, principalmente, para a obra de Álvares de
Azevedo, como manifestação desse casamento entre Romantismo e epifania moderna.
A composição mais conhecida de Álvares de Azevedo é Lyra dos vinte annos (1853),
da qual gerou-se uma fórmula até certo ponto reducionista de crítica. São composições
dotadas de forte carga lírica, de um grande enlace emocional: a experiência de um sujeito
lírico que, num movimento bastante característico do espírito moderno, subjetiva, em alto
grau, todo o universo poético. Desse modo, não existe mais a distinção entre o interno e o
externo no espaço poético, pois tudo é extensão do eu "pensante", i.e., que estabelece relações
com tudo (que passa a ser si-mesmo).
Mesmo oferecendo uma rica fonte de estudos críticos, a Lyra, infelizmente, vem
conhecendo uma fórmula empobrecedora de apreciação estética; além disso, como toda
fórmula, reducionista e empacada. Entende-se que a Primeira Parte da Lyra seria apenas uma
adaptação, para a literatura brasileira, de alguns baluartes da tendência sentimental. Ainda que
se tomasse essa direção, dever-se-ia considerar a poesia de Álvares de Azevedo como uma
manifestação moderna, pois a exploração da idéia de indivíduo  sua subjetividade  abriu
caminho para a visão de mundo da Modernidade, tendo na própria expressão sentimental sua
primeira manifestação, como esclarece Irlemar Chiamp:
Os documentos [do Romantismo] aqui reunidos documentam os
momentos-chave dos cem anos que durou a instalação da
modernidade estética, desde os seus inícios nas literaturas alemã,
inglesa e francesa, até os seus desdobramentos nas literaturas italiana,
russa, norte-americana, espanhola e hispano-americana. São ensaios,
cartas, prefácios, notas comentários, fragmentos de romances,
produzidos desde o Romantismo até o Simbolismo europeu e o
Modernismo hispano-americano. (CHIAMP org., 1991: 13)
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Longa já é a bibliografia sobre o papel fundamental do individualismo para a
superação do mundo clássico, cujo tema volta, nesse momento, apenas para que não haja
grandes impactos ao se ver um estudo da obra de Azevedo num ensaio sobre Modernidade: 
o Romantismo já é uma categoria moderna.
A fórmula reducionista de leitura crítica sobre a obra de Azevedo prossegue,
assinalando a ruptura com os antigos padrões sentimentais da Primeira Parte que já estariam
desgastados em sua época de composição (daí a revolta do autor contra aquelas formas
"caducas") ao se ler a Segunda Parte da Lyra. Quanto a esse entendimento, é preciso objetar
que as produções sentimentais atravessaram o movimento parnasiano, para além de 1830 na
Europa, e, no Brasil, permaneceram mesmo depois de 1870. Nem mesmo Azevedo acreditou
nesse Romantismo morto em meados do século. Esgotando-se aí a fórmula de crítica sobre
Álvares de Azevedo, não se leva em conta o retorno que se vê nitidamente, na Terceira Parte,
às fontes sentimentais, que anulam a força da Segunda Parte, transformando esta num mero
exercício poético, e ainda malogrado 17. De toda forma, o mais incipiente está na falta de
qualquer menção sobre a Modernidade na obra de Álvares de Azevedo. Podem-se levantar os
aspectos modernos da obra azevediana à medida que a Lyra dos vinte annos seja investigada.
Por ora, supera as necessidades desse trabalho deflagrar cinco delas: a tradição popular, o
mal-do-século, o egotismo, a liberdade formal e a negatividade.
O mal-do-século  um dos principais ingredientes do Romantismo  possui uma
estreita ligação com a tradição popular. Antes de demonstrar que Álvares de Azevedo se
insere nesta tendência estética, cabe uma breve história dela, para que se notem quão
longínquas são suas origens e quão atuais suas reconfigurações. Costuma-se apontar a estética
do mal-do-século como um gosto muito especial e distinto pela noite. Imersa numa atmosfera
mortuária, as figuras pictóricas dessa tendência oscilam entre o bufo e o assombro  este
último aspecto, parece-me, prevalece na poesia azevediana. A feição psicológica é bem
simples: trata-se de um solitário, afogado em melancolia, que discursa sobre o fracasso
amoroso. A resignação que lhe tolhe a alma confere a tudo aspecto patológico e moribundo.
Azevedo se concentra, sem dúvida, na ambiência noturna, no trato hiperbólico, na
configuração patética por excelência. A coloração de mistério, de sinistro e de fantástico,
ilusório e encantatório de românticos como Goethe e Shelley repercute na obra azevediana e
dialoga com as flores maléficas de Baudelaire. Ademais, já dizia Victor Hugo, antes de
Baudelaire, no seu célebre Prefácio a Cronwell:
No pensamento dos Modernos, ao contrário, o grotesco tem um
papel imenso. Aí está por toda a parte; de um lado, cria o disforme,
e o horrível; do outro, o cômico e o bufo. (...) É nele que semeia,
nas mancheias, no ar, na água na terra, no fogo, estas miríades de
seres intermediários...; é ele que faz girar na sombra a ronda
pavorosa do sabá, ele ainda que dá a Satã os cornos, os pés de
bode, as asas de morcego. É ele, sempre ele, que ora lança no
inferno cristão estas horrendas figuras que evocará o áspero gênio
de Dante e de Milton, ora o povoa com estas formas ridículas no
meio das quais se divertirá Callot... (HUGO, 2002: 30-31) [grifo
meu]
Nota-se toda semelhança entre o mal-estar desse amante infeliz e do pintor da vida
moderna, dada a inferência dessas categorias sentimentais e parnasianas no espectro maior do
17
Este é um dos pontos-chave desse estudo: a ressurreição do sentimentalismo da 1ª para a 3ª Parte da Lyra
revela a tendência maior da obra azevediana; e mesmo que haja um esforço em se desvencilhar das formas
sentimentais na 2ª Parte, é nas outras que o EU-lírico encontra sua verdadeira expressão.
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Romantismo e da Modernidade, desde a escolha pelo “Spleen e Charutos” e “Spleen et Ideal”.
Uma das preocupações dos primeiro-românticos foi desmantelar as convenções clássicas,
buscando, por isso, temas folclóricos e populares como fonte alternativa frente ao
universalismo dos clássicos. Dois grandes exemplos são D. Juan, de Byron, e Faust, de
Goethe. Trata-se de mitos da sabença popular, anteriores ao espectro romântico, cuja
diferença na transmissão e sobrevivência mítica se resume no fato de que Don Juan pertence a
uma tradição impressa, enquanto Doutor Fausto permanece no imaginário popular um longo
tempo até encontrar espaço nos livros, como esclarece Ian Watt:
[...] Dom Juan emerge sob a forma de criação definitiva das páginas
de uma obra-prima da literatura espanhola do século XVII. A peça
teatral em que ele fez sua primeira aparição foi, com certeza quase
total, escrita por um religioso espanhol, frei Gabriel Téllez (1581?1648), que assinava suas obras como Tirso de Molina. [...] O título da
peça de Molina sobre D. Juan é El Burlador de Sevilla y el convidado
de piedra. (WATT, 1997: 100)
Azevedo seguiu duas linhas de trabalho, talvez ambicionando participar do
Romantismo da forma mais expressiva possível. A primeira diz respeito àquela tradição
rapsódica tão própria de Goethe e Byron, ao recriarem Faust e D. Juan, resp. Nessa direção,
escreveu a prosa Macário, teatro em que o conceito de grotesco, tal como proposto por Victor
Hugo, deixa seu estado passivo de teoria e alcança a prática na ficção mais famosa de nosso
gênio. Os contos de Noite na Taverna também não resistem a uma pesquisa de fontes:
assemelham-se por demais a Noches Lúgubres, de José Cadalso (traduzidas por Bernardino
Ribeiro e publicadas, como folhetins, em 1844, na Minerva Brasiliense), que por sua vez são
imitações das Nights (1742-1745), de Edward Young (BROCA, 1979: 215), principal fonte do
mal-do-século inglês  da qual se embebeu Byron , reelaborado à época mais extremada
do Romantismo na Inglaterra.
Porém, a maioria de seus poemas (e não prosa) é de imaginação própria e representa o
poeta em sua excelência. Somente esse aspecto seria suficiente para redimir a incompletude
de sua obra, se é que ela existe de fato. Pelo contrário, a poesia de Álvares de Azevedo parece
enveredar por caminhos significativamente mais ousados, não exatamente pela escolha do
tema, mas sobretudo pelo tratamento do tema 18. A influência de Goethe e Byron na obra de
18
A forma de Álvares de Azevedo encarar a poesia é muito peculiar. Românticos como Schlegel e Novalis
entendem a poesia como uma construção rebuscada do pensamento. Nas palavras de Walter Benjamim: "’Existe
[...] um tipo de pensar[, diz Schlegel] que produz algo e que, portanto, possui uma grande semelhança formal
com a faculdade criativa que nós atribuímos ao Eu da natureza e ao Eu-do-mundo. A saber, o poetizar, que de
certo modo cria sua própria matéria’. / Em seus primeiros tempos, ele [Schlegel] designou a arte como mediumde-reflexão. Em muitas passagens, Novalis também deu a entender que a estrutura básica da arte é a do mediumde-reflexão. A seguinte proposição: ‘A arte da poesia é certamente apenas uma utilização arbitrária e produtiva
dos nossos órgãos  e talvez o pensar seria ele mesmo algo não muito diferente  e, portanto, pensar e poetar
constituíam uma mesma coisa’ assemelha-se muito à sentença schlegeliana.” (BENJAMIM, 2002:70-71
passim.). Bem se sabe como foi cara aos românticos alemães de 1800 a formulação dos três graus do pensar (cf.
opus cit., p. 34-39). Nela, verifica-se que "a reflexão propriamente dita, no seu significado pleno, nasce, no
entanto, apenas do segundo grau; no pensar aquele primeiro pensar" (opus cit., p. 35). Álvares de Azevedo, pelo
contrário, crê na imediatez do fluxo poético; na imediatez não enquanto conceito da teoria do conhecimento de
Schlegel, mas enquanto rápida captação do sentimento poético. Para Schlegel, este sentimento é "o ponto de
indiferença da reflexão, no qual esta surge do nada" (opus cit., p. 70). Álvares de Azevedo, pelo contrário, não
aceitava um segundo pensar (a reflexão) sobre seus versos. Se a arte, segundo Schlegel, é um medium-dereflexão (e a reflexão, um segundo pensar), a arte de Azevedo é totalmente contrária à concepção schlegeliana.
Tome-se “O Poema do Frade” como exemplo. Nele, percebe-se claramente o credo de Azevedo em não repensar
a forma a que se chegou: “Frouxo o verso talvez, pallida a rima / Por este meus delírios cambeteia, / Porem odeio
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Álvares de Azevedo não deve ser ignorada, até porque situam o poeta brasileiro na mesma
tradição da melancolia romântica e do mal-do-século. Todavia, o gênio efusivo de Álvares de
Azevedo precisa de uma reconciliação com sua crítica, no sentido de demonstrar a autonomia
de temas e formas que, embora se aproximem na condição de evasões sentimentais, possuem
uma nota muito particular de uma experiência individual  i.e., inédita e irrepetível  de um
sujeito que sofre uma frustração amorosa e uma obsessão que o convida a confundir ilusão e
realidade. Ainda que seja notória a influência desses autores na obra de Álvares de Azevedo, é
de se destacar com muita satisfação uma característica que o felicita mais do que aos outros
dois estrangeiros: a criação artística.
Essa habilidade inventiva, Álvares de Azevedo desenvolveu muito bem. Quem lê
“Idéias Íntimas” não pode desconhecer a imaginação sem limites de nosso poeta sombrio 19. A
o pó que deixa a lima / E o tedioso emendar que gela a veia! / Quanto a mim é o fogo quem anima / De uma
estancia o calor: quando formei-a, / Se a estatua não saiu como pretendo, / Quebro-a  mas nunca seu metal
emendo.” (AZEVEDO, 1942: 339). Este pensamento sobre o fazer poesia entra em profunda discordância com
as idéias dos românticos alemães (embora Benjamim use o termo em sentido genérico, melhor dizer românticos
alemães). É o que se lê neste trecho: “A teoria romântica da obra de arte é a teoria de sua forma. A natureza
limitadora da forma os românticos identificaram com a limitação de toda reflexão finita. A forma é, então, a
expressão objetiva da reflexão à própria obra, que forma sua essência. Através de sua forma a obra de arte é um
centro vivo de reflexão. A reflexão prática, ou seja, determinada, a autolimitação, constituem a individualidade e
a forma da obra de arte.” (opus cit., p. 78-79 passim.). Cilaine Alves, ainda que intente inserir o poeta numa
tradição romântica, percebe essa nota destoante do estilo de Álvares de Azevedo como uma ruptura com as
balizas do Romantismo, numa rejeição à convenção que àquela altura de 1850 já se fazia desgastada, rejeição
esta evidente na parte II da Lyra dos Vinte Annos (1853): “Dissolvida no âmbito da criação poética e passível de
ser apreendida apenas na duração de cada poesia singular, a dualidade de fundamentos estéticos relaciona-se, de
certo modo, com a recusa em adotar as convenções poéticas que regulamentavam o ato criativo e, ao mesmo
tempo, com a necessidade de legitimar, de forma original, a individualidade poética de Álvares de Azevedo,
unificando-a num projeto próprio.” (ALVES, 1998: 70). Entretanto, essa postura contrária a alguns ensinamentos
do Romantismo originário alemão não reside apenas na tão alardeada recusa de tropos na pequena parte II da
Lyra (e nem se menciona como o poeta volta atrás), mas na própria concepção de arte que, de maneira mais
significativa, se espraia por toda a obra de Azevedo. Contudo não é só neste aspecto que Azevedo contraria as
idéias do ciclo alemão. A segunda discordância se estabelece quanto à crítica de arte. Ao dissertar sobre ela, o
poeta brasileiro também se posiciona de forma divergente dos alemães. Nessa questão, o pensamento que mais
influencia os românticos alemães é formulado por F. Schlegel: “É belo e necessário entregar-se totalmente à
impressão de uma obra literária [...] e como que apenas confirmar no detalhe o sentimento com a reflexão,
elevando-o ao pensamento e [...] completando-o." (apud BENJAMIM, 2002: 75; cortes do autor). Entretanto,
Novalis discordava desse ponto de vista: “Crítica da poesia é um absurdo. Já é difícil decidir, a única decisão
possível, se algo é ou não poesia." (apud BENJAMIM, 2002: 84). Será por esse viés novalino que Álvares de
Azevedo encontrará solicitude à sua visão sobre poesia. Ainda n' “O Poema do Frade”, nota-se que o juízo de
nosso poeta quanto à crítica de arte é depreciativo: “A critica é uma bella desgraçada / Que nada cria nem jamais
criara; / Tem entranhas de areia regelada; / É a esposa de Abrão, a pobre Sara / Que nunca foi por Anjo
fecundada; / Qual a mãe que por ella assassinára / Por sua inveja e vil desesperança / Dos mais santos amores a
criança. (AZEVEDO, opus cit., p. 337). Bem se vê que o ponto-de-vista de Schlegel, mais difundido e mais
aceito no Romantismo e na crítica sobre Romantismo, está em profundo conflito com as idéias de Azevedo. Até
mesmo Novalis, talvez mudando de opinião, concordava com Schlegel em a crítica de arte ser um complemento
da arte, como se depreende desta sua proposição: "A autêntica recensão deveria ser [...] o resultado e a exposição
de um experimento filológico e de uma pesquisa literária" (apud BENJAMIM, opus cit., p. 72). Walter
Benjamim explica, com mais detalhes, esse pensamento de Novalis: "crítica é, então, como que um experimento
na obra de arte, através do qual a reflexão é despertada e ela é levada à consciência e ao conhecimento de si
mesma." (opus cit., p. 72).
19
Aliás, um ponto de vista malogrado tem-se erguido a respeito de Álvares de Azevedo, sufocando-lhe o
brilhantismo numa jocosidade que não procede como predominante de sua obra, ou como paráfrase da poética
alheia. “Idéias Íntimas” podem ser vistas como exemplo de aproximação com a modernidade. Anotei nos meus
relatórios de Iniciação Científica ao CNPq o que ora transcrevo com pequena revisão de estilo: “Alguns versos
do início e do fim do poema impedem uma interpretação cômica, mas erguem aquele mundo em caos da
modernidade: ‘Um sonho de mancebo e de poeta / El-Dourado de amor que a mente cria / Como um Éden de
noites deleitosas // Os meus olhos ardentes se escurecem / E no cérebro passam assomos de poesia... Dentre a
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exploração da negatividade de seu universo poético, por exemplo, sem favor algum, o faz um
antecedente de Baudelaire 20, com toda aquela percepção, ainda por se consagrar, da
degradação escondida por trás do superficial nas coisas. A capacidade de Álvares de Azevedo
em penetrar na essência das coisas pôde levá-lo a um alto grau de intimidade  já conhecido
de longas datas  com o material introjetado e submeter o entorno a seus foros íntimos, de
modo que o universo poético de Azevedo se confunde com a interioridade — e nisto a rasura
(e não simples cópia) do real, própria da arte moderna. Mergulhando nos versos da Lyra dos
vinte annos, percebe-se, logo no poema de início “No Mar”, a ambiência noturna e as demais
características do mal-do-século:
Era de noite  dormias,
Do sonho nas melodias,
Ao fresco da viração;
Embalada na falua,
Ao frio clarão da lua,
Aos ais do meu coração!
Ah! que véu de pallidez
Da langue face na tez!
Como teus seios revoltos
Te palpitavam sonhando!
Como eu scismava beijando
Teus negros cabellos soltos!
Sonhavas?  eu não dormia;
A minh'alma se embebia
Em tua alma pensativa!
E tremias, bella amante,
A meus beijos, semelhante
Às folhas da sensitiva!
(AZEVEDO, 1942: 9)
sombra / Vejo num leito d'oiro a imagem dela (...)’ (AZEVEDO, 1942, p.146, passim. grifo meu). De forma
que o tom pseudojocoso da Lyra não é uma ironia, mas ironia-romântica, cuja funcionalidade se equipara com a
corrosão moderna. Essa estruturação possui funcionalidade reguladora, evitando ironia que não seja romântica.
Preocupado com a interpretação errônea do leitor, devido à vulnerabilidade de seu objetivo inédito no Brasil, o
eu-lírico a todo instante retoma a função reguladora: ‘E o gênio do futuro parecia / Predestiná-lo à glória’ // ‘É
um retrato talvez. Naquele seio / Porventura sonhei doiradas noites’ // ‘E a donzela ideal nos róseos lábios /
No doce berço do moreno seio / Minha vida embalou estremecendo’. (opus cit., p.146, passim, grifo meu). O
próximo fragmento, além de funcionalidade reguladora, é metatexto interno: ‘Meu pobre leito! eu amo-te
contudo! / Aqui levei sonhando noites belas’ (opus cit., p.146; grifo meu). Outras passagens revelam a
fantasticidade das imagens: ‘Meu quarto, mundo em caos, espera um Fiat!’ // ‘Como de um sonho o recordar
incerto’ // ‘Aqui lânguido à noite debati-me / Em vãos delírios anelando um beijo’ (opus cit., p.146)”
20
Podem-se comparar alguns versos de Baudelaire e Azevedo. Exemplos tirados dos meus relatórios IC: “Le
bourdon se lamente, et la bûche enfumée / Acompagne en fausset la pendule enrhumée” (Baudelaire, “Spleen”) e
“E quem dirá, meu Deus! que a lira d'alma / Ali não tem um som - nem de falsete” (AVEVEDO, 1942, p.199);
“Guidé par ton odeur vers de chamants climats, / Je vois un port rempli de voiles et de mâts / Encor tout fatigués
par la vague maine, / Pedeant que le parfum des verts tamariniers, / Qui circule dans l'air et m'enfle la narine / Se
mêle dans mon âme au chant des mariniers” (idem, “Parfum Exotique”) e “Ao sol do meio dia eu vi dormindo /
Na calçada da rua um marinheiro / Roncava a todo o pano o tal brejeiro / Do vinho nos vapores se expandindo!
(opus cit., p.198); “Je respire l'ouder de ton sein chalenreux” (idem, ibidem) e “Toda aquela mulher tem a pureza
/ Que exala o jasmineiro no perfume” (opus cit., p.198); “...Que vous sert, courtisane imparfaite / De n'avoir pas
connu ce que pleurent les morts?” (idem, ibidem) e “Mas quis a minha sina que seu peito / Não batesse por mim
nem um minuto” (opus cit., p.187); “..."Je suis belle, et j'ordonne / Que pour l'amour de moi vous n'aimiez que le
Beau, / Je suis l'Ange gardien, la Muse et la Madone"” (idem, “Que diras-tu ce soir”) e “Há nesse ardente olhar
que gela e vibra, / Na voz que faz tremer e que apaixona / O gênio de Satã que transverbera / E o langor
pensativo da Madona!” (opus cit., p.260).
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Mas, se o eu-lírico expressa algum êxito amoroso, logo este adquire um caráter
fantasioso e imaginativo, fugindo à condição de fato real no mundo poético e sugestionando
relações entre a consumação do ato sexual e o estado onírico: sob esta tensão vibra toda a
Lyra dos vinte annos (quanto mais próximo da consumação, mais se respira fantasia; quanto
mais longe da cópula, mais se vê a derradeira melancolia). Não estranha, portanto, o título do
segundo poema “Sonhando”:
Na praia deserta que a lua branqueia,
Que mimo! que rosa! que filha de Deus!
Tão pallida  ao vêl-a meu ser devaneia,
Suffoco nos labios os halitos meus!
Não corras na areia,
Não corras assim!
Donzella, onde vais?
Tem pena de mim!
A praia é tão longa! e a onda bravia
As roupas de gaza te molha de escuma;
De noita  aos serenos  a areia é tão fria,
Tão úmido o vento que os ares perfuma!
És tão doentia!
Não corras assim!
Donzella, onde vais?
Tem pena de mim!
(opus cit., p. 12)
O aspecto patológico, por ora concentrado na amada, está bastante explícito nas linhas
seguintes, em que se narra um processo de degradação cada vez mais acentuado, denunciando
o estado doentio e moribundo:
E o pallido mimo da minha paixão
Num longo soluço tremeu e parou;
Sentou-se na praia; sozinha no chão
A mão regelada no collo pousou!
[...] Tem pena de mim!
Deitou-se na areia que a vaga molhou,
Immovel e branca na praia dormia;
Mas nem os seus olhos o sono fechou
E nem o seu collo de neve tremia.
[...] Tem pena de mim!
Dormia  na fronte que niveo suar!
Que mão regelada no languido peito!
Não era mais alvo seu leito do mar,
Não era mais frio seu gelido leito!
[...] Tem pena de mim!
[...]
Nas águas do mar
Não durmas assim!
Não morras, donzella,
Espera por mim!
(idem, p. 13-14)
Note-se, pela extrema importância que terá em toda a obra de Azevedo, a obsessão do
eu-lírico na contemplação da amada, contemplação esta tão desmedida que revela tendências
à perseguição e à vigilância, determinando seu caráter patológico. Esquivando-se desta
perseguição doentia, a amada opta pela morte, decidida que está a não travar relações (até
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mesmo as mais castradas: carinho, atenção, conversas, etc.) com o sujeito lírico  a obsessão
dele aumenta conforme aumenta o desprezo da amada.
Daí a súplica incessante nos ritornelos: "Não corras assim!". É poesia da ausência esta de
Álvares de Azevedo: querendo vencer o silêncio da amada, o sujeito indaga-lhe a todo
instante, sem, contudo, obter resposta:  só resta “Scismar”:
Ai! quando de noite, sòzinha à janella,
Co'a face na mão eu te vejo ao luar,
Por[]que, suspirando, tu sonhas, donzella?
A noite vai bella,
E a vista desmaia
Ao longe na praia
Do mar!
Por quem essa lagrima orvalha-te os dedos,
Como agua da chuva cheiroso jasmim?
Na scisma que anjinho te conta segredos?
Que pallidos medos?
Suave morena,
Acaso tens pena
De mim?
Donzella sombria, na brisa não sentes
A dôr que um suspiro em meus labios tremeu?
E a noite, que inspira no seio dos entes
Os sonhos ardentes,
Não diz-te que a voz
Que fala-te a sós
Sou eu?
Acorda! não durmas da scisma no véu!
Amemos, vivamos, que amor é sonhar!
Um beijo, donzella! Não ouves? no céu
A brisa gemeu...
As vagas murmuram...
As folhas sussurram:
Amar!
(opus cit., p. 15-16)
A pulsão de morte que alimenta o aspecto patológico/moribundo leva à confusão entre
o falecimento do eu-lírico e da amada. Não haveria melhor figura para representar essa fusão
anímica do que a do Anjo, ser assexuado, na síntese do masculino e do feminino. O poema
“Anjinho” traz este transtorno de identidades:
Não chorem! que não morreu!
Era um anjinho do céu
Que um outro anjinho chamou!
Era uma luz peregrina,
Era uma estrella divina
Que ao firmamento voou!
Pobre criança! dormia:
A belleza reluzia
No carmim da face della!
Tinha uns olhos que choravam,
Tinha uns risos que encantavam!
Ai, meu Deus! era tão bella!
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Um anjo d'asas azues,
Todo vestido de luz,
Sussurrou num segredo
Os mysterios de outra vida!
E a criança adormecida
Sorria de se ir tão cedo!
[...]
Pobrezinho! o que soffreu!
Como convulso tremeu
Na febre dessa agonia!
Nem gemia o anjo lindo,
Só os olhos expandindo
Olhar alguem parecia!
Era um canto de esperança
Que embalava essa criança?
Alguma estrella perdida,
Do céu c'roada donzella,
Toda a chorar-se por ella
Que a chamava doutra vida?
[...]
(opus cit., 19-20)
A sugestão de ser o anjinho o próprio sujeito lírico aumenta quando se sabe que este
desejava tanto a morte que cantou seu próprio enterro em “Lembrança de morrer”:
Quando em meu peito rebentar-se a fibra,
Que o espírito enlaça à dor vivente,
Não derramem por mim nem uma lagrima
Em palpebra demente.
E nem desfolhem na materia impura
A flôr do valle que adormece ao vento:
Não quero que uma nota de alegria
Se cale por meu triste passamento.
Eu deixo a vida como deixa o tédio
Do deserto, o poente caminheiro
 Como as horas de um longo pesadelo
Que se desfaz ao dobre de um sineiro;
(opus cit., p. 122)
Quando a pulsão de morte se abranda, toma conta do eu-lírico o convite permanente à
amada para amá-lo, como se vê em “Cantiga do Sertanejo”:
Donzella! se tu quiseras
Ser a flôr das primaveras
Que tenho no coração!
E se ouviras o desejo
Do amoroso sertanejo
Que descora de paixão!
Se tu viesses comigo
Das serras ao desabrigo
Aprender o que é amar
 Ouvil-o no frio vento
Das aves no sentimento,
Nas aguas e no luar!
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 Ouvil-o nessa viola,
Onde a modinha espanhola
Sabe carpir e gemer!
Que pelas horas perdidas
Tem cantigas doloridas,
Muito amor! muito doer!...
Pobre amor! o sertanejo
Tem apenas seu desejo
E as noites bellas do val!
Só  o ponche adamascado,
O trabuco prateado
E o ferro de seu punhal!
(opus cit., p. 26-27)
Percebe-se a identidade com a terra, sem nacionalismos, sob a forma de memória
involuntária. Existe todo um apego com a fauna e a flora da pátria  o eu-lírico enuncia um
homem do sertão, vegetação típica do Brasil , que despertam a subjetividade de modo
particular. Esse agradável sentimento o faz lembrar-se da amada, pois quer partilhar sua
felicidade com ela  este é seu ideal de vida.
O convite para o amor e a felicidade a dois se alterna, ainda quando a pulsão de morte
descansa, com uma lamentação saudosa. Trata-se de uma disposição de alma específica: o eulírico, talvez pretendendo ser observador  e para tanto precisa se desvencilhar, estado este
muito almejado porém pouco experimentado  se põe à frente (ou à margem) da ligação
subjetiva com a amada, malgrado a mentira que aí só se sustenta pelo alto teor imaginativo:
mentira porque nunca esteve nesta posição de desligamento emocional. Parece que a profunda
ânsia de tê-la a seu lado pertence a um passado finito, havendo uma estranha conformidade
com a desilusão: trata-se, e não esqueça o leitor, de um discurso falso. Nesses momentos, o
sujeito desejante aceita a solidão e deixa de perseguir sua amada, inserindo-a nesse mesmo
passado finito, construído fantasiosamente. É o que nos transmitem esses versos, aliás de
sintaxe e encadeamento ímpares:
Quando à noite no leito perfumado
Languida fronte no sonhar reclinas,
No vapor da illusão por[]que te orvalha
Pranto de amor as palpebras divinas?
E, quando eu te contemplo adormecida
Solto o cabello no suave leito,
Por[]que um suspiro tépido resona
E desmaia suavissimo em teu peito?
Virgem do meu amor, o beijo a furto
Que pouso em tua face adormecida
Não te lembra no peito os meus amores
E a febre do sonhar de minha vida?
Dorme, ó anjo de amor! no teu silêncio
O meu peito se afoga de ternura
E sinto que o porvir não vale um beijo
E o céu um teu suspiro de ventura!
Um beijo divinal que accende as veias,
Que de encantos os olhos illumina,
Colhido a mêdo como flôr da noite
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Do teu labio na rosa purpurina,
E um volver de teus olhos transparentes,
Um olhar dessa palpebra sombria,
Talvez pudessem reviver-me n'alma
As santas illusões de que eu vivia!
(opus cit., p. 31-32)
Levando a cabo essas ilusões, o sujeito lírico volta a viver na própria ocasião de sua
relação problemática com a amada, dispondo tudo, desta vez, no presente. Mas todas essas
afetações ou são mentiras (quando o sujeito tenta em vão deslocar para o passado uma relação
marcante e contumaz que o acompanha a cada momento presente) ou são verdades (quando se
entrega ao sofrimento e reconhece o presente como purgação de seu fracasso amoroso) 21, e,
por isso, a dimensão mais ampla que se conceba para a poesia de Álvares de Azevedo está
confinada, bem da verdade, numa prisão do presente 22, pois transformar o presente em
21
Tem-se, nessa tensão dualística, um forte sintoma da melancolia: a incapacidade de se desligar do objeto
amado. Cf. CAVALCANTI, C. Vertentes da melancolia. in: ---. Alphonsus de Guimaraens: melancolia e
religiosidade em Kiriale. Niterói: s/n., 2004. (dissertação de mestrado em Letras  Literatura brasileira da UFF)
22
Cf. CAVALCANTI, C. A solidão na poesia romântica brasileira. Cadernos de Letras da UFF. Niterói:
Instituto de Letras, 2001, n°. 22. (p. 7-24), o que se transcreve: Em Álvares de Azevedo, a questão se encaminha
de forma que a solidão e o conflito diante da vida dialoguem com mais contundência, determinando um projeto
estético a que se pode referir como um confinamento nas dimensões da individualidade e um aprisionamento no
presente. O poeta irá construir uma obra interessada diretamente na discussão sobre o homem e a sua
individualidade, direcionando-se muito mais ao ontológico/intimista que ao social/nacionalista, e optando pela
reclusão na intimidade do EU-lírico e pela rejeição às instâncias sociais. O diálogo com a solidão neste caso
permite a construção do indivíduo per si, ambicionando distanciar-se da realidade concreta. Nesse sentido, o
poema Vagabundo é muito representativo. Ele se abre em dois movimentos semânticos. Num deles, predomina a
tensão entre eu individual e eu social e, no outro, sobressai a busca de vetores que elaboram uma origem "falsa".
O primeiro compõe-se das cinco primeiras estrofes e o segundo das cinco últimas, totalizando dez estrofes que
estruturam o texto. Esse poema de Azevedo exemplifica maximamente a expressão "o império do eu individual".
Nele, a caracterização do indivíduo é tão importante que encobre a construção do social, de forma que este só se
entrevê num amálgama com o íntimo. A primeira e segunda estrofes cuidam de elaborar o território íntimo: “Eu
durmo e vivo ao sol como um cigano, / Fumando meu cigarro vaporoso; / Nas noites de verão namoro estrelas; /
Sou pobre, sou mendigo e sou ditoso! // Ando roto, sem bolsos nem dinheiro; /Mas tenho na viola uma riqueza: /
Canto à lua de noite serenatas, / E quem vive de amor não tem pobreza.” A terceira estrofe consiste numa
espécie de transição, pois prepara a passagem da reclusão do eu individual para a tentativa de estabelecer um
diálogo com o social: “Não invejo ninguém, nem ouço a raiva / Nas cavernas do peito, sufocante, / Quando à
noite na treva em mim se entornam / Os reflexos do baile fascinante.” Nas estrofes quatro e cinco constata-se a
articulação um pouco mais extensa do indivíduo com o coletivo: “Namoro e sou feliz nos meus amores / Sou
garboso e rapaz... Uma criada / Abrasada de amor por um soneto / Já um beijo me deu subindo a escada... / Oito
dias vão que ando cismado / Na donzela que ali defronte mora. / Ela ao ver-me sorri tão docemente! / Desconfio
que a moça me namora!...”. O confinamento do EU-lírico no mundo de um eu individual constitui uma espécie
de defesa, na obra azevediana, contra o mal-estar da vida em sociedade, uma das características do spleen e do
mal-do-século que envolvem sua poesia. Embora aprisionados na intimidade de um mundo idealizado e ilusório,
os componentes do universo poético encontram paralelos com o "real": isto fere a intimidade do ser, que, em
Azevedo, prioriza a reclusão. Desse modo, o diálogo com o coletivo se reveste de malogros. A relação deste
indivíduo e sua criação (feita para atender às necessidades de um eu que aspira pela reclusão em si mesmo), ao
contrário, é substancialmente positiva e proveitosa, de maneira a interligar o território íntimo e a "falsa"
(ilusória) origem nas estrofes 5-9: “Tenho por meu palácio as longas ruas; / Passeio a gosto e durmo sem
temores; / Quando bebo, sou rei como um poeta, / E o vinho faz sonhar com os amores. // O degrau das igrejas é
meu trono, / Minha pátria é o vento que respiro, / Minha mãe é a lua macilenta, / E a preguiça a mulher por quem
suspiro. // Escrevo na parede as minhas rimas, / De painéis a carvão adorno a rua; / Como as aves do céu e as
flores puras / Abro meu peito ao sol e durmo à lua. // Sinto-me um coração de lazzaroni; / Sou filho do calor,
odeio o frio, / Não creio no diabo nem nos santos... / Rezo a Nossa Senhora e sou vadio!”. As longas ruas são o
palácio do vagabundo, os arredores da igreja são seu trono, sua pátria o vento: elementos que constróem as
origens (próximas da idéia do eu natural). Por outro lado, ele bebe o vinho, sonha e tem a preguiça como musa:
elementos que fomentam a intimidade. Quando o EU-lírico se sente seguro em sua "falsa" origem, empreende
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passado não passou de um assomo de fantasia, de pura imaginação, de uma grande mentira.
Nesse sentido, os versos seguintes revelam essa incapacidade de o sujeito lírico superar a
frustração que experimentou com essa amada desdenhosa:
Quando falo contigo, no meu peito
Esquece-me esta dôr que me consome:
Talvez corre o prazer nas fibras d'alma:
E eu ouso ainda murmurar teu nome!
Que existência, mulher! se tu souberas
A dôr de coração do teu amante,
E os ais que pela noite, no silêncio,
Arquejam no seu peito delirante!
E quanto soffre e padeceu, e a febre
Como seus labios desbotou na vida,
E sua alma cansou na dôr convulsa
E adormeceu na cinza consumida!
Talvez terias dó da magoa insana
Que minh'alma votou ao desalento,
E consentira a virgem dos amores
Descansar-me no seio um só momento!
[...]
Sou um doido, meu Deus! mas no meu peito
Tu sabes se uma dôr, se uma lembrança
Não queria calar-se a um beijo della,
Nos seios dessa pallida criança!
Se num languido olhar, no véu do gozo
Os olhos de Espanhola a furto abrindo
Eu não tremia  o coração ardente
No peito exausto remoçar sentindo!
Se no momento ephemero e divino
Em que a virgem pranteia desmaiando
E a c'rôa virginal a noiva esfolha,
Eu queria a seus pés morrer chorando!
Adeus! rasgou-se a pagina saudosa
Que teu porvir de amor no meu fundia,
Gelou-se no meu sangue moribundo
Essa gota final de que eu vivia!
Adeus, anjo de amor! tu não mentiste!
Foi minha essa illusão, e o sonho ardente:
Sinto que morrerei... tu, dorme e sonha
No amor dos anjos, pallida innocente!
uma nova tentativa de inserção social. Note-se que não ocorre neste momento uma reclusão, pelo contrário, o
EU-lírico busca um espaço mais abrangente para suas dilacerações. Deste modo, prepara-se para aguardar uma
donzela na igreja (a sociabilidade): “Ora, se por aí alguma bela / Bem doirada e amante da preguiça / Quiser a
nívea mão unir à minha, / Há de achar-me na Sé, domingo, à Missa.”. Em Álvares de Azevedo, o indivíduo opta
pela reclusão em si, que se transmuta em prisão do presente: o eu social é o indivíduo ante a coletividade como
um cárcere que, embora isolado em sua sela, faz parte da coletividade dos presos. E a chave foi entregue por ele
mesmo à amada, seu único ponto de contato com o social. Portanto, o ser possui sua diferenciação (eu
individual), sua referencialidade (eu natural) e sua participação (eu social) amalgamados num sistema cuja
distinção dos elementos é extremamente rarefeita; inclusive, o cosmos em que está inserido o eu social é
simultaneamente o espaço do eu natural, onde a configuração da intimidade rege o mundo poético.
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Mas um dia... se a nodoa da existencia
Murchar teu calice orvalhoso e cheio,
Flôr que não respirei, que amei sonhando,
Tem saudades de mim, que eu te pranteio!
(opus cit., p. 39-42)
A Primeira Parte da Lyra  em que permanece o tom melancólico na expressão de
um amor não correspondido  encerra com “Lembrança de morrer”, de que já se transcreveu
um fragmento. Como se tem mencionado, a Segunda Parte pretende, e tão-somente pretende,
superar a problemática amorosa e existencial da Primeira Parte. O eu-lírico tenta se enveredar
pela zombaria, com o intuito de rir-se de sua condição de mendigo do amor, de palhaço da
dor, e figuras semelhantes. Quanto à amada, ele se esforça em elaborar um discurso também
depreciativo, em que a donzela, ociosa e abastada, se transfigura, por exemplo, numa mulher
de cortiço, tendo ela mesma que lavar sua roupa:
É ella! é ella  murmurei tremendo,
E o éco ao longe murmurou  é ella!
Eu a vi minha fada aerea e pura 
A minha lavadeira na janella!
Dessas aguas furtadas onde eu mora
Eu as vejo estendendo no telhado
Os vestidos de chita, as saias brancas;
Eu a vejo e suspiro enamorado!
Esta noite eu ousei mais atrevido
Nas telhas que estalavam nos meus passos
Ir espiar seu venturoso sono,
Vêl-a mais bella de Morpheu nos braços!
Como dormia! que profundo sono!
Tinha a mão o ferro do engomado...
Como roncava maviosa e pura!...
Quasi caí na rua desmaiado!
Afastei a janella, entrei medroso:
Palpitava-lhe o seio adormecido...
Fui beijá-la... roubei do seio della
Um bilhete que estava ali metido...
[...]
É ella! é ella!  repeti tremendo;
Mas cantou nesse instante uma coruja...
Abri cioso a pagina secreta...
Oh meu Deus! era um rol de roupa suja!
(opus cit., p. 194-195)
Mas que imaginativo é esse mancebo! Diante da oportunidade de passar uma noite de
amores, ele se preocupa mais em zombar da mulher — existe uma verdade escamoteada por
trás da aparente jocosidade: ele a pintou diferente, mas é a mesma da Primeira Parte. Não
consegue, por si mesmo, maculá-la: precisa desesperadamente de seu consentimento. Sua
satisfação não está na consumação do ato sexual, mas na entrega da amada: a meta é
espiritual/simbólica, e não física.
Ainda que seja uma lavadeira, a cujo quarto o sujeito lírico concebe uma invasão,
esconde, atrás do seu estado, a sua essência: no seu estar lavadeira descansa o seu ser
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donzela, o que o impede de roubar-lhe o prazer sexual. No mesmo sentido, encontra-se o
soneto “A Lagartixa”, de “Spleen e Charutos”:
A lagartixa ao sol ardente vive
E fazendo verão o corpo espicha:
O clarão de teus olhos me dá vida,
Tu é o sol e sou a lagartixa.
Amo-te como o vinho e como o sono,
Tu és meu copo e amoroso leito...
Mas teu nectar de amor jàmais se esgota,
Travesseiro não ha como teu peito.
Posso agora viver: para corôas
Não preciso no prado colher flores;
Engrinaldo melhor a minha fronte
Nas rosas mais gentis de teus amores.
Vale todo um harem a minha bella,
Em fazer-me ditoso ela capricha...
Vivo ao sol de seus olhos namorados,
Como ao sol de verão a lagartixa.
(opus cit., p. 190)
O máximo a que chega sua ambição de construir novos amores é aludir muito
opacamente ao ato sexual com a comparação "Travesseiro não ha como teu peito" e com a
metáfora "Vale todo um harem a minha bella", a que se segue outra ousadia "Em fazer-me
ditoso ella capricha...". E apenas isto significa a consumação de um ato sexual, e ainda com
outra mulher? Explica Cilaine Alves que “para os românticos, de um modo geral, a
impossibilidade de concretização amorosa é um procedimento artístico que — retomado por
Goethe que o batizou de ‘eterno feminino’ — representa um ideal de perfeição que se
pretende alcançar” (ALVES, 1998: 83), mas não o alcançando já que se trata de uma
impossibilidade de concretização amorosa. Tal é um dos enganos que compõem o estudo
crítico tradicional da Lyra dos vinte annos: confiando em que o sujeito lírico alcançará sua
meta  desligar-se do problema amoroso  exposta no Prefácio da Segunda Parte, os
exegetas insistem num caráter conflituoso entre a Primeira e a Segunda Partes que jamais
existiu fora das pretensões do eu-lírico que aparece na Lyra: o desligamento emocional não se
consuma em momento algum; é apenas devaneio — por isso, a melancolia permanece.
Antonio Candido havia alertado sobre essa ambigüidade, na qual ele mesmo se confundiu ao
ver mais de uma mulher:
O sonho é nele tão forte quanto a realidade; os mundos imaginários,
tão atuantes quanto o mundo concreto; e a fantasia se torna
experiência mais viva que a experiência, podendo causar tanto
sofrimento quanto ela. (CANDIDO, 2000: II, 161b)
Todo esse discurso não passa da exposição de um grande devaneio, produzido por uma
mente altamente imaginativa e decididamente sonhadora: fantasias e desejos de um sujeito
lírico que não quer romper com sua única amada escolhida dentre as mulheres, sem cogitar
uma reformulação do juízo. Essa obstinação na esfera íntima encontrava semelhante postura
 mas não uma derivação  na problemática existencial (do em-si para o si-mesmo) e ou
social (do em-si para o em torno). Nas palavras de Elias Thomé Saliba:
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Para expressar este mundo fraturado, através do filtro da
sensibilidade individual, uma das formas preferidas foi o poema
lírico. Com ele seria possível, talvez, o gesto espontâneo, sublimador
e, sobretudo, livre para apreender os sentidos mais insondáveis e
sinistros de um mundo em movimento. Não por coincidência, vários
poetas, como Shelley e Byron, nas suas marginálias ou nos próprios
poemas, voltaram-se insistentemente para indagar da legitimidade
deste "grito de solitário" que é o poema lírico. [...] / [A forma lírica]
constituía, sobretudo, um caminho para o artista libertar-se daquilo
que vários autores chamaram de mimese do espelho e enveredar
pelos caminhos da invenção e da imaginação poéticas.(SALIBA,
2003: 47-48; 49)
Nesse sentido, a amada pode ser vista como uma alegoria que dá o negativo dessa
relação homem/mundo; e, por isso, trava-se a mesma fixação com os dois ícones. O próprio
eu-lírico confirma tudo isto ao expor a vivência do amante na Terceira Parte:
Se a vida é lyrio que a paixão desflora,
Meu lyrio virginal eu conservei;
Somente no passado tive sonhos
E outr'ora nunca amei!
(opus cit., p. 248)
ou a resumir sua experiência amorosa perfeitamente em dois versos:
Tu sorrias de mim por que não ouso
Leve turbar teu virginal repouso,
(opus cit., p. 257)
ou até mesmo em um único verso de ouro, como este:
E por te amar, por teu desdém  perdi-me...
(opus cit., p. 225)
Note-se que esse retraimento frente à amada, a mesma e única amada, é a única
justificativa para a castração do sujeito que permanece rígida, mesmo em cenas de grave
atmosfera libidinal, como nos poemas da lavadeira e da lagartixa, em que ele tenta uma
transfiguração do desdém, numa frágil e ineficiente máscara para a amada: a mulher mais
velha, a mulher da vida, a mulher plebéia. Para Antonio Candido, estas três se alinham sob o
signo da plebéia, em oposição à donzela (CANDIDO, 2000: II, 164a). Porém elas existem
somente no devaneio e, no fundo, representam a viabilização do encontro ou, em outras
palavras, a própria donzela, refundida numa imagem que permita o acesso, ainda que no
imaginário, ao objeto amado ao mesmo tempo distante, indiferente e supervalorizado. Em se
tratando de mulher, o sujeito só se prende a uma — é um melancólico 23. Hildon Rocha
também viu essa obsessão melancólica, responsável pela fusão das máscaras:
23
Esse enredo nada tem com o famoso binarismo “Amor e Medo”, proposto por Mário de Andrade. As três
máscaras aparecem como signos do sonho e do devaneio; por isso, a dinâmica é a da frustração em cada
investida à amada indiferente, e não o pretenso “medo de amar”. Eugênio Gomes, parece, foi quem pôs em
xeque esse ponto de vista: “Na verdade, Mário de Andrade absteve-se de verificar as relações do tema com os
românticos estrangeiros que, não sendo diferenciados ou indiferentes sexualmente, celebraram repetidas vêzes as
mulheres adormecidas. Musset e Byron estavam igualmente nessas linhas, e não se pode afirmar razoàvelmente
que nenhum dêles tivesse mêdo de amar ou de mulher...” (1953: 16). Eugênio Gomes esboçou, meio século antes,
a pesquisa de Cilaine Alves sobre “o eterno feminino” já citado neste ensaio.
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[havia as] amadas vistas ou sonhadas, que existiam em carne e osso,
e por ele adaptadas à moldura que lhes desenhava[...] Entre essas uma
existiu permanentemente no seu pensamento — uma ou duas, talvez,
por ser difícil saber se a loura e a morena eram diversas ou uma só.
(ROCHA, 1956: 46)
Esses caracteres não autorizam uma digressão  muito em voga, aliás  quanto ao
spleen de Álvares de Azevedo se dever à insipiência do primeiro processo de urbanização de
São Paulo, ou ao seu recalque em ser desprezado nos bailes juvenis. Simplesmente nos dizem,
e tão-somente isto, que o sujeito lírico percebido na Lyra dos vinte annos vive uma grande
problemática existencial estritamente inscrita no universo poético — ainda que o autor possa
ter recriado no espaço lírico sua experiência vivida (como em toda poesia) — ao se obstinar
na conquista de uma correspondência amorosa, depreciando a si à medida que não logra êxito
em sua meta. Tudo isto é uma patologia do espírito que configura um quadro melancólico,
assinalando um dos maiores problemas do Homem desde os tempos mais remotos: o amor;
mas não o amor em si  na verdade, a dificuldade de se lidar com este sentimento, quando se
está numa sociedade altamente castradora. Explica José Ortega y Gasset que o amor não
depende da cumplicidade do objeto amado, por isto mesmo se justifica a incansável saga do
sujeito em meio ao sofrimento por uma mulher que o despreza:
Pero no es menos cierto que el amor es a veces triste, triste como la
muerte, tormento soberano y mortal. Es más: el verdadero amor se
percibe mejor a sí mismo y, por decirlo así, se mide y calcula a sí
propio en el dolor y sufrimiento de que es capaz. La mujer
enamorada prefiere las angustias que el hombre amado le origina, a la
indolora indiferencia. (GASSET, 1973: 68)
Já se viu que esse é um dos sintomas do melancólico, como o é o sujeito lírico em
questão. A experimentação do amor como mérito — e não como subjugação, ainda esclarece
Gasset — nasceu de uma nova dinâmica da relação amorosa, trazendo consigo o direito de a
mulher escolher por quem se enamorar:
La mujer fue primeiro para el hombre una presa  un cuerpo que se
puede arrebatar . A esta emoción venatoria sucede un sentimiento
más delicado y de signo opuesto[.] Lo que en la mujer puede ser
botín y presa que se toma arrancada no satisface. Un mayor
refinamiento del hombre le hace desear que la presa sea por
espontánea impulsión. El botín de su feminidad, en rigor, no se posee
si no se gana. La presa se torna premio. [...] La actitud del varón [...]
se orienta desde lejos en el semblante femenino para sorprender en él
la aprobación o el desdén. (opus cit., p. 16)
No caso da Lyra dos vinte annos, a mulher escolhe o desdém, e a necessidade de o
sujeito ter seu consentimento leva-o a uma vida sofrida e amargurada, pois não deseja apenas
o prazer sexual e a subjugação, mas o amor da mulher em livre escolha. Ainda que essa
substancial mudança tenha ocorrido de modo a transformar a mentalidade dos agentes sociais,
na área sexual, há que se frisar a permanência da antiga organização familiar patriarcal na
história da Civilização Ocidental, levando a cabo a castração das relações humanas,
principalmente pelo estereótipo da mulher virgem e imaculada. Esse estereótipo não afeta só
as mulheres, pois os homens, inversamente estimulados a gozar quantos atos sexuais houver,
não encontram senão a frustração de todos os seus anseios  é o negativo da castração da
mulher. Não estranha a melancolia ocupar um lugar de destaque na fisionomia da sociedade
contemporânea (desde as mais longínquas organizações patriarcais). Ensinada desde sempre a
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entender o homem como ameaça à sua dignidade, a mulher, no extremo de seu quadro
histérico, rejeita a priori o pretendente, i.e., o amante (ser que ama). Por outro lado, o
mancebo, diante dessa paradoxal diferença entre sua formação moral (com todos seus valores
e conceitos elaborados a partir de parâmetros sociais) e a realização das promessas e até das
obrigações fomentadas pela própria sociedade que o educa — como o sucesso entre as
mulheres —, facilmente passa por uma experiência de choque, em que esse conflito, nascido
no âmago de sua revolta, só o deixa mais colérico por ser a prova definitiva que tudo foi
cuidadosamente arquitetado para sua derrota.
Apesar de o eu-lírico discursar sobre relações com "outras" mulheres (três máscaras
para a mesma amada), em versos como estes:
Mesmo nas horas de um amor insano,
Quando em meus braços outro seio ardia,
A tua imagem pallida passando
A minh'alma perdia.
(opus cit., p. 257)
Oh! não maldigam o mancebo exhausto
Que nas orgias gastou o peito insano,
Que foi ao lupanar pedir um leito
Onde a sêde febril lhe adormecesse!
(opus cit., p. 283)
o que confirma a falsidade dessa imagem, representando a mesma donzela amada, são os
versos seguintes que desmentem todas as aventuras e flertes desse sujeito delirante e ratificam
a obsessão nessa amada da qual ele nunca se libertou:
Só por teus olhos eu viver podia
E por teu coração amar e crer,
Em teus braços minh'alma unir à tua
E em teu seio morrer!
(opus cit., p. 238)
E se a vida é lyrio que a paixão desflora,
Meu lyrio virginal eu conservei;
Somente no passado tive sonhos
E outr'ora nunca amei!
(opus cit., p. 248)
O que eu sonho noite e dia,
O que me dá poesia
E me torna a vida bella,
O que num brando roçar
Faz meu peito se agitar,
É o teu seio, donzella!
(opus cit., p. 249)
Misérrimo! votei meus pobres dias
À sina doida de um amor sem fructo,
(opus cit., p. 285)
Nesse sentido, a obra de Álvares de Azevedo, claro está, apresenta um discurso
verdadeiro e outro falso: ao primeiro corresponde a resignação por não realizar sua relação
amorosa (é o relato do sofrimento); o segundo se compõem de todos os delírios, devaneios e
ilusões a que o sujeito se permite entregar para "fabricar" uma realidade/ "construir" uma fuga
que amenize os pesares de um amante rejeitado (é a fantasia de êxtases libidinosos). A
vontade de desconstruir a imagem da sublime amada e do desconsolado amante se justifica,
por exemplo, pela dialética entre amor e ódio. Embora muito parecidos, e mesmo antagônicos,
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esses sentimentos explodem em razão de uma mesma pessoa: o objeto amado. Por isso,
Gasset ensina:
Ambos [los sentimientos] poseen la misma dirección[...]; pero dentro
de esa única dirección llevan distinto sentido, opuesta intención. En
el odio [...] se va contra él [objeto]; su sentido es negativo. En el
amor [...] se va en su pro. / [...] El amor y el odio actúan
constantemente; aquél envuelve ao objeto en una atmósfera
favorable, y es, de cerca o de lejos, caricia, halago, corroboración,
mimo, en suma. El odio lo envuelve, con no menor fuego, en una
atmósfera desfavorable; lo maleficia, lo agosta como un siroco
tórrido, lo destruye virtualmente, lo corroe. [...] Diremos, pues, que el
amor fluye en una cálida corroboración de lo amado y el odio segrega
una virulencia corrosiva. (opus cit., p. 72)
En cambio, el odio  a pesar de ir constantemente hacia lo odiado
 nos separa del objeto, en el mismo sentido simbólico; nos
mantiene a una radical distancia, abre un abismo. Amor es corazón
junto a corazón: concordia; odio es discordia, disensión metafísica,
absoluto no estar con lo odiado. (opus cit., p. 73)
O ódio levou o sujeito lírico a se desesperar na Segunda Parte, talvez como tentativa,
como já dito, de superar a problemática amorosa. Mas o amor foi mais forte, voltando na
Terceira Parte da Lyra, na qual se expõe, de forma honesta — apenas entrevisto nas outras
Partes — o território íntimo do sujeito como um inventário destemido e aberto, sincero e
penetrante. Aqui, os subterfúgios já muito fraquejam, dando espaço à confissão mais profunda
dos pensamentos e emoções. Parece que o eu-lírico sente a necessidade de evadir, sem
escamoteações desta vez, toda aquela experiência traumática com a amada. Já cansado e
rendido, o amante opta por reconhecer seu fracasso e seu devaneio, este como fuga daquela
frustração de amor tão avassaladora.
Na Terceira Parte, o eu-lírico denuncia um sujeito consciente sobre esse discurso
mentiroso, que o levava ao devaneio, a um mundo de sonhos que não existia senão em sua
imaginação, para atenuar seu sofrimento por uma amada que não corresponde a seus afetos;
mesmo assim, prefere entregar-se a esse modus vivendi da loucura, que eriça o caráter
patológico dominante em toda a obra. É o que se lê nos fragmentos abaixo:
Agora vivo no deserto d'alma.
Um mundo de saudade aí dormita.
Não o quero acordar... oh! não resurjam
Aquellas sombras na minh'alma afflicta!
(opus cit., p. 229)
Quando a vida nas dores é morta,
Ter amores nos sonhos é crime?
É loucura: eu o sei! mas que importa?
(opus cit., p. 262)
De fato, é um sujeito lírico que cada vez mais perde a linha divisória entre a loucura e
a sanidade, entre a ilusão e a realidade. Por outro ângulo de análise, ao continuar com aquela
velha mentira de deslocar algo que nunca aconteceu  o aceite da amada sobre a relação
amorosa ou a consumação carnal dessa relação (para que exista o término a que ele sempre se
refere)  para o tempo passado, agora crê plenamente num retorno de alguém que nunca
esteve ao seu lado:
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Ah! volta, inda uma vez! foi só contigo
Que à noite, de ventura eu desmaiava,
E só nos labios teus eu me embebia
De volúpias divinas!
(opus cit., p. 234)
E tu, imagem,
Ilusão de mulher, querido sonho,
Na hora derradeira, vem sentar-te,
Pensativa, saudosa no meu leito!
(opus cit., p. 244)
Quando a primeira vez, da minha terra
Deixei as noites de amoroso encanto,
A minha doce amante suspirando
Volveu-me os olhos umidos de pranto.
(opus cit., p. 246)
Como pode falar de saudade se nunca houve um momento a dois? O eu-lírico prefere
acreditar na mentira que conta a si mesmo. Afinal, ser Romeu sem Julieta  não por estar
morta (somente), mas por ela nunca o ter querido  é um drástico castigo do Infortúnio.
Nessa densa atmosfera melancólica, a pulsão de morte termina por prevalecer e impelir o
sujeito desejante ao suicídio ou ao homicídio de sua amada: ambas as fatalidades acontecem,
e eles perpetuam uma relação problemática entre ilusões de vida e consciência da morte. A
pulsão de morte que impele ao suicídio ou ao homicídio da amada é amplamente verificável
nos temas mortuários, em que a tradição do mal-do-século sobrevém com mais intensidade 
como é o caso de “Soneto (já da morte o pallor me cobre o rosto)”, ou “Um cadáver de
poeta”, em cuja estrofe a seguir se percebe nitidamente o eu-lírico delatando a morte do
sujeito:
De tanta inspiração e tanta vida
Que os nervos convulsivos inflammava
E ardia sem conforto...
O que resta? Uma sombra esvaecida,
Um triste que sem mãe agonizava...
Resta um poeta morto!
(opus cit., p. 130)
Do mesmo modo, no poema “Virgem Morta”, vê-se indubitavelmente a morte da
amada:
É tarde! E quando o peito estremecia
Sentir-me abandonado e moribundo!
É tarde! É tarde! Ó ilusões da vida,
Morreu com ela da esperança o mundo!...
No leito virginal de minha noiva
Quero, nas sombras do verão da vida,
Prantear os meus unicos amores,
Das minhas noites a visão perdida!
(opus cit., p. 104)
A Lyra dos vinte annos é a saga de um amante sofrido pela indiferença do objeto
amado, infestada, portanto, de melancolia. No final, percebe-se que o sujeito lírico escolhe a
morte, confirmando todas as inclinações melancólicas. É amor da forma mais intensa e
sublime. A problemática de superar a frustração amorosa é mero aspecto da melancolia, que
transbordante, eterniza esse amor de mão única: do sujeito para a amada, e nunca da amada
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para o sujeito. Amor que supera a morte, pois quantas vezes os amantes morreram na beira da
insanidade tristemente enunciada?
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VC TB ESCREVE AXIM?
UMA ANÁLISE DO LÉXICO NOS BLOGS DE ADOLESCENTES
Carmen Pimentel
Doutoranda em Língua Portuguesa UERJ
Resumo: Das diversas formas de escrita que existem na Internet, o blog merece especial
atenção por ser, hoje em dia, bastante utilizado por milhares de jovens e adultos do mundo
inteiro. Os meios eletrônicos fazem uso intenso da escrita, mas uma escrita com
características específicas. A escrita dos blogs por adolescentes apresenta algumas variantes
pertinentes ao meio – abreviações, símbolos, excesso de pontuação, estruturas sintáticas e
maneiras de usar a língua de forma econômica. Uma escrita sem a preocupação da
formalidade gramatical, uma escrita menos monitorada e, portanto, mais livre nos aspectos
morfológicos e lexicais, apresenta, nesse meio virtual, uma relação mais contundente com a
oralidade. Levando-se em conta que a língua é uma atividade social e, portanto, modifica-se
de acordo com os contextos de uso, a escrita dos blogs pode ser considerada como uma
variedade lingüística. Cabe aqui um levantamento do léxico utilizado nos blogs para uma
análise do possível dialeto da Internet – a escrita eletrônica.
Palavras-chave: escrita eletrônica, dialeto da internet, blog
Abstract: In the several writing ways that exist in the Internet, the blog deserves special
attention for being, nowadays, quite used by thousands of youths and adults of the whole
world. The electronic ways make intense use of the writing, but a writing with specific
characteristics. The writing of the blogs for adolescents presents some pertinent variants to the
middle abbreviations, symbols, punctuation excess, syntactic and manageable structures of
using the language in an economical way. A writing without the concern of the grammatical
formality, a writing less monitored and, therefore, freer in the morphologic and lexical
aspects, it presents, in that virtual way, a more contusing relationship with the orality. Being
taken into account that the language is a social activity and, therefore, he/she modifies in
agreement with the use contexts, the writing of the blogs can be considered as a linguistic
variety. He/she fits a rising of the lexicon here used in the blogs for an analysis of the possible
dialect of the Internet the electronic writing.
Key-words: electronic writing, internet dialet, weblog
Introdução
Com as novas tecnologias da informação, muitas pessoas estão cada vez mais
utilizando a Internet para se comunicar. Através de e-mails, blogs, orkut e chats 24, podem-se
contatar pessoas de qualquer parte do mundo para trocar correspondência, conversar,
pesquisar, estudar, informar-se. O que mais chama a atenção é o intenso uso da escrita nesses
meios eletrônicos, mas uma escrita com características específicas, próprias. Com a Internet, a
24
E-mail, blog, orkut e chat são ferramentas existentes na Internet para promover a comunicação entre pessoas
do mundo inteiro. As três primeiras são assíncronas, funcionam como um correio eletrônico, em que se escreve
uma mensagem e só se recebe a resposta em um outro momento. Já o chat (ou bate-papo) é síncrono: escreve-se
a mensagem e obtém-se a resposta no mesmo instante, como numa conversa telefônica.
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escrita ganha um novo espaço, mas com algumas variantes pertinentes a esse meio –
abreviações, símbolos e maneiras de usar a língua de forma econômica devido à fluidez do
meio. Surge um novo jargão? Uma nova variação lingüística? Mattoso Câmara Jr. (1980:27)
diz que a língua é, de maneira geral, coletiva; mas cada um de nós tem certas peculiaridades
lingüísticas, ou pelo menos preferências, e há assim, de certo modo, múltiplas línguas
individuais, ou idioletos (...). O estilo é em princípio, individual, (...) mas os traços estilísticos
coincidem, em grande parte, nos indivíduos de uma sociedade lingüística (...). Então nesse
meio eletrônico estaria surgindo uma sociedade lingüística com suas peculiaridades ou seria
apenas uma transcrição da linguagem oral para a escrita sem a preocupação da formalidade
gramatical?
Como a língua é utilizada na Internet numa relação mais íntima com a oralidade, a
preocupação com a correção diminui e em muitos casos encontraremos textos com
vocabulário mais relaxado e estruturas gramaticais inadequadas à norma culta. Os blogs
utilizam uma escrita menos monitorada e, portanto, mais livre nos aspectos morfológicos e
lexicais. Existe aqui, portanto, uma relação mais contundente entre a oralidade e a escrita.
Analisar o uso da linguagem e termos específicos para verificar a provável formação
de uma gíria para esse meio é um dos objetivos desse trabalho. Como o aprimoramento da
Língua acontece a partir do momento em que se deseja transmitir informações e se quer ter a
certeza de que o interlocutor compreenderá a mensagem, mais um uso da Língua Portuguesa
se faz presente: o possível dialeto da Internet ou uma escrita eletrônica. Cabe aqui estabelecer
relações entre a oralidade e a escrita, entre a língua culta e a coloquial e entre texto escrito no
papel e texto escrito no meio digital.
Blogs
Blogs são diários eletrônicos ou diários virtuais divulgados na Internet. O termo é uma
corruptela de WEBLOG (WEB – a rede de computadores mundial – e LOG – tipo de diário
de bordo). É como se fossem sites com temas específicos e desenvolvidos por qualquer pessoa
que tenha algo a contar. Utilizam o texto escrito como base, mas permitem outras mídias
como som, imagens, pequenos vídeos. São, portanto, eventos multimídia.
O que os diferencia dos diários “de papel” é que estes não foram feitos para serem
lidos por qualquer pessoa, pois funcionam como um amigo confidente e muitas vezes
carregam chaves para que fiquem fora do alcance de leitores indesejados. Só chegam à
publicação os autorizados para isso. Já aqueles são publicados na Internet pelo próprio autor,
para que qualquer pessoa do mundo leia e comente. Isso faz com que os blogs tenham uma
característica distinta dos diários que é justamente o segredo. Na verdade, quem escreve
confidências ou intimidades em um blog, quer que todos saibam de seu segredo.
Qualquer blog possui uma entrada para receber comentários. Isso os torna interativos,
abertos à participação. Tais entradas permitem deixar breves anotações para o autor do blog,
possibilitando o exercício da argumentação. O leitor, então, passa a ter uma outra atividade no
processo – a de co-autor ou leitor participativo ou, ainda, leitor/autor.
Os blogs apareceram no final dos anos 90 e hoje em dia, acredita-se, já existe um
milhão de blogueiros (escreventes de blogs) espalhados pelo mundo. Aliás, essa é uma das
características dos blogs – muitos não têm nem a identificação de onde são. A idéia é trocar
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informações e divulgar opinião e sentimentos, não importando muito quem ou de onde é o
autor. Forma-se aí uma grande rede social de divulgação de saberes.
Existem muitos blogs feitos por adolescentes que relatam suas experiências diárias
como as noitadas com a turma, quem ficou com quem, filmes a que assistiram, seus
relacionamentos com os pais etc. Também existem blogs criados por jornalistas, escritores,
religiosos, políticos etc. O objetivo de todos, no entanto, é o mesmo – divulgar idéias através
da produção textual para que o mundo todo tenha acesso. O que os diferencia é a linguagem:
dos adolescentes, informal; os outros, mais cuidada.
Devido às suas características – poder ser sempre atualizado; ter facilidade de
utilização; a publicação de textos é sem limite de tamanho; permitir o armazenamento de
várias versões; para cada texto publicado há espaço para comentários de outras pessoas
(interatividade) 25; é disponível a todos (livro aberto), entre outras – os blogs podem ser
utilizados no contexto educacional. Permitem a troca entre grupos, a organização de
conteúdos, o exercício da argumentação, a participação de vários alunos sem restrições
(timidez, tempo, número de alunos), a elaboração de projetos com acréscimo de diferentes
mídias, entre outras possibilidades. Esses blogs permitem aos estudantes produzir informação
a partir de suas próprias conclusões, motivando-os e valorizando seu trabalho.
A escrita na Internet
A comunicação só acontece porque existe uma espécie de acordo entre os
componentes de um grupo para utilizarem determinada variedade lingüística. É o caso da
Internet. Os usuários de blogues (principalmente os adolescentes) optaram por uma forma de
escrita com características próprias e passaram a se comunicar através dela. Pode-se chamar
esse fenômeno de linguagem digital ou virtual ou, ainda, eletrônica.
Para Minchillo e Cabral (1994, prefácio), escrever é uma constante e difícil procura
da situação certa, da palavra adequada, da idéia atraente. (...) Não existem regras, mas
existem recursos que, bem trabalhados, resultam numa narrativa interessante. A partir dessa
idéia dos autores, de que para escrever é necessário que haja um conjunto de recursos que
resultarão em um texto interessante, é que irei à busca desses recursos que os escritores de
blogues 26 utilizam para sua produção escrita na Internet.
Primeiramente abordarei a questão da criação de comunidades virtuais que surgem em
torno de um blogue. Isso pode justificar o uso da linguagem adotada pelos jovens. Depois,
uma análise das marcas de oralidade que aparecem nos textos dos blogues; e, a seguir, os
neologismos e abreviações provenientes da escrita eletrônica. Por fim, será feita uma breve
discussão a respeito de alguns termos utilizados nesse meio em função do teclado ou de
programas de computador que não suportam til, acentos e cedilha.
As comunidades virtuais
Esse meio de comunicação – o blogue – favorece a criação de comunidades virtuais, já
que reúne pessoas de diferentes lugares e culturas para discutirem sobre assuntos de comum
25
Para ver a estrutura de um blog pessoal: http://berinjelavoadora.blig.ig.com.br/ ; de um blog jornalístico:
http://noblat.blig.ig.com.br/ ; e de um blog educacional: http://fisica2cec.blogspot.com/
26
A partir de agora, não mais utilizarei o itálico para marcar essa palavra nem seus derivados, visto que ela já se
encontra adaptada à estrutura da língua, portanto aportuguesada (ou “abrasileirada”).
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interesse. Para Marcuschi (2004:22), uma comunidade é uma coleção de membros com
relacionamentos interpessoais de confiança e reciprocidade, partilha de valores e práticas
sociais com produção, distribuição e uso de bens coletivos num sistema de relações
duradouras. Se transferirmos essa definição para o ambiente dos blogues, teremos como
membros os usuários (autor e leitores), a produção é o próprio texto escrito coletivamente; e,
como os blogues estão na Internet desde o final dos anos 90, já poderíamos considerá-los
duradouros.
Comunidades virtuais são grupos que surgem dentro do espaço virtual – a Internet, por
exemplo – e que mantêm uma rede de informações e afinidades. As comunidades virtuais
criaram novas formas de sociabilidade em que está presente a sensação de pertencimento. O
ambiente virtual passa a ser um novo local de interação social. No entanto, nem sempre
podemos considerar este tipo de ambiente (como os chats, blogues, listas de discussão, sites)
como comunitário, pois seus membros usufruem do espaço virtual de duas maneiras
diferentes: (a) com uma permanência temporal e compartilhando do espírito comunitário ou
(b) sem nenhum vínculo afetivo ou temporal.
Para Rheingold (2000), é necessário que haja interesses compartilhados, sentimento
comunitário e perenidade nas relações para que se tenha uma comunidade virtual. É preciso
motivação para que uma comunidade continue com vigor e intensidade. Howard Rheingold
aponta também, como grande vantagem das comunidades virtuais, a possibilidade de se entrar
num assunto desejado imediatamente, através de tópicos armazenados na memória de
determinada comunidade mediada por computador.
É nesse sentido, de comunidade com permanência temporal, vínculo afetivo e
interesses compartilhados, que surge uma linguagem comum como motivação para que o
grupo continue a se “encontrar” com intensidade e continuidade. Seria uma espécie de pacto,
a criação desse dialeto 27 como uma marca desse grupo.
Se a linguagem utilizada pelos jovens nos blogues pode ser considerada um dialeto,
significa que ela tem características próprias, mas sem prejudicar ou interferir na compreensão
e na intercomunicação entre pessoas que falam a Língua Portuguesa. Podemos, então,
considerar esse dialeto como sendo um fenômeno social, pois utilizado por um determinado
grupo de pessoas, de certa faixa etária e condição social; e, também, como um fenômeno
geográfico, no sentido espacial da palavra, só que um espaço virtual.
A linguagem de um grupo fornece pistas a seu respeito: a que classe sócio-cultural
pertence, quais as características dos falantes ou escritores, como idade, sexo, nacionalidade
etc. Leite e Callou (2004:7) dizem que é na linguagem que se refletem a identificação e a
diferenciação de cada comunidade e também a inserção do indivíduo em diferentes
agrupamentos, estratos sociais, faixas etárias, gêneros, graus de escolaridade. Dessa forma,
o grupo que participa de um blogue usando um dialeto, diferencia-se do resto, criando uma
identidade própria.
Além disso, também podemos constatar que a linguagem dos blogues tem marcas fortes
de oralidade, pois é como se fosse a representação escrita de uma conversa, não presencial e
assíncrona, mas ainda uma expressão oral através do textual escrito. Mais uma vez fica
caracterizada a existência de um dialeto da Internet.
27
Usaremos aqui a definição do dicionário Houaiss para a palavra dialeto.
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As marcas de oralidade
A principal diferença entre a linguagem escrita e a linguagem oral está na situação de
interação. Na linguagem oral, os interlocutores estão face-a-face e fazem uso de recursos
entonacionais e gestuais, de sobreposição de vozes, de repetições, correções, entre outros
eventos. Na linguagem escrita, muitas vezes não se sabe nem quem vai ler o texto. Na escrita,
tem-se tempo para reelaborar o que se quer escrever, existe o cuidado com a gramática e as
escolhas lingüísticas. Preti (2004:18) afirma que a tendência, pois, é atendermos com mais
atenção às regras da gramática tradicional, embora o coloquial possa também fazer parte de
nosso estilo.
No caso dos blogues, os interlocutores se conhecem (ou não!), ou virtualmente ou
pessoalmente, mas não estão ao mesmo tempo no espaço da conversa. Cada um escreve sua
mensagem em momentos diferentes, mas com características de conversação. A escrita de um
texto por um interlocutor é comentada por outro que responde novamente – tudo
assincronamente. Por ter essa forma de conversa, o texto fica carregado de marcas de
oralidade.
No caso da Internet, em que seus textos apresentam características ora da fala ora da
escrita, não há preocupação mais intensa com a formalidade dos textos e o uso da língua culta.
Preti enumera estratégias conversacionais empregadas durante um diálogo. Algumas
delas podem ser observadas em um blogue 28. São elas a riqueza prosódica; as interrupções
sintáticas; a mudança de tópicos durante a conversação; hesitações; repetições e paráfrases;
parentéticas; a sobreposição de vozes; os marcadores conversacionais; períodos curtos; frases
incompletas; uso de gírias, entre outras (op.cit.:121,124).
Na observação da escrita virtual – de um blogue, por exemplo – percebe-se que há
uma transposição da língua falada para o texto escrito, pois não existe um planejamento
prévio nem elaboração da escrita, muito menos de reescrita com a finalidade de correção. A
impressão que se tem é que o autor pensa e escreve no mesmo momento, sem nenhum
distanciamento, quase como se fosse uma gravação de sua fala.
O que se pode concluir é que:
Não existe variante boa ou má, língua rica ou língua pobre, dialeto superior ou
inferior. O que ocorre é uma variabilidade na produção, muitas vezes determinada
por fatores sociais, que não é exclusiva de uma língua, é universal e inerente a
todas. (Leite e Callou [2004:7])
Por isso a linguagem usada pelos adolescentes em blogues, ou em outros ambientes da
Internet, não deve ser considerada como “cheia de erros” ou como um “empobrecimento da
língua”, mas sim como mais uma variante da língua portuguesa e, pelo contrário, rica em
criatividade. O importante é que se compreenda que esse tipo de variante é pertinente ao meio
eletrônico e tão somente a ele, devendo ter-se o cuidado de não fazer uso dessa linguagem em
outras situações de comunicação.
Ainda como marcas de oralidade, os blogues apresentam símbolos, pontuação
excessiva, gírias e neologismos. Estes últimos criados, muitas vezes, especificamente para o
meio.
28
Ver o blogue de Aléxis, mais adiante.
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Os símbolos também são conhecidos como emoticons (do inglês emotion + icons –
ícones que exprimem emoção) e são, geralmente, representados por carinhas que mostram os
sentimentos do autor. Elas são confeccionadas com o próprio teclado, apesar de hoje em dia já
se tê-las disponíveis para inserir no texto com seu formato definitivo 29.
A pontuação expressiva é muito utilizada nos textos de blogues. Como ferramenta de
representação do gestual e da entonação, o uso de exclamações, interrogações e reticências é
bastante enfático. Outros recursos também muito aproveitados pelos escritores de blogues é a
letra maiúscula e a repetição de letras, que funcionam como uma alteração de voz, um grito
ou uma ênfase na sílaba ou palavra. No exemplo abaixo, podemos observar esses recursos e
sua utilização:
Terça-feira, Maio 03, 2005
ATENÇÃO!!!
É com prazer que hoje inauguramos a nova sessão do nosso blog. E com vocêêêêês...
TÃNÃNÃÃÃÃÃÃÃÃ...
- O LIVRO DE RECEITAS DO CHEF JOSÉ FRANCISCO (TAMBÉM CONHECIDO
COMO MEU PAI)
Receita de Hoje:
- PIPOCA DE MICROONDAS –
(...) Já em casa, retire a embalagem externa (para que o pacote possa
"estuuUUUUFFAAAARRRR", enquanto as sementes de milho explodem dentro da
embalagem interna!)
(Recolhido do blogue: http://www.eeepa.blogger.com.br/ em 18/05/2005 - trechos)
(Luciana Farias tem 16 anos (em 2005) e utiliza seu blog de diversas maneiras: para contar
fatos ocorridos no dia-a-dia, transcreve diálogos que teve com as pessoas envolvidas, ou
faz pequenas narrativas de suas lembranças. Também gosta de dar dicas sobre como fazer
a mala, tirar dúvidas de informática, o que fazer com trabalhos urgentes, receitas, entre
outras. Lu não escreve com abreviações, mas usa bastantes onomatopéias.)
Neologismos
O acervo lexical de uma língua viva está sempre se renovando. No caso da língua
portuguesa, atualmente, as maiores contribuições são de língua inglesa. Um dos motivos é o
grande uso de equipamentos de informática, que, junto com a importação, trazem consigo
vários termos específicos que são rapidamente incorporados e, em alguns casos,
abrasileirados.
Alves (2004) apresenta uma série de tipos de neologismos que servirão de base para
guiar a análise dos vocábulos utilizados pelos adolescentes em seus blogues. Os neologismos
podem ser fonológicos, sintáticos, semânticos, por conversão, por empréstimo, além de outros
processos.
O grande desafio é determinar em que categoria alocar os termos criados pelos
usuários dos blogues. Poderíamos considerar os termos vc (você), tb (também), blz (beleza),
bjs (beijos) como neologismos fonológicos, que sofreram transformações ao nível do
29
Algumas delas a título de ilustração: :-)  ;-) :-(  É preciso olhá-las de lado. O próprio editor de textos ou de e-mails já faz a
transformação para o formato de carinha (como nesses dois casos).
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significante, mas sem impedir que o leitor os compreenda adequadamente. Também
poderíamos colocá-los no grupo dos neologismos sintáticos – da composição por siglas, ou
acronímica –, em que o sintagma é reduzido de modo a tornar-se mais simples e mais eficaz
no processo da comunicação (op.cit.:56), ao que a autora denomina economia discursiva.
Ainda no caso de neologismo fonológico, existe o tipo transformação gráfica, e
podemos incluir aí as palavras akele (aquele), nkela (naquela), mew (meu), nunk (nunca), em
que o grupo qu e o grupo ca foram substituídos pela letra k. Aquele por economia, este
porque a letra k tem som equivalente a ca, o que também resulta em economia de escrita.
As onomatopéias também são muito utilizadas nos blogues. Como a intenção do autor
é reproduzir a fala, a conversa, esse recurso é bastante usual. Para indicar que o autor está
rindo, o recurso é rsrsrs (para risos), hahaha (para uma gargalhada), hehehe (para um sorriso
maroto).
Nos vocábulos giriáticos, criados com a intenção de dificultar a compreensão por
parte daqueles que não integram um determinado grupo, a neologia é muito produtiva
(op.cit.:65). Este é o caso das palavras que surgiram a partir da unidade lexical blogue: blogar,
blogueiro, blogagem. Estas novas palavras entraram para o vocabulário do usuário de blogues
pelo processo de estrangeirismo integrado à língua receptora. Há aqui uma adaptação gráfica
e morfológica.
Como neologismo sintático, muitas palavras que entraram na língua portuguesa pelo
processo de estrangeirismo, passaram a incorporar o sufixo verbal ar, colocado nas palavras
que já sofreram adaptação do inglês para o português, como em blogar, postar e linkar.
Galli (2004:127) diz que a linguagem virtual possibilita ao indivíduo participar e
inteirar-se dos acontecimentos sociais e universais, visto que ele está em contato com uma
linguagem globalizada, conhecida também por culturas diversas. A utilização da Internet
acabou por produzir uma linguagem própria entre seus usuários, repleta de termos específicos
que têm como finalidade facilitar a comunicação e agilizar o processo de interação.
Programas e teclados
Com base em pesquisa feita com jovens e adultos usuários de computadores e de
Internet, consegui algumas justificativas para essa escrita tão peculiar dos blogues (e de outros
meios de interação virtual). Dos mais velhos, a informação colhida trazia a explicação sobre
os primeiros programas de computador desenvolvidos para a troca de e-mails. Lá pelos fins da
década de 80, trocavam-se os primeiros e-mails, através de programas sem interface gráfica e
sem recursos que permitissem o uso de acentos, cedilha ou til nas palavras.
Esses programas eram em inglês, importados e ainda não traduzidos para a nossa
língua. Como na Língua Inglesa não há palavras com essas marcas lingüísticas, o programa
não havia sido preparado para elas. A solução foi encontrar meios para grafar as palavras de
maneira que não gerasse dúvida no leitor. É claro que, em muitos casos, o que aconteceu foi
um processo de hipercorreção, pois essa dúvida certamente não existiria já que todos os
usuários tinham consciência do que se passava.
Aliado a isso, ainda havia a falta de algumas teclas e a disposição delas no teclado.
Como este era americano, a tecla ç, por exemplo, não existia nos primeiros teclados
importados ou fabricados aqui, mas ainda como cópias dos originais. Para digitar essa letra,
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era preciso teclar aspa simples (pois também não existia a tecla de acento agudo) e depois a
letra c. Cabe aqui observar que os usuários muitas vezes não encontravam as teclas no teclado
e desistiam de digitar acentos. Mas também havia o problema do programa de computador,
que simplesmente não reconhecia acentos e cedilha e transformava essas marcas em símbolos
ininteligíveis, atrapalhando a leitura e a compreensão do texto. A saída foi buscar alternativas.
A falta de possibilidade de acentuar as palavras fez com que se usasse a letra h para
mostrar que ali deveria haver um acento agudo: eh (é), soh (só), neh (né).
Por economia de digitação e/ou de tempo, alguns blogueiros adotaram a escrita da
palavra não, por exemplo, na forma naum. Se analisarmos o teclado do tipo americano, que
era o mais utilizado, era necessário digitar as teclas n-a-shift-til-o (cinco teclas) para escrever
não. A forma naum só usa quatro teclas.
Essas são as explicações que recebi ao perguntar para jovens e adultos sobre o porquê
da escrita de blogues e de outros meios de comunicação na Internet serem dessa maneira
abreviada, econômica e tão peculiar. No próximo capítulo reproduzo um trecho de um blogue
em que todos esses termos aparecem. Além disso, ainda aponto para outras características
desses tipos de textos.
•
Estudo de caso – O blogue de Alexis
Esse blogue representa como é a escrita na maioria dos blogues de adolescentes na
Internet. Vários outros foram analisados e muitos deles utilizam esses termos abreviados, as
formas de expressão com pontuação exagerada, as marcas de oralidade etc., como veremos:
Nome:Alexis
Idade:16 em 2004 (SP)
http://www.arekisu.blogger.com.br/ (já não está mais atualizando porque criou um outro
novo) - trecho
Dani:...qtas brigas bestas...qse dexo de falar com vc q eu gosto tanto...desde akele
feeesta da pontes....foi mto bom ter ido nkela festa, ter robado seu breguetin e emprestado
meu palito pra vc...ainda bem q eu fui de bicao!hahaha...naum naum..gracas a voce consegui
convite pra festa..mew...conte sempre cmg linda...vc eh mto especial pra mim(taum
inteligente e esclerosada neh!hehehe)Bju!!!(nossa, vc me passando essa foto agora, vai
demorar dois anos hein..pelo menos a gnte fica conversando por mais tempo!)
Bom...sexta eu fui numa festa...de uma tal de Natalia(faze oq...num conheco!) Soh
consegui convite gracas a Dani(brigadao Dani!Te Adoro!)...para mim e pro Vitola....
O DJ era estiloso...fez uns remix la da hora..as vezes exagerava, mas blz...
e pros q duvidaram(Rugna, Denise e pirralha da perua q eu eskeci o nome) eu num fikei
bebado =] e nem sou bebado.....e nunk fikei beb....ah...essa parte pula
entao...acho q eh soh...
Flw pessu!
Análise do blogue de Aléxis:
Abreviações
qtas (quantas)
mto (muito)
oq (o que)
qse (quase)
cmg (comigo)
blz (beleza)
vc (você)
bju (beijo)
flw (falou)
q (que)
gnte (gente)
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Troca de letras
mew (meu)
nunk (nunca)
akele (aquele)
taum (tão)
pessu (pessoal)
Falta de letra/acento/til
dexo (deixo)
faze (fazer)
robado (roubado)
bicao (bicão)
entao (então)
bebado (bêbado)
nkela (naquela)
eskeci (esqueci)
num (não)
naum (não)
fikei (fiquei)
voce (você)
as vezes(às vezes)
brigadao(obrigado) la (lá)
O nome do blogue
O nome do blogue no endereço da Internet (arekisu) é uma brincadeira com a
pronúncia do nome do autor Aléxis, em que houve a troca do fonema /le/ por /re/ e o som da
letra x foi representado pelo grupo /kis/.
Algumas trocas fonéticas
u final é substituído por w em mew (meu)
que, qua – ou é abreviado para q ou é substituído pela letra k
ca também foi substituído por k
ão por aum
São os neologismos fonológicos citados anteriormente.
A evolução da palavra você
A palavra você já sofreu muitas mudanças ao longo dos tempos. Já foi Vossa Mercê,
vossemecê, vosmecê, você, ocê, até a forma cê na fala atual. Segundo o Dicionário Aurélio
Século XXI, existem cerca de 30 variações e formas paralelas no Brasil derivadas de Vossa
Mercê. A adotada pela informática é vc.
Abreviações
As abreviações geralmente se dão pela manutenção das consoantes – vc, tb, mto, cmg.
Isso nos remete à teoria de Emília Ferreiro e Ana Teberosky (1986) sobre a hipótese silábica
em que a criança, em fase de alfabetização, se encontra. A criança nesse nível utiliza as letras
com atribuição de valor sonoro, ora vogais ora consoantes, para representar as palavras.
As faltas
As cedilhas não aparecem – graças, conheço – novamente por uma questão de
economia. Para digitar a cedilha “gastam-se” tempo e teclas.
Substituição de acento agudo por h – eh, soh
Gírias
breguetin (breguetinho); bicao; remix la da hora; perua
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Importante ressaltar que o autor é de São Paulo, daí o uso de algumas expressões específicas
da região – “meu”, “breguete”. Apesar da linguagem coloquial e informal, o uso de palavras
como estiloso e esclerosada mostram um vocabulário um pouco mais apurado. No entanto,
essas palavras foram empregadas com sentido pejorativo.
Pontuação
Uso excessivo de reticências como marca de hesitação. Falta de vírgulas e de ponto
lógico mostram o descuido com as regras formais da língua e apontam para transcrição
imediata da fala, sem distanciamento ou preocupação com a correção e com reescrita. No
entanto, a opção pela pontuação expressiva demonstra que a preocupação está no nível da
expressividade e da entonação, ou seja, da representação da forma oral da língua.
Marcas de oralidade
Parentética, hesitação (reticências), interrupção (brigadao Dani), marcadores
conversacionais (bom... ah...), frases curtas, interrompidas. Muitas são essas marcas, o que
vem comprovar a idéia de que os textos na Internet procuram ser a reprodução de uma
conversa informal.
Gênero epistolar
Esse trecho corresponde ao registro de um dia, em resposta ao comentário de uma
amiga (Dani). O autor começa o trecho com uma saudação – o vocativo Dani – e escreve o
primeiro parágrafo para ela. O segundo parágrafo já é dirigido a um público mais geral e
pode-se perceber essa mudança de destinatário pela palavra Bom... e porque Dani é citada
como referência no texto. Mas o autor sabe que Dani está lendo, pois “conversa” com ela nos
parênteses. Ao final do texto, o autor se despede, não de Dani, para quem foi destinado o
primeiro trecho, mas para um público maior e genérico (“Flw pessu” – Falou, pessoal).
Percebe-se aqui nuances do gênero epistolar nas marcas de saudação e despedida, nas
conversas com o leitor, nas possíveis respostas que ele dá a esse destinatário. Mas,
novamente, o cuidado com a correção é deixado de lado. O autor não procura uma
uniformidade discursiva – o receptor varia como em uma conversa com mais de dois
interlocutores, em que ora nos dirigimos a um ora a outro. Quando isso é transcrito, como no
exemplo acima, temos a impressão de uma grande confusão, mas só para os mais
desavisados! Os jovens estão bastante acostumados com essa forma recortada de escrita e não
demonstram nenhum estranhamento na leitura desses textos.
A partir do blogue de Aléxis, podemos constatar que essa linguagem é bem específica
do meio em que é utilizada. De maneira geral, não apresenta dificuldade de entendimento,
mas causa estranhamento nas primeiras vezes em que se lê o texto. É claro que para o que se
destina – a comunicação entre jovens – sua função foi cumprida.
Conclusões
Essa linguagem dos blogues (e também de outros meios da Internet) tem sido
incorporada pelos jovens, e por adultos também, como forma de interagir socialmente e se
comunicar com pessoas de todo o país (e do mundo, pois esse fenômeno ocorre também em
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outras línguas). Isso parece se dar por necessidade de comunicação ou por imposição social:
um “modismo lingüístico”.
Esses termos e expressões já estão difundidos na linguagem do dia-a-dia. Bilhetes,
cartas familiares, anotações particulares já contêm abreviações e empréstimos utilizados
naturalmente, já que essa linguagem se constrói a partir da língua comum com pequenas
adaptações.
Transferência para o dia-a-dia
Muitos pais e professores estão preocupados com a escrita eletrônica. Acreditam que
seus filhos e alunos estão desaprendendo o Português com o uso cada vez mais intensificado
da Internet e seus meios de comunicação. Isso não tem fundamento, de maneira geral. A
maioria dos adolescentes não trocou a escrita formal pela escrita da Internet. Pelas entrevistas
que tenho feito, eles sabem que cada variante lingüística tem seu espaço para se manifestar.
Um ou outro admitiu deixar “escapar” um vc ou um tb de vez em quando numa redação
escolar. Mas, no geral, eles se policiam e procuram não misturar as situações. Cabe também
aos professores e aos pais alertar os jovens sobre essa variação dialetal da língua e orientá-los
quanto ao uso correto de cada uma.
A escrita internetês na Tv
Essa escrita, que já está ficando conhecida como internetês, apareceu agora na Tv. O
canal de televisão pago Telecine (NET) agora tem uma sessão de filmes legendados com essa
linguagem. Uma vez por semana, um filme de interesse do público jovem é transmitido com
legendas em internetês. Essas legendas são escritas por jovens que “traduzem” a legenda em
português para essa linguagem. Segundo reportagem do jornal Folha de São Paulo 30, o canal
de Tv decidiu por essa alternativa por considerar que os jovens já não assistiam mais a filmes
nem programas da Tv, preferindo ficar no computador em salas de bate-papo ou navegando
pela Internet. A solução foi usar a linguagem deles na Tv.
O dialeto da Internet, representada aqui pelos blogues, mostrou-se dominando vários
espaços da sociedade. Isso faz com que pensemos sobre a utilização da língua como meio de
comunicação e de socialização, principalmente quando disseminada por um meio tão amplo
de divulgação.
Referências bibliográficas
ALVES, Ieda Maria. Neologismo: criação lexical. 2ª ed. SP: Ática, 2004.
CÂMARA Jr, Joaquim Mattoso. Princípios de lingüística geral. 6ª ed. RJ: Padrão Livraria
Editora, 1980.
Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Versão 1.0. RJ: Objetiva, dezembro de
2001.
FERREIRO, Emília & TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre:
Artmed, 1986.
GALLI, Fernanda Correia Silveira. Linguagem da Internet: um meio de comunicação
global.In: MARCUSCHI, L. A. & XAVIER, A. C. S. (orgs.). Hipertexto e gêneros digitais:
novasformas de construção do sentido. RJ: Lucerna, 2004.
30
Canal exibe filme para jovens em "internetês" (Folha de São Paulo - Cotidiano - 24/4/2005)
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SOBRE O DISCURSO ANTI-MANICOMIAL
Cristine Gorski Severo
Doutoranda em Lingüística-Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC
Resumo: Objetiva-se nesse artigo abordar o discurso anti-manicomial. Para tanto, é feito,
primeiramente, um breve resgate histórico das condições de surgimento do movimento antimanicomial. Em seguida, são expostas as principais características do discurso antimanicomial. Na seqüência, pretende-se localizar esse discurso em uma mesma estratégia
política discursiva que engloba o discurso médico/ científico. Conclui-se que o discurso antimanicomial, com seu caráter humanizador, também se configura com características
racionalizadoras semelhantes às daqueles discursos que critica.
Abstract: This article is about the anti-asylum discourse. First, it is considered some
historical aspects that made it possible the emergence of the anti-asylum movement. Second,
some characteristics of the anti-asylum discourse are exposed. Third, this discourse is located
into a political strategy that also involves the medical/ scientific discourse. Finally, it is
concluded that the anti-asylum discourse, that intends to humanize, is also formed by the
same rational characteristics of those discourses that the anti-asylum discourse criticizes.
Key-words: anti-asylum discourse; medical discourse; political strategy.
Introdução
Este artigo trata do discurso anti-manicomial, que caracteriza o movimento antimanicomial. Sucintamente, esse movimento busca a reforma psiquiátrica: “um processo
histórico de formulação crítica e prática, que tem como objetivos e estratégias o
questionamento e a elaboração de propostas de transformação do modelo clássico e do
paradigma da psiquiatria” (AMARANTE, 1995, p. 87). No Brasil, essa proposta se fortaleceu
após os anos 70 com o surgimento do MTSM – Movimento dos Trabalhadores em Saúde
Mental, que abre “um amplo leque de denúncias e acusações ao governo militar,
principalmente sobre o sistema nacional de assistência psiquiátrica, que inclui torturas,
corrupções e fraudes” (Ibid., p.90). Dos diferentes movimentos de reforma psiquiátrica que
estavam acontecendo em outros países, o MTSM incorporou em suas reivindicações os
princípios do movimento internacional marcado por nomes como o de Franco Basaglia (da
psiquiatria democrática italiana) e de David Cooper (da antipsiquiatria) (cf. AMARANTE,
1995).
Um dos maiores ganhos do movimento, no Brasil, ocorreu em abril de 2001, com a
aprovação da Lei Paulo Delgado (Lei Federal no 10.216) que sanciona o fechamento dos
manicômios e que visa à criação de serviços substitutivos de base comunitária, cadastrados
pelo Ministério da Saúde, que englobam Caps (Centro de Atenção Psicossocial), hospitais-dia
e noite, internação apenas em caso de crise do paciente em hospitais gerais, casas terapêuticas,
atendimentos psicológicos em casas de saúde etc.
O presente artigo se estrutura da seguinte maneira: primeiro é feito um breve histórico
do discurso anti-manicomial, a partir de reflexões sobre o surgimento da loucura e do asilo
como objetos de interesse científico. Em seguida, as questões abordadas pelo discurso são
esmiuçadas em quatro críticas: uma de cunho político, outra de natureza sócio-econômico,
uma terceira que questiona as psicoterapias que tratam da loucura e uma última que aborda o
papel do médico. Por fim, o discurso anti-manicomial é localizado em uma estratégia mais
ampla de poder, da qual fazem parte os discursos médicos/ científicos/ racionalizantes.
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1. Breve histórico do discurso anti-manicomial
Neste artigo, julga-se importante, primeiramente, situar o leitor em relação às
condições que tornaram possível um discurso anti-manicomial e que dizem respeito,
primeiramente, ao surgimento do asilo e da loucura como objetos de estudos científicos, visto
que o alvo de crítica de tal discurso é, sobretudo, a loucura produzida como doença mental.
Segundo Foucault, foi a partir do século XIX que a ciência médica passou a “descobrir”
(produzir) a loucura como doença mental, ao lançar sobre ela um tipo específico de olhar, que
é o olhar disciplinador. Isso foi inicialmente possível a partir da configuração de um espaço
físico, o asilo, para o tratamento da doença mental. É dentro do asilo (manicômio) que a
loucura, ao ser produzida como objeto de saber pela ciência médica, recebe o estatuto de
doença, precisando, portanto, ser curada.
Assim, fazer um histórico da loucura tomada como objeto da ciência é, também, fazer
um histórico do nascimento do asilo, visto que o segundo criou condições de produção do
primeiro. Portanto, me remeto agora a Foucault, em sua descrição do nascimento do hospital
(FOUCAULT, 1999), para poder pensar o nascimento da loucura-doença.
1.1 O nascimento do asilo e da loucura
Foucault (1999c) mostra como antes do século XIX a loucura não era vista
separadamente da vagabundagem, dos doentes venéreos, dos devassos – todos formavam uma
massa heterogênea de perturbadores que, ao serem internados, eram excluídos da sociedade
no Hospital Geral 31.
Foi a partir do final do século XVIII e no início do século XIX que a loucura ganhou
privilégio e se homogeneizou – ela foi isolada e recebeu o rótulo de doença mental 32. Como
marco desse momento, Foucault cita o acontecimento mítico da liberação das correntes dos
presos de Bicêtre, por Pinel, para tornar a loucura, ao mesmo tempo, diferenciada e livre,
porém aprisionada pelos muros do grande asilo. Assim, segundo o autor, o asilo inicialmente
passou a ter a mesma função dos hospitais no fim do século XVIII 33: de “permitir a
descoberta da verdade da doença mental, afastar tudo aquilo que, no meio do doente, possa
mascara-la, confundi-la, dar-lhe formas aberrantes, alimentá-la e também estimulá-la” (1999b,
p.121).
O hospital no início do século XVIII é mais um local para morrer do que para curar: a
função do médico não estava atrelada ao hospital (aliás, a medicina enquanto prática científica
era individualista – não estava atrelada à instituição), mas a visitas privadas e ao trabalho
direto com o doente. “A cura era um jogo entre a natureza, a doença e o médico”
(FOUCAULT, 1999b, p.103). O hospital, um morredouro, estava nas mãos de religiosos e
31
O Hospital Geral era um “lugar de internamento, onde se justapõem e se misturam doentes, loucos, devassos,
prostitutas etc” (FOUCAULT, 1999b, p.102).
32
Na fala de Castel (1978, p. 83), é nesse momento que a “categoria da loucura se destaca, então, em sua
especificidade, decantada dessas cumplicidades ligadas pela universalidade da desgraça. E, dessa maneira, ela se
tornou doença”.
33
Na fala de Foucault (1999b, p. 121): “Qual poderá ser então o papel do asilo neste movimento de volta às
condutas regulares? Certamente ele terá de início a função que se confiava aos hospitais no fim do século
XVIII”.
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leigos que davam assistência aos pobres e aos que estavam para morrer; era um local,
portanto, que protegia a saúde da sociedade, excluindo os passíveis de contaminar outros com
doenças, e que servia de transição entre a vida e a morte.
Pois bem, se o hospital não tinha nenhuma relação com a prática médica, como se deu
então a medicalização do hospital? Segundo o autor, pela confluência de duas séries distintas:
I - Havia a necessidade de anular a propagação de doenças dentro do hospital para
evitar contaminação das cidades – nos hospitais marítimos, por exemplo, preocupavam-se
com as doenças epidêmicas que as pessoas podiam trazer ao desembarcar. Já a preocupação
do hospital militar girava em torno dos soldados, que passaram a ter maior valor devido à
preparação deles com o manejo do fuzil (a partir do século XVII) – não se podia dar ao luxo
de treinar os soldados e perdê-los: o preço do exército tornava-se mais custoso! Assim, a
reorganização desses dois hospitais se deu através da disciplina, ou seja, uma “nova maneira
de gerir os homens, controlar suas multiplicidades, utilizá-los ao máximo e majorar o efeito
útil de seu trabalho e sua atividade” (FOUCAULT, 1999b, p.105). E é justamente “a
introdução dos mecanismos disciplinares no espaço confuso do hospital que vai possibilitar
sua medicalização” (Ibid., p.107).
II - Por outro lado, concomitante ao processo de disciplinarização do espaço
hospitalar, descrito acima, houve o processo de transformação do saber médico –
disciplinarização do saber médico. Este se deu a partir de um deslocamento da atenção do
médico da doença/ cura do indivíduo (medicina da crise) para as condições do meio e a
constituição da doença como um fenômeno natural 34 e suscetível a influências externas
(medicina do meio). Essa concepção fazia com que o hospital possibilitasse o isolamento do
doente em instituição, pois o meio poderia “atrapalhar” a percepção médica do
desenvolvimento da doença, visto que a natureza da doença, “suas características essenciais,
seu desenvolvimento específico poderiam, enfim, pelo efeito da hospitalização, tornar-se
realidade” (FOUCAULT, 1999b, p.118).
Foi a partir dessas duas séries que se deu o nascimento do hospital. Os doentes passam
a ser distribuídos “em um espaço onde possam ser vigiados e onde seja registrado o que
acontece; ao mesmo tempo se modificará o ar que respiram, a temperatura do meio, a água
que bebem... de modo que o quadro hospitalar que os disciplina seja um instrumento de
modificação com função terapêutica” 35 (FOUCAULT, 1999b, p.108).
Essa disciplinarização trouxe os seguintes resultados: a) a localização do hospital
passou a ser alvo da medicina do espaço urbano – ele deve se localizar em um local cujo
ambiente seja propício para o tratamento; e a distribuição interna do mesmo, em termos de
condições dos quartos, leitos individualizados, etc., deve ser de forma tal que evite contágios;
b) a organização hospitalar passou dos religiosos para o médico, visto que o papel do hospital
se deslocou de um morredouro para um local/ instrumento de cura – assim, nasceram, dentro
do hospital, o médico e o poder médico 36; c) a criação de uma forma de registrar os doentes e
todos os procedimentos tomados desde a sua entrada até sua saída, como diagnóstico,
remédios, terapêuticas, visitas, etc, constituindo-se “um campo documental no interior do
34
O modelo de doença que permeava a medicina do século XVIII era baseado na botância, na classificação de
Lineu. Ou seja, a doença “terá espécies, características observáveis, curso e desenvolvimento como toda a
planta” (FOUCAULT, 1999b, p. 107).
35
Vale lembrar que a teoria microbiana de Pasteur permitia-lhe postular que o médico era o maior agente de
contágio ao passar de leito em leito nas suas visitas aos doentes (cf. FOUCAULT, 1999b).
36
Foi esse poder atribuído ao médico que possibilitou a Pinel sua atuação em Bicêtre, resultando no ato mítico
de libertação dos loucos de suas algemas (cf. FOUCAULT, 1999b).
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hospital que não é somente lugar de cura, mas também de registro, acúmulo e formação de
saber” (FOUCAULT, 1999b, p.110). Esse procedimento passou a caracterizar o hospital
também como “lugar de formação de médicos” (Ibid., p.111), para uma atuação clínica.
Dessa forma, no final do século XVIII teve-se, através da medicalização do hospital,
uma medicina que, em um mesmo gesto, se voltava para o trabalho individual com registros,
diagnósticos e prognósticos, constituindo um saber médico 37 (racionalizador), e se
preocupava com a população, ao considerar a doença como um fenômeno natural.
1.2 O nascimento do discurso anti-manicomial
Da mesma forma que ao nascimento do hospital se sobrepõe o nascimento de um saber
médico/ clínico, o surgimento do hospício também se amarra à constituição de um saber sobre
a loucura, que a constitui primeiramente como estando ligada à conduta anormal e irregular e
cuja cura se daria mediante um retorno do louco aos seus hábitos normais, o que inclui uma
diminuição do delírio. Esse retorno, similarmente ao tratamento nos hospitais, se daria pela
descoberta da verdade da doença mental ao deixar que esta emergisse naturalmente 38 para que
o médico-psiquiatra pudesse, então, descobri-la, observá-la, constituí-la e dominá-la. 39 É
dessa maneira que nasce a ciência dentro dos hospitais, ou seja, “a partir do momento em que
a população dos insanos é classificada: esses reclusos são, efetivamente, doentes, pois
desfilam sintomas que só resta observar” (CASTEL, 1978, p. 83).
O médico torna-se, através de seu gesto de domar a vontade perturbada do louco,
soberano em face da loucura e utiliza diferentes técnicas que apenas demonstram seu poder
repressivo e controlador 40 sobre o dito doente: desde o interrogatório até as punições e
tratamentos com ducha, sangrias, trabalho obrigatório, etc, essas técnicas vão demonstrar o
domínio e a exaltação médica em torno da loucura. Portanto, com o nascimento do asilo
nascem também, de uma só vez: a produção de uma verdade 41 sobre a loucura e a supremacia
do médico psiquiatra, capaz, até mesmo, de produzir a doença 42. Dessa forma, o hospital
psiquiátrico do século XIX se define por ser “um lugar de diagnóstico e de classificação,
retângulo botânico onde as espécies de doenças são divididas em compartimentos cuja
disposição lembra uma vasta horta. Mas também espaço fechado para um confronto, lugar de
uma disputa, campo institucional onde se trata de vitória e de submissão” (FOUCAULT,
37
A classificação, o reagrupamento, a “distribuição metódica dos insanos introduziu, por si própria, uma
racionalidade de doença” (CASTEL, 1978, p. 83) .
38
Pinel foi o grande introdutor das práticas da história natural à psiquiatria ao postular como essencial no
tratamento ao louco “observar minuciosamente os sinais da doença na ordem de sua aparição, no
desenvolvimento espontâneo e no seu término natural” (CASTEl, 1978, p. 103).
39
O modelo do hospital para o tratamento da loucura foi dado, inicialmente por Esquirol, que o caracteriza como
“um lugar de confronto” (Foucault, 1999b, p. 121) entre a vontade reta do médico e a vontade perturbada do
louco. Dessa maneira a cura se dá “quando a vontade estrangeira penetra nele (o doente), circunscrevendo
progressivamente o lugar da agitação e do delírio até subjugá-lo completamente” (CASTEL, 1978, p. 88).
40
Segundo Castel (1978), a psiquiatria do final do século XVIII e início do século XIX se enquadra numa
realidade política marcada pelo absolutismo, o que possibilita ao autor afirmar que, neste momento, “a relação
terapêutica em medicina mental é uma relação de soberania” (p. 89).
41
A característica do hospital de Pasteur era a produção de um conhecimento sobre a doença mental ao deixá-la
à mira científica “de observação, de diagnóstico, de localização clínica e experimental, mas também de
intervenção imediata, ataque voltado para a invasão microbiana” (FOUCAULT, 1999b, p. 119).
42
Por certo o maior exemplo deste poder médico é Charcot, que produzia sintomas de histeria em mulheres
mediante seu poder de sugestão – hipnose: “a histérica era a doente perfeita, pois que fazia conhecer. Ela
retranscrevia por si própria os efeitos do poder médico em formas que podiam ser descritas pelo médico segundo
um discurso cientificamente aceitável... a relação de poder aparecia na sintomatologia como sugestibilidade
mórbida” (FOUCAULT, 1999b, p. 123) .
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1999b, p.122). Aí estão os dois lados de uma mesma moeda: produção de conhecimento
(hospital de Pasteur – via experimentação e observação) e supremacia do poder médico
(hospital de Charcot). Esses dois se superpõem às duas séries de saberes sobre a loucura: a
organogênica (química e biologia, primeiramente) e a psicogênica (práticas de hipnose e
sugestionabilidade). O auge da prática médica asilar se dá quando os doentes começam a
reproduzir sintomas de uma doença orgânica a partir da hipnose, verificando-se, assim, o
entrelaçamento do conhecimento e da produção da loucura pelo poder médico.
Nesse momento surge a antipsiquiatria, um movimento de despsiquiatrização, com a
finalidade de julgar e criticar o abuso de poder do médico ao produzir a doença 43. Questionase Charcot e inicia-se um movimento de silenciamento do show do médico – o hospital deve
então se restringir: a) ao diagnóstico, mais rápido possível, evitando o momento em que a
loucura se manifeste totalmente diante do médico; e b) ao tratamento da loucura, ao invés de
sua “produção”. Entram na jogada a psico-cirurgia e a psiquiatria farmacológica. Por outro
lado, a despsiquiatrização, ao visar a relação médico-paciente investida igualmente de poder
para ambos os lados, dá voz ao louco evitando a autoridade médica e o abuso de poder: “regra
do encontro privado, do contrato livre entre médico e o doente, regra de limitação de todos os
efeitos da relação apenas ao nível do discurso” (FOUCAULT, 1999b, p. 125).
Essas práticas possibilitam a condição de aparecimento do discurso anti-manicomial,
cuja especificidade se dá, segundo Foucault (1999b), por uma oposição às duas formas de
despsiquiatrização, que dizem respeito a uma anulação do sujeito-louco – mediante drogas
psicofarmacológicas – e a uma centralização do poder de produzir uma verdade sobre a
loucura nas mãos do médico – psicanálise. Ou seja, o movimento anti-manicomial surge, não
como uma “evolução” ou continuidade do movimento de despsiquiatrização, mas como
crítica e resistência a ele, especialmente no que diz respeito às relações de poder entre médico
e louco, como sendo repressoras e dominadoras. Na base desse movimento, está a luta contra
as instituições, como locais de exclusão e produtores de sofrimento e saberes atravessados por
práticas (de “cura”) disciplinadoras e desumanas, possíveis mediante relações de poder, que
“constituíam o a priori da prática psiquiátrica. Elas condicionavam o funcionamento da
instituição asilar, aí distribuíam as relações entre os indivíduos, regiam as formas de
intervenção médica. A inversão característica da anti-psiquiatria consiste ao contrário em
colocá-las no centro do campo problemático e questioná-las de maneira primordial” (Ibid.,
p.127).
2. Sobre o discurso anti-manicomial
O movimento anti-manicomial iniciou-se na Europa, principalmente após a Segunda
Guerra Mundial, em países como Inglaterra, França e Itália, em um momento em que as
terapias assumiram uma postura mais social-comunitária e preventiva (cf. AMARANTE,
1995). Na Inglaterra e na França, a reforma psiquiátrica não teve um caráter de luta em favor
dos interesses da população como teve na Itália, com Franco Basaglia. Segundo Basaglia
(1979, p. 88), “foi essa a diferença entre a Itália, a França e a Inglaterra, porque nesses dois
últimos as reformas psiquiátricas vieram de cima”. Isto é, os maiores envolvidos no processo
eram os médicos preocupados com uma renovação científica através de terapias psicológicas
com os loucos, porém se levar em conta os interesses da população.
43
Foucault nos remete, neste momento, à descoberta de Pasteur sobre a transmissão da doença pelo médico ao
visitar os pacientes em diferentes leitos (1999b, p. 123).
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2.1 Algumas críticas do movimento anti-manicomial
Pelo menos quatro aspectos são salientados no discurso anti-manicomial: uma critica
de natureza política; outra de cunho sócio-econômico; uma terceira, que questiona as
psicoterapias envolvidas no tratamento da loucura; e, por fim, uma que enfoca o papel do
médico.
O movimento anti-manicomial se justifica a partir da crítica, de natureza política, em
relação a duas questões: o poder médico e a institucionalização, referindo-se ao modelo
psiquiátrico de internação da pessoa em hospital ou, segundo Basaglia (1979, p.13), à
colocação dos loucos “em outra prisão que se chama manicômio”. Algumas razões são
levantadas para sustentar o discurso do movimento anti-manicomial:
I - A retirada da pessoa do seu convívio amplo, social e familiar, representa um “ato
negativo, um ato de invalidação diagnóstica, sentença em julgado, remoção física da pessoa
do seu contexto social” (COOPER, 1967, p.50). Tal ato funda-se em uma outra questão –
também criticada pelo movimento – relativa ao processo diagnóstico: a individualização da
doença, ou seja, a crença (científica ou não) em que é o indivíduo que adoece, de modo que a
família e a sociedade não teriam responsabilidade direta sobre a doença. Na fala de Cooper (p.
50), “sustenta-se que a pessoa se invalidou a si própria ou foi invalidada pela sua debilidade
inerente ou pelo processo da doença, nada tendo outras pessoas a ver com a questão”.
II - O aspecto da individualização posto acima é uma das questões relativas ao poder
médico-psiquiátrico que o discurso anti-manicomial critica. A ciência psiquiátrica (médicanosológica), ao lançar um olhar sobre o doente, “presume que, uma vez esteja lidando com
uma doença, existem sintomas e sinais possíveis de observação numa pessoa-objeto, que pode
ser, implícita ou explicitamente, abstraída do seu meio humano com o fim de fazer tais
observações” (COOPER, 1967, p.16). Essas, por sua vez, possibilitam a constituição de um
saber sobre a doença e a produção de diagnóstico, prognóstico e tratamento. O olhar
individualizante e médico-científico impõe a necessidade da internação e de um tratamento
psicofarmacológico, já que as causas da “doença” são de ordem bioquímica, cerebral,
genética. Contudo, Cooper (p. 47) afirma que o problema “não reside na chamada ‘pessoa
doente’, mas na rede de interações de pessoas, particularmente sua família”.
III - No manicômio há o exercício de um poder de repressão do médico/psiquiatra sobre o
doente mental, que gera dependência do louco em relação ao médico. Segundo Basaglia
(1979, p. 39), o manicômio impossibilita a realização de terapias, pois “não se pode pôr em
prática nenhuma terapia, uma vez que a relação dentro do manicômio é uma relação de poder
do médico sobre o doente. A terapia tem sentido quando cria reciprocidade entre doente e
médico”. Em outras palavras, “o paciente perde sempre porque a instituição nunca lhe dá uma
resposta as suas necessidades. A instituição nunca coloca em seu processo terapêutico o
objetivo de responder às necessidades do paciente” (Ibid., p.100). Dessa forma, a lógica que
impera na instituição é “repressiva e destrutiva do doente” (Ibid., p.64), impossibilitando as
relações inter-pessoais, sobretudo entre médico e paciente, que não sejam atravessadas pelo
poder (cf. FOUCAULT).
Outra crítica feita pelo movimento é de cunho sócio-econômico: as pessoas são
internadas sob o rótulo de “doentes mentais”, porém o que se visa não é a cura, mas sim uma
exclusão de certas pessoas da sociedade. Tais pessoas são geralmente pertencentes à classe
dos que podem “ameaçar” uma certa ordem social, ou que podem transgredir a lei. Na fala de
Basaglia (1979, p. 45), “tanto o manicômio quanto a prisão são instituições do Estado que
servem para manter limites aos desvios humanos, para marginalizar o que está excluído da
sociedade”.
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Além dos desviantes, outro alvo de internação são os improdutivos e pobres, que não
respondem adequadamente às exigências sócio-econômicas: “a internação dos loucos pobres
nessas instituições era conseqüência deles não serem produtivos numa sociedade que se
baseia na produtividade” (BASAGLIA, 1979, p. 46).
Outra crítica diz respeito às psicoterapias, cujo aspecto individualizante existente na
psicanálise é condenado por Cooper (1967, p. 101): “Certos autores psicanalíticos, que
trabalham numa situação monádica e vêem o paciente isolado de seu ambiente humano,
parecem, às vezes, limitar-se fatalmente em relação a este assunto”. Para Cooper, a terapia
deve considerar o aspecto grupal, enfocando as interações entre as pessoas, especialmente no
grupo familiar, já que “esquizofrenia é uma situação de crise microssocial, na qual os atos e a
experiência de determinada pessoa são invalidados por outras, em virtude de certas razões
intelegíveis, culturais e microculturais (geralmente famílias), a tal ponto que essa pessoa é
eleita e identificada como sendo ‘mentalmente doente’ de certa maneira e, a seguir, é
confirmada na identidade de ‘paciente esquizofrênico’ pelos agentes médicos ou quasemédicos” (Ibid., p. 17). A partir dessa visão etiológica da loucura, Cooper sugere uma terapia
em que “os membros da família se modifiquem em relação a cada outro, de maneira tal que o
membro identificado como paciente descubra uma área crescente de ação autônoma para si,
enquanto, ao mesmo tempo, os outros membros da família se tornam mais “auto-suficientes”,
pelo menos ao ponto de não sucumbirem de maneira julgada psicótica” (Ibid, p. 70).
Já Basaglia (1979, p. 58) critica a psicoterapia “burguesa”, aquela que não responde às
necessidades e interesses da maior parte da população dos doentes mentais internados. Dentre
tais terapias, ele salienta, várias vezes, a psicanálise, que “foi a categoria profissional que não
atingiu o proletariado”, já que “a psicanálise, como elemento psicoterápico, é útil para
resolver o problema de algumas pessoas que têm dinheiro” (Ibid., p. 56). Para o reformista
italiano, as terapias não possuem caráter dominador desde que realcem as interações sem
qualquer aspecto de repressão, isto é, “a terapia tem sentido quando há reciprocidade entre
paciente e médico. A terapia analítica como meio de gestão é muito significativa nesse
aspecto” (Ibid., p.39). Além disso, Basaglia (p.56) realça o aspecto burguês da terapia quando
afirma que a psicanálise, desde o seu nascimento no início do século, teve muita importância
em várias áreas, como nas artes e na literatura, contudo “nunca entrou no manicômio [...]
tenho a impressão que a psicanálise é uma técnica e uma teoria que não tem nada a ver com a
psiquiatria institucional”.
Apesar de Basaglia salientar os efeitos positivos das terapias psicoterápicas, ele ainda
considera que mesmo aí pode haver relação de poder entre médico e paciente quando, ao visar
a cura, o médico restabelece a capacidade produtiva do paciente, isto é, a submissão do
paciente ao Estado. A crítica às terapias é feita em relação ao poder repressivo que elas podem
ter, especialmente voltado para questões de ordem econômica e social: “a psicanálise usa um
poder repressivo quando exerce uma situação de controle mantendo o código de referência da
burguesia através da técnica psicanalítica. O psicanalista tem uma técnica que nasceu no seio
da linguagem da burguesia [...]” (BASAGLIA, 1979, p. 98).
Um quarto aspecto criticado pelo movimento diz respeito ao papel do médico, no que
se refere, segundo Basaglia, a:
a) sua atuação em clínicas privadas e não públicas, dando um caráter elitista e
capitalista à atuação profissional. Ele considera o desinteresse social da
classe médica pela saúde da população e aponta: “a partir do momento em
que o médico se der totalmente à instituição, no sentido de transformá-la,
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b)
c)
d)
e)
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eliminá-la e mudá-la, mudará realmente o papel do médico e da psiquiatria”
(Ibid., p. 37);
o poder repressivo que exerce sobre o doente através do uso abusivo de
psicofarmacologia e outras técnicas como eletrochoque e psicocirurgias;
a relação médico-paciente ser atravessada por interesses econômicos,
visando a produtividade: “o médico torna-se o patrão do seu doente” (Ibid.,
p. 110);
o saber puramente biológico do médico em relação à doença mental. Para
ele, os médicos devem ser “concomitantemente biólogos, psicológos e
sociólogos” (Ibid., p. 111);
uma relação do saber médico com um poder negativo (repressivo).
2.2 Outras considerações
Quem faz parte do movimento anti-manicomial? Quem fala pelo “louco”?
Basaglia (1979, p.97) destaca a importância do envolvimento da população (dos
dominados) no movimento, para que este não continue com seu caráter elitista maquiado por
novas propostas científicas. Contudo, o doente mental, “dado o grau de repressão, não tem
possibilidade de exprimir sua própria agressividade”. A voz dos discursos antimanicomiais
não é a do doente mental, mas a de profissionais e de pessoas envolvidas nesse processo, que
não foram rotuladas como doentes. Assim, o movimento (diferente de outros: o movimento
feminista era formado por mulheres, o movimento gay, por homossexuais, etc) “procurou a
coligação com todos os movimentos que desejam a própria libertação” (Ibid., p. 98).
A proposta de atuação de Basaglia (1979), após o fechamento dos manicômios, é de
criar uma comunidade terapêutica, na qual o médico estaria destituído do seu poder repressor
e todos os doentes conviveriam uns com os outros sem qualquer forma de controle ou
autoritarismo. Em outras palavras, propõe-se uma humanização que visa a reintegração das
pessoas “doentes” ao contexto micro (família) e macrossocial (comunidade mais ampla),
possível a partir de uma ciência do homem refeita sobre novas bases, que não mercantis,
repressoras, visto que “refazer uma ciência sobre suas bases antigas é como comer o próprio
vômito” (Ibid., p. 95). Para Basaglia, a doença é um produto das contradições do corpo
orgânico e social, que são geradas no ambiente onde diferentes fatores se encontram
envolvidos (p. 79). Dessa forma, o trabalho terapêutico deve levar em consideração um olhar
amplo que envolva as diversas esferas envolvidas na constituição da doença.
3. O discurso anti-manicomial e o discurso médico: dois lados da mesma moeda
Salienta-se que os discursos se constituem a partir da relação poder-saber
(FOUCAULT, 1999a), portanto, ele são atravessado por poder e, ao mesmo tempo em que se
constituem, constituem aquele que o enuncia – o sujeito da enunciação, também atravessado
pela articulação poder-saber. Contudo, o discurso não é algo contínuo nem estável ou que se
caracterize por dicotomias cristalizadas do tipo verdade e falsidade, correto e incorreto. Ele
circula, possui uma função tática, envolvida de poder e, juntamente com outros discursos,
pertence a uma ou diferentes estratégias, que geram efeitos diferentes, “segundo quem fala,
sua posição de poder, o contexto institucional em que se encontra” (FOUCAULT, 1999a, p.
96). E se o discurso “veicula e produz poder; reforça-o mas também o mina, expõe, debilita e
permite barrá-lo” (Idem), é possível falar, ao mesmo tempo, em algo que aparentemente
parece paradoxal: um discurso que, ao fundar a verdade da loucura, o discurso científico,
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funda um outro, aparentemente oposto, que é o discurso da resistência: o movimento antimanicomial. Assim, ambos os discursos (contraditórios) pertencem a uma mesma estratégia
de poder e, ao atravessarem a fala e os corpos, constituem determinados sujeitos em
determinadas posições, mediante intervenções específicas, autorizadas pelo discurso
científico.
Contudo, a colocação desses dois discursos numa mesma estratégia política não
significa que não haja diferença entre eles, visto que ambos atuam configurando a loucura e a
família de maneiras diferentes. Não se trata de desvendar nesses discursos “de que teoria
derivam, ou que divisões morais introduzem, ou que ideologia – dominante ou dominada –
representam; mas, ao contrário, cumpre interrogá-los nos dois níveis, o de sua produtividade
tática [...] e o de sua integração estratégica” (FOUCAULT, 1999a, p. 97). Portanto, não é que
haja dois lados e um deles é o mais correto, mais justo, mas trata-se de desvendar o
mecanismo que faz com que haja essa divisão, esses dois lados aparentemente contraditórios.
O discurso científico anuncia uma verdade sobre a loucura a partir de um olhar
médico: a loucura é uma doença e o sujeito, um doente mental. Portanto, ele deve ser tratado
através de internação em manicômios, uso de medicamentos psicofarmacológicos e de
eletrochoques, prática da confissão, exames, interrogatórios, etc. – uma série de técnicas
desenvolvidas e justificadas pelo discurso da psiquiatria. Isso assegura o funcionamento da
instituição manicomial e a manuntenção da relação de dominação do médico em relação ao
doente mental.
As formas de tratamento e o poder médico foram trazidos à tona no discurso antimanicomial, que questiona “a maneira pela qual o poder do médico estava implicado naquilo
que dizia”, dentro de instituições cuja característica é de “uma separação decidida entre
aqueles que têm o poder e aquele que não o têm” (FOUCAULT, 1999b, p.124). É dessa
maneira que “o conjunto da psiquiatria é atravessado pela anti-pisquiatria” (Idem), quando o
papel do médico num espaço de produção da verdade torna-se alvo de questionamento.
Conclusão
Conforme visto, as práticas discursivas anti-manicomiais envolvem uma crítica ao
poder repressor e controlador do médico. Critica-se esse poder, sendo que a produção de saber
para melhor lidar com a loucura e o louco continua, visto que é a partir dessa produção que se
justifica uma prática atravessada pelo slogan da humanização 44. É preciso humanizar os
tratamentos, é preciso olhar para os doentes mentais e ouvi-los de uma outra forma, é preciso
devolver a eles o direito a relações com outras pessoas, o direito de ir e vir, de saber sobre sua
“doença e seu tratamento” (cf. lei Paulo Delgado 45) e até mesmo de escolher, se seu caso não
for crítico, quando ser internado. Essa atenção diferenciada sobre a loucura tem como raiz, em
um mesmo tempo, a crítica ao poder repressivo do médico e a necessidade de considerar o
contexto/as relações na constituição da doença.
44
A lei que extingue os manicômios no Brasil (Lei no 10.216, sancionada em abril de 2001) postula, no artigo 2o
, o direito da pessoa que sofre de transtornos psíquicos de “ser tratada com humanidade e respeito e no interesse
exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família e na comunidade”.
45
Paulo Delgado é membro fundador do Instituto Franco Basaglia de Estudos e Pesquisas (RJ).
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No discurso anti-manicomial houve um apagamento do médico psiquiatra, em termos
do seu poder ditatorial, para trazer à tona outros profissionais 46 (psi e outros) no trabalho com
o louco e a loucura. A visão de loucura a partir de um saber contextual e não de um saber
sobre o indivíduo, ou sobre o desejo, cria condição de possibilidade para a atuação de outros
profissionais, que saturam o tema com saberes diversos 47 visando o mesmo: a reintegração do
“doente” à sociedade, primeiramente passando pela família. O poder que atravessa essa
prática e esse discurso não é mais um que gera a exclusão (internação em instituição
psiquiátrica) ou o silenciamento (dopagem com excesso de remédios), mas visa produzir o
oposto: a inclusão e o fazer falar. Em relação ao fazer falar, a prioridade não é tanto o
monólogo, em que o terapeuta ouve e faz intervenções interpretativas. O foco agora é o
diálogo, em que o terapeuta é mais um falante.
Portanto, o discurso anti-manicomial é atravessado por práticas discursivas que se
caracterizam por críticas ou o seu oposto. No mesmo instante em que o movimento golpeia os
saberes acompanhados de um poder negativo e repressivo (teorias e práticas médicas que
salientem o poder do médico), ele se constitui. As práticas discursivas do movimento antimanicomial liberam o louco e a loucura da posição que a doença e o doente ocupam em
termos de objeto para a produção do conhecimento. Contudo, esse gesto seu produz algo mais
no lugar da doença (da loucura tomada como objeto de saber): produz a disfunção. Assim, os
esforços terapêuticos não visam mais à cura, referente à loucura como doença, mas à
capacidade de relação do indivíduo – aí estaria sua saúde psíquica.
Finalmente, os discursos médico e anti-manicomial são tidos como opostos e, ao
serem atravessados de poder e de saber sobre a loucura e o louco, constituem o sujeito (louco)
de duas maneiras: na esfera institucional, como doente mental; e na esfera da resistência e da
denúncia dos maus tratos nos hospícios, etc. Nessa última, o dito louco é colocado em uma
outra posição, como um outro sujeito, que não o doente, mas como um cidadão que luta por
seus direitos. Assim, esses dois discursos pertencem a uma mesma estratégia política de
constituição de um local de fala: o discurso científico da doença, que torna o tratamento (por
mais violento que possa ser) tolerável para a população, para o dito doente, para o Estado e
para a própria medicina; e o discurso sobre o ser humano e cidadão, que encontra na prática
médica o ponto de constituição/fortalecimento de um saber sobre o ser humano e a cidadania,
que justificará a sua atuação como sendo anti-psiquiátrica. Por fim, tanto o discurso médico
como o anti-manicomial, por pertencerem à mesma estratégia política, se organizam em torno
da uma lógica racionalizante/ científica de constituição de um saber (e de uma forma de
tratamento) sobre o louco e a loucura.
*****
Sobre a situação da saúde mental atualmente, os governos Federal, Estadual e
Municipal atuam juntos no processo de transição do modelo pautado no hospital psiquiátrico
para o modelo comunitário, baseado na oferta de serviços substitutivos. Citando o relatório da
Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental (2005, p. 09):
46
Segundo a ONU (17 de dezembro de 1991), um profissional de saúde mental “significa uma pessoa legalmente
incumbida do dever de representar os interesses de um usuário em qualquer matéria especificada, ou de exercer
direitos específicos em seu nome, incluindo os pai ou o guardião legal de um menor, a menos que seja
estabelecido de outro modo pela legislação nacional”.
47
A relação entre saúde mental e trabalho, por exemplo, é objeto de estudo de várias disciplinas: “a psiquiatria
clínica, a economia política, a biologia, a sociologia, a antropologia, a psicologia experimental e a psicologia
clínica, a toxicologia, a epidemiologia e as várias disciplinas do campo da engenharia industrial e de produção,
que estudam a organização e os processos de produção” (SILVA, in TUNDIS et al (org), 2000, p. 218).
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O período atual caracteriza-se assim por dois movimentos simultâneos: a construção
de uma rede de atenção à saúde mental substitutiva ao modelo centrado na internação
hospitalar, por um lado, e a fiscalização e redução progressiva e programada dos leitos
psiquiátricos existentes, por outro.
Salienta-se, ainda, que atualmente existem 689 Centros de Atenção Psicossocial e que,
no fim de 2004, 64% dos recursos do Ministério da Saúde foram destinados à saúde mental.
Referências bibliográficas
AMARANTE, Paulo. Loucos pela Vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil, Rio
de Janeiro: Fiocruz, 1995.
BASAGLIA, Franco. A Instituição Negada, Rio de Janeiro: Graal, 1979.
BRASIL. Lei no. 10216 de 06 de abril de 2001. Extingue os manicômios no Brasil. Lex: DOU
em 09 de abril de 2001.
BRASIL. Ministério da Saúde – Secretaria de Atenção à Saúde, Coordenação de Saúde
Mental. Reforma Psiquiátrica e política de saúde mental no Brasil. Relatório da Conferência
Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de Caracas. Brasília,
2005. 55 p. Disponível em <www.saude.gov.br> Acesso em: 01/03/2006.
CASTEL, Robert. A Ordem Psiquiátrica – A idade de ouro do alienismo. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1978
COOPER, David. Psiquiatria e anti psiquiatria. São Paulo: Perspectiva, 1967.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1999.
_____.História da Sexualidade 1 – a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1999a.
_____. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1999b.
_____. História da Loucura. São Paulo: Perspectiva, 1999c.
ONU. Sobre a proteção de pessoas acometidas de transtorno mental e a melhoria da
assistência à saúde mental. Em 17 de dezembro de 1991.
SILVA, E. S. Saúde Mental e Trabalho. In: TUNDIS, S. A.; COSTA, N. R. (orgs) Cidadania
e Loucura – políticas de saúde mental no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2000.
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ESTUDO DO GÊNERO NA PERSPECTIVA DO INTERACIONISMO SÓCIODISCURSIVO
Daniela Zimmermann Machado
Mestranda em Lingüística Universidade Federal de Santa Maria RS
Resumo: Este trabalho tem por objetivo analisar a forma como se realiza o estudo do gênero
na perspectiva do interacionismo sócio-discursivo (ISD). Para isso, apresentaremos,
inicialmente, os estudos de Bronckart (1999) sobre o interacionismo sócio-discursivo,
procurando se aprofundar melhor nos princípios desta teoria. Começaremos por explicar cada
um dos aspectos que possibilitaram o desenvolvimento desse estudo, evidenciando os
principais conceitos que norteiam o estudo da linguagem, como a ação de linguagem, a
atividade social e o estudo do texto e do gênero. Após tais considerações, trataremos do
estudo do gênero de forma mais relevante, buscando esclarecer o modo como é analisado
nesta abordagem. Mencionaremos ainda alguns trabalhos atuais sobre gênero, que vem sendo
desenvolvidos na mesma linha teórica de Bakhtin (1997). Para essa pesquisa, contamos com
leituras de Bronckart (1999), Dolz & Schnewly (2004) e Machado (2004).
Palavras-chave: interacionismo sócio-discursivo, gênero, discurso.
Abstract: This paper has the objective to analyze how the study of gender in the sociodiscursive interactionism perspective is made. To do so, we will present the studies of
Bronckart (1999) about the socio-discursive interactionism, trying to get deep into the
principles of this theory. We will start on explaining each of the aspects that made the
development of this study possible, evidencing the main concepts that lead the study of
language, like the action of language, the social activity and the study of text and gender.
After such considerations, we will deal with the study of gender in a more relevant
perspective, seeking to clearly explain the way how it is analyzed in this approach. We will
mention yet some of the most updated works about gender, which has been developed in the
same theoretical line of Bakhtin (1997). For that research, we count with lectures of Bronckart
(1999), Dolz & Schnewly (2004) and Machado (2004).
Key-words: Socio-Discursive Interactionism, Gender, Speech.
1. Introdução
Este trabalho procura expor a teoria interacionista sócio-discursiva, desenvolvida por
Bronckart (1999) a fim de apresentar considerações sobre o estudo do gênero a partir desta
teoria. Inicialmente, mencionaremos os principais fatores que deram origem aos postulados da
teoria sócio-discursiva, como a abordagem interacionista social de Vygotsky, a concepção de
atividade de Leontiév e o conceito de ação de Habermas, que foram elementos cruciais para o
desenvolvimento do estudo interacionista sócio-discursivo.
Começaremos apresentando o trabalho desenvolvido por Vygotsky (1998) sobre o
interacionismo social, procurando apontar as principais características desse estudo.
Mencionaremos sua tese, autores e correntes teóricas que contribuíram para a confirmação
desta teoria, destacando, ainda, a posição adotada por Vygotsky a respeito da psicologia de
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epistemologia monista de Spinoza, a qual é importante para a noção interacionista social e que
foi de grande relevância para o desenvolvimento do estudo sócio-discursivo.
Trataremos dos conceitos de ação e atividade, os quais norteiam o estudo da
linguagem para Bronckart (1999), e que segundo Machado (2004), a distinção conceitual
entre esses dois elementos é importante para compreendermos o quadro teórico mais geral do
Interacionismo Sócio-discursivo (ISD). Desse modo, analisaremos esses conceitos, traçando
um paralelo entre a noção de atividade, desenvolvida por Leontiév e que foi inspiração para o
termo atividade social de Bronckart, e o conceito de ação de Habermas, que possibilitou o
estudo da ação de linguagem.
Ao tratar dos conceitos de ação e atividade, destacaremos algumas questões
relacionadas ao gênero, pois segundo Bronckart (1999), é nesse espaço da atividade social que
é possível a ação de linguagem humana e, por sua vez, a decorrência do gênero, ou seja, a
evidência de enunciados estáveis utilizados pelos integrantes de uma comunidade. Após essas
reflexões, trataremos de forma relevante sobre como se efetiva o estudo do gênero,
procurando entender como ele é caracterizado e realizado nessa perspectiva teórica.
Como ponto culminante para este estudo, evidenciaremos a perspectiva do gênero do
discurso, desenvolvida por Bakhtin (1997), uma vez que o conceito de gênero de texto
abordado por Bronckart (1999) insere-se nesta linha teórica. Ao trabalharmos com a forma
como o gênero de texto é tratado, apontaremos o sentido de gênero para os estudos atuais, em
oposição ao estudo da tipologia dos gêneros.
Esse trabalho só foi possível através das leituras de Bronckart (1999) Dolz e Schnewly
(2004), Machado (2004) e Bakhtin (1997), que em algum momento de seus trabalhos
evidenciam questões fundamentais sobre gênero, e também por serem considerados
importantes teóricos para pensarmos e entendermos a perspectiva interacionista sóciodiscursiva.
2. Considerações sobre o interacionismo sócio-discursivo
Sobre o interacionismo sócio-discursivo (ISD), é importante destacar inicialmente os
fatores que contribuíram para seu surgimento e para a confirmação dessa teoria nos estudos da
linguagem. Ao pensar em interacionismo sócio-discursivo, como o próprio Bronckart (1999)
propõe, devemos mencionar como referência maior o estudo desenvolvido por Vygotsky
sobre o interacionismo social, já que Vygotsky é o precursor do interacionismo sóciodiscursivo, devido a grande influência que exerceu sobre esse estudo.
A tese do interacionismo social, a partir de Vygotsky (1984), é de que as propriedades
específicas das condutas humanas (físico e psíquico) são resultados de um processo histórico
de socialização, que só foi possível pela emergência e pelo desenvolvimento da linguagem. A
abordagem social, conforme Vygotsky (1984), tem como objetivo:
caracterizar os aspectos tipicamente humanos do comportamento das pessoas e
elaborar hipóteses de como essas características se formaram ao longo da história
humana e, de como se desenvolvem durante a vida de um indivíduo.
(VYGOTSKY,1984:21)
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Esse estudo caracteriza-se por uma abordagem histórica e social para o tratamento da
linguagem humana. O interesse do interacionismo social, segundo Bronckart (1999), é pelas
condições as quais se desenvolveram formas particulares de organização social, ao mesmo
tempo ou sob o efeito do surgimento da linguagem.
Complementando essas idéias, esse estudo interacionista social conta com
contribuições da antropologia, da socioantropologia, e principalmente pelas abordagens
sociofilosóficas. Alguns filósofos e teóricos significativos para o estudo do interacionismo
social, segundo Bronckart (1999) foram Hegel, Marx e Engels, e Cassirer, que contribuíram
com noções teóricas relevantes para o interacionismo social, como a questão da hominização
e do trabalho.
Outro fator de grande valia para os estudos ISD’s, que também provém da obra de
Vygotsky, é a adoção a psicologia epistemológica monista de Spinoza, teoria que defende a
tese de que a relação entre o psíquico e o físico constitui uma substância única. Porém, ao
eleger essa epistemologia, Bronckart (1999) reformula esse entendimento, dando um caráter
emergencista ao estudo, dividindo a abordagem em duas questões principais: a primeira e a
segunda precipitação.
A primeira precipitação caracteriza-se por uma linguagem rudimentar (semelhança
com os animais), é a fase em que o homem possui um psiquismo elementar. A segunda
precipitação é a transformação do psiquismo elementar em auto-reflexivo, sem vínculos com
o caráter genético, nessa precipitação há um mecanismo ativo e auto-reflexivo.
O ISD compartilha da idéia desta segunda precipitação, pela correspondência com o
caráter auto-reflexivo, que é o ponto central da sócio-discursividade, privilegiando a
capacidade de discutir, inserindo o ser humano em dimensões sociais e discursivas
constitutivas.
Apresentamos até o momento algumas características do interacionismo social, de
Vygotsky, e algumas considerações de Bronckart sobre tal posição. Com base em todas as
influências que o interacionismo exerceu, confirmamos que o interacionismo social foi base
para o estabelecimento dessa abordagem mais discursiva do tratamento da linguagem.
2.1. Conceito de atividade social e ação da linguagem
Iremos nos deter de forma mais precisa sobre a distinção entre os conceitos de
atividade e ação, que segundo Machado (2004) são essenciais para a compreensão do quadro
geral sócio-discursivo.
Bronckart (1999) considera o termo atividade de Leontiév para sua teoria, que pode
significar as organizações funcionais de comportamentos dos indivíduos, através dos quais
eles têm contato com o ambiente e podem adquirir conhecimento sobre este mesmo ambiente.
A atividade sempre tem sua origem nas situações de comunicação, desenvolvendo-se em
zonas de cooperação social determinadas, a atividade é o local, a situação de comunicação.
Segundo Machado (2004):
“Cada atividade é constituída de ações, condutas que podem ser atribuídas a um
agente particular, que são motivadas e orientadas por objetivos que implicam a
representação e a antecipação de seus efeitos na atividade social” (MACHADO,
2004: 23)
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Percebemos na passagem citada que há uma relação entre a atividade, que é o “local”
onde a ação ocorre, e a ação. Tais conceitos diferenciam-se, porém compartilham de uma
mesma situação, relacionando-se, e sendo fundamentais para o estabelecimento da
comunicação (linguagem). De forma simplificada, a atividade é o espaço onde a ação (o
comportamento humano/ linguagem) acontece. Machado (2004) salienta ainda que as
atividades são os determinantes primeiros da ação e do funcionamento psíquico humano, e
essas atividades apóiam-se fundamentalmente nas atividades de linguagem.
Seguindo Bronckart (1999):
é no contexto da atividade em funcionamento nas formações sociais que se
constroem as ações imputáveis a agentes singulares e é no quadro estrutural das
ações que se elaboram as capacidades mentais e a consciência desses mesmos
agentes humanos. As condutas verbais são concebidas, portanto, como formas de
ação (dai o termo ação de linguagem). (BRONCKART, 1999:13)
Direcionando para o estudo da ação, podemos destacar que Bronckart (1999) elege a
ação da linguagem a partir dos estudos de Habermas sobre o agir comunicativo. O agir
comunicativo refere-se à dimensão da forma como a atividade é caracterizada, uma vez que a
cooperação dos indivíduos na sociedade é regulada e mediada por interações verbais. Essas
interações verbais são efetivadas no coletivo, na relação entre os indivíduos, e atuam em
diferentes formas de representação que Habermas denomina de mundos representados.
Os mundos representados são formas pelas quais que os signos (linguagem comum)
podem remeter, e são em número de três: o mundo objetivo (ambiente físico), mundo social
(organização das tarefas) e mundo subjetivo (auto-reflexão, indivíduo e sua tarefa). Esses
mundos representados contribuem para a compreensão do termo ação, pois é nessas três
formas que as ações constituem-se. É importante destacar que ao mudar o mundo objetivo,
muda-se o mundo social e o subjetivo. Por exemplo, em uma palestra, a linguagem utilizada
será mais formal, enquanto que em uma festa, será mais informal. Os mundos representados
determinam a atividade, e, conforme Schnewly (2004) os gêneros do discurso prefiguram as
ações de linguagem possíveis em uma determinada atividade.
Após entendermos a influência de Habermas sobre o estudo do ISD, visamos
estabelecer uma conexão com o gênero do discurso de Bakhtin (1997). Conforme o autor, são
através das atividades sociais que se formam e são produzidas determinadas formas
discursivas que, estabilizando-se de forma mais ou menos forte, constituem os gêneros de
texto. Para Machado (2004) os gêneros de textos, por serem produtos sócio-históricos são
elementos explicativos da ação de linguagem.
Esses dois conceitos teóricos, ação e atividade, representam, na prática, a possibilidade
de circulação dos gêneros, é com as ações humanas em atividade, que os gêneros se
desenvolvem. Segundo Bakhtin (1979) para falar, utilizamos-nos sempre dos gêneros do
discurso, afinal eles são os enunciados que circulam em uma comunidade.
3. Perspectiva bakhtiniana sobre gênero do discurso
Para Bakhtin (1997), a utilização da língua se efetua em forma de enunciados (orais ou
escritos), que provém dos integrantes de uma ou de outra esfera da comunidade humana. O
pesquisador salienta que cada esfera de utilização da língua elabora tipos relativamente
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estáveis de enunciados, ou seja, enunciados que se tornam comuns entre os integrantes, são
esses enunciados que são denominados gêneros do discurso.
A variedade de atividades humanas proporciona um número infinito de gêneros do
discurso. Bakhtin (1997) infere que cada esfera da atividade comporta um repertório de
gêneros do discurso que vão diferenciando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se
desenvolve e fica mais complexa. Essas noções diferem os gêneros do discurso de tipologias
de gênero, quando se pensa em gênero, no sentido de Bakhtin, não se trabalha mais com os
tipos, não se enfatiza as classificações, e sim, a função desse gênero, o fato de que se
modificam, e se ampliam. Os tipos, nessa perspectiva, passam a ser considerados tipos de
discursos desses gêneros.
Bronckart (1999) explica que os variados textos que fazem parte de um gênero podem
ser chamados de discursos. Segundo Bronckart (1999):
Enquanto, devido à sua relação de interdependência com as atividades humanas, os gêneros são
múltiplos, e até mesmo em número infinito, os segmentos que entram em sua composição (de
relato, argumentação, etc.) são em número finito, podendo, ao menos parcialmente, ser
identificados por suas características lingüísticas específicas. (...) Esses diferentes segmentos
que entram na composição de um gênero são produto de um trabalho particular de
semiotização ou de colocação em forma discursiva e é por essa razão que serão chamados de
discursos. (BRONCKART, 1999:75-76)
A partir das considerações de Bronckart (1999) sobre a noção de que os segmentos
(tipos de gêneros) são discursos, passamos a entender melhor a diferença entre gênero e
tipologia de gênero.
É importante lembrar, neste momento, que a perspectiva de gênero do discurso de
Bakhtin (1996) é a adotada pelos teóricos Bronckart (1999), Machado (2004) e Dolz e
Schnewly (2004), quando esses tratam do gênero de texto.
São considerados gêneros, no sentido de Bakhtin, desde a curta réplica do cotidiano, o
relato familiar, a carta, a ordem militar padronizada, documentos oficiais e declarações
públicas. Observamos que pode ser considerado gênero toda a forma de expressão (oral ou
escrita), uma vez que para Bakhtin (1997) e Bronckart (1999) texto são produções verbais
efetivas – articuladas em diferentes situações de comunicação. Desse modo, há uma
heterogeneidade de gêneros, o que torna difícil classificar e esclarecer os variados gêneros.
Como forma de minimizar a heterogeneidade dos gêneros do discurso, Bakhtin (1997)
sugere que se deve levar em consideração a diferença entre gêneros do discurso primários e
gêneros do discurso secundários.
Os gêneros de discurso primário são caracterizados pela simplicidade circunstancial.
Schnewly (1994) destaca que esses gêneros são evidenciados no nível real com o qual a
criança é confrontada nas múltiplas práticas de linguagem, Bakhtin afirma que esse tipo de
gênero se constituí em uma “circunstância de comunicação verbal espontânea”(p. 281)
Schnewly (2004) apresenta de uma forma concisa o que pode ser considerado nos gêneros
primários: troca, interação, controle mútuo da situação, funcionamento imediato do gênero
como entidade global controlando todo o processo, como uma só unidade; nenhum ou pouco
controle metalingüístico da ação lingüística em curso.
Os gêneros secundários, conforme Bakhtin (1996) “aparecem em circunstâncias de
uma comunicação cultural, mais complexa e relativamente mais evoluída, principalmente
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escrita: artística, científica, sociopolítica”. (pág. 281). São exemplos de gêneros secundários o
romance, o teatro, o discurso científico, o discurso ideológico. Esses gêneros absorvem e
transmutam os gêneros primários. Bakhtin (1996) menciona que:
Os gêneros primários, ao se tornarem componentes dos gêneros secundários,
transformam-se dentro destes e adquirem uma característica particular: perdem sua
relação imediata com a realidade existente e com a realidade dos enunciados
alheios. (BAKHTIN, 1996:281).
Ou seja, o relato familiar e o diálogo cotidiano, por exemplo, inserem-se no gênero de
discurso secundário, fazendo parte deste, e desvinculando-se da realidade imediata,
modificando-se. Ao entendermos que os gêneros primários tornam-se partes dos gêneros
secundários, observamos o porquê de não mais tratarmos de tipologia de gênero.
A diferenciação entre gêneros primários e secundários é importante, uma vez que é a
inter-relação entre esses gêneros e o processo histórico da formação do gênero secundário que
esclarece a natureza do enunciado (BAKHTIN, 1996). E, como vimos anteriormente, é a
partir do enunciado que se evidenciam os gêneros.
É nessa perspectiva que o ISD se inscreve, trabalhando com o gênero a partir dessa
ampliação e transformação que ele sofre. Bronckart (1999) afirma que “os gêneros estão em
perpétuo movimento”.(p.74).
Esse caráter de mobilidade do gênero, que segue a linha de Bakhtin (1997) remete a
alguns trabalhos atuais sobre gênero, desenvolvidos por Schnewly e Dolz (2004), Rojo (2004)
e Machado (2004).
4. Os trabalhos sobre gêneros desenvolvidos na perspectiva bakhtiniana
Rojo e Cordeiro (2004) apresentam um esboço sobre os estudos sobre texto realizados
no Brasil. Conforme as autoras, na década de 80, os estudos sobre texto privilegiavam o uso, e
não o ensino do texto, o que se pretendia, naquele momento, era destacar a importância da
leitura para a criatividade e o para o hábito de leitura. Segundo as pesquisadoras, somente
mais tarde, o texto tornara-se suporte para o desenvolvimento de estratégias e habilidades de
leitura e de redação. Passaram-se, então, a estudar estruturas de gêneros escolares (a narração,
descrição e dissertação), a partir de noções de lingüística textual, como: tipos de textos, super,
macro e micro estruturas. Ensinara-se a forma global do texto.
Essas teorias textuais ofereciam conceitos e instrumentos que generalizavam as
propriedades de grandes conjuntos de textos (os tipos), abstraindo suas especificidades e
propriedades intrínsecas em favor de uma classificação geral (tipologias) que acabava por
preconizar formas globais nem sempre compartilhadas pelos textos classificados. Observamos
que nesse tipo de estudo buscava-se uma classificação tipológica e não o reconhecimento
funcional dos textos.
Esses estudos anteriores deram espaço a uma virada discursiva ou enunciativa no que
diz respeito ao enfoque dos textos e de seus usos em sala de aula. A partir desse momento, o
texto passou a ser analisado em seu funcionamento e em seu contexto de produção/leitura. No
final da década de 90 a questão da funcionalidade dos textos passa a ser evocada nas escolas,
por meio dos PCN’s. Segundo as autoras:
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Passam a ter importância considerável tanto as situações de produção e de
circulação dos textos como a significação que nela é forjada, e, naturalmente,
convoca-se a noção de gêneros (discursivos ou textuais) como um instrumento
melhor que o conceito de tipo para favorecer o ensino de leitura e de produção de
textos escritos e, também, orais. (ROJO; CORDEIRO, 1994:11).
Percebemos, neste momento, uma mudança no tratamento dos estudos do gênero nas
escolas. É o que Schnewly (1994) em seu artigo Gêneros e tipos de Discurso: considerações
psicológicas e tipológicas apresenta na parte inicial: “A moda das tipologias cedeu lugar à dos
gêneros”. (p.21)
Nessa nova perspectiva, forma e conteúdo têm importância e são determinados no
funcionamento social e contextual do gênero. Conforme Rojo e Cordeiro (2004) “duas
novidades são bastante importantes nessa virada: o ensino de linguagem e de gêneros orais e a
valorização do contexto de uso e de circulação”.(p.12)
Nessa abordagem, passam a ter importância considerável tanto as situações de
produção e de circulação dos textos como a significação que nelas é forjada, e, naturalmente
convoca-se a noção de gêneros (discursivos ou textuais) como um instrumento melhor que o
conceito de tipo para favorecer o ensino de leitura e de produção de textos escritos e, também,
orais (ROJO; CORDEIRO, 2004).
5. Conclusão
Esse trabalho apresentou, inicialmente, um estudo sobre a abordagem sócio-discursiva,
entendendo que o interacionismo social de Vygotsky, a noção de atividade de Leontiév e a
concepção de ação de Habermas constituem as bases para a teoria sócio-discursiva.
Compreendemos o porquê de os trabalhos de Vygotsky representarem grande influência sobre
o ISD e por que essa teoria é a grande precursora do estudo de Bronckart.
Pudemos compreender a importância da distinção entre atividade e ação, que são
fatores importantes do quadro interacionista sócio-discursivo. Enquanto a atividade é
considerada como espaço para o estabelecimento da ação, podendo ser considerada uma
estrutura do comportamento, orientada por um motivo que a faz nascer; a ação, que provém
de contribuições de Habermas sobre o agir comunicativo, estabelece as interações verbais
entre sujeitos, podendo estar inserida nos mundos representados. Entendemos que os gêneros
prefiguram as ações de linguagem possíveis em uma determinada atividade social.
Os gêneros para Bakhtin (1997) são os enunciados relativamente estáveis que circulam
pelos integrantes de uma comunidade, apresentando considerações sobre os gêneros do
discurso primários e secundários, que possibilitam uma compreensão satisfatória sobre os
gêneros e ajudam a minimizar a grande variedade existente.
Percebemos que o gênero não é algo imutável e sim estruturas que se modificam e se
ampliam de acordo com o nível de comunicação, lembrando que só há comunicação se houver
gênero. Nesse aspecto, apresentamos como é caracterizado o estudo do gênero em oposição
aos tipos de discurso (segmentos).
Para finalizar, apresentamos um percurso de como foi realizado o ensino do texto
desde a década de 80 até atualmente. Os estudos atuais se caracterizam pelas abordagens de
Bronckart (1999), Bakhtin (1997), Dolz e Schnewly (2004).
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Procuramos apresentar a teoria sócio-discursiva e a teoria do gênero de Bakhtin,
buscando entender como os trabalhos vem sendo realizados. Mencionamos Machado (2004)
que aponta uma visão do interacionismo sócio-discursivo e um estudo sobre o gênero na
escola, baseado em Dolz e Schnewly (2004).
6. BIBLIOGRAFIA
BAKHTIN, M. (1997). Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes.
BRONCKART, J. P. (1999) Atividade de Linguagem, textos e discursos. Por um
interacionismo sócio-discursivo. SP: educ.
MACHADO, A. R. (2004). Para (re) pensar o ensino de gêneros. In: Caleidoscópio - Revista
de Lingüística Aplicada. São Leopoldo: UNISINOS.
ROJO, R. e CORDEIRO, G.S. (2004). Apresentação: Gêneros orais e escritos na escola como
objetos de ensino: modo de pensar, modo de fazer. In: Gêneros orais e escritos na escola.
Campinas, SP: Mercado de Letras.
SCHNEWLY, B. (2004). Gêneros e tipos de discurso: considerações psicológicas e
ontogenéticas. In: Gêneros orais e escritos na escola. Campinas, SP: Mercado de Letras.
VYGOTSKY, Liev. Et al. (1984). A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes.
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Os direitos de Maria: uma crítica ao papel da mulher na sociedade androcêntrica
Darlan Roberto dos Santos
Mestre em Letras – Teoria da Literatura - Universidade Federal de Juiz de Fora MG
Resumo: Este artigo representa uma contribuição aos "estudos de gênero",especificamente, à
problematização do papel da mulher na sociedade.Pretende-se abordar o conto Os direitos de
Maria, de Moacir Scliar,com ênfase na discussão do papel da mulher no casamento
tradicional,na modernidade e na era contemporânea. Para isso, serão analisados pontos
cruciais do texto, nos quais podem ser observadas algumas características da sociedade
androcêntrica, tais como: a supremaciamasculina, a restrição feminina ao espaço privado e a
indissolubilidade do matrimônio.
Palavras-chave: Estudos de gênero, Matrimônio, Sociedade Androcêntrica
Abstract: This article represents a contribution to the ''gender studies'',specifically to the
uncertainty of the woman's paper in the society.It intends to approach the story The rights of
Maria from Moacir Scliar,with emphasis in the quarrel of the woman's paper in the traditional
marriage,modernity and in the contemporary era.For this,crucial points of the text will be
analysed in which some characteristics of the androcentral society can be observed such as:
the masculine supremacy,the feminine restriction to the private space and the indissolubility
of the marriage.
Key-words: Gender Studies, Marriage, Androcentral Society
I. Introdução
O texto Os direitos de Maria foi escrito por Moacir Scliar para a seção Cotidiano, do
jornal Folha de São Paulo. De acordo com o autor, a intenção do jornal era que fossem
produzidas narrativas imaginárias (reunidas posteriormente no livro O imaginário cotidiano),
baseando-se em notícias publicadas na própria Folha. Para o escritor, a missão representava
um desafio, como ele mesmo explicou:
Lancei-me então à tarefa que, no começo, se revelou difícil. Como ficcionista, eu
estava habituado a trabalhar com meu “noticiário” interno, com minhas próprias
idéias. De repente, porém, a coisa começou a funcionar. [...] atrás de muitas notícias
esconde-se uma história pedindo para ser contada. É a história virtual que
complementa ou amplia a história real [...] (SCLIAR, 2001, p. 5)
A história de Maria, objeto de estudo do presente trabalho, certamente, ansiava por ser
contada. Isto porque, em uma sociedade como a brasileira, sedimentada sobre bases
androcêntricas e patriarcais, milhões de mulheres, ainda hoje, em pleno século XXI,
encontram-se subjugadas por suas famílias e seus maridos, resignando-se a abrir mão de suas
necessidades e desejos. Sem voz própria, tais figuras femininas necessitam que suas
trajetórias sejam expostas.
E a Literatura e os letrados prestam-se a essa função, de registrar perspectivas distintas
da sociedade, servindo, inclusive, de porta-vozes de grupos específicos, até mesmo, os
marginalizados. Ou melhor dizendo, como enfatiza Edward Said: “o papel do intelectual, de
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modo geral, é elucidar a disputa, desafiar e derrotar tanto o silêncio imposto quanto o silêncio
conformado do poder invisível, em todo lugar e momento em que seja possível” (SAID, 1999,
p. 35).
Assim, grupos minoritários – como as “Marias” de que fala o conto em questão – têm
a oportunidade de “existir”, enquanto não adquirem a chance de falarem por si mesmos. É à
tarefa de desvendamento do texto “Os direitos de Maria” e ao levantamento de relações da
obra com aspectos de nossa realidade que nos propomos nessa pesquisa, a qual não pretende
esgotar o assunto, mas, outrossim, lançar possibilidades para seu entendimento.
II. Matrimônio e disparidades entre os sexos
Em um caderno especial, a Folha de São Paulo do dia 3 de dezembro de 1998 publicou
uma reportagem com o título: “Direitos Humanos completam 50 anos”. Em sua introdução, a
matéria chamava a atenção para o não-cumprimento desse conjunto de determinações:
A Declaração Universal dos Direitos Humanos completará 50 anos no próximo dia
10. Aprovado na ONU, o documento foi uma resposta às atrocidades da Segunda Guerra.
Passado meio século, porém, a declaração não é cumprida, segundo relatório da Anistia
Internacional. "A miséria e o medo continuam", afirma a organização. 48
Moacir Scliar, incumbido de utilizar o assunto como matéria-prima para um de seus
textos ficcionais, optou por denunciar uma das mais sutis facetas do desrespeito aos Direitos
Humanos: a inferiorização da mulher. É interessante ressaltar, no entanto, que tal postura de
rebaixamento está presente, até mesmo, na própria Declaração, adotada e proclamada pela
resolução 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948.
Em seu preâmbulo, por exemplo, o documento traz o substantivo “homem”, para
referir-se a ambos os sexos. Diz o prefácio:
Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em
atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade, e o advento de um
mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de
viverem a salvo do temor e da necessidade, foi proclamada, como a mais alta
aspiração do homem comum, [...] a presente Declaração Universal dos Diretos
Humanos. (Grifos nossos) 49
A explicação para tal conduta gramatical, privilegiando o ser masculino, segundo
Helena Confortin, encontra-se na maneira como nossa sociedade foi estabelecida, em
conformidade com uma lógica androcêntrica:
A história foi sempre escrita no masculino porque pensa-se que, na realidade, era
uma história escrita com uma pretensão generalista e era, do ponto de vista de
gênero, neutra. Ou seja, ela não estava nem tratando da formação de meninos ou
homens; ela estava falando do masculino, porque as nossas regras ortográficas, de
gramática, geralmente nos fazem conduzir para o masculino, quando estamos falando
no plural. (CONFORTIN, 2003, p.108)
Afora o seu prólogo, nos trinta artigos que se seguem, a Declaração corrige esse “lapso
sexista” da língua e substitui “homem” por “pessoa”. Entre todos os tópicos, os que mais se
ajustam ao nosso estudo e que, provavelmente, serviram de inspiração para o texto de Moacir
48
49
http://fws.uol.com.br/folio.pgi/fsp1998.nfo/
http://www.undp.org.br/unifem/portugues/direitos.html
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Scliar, são: o primeiro: “todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São
dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de
fraternidade”, e o segundo:
toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidas nesta
Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua,
religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza,
nascimento, ou qualquer outra condição. (Grifo nosso) 50
Sabedora de tais determinações, já que exaltava o fato de ter se casado no mesmo dia
em que fôra proclamada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, Maria, personagem
do conto de Moacir Scliar, não vivenciava em seu casamento a igualdade de direitos com seu
marido, “homem violento”, que a tratava de maneira brutal.
Neste sentido, a desobediência a um outro artigo do manifesto, o de número 16, é
observada na vida conjugal da personagem. Esse item afirma que “os homens e mulheres de
maior idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de
contrair matrimônio e fundar uma família, gozando de iguais direitos em relação ao
casamento, sua duração e sua dissolução” 51. (Grifo nosso)
Entretanto, mesmo ciente de seus direitos, Maria resigna-se: “foi assim com minha
avó e com minha mãe, pensava, será assim comigo também. Portanto fazia tudo o que uma
dona de casa tinha de fazer – lavava, passava, cozinhava – sem se queixar” (SCLIAR, 2001,
p. 35).
Na busca pelos porquês de tal conformismo expresso no texto, desenvolvemos
reflexões que nos fazem crer que Maria representa um paradigma em relação à sociedade em
que vivemos. Uma coletividade que, embora sustente regras de similitude, mantém vivas as
práticas de disparidade entre os sexos.
Pierre Bourdieu (1995, apud CONFORTIN, 2003, p. 113), com base em análises
sobre a somatização das relações de dominação, afirma que isso acontece de forma tão
arraigada em nosso dia-a-dia, que os papéis de dominador (no caso do homem) e de
dominado (no da mulher), já se aplicam instantaneamente aos dois sexos, como máscaras
sociais que se ajustam perfeitamente a rostos pré-determinados. Helena Confortin
complementa o raciocínio, pontuando que:
O indivíduo é dominante ou dominado e isto constrói todo um jeito de olhar, de se
movimentar, de estar no mundo, de perceber o mundo. Toda a análise (de Bourdieu)
mostra que, desde os primórdios da humanidade, há um dominante e um dominado e
que se constrói uma sociedade onde a dominação masculina acaba sendo mais
evidente. (CONFORTIN, 2003, p.113)
Tendo em mente essa constatação, ponderamos que Maria é o protótipo da mulher
submissa, aquela que, mesmo conhecendo as possibilidades de emancipação oferecidas na
contemporaneidade, permanece em atitude servil. Para essas “Marias”, a posição de
dominada, introjetada ao longo dos tempos, é, ainda, mais pungente que qualquer avanço
social ou norma documentada.
50
51
Idem
Ibidem
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Uma das bases dessa “naturalização” das relações de dominação no casamento
moderno – da qual Maria é uma fiel representante – verificou-se com o desenvolvimento dos
valores individualistas no mundo ocidental, quando as atividades de trabalho (especialmente
a partir do século XIX) transferiram-se para o âmbito regido pelo princípio universalista do
mercado (esfera pública), segundo o qual qualquer indivíduo poderia concorrer livremente
para vender sua força física ou intelectual, seus produtos ou serviços. As mulheres, no
entanto, foram suprimidas dessa concepção de trabalho, conforme relata Vaitsman:
[...] as mulheres foram oficialmente excluídas [da esfera do trabalho], através da
ideologia que legitimou a dicotomia entre público e privado segundo o sexo. Elas
passaram a ser definidas socialmente segundo os requisitos de um mundo público
ao qual não tinham acesso, porque seu lugar era numa esfera privada definida pelos
princípios particularistas e hierárquicos das relações atribuídas com certos homens,
como filhas e esposas, e não numa esfera pública definida pelos princípios
universalistas e igualitários do mercado e, mais tarde, da cidadania. (VAITSMAN,
1994, p.30)
A posição de Maria, expressa no conto analisado, é ainda mais submissa se
observamos que, além de tolerar a brutalidade do marido, a personagem vive em função de
seu cônjuge, sem demonstrar interesses pessoais desvinculados de seu papel de esposa.
Senão, o que mais poderia explicar o fato de que, década após década, a dona de casa
rememorava os aniversários de casamento, sempre ansiando por um presente, quem sabe,
até, uma gratificação pelos anos dedicados ao lar e ao esposo?
Para Virgínia Woolf (1985), que, no livro “Um teto todo seu”, debateu as agruras
enfrentadas pelas mulheres em um mundo essencialmente falocêntrico, atitudes como a de
Maria, que confere a seu marido o poder de decidir ao que ela tem ou não direito (e, na
visão dele, ela não tem direito a praticamente nada), acabam por endossar a supremacia
masculina. O mais grave é que, segundo a autora, esse tipo de conduta faz parte do próprio
desenvolvimento de nossa sociedade:
Em todos esses séculos, as mulheres têm servido de espelhos dotados do mágico e
delicioso poder de refletir a figura do homem com o dobro de seu tamanho natural.
Sem esse poder, a Terra provavelmente ainda seria pântano e selva [...]. Qualquer
que seja seu emprego nas sociedades civilizadas, os espelhos são essenciais a toda
ação violenta e heróica. (WOOLF, 1985, p. 48)
As considerações de Virgínia Woolf nos ajudam a compreender a lógica da relação
vivida por Maria e seu marido, que, como já afirmamos, é exemplar na observância de
grande parte dos casamentos tradicionais de nossa coletividade. A mulher, inferiorizada,
elege o homem como o cabeça do casal, aquele que dá as ordens e toma as decisões. Em
contrapartida, cabe à esposa zelar pelo lar e pelo matrimônio, suportando toda espécie de
desmando e humilhação, como as enfrentadas pela personagem:
[...] quando completaram os primeiros dez anos de casados, (Maria) atreveu-se a
pedir ao marido um presente: queria um casaco novo. Afinal, disse, meio brincando,
era também o décimo aniversário da Declaração dos Direitos Humanos, e ela achava
que, na qualidade de esposa dedicada, tinha direito a um casaco. Você não tem
direito nenhum, respondeu ele, seco. Cumpra suas obrigações e cale a boca.
(SCLIAR, 2001, p. 35-36)
Outro fato que chama a atenção é que todos os pedidos formulados por Maria, a cada
década de aniversário de núpcias, envolvem artigos para uso pessoal – casado, vestido, blusa,
um par de sapatos. Isso nos leva a presumir que, embora tenha esmerado-se em cuidar de sua
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casa e do marido, a personagem, ao menos em seu íntimo, não abandonou sua auto-estima e a
capacidade de imaginar-se mais bonita, mais bem cuidada (embora esse desejo possa ser
apenas um reflexo de sua condição de ‘esposa que quer estar apresentável para o esposo’).
No entanto, tendo suas solicitações refutadas, a mulher é alvo de um tipo peculiar de
violência, a qual é ainda mais tênue que aquela empreendida sobre a sua natureza de
indivíduo autônomo. Maria é ferida em sua feminilidade, na possibilidade de manter-se bela,
atraente não somente para seu homem, mas, principalmente, para si própria. Simone Beauvoir
fala sobre as implicações dessa espécie de violência, que toca o ser humano em sua vaidade e
sexualidade: “O homem é um ser humano sexuado: a mulher só é um indivíduo completo, e
igual ao homem, sendo também um ser sexuado. Renunciar a sua feminilidade é renunciar a
uma parte de sua humanidade”. (BEAUVOIR, 1990, p. 452)
Maria abdica de seus desejos; ela opta (ou é cooptada) a viver no estado de imanência
(termo empregado por Simone de Beauvoir para referir-se à mulher passiva). Sem a coragem
necessária para transcender, para romper as amarras de seu casamento, a personagem
mantém-se presa ao matrimônio por quase cinqüenta anos, ou seja: até o fim do século XX.
Em dezembro de 1998, entretanto, a esposa é surpreendida pela decisão do marido, de pôr fim
àquela união.
Valendo-nos dos dados cronológicos oferecidos pelo texto, envolvendo as bodas de
Maria, e apoiando-nos em teorias a respeito do casamento na contemporaneidade, concluímos
que, na verdade, a vida conjugal da personagem passou pelo que poderíamos classificar como
‘transição do casamento moderno ao pós-moderno’. Entretanto, Maria não se deu conta disso,
permanecendo presa às convenções do passado. Para comprovarmos nossa afirmação,
embasamo-nos em algumas características fundamentais do matrimônio em nossa época,
explicitadas por Vaitsman (1994, p. 51):
A partir da definição do pós-moderno como total aceitação da efemeridade, da
fragmentação, da descontinuidade e do caótico, da mistura de códigos e de mundos,
pode-se afirmar o seguinte: em diferentes partes da sociedade contemporânea, a
concepção moderna de casamento e de família, fundada no individualismo patriarcal,
passou a conviver com uma concepção pós-moderna, na qual a heterogeneidade, a
efemeridade, a contextualidade de padrões e comportamentos tornaram-se traços
dominantes e legítimos. (VAITSMAN, 1994, p. 51)
Judith Stacey, em suas pesquisas sobre a família pós-moderna, acrescenta que:
nas condições de vida atuais não existe mais um modelo dominante de família, pois
nenhuma estrutura ou ideologia surgiu para substituir a família moderna.
Combinando estratégias e recursos tradicionais e modernos, as pessoas refazem suas
relações de parentesco em redes que podem ser classificadas como ‘famílias extensas
pelo divórcio’. (STACEY, Apud VAITSMAN, 1994, p. 18)
O divórcio, que representa a fugacidade nos relacionamentos atuais, através do
rompimento do elo conjugal e da liberação dos parceiros para outros possíveis encontros
afetivos, é a opção adotada pelo companheiro de Maria: “uma semana antes do 10 de
dezembro o marido pedira divórcio” (SCLIAR, 2001, p. 36). Esse episódio é emblemático
dentro do contexto desenrolado no conto e no aspecto da realidade que o autor pretendeu
ressaltar – o da mulher que desempenha um papel imanente no casamento, mantendo-se à
mercê das vontades do esposo.
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Como abordamos anteriormente, a mulher foi concebida, a partir do ideal de família
conjugal moderna, como ser hierarquicamente inferior ao homem, restrita ao ambiente
doméstico e condicionada a viver em função de seu marido e dos filhos. Essa foi a conduta de
Maria ao longo da história, com uma única ressalva: ela não tivera filhos. Mas, de resto, a
personagem resignou-se a viver como a avó e a mãe, dominada pelo companheiro.
Durante décadas, as mesmas diretrizes que regeram o casamento tradicional em nossa
sociedade foram acatadas por Maria e seu cônjuge. Ela, no entanto, não atentou para as
mudanças que permeavam os arranjos familiares, à medida que o tempo avançava rumo ao
século XXI. O marido, alerta ao mundo à sua volta, após vivenciar quase meio século de
domínio sobre a parceira, novamente se valeu dos benefícios oferecidos pelas atuais ‘regras’
sociais e optou pela separação.
Mais uma vez, na trajetória desse casal, o ônus do relacionamento, fruto da
disparidade entre os papéis masculino e feminino, recaiu sobre a mulher. Se, durante toda a
vida conjugal, Maria experimentou a submissão e a supressão de seus desejos, com o
divórcio, precisará enfrentar a solidão e, o que é pior, a desorientação diante de uma vida que
agora terá de ser regida por ela mesma:
Ela agora está sozinha – não tiveram filhos – e livre. Não sabe o que fazer com sua
liberdade. Gostaria de pedir o que fazer com sua liberdade. Gostaria de pedir ao
marido, ao ex-marido, um conselho, mas sabe que ele não lhe daria. Na visão dele,
nem a conselhos Maria tem direito. (SCLIAR, 2001, p. 36)
III. Considerações Finais
Após ressaltar, durante toda a história, a inferiorização de Maria e o seu conformismo
diante do matrimônio, Moacir Scliar encerra seu conto de uma maneira sombria, já que a
personagem não consegue abandonar o estado de subordinação ao marido (agora, ex-marido).
Para Maria, trata-se de um epílogo amargo, até mesmo surpreendente, já que, tendo vivido à
maneira da mãe e da avó, ela esperava terminar seus dias ao lado do esposo, como
determinavam as diretrizes do casamento tradicional, as quais ela acatava veementemente.
Por outro lado, trazendo a problemática do conto para nosso contexto social,
depreendemos que uma possível intenção do autor é fazer da história de Maria um alerta às
mulheres que, ainda na contemporaneidade, mantêm-se no estágio de imanência, tendo em
mente preceitos sociais superados, como o da restrição feminina ao espaço privado (ao lar,
enfim), a submissão ao homem (pai ou cônjuge) e a indissolubilidade do matrimônio.
Desta forma, Moacir Scliar cumpre dupla função: retrata a vida de Maria, dando voz a
essa personagem marginalizada e condicionada a viver sob o estigma de mulher submissa, e
chama a atenção para a necessidade que as mulheres de nossa época têm, de transcender
limites sociais e culturais que já não encontram razão de ser na pós-modernidade.
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Referências Bibliográficas
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Humanos. Disponível em: <http://www.undp.org.br/unifem/portugues/direitos.html>. Acesso
em: 23 jan. 2006.
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. 7.ed. Trad. Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1990. 2v.
CONFORTIN, Helena. Discurso e gênero: a mulher em foco. In: GHILARDI-LUCENA,
Maria Inês (Org.). Representações do Feminino. Campinas: Editora Átomo, 2003, p. 107-123.
DIREITOS humanos completam 50 anos. Jornal Folha de São Paulo, São Paulo, ano 67, n.
25.450, dez. 1998. Disponível em: http://fws.uol.com.br/folio.pgi/fsp1998.nfo/. Acesso em:
26 jan. 2005.
SAID, Edward. Cultura e política. Trad. Luiz Bernardo Pericás. São Paulo: Boitempo, 2003.
SCLIAR, Moacir. O imaginário cotidiano. São Paulo: Global, 2001.
VAITSMAN, Jeni. Flexíveis e plurais: Identidade, casamento e família em circunstâncias
pós-modernas. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
WOOLF, Virgínia. Um teto todo seu. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1985.
Anexo
Os direitos de Maria 52
Casaram exatamente no dia em que foi proclamada a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, em 10 de dezembro de 1948. Uma coincidência que Maria sempre achou
significativa.
Não que o casamento fosse feliz. Pelo contrário: o marido, homem violento, tratava-a
brutalmente. Mas ela se resignava. Foi assim com minha avó e com minha mãe, pensava, será
assim comigo também. Portanto fazia tudo o que uma dona de casa tinha de fazer – lavava,
passava, cozinhava – sem se queixar. Mas, quando completaram os primeiros dez anos de
casados, atreveu-se a pedir ao marido um presente: queria um casaco novo. Afinal, disse,
meio brincando, era também o décimo aniversário da Declaração dos Direitos Humanos, e ela
achava que, na qualidade de esposa dedicada, tinha direito a um casaco.
Você não tem direito nenhum, respondeu ele, seco. Cumpra suas obrigações e cale a boca.
Maria não respondeu, obviamente ficou com o casaco, que tratou de cuidar e remendar como
podia. Mas, dez anos depois, no 20º aniversário de casamento (e da Declaração dos Direitos
Humanos) ousou de novo formular um pedido: queria um vestido. De novo o marido
respondeu que ela não tinha direito algum. Maria nunca mais ganhou um vestido.
No 30º aniversário, o pedido foi ainda mais modesto: uma blusa. De novo, nada de blusa: não
tinha esse direito. No 40º aniversário, restringiu-se a solicitar um par de sapatos – mesmo
usados –, mas não ganhou. Passou a andar de chinelos ou até descalça.
No 50º aniversário, não tinha mais o que pedir. E não poderia, mesmo, pedir nada: uma
semana antes do 10 de dezembro o marido pedira divórcio.
Ela agora está sozinha – não tiveram filhos – e livre. Não sabe o que fazer com sua liberdade.
Gostaria de pedir ao marido, ao ex-marido, um conselho, mas sabe que ele não lhe daria. Na
visão dele, nem a conselhos Maria tem direito.
52
Conto de Moacir Scliar publicado originalmente na seção Cotidiano, do jornal Folha de São Paulo, e,
posteriormente, incluído no livro O imaginário cotidiano.
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A SEDUÇÃO PELO CONHECIMENTO NA RELAÇÃO PEDAGÓGICA
Elzimar Pereira Nascimento
Docente da Universidade Federal do Tocantins TO
Mestre em Educação
Resumo: O artigo é uma reflexão baseada nos resultados de duas pesquisas pedagógicas e
apresenta as facetas que permeiam a relação pedagógica no cotidiano escolar. Numa
perspectiva da Psicologia freudiana, focaliza a linguagem como centro do processo educativo,
destacando o papel do professor e do aluno enquanto elementos sedutores. Conclusivamente,
os sentimentos proferidos nos discursos dos alunos e dos professores devem ser
transformados em produção de conhecimentos para melhorar a formação humana.
Palavras-chave: sedução, aprendizagem, conhecimento.
Abstract: This article comes as a reflection based on the result of two pedagogic researches,
presenting many steps that permeate the relationship between the pedagogy and daily school
activities. In a Freudian psychology perspective, it focuses the language as centre of the
educational process, regarding the role of teacher and student as seductive elements.
Therefore, the feelings presented in students and teachers speeches should be transformed in
production of knowledge, in order to improve the human development.
Keywords: seduction, learning, knowledge.
INTRODUÇÃO
Esse artigo é um exercício de reflexão sobre os limites e as possibilidades na aquisição
do conhecimento pela linguagem falada e metodológica, tendo como suporte principal o
envolvimento direto no desenvolvimento de duas pesquisas. Uma investigou o espaço da
linguagem, enquanto sedutora para o conhecimento, na sala de aula e a outra tratou sobre os
mecanismos de sedução na complexidade da sala de aula, enquanto procedimentos
metodológicos. As acadêmicas pesquisadoras são do curso de Pedagogia, Campus
Universitário de Tocantinópolis e realizaram o trabalho enquanto bolsistas do Programa
PIBIC/CNPq, no período de agosto de 2003 a agosto de 2004. Cabe ressaltar que o projeto de
pesquisa surgiu no Grupo de Estudos GEL (Grupo de Estudos da Linguagem, coordenado
pela professora Msc. Francisca Rodrigues Lopes). Fundado em 2002, o grupo estuda, e
analisa os limites e as possibilidades da linguagem usada na sala de aula, por meio da revisão
da literatura e análise de filmes com a temática voltada para a relação professor-aluno.
No cotidiano escolar, professor e aluno 53 transmitem um para o outro, sentimentos de
aceitação e de recusa. Seres humanos, sobrecarregados pelas obrigações impostas, estão num
mesmo palco, e neste palco representam papéis determinados.
Tradicionalmente, o professor tem o papel de ensinar e o aluno o papel de aprender,
mas, mesmo com esses papéis pré-determinados, os dois nem sempre apresentam uma relação
harmoniosa. Cheios de desejos, precisam converter os sentimentos de amor e ódio em desejo
53
Entendemos por professor e aluno, os professores e alunos de diferentes sexo e idade, bem como de diferentes
séries (nível de escolaridade), considerando o aluno enquanto sujeito construtor do seu conhecimento.
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de adquirir conhecimentos formais. A relação estabelecida entre esses atores é composta de
sentimentos diversos, manifestados no contato diário, e alterada por estes contatos. Os
educadores precisam despertar o desejo de aprender dos alunos, e estes necessitam sentir que
o professor não desistiu da vontade de ensinar e de também aprender junto com eles. Destarte,
ambos são sujeitos históricos, sociais, atravessados por outros sentimentos externos que
influenciam a relação pedagógica e conseqüentemente os resultados de aprendizagem.
O sentimento de autoridade conquistada, contrária ao autoritarismo – questão retratada
com propriedade por Paulo Freire em Pedagogia da autonomia, 1999 - ou de autoridade
perdida, e ainda os sentimentos de carinho, demonstrado em ações, e de raiva e vontade de
bater ou matar são vontades contidas e sublimadas. Inúmeras vezes o educador se pergunta o
que fazer com tantos sentimentos juntos, principalmente quando não consegue entender os
próprios sentimentos. Durante a atividade pedagógica, mediada pelo diálogo, são transmitidos
uns para os outros sentimentos e ensinamentos infinitos. Essa relação pedagógica em sala de
aula, concretizada pela linguagem, determina a intensidade dos diálogos, e estes estabelecem
o grau de ensino e de aprendizagem.
Para compreendermos melhor a relação educacional, consideramos basicamente três
pontos: a sedução na interação professor-aluno, as imagens construídas pelos sujeitos e a
necessidade do diálogo como princípio educativo, destacando a sedução inconsciente que a
relação constrói, a qual pode beneficiar ou prejudicar o processo de aquisição do
conhecimento. Neste trabalho, estes pontos estão problematizados, calcados na troca de
experiências estabelecida durante o desenvolvimento das duas pesquisas e nos debates nas
reuniões do grupo GEL, ressaltando que o termo linguagem, usado aqui é entendido enquanto
discurso proferido pelos autores professor e aluno, e ainda enquanto comunicação
estabelecida pela fala, gestos e metodologias para mediar o conhecimento.
De professor (a) para o (a) aluno(a)
Nas relações de sedução, a afetividade está intrinsecamente presente na relação
pedagógica, cuja real importância e influência não são percebidas no processo de aquisição de
novos conhecimentos. A grande reflexão é saber se a linguagem utilizada pelos professores
consegue seduzir os alunos para o desejo de aprender e de permanecer em sala. Nós
professores podemos nos perguntar quais são as linguagens que usamos e se essas linguagens
podem ser traduzidas por laços de amizade.
Os educadores lidam constantemente com a relação de amor e ódio. Independente da
própria vontade, o professor apresenta aversão por determinados alunos e amam
profundamente outros. Como ilustra Morgado 54 (1995, p.108): “Quantas vezes já nos
perguntamos o que fizemos pra despertar o amor exacerbado, a hostilidade e a indiferença?
[...] A que devemos tudo isso, se ali estamos apenas para ensinar?”
Da Educação Infantil à pós-graduação, alunos e professores, desde o início da relação,
procuram sujeitos ideais. O professor parte das transferências sentimentais feitas pelos alunos
e reage aos sentimentos transferidos pelos mesmos. Esta reação, embora inconsciente, pode
ser uma contratransferência, pois o professor também tem fixações libidinais infantis. Porém,
esta contratransferência não contribui para o avanço do processo de aprendizagem e, portanto,
54
Para melhor compreender os conceitos da psicanálise ler: MORGADO, Maria Aparecida. Da sedução na
relação pedagógica. 2ª ed. ,São Paulo: Summus, 2002
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o professor deve substituí-la pelo desejo de ensinar, a autora Morgado, ( 2002, p.115-116),
afirma que:
Para cumprir sua função de mediador entre o aluno e o conhecimento, o professor
não deve corresponder aos intensos sentimentos transferenciais. Sua
contratransferência apenas reforçaria a transferência do aluno, instalando um círculo
vicioso em que a relação pedagógica serviria de pretexto para a revivecência mútua
das fixações libidinais. Para que o saber ocupe o centro da relação, o amor e o ódio
devem ser substituídos pelo mesmo desejo de ensinar e pelo desejo de aprender.
É na transferência e na contratransferência que a relação pedagógica acontece. A
herança emocional estreita os laços de amizade ou de inimizade, em conseqüência,
compromete o trabalho pedagógico da construção do conhecimento, pois o professor quer
lidar com um aluno ideal e não real, da mesma forma, o aluno também idealiza um professor
que não é o real.
O professor é o sedutor envolvido pela sedução dos alunos. Sua fala, seu jeito, seu
corpo, seus gestos podem ser mecanismos para seduzir aqueles que estão à procura de
satisfazer o desejo de conhecimento e também os desejos não realizados na infância. A figura
do mestre (permissivo, punitivo, autoritário ou paternalista) é envolvida numa magia em que
os seduzidos querem também adquirir o segredo, a força, os rituais para serem superiores. Por
outro lado, os alunos que são seduzidos também seduzem com seus afetos, saberes e dizeres.
Na relação de sedução, quem seduz e quem é o seduzido? Não poderemos imaginar
limites numa relação tão complexa em que alunos e professores são sedutores-seduzidos pelo
processo educacional. Ambos representam papéis comuns no sentido de que buscam acolher
um ao outro. O professor quer seus alunos envolvidos, interessados, poderíamos até dizer que
aspira uma conexão com os discentes. Em contrapartida, os alunos querem a atenção, o
respeito e o carinho do professor, durante as horas de convivência no processo educativo.
A concepção de aprendizagem do professor, no início deste século, parte do
pressuposto de que o aluno constrói seu conhecimento, cabendo então, ao professor oferecer
meios para o aluno ter um papel ativo na aprendizagem, oportunizando aos indivíduos
observar o erro (onde errou, o porquê do erro) para avançar no processo de escolarização.
Mas a aprendizagem é uma trajetória longa e difícil de mudança de comportamento, e
para o professor acreditar que cada aluno tem capacidade para aprender é preciso mudar sua
postura de detentor do conhecimento, dotado de um saber especial, e adquirir a postura de
mediador. É exigida do educador a competência de proporcionar meios que facilitem e
promovam uma aprendizagem discente significativa, para a vida cotidiana. Concordando com
Rubem Alves: “[...] eu gostaria de sugerir que se criasse um novo tipo de professor, um
professor que nada teria a ensinar, mas que se dedicaria a apontar para os assombros que
crescem nos desvãos da banalidade cotidiana.” E ainda, um ensino com respeito ao ritmo
próprio de cada um, à criatividade e à bagagem cultural.
Estamos diante de um novo paradigma educacional. Numa retomada histórica, a
história da educação demonstrou, muito fortemente desde a colonização, a tendência
tradicional em que proclamava o professor como o centro do processo educativo. Numa outra
tendência, a escolanovista, o aluno passa a ser o centro. No paradigma atual, ambos ensinam e
aprendem. E esse processo exige a capacidade de querer bem.
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Para o professor querer bem aos alunos, precisa primeiramente querer bem a si
mesmo, pois só se pode estimar o que se conhece, não é possível a auto-estima sem o
autoconhecimento. Nesse sentido, o trabalho docente pode ser direcionado para que o aluno
identifique suas limitações e suas capacidades. Para isso, é preciso ver os alunos enquanto
pessoas portadoras de inteligências múltiplas, como ressalta Celso Antunes (2001).
No âmbito institucional, é crucial a discussão para desenvolver a auto-estima. Numa
relação pedagógica, a mensagem principal é a de estímulo. A todo instante o professor deve
alimentar o desejo de querer fazer melhor, ou seja, os alunos precisam sentir que são capazes
de realizar um bom trabalho. O que está em jogo é a auto-estima do sujeito, sua auto-imagem.
Ao trabalhar com uma turma, seja em qualquer nível, o professor espera alunos ideais,
e não está preparado, suficientemente, para lidar com alunos-problema. O aspecto físico e
emocional, tanto do professor quanto do aluno, mede o grau de afetividade entre os sujeitos na
relação e compromete a produção do conhecimento. Ao considerar que os problemas
emocionais dos alunos afetam a produção intelectual, mesmo sendo originários de fatores
externos, o professor não se exime da responsabilidade pedagógica, pois os problemas
emocionais são transponíveis.
No cotidiano escolar, o professor precisa conseguir lidar com os aspectos emocionais,
reconhecendo os tipos de interações que ocorrem com maior freqüência na sala de aula e o
que desejam os estudantes. É um desafio ao educador se desprender das qualidades negativas
e buscar as qualidades positivas dos estudantes.
A organização estrutural da educação, que obriga o professor a pensar e agir de
determinada forma, e o seu despreparo emocional para ouvir os alunos o levam a desconhecer
os saberes dos mesmos, suas potencialidades, suas alegrias e tristezas, bem como seus
desejos, suas fragilidades, suas aspirações no que se refere ao futuro. Como estabelecer um
diálogo possível para reverter sentimentos em conteúdos para a formação individual? O que é
preciso fazer para ser entendido e se fazer entender? Qual é a imagem que o professor tem dos
alunos, até que ponto estas imagens são reais? Entender todos os sentidos da fala dos alunos,
procurar ouvir os alunos é um processo difícil. Já que isso requer que o professor seja sensível
ao desempenho das pessoas, creia na turma, nos indivíduos, enfim, apostar no sucesso
individual e coletivo, não dando respostas se os alunos podem descobrir sozinhos, instigandoos para que tenham iniciativas e vontade de fazer descobertas. Como saber qual é o desejo dos
alunos? Quem eles realmente são?
Sujeito carente, ser humano fragilizado emocionalmente. Enquanto aprendente quer
respostas para muitas perguntas sobre a aprendizagem discente. Mesmo sem querer, ou
intensionalmente, o professor aprende a escutar, e nesta aprendizagem é uma pessoa que
deseja receber carinho para enfrentar a tarefa difícil de construir o conhecimento no coletivo.
De aluno (a) para professor (a)
A interação professor-aluno implica entender o diálogo produzido em sala de aula no
sentido da dimensão afetiva ceder lugar à hostilidade. O professor tem uma importante tarefa
de transformar o silêncio e os barulhos produzidos em sala em conversas produtivas, no
sentido de estreitar os laços de relacionamento e construir sujeitos reais.
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O aluno procura um professor ideal, diferentemente do professor real. Este professor é
uma pessoa que precisa dominar o conhecimento, ser dotada de uma compreensão sobrehumana, capaz de superar todas as barreiras e dificuldades do trabalho. Procura, ainda, uma
pessoa que possa confortá-lo e alegrá-lo e dando-lhe uma atenção especial, mesmo numa
turma com quarenta e cinco alunos.
Não importa a faixa etária, o aluno hostiliza ou ama a pessoa do professor. No nível do
inconsciente, o aluno transfere ao professor sentimentos fraternais ou sentimentos de aversão
que foram adquiridos em sua primeira infância. Não importa a idade do aluno, este será
sempre aquele com comportamentos inesperados, manifestando dependência no aprender,
querendo o sinal de aprovação e a atenção do professor.
Refletir sobre os sentimentos que os alunos nutrem pelos seus educadores é um
desafio que extravasa as razões conscientes conhecidas por nós e ultrapassa a inteligência
intrapessoal e interpessoal. A transferência de sentimentos tem suas origens no início da vida
do indivíduo, Morgado afirma que as fixações libidinais que o aluno traz para a sala de aula
remetem, necessariamente, às pulsões sexuais e hostis recalcadas durante sua vida, na fase
infantil. Então para compreender a sedução no cotidiano escolar implica considerar a
transferência positiva e a transferência negativa que o aluno faz no plano do inconsciente. Os
conflitos desafiam a autoridade do professor, o aluno demonstra não aceitar a tal autoridade, e
tão pouco o seu papel de mediador, além disso, são muitos os alunos que testam a autoridade
do professor. Nesta situação conflituosa pode existir um mal entendido, pois os professores
podem ser entendidos de diferentes maneiras. Como esclarece Morgado, (1995, p.113).
[...] Repetindo incessantemente o amor e o ódio, tende para o ciclo vicioso que
impede sua relação com o conhecimento: atribui ao professor a função de objeto da
função da pulsão e não a função de mediador. As energias libidinais que deveriam
convergir para a atividade intelectual estão aprisionadas à revivescência do conflito
infantil.
Ao transferir sentimentos de afeto e respeito, o aluno inconscientemente, tende a
aceitar a autoridade do professor, ao contrário quando transfere sentimentos hostis, a relação
torna-se conflituosa.
O aluno vê o professor como aspiração ou rejeição profissional e pessoal, ou seja, é
uma pessoa especial que vai admirar e querer seguir ou refutar, porém de qualquer forma o
que realmente importa é que o professor demonstre domínio de conhecimentos sobre o que
está se estudando. O aluno quer um professor, bom ou ruim, que saiba do que está falando e
ponha significado nos conhecimentos propostos.
Poderíamos afirmar que já não fazem mais alunos como antigamente, afirmação
correta se considerarmos os novos tempos, conseqüentemente novos comportamentos. Os
alunos refutam os professores da Escola Tradicional descontextualizados do mundo moderno.
Eles esperam encontrar um professor com habilidades para conduzir o processo educativo,
sabendo lidar com as novas tecnologias, com os assuntos em pauta e, principalmente, com as
incertezas da sociedade do conhecimento.
As relações interpessoais professor-aluno na escola e a aprendizagem
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Os processos sociais são mecanismos que conduzem a interação entre indivíduos e
grupos, principalmente na vida social escolar. A escola oferece meios pelos quais as relações
se estabelecem entre as pessoas e representam o meio principal para estas situarem-se no
mundo. Para Furlani, (2000, p. 19) o aspecto institucional é primordial para estabelecer as
relações e o poder que delas emana.
A felicidade de cada pessoa depende do grau de interação que consegue, numa
tendência para a intercomunicação com os outros é natural que sua satisfação condicione o
equilíbrio de toda a personalidade. Vygotsky (1993), afirma que a fala é usada para a
socialização das pessoas, portanto, na medida em que a criança interage e dialoga com os
membros mais maduros de sua cultura, aprende a usar a linguagem como instrumento de
pensamento e como meio de comunicação. A qualidade do convívio escolar para a
compreensão e valorização da dignidade se faz pela prática no cotidiano escolar.
Em sala de aula, por exemplo, ao invés de incentivar a competição entre os alunos ou a
sistemática comparação entre seus diversos desempenhos, é preferível fazer com que os
mesmos se ajudem mutuamente a terem sucessos em suas aprendizagens. A escola deve
trabalhar as inter-relações, proporcionando o desenvolvimento de uma boa auto-estima, o
sentimento de cooperação, ensinando a conviver em grupo e com as diferenças.
A instituição escolar deve contemplar a formação humana. Atendendo uma clientela
heterogênea, sem prejuízo da aprendizagem de conhecimentos que transcendem o dia a dia da
escola, sensibilizará e instrumentará os alunos para o convívio do cotidiano.
É notório que os métodos aplicados na escola não abrem leque de possibilidades para
o aluno sentir-se e mostrar-se capaz de realizar algo. A escola tem dificuldade em promover o
diálogo, a discussão, enfim a comunicação no processo ensino-aprendizagem. São raras e
isoladas as iniciativas para utilizar métodos onde são propostos problemas, polêmicas,
inquirições diversas, no sentido de o aluno pensar sobre o pensamento.
Nas discussões do grupo GEL foram relatadas muitas experiências sobre os
mecanismos de sedução para o conhecimento, ressaltando a resistência dos discentes em
assumir a responsabilidade pelo seu estudo.
O processo de ensino-aprendizagem é um espetáculo maravilhoso, no qual os
protagonistas, alunos e professores, desempenham o papel de incessantes desafiadores a
construírem uma pedagogia baseada na esperança de acontecer uma educação escolar
congruente com os anseios da moderna sociedade, sendo valorizado e reconhecido o material
humano que a compõe. Nesse modelo de educação, espera-se que o ser humano venha ser
respeitado na condição de autor de sua própria história, sujeito que aprende em comunhão.
Numa reflexão incipiente, questiona-se quais são os princípios que devem embasar o
currículo para que possa atender os aspectos da vida do ser humano. As literaturas indicam o
fortalecimento da concepção humanista. O ser humano precisa conhecer-se, encontrar-se, o
encontro consigo deverá prevalecer. Saber quais são as potencialidades que possui e qual é o
melhor caminho para ser feliz, deve anteceder os aspectos científicos da formação.
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Um currículo preocupado com a formação humana, conforme afirma Assmann,
(2000), conduzirá o trabalho pedagógico de forma que o discente possa expor sobre sua vida,
sua visão de mundo, seus entendimentos, suas dúvidas, enfim, a oportunidade de se
manifestar deve ser garantida, favorecendo o desenvolvimento da autonomia, de acordo com
Freire, (1999). O currículo se concretiza nas produções dos discentes, nas relações
estabelecidas com os conteúdos e nas práticas educacionais vividas pelos partícipes da
formação, currículo este, que aproxime o processo ensino-aprendizagem real do ideal. Não
obstante, um currículo que fortaleça a caminhada educacional rumo a uma convivência mais
harmoniosa entre os sujeitos professor e aluno, envolvidos no processo.
Considerações finais e busca de novas reflexões
Atualmente, pode-se afirmar que alunos e professores estão em busca de identidade,
exatamente porque estamos vivendo um novo tempo. Enfrenta-se uma corrida desenfreada
pelo conhecimento, alunos e professores sentem-se incapazes de absorver tantas informações.
Poderíamos parafrasear concordando que o professor é um fingidor, pois finge cumprir
uma tarefa que deveras não cumpre, pois precisa desconsiderar suas limitações e sublimar
suas vontades em tarefas a serem cumpridas.
Alunos e professores vão eliminando conteúdos de uma programação, somam os
pontos necessários para uma aprovação e, conformados com a metodologia do
fingimento,como afirma Werneck, (1998), cumprem seus papéis: um de ensinar e o outro de
aprender. Atores de um mesmo palco, ambos sofrem com os desencantos educacionais.
Quantos sentimentos resguardados e outros manifestados, que interferem fortemente na
aprendizagem! Podemos afirmar que adquirir conhecimento não é um procedimento fácil. São
muitas as interrogações sobre a aquisição do conhecimento e as incertezas acompanham essa
investigação.
A escola está aquém de se preocupar com as linguagens e seus efeitos, pois muitos são
os questionamentos a respeito da linguagem que a Escola comumente usa. Ao relacionar o
conhecimento que se adquire com a linguagem proclamada em sala de aula, cabe analisar
quais as linguagens que usamos em sala.
Numa relação de sedução, precisamos saber para onde a sedução nos encaminha,
como estamos usando o poder da sedução, o que fazemos para encantar na relação
pedagógica, e colocarmos como líderes e seduzir pela fala. O aluno quer se parecer com o
líder, ser discípulo do mestre. Os mecanismos de sedução estão na relação dialógica em que
estão presentes a empatia e simpatia. O que leva ao encontro do outro enquanto conteúdos de
ensino é falar com a alma, sendo sedutor no sentido de ser carismático, agradável.
Os resultados finais das pesquisas mencionadas no início deste texto, revelaram que
metodologicamente os alunos são seduzidos pelo conhecimento quando se usa metodologias e
recursos diferenciados e atuais, como o uso do computador. E a sedução pela linguagem,
enquanto discurso, se dá quando o professor tem uma boa oratória, tem delicadeza e atenção
com os discentes.
Acreditamos numa relação dialógica entre aluno e professor, pois, quando o diálogo é
estabelecido, algo novo é construído, os laços afetivos são indubitavelmente aliados,
poderosos a favor da aprendizagem. Isso não significa dizer que numa relação de antipatia a
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aprendizagem não aconteça: o conflito gera uma competição, e, quando um quer provar para o
outro sua sabedoria, são obrigados a crescerem intelectualmente; porém, alguns valores ficam
comprometidos e, pensando, eticamente, não é viável que aluno e professor se digladiem o
tempo todo, ao contrário, a harmonia é necessária, os laços de afetividade proporcionam uma
formação humanizada.
O grande desafio posto hoje é o de desconstruir um planejamento anacrônico e
construir coletivamente um planejamento exeqüível, reflexivo, que tenha como fim último
promover o desenvolvimento total do ser humano, considerando o aspecto cognitivo, motor e
afetivo. Um planejamento que acredita na capacidade intelectual, de todo ser humano e que
promova oportunidades para ser manifestada esta capacidade.
A relação professor-aluno é interferida por problemas educacionais complexos e o
processo de aprendizagem passa por uma situação caótica. A escola não cumpre o seu papel
de promover condições para o crescimento humano. Conseqüentemente, a promoção da
criatividade, da valorização da auto-estima nas escolas brasileiras fica aquém do previsto nas
metas educacionais.
Os caminhos para um melhor aproveitamento da relação pedagógica vão sendo
construídos à medida que a escola relaciona o afetivo com o cognitivo. Portanto, refletir sobre
as questões aqui apresentadas é fundamental para valorizar os educandos e os educadores,
pois as relações construídas na relação pedagógica, marcam a vida de cada pessoa que, na
busca pelo conhecimento, ficou seduzida pela vontade de ensinar ou pela vontade de
aprender.
Referências
ALVES, Rubem. Educação dos sentidos e mais. Campinas, SP: Verus Editora, 2005.
ANTUNES, Celso. Marinheiros e professores. São Paulo: Vozes, 2001.
ASSMANN, Hugo. Reencantar a educação. Rumo à Sociedade aprendente. 2 ed. Trad.
Mauro W. Barbosa de Almeida. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 10ª ed.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.
FURLANI, Maria L. Teixeira. Autoridade do professor. Meta, Mito ou nada disso? São
Paulo: Cortez, 1998. (Coleção Primeiros Passos).
MORGADO, Maria Aparecida. Da Sedução na relação pedagógica. Professor-aluno no
embate com afetos inconscientes. São Paulo: Plexus, 1995.
VYGOTSKY, Lev Semenovictch. Pensamento e linguagem. Trad. Jéferson Luiz Camargo.
São Paulo: Martins Fontes, 1993.
WERNECK, Hamilton. Se você finge que ensina, eu finjo que aprendo. 15ª ed. Petrópolis:
Vozes, 1998
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A OFÉLIA DE SHAKESPEARE NAS PINTURAS DO
PRÉ-RAFAELITA JOHN EVERETT MILLAIS E DO SIMBOLISTA PAUL STECK: O
PESO E A LEVEZA DA LOUCURA
Enéias Farias Tavares
Professor e Mestrando em Literatura Comparada -Universidade Federal de Santa Maria RS
Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar a personagem Ofélia da peça Hamlet, de
William Shakespeare. Esse estudo usa duas pinturas românticas para mostrar como a loucura
de Ofélia se torna elemento essencial no período. O pré-rafaelico John Everett Milleis
representa Ofélia nos momentos que antecedem sua morte, flutuando nas águas do pequeno
riacho. O simbolista Paul Steck pinta o corpo de Ofélia, morto, afundando nas mesmas águas
da pintura de Millais. Sua pintura traz no peso do corpo de Ofélia, uma leveza inexistente na
anterior. O paradoxo do peso e da leveza da loucura de Ofélia nas duas pinturas do século 19
é o tema central dessa análise.
Palavras-Chave: William Shakespeare – Ofélia – Artes Plásticas
Abstract: This article has for objective to analyze the Ophelia character of the play Hamlet,
by William Shakespeare. This study will use two romantic paintings to show how the
madness of Ophelia becomes an essential element in that period. The Pre-Raphaelite John
Everett Milleis represents Ophelia at the moments that precede her death, floating in waters of
a small stream. The Symbolist Paul Steck paints the body of Ofélia, dead, sinking in same
waters of the painting by Millais. His painting brings in the weight of the body of Ofélia, the
inexistent slightness of the previous one. The paradox of the weight and the slightness of the
madness of Ofélia in two paintings of 19th century is the central subject of this analysis.
Key-Words: William Shakespeare – Ophelia – Plastic Arts
Introdução
Em Hamlet, William Shakespeare apresenta uma multiplicidade de temas
dramaticamente expressivos: no caso de Hamlet, num imenso percurso intelectivo, ao
descobrir a verdadeira causa da morte de seu pai: o assassinato infligido por seu tio, padrasto
e rei da Dinamarca, Cláudio; na figuração de Laertes ao ter seu pai morto e enterrado as
escondidas e encontrar sua irmã ensandecida; em Gertrudes ao suspeitar que casou com o
irmão assassino de seu falecido esposo. Frank Kermode indica esse caráter plural ao
mencionar que a partir dessa peça “toda a concepção de um personagem dramático fica
mudada para sempre”, insistindo num jogo que não é bipolar ou antitético, e sim
polivalente 55. Na peça shakespeareana, todos esses elementos funestos entrelaçam-se numa
precisa e contundente teia de dramas familiares, políticos e existenciais. No entanto, é na
história de Ofélia que o sino da escritura shakespeareana encontra um de seus badalares mais
delicados. A descrição de Ofélia, cuja imagística da morte nas águas se torna representativa
55
KERMODE, Frank. 2006, 182.
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em toda arte após ela, é precisa e direta. Seu drama é constituído de várias camadas: seu
caráter solitário em resposta à distância do irmão Laertes; seu comportamento submisso e
amedrontado diante do preocupado e ciumento pai Polônio, mais tarde assassinado; e sua
fragilidade nos momentos em que Hamlet interpretando um falso louco a confunde e a
despreza. No último ato da peça, quando Hamlet reencontra os restos de Yorick, seu corpo
está sendo trazido para ser enterrado em chão não consagrado. Sua morte, que acontece em
circunstâncias misteriosas que indicam um possível suicídio, não merece nem os serviços
fúnebres completos, algo remediado por Claudius e Gertrudes. O último encontro dos dois
mostra a Hamlet que seu passado de príncipe dinamarquês realmente está morto. Ofélia não
voltará. Nem mesmo o fantasma de seu pai. Para ele, basta apenas esperar pela conclusão de
sua vingança. Nesse aspecto, a análise da construção da personagem de Ofélia faz referência a
todos os elementos que descrevem a figura do próprio protagonista na tragédia de
Shakespeare em sua ambigüidade, sofrimento e desesperança. Caroline Spurgeon une essas
interpretações quando explica como a doença mental de Hamlet contamina todos os
personagens da peça.
“Essa imagem retrata e reflete não só a situação externa que causa a doença
espiritual de Hamlet, mas também seu próprio estado. De fato, o choque causado
pela descoberta do assassinato de seu pai e pela visão da conduta de sua mãe é tal
que, quando a peça começa, Hamlet já começou a morrer, a morrer interiormente;
porque todas as fontes de vida – amor, riso, alegria, esperança, confiança nos
outros – estão sendo congeladas em sua fronte e gradativamente infectadas pelas
doenças do espírito que o vai – sem que ele o saiba – matando.(...) ... aniquila a
ele e a outros, tanto os inocentes quanto os culpados. Essa é a tragédia de Hamlet,
assim como talvez seja o principal mistério trágico da vida.” 56
Assim, quando a peça começa, tanto Ofélia quanto os outros personagens importantes
da peça já se encontram manchados por algo originário do espírito então soturno de Hamlet.
Diferente da morte do protagonista, a morte de Ofélia conforme descrita por Gertrudes, se
tornou um tema regular em diferentes expressões artísticas, especialmente no Romantismo,
quando as tragédias de Shakespeare estavam no auge de sua valorização. Especialmente na
pintura da época, encontramos uma supervalorização da melancolia exacerbada, do
pessimismo exultante, de uma morte suicida e primal, além de um encontro com uma natureza
sublime e inabarcável, num contraste profundo com o período neoclássico que precedeu o
Romantismo nas artes. 57 Nesse modelo, o Romantismo supervalorizará, num segundo
momento, essa morbidez e esse descontentamento interminável sendo isso característico da
escola tanto na literatura como no campo das artes plásticas e da música erudita. Nesse
ambiente, os personagens de Shakespeare encontrarão aceitação total, especialmente em suas
figurações trágicas: Otelo e Desdêmona ao lado de Romeu e Julieta representarão uma
desmistificação do amor perfeito e tranqüilo, tão em voga no Neoclassicismo; Macbeth e sua
esposa serão retrabalhados, tanto na literatura quanto no palco, como personagens ideais num
ritual infindável de morte e sofrimento ambicioso; Lear tornar-se-á um moderno Jó que ao
lado do bobo e dentro da tempestade não ouvirá a voz de Javé, apenas o som de suas
imprecações contra o nada; Hamlet, por fim, será em sua figuração um homem encerrado
dentro de uma notável capacidade intelectual, obrigado a organizar um mundo desorganizado
em sua natureza primitiva. Ao seu lado, Ofélia será no Romantismo, tanto na literatura quanto
na pintura, uma viva representação do ideal da donzela consumida por um amor destruído e
por um sofrimento de abandono e medo. Desse modo, é nessa personagem que John Everett
56
57
SPURGEON, Caroline. 2006, 299.
BECKETT, Wendy. 1994, 238-239.
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Millais e Paul Steck basearão as representações de seus respectivos ideais artísticos. O
primeiro, de um frio e desesperador encontro entre o ser e a natureza. O segundo, como um
sonho escuro no qual o corpo adentra as águas uterinas da morte. Sendo as duas pinturas um
exemplo modelar da poesia desesperadora e contundente presentes na personagem Ofélia.
John Everett Millais e sua Ofélia: o peso da loucura
Nessa reinterpretarão dos personagens shakespeareanas nas artes plásticas a partir do
final do século XVII, destacam-se as pinturas de Rudolf Cores Huber, Charles Edouard
Edmond Delort, Joseph Severn, Henry Munro, Paul Falconer Poole, George William Joy e,
com mais destaque, Eugene Delacroix, entre outros 58. Na corrente artística conhecida como
pré-rafaelita, John Everett Millais (1829-1896), será um dos grandes exponenciais dessa
imagética ao pintar Ofélia (1851-1852), descrita por Gertrudes a Cláudio e Laertes. A arte de
Millais é produzida em meados do século XIX, quando um pequeno grupo de jovens artistas
britânicos insurgiu-se vigorosamente contra o que julgava ser “a arte frívola de jovens artistas
britânicos” 59, como era encarado a arte da época. Essa reação foi conhecida como movimento
Pré-Rafaelita. Ao lado de Millais, Dante Gabriel Rosseti e William Homan Hunt serão os
fundadores dessa irmandade que imitava os moldes das confrarias medievais. A diferença
primordial entre eles é que Millais destacará mais em sua obra temas de cunho romântico e
religioso somados a características realistas, ao passo que Rosseti e Hunt buscarão no período
medieval inspiração para sua produção.
Sobre a pintura pré-rafaelita Wendy Beckett menciona:
“O desejo desses artistas era trazer de volta à arte inglesa maior fidelidade à natureza. Admiravam
bastante a simplicidade italiana do começo do século XV e achavam que tal admiração os
transformava numa ‘irmandade’. Enquanto críticos e historiadores da arte veneravam Rafael como
grande mestre da Renascença, esses jovens estudantes rebelavam-se contra o que consideravam a
teatralidade rafaelita e a hipocrisia e pompa vitoriana da tradição artística acadêmica. Decidiram
então fundar uma sociedade secreta, a Irmandade Pré-Rafaelita, em homenagem à autenticidade da
Primeira Renascença, quando ainda não surgira o estilo, a Grand Manner, de Rafael. Os prérafaelitas assumiam uma postura de moralidade edificante, que abarca uma combinação às vezes
canhestra de simbolismo e realismo. Só representavam temas sérios (em geral religiosos ou
românticos), com traço e colorido muito claro e nítido. Esse estilo era marcado pela extrema
insistência em pintar tudo a partir da observação direta.” 60
A afirmação de Beckett revela um compromisso que os pré-rafaelitas tinham com uma
realidade imbuída de impressões particulares e objetivas. Como união Romântica no tema e
Realista na forma, esses pintores já prenunciavam uma arte moderna na qual os parâmetros
estéticos não seriam antitéticos e sim auto-referenciais. Eco define os pré-rafaelitas como
artistas encantados com a natureza como representação máxima da beleza, sendo ao mesmo
tempo acompanhado pelo mistério e pela perversidade humana. Nas belas e estranhas
mulheres de Rosseti essa definição se torna exemplar. Suas mulheres estão sempre imersas
num meio natural, afetando-a de forma negativa. São mulheres jovens e belas com um pouco
de Lilith e Eva 61, primeiras mulheres na cultura judaica a significarem a perdição do
Homem 62. Nesse âmbito, Ofélia na representação lírica de sua morte atenderá aos desejos
58
HOLDEN, Anthony. 2003, 273.
BECKTT, Wendy. 1994, 273.
60
BECKETT, Wendy. 1994, 274.
61
Segundo escritos judaicos, Lilith seria a primeira mulher de Adão, a tenta-lo antes ainda de Eva, tendo a
segunda obtido sucesso. Rosset irá pintar sua lady Lilith encantada com sua imagem no espelho, prevendo a
conhecida vaidade feminina e facilidade em seduzir por sua beleza.
62
ECO, Umberto. 2004, 351.
59
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ideais da arte praticada por esse pequeno grupo. Sua música ensandecida e a grinalda de flores
silvestres serão a companhia da jovem a caminho da morte, segundo as palavras da mãe de
Hamlet 63:
RAINHA
As dores quando vêm, vêm uma atrás da outra.
Laertes, Laertes, tua irmã se afogou.
LAERTES
Se afogou? Oh, onde?
RAINHA
Há um salgueiro inclinado sobre uma nascente
Que espelha as folhas gris no líquido cristal.
Ali fez fantásticas guirlandas, de urtigas,
Margaridas, ranúnculos e orquídeas púrpuras
A que os ímpios zagais dão um nome vulgar,
E as castas virgens chamam dedos-de-defundo.
Quando subiu nos galhos pensos para atar
Suas guirlandas, um ramo ciumento cedeu
E então tombaram ela e seus troféus floridos
No riacho choroso . Suas roupas se abriram,
E como uma sereia boiou por instantes
Nos quais entoou refrões de antigas cantorias
Como alguém insensível a própria agonia
Ou como um ente nato e de todo integrado
À água que escorria. Porém, não demorou
E suas vestes, pesando da água que bebiam,
Arrastaram a infeliz de suas cantigas doces
Para a morte lodosa.
O lamento de Gertrudes é respeitoso e lírico, cuidadosamente escolhido para explicar a
Laertes como sua irmã morreu. A expressão pictórica de Millais em sua Ofélia é sensível a
um período que valoriza as angústias potenciais da existência. No entanto, os detalhes da
personagem, as flores espalhadas e também levadas na e pela água, o mato crescendo caótico
ao redor do riacho e o pequeno rouxinol que assiste a cena impassível expressam uma
preocupação especial não com a teatralidade da história, e sim com o realismo da pintura.
63
Todas as traduções de Hamlet, de William Shakespeare, foram feitas por Lawrence Flores Pereira.
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A produção de Millais, assim como também as de Rosseti e Hunt, é considerada passadista
no período por estar presa num passado poético e representativo que já não mais interessava
tanto aos artistas da época, que já prenunciavam o Impressionismo que teria por principais
expoentes Cammille Corot, Keam-François Millet, Edouard Manet, Auguste Renoir e Claude
Monet, entre outros. Embora a obra de Millais seja por certo minuciosa e em geral
trabalhosamente fiel, nas palavras de Becktt, parece ser “perturbadoramente desconexa” 64 de
seu tempo e do desenvolvimento artístico que outros pintores da época prenunciavam 65. Sua
Ofélia foi pintada com minuciosa atenção, usando como modelo a jovem Elizabeth Siddal
imersa numa banheira e rodeada de genuínas flores silvestres 66. Após, Millais passou mais de
quatro meses num córrego do condado de Surrey, a sudoeste da cidade de Londres, pintando
as águas, a vegetação e as flores ao fundo. O processo criativo de Millais demonstra seu
profundo interesse em captar a morte da personagem de Shakespeare de forma autêntica e
real, o mais próximo de uma natureza morta e sombria que poderia conceber. Segundo vários
críticos de arte, o resultado não é bom. A preocupação realista de Millais faz com que o todo
pareça um tanto desarticulado, como se as águas, as flores e a personagem não pertencessem
ao mesmo cosmos, inseridos e penetrados em suas próprias realidades. Talvez uma explicação
para esse desprezo dos críticos seja exatamente a desconexão do estilo realista de Millais com
a arte impressionista e simbolista produzida naquele momento. No entanto, o que interessa na
figuração de Millais é o modo como o artista capta a expressão facial e corporal de Ofélia,
64
BECKETT, Wendy. 1994, 274.
Para mais detalhes de Millais e dos pintores pré-rafaelitas e impressionistas, ver A História da Pintura, pg 274305.
66
Sobre Elizabeth Siddal vale uma pequena nota sobre acontecimentos funestos que foram prenunciados pela
Ofélia a que serviu de modelo. Millais apresentou sua modelo ao amigo, pintor e poeta Dante Gabriel Rosset.
Após um namoro conturbado de quase dez anos, os dois casaram-se em 1860. Dois anos depois, Elizabeth,
viciada em láudano e já com a saúde deficiente devido ao vício, faleceu deixando Rosset arrasado, que enterrou
junto com a esposa diversos de seus escritos. Em 1869 Rosset insiste em desenterra-la para exumar o corpo. Por
fim, em 1872 ele tenta suicidar-se e morre uma década depois sussurrando o nome de Elizabeth, imortalizada
pela pintura de Millais e pelos poemas melancólicos de Rosset.
65
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representando-a em seu momento final pouco antes da morte. O corpo de Ofélia segue as
flores e as folhas mortas que estão ao seu redor. Desligadas de seu vínculo com a natureza, as
flores começam a morrer assim como Ofélia se encontra nesse momento, quando todos as
ligações familiares e amorosas foram rompidas, estraçalhadas e perdidas. Em Hamlet, num
circuito interminável de interiorização investigativa e por fim vingativa, os corpos deixados
para trás são sepultados sem funerais. Polônio adentra o solo dinamarquês como um estranho,
motivo da raiva de Laertes.
Como foi que morreu! Não tentem me lograr.
Pro inferno, devoção e pro diabo os meus votos!
E pras quintas mais fundas minha graça e consciência.
Que venha a danação. O meu estado é tal
Tão extremo que mando os dois mundos à favas.
E venha o que vier, só penso é em me vingar
Da morte do meu pai.
(...)
A morte que ele teve, o funeral furtivo,
Sem troféu, espada ou brasão cobrindo os ossos,
Sem ritos nobres ou pompa cerimonial,
Clama, como o céu clama pra terra, que o escutem
E que eu questione tudo.
(IV. v.)
Ofélia vê seu pai desaparecer, Hamlet partir para a Inglaterra e Laertes está longe sem
nem ao menos saber da morte de Polônio. Resultando disso, a construção poética de Ofélia
pode ser semelhante à de uma folha seca levada pelo vento, estando antes presa aos galhos
fraternais de seu pai e irmão preocupados e ciumentos e aos vínculos amorosos de seu
relacionamento com Hamlet. Ofélia está agora, qual folha perdida e arrancada de sua árvore
original, vagando sozinha pelos corredores escuros de Elsinore. Nem mesmo o retorno de
Laertes causa algum efeito benigno. O mal que provoca o sofrimento de Ofélia já está
consumado. Aos olhos de todos Ofélia está além de qualquer ajuda. Sua última canção da
peça, na verdade seu réquiem, tem por mote a morte de seu pai
Ele não volta mais?
Não voltará jamais?
Não, é findo e morto
Vai, deita no teu horto
Que ele não volta mais.
A barba era de neve,
O topo um linho leve.
Partiu, está num vão,
Gemer agora é vão
Que Deus lhe dê perdão
(ibidem)
Os primeiros versos podem ser associáveis a qualquer das figuras masculinas
representativas para ela, mas que distante estão. Hamlet não está mais interessado nela.
Polônio está morto, e ela sabe disso. E Laertes retornou, porém tarde demais para que possa
reverter seu sofrimento e demência. Na concepção mental, machucada e maculada, de Ofélia
ele também já se foi. Suas palavras de advertência já não servem mais. Três são os discursos
pontuais para compreendermos os estados psíquicos de Ofélia que levam a sua loucura e
morte. Laertes adverte
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Fica atenta – ter medo é um seguro mais certo.
Ser jovem é se trair, sem ter nada por perto.
(I. iii)
Para depois ser seguido do discurso de seu pai:
Eu lhe ensino: você fez papel de bebê
Ao se deixar pagar co essas belas ofertas.
É pura moeda falsa! Oferte com mais zelo
Senão – pra não esfalfar a pobre palavra
No galope - vai é me ofertar um fedelho.
(ibidem)
Nessa construção imagética, cheia de palavras de advertência, tanto Laertes quanto
Polônio advertem Ofélia que suas ilusões amorosas não passam de bobagens inspiradas por
construções verbais engenhosas criadas por Hamlet. Nesses comentários, as palavras do
protagonista são como laços e iscas que visam apenas aprisionar sua virgindade. Se falamos
daquilo que vemos no espelho a cada dia, as palavras dos parentes próximos de Ofélia apenas
revelam as próprias ações dos oradores. Polônio, por exemplo, aparenta ser um pai dedicado
em seus conselhos a Laertes, apenas para demonstrar na primeira cena do segundo ato quais
são suas motivações primeiras. Que tipo de homem prepara armadilhas para seu próprio filho
para julgar-lhe o caráter, não estando o mundo já cheio delas? Ofélia recebe assim em seu seio
as palavras de seu pai e irmão, julgando-os mais velhos, sábios e experientes. No entanto,
quando Ofélia dá ouvidos a tais conselhos, ela apenas entrega seu coração para que seja
plantado e cultivado ali sementes de desconfiança e amargura. Sementes que mais tarde
germinarão sua loucura. E é nessa loucura que Millais se baseia ao construir sua
representação. A Ofélia de seu quadro ainda está viva, embora não mais mantenha relação
alguma com a realidade. Seu corpo é leve, embora essa leveza revele um curioso paradoxo.
Para Ofélia, sua desgraça é resultante das relações mortas que mantinha anteriormente com
Polônio, Laertes e Hamlet. São essas relações passadas que prendem-na a sua loucura, que
pesam em sua mente e coração, impossibilitando-a de afundar para a morte. Em Millais a
leveza é pesada e mantém a personagem num continuo torpor de insanidade e amargura.
As flores presentes no quadro também têm um todo simbólico com o desenvolvimento
dramático da peça. Papoulas, margaridas, rosas, violetas e amores-perfeitos são algumas das
flores presentes na pintura. Simbolizando, respectivamente, morte, inocência, juventude,
fidelidade e amor falso, as flores constituem todo o cenário imagético da tragédia. CarrGomm, numa descrição das representações pictóricas de flores, afirma que a união de flores
claras indica pureza e virgindade, ao passo que flores vermelhas indicam morte e sofrimento,
enquanto flores roxas indicam tristeza e solidão 67. Segundo Gertrudes, Ofélia estava colhendo
flores silvestres antes de cair no riacho. Assim, o motivo da morte de Ofélia se torna, em
Millais o objetivo estético de sua representação. Numa peça na qual quase todos os
personagens encontram seu fim devido a seus objetivos 68, Ofélia morre colhendo flores para
embelezar sua loucura.
67
CARR-GOMM, Sarah. 2004, 97.
Polônio morre por estar espiando a conversa de Hamlet e Gertrudes; Rozencrantz e Guilderntern morrem
como resultado da carta condenatória que levam; Laertes e Claudius morrem vítimas de seus ardiz para matar
68
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No quadro pré-rafaelico, a natureza ao redor de Ofélia não é atraente. São matos,
galhos, folhas e plantas desordenadas e selvagens. Esse encontro com uma natureza não
agradável remete Ofélia a um fim natural. Não interessada no que está ao redor dela, Ofélia
canta e olha para o nada, imersa em sua própria interioridade. Essa descontinuidade entre o
cenário e a personagem revelam que Ofélia está desprendem-se de sua realidade. Suas roupas
pesadas começam a afundar nas águas do córrego, apesar do rosto e das mãos da personagem
ainda estarem conectadas com o ar acima dela, como se olhassem ou chamassem aqueles que
ainda vivem. O afundamento de suas vestes, numa espécie de dissolução, respondem a
dissolução mental de Ofélia e prevêem sua futura dissolução corporal nas águas do pequeno
riacho. Seu rosto, máscara pré ou pós mortuária, é sinistro por representar sua musical
loucura final. Essa apavorante visão remete a imagem que todos temos de entes queridos
falecidos em seus velórios. Quando nos aproximamos dos mortos, percebemos que seus traços
faciais que tanto aprendemos a reconhecer estão ali. No entanto, a rigidez dessa antiga face
dinâmica nos mostra que algo está ausente. Nisso está um dos muitos desconfortos de
encontrar os mortos. Do mesmo modo, a vida deixa o corpo de Ofélia lentamente no retrato
de Millais. Sua face é aterrorizante ao representar uma realidade excessiva, cujos olhos e
lábios vazios não mais remeterão a imagem ou som algum. Nesse aspecto, o hiper-realismo da
pintura de Millais confunde o real com a representação. Sua pintura, certamente a mais
conhecida representação da personagem, insere-se nos sentimentos do expectador remetendo
a uma ciência da desgraça, já presente na tragédia de Shakespeare mas jamais representada
com tanto apuro visual. Comparadas a ela, todas as outras representações de Ofélia perdem
sua força emotiva. Parecem meros esboços rabiscados perto da realização fotográfica proposta
por Millais.
Completando o quadro, à esquerda da cabeça de Ofélia, fazendo talvez companhia
musical a sua imagem, está um pequeno pássaro, um rouxinol talvez, que completa o cenário
pretendido por Millais. Em sua doce música, Ofélia morre em consonância com a natureza,
embora excluída dela. Sua morte não é fruto do natural, e sim do maligno social presente em
cada pedra de Elsinore. Em Millais, Ofélia se recusa insistentemente a fechar de olhos. Esse é
também um recusar ao esquecimento. Em sua loucura e desespero, em seu torpor de morte, a
leveza da Ofélia de Millais é ilusória. É um dissolver-se imagístico que percorre rapidamente
o lento dissolver de sua lucidez. O peso de sua loucura não a deixa descansar, num contraste
curioso com a Ofélia do simbolista francês Paul Steck.
A Ofélia de Paul Steck: a leveza do descanso e o fim da loucura
O simbolismo nasce na França a partir de um manifesto de 1886 que criticando as
estéticas Realistas e Naturalistas, por sua abstração e esterilidade expressiva, denomina de
simbolismo uma atividade artística marcadamente mística, individualista e subjetiva. 69
Pintores como Paul Steck (1861-1924) expressarão em suas pinturas uma realidade forjada de
imagens oníricas, misteriosas e imprecisas, temas centrais de suas pinturas. No âmbito do
onírico, Ofélia será uma personagem que estará em consonância com o pensamento simbolista
de representar e compreender a vida como sonho. O irreal e o abstrato se tornam formas de
representar o real e definido. 70
Hamlet, que morre após ter executado sua vingança, deixando apenas para Gertrudes, assim como Romeu,
Julieta e Desdêmona, a morte vitimada por uma armadilha do desencontro, do destino, da culpa de outro.
69
BECKETT, Wendy. 1994, 321.
70
ECO, Humberto. 2004, 346.
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Outros pintores em concordância com a corrente artística na qual Steck está inserido
serão Gustave Moreau, Odilon Redon, Maurice Denis, Paul Sérusier e Aristide Maillol. Em
resposta a pintura de Millais, e a tantas outras do período, o simbolismo apresentará uma
Ofélia apaziguada com a morte e com sua loucura final na pintura de francês Paul Steck. Em
contraste com a Ofélia de Millais, Steck procurará uma diferente interpretação para a
personagem. Dessemelhante de seu predecessor, Steck mergulha a jovem em águas fundas e
lamacentas. Próprio do simbolismo, seu interesse é o de representar uma Ofélia imersa num
jogo onírico entre o deixar a superfície da vida e o adentrar na água semelhante ao liquido
uterino primordial. Nesse aspecto, o peso que faz com que Ofélia afunde certamente não é
mais constituído pelos discursos de Polônio e Laertes, que levam-na a não acreditar numa
vida conjugal com o príncipe. Em Steck, são as palavras condenatórias de Hamlet que fazem
Ofélia afundar, junto de suas esperanças e sua sanidade.
Os discursos patriarcais e moralistas dedicados a Ofélia via Polônio e Laertes estão
fincados numa preocupação com a honra, o dever e a vergonha. Quando Hamlet mais tarde
continua num terceiro discurso de cunho atormentador, ele o faz por suspeitar que Ofélia
esteja no mesmo patamar de Polônio, Rosencrantz e Guildenstern. Hamlet sente-se traído por
Ofélia também fazer o jogo dos cortesões mexeriqueiros que estão ao seu redor. A diferença é
que com Ofélia um antigo laço emotivo ainda está presente. Hamlet passa, em poucos versos,
do educado cortês para o agressivo e desdenhoso. Suas palavras revelam sua natureza e visam
o coração desprotegido de Ofélia. Ele a conhece, conhece seus medos e também os medos de
seu pai, que possivelmente está escutando a tudo, escondido. Em seu discurso, Hamlet não
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mede palavras para ordenar a Ofélia que se torne freira ou vire meretriz 71. Tudo deve ser
feito, menos casar e gerar pecadores como ele próprio.
“Vai para um convento. Que! Preferes procriar pecadores? Eu próprio sou
razoavelmente honesto, mas eu poderia me acusar de certas coisas que seria bem
melhor que minha mãe não me tivesse parido. Sou muito orgulhoso, vingativo,
ambicioso, trago mais afrontas que pensamentos para exprimi-los, invenção para
dar-lhes forma e tempo pra executá-los. Que fazem tipos como eu rastejando entre a
terra e o céu. Somos todos inteiros canalhas, não dê crédito a nenhum de nós. Vai,
anda para o convento. Onde está seu pai?”
III.i.
Ofélia está, neste momento, enfrentando o desprezo e a falsa loucura de Hamlet, e
ainda, confirmando as desconfianças de Laertes e Polônio. Fingindo loucura, Hamlet foge de
suas promessas – talvez muitas delas pronunciadas no próprio leito de Ofélia – e foge de
qualquer responsabilidade que poderia dele ser exigida. No período elisabetano-jacobino,
homens que contraíssem relações sexuais com uma virgem tornando isso público estavam
fadados a três diferentes sortes: casar-se, ser condenados à morte ou fazer uma retratação
pública, dependendo do caso. Na peça, Medida por Medida, Shakespeare demonstra que a
morte iminente de Cláudio, por ter engravidado Julieta, era comum num período em que leis
impostas do antigo testamento eram colocadas em prática. Na peça não temos como saber se
Ofélia e Hamlet chegaram ou não a consumar seu romance anteriormente. No entanto, o mero
fato do romance ter existido e ter se tornado público significa desonra para Ofélia e sua
família. Há uma marca na testa de Ofélia a partir desse ponto. E todos os argumentos
temerários dos quais anteriormente Polônio fez uso agora são os que a nomeiam. A ela restalhe apenas chorar por seu amante perdido, louco e furioso.
No entanto, são as palavras de Hamlet que cortam o vínculo que Ofélia poderia ainda
ter com o mundo. A morte de seu pai é o estopim de um estado psíquico que começa a ser
desenvolvido nesse diálogo com Hamlet. Em Steck, essa interpretação leva a uma Ofélia em
paz, conhecedora de seu destino e de sua morte. Isso é expresso pela posição do corpo dela,
como um pesado ataúde afundando rapidamente. Seus olhos são os olhos de quem dorme e
sonha. A linguagem onírica, própria do simbolista, está no cenário que abarca a Ofélia da
pintura: as águas são escuras e sombrias. O verde das plantas aquáticas está ao redor da moça,
abraçando-a, instando-a continuamente num momento de reflexão mortuária. Agora, tais
plantas serão os seus amados. São elas que substituirão um afeto inexistente na figura do pai
morto, do irmão distante e do amante ensandecido.
Nesse quadro, a loucura inexiste pois pertencia a um antigo ambiente de vida que já
não mais existe. De acordo com a peça, Ofélia morre como vítima de ardis que provocaram
sua loucura terminal, ardis voluntários – como as palavras de Laertes, Polônio e Hamlet - e
involuntários – como a execução de seu pai. Sua morte, pintada por Steck, não tem mais a
conotação negativa de fim ou descontinuidade. Antes é a continuidade da morte que dá valor
a vida. É na morte de Ofélia que todos os personagens da peça, incluindo Hamlet, abarcam os
últimos acontecimentos. O início do quinto ato não é apenas uma reflexão do príncipe sobre a
morte na figuração de Yorick. Não é um lamento choroso pela virgem que morreu como
demonstra o rito fúnebre inexistente. Antes, é um prelúdio adequado para a cena final,
cemitério no qual os ainda viventes encontrarão seu lugar na companhia do antigo bobo de
Elsinore. Na pintura, a face pacífica de Ofélia nos lembra uma paz que inexiste na tragédia,
especialmente nos acontecimento violentos e velozes que constituem a ação de Hamlet.
71
A palavra usada para convento é nunnery, que na época também possuía a conotação de prostíbulo.
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Para Paul Steck, como também para todos os simbolistas, os símbolos da vida e da
morte não estão separados, como antagonistas. Influência direta do Romantismo, a
idealização da Ofélia ninfa do artista, faz com que a obra perca sua força expressiva em
comparação com a de Milais. Nisso, a Ofélia pré-rafaelica é exemplar ao provocar no
expectador sentimentos variados e conflitantes como piedade, reflexão, desconforto e
perplexidade. Já na Ofélia simbolista, o expectador estará apenas diante de uma bela imagem
onírica mortuária, que poderá, no máximo, levá-lo a uma meditação sobre bela imagem de
morte que ela evoca. O que aparentemente seria um peso: o corpo de Ofélia a afundar nas
águas escuras e musgosas do riacho, torna-se leveza. É uma leveza constituída de um fim
silencioso e acolhedor. Como um voltar ao útero, representação das águas pintadas por Steck,
Ofélia afunda de olhos cuidadosamente fechados. E diferente de Millais, os olhos fechados da
Ofélia de Steck representam um esquecer de todos os desesperadores acontecimentos
anteriores. Aqui, a morte encontra a vida, porém o peso, tornar-se leveza, num jogo de
espelhos interminável com a leveza que se torna pesada loucura na pintura de Millais.
Conclusão
Park Honan, na sua biografia de Shakespeare, nomeia as qualidades da peça presentes
nas duas representações de Ofélia: múltiplos significados, extrema e inquietante beleza,
ambigüidades e contradições. 72 Características essas presentes em praticamente todas as
tragédias de Shakespeare. Nisso as palavras de Honan nos lembram uma lua que mudando e
mudando em determinados períodos num ciclo contínuo e constante. Semelhante, a obra de
Shakespeare continua a apresentar diferentes leituras e interpretações, sejam de ordens
literárias, pictóricas ou culturais. Nas pinturas de Millais e Steck a beleza das Ofélias é
singular estando tão próximas do texto da peça e ao mesmo tão distantes em suas diferentes
visões. Nelas o peso e a leveza misturam-se, intercruzam-se, auto-referem-se. Num dos
momentos mais tocantes da tragédia, Ofélia, louca, diz:
Muito bem, que Deus vos tenha. Dizem que a coruja é filha do padeiro. Senhor, nós sabemos o que
somos mas não o que podemos ser. Deus esteja em vossa mesa.IV.v.
No caso da personagem, suas palavras demonstram uma completa irracionalidade
permeada por lampejos - conscientes ou inconscientes - de impressionante lucidez. Em sua
completa desorganização mental, ela pressente a situação na qual se encontra. Pressente que a
história para si está acabada, assim como Hamlet no discurso sobre a previdência na queda de
um pardal sabe o que irá lhe sobrevir dentro de instantes. Nesse momento final, ela
compreende que sua sorte estará no silencioso canto do rouxinol, no andar das águas do
riacho e que seu séqüito mortuário serão flores de variadas cores e perfumes. Ela sabe que
após o peso da loucura que a domina, a leveza do sono irá fazer-lhe o corpo pesado
Morrer, dormir;
Dormir, talvez sonhar...
III.i.
Após a leve e pesada loucura da personagem, cuidadosa e perfeitamente representada por Millais, Ofélia
estará entregue ao esquecimento pesado e leve, útero onírico pintado na imagem de Steck.
72
HODEN, Park. 2001, 344.
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5. Referências bibliográficas
BECKETT, Wendy. História da Pintura. Editora Ática. São Paulo, 2002.
CARR-GOMM, Sarah. Dicionário de Símbolos na Arte. Edusc. Bauru, 2004.
CHILVERS, Ian. Dicionário Oxford de Arte. Ed. Martins Fontes. São Paulo, 2001.
ECO, Umberto. História da Beleza. Record. São Paulo, 2004.
HOLDEN, Anthony. Shakespeare. Ediouro. São Paulo, 2003.
HONAN, Park. Shakespeare – Uma Vida. Companhia das Letras. São Paulo, 2001.
KERMODE, Frank. A Linguagem de Shakespeare. Record. São Paulo, 2006.
SPURGEON, Caroline. A Imagística de Shakespeare. Martins Fontes. São Paulo, 2006.
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O ESTATUTO DO OUTRO NA PRÁTICA DO
CUIDADO DE SI
Eric Duarte Ferreira
Pós-graduando em Lingüística -Universidade Federal de Santa Catarina SC
Resumo: A partir das noções de cuidado de si e de outro, desenvolvidas por Michel Foucault,
o objetivo deste trabalho é discutir o estatuto e o lugar do outro na prática do cuidado de si
abordando a modalidade de prática de si chamada pelo autor de parrhesia. Para Foucault, não
há cuidado de si sem o outro, ou seja, o cuidado de si tem sempre a necessidade de passar pela
relação com um outro.
Palavras-chave: cuidado de si; outro; parrhesia.
Abstract: Based on the notions of care of itself and the other, developed by Michel Foucault,
the goal of the present work is to discuss the statute and place of the other in the practice of
care of itself approaching the practice modality of itself called parrhesia. For Foucault, there
is no care of itself without the other, in other words, the care of itself always has the need to
pass for the relationship with the other.
Keywords: care of itself; other; parrhesia.
1. Introdução
Para Foucault, o cuidado de si tem sempre a necessidade de passar pela relação com
um outro, ou seja, não há cuidado de si sem o outro. Dessa asserção podem surgir algumas
perguntas do tipo: quem seria esse outro tão fundamental para o cuidado de si? Ou, que
“poder” tem esse outro a ponto de não haver cuidado de si sem uma relação com o mesmo?
Aprofundando os questionamentos sobre o tema: qual seria o estatuto e o lugar desse outro na
prática do cuidado de si?
Neste trabalho, vou me deter ao tema do cuidado de si com o objetivo central de
discutir o estatuto do outro, cuja presença é necessária na prática do cuidado de si, abordando
a modalidade de prática de si desenvolvida por Foucault chamada de parrhesia. O sujeito
disposto a parrhesia precisa ser interpelado pela figura de um outro que possui o papel
fundamental de qualificar eticamente a verdade do seu dizer para a efetiva prática desta
modalidade da espiritualidade. Ao final, a título de ilustração do conceito de parrhesia, inicio
uma rápida análise sobre pequenos trechos de duas entrevistas do presidente Lula, uma
transmitida pelo programa Fantástico em 01/01/2006, e outra transmitida pela TV Cultura em
08/11/05, com a finalidade de discutir a possibilidade da prática da parrhesia no atual cenário
político nacional.
2. Espiritualidade e verdade
No curso de 1982, chamado de A hermenêuitca do sujeito, Foucault estuda as relações
entre sujeito e verdade e reconstitui as origens históricas do cuidado de si, desde Platão até os
filósofos epicuristas e estóicos dos primeiros séculos da era cristã, em contraposição ao
conhecimento de si, tema clássico da tradição filosófica. Foucault aponta que, na
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historiografia da filosofia, ou mais amplamente, na história do pensamento ocidental, o
conhecimento de si foi amplamente difundido, enquanto o cuidado de si foi desprezado.
Entretanto, na origem dos conceitos, que se dá em torno do personagem Sócrates, de Platão,
Foucault afirma que há uma espécie de subordinação do preceito do conhece-te a ti mesmo em
relação à regra do cuidado de si. Segundo o filósofo, o conhecimento de si aparece, no quadro
geral do cuidado de si, como uma das formas, uma das conseqüências da aplicação concreta
da regra geral dos cuidados da pessoa com ela mesma.
Se formos caracterizar rapidamente as duas modalidades de conceber e praticar a
filosofia, no que concerne aos elementos sujeito e verdade, podemos afirmar que no
conhecimento de si, o qual Foucault chama também de filosofia, o sujeito tem acesso à
verdade por um ato de conhecimento, devido a sua estrutura ontológica, e essa verdade não
modifica o sujeito – sua estrutura tem de ser mantida como condição de acesso a verdade; no
cuidado de si, também chamado de espiritualidade, a verdade não é dada de pleno direito ao
sujeito. Nas palavras do próprio Foucault:
A espiritualidade postula que o sujeito enquanto tal não tem direito, não possui capacidade de
ter acesso à verdade. Postula que a verdade jamais é dada ao sujeito por um simples ato de
conhecimento, ato que seria fundamentado e legitimado por ele o sujeito e por ter tal estrutura
de sujeito. Postula que a necessidade de que o sujeito se modifique, se transforme, se desloque,
torne-se, em certa medida e até certo ponto, outro que não ele mesmo, para ter direito ao acesso
à verdade (Foucault, 2004, p. 19-20).
Na espiritualidade, o sujeito modifica-se, transforma-se, para se tornar sujeito capaz
de verdade, pois, tal como ele é não é capaz de verdade. A verdade não é simplesmente dada
como recompensa pelo ato de conhecimento, para preencher este ato: a verdade é o que
ilumina o sujeito.
3. O cuidado de si numa relação com o outro
Foucault faz uma leitura cuidadosa do diálogo de Platão Alcibíades ao desenvolver o
conceito do cuidado de si, que só pode formar-se numa referência ao outro, e mostra que os
pretendentes de Alcibíades não se ocupam com o próprio Alcibíades e sim com seu corpo e a
beleza de seu corpo, pois o abandonam quando ele envelhece e não é mais inteiramente
desejável. Não há uma relação mestre-discípulo entre Alcibíades e aqueles que o abandonam,
porque eles não se ocupam com o próprio Alcibíades, o que significaria, “no sentido estrito,
[...] ocupar-se não com seu corpo, mas ocupar-se com sua alma enquanto ela é sujeito da ação
e serve mais ou menos bem de seu corpo, de suas aptidões, de suas capacidades, etc.”
(Foucault, 2004, p. 73).
A atitude de Sócrates, segundo Foucault, é a de ocupar-se com o próprio Alcibíades,
com sua alma, sua alma como sujeito da ação. Têm-se aí uma diferença entre Sócrates e os
enamorados e pretendentes de Alcibíades. Sócrates dirige a palavra a Alcibíades quando ele
está velho, sem a beleza e o vigor da juventude. Este fato mostra que para Sócrates importa o
próprio Alcibíades, enquanto alma, alma-sujeito, e não seu corpo, isto é, aquilo de que se
serve, o que leva Foucault a concluir que Sócrates cuida da maneira como Alcibíades vai
cuidar de si mesmo. Vemos aqui um lugar definido, uma posição de mestre numa relação
mestre-discípulo, e o que define a posição do mestre é que ele cuida do cuidado que aquele
que ele guia pode ter de si mesmo. Assim, consequentemente, o cuidado de si passa pela
relação com um outro que é o mestre.
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4. A noção de Parrhesia
A figura do outro se torna extremamente importante, senão imprescindível, no
processo de formação de si a ponto de não ser possível alcançar uma certa verdade de mim
mesmo a não ser por um outro que exorta e direciona. Nesse patamar de generalidade, a
necessidade de direção como fundamento de uma prática de si, característica da subjetivação
antiga, nos leva a pensar que tal prática assemelha-se a prática religiosa da confissão
privada 73, característica da subjetivação cristã. O indivíduo que se confessa fala de si, produz
um discurso verdadeiro sobre si mesmo dirigido a um outro (seu confessor, seu mentor
espiritual, etc.) que ouve em silêncio os relatos do pecador. A confissão designa a fala daquele
que é dirigido e constitui o lugar da fala de si. Na confissão, o dirigido não se volta para um
igual, pois o mestre é a autoridade silenciosa que ouve os pecados para exortar e absolver o
pecador. Nesse sentido, de acordo com Pedro de Souza, podemos traçar uma diferença de
natureza interlocutiva entre a confissão e outra forma de contar as faltas: a confidência.
[...] não pode haver confidência da parte de um só dos interlocutores. Na
enunciação confidencial, os interlocutores encontram-se num mesmo nível de
reciprocidade; ao contrário da confissão, cuja estrutura enunciativa impõe uma
posição estatuária que separa aquele que escuta daquele que confessa (Souza, 1997,
p. 44).
A confidência caracteriza-se por ser um exercício voluntário e recíproco de fala entre
dois interlocutores. A constituição do outro como interlocutor determina o tipo de prática
realizada, a confissão ou a confidência. Nelas, a figura do outro possui estatuto e lugar
diferentes. De acordo com o exposto acima, quero ressaltar a diferença entre a relação mestrediscípulo de Sócrates e Alcibíades e a fala entre dois interlocutores na prática da confidência,
pois a posição de Sócrates inclina-se mais para o papel de confessor, se o compararmos pelo
viés da figura do mestre que exorta, do diretor, que está acima do discípulo em sabedoria etc.
Entretanto, essa comparação torna-se problemática se pensarmos que Sócrates não se
cala efetivamente na sua empreitada de cuidar do cuidado que Alcibíades terá de si mesmo. O
mestre dirige a palavra e exorta o discípulo a respeito de sua displicência para com sua alma.
Além disso, sabemos que o ato de se confessar é reconhecer-se como autor de alguma falta.
Ao fim e ao cabo, o pecador que quer se confessar lança sobre si um olhar de reprovação, de
má conduta. No caso de Sócrates e Acibíades, é o mestre que exorta a má conduta do
discípulo.
É exatamente essa tomada de palavra pelo mestre que permite a Foucault estabelecer
um ponto de ruptura entre a subjetivação antiga e a subjetivação cristã. Nesta, o outro é
silencioso, naquela, ao contrário, o mestre toma a palavra, como afirma Frédéric Gros (2004,
p. 156):
O diretor de existência antiga se caracteriza, com efeito, por uma tomada de palavra
direta, franca e que faz valer, para autenticar a verdade do que ele defende, sua
própria conduta: a verdade daquilo que adianto explode em meus atos.
Assim, vemos uma modalidade de tomada de palavra franca que difere da confissão,
pois é o discípulo que deve se calar. A essa modalidade, Foucault chama de parrhesia. Na
concepção grega de parrhesia, a posse da verdade é garantida pela posse de certas qualidades
73
O termo privada é utilizado aqui para designar a prática religiosa da confissão moderna. A confissão dos
pecados, como ressalta Pedro de Souza (1997), surgiu entre os primeiros cristãos como uma prática pública de
referência a si – o fiel dirigia-se à comunidade.
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morais, de forma que se o indivíduo possui tais qualidades quer dizer que ele tem acesso à
verdade. Há uma relação estreita entre atos e palavras, pois “a parrhesia é um tipo de
atividade verbal na qual o falante exprime sua relação pessoal com a verdade e arrisca sua
vida, pois considera que o dizer verdadeiro é um dever em vista de melhorar ou ajudar a vida
dos outros (assim como ele faz consigo mesmo)” (Adorno, 2004, p. 60).
Vemos em Sócrates a figura daquele que pratica a espiritualidade, ou o cuidado de si.
Ele mantém uma relação estrita e pessoal com a verdade, ao preço de um trabalho de
conversão de si. Por isso, há uma relação entre o que ele diz e o que faz. Sócrates é
parresiasta, possui uma relação moral com a verdade. Para a cultura grega há uma sólida
relação entre a verdade e a moral a ponto de um indivíduo imoral não poder ter acesso à
verdade. A legitimidade daquilo que um indivíduo diz é atestada no campo ético, pois o que
lhe dá o direito de dizer a verdade é justamente sua relação estreita com a moral.
5. A correspondência entre dizer e fazer
O cuidado de si diz respeito ao falar francamente no sentido performativo do termo, se
assim podemos dizer - aludindo à teoria dos atos de fala de J. L. Austin -, de forma que a
verdade é atestada por razões exteriores às características enunciativas, pois sua legitimidade
é dada por quem fala, pela sua ética, ou, de outro modo, é atestada pela conduta de quem fala,
assim como o sucesso do proferimento performativo depende de quem fala.
Segundo Austin (1990), o falante deve atender às condições requeridas para a
performance selecionada a fim de validá-la, de forma que, por exemplo, eu não posso batizar
alguém simplesmente dizendo “eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” se
não sou a pessoa autorizada pela Igreja para fazê-lo. Se o padre pronuncia “eu te batizo...”, é
exatamente o ato de batizar. Formular tal proferimento é desempenhar uma ação, o que leva
Austin a afirmar que o performativo é tanto uma ação quanto um proferimento. A teoria de
Austin, para o filósofo Jacques Derrida (1991), expõe a dimensão ética da linguagem porque
leva às últimas conseqüências a identidade entre dizer e fazer e insiste na presença do ato na
linguagem.
O peso da ética na linguagem na parrhesia grega reside exatamente na exigência da
compenetração entre as convicções do falante, seus atos e os conteúdos do dizer, sendo um
feito singular, pessoal e intransferível. Neste ponto, é clara a distinção que Foucault (2004)
estabelece entre parrhesia e retórica. Passemos às características desta distinção. Na
parrhesia, ocorre uma adesão do falante ao seu enunciado – uma fala engajada –, ou seja, o
enunciado verdadeiro constitui uma convicção pessoal. Na retórica, o falante não necessita
acreditar no que fala, pode apenas fazer acreditar, persuadir. A retórica diz respeito ao “bemdizer”, à maneira de dizer, e não à verdade do dito. A parrhesia considera como principal a
separação do verdadeiro e do falso, de modo que, o “dizer verdadeiro” supõe coragem, porque
pode se tratar de um enunciado verdadeiro que pode ferir o outro ou provocar uma reação
negativa da parte dele, enquanto a retórica procura adular o outro por meio de uma fala
antiética – não correspondente aos atos – e mentirosa.
É importante ressaltar que o outro, aquele para o qual o parrhesiasta fala, não
necessariamente é apenas uma pessoa, pois a parrhesia é uma prática destinada à coletividade
e ao bem comum. O lugar natural do parrhesiasta é onde ele se dirige ao público.
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6. Parrhesia no meio político?
O discurso retórico, persuasivo, por conseguinte, empolado, eloqüente, cheio de
adornos e falsos brilhos, vai de encontro à parrhesia, que é marcada pela busca da nitidez e
transparência da fala. Um dos meios em que mais vemos o uso da retórica, a título de
exemplificação, é o meio o político. Não seria inédito, nem radical demais afirmarmos que o
discurso de vários políticos brasileiros, longe de uma prática parrhesiata do dizer verdadeiro,
consiste na bajulação, na persuasão. Isso todos sabemos, é lugar comum. Entretanto, é
interessante perceber como e por quais motivos se torna difícil a parrhesia no meio político.
A meu ver, esta dificuldade se constrói em grande parte devido ao outro e ao fato de que a
parrhesia produz eticamente o sujeito, de forma que o indivíduo disposto ao franco falar deve
possuir a obrigação de dizer a verdade, ou seja, esse sujeito é interpelado por uma ética da
verdade. De acordo com Fimiani (2004), a fonte dessa obrigação da verdade – que se torna
um dever moral – é a existência de um outro sujeito cujo estatuto é o de poder qualificar
eticamente a verdade, é um igual, um parrhesiasta:
Esse outro sujeito não é um confessor ou diretor de consciência, ele não é magistrado, médico,
psiquiatra ou psicanalista; ele não está investido de nenhuma qualificação que seja dada pela
instituição ou garantida por saberes especiais, mas ele é aquele que é capaz de qualificar
eticamente a verdade. Não é possível isolá-lo ou defini-lo num papel, numa função ou numa
determinação qualquer. Ele é apenas um sujeito disposto a parrhesia: a qualificação desse outro
lhe vem simplesmente do fato de ele ser, por sua vez, parrhesiastes. (Fimiani, 2004, p. 124125)
A parrhesia, então, é uma prática a dois que pressupõe “uma relação entre iguais,
iguais por suas qualidade morais e por sua finalidade ética”. Diante disto, podemos afirmar
que o sujeito propenso à parrhesia deve comprometer-se eticamente, preparar-se para um
duplo confronto que exige coragem, pois a verdade do parrhesiasta pode por em risco a
relação entre ele e o outro, pode causar uma reação hostil e inesperada por parte daquele que
ouve. Em razão deste fato, atentando para o que tem sido dito por muitos políticos no quadro
nacional, entendemos porque é mais fácil a bajulação, a retórica, a utilização da lisonja para
enganar, convencer.
Gostaria de utilizar algumas falas do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a respeito
das recentes denúncias de corrupção contra o seu partido, o PT (Partido dos Trabalhadores),
como ilustração da dificuldade de muitos políticos em assumir uma postura parrhesiasta
diante da população. Vários parlamentares, inclusive alguns da linha de frente do PT, foram
acusados de receberem suborno e de práticas ilícitas de arrecadação de dinheiro para
campanhas eleitorais. O suborno de parlamentares, neste caso, é conhecido vulgarmente,
como sabemos, por “mensalão”.
Quando indagado a respeito da gravidade da crise política de seu governo e sobre o
mensalão, em uma entrevista concedida ao programa Fantástico, que foi ao ar em 01/01/06, o
presidente Lula afirma categoricamente de que não tinha conhecimento das práticas ilícitas
que estavam acontecendo nos ministérios:
Pedro Bial: Como é que o presidente não sabia? Essa pergunta continua sendo
feita, presidente. O senhor sabia ou não sabia?
Presidente Lula: O que é importante não é se você sabia ou não, porque se eu
tivesse condições de saber, não teria acontecido. Esse é o dado concreto. Se eu
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tivesse condições de saber, não teria acontecido. Na medida em que soube,
naquilo que diz respeito ao presidente da República, todas as providências
foram tomadas. Foi afastado quem deveria ser afastado, foi punido quem
deveria ser punido. Agora, a justiça faça a sua parte. E, no caso do PT, o
partido fez a sua parte. (Bial, 2006)
De acordo com o que diz o presidente, se ele tivesse tomado conhecimento do
“mensalão” e das irregularidades que ocorreram, teria impedido que elas acontecessem. Em
outro momento, numa entrevista cedida a TV Cultura em 08/11/05, Lula admite a existência
de práticas ilegais realizadas pelo PT durante campanhas eleitorais, mas nega a existência do
“mensalão”:
Ele [o ex deputado Roberto Jefferson] foi cassado justamente porque não
provou as denúncias que ele fez, no que diz respeito, por exemplo, aos
mensalões. O que ele provou foi que o PT teve uma prática de financiamento
de campanhas totalmente contra a história do próprio partido e isto está sendo
apurado nas CPIs. [...].
Eles [Aldo Rebelo e Arlindo Chinaglia] categoricamente disseram que isso era
uma peça de ficção, que não existia mensalão dentro do Congresso Nacional. E
pelo que consta, até agora, não foi provado que tem mensalão. Até agora, o que
foi cassado, foi cassado porque contou uma inverdade sobre o Congresso
Nacional. (Neto, 2005)
Ora, em um momento o presidente confirma a existência do suborno de parlamentares,
porém, afirma que não tinha conhecimento, em outro, afirma que simplesmente essas
irregularidades não ocorreram. Quero chamar a atenção aqui não para a contradição que o uso
da retórica, do desvio de assunto, provoca em seu discurso, mas para o fato de que, diante da
população, para um discurso franco da verdade ele não pode ser qualquer um, o que sabia e
não sabia, o que confirma a existência e a nega. O dizer verdadeiro tem que oferecer riscos,
tem que levar a relação com o outro, que no caso destes pronunciamentos de Lula seria a
população, à extrema tensão da ruptura possível, pois pode se tratar de verdades duras de
ouvir ou que podem tirá-lo do poder, caso ele dissesse que sabia e que tinha sido conivente
com a situação de corrupção. Por causa dos riscos que, para Platão, “o tudo dizer da parrhesia
virou nas democracias um ‘dizer qualquer coisa’, um ‘dizer tudo e seu contrário’” (Gros,
2004, p. 159).
Em um outro trecho da entrevista ao Fantástico, o repórter Pedro Bial diz apresentar
provas sobre esquemas de corrupção no congresso fazendo menção a relatórios do Banco do
Brasil que mostram irregularidades e a comprovações da Polícia Federal para solicitar o
parecer do presidente sobre as irregularidades, como vemos abaixo:
Pedro Bial: Acho que posso apresentar já algumas provas conclusivas para o
senhor fazer um juízo de valor. Como, por exemplo, a auditoria feita pelo
próprio Banco do Brasil sobre a questão do Visanet, em que dados conclusivos
dessa auditoria comprovaram o desvio de R$ 20 milhões. Além disso, o uso de
80 mil notas falsas no valerioduto - assim chamado – foi comprovado pela
Polícia Federal. Isso são provas.
Presidente Lula: Se a Polícia Federal está comprovando, significa que o
governo, mais do que ninguém, está investigando, porque o maior interessado
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em investigar é o próprio governo. Segundo, tenho informações também do
Banco do Brasil de que o pagamento adiantado era uma norma, que vinha
acontecendo no Brasil há algum tempo. Não é uma coisa que foi implantada na
atual gestão do Banco do Brasil, a partir do momento em que tomei posse. Era
uma norma que já vinha sendo implantada e isso está no relatório do Banco do
Brasil, me apresentado pelo presidente do Banco do Brasil. E que, portanto,
agora, na medida em que há uma denúncia feita pelo relator ou pelo presidente
da CPI, na medida em que tem investigação da Polícia Federal, na medida em
que o Banco do Brasil prove se está errado ou não, os culpados serão punidos
da forma mais severa possível. (Bial, 2006)
É importante perceber no discurso do presidente Lula a omissão de suas opiniões
pessoais e convicções a respeito das supostas provas de corrupção. Ele evita falar a respeito
em seu próprio nome, recorrendo a informações de outrem, à não finalização das
investigações do Banco do Brasil, da CPI e da Polícia Federal, como vemos assinalado nos
trechos em negrito. Prefere um discurso dissimulado, truncando idéias e gerando incertezas. O
parrhesiasta fala em seu próprio nome com clareza e anuncia uma verdade que é suas próprias
convicções pessoais. Para finalizar, segundo Adorno (2004), a opinião do parrhesiasta “não
representa mais uma alternativa à verdade, mas pelo fato de, por um lado, de ele a enunciar
como tal e, de outro, de ele demonstrar que em sua vida existe coincidência entre seus atos e
suas palavras, ela só pode ser a verdade”.
7. Referências bibliográficas
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(Org.). Foucault: a coragem da verdade. São Paulo: Parábola Editorial, 2004, pp. 39-62.
AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer – palavras e ações. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
DERRIDA, Jacques. Margens da filosofia. Campinas: Papirus, 1991.
FIMIANI, Mariapaola. O verdadeiro amor e o cuidado comum com o mundo. In: GROS,
Frédéric (Org.). Foucault: a coragem da verdade. São Paulo: Parábola Editorial, 2004, pp.
89-128.
NETO, Epaminondas. Lula nega "mensalão", mas admite caixa 2 no PT . Folha Online,
08.11.2005. Disponível em:
<www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u73772.shtml>. Acesso em: 27.01.2006
BIAL, Pedro. Entrevista exclusiva do presidente Lula ao Fantástico. Globo Online,
01.01.2006. Disponível em:
<http://fantastico.globo.com/Jornalismo/Fantastico/0,,AA1099392-4005,00.html>.
Acesso
em: 27.01.2006
FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
GROS, Frédéric (Org.). Foucault: a coragem da verdade. São Paulo: Parábola Editorial,
2004.
SOUZA, Pedro de. Confidências da carne: o público e o privado na enunciação da
sexualidade. São Paulo: Editora da UNICAMP, 1997.
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GUIMARÃES ROSA NO ENSINO MÉDIO
Francisca Patrícia Pompeu Brasil
Mestranda em Literatura Brasileira-Universidade Federal do Ceará CE
Resumo:“Guimarães Rosa no Ensino Médio” visa mostrar ao professor de Literatura que os
textos de Guimarães Rosa, apesar de sua complexidade, podem ser trabalhados com os alunos
do Ensino Médio. Parte-se do pressuposto de que, para aproximar o aluno dos textos rosianos,
é preciso, antes, aproximá-lo do escritor Guimarães Rosa. Para isso, é necessário que o
professor trabalhe com alguns elementos relacionados à biografia do autor, os quais levarão o
jovem a perceber o que este espera de seus leitores. É necessário, também, que o professor
direcione seu trabalho para a exploração da linguagem inovadora de Guimarães Rosa, fator
responsável não só pela riqueza de sua produção, mas também pela idéia de dificuldade que
se construiu em torno de sua obra.
Palavras-chave: Literatura - Guimarães Rosa - Ensino
Abstract: “Guimarães Rosa in high school learning” aims to show Literature teachers that
Guimarães Rosa’s texts, despite their complexity, can be worked with high schoolers. It is
said that Literature teachers need to make students understand Guimarães Rosa as a writer
before bringing them closer to his texts. It is necessary for Literature teachers to work on
some aspects related to the authors’s biography which will make high school students realize
what Guimarães Rosa expects from his readers. It is also necessary for Literature teachers to
guide their work through tapping into Guimarães Rosa’s innovative language, which is
responsible not only for his production richness, but also for the concept of difficulty that is
built around his work.
Key words: Literature – Guimarães Rosa - Learning
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1. O que dificulta a leitura de Guimarães Rosa
Sabe-se que o leitor, para conseguir compreender uma produção escrita, precisa
adquirir determinadas competências, ou conhecimentos prévios, que deverão ser ativados a
partir do momento em que ele entra em contato com o texto. Caso não possua as
competências necessárias, ficará impossibilitado de compreender e apreciar a mensagem que
lhe está sendo transmitida.
Quando alguém se depara com uma leitura mais complexa, é comum que busque
meios de aproximar-se da imagem do leitor que está implícita no texto (enunciatário), isto é,
que procure de alguma forma ser um receptor adequado da mensagem apresentada, fazendo,
para isso, uso de várias estratégias de leitura.
Em se tratando de um aluno do Ensino Médio, pressupõe-se que ele já tenha adquirido
certos conhecimentos próprios de um leitor amadurecido, no entanto, não se pode afirmar que
este aluno seja realmente proficiente para a leitura de textos mais complexos. Ele está em
pleno processo de formação leitora, mas ainda é bastante imaturo para ler determinados
textos.
Um bom exemplo desse tipo de leitura para a qual o jovem do Ensino Médio ainda
não está pronto são as produções de Guimarães Rosa. Poderemos apresentar algumas
explicações para essa dificuldade.
Talvez a primeira razão decorra dos obstáculos impostos pelos próprios professores
de Literatura. O que se nota é que sempre houve um preconceito, dentro da comunidade
escolar, no que concerne ao trabalho com o novo, com o diferente. Para a escola, sempre foi
mais cômodo trabalhar o tradicional, o que parece lógico e o mais dentro possível da
“normalidade”: deve-se olhar com respeito o antigo e com desconfiança o moderno.
Esses preconceitos, juntamente com o desconhecimento e despreparo dos professores,
fizeram com que a escola se mantivesse distante de obras mais ousadas e que apresentassem,
de alguma forma, um caráter revolucionário. E, estando Guimarães Rosa na categoria de
escritores inovadores, havendo ele promovido transformações significativas na linguagem
literária, acabou por ficar “sem espaço” no ambiente escolar.
Uma segunda razão é a falta de preparo dos alunos para fazerem a leitura de textos
literários, o que faz com que eles leiam tais textos sem atentar para os recursos que o autor
utiliza, a fim de dar maior expressividade à sua obra. Os leitores inexperientes costumam criar
esquemas inflexíveis para a leitura, por exemplo: acreditam que ao ler uma narrativa o que
importa é saber o que está sendo dito, sem preocupar-se com a forma como está sendo dito.
O que se percebe, na realidade, é que muitos alunos/leitores ainda não têm condições
de refazer seus esquemas quando estes são quebrados. Por isso, quando eles se encontram
frente a uma produção de Guimarães Rosa, na qual a importância da forma sobressai à do
conteúdo, acabam ficando perdidos. Eles foram acostumados a buscar nos textos em prosa
apenas o significado das ações, e, por não serem capazes de reformular suas expectativas
quebradas, acham a obra muito complicada e acabam, muitas vezes, por desistir da leitura.
Sobre a incapacidade de o leitor refazer seus esquemas, veja-se o que afirma Kleiman (1989,
p.41):
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Geralmente, em se tratando de leitores inexperientes, a rigidez e a inflexibilidade
na formulação de hipótese se deve, na maioria das vezes, à inatenção aos elementos
formais, e à incapacidade de analisa-los em função do texto global. (...) Assim,
embora o leitor percebesse as inconsistências, ele foi incapaz de resolvê-las
mediante o abandono da hipótese inicial e a construção de uma hipótese alternativa
consistente com as pistas formais.
É dever do professor de literatura mostrar ao seu aluno a importância da
expressividade nos textos literários e dos recursos utilizados pelos autores, para conseguirem
atingir seus objetivos.
Uma terceira razão, que parece ser uma das mais importantes, quando se fala em
textos de Guimarães Rosa, é a falta de competência lingüística dos leitores para abordar as
obras desse escritor. A competência lingüística está relacionada com o significado das
palavras no texto. É fato que Guimarães Rosa foi um dos autores que mais ousaram no
momento de dar uma nova roupagem à língua. As transformações promovidas por ele foram
de tal forma significativas, que há quem considere existir a “língua de Guimarães”, como se
este tivesse criado um novo idioma.
Daí que, em seus relatos, breves ou intermináveis, cada palavra conte. E não só o
que a palavra significa, também o peso do saber de cada uma de suas sílabas, a cor
e a ressonância subconsciente de sua forma, a magia encerrada nos signos.
Inclusive o lugar de cada palavra na frase, a forma como se articula com as
vizinhas, como faz ressaltar ou ensurdecer seus valores, contava sempre para ele
(COUTINHO, 1983, p.55).
O leitor que ainda não conhece os recursos utilizados pelo autor em seu processo de
criação não consegue ver sentido em sua linguagem, não percebe quais significados as
palavras adquirem nos seus textos. E o texto se torna incompreensível, como se o jovem
estivesse lendo algo em um idioma desconhecido por ele.
Por transformar e até criar palavras, atribuindo a elas novos valores a partir do
contexto em que são apresentadas, Guimarães Rosa acabou por distanciar seus textos dos
jovens leitores.
Outro motivo, que sem dúvida dificulta a aproximação aos textos de Guimarães Rosa,
é o pouco contato que o leitor, durante sua formação literária, teve com o autor e com seu
estilo. O problema é que, por não conhecer outras obras do escritor, o jovem não tem
condições de fazer o diálogo necessário entre os textos. Falta-lhe, portanto, competência
intertextual.
Se o professor der ao seu aluno condições de conhecer a obra de Rosa, auxiliando-o
sempre que for necessário, e buscando explorar nas produções aspectos que agradem ao
jovem leitor, este, por sua vez, irá, aos poucos, conhecer o estilo e as intenções do autor , o
que irá auxiliá-lo a diminuir a distância que existe entre ele e o leitor ideal imaginado pelo
enunciador.
O escritor, ao criar uma obra, sempre busca agir sobre o seu leitor, e naturalmente com
Guimarães ocorreu o mesmo. Ao transformar palavras e expressões gastas em novas e
impressionantes formas de dizer algo, o autor buscou mostrar ao seu leitor a força que têm as
palavras. Ele desejava despertar no leitor a mesma admiração pela língua e pelo modo de
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contar, que ele mesmo já demonstrara ter. Isso pode ser constatado ao se ler esta declaração,
dada pelo autor, em uma entrevista a Gunter Lorenz (Apud COUTINHO, 1983, p.88):
A língua serve para expressar idéias, mas a linguagem corrente expressa apenas
clichês e não idéias; por isso está morta, e o que está morto não pode engendrar
idéias. Não se pode fazer dessa linguagem corrente uma língua literária, como
pretendem os jovens do mundo inteiro sem pensar muito.
O autor buscava mostrar a importância de se trabalhar a palavra, já que, sendo a
linguagem tão rica em recursos, deveria ser ela devidamente explorada, ficando a cargo do
escritor trabalhar com as diversas possibilidades que lhe são oferecidas, não permitindo assim
que a língua se “atrofiasse”. Para tanto, seria necessário, usando as palavras do próprio Rosa
(Apud PIRES, 1993, p.76): “Distendê-la, destorcê-la, obrigá-la a fazer ginástica, desenvolverlhe músculos.”
Mas, se o leitor não percebe o que o autor está querendo lhe dizer, a maneira pela qual
o autor busca agir sobre ele, a mensagem não poderá ser assimilada de maneira adequada.
Pires (1993, p.72) fala sobre a importância que o Guimarães Rosa dava às reações que suas
produções causavam em seu leitor:
Este escrito e sua circunstância documenta e acentua com energia uma qualidade
humana, nobre, muito viva no escritor Guimarães Rosa: tomar muito a sério a
reação de todo e qualquer leitor seu, valorizando sempre com inteira sinceridade
essa reação e opinião.
O autor segue afirmando que, se o leitor tivesse consciência dessa atenção que Rosa
dava aos seus leitores e ao modo como reagiam às suas obras, a leitura, certamente, iria fluir
com maior facilidade:
Até o momento, falou-se sobre como a falta de alguns conhecimentos prévios pode
prejudicar a compreensão dos jovens leitores diante das produções de Guimarães
Rosa. No entanto, há dois outros aspectos a serem considerados, que são a pressa e
o dinamismo próprios desse tipo de leitor.
O jovem costuma apresentar uma certa pressa, não somente quando está lendo, mas
também quando está praticando outros tipos de atividades. Assim, ao fazer a leitura
de um conto, ou de uma narrativa qualquer, busca, com impaciência, descobrir o
seu desfecho, pois o seu interesse maior é saber “como tudo vai acabar”; por esse
motivo não percebe os recursos expressivos utilizados pelo autor.
Ler Guimarães Rosa buscando apenas o conteúdo e não atentando para a forma ou
para a expressividade das palavras e construções usadas, é uma maneira de não se dar chances
para assimilar sua arte, e, conseqüentemente, de não compreender o texto em sua essência. O
leitor precisa ter consciência da necessidade que há de se fazer um “contrato inicial” com o
autor, pois, sendo receptor de uma mensagem, necessita obrigatoriamente interagir com o seu
emissor, isto é, não pode querer seguir caminhos diferentes daqueles determinados pelo autor
do texto. Geraldo França Lima (Apud PIRES, 1993, p.38) fala sobre a importância que o autor
dava ao ritmo que impunha à leitura de seus textos.
Uma das obrigações que o escritor costumava impor aos amigos, disse, era a de
mandar ler o que escrevia até oito vezes, em voz alta; e entrementes ele ia
modificando, até que a música da frase o satisfizesse.
Se a intenção do autor é “obrigar” seu leitor a ler mais pausadamente, com maior
atenção, detendo-se em cada construção, em cada palavra, é porque o ritmo de seus textos
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apresenta uma importância crucial para a compreensão da obra; porém, se o leitor recusa a
seguir o ritmo que é imposto, como irá perceber e atingir o objetivo traçado pelo autor?
Textos como os de Rosa, que apresentam tantos recursos de expressividade – no que
concerne ao ritmo, à sonoridade, às construções sintáticas - passam ao receptor de sua
mensagem a impressão de serem obras complicadas e, conseqüentemente, desinteressantes.
Talvez, se o leitor começasse a ler esses textos como se lê poesias, com calma e atenção,
buscando seguir o ritmo e captar a musicalidade, provavelmente, desse um importante passo
para conseguir aproximar-se da obra e de seu autor.
Em decorrência de sua pressa e de seu dinamismo, de que já falamos, os jovens
preferem textos predominantemente narrativos a textos descritivos. Nesse ponto, encontra-se
um novo obstáculo para a leitura de Guimarães Rosa: ao se ler um trecho de alguma obra
rosiana, não é difícil notar que o autor apresenta uma forma bem peculiar de narrar os fatos,
além, é claro, das que foram aqui tratadas. O autor, de certa forma, descreve as ações, isto é,
ele narra de forma pormenorizada, buscando de tal maneira retratar os acontecimentos, que,
não raramente, parece ao leitor estar fazendo a leitura de um texto descritivo, mesmo quando
o que está sendo apresentado são as ações. É que se vê no conto “Nada e a nossa condição”,
de Primeiras Estórias (1994, p.446-447):
Nada leva a não crer, por aí, que ele não se movesse, prático, como os mais; mas,
conforme a si mesmo: de transparência em transparência. Avançava, assim, com
honesta astúcia, se viu, no que quis e fez? No outro ano e depois, quando, à arte de
contristes celebrarem, como se fosse ela viva e presente, o dia de Tia Liduína,
propôs uma festa e para enganar os fados.
O autor não narra simplesmente as ações, nem tampouco se limita a descrevê-las, ele
busca, utilizando uma expressão criada por ele mesmo, “descrevivê-las”.
Quando se diz que o autor descreve as ações, deve-se entender que ele faz uso de
recursos diversos a fim de fazer com que o leitor sinta e visualize cada uma delas, isso se dá
por ele narrar de uma forma muito detalhada. Observe-se esse outro trecho, retirado do conto
“As margens da alegria”, também de Primeiras estórias (1994, p389): “Era uma viagem
inventada no feliz; para ele, produzia-se em caso de sonho. Saíam ainda com o escuro, o ar
fino de cheiros desconhecidos” (grifos nossos).
Abordemos, agora, um outro elemento que às vezes é esquecido, mas que pode ser
decisivo no primeiro contato do leitor com a obra: a apresentação gráfica do texto. Em relação
aos textos de Guimarães Rosa, um elemento visual que pode ser motivo de afastamento de seu
possível leitor é a tendência do autor em prolongar seus parágrafos. Sobre a extensão dos
parágrafos, Monteiro (1987, p.56) faz um comentário pertinente:
Convém finalmente observar que a extensão dos períodos e parágrafos pode ser um
convite a uma boa leitura do texto ou, ao contrário, tornar-se um fator de rejeição
por parte do leitor. Parágrafos muito extensos atuam visualmente de modo negativo
na percepção e só se justificam quando o tipo de situação descrita ou narrada os
exigem. Assim, inúmeros parágrafos de Guimarães Rosa preenchem páginas
inteiras, alternados com outros brevíssimos. Mas essa ruptura máxima de simetria,
peculiar ao barroco, mantém-se de acordo com a retratação de choques emocionais
ou situações de desespero.
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É importante observar que o assunto aqui tratado ainda não foi esgotado, pois não são
poucos os obstáculos que impedem o leitor iniciante de relacionar-se adequadamente com a
obra rosiana. O que se quis mostrar foi que, mesmo havendo muitos obstáculos a serem
derrubados, o professor tem que deixar de lado os seus preconceitos e buscar no rico material
oferecido por Guimarães Rosa meios de aproximar seu aluno da grande arte do autor mineiro.
O aluno precisa conhecer primeiro para depois julgar se a obra é ou não de seu agrado, e ao
professor não cabe o papel de privá-lo desse contato, mas, ao contrário, de lutar para que se
dê uma aproximação satisfatória.
2. Como aproximar o aluno de Guimarães Rosa
Muitos críticos literários costumam dizer que não se deve querer aproximar-se de uma
obra através da biografia de seu autor, por aquela ser “uma realidade autônoma, válida por si
mesma e independente de qualquer biografismo”(BIZZARRI apud PIRES,1993, p.175), mas,
o fato é que muitos autores costumam espelhar-se em suas vidas no momento da criação,
inserindo em suas obras muitas coisas que lhes são próprias. Guimarães Rosa pode ser citado
como um desses autores, cujas vida e obra muitas vezes se confundem. O próprio Guimarães
sempre procurou deixar claro esse fato.
Legítima literatura deve ser vida. Não há nada mais terrível que uma literatura de
papel, pois acredito que a literatura só pode nascer da vida, que ela tem de ser a voz
daquilo que eu chamo ‘compromisso do coração’. A literatura tem de ser vida! O
escritor tem de ser o que ele escreve (Apud PIRES, 1993, p.60).
Pires (1993, p.47), faz uma proposta de aproximação ao autor através de duas
perspectivas de abordagem, onde seriam trabalhados aspectos da vida e da obra de Guimarães.
Afirma que essa abordagem tem por finalidade “facultar-nos uma aproximação maior ao
enigma Guimarães Rosa.”
Assim, aproveitamos a proposta de José Alves Pires: aproximar-se de Guimarães
através de fatos relacionados a sua vida que, de alguma forma, influenciaram na criação de
suas obras. Por esse motivo, tomamos como base o capítulo “Aproximação a Guimarães
Rosa”, da obra já citada João Guimarães Rosa: Uma Literatura Almada.
Sendo Rosa visto por muitos como uma espécie de “enigma a ser decifrado”,
provavelmente, o conhecimento de fatos relacionados à sua vida, e a alguns aspectos
intrigantes de seu modo de agir, pensar e sentir, poderá oferecer aos seus leitores uma porta de
acesso à sua obra.
De início, torna-se necessário falar sobre algo que influenciou muito o autor em suas
produções literárias e que se fez presente, de uma maneira marcante, em quase todas as suas
criações: a terra natal.
Foi o fato de ter nascido e vivido durante alguns anos na pequena cidade de
Cordisburgo, localizada no interior de Minas, que despertou no autor o sentimento telúrico e a
admiração pelas belezas naturais. Uma outra característica do autor que influenciou, de
maneira decisiva, seu processo de criação foi a religiosidade. O fato é que se pode perceber,
com facilidade, na obra rosiana a forte intenção do autor de buscar algo mais que o puramente
material, de conhecer o sentido, o porquê dos acontecimentos. Rosa, em suas criações, parece
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não se contentar em permanecer no mundo material, na realidade concreta, por isso busca
transcender para uma outra realidade, para uma nova dimensão. Em seu romance Grande
Sertão: Veredas, a busca pelo sentido do bem e do mal, e pela existência de Deus e do diabo
se faz presente. A importância da religiosidade em sua vida pode ser comprovada através de
depoimentos dados por sua filha Vilma Guimarães (Apud PIRES,1993, p.51):
Espírito naturalmente cristão, religiosidade intensa, interessava-lhe a realidade do
mundo imaterial e a grande significação das coisas criadas. Procurava os nexos
entre o visível e o invisível, o sensorial e o ultra-sensorial. Simbolismo, ficção e
fato, presentes em sua obra, são os aliados que identificam a sua visão históricofilosófica.
Esse desejo de conhecer os mistérios relacionados à existência humana é comprovado
pelo interesse que ele demonstrava ter pelas diversas formas de religião. Tal ecletismo
religioso Rosa acrescentou ao seu personagem Riobaldo, de Grande Sertão: Veredas”, cuja
maior angústia era descobrir a legitimidade ou não de um suposto pacto que fizera com o
diabo. E a arma que o personagem utilizava para afastar-se do mal era provar a si mesmo a
não existência dessa entidade através da palavra, do discurso.
Não seria exagero afirmar que a força motriz do escritor Guimarães Rosa foi essa
religiosidade, pois foi ela que o fez buscar na arte literária uma forma de aproximar-se de
Deus e, como seu personagem Riobaldo, através da palavra, do discurso, afastar-se do mal.
É importante, outrossim, observar como se dá o processo criador de um artista, podese perceber, através de alguns dos relatos de Guimarães Rosa, que ele considerava tal
processo como conseqüência da inspiração. Dizia que a inspiração costumava vir-lhe, e ele
não era mais do que uma espécie de intermediário. No entanto, isso não significa que a obra
lhe chegasse pronta, acabada, pois, o autor era conhecido como um dedicado escritor, que
costumava trabalhar muito os seus textos, a fim de conseguir alcançar a expressividade tão
buscada. É isso que se pode observar, quando se lê esse relato que o próprio Rosa (Apud
PIRES, 1993, p.64) faz a um amigo sobre o processo de trabalho ao qual se submeteu para a
criação de seu livro de contos Sagarana:
O livro foi escrito – quase todo na cama, a lápis, em cadernos de 100 folhas – em
sete meses; sete meses de exaltação, de deslumbramento. (Depois, repousou
durante sete anos; e, em 1945 foi ‘retrabalhado’, em cinco meses, cinco meses de
reflexão e lucidez).
Como um autor de textos literários, como o artista que era, Guimarães Rosa buscava a
essência humana e, nessa busca, ele fazia uso de um importante instrumento: a linguagem.
Acreditava que a linguagem e a vida eram uma coisa só, assim, se a vida era dinâmica e
sempre em processo de evolução, a linguagem também deveria apresentar essas
características. Talvez aí esteja a resposta para o enigma Guimarães Rosa – autor complexo de
obras herméticas. Se a vida está sempre em evolução, a linguagem deveria ser revolucionária,
uma vez que é o retrato da vida.
Também acreditava que o escritor deveria se comprometer com o seu trabalho a ponto
de se confundir com sua obra: o autor deveria ser aquilo que escrevesse. Para conseguir o seu
objetivo de aproximar da vida a linguagem, o autor buscou conhecer profundamente o seu
instrumento de trabalho; daí o desejo de conhecer outros idiomas, a fim de, como afirma o
próprio autor, compreender mais profundamente o idioma nacional.
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Rosa parecia ver na língua um caminho para o infinito, para o eterno. Acreditava no
poder expressivo das palavras, uma vez que estas, para ele, eram capazes de vencer o mal. Em
sua concepção, o escritor assume um papel crucial frente ao humano. Sendo a língua o
espelho da alma, o escritor tem em mãos um instrumento por demais valioso, que não pode,
nem deve, ser trabalhado de qualquer forma, sem a dedicação e os cuidados necessários. O
artista passa a ser, para Guimarães, uma espécie de deus. É ele quem vai criar, dar a vida
conforme a sua sensibilidade; e a obra criada será semelhante ao seu criador: “...pois quero
voltar cada dia à origem da língua, lá onde a palavra ainda está nas entranhas da alma, para
poder lhe dar luz segundo a minha imagem.” (Apud PIRES, 1993, p.99)
O conhecimento aprofundado da língua deu ao autor condições de trabalhá-la como
poucos o fizeram. Rosa se dedicou a ressuscitar palavras mortas, através das mais diversas
transformações, e a resgatar a expressividade original delas: “há meu método que implica uma
utilização de cada palavra como se ela tivesse acabado de nascer, para limpá-la das impurezas
da linguagem cotidiana e reduzi-la a seu sentido original.” (Apud PIRES, 1993, p.69)
Muitos dos recursos utilizados por Guimarães Rosa, em suas obras, têm esse objetivo:
reavivar significados e expressividade originários e fazer com que o leitor perceba a
importância disso. É fundamental que o leitor conheça quais foram as metas traçadas pelo
autor no momento de produzir seus textos, pois, sabendo o que este espera,, torna-se mais
fácil aproximar-se da imagem do enunciatário (leitor ideal) inserida no texto.
A intenção de Guimarães Rosa, em relação ao seu leitor, é fazer com que este deixe de
ser um mero receptor de informações – que nem ao menos tem consciência de como as
informações estão sendo passadas para ele -, para assumir o seu papel de co-responsável pela
construção do sentido do texto.
Mas, se é necessário conhecer um pouco mais da vida de Guimarães e de alguns
aspectos de sua personalidade, a fim de adentrar em sua obra, torna-se necessário, também,
saber qual a posição que o autor ocupa na literatura brasileira e a qual Escola Literária ele
pertence. Isto sempre foi motivo de muita polêmica entre os teóricos da literatura. Essa
polêmica se deve ao seguinte fato: porque Guimarães retratou a sua região, que é o sertão de
Minas, utilizando-a como cenário de suas histórias; e usou como personagens os habitantes
dessa região, tende-se a afirmar que ele é um autor regionalista, como muitos fazem. No
entanto, se for observado o fato de que o “sertão” de Rosa assume dimensões bem maiores
daquelas delimitadas geograficamente, e que a busca do autor pelo sentido da essência
humana está, muitas vezes, representada no que, para ele, é o sertão: um ambiente mágico,
inspirador e vivo de onde o homem sertanejo retira sua força, notar-se-á que o sertão de Rosa
tem um caráter bem mais universal do que regional, o que nos leva a refutar a afirmação de
que ele é um autor regionalista.
O sertão era visto por Guimarães como uma fonte de inspiração, na qual o homem
sertanejo, que tinha algum talento para as letras, buscava sua essência: “Quem cresce em um
mundo que é literatura pura, bela, verdadeira, real, deve algum dia começar a escrever, se
tiver uma centelha de talento para as letras” (Apud PIRES, 1993, p.89).
O autor revela que o sertão foi o que lhe impôs o amor à arte literária. Esse ambiente é,
para ele, o lugar de onde provêm os escritores que não trabalham apenas com o cérebro, mas
também e sobretudo com o “sangue do coração humano” (Apud PIRES, 1993, p.91).
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Guimarães via, na figura do escritor, uma espécie de alquimista da palavra e, no sertão, uma
espécie de lenda, de ambiente inspirador.
Eu trazia sempre os ouvidos atentos; escutava tudo o que podia e comecei a
transformar em lenda o ambiente que me rodeava, porque este, em sua essência, era
e continua sendo uma lenda (Apud PIRES, 1993, p.89).
Observa-se que, nas obras rosianas, todos os elementos que compõem o cenário
sertanejo transpiram força, poder e mistério. O rio, por exemplo, passa a assumir, dentro do
universo ficcional de Guimarães Rosa, novas dimensões, e serve, assim como o sertão, para
caracterizar aspectos da essência humana.
Mas o certo é que, por sua nova forma de expressão literária, pelas revoluções que
promoveu na linguagem, pela maneira singular de caracterizar seus personagens e o cenário
de suas obras, fica difícil “encaixar” Guimarães Rosa em uma Escola Literária. Ele foi um
criador que sempre demonstrou ser livre de convencionalismos; o que ele buscava era, sim,
uma nova forma de expressar o mundo, de buscar a Deus através da arte e de trabalhar a
essência humana a fim de melhor conhecê-la.
Há ainda muito a se conhecer da vida de Guimarães Rosa, mas como o objetivo aqui
não foi o de apresentar uma biografia sua, mas apenas o de sugerir uma forma de aproximação
ao autor através de alguns aspectos de sua biografia.
3. Como começar
Acredita-se que o jovem, já conhecendo um pouco mais da vida de Guimarães, poderá
agora ter um primeiro contato com as produções do autor. E, para que ocorra a aproximação
entre leitor iniciante e obra, o primeiro passo será selecionar textos, adequados a esse tipo de
leitor.
Nosso objetivo é apresentar alguns critérios de seleção, que deverão ser observados
pelo professor, no momento de escolher os textos rosianos a serem trabalhados em sala de
aula. De início, é importante ressaltar que a obra deverá ser estudada integralmente e não
somente através de fragmentos, como se costuma fazer na escola, pois os fragmentos não
proporcionam ao leitor a intimidade necessária com o texto. É isso que afirma Micheletti
(1999, p.68):
Freqüentemente nos livros didáticos aparecem excertos, fragmentos de romances e
até de textos teatrais. É possível ter-se um contato com esses textos, mas faltará
sempre uma maior intimidade, mesmo que se faça um resumo do todo.
A autora destaca a importância de se trabalhar os detalhes de uma obra, a fim de fazer
com que o leitor tenha condições de relacioná-los com o todo. Afirma, também, que o conto,
por ser uma narrativa curta, se mostra ideal para o trabalho feito em sala de aula: “Assim, o
conto é perfeito: o professor, em companhia de seus alunos, pode explorá-lo minuciosamente,
atendo-se a detalhes e relacionando-os com o todo” (MICHELETTI, 1999, p.68).
A afirmação feita pela autora deve-se ao fato de os contos serem narrativas curtas. Mas
note-se que há ainda, nesse gênero textual, outras características que poderão atrair o jovem
leitor: no conto, há uma ênfase maior naquilo que é essencial, o que o torna mais dinâmico;
normalmente, ele se apresenta de uma forma bem condensada, havendo apenas um núcleo
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dramático, com um só conflito, um único núcleo de ação; também, há poucas personagens,
sendo que estas agem num espaço geográfico bem restrito e em um tempo curto, que, poucas
vezes, ultrapassa horas ou dias; o contista busca despertar, em seu leitor, uma única impressão
que pode ser de medo, de angústia, de piedade etc. Por tudo isso, esse gênero textual
apresenta maiores possibilidades de seduzir os jovens, que costumam impor às suas leituras,
dinamismo e objetividade.
Guimarães Rosa escreveu diversos contos, fato que possibilita selecionar, em sua obra,
aqueles que sejam mais acessíveis ao leitor iniciante. No entanto, deve-se observar que os
contos de Rosa deverão ser escolhidos cuidadosamente, já que muitos deles apresentam uma
extensão maior do que a recomendável para se trabalhar em sala de aula.
Se o professor já proporcionou ao aluno um primeiro contato com o autor, através de
dados pertinentes à biografia, supõe-se, então, que este aluno já tenha conhecimento de
algumas importantes características de Rosa, as quais o influenciaram em suas produções
literárias, como por exemplo: o amor à terra natal, a religiosidade e a admiração que tinha
pela expressividade das palavras, fatores de que já falamos. Esse conhecimento,
provavelmente, irá auxiliar o jovem no momento de interagir com o texto. Isso, é claro, se o
professor souber orientá-lo adequadamente e tiver condições de fazer uma abordagem
eficiente das produções selecionadas.
É importante que o professor saiba que há duas formas de abordagem de uma obra: a
análise externa e a análise interna. A primeira se refere ao estudo extrínseco do texto, ou seja,
a uma análise feita de fora para dentro, quando serão levados em conta o fator social, a
personalidade do autor, as concepções gerais sobre a cultura e a civilização em que a obra foi
produzida, etc. A segunda é o estudo intrínseco, pelo qual o texto será trabalhado a partir dele
mesmo: sua estrutura lingüística, a organização do material, a constituição e as relações dos
signos lingüísticos, os motivos que compõem o(s) tema(s) etc. É importante observar que não
se deve trabalhar um texto literário apenas por uma dessa perspectivas, pois elas não se
opõem entre si. O que ocorre é que cada uma delas focaliza mais um aspecto da obra do que
outro. Guaraciaba Micheletti, na obra já citada, observa que o trabalho será mais completo se
contemplar os aspectos extrínsecos e os intrínsecos.
Em livros como os de Rosa, onde se percebe que muitos elementos da vida do autor e
da cultura de seu povo foram inseridos, é importante que se faça essa relação, para que haja
uma melhor compreensão da obra em si e um maior envolvimento do leitor.
O aluno, que está cursando o Ensino Médio – e, vale ressaltar, a quem se recomenda,
neste trabalho, a iniciação da leitura dos textos rosianos - ainda se apresenta bastante inseguro
diante de tais produções, pelos motivos que já foram discorridos neste trabalho. Por sentir a
insegurança de seu aluno, o professor procura tornar os textos mais acessíveis a eles e, para
isso, costuma fazer uso de recursos como resumos, comentários, perguntas, etc. Outra
tentativa é que buscar textos muito simples, o que não é a solução. Deve-se, sim, levá-lo a
evoluir aumentando o nível de complexidade dos textos estudados.
No entanto, é certo que o professor, na tentativa de aproximar seu aluno de Guimarães
Rosa, busque os textos que se mostrem mais fáceis de serem compreendidos, pois já conhece
a posição do jovem diante da obra do autor; as produções nas quais os recursos utilizados pelo
escritor não prejudiquem a compreensão a ponto de tornar a leitura impossível, pois sabe que,
caso contrário, seu aluno acabará se distanciando ainda mais das obras desse autor.
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No momento de selecionar os contos, é preciso estar atento para alguns aspectos
importantes, a fim de que a aproximação entre leitor e texto ocorra sem maiores problemas. O
primeiro deles é a extensão da narrativa, pois, como já se sabe, essa extensão é um dos fatores
que irá determinar se o texto é ou não adequado para ser trabalhado em sala de aula. Textos
muito extensos irão dificultar o trabalho do professor.
O segundo fator é a forma como a estória está sendo contada. Para o leitor iniciante, o
melhor é escolher contos que apresentem uma estrutura tradicional, isto é, que tenham as
partes constituintes do enredo bem definidas (exposição, complicação, clímax e desfecho) e
cuja trama se desenrole de forma linear.
Um terceiro fator, para o qual o professor deverá estar atento no momento da escolha,
é a linguagem utilizada pelo autor, pois, se ela se apresenta muito complexa, o texto poderá se
tornar inacessível para o jovem leitor. É importante que o professor saiba selecionar textos
que apresentem uma linguagem mais próxima da realidade de seu aluno, sem, no entanto,
esquecer a importância de ajudá-lo a evoluir, a vencer etapas. Nessa escolha, deve-se buscar
textos que, ao mesmo tempo em que se mostrem mais acessíveis, também possibilitem ao
aluno conhecer o diferencial do estilo do autor.
Brait (1982, p.69) propõe, por exemplo, que se inicie o jovem na leitura de Guimarães
Rosa pelas Primeiras Estórias:
Como as narrativas são curtas e têm sempre como núcleo um único acontecimento,
fica mais fácil namorar cada um dos contos e descobrir na variedade da construção,
dos ritmos, dos assuntos, a magia de uma linguagem que fisga e expõe os meandros
da existência humana.
Os contos, presentes na obra, são curtos e seguem a linha do conto tradicional: as
histórias são narradas de forma linear – há uma situação inicial, em seguida o conflito, para,
depois, se dar o desfecho; apresentam as ações bem definidas; têm como núcleo um único
acontecimento. E, mesmo tendo uma “linguagem bem rosiana”, não se mostram tão
herméticos.
O livro Primeiras Estórias 74 foi publicado em 1962 e reúne vinte e um contos. Nesse
volume, o autor busca explorar diferentes tendências de sua narrativa: a psicológica, a
fantástica, a autobiográfica, por exemplo. Os fatos narrados nas estórias são aparentemente
banais, mas o que ocorre é que esses fatos transformam-se como por uma espécie de milagre.
O autor extrai poesia dos acontecimentos mais corriqueiros, mostrando que, para isso, é
necessário refletir mais sobre a vida e não simplesmente vivê-la.
Nos contos dessa obra, Guimarães Rosa mostra que há muito que se admirar na vida,
mas é importante não se deixar “aprisionar” pelo senso comum. A solução será fazer como
fazem crianças, velhos e loucos, que não deixam de se “espantar” diante de coisas
consideradas por todos como simples e banais. Em uma análise que faz do livro Primeiras
Estórias, Maria Luíza Ramos (1983, p.515-516) tece um comentário bastante pertinente sobre
esse assunto:
É essa a condição essencial do estilo de Guimarães Rosa: renovar, redescobrir,
criar. E, assim como procura desvendar nas desgastadas palavras de todos os dias a
74
Sempre que nos referirmos à obra Primeiras Estórias, estaremos citando a edição da Editora Nova Aguilar, de
1994.
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sua latente expressividade, lança-se inteiro na ansiosa busca do humano, oculto na
brutal mediocridade da massificação. Talvez, por essa razão, o escritor explore
tanto as personagens infantis, a ponto de abrir e fechar o volume com estórias que
envolvem o Menino, assim sem nome, sem comportamento estereotipado, reagindo
com o mais espontâneo fervor às coisas do mundo e ao seu peculiar suceder.
No conto “As Margens da Alegria”, o primeiro do livro, o autor descreve o
encantamento de um menino diante de um peru:
O peru para sempre. Belo, belo! Tinha qualquer coisa de calor, poder e flor, um
transbordamento. Sua ríspida grandeza tonitruante. Sua colorida empáfia. Satisfazia
os olhos, era de se tanger trombeta. Colérico, encachiado, andando, gruziou outro
gluglo. O menino riu, com todo o coração (1994, p.390).
Em um outro conto dessa obra, “Pirlimpsiquice”, Guimarães Rosa constrói sua
narrativa em torno de uma peça teatral preparada para ser encenada em uma festa de
colégio, na qual falta um ator, tendo os outros atores de improvisar no momento da
encenação. O autor descreve o fato como sendo algo espantoso. Observe-se:
Aquilo na noite do nosso teatrinho foi de oh. O estilo espavorido. Ao que sei, que
se saiba, ninguém soube sozinho direito o que houve. Ainda, hoje adiante, anos, a
gente se lembra: mas, mais do repente que da desordem, e menos da desordem do
que do rumor (1994, p.415).
As narrativas, em geral, apresentam temas relacionados a coisas estranhas, espantosas.
Tal fato pode ser observado, conforme afirma Maria Luíza Ramos (1983, p.516), através de
um levantamento das palavras mais freqüentes ao longo das estórias: “essas palavras se
circunscrevem a um mesmo campo semântico, de que o surpreendente poderia perfeitamente
ser o denominador comum”. O ambiente privilegiado é o rural, alguns dos contos se passando
em pequenos lugarejos, arraiais ou vilas. Apenas dois deles têm como cenário a cidade.
Dos vinte e um contos, dez são narrados em terceira pessoa: “As Margens da Alegria”;
“Famigerado”; “Soroco, sua Mãe, sua Filha”; “A Menina de Lá”; “Os Irmãos Dagobé”;
“Nenhum, Nenhuma”; “Seqüência”; “Um Moço Muito Branco”; “Substância”; “Os Cimos”.
E onze são narrados em primeira pessoa: “A Terceira Margem do Rio”; “Pirlimpsiquice”;
“Fatalidade”; “O Espelho”; “Nada e a nossa Condição”; “O Cavalo que Bebia Cerveja”;
“Luas de Mel”; “Partida do Audaz Navegante”; “A Benfazeja”; "Darandina”; “Tarantão, meu
Patrão”.
Como sabemos, há ainda muitos obstáculos que se impõem no momento da leitura dos
textos rosianos e que devem ser derrubados. Mas é importante que o professor não desista de
tentar aproximar seu aluno desse autor. Para isso, o importante, como foi dito, é escolher
dentre a obra rosiana os textos mais adequados ao tipo de leitor que se deseja atingir e
desenvolver nos jovens algumas habilidades necessárias para a apreciação dos textos
literários.
Se bem explorados, os textos rosianos, além de ajudarem a desenvolver habilidades
para a leitura dos mais variados tipos de textos, podem despertar interesses vários no
estudante. Mas é necessário que o professor reveja seus pré-conceitos e busque trabalhar
adequadamente o rico material que a obra de Guimarães Rosa lhe oferece.
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Referências bibliográficas
BRAIT, Beth. Literatura Comentada: Guimarães Rosa. São Paulo: Abril Educação, 1982.
COUTINHO, Eduardo F. Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.
(Coleção Fortuna Crítica).
KLEIMAN, ângela. Texto e Leitor: aspectos cognitivos da leitura. 2 ed. São Paulo: Pontes,
1989.
MICHELETTI, Guaraciaba. Leitura e Construção do Real. São Paulo: Cortez, 2000.
MONTEIRO, José Lemos. Fundamentos da Estilística. Fortaleza: Secretaria de Cultura e
Desporto, 1987.
PIRES, José Alves. João Guimarães Rosa: uma literatura almada. Lisboa: Edições Brotéria,
1993.
RAMOS, Maria Luíza. “Análise Estrutural de Primeiras Estórias”. In: Coutinho, Eduardo F.
Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983. (Coleção Fortuna Crítica). p.
514-519.
ROSA, João Guimarães. Ficção Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
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As Duas Margens
Gislene Teixeira Coelho
Mestranda em Teoria da Literatura-Universidade Federal de Juiz de Fora MG
Resumo: Esse trabalho objetiva estabelecer um diálogo entre o conto de Carlos Fuentes As
duas margens e o romance de Charles Dickens A tale of two cities. Será focalizado o trabalho
que esses escritores desenvolvem com a questão do hibridismo em suas obras, destacando o
choque existente entre as duas margens e o deslocamento contínuo entre centro e periferia.
Palavras-chave: margens, hibridismo e deslocamento.
Abstract: This paper aims to establish a dialogue between Carlos Fuentes’s short story As
duas Margens and Charles Dickens’s novel A tale of two cities. It will be focused the work
that these writers develop with the question of hybridism in their works, detaching the shock
that exists between the margins and the continuous displacement between center and
periphery.
Key words: margins, hybridism and displacement
No conto As Duas Margens, Carlos Fuentes expõe duas perspectivas inconciliáveis - a
do índio mexicano e a do europeu. A separação destas duas margens pode ser representada
pelo oceano, que simbolizaria a fronteira, o limite, o inatingível. T. S. Eliot afirma em seu
poema The Dry Selvages que as margens de um rio são facilmente conquistadas e unidas,
como se observa no seguinte fragmento:
(...) the river
Is a brown god – sullen, untamed and intractable,
Patient to some degree, at first recognised as a frontier;
Then only a problem confronting the builder of bridges;
The problem once solved, the brown god is almost forgotten” 75
Entretanto, o oceano representa o que não pode ser superado e compreendido “The
river is within us, the sea is above us;” 76. As duas margens de Fuentes não são como as de um
rio que se unem com, por exemplo, a construção de uma ponte. O processo de identificação
entre as duas margens é um problema comum e presente em todas as regiões que sofreram de
colonização violenta e que convivem com realidades distintas e contrastantes dentro do
mesmo território; portanto, bastante complexo e enigmático.
Fuentes evidencia a separação entre o México e a Espanha, ressaltando em especial a
diferença de valores e interesses entre estes dois povos. O colonizador interessava-se
exclusivamente por objetos de valor, buscando glória e poder, como vemos em:
75
Tradução literal minha: “(...) o rio/é um deus marrom – emburrado, não domesticado e difícil de
resolver/Paciente em certo ponto, primeiramente reconhecido como uma fronteira;/Então somente um problema
confrontando o construtor de pontes/O problema uma vez resolvido, o deus marrom é quase esquecido”
76
Tradução literal minha: “O rio está dentro de nós, o oceano está sobre nós;”
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Quero despedir-me do mundo com esta imagem do poder e da riqueza bem gravada no
fundo dos olhos: cinco navios bem abastecidos com grande número de soldados e muitos
cavalos e canhões e escopetas e balestras, e todo o gênero de armas, carregados até os mastros
e lastrados até os porões: oitenta mil pesos em ouro e prata, jóias sem fim, e todo o mobiliário
de Montezuma e Guatemuz... (FUENTES, 1997, p. 12-13)
Por outro lado, o índio mexicano mantinha um interesse especial pela utilidade das
coisas, por sua própria sobrevivência, como temos em:
Era o obséquio cotidiano que os índios, ao servir a natureza, prestavam a si
mesmos. Viviam para sobreviver, é verdade; mas também viviam para que
o mundo continuasse a alimentar os descendentes quando eles morressem.”
(FUENTES, 1997, p. 42)
O narrador expõe um mesmo objeto referencial (ouro) analisado nas duas perspectivas
e demonstra a diferença na valorização deste objeto. Para Cortés, o ouro possui somente o
valor comercial, e para o indígena, o ouro tinha um valor mágico e ornamental, conforme se
observa em: “Não fizemos mais que dar o melhor destino ao ouro dos astecas, arrancá-lo de
estéril ofício para distribuí-lo, dar-lhe propósito econômico em lugar do ornamental ou
sagrado, faze-lo circular, fundi-lo para difundi-lo?” (FUENTES, 1997, p. 14)
Jerônimo, um dos personagens e narrador da estória, é conhecedor das duas margens e
apresenta as duas vozes, o que faz com que ele sofra de crise de identidade: “Eu, que também
possuía as duas vozes, a de Europa e da América, fora derrotado. Tinha também duas pátrias;
e isso talvez fosse fraqueza, mais que força. (...) Eu conhecia as duas margens” (FUNTES,
1997, p. 26). Trata-se de um sujeito fragmentado e dividido, cuja “mirada estrábica”
(PIGLIA, 1991, 61) foi responsável por sua derrota. Esse sujeito congrega em si uma
pluralidade de visões, de experiências, de forma que seu olhar é diferenciado, transitando
entre a margem e o centro, ou seja, entre os contextos americanos e europeus.
Por outro lado, Marina só conhecia a margem mexicana e se entrega totalmente ao
colonizador Cortés, como se observa em: “Marina não: pôde entregar-se toda ao Novo
Mundo, não ao passado oprimido, certo, mas ao futuro ambíguo, incerto e por isso invicto.”
(FUENTES, 1997, p. 26). Marina é seduzida e se une a Cortés; entretanto, a união das duas
margens nunca se consolida. Malinche, ou Marina, representa aquele que foi conquistado e
explorado pelo colonizador, e posteriormente esquecido.
É exatamente na união de Cortés (colonizador europeu) e de Marina (povo indígena
violado) que o povo mexicano tem sua origem. Foi nesta união que Malinche “teve de
arriscar-se para salvar a vida e ter descendência” (FUENTES, 1997, p. 26), e deu origem a
um povo híbrido, cuja constituição mescla estas duas culturas tão distintas. Devido a esse
passado de dominação e violação, este povo conserva marcas dolorosas que não podem ser
apagadas. O mexicano sente-se só, não deseja ser índio e nem espanhol, envergonha-se de sua
origem. Ao estabelecer esta ruptura com seu passado, este povo desconhece sua identidade, o
que o impede de constituir a sua mexicanidade, conforme afirma Octavio Paz em:
O mexicano não quer ser nem índio, nem espanhol. Tampouco quer descender deles.
Nega-os. E não se anima em sua condição de mestiço, mas só como abstração: é um
homem. Torna-se filho do nada. Começa em si mesmo. (PAZ, 1972, p. 259)
Em seu ensaio Os Filhos de Malinche, Paz denomina nossa Marina de Chingada, ou
seja, a mãe violada que se entrega ao poder de sedução do conquistador, sem apresentar
resistência. Marina representa as índias-mães que se uniram ao conquistador e abandonaram
seus filhos. Por esta razão, o povo mexicano conserva um sentimento de orfandade, e tornouse um povo fragmentado e vazio, cujas raízes o enfraquece e não o sustenta. Paz demonstra
este sentimento de traição e vergonha no trecho:
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Se a Chingada é uma representação da Mãe violada, não me parece forçado associá-la à
Conquista, que foi também uma violação, não somente no sentido histórico como na
própria carne das índias. O símbolo da entrega é dona Malinche, a amante de Cortés. É
verdade que ela se entrega voluntariamente ao Conquistador, mas este, mal ela deixa de
ser-lhe útil, a esquece. Dona Marina se converteu em uma figura que representa as índias,
fascinadas, violadas ou seduzidas pelos espanhóis. E do mesmo modo que a criança não
perdoa à sua mãe porque a abandona para ir em busca de seu pai, o povo mexicano não
perdoa Malinche por sua traição. (PAZ, 1972, p. 258)
Trata-se de uma cultura híbrida, visto que mescla a cultura dominante européia com a
cultura local. Entretanto, não há uma união destas duas culturas, elas apenas se suplementam.
Na verdade, elas se divergem, lutam para se firmar, mas são incapazes de negar a presença da
outra em sua constituição.
Fuentes em sua narrativa contrasta a visão idealizada de uma conquista com o seu
produto real. Esperava-se que “um universo a um tempo novo e resgatado, permeável,
complexo, fecundo, nascera do contato entre as culturas (...)” (FUENTES, 1997, p. 46), mas a
realidade de uma conquista é mais cruel e destruidora: “Nós, os espanhóis, matamos não
apenas o poder indígena: matamos a magia que o rodeava.” (FUENTES, 1997, p. 14).
Resta a este povo sofrido acreditar em um futuro melhor, embasado em uma crença
mítica. Acredita-se que a imaginação mágica do povo indígena pode vir a ressuscitar o povo
indígena, poderá ser uma arma de vingança e justiça, como observamos em:
Não sei, porque o próprio Hernán Cortés, com toda a perspicaz inteligência, nunca
teve imaginação mágica, que foi, por um lado, a fraqueza do mundo índio, mas, por
outro, poderá vir a ser um dia a força: sua contribuição para o futuro, sua
ressurreição... (FUENTES, 1997, p. 48)
Esta ressurreição se dará sobre as cinzas do mundo indígena destruído, que será
retomado do nada. Esta crença mítica dialoga com o discurso bíblico de renovação contínua
da vida, utilizando as palavras de T. S. Eliot poderíamos resumir este ciclo vital da seguinte
maneira: “... old timber to new fires,/Old fires to ashes, and ashes to the earth” 77 (citação
retirada do poema East Coker). Desta forma, todo o sacrifício e destruição seriam
recompensados pelo ressurgimento deste povo que teve sua história interrompida pela ação do
conquistador.
Um diálogo com Fuentes
A mesma problemática exposta por Fuentes pode ser encontrada na obra A Tale of
Two Cities do romancista inglês Charles Dickens. Nesse romance, o autor conta a estória de
uma cidade que convive com duas realidades diferentes dentro do mesmo ambiente. Na
verdade, o romancista descreve a movimentação de duas cidades diferentes inseridas em uma
só, representando, assim, as duas margens também trabalhadas por Carlos Fuentes. Estas
margens abrigam elementos divergentes, tais como, revolucionários e aristocratas, opressores
e oprimidos, pobreza e riqueza, repúdio e atração. Deste modo, Dickens retrata seu
pessimismo e sua crítica em relação à constituição de uma sociedade que convive com
contrastes impressionantes.
77
Tradução literal minha: “... velha madeira a novos fogos,/Velhos fogos a cinzas, e cinzas à terra”
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O período histórico retratado no romance apresenta contrastes nos campos social,
econômico, intelectual e filosófico, mostrando um momento de enorme efervescência, que
culmina com a Revolução Francesa. Estes contrastes não se anulam, não se fundem, não
formam um “melting-pot”, eles simplesmente se suplementam. Utilizando as palavras de
Dickens, pode-se resumir este momento retratado da seguinte forma:
It was the best of times, it was the worst of times, it was the age of wisdom, it was the age
of foolishness, it was the epoch of belief, it was the epoch of incredulity, it was the season
of Light, it was the season of Darkness, it was the spring of hope, it was the winter of
despair, we had everything before us, we had nothing before us, we were all going direct
to Heaven, we were all going direct the other way… (DICKENS, 1994, p. 13) 78
O discurso moderno de Dickens dialoga com a estética do feio de Charles Baudelaire,
o romancista vitoriano traz para sua obra a Londres rica e atraente juntamente com a Londres
miserável e repelente, ambas como sendo produto da mesma Inglaterra desenvolvida e
industrializada. Estas duas Londres, ou estas duas margens, convivem de maneira conflituosa,
como observamos em: ““You are the fellow we want,” said Defarge, in his ear: “you make
these fools believe that it will last for ever. Then, they are the more insolent, and it is nearer
ended.” (DICKENS, 1994, p. 176) 79
Utilizando o pensamento de Walter Benjamin, pode-se dizer que a Londres feia e
pobre seria a cidade de Marsella e que a Londres bonita e rica seria representada por Paris.
Embora estas duas cidades européias – Marsella e Paris – estejam inseridas no mesmo
ambiente, elas constituem dois pólos separados e distintos, enquanto Paris se constituía como
“um grande salão de biblioteca atravessado pelo Sena.” (BENJAMIN, 1987, p. 195), Marsella
“é a cor da vergonha, da miséria.” (BENJAMIN, 1987, p. 198). Marsella e a Londres
miserável correspondem a uma imagem distorcida da Paris e da Londres rica, como um
reflexo deformado que assusta e surpreende ao ser contrastada com a imagem original.
As classes sociais altas desfrutam de conforto e luxo, seus títulos de nobreza lhes
garantem respeito e uma vida longa, como em: “Then, there were gardens, courtyards,
terraces, fountains, green banks, more King and Queen, more Bull’s Eye, more lords and
ladies, more Long life they all.” (DICKENS, 1994, p. 176) 80. Por outro lado, aos pobres resta
uma vida miserável, sendo comparados a ratos: “Monsier The Marquis, ran his eyes over
them all, as if they had been mere rats come out of their holes.” (DICKENS, 1994, p. 116) 81.
Além da diferença social, o narrador ressalta a opressão que o pobre povo sofre, apresentando
uma classe social explorada e dominada: “Ah, the unfortunate, miserable people! So opressed,
too – as you say.”(DICKENS, 1994, p. 182) 82.
78
Tradução Literal minha: “Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos, foi a era da sabedoria, foi a era da
tolice, foi a época da crença, foi a época da incredulidade, foi a estação da luz, foi a estação da escuridão, foi a
primavera de esperança, foi o inverno de desespero, nós tínhamos tudo diante de nós, nós não tínhamos nada
diante de nós, nós estávamos todos indo direto para o céu, nós estávamos todos indo direto para o lugar (...)”
79
Tradução Literal minha: ““Você é o seguidor que nós queremos,” disse Defarge, em seu ouvido; “você faz
estes tolos acreditarem que isto vai durar parar sempre. Então, eles são os mais insolentes, e isto está mais perto
do fim.””
80
Tradução Literal minha: “Desse modo, havia jardins, pátios, terraços, fontes, áreas verdes, mais rei e rainha,
mais alvo, mais cavalheiros e damas, mais vida longa para todos.”
81
Tradução Literal minha: “O Senhor Marquis correu seus olhos sobre todos, como se eles fossem ratos que
saíssem de suas tocas.”
82
Tradução Literal minha: “Ah, os infortunados, pessoas miseráveis! Também muito oprimidas – conforme você
diz.”
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Dickens mostra como a ciência, objeto de orgulho da modernidade, transita nestas
duas margens, mostrando dois usos distintos. O personagem Doctor Manette a utilizou para
fazer fortuna como um respeitável médico, enquanto Jerry Cruncher vendia corpos de pessoas
mortas para cientistas como uma forma de sobrevivência. Todos os dois casos oferecem sua
força de trabalho a favor da ciência, que está presente nas duas margens, mas cada uma faz
um uso diferente em função de suas necessidades divergentes “enriquecimento versus
sobrevivência”.
As classes inferiores conservavam a esperança de que poderiam vir a ter uma vida
melhor no futuro “... it is nearer ended.”. Desta forma, elas apostavam na revolução como
uma forma de assegurar uma vida digna, uma forma a restituir-lhes o que a outra margem as
havia negado. Esperava-se por uma cidade melhor, com pessoas melhores, sem opressão e
miséria, como se observa em:
“I see a beautiful city and a brilliant people rising from this abyss, and, in their
struggles to be truly free, in their triumphs, and defeats, through long long years to
come (...)”
“I see the lives for which I lay down my life, peaceful, useful, prosperous and
happy, in that England which I shall see no more.” (DICENS, 1994, p. 366-367) 83
Dickens cria o personagem Sydney Carton que, para garantir uma vida nova e
tranqüila à família de Lucie Manette, sacrifica sua própria vida. Sua morte representa a
ressurreição e libertação de Lucie, assemelhando-se, assim, à Cristo, nas palavras de Dickens:
“I am the Resurrection and the Life, Said the Lord: he that believeth in me, though he were
dead, yet shall he live: and whosoever liveth and believeth in me, shall never die:”
(DICKENS, 1994, p. 366) 84. Da mesma forma que a morte de Carton garantiu vida e
liberdade, a destruição da antiga Inglaterra daria aos pobres a possibilidade de ressurreição.
Neste aspecto, estabelece-se uma semelhança com os indígenas que também apostavam na
ressurreição a partir das cinzas. Os pobres londrinos esperavam que uma nova cidade surgisse
depois da Revolução Francesa, depois da destruição da antiga e miserável Londres.
Desta forma, toda a violência e opressão utilizada no movimento seriam justificadas
pela necessidade de destruir para construir o novo, como T. S. Eliot afirma em seu poema
East Coker: “Houses rise and fall, crumble, are extended,/Are removed, destroyed, restored,
or in their place” 85. Para se atingir a cidade almejada, havia necessidade de recorrer a
qualquer sacrifício, independente do sofrimento que este ato pudesse causar, como podemos
ver na seguinte citação: “It was nothing to her, that an innocent man was to die for the sins of
his forefathers; she saw, not him, but them.” (DICKENS, 1994. p. 354) 86.
O período vitoriano que surgiria mais à frente (1837-1901) foi marcado por um
enorme pessimismo, mas ao mesmo tempo criou um clima de ufanismo e otimismo no
progresso e na ciência. Dickens retrata o seu otimismo ao apostar na criação dessa “beautiful
city” e desse “brilliant people”, afirmando que a velha Inglaterra seria destruída, a fim de que
83
Tradução literal minha: ““Eu vejo uma cidade bonita e um povo brilhante emergindo deste abismo, e, em sua
luta por verdadeira liberdade, nos seus triunfos e derrotas, através dos longos e longos anos por vir (...)” “Eu vejo
as vidas para as quais eu arrisco meu vida, pacífica, útil, próspera e feliz, na Inglaterra que eu não verei mais.””
84
Tradução literal minha: ““Eu sou a ressurreição e a vida, disse o Senhor: aquele que acredita in me, embora
esteja morto, ainda viverá: e quem quer que viva e acredita em mim não morrerá nunca.””
85
Tradução literal minha: “As casas levantam e caem, desmoronam, são ampliadas,/São removidas, destruídas,
restauradas, ou em seus lugares”
86
Tradução literal minha: “Isto não era nada para ela, que um homem inocente fosse morrer pelos pecados de
seus ancestrais, ela via, não ele, mas eles.”
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reinasse uma sociedade mais homogênea e justa neste período que sucederia a Revolução
Francesa. Trata-se de um período de enorme prosperidade, que tentou abafar toda a
efervescência que a Revolução Francesa havia originado. Entretanto, esta prosperidade não
atingiu as duas margens da Inglaterra, as classes trabalhadoras, por exemplo, dispunham de
terríveis condições de trabalho, fazendo com que a diferença aumentasse ainda mais e
separasse espantosamente as duas margens. Nas palavras de Ronald Pearson em seu livro The
Worm in the Bud (O Verme no Botão), a sociedade vitoriana era “uma sociedade doentia sob
a aparência de saúde” (MENDES, 1983, p. 15).
São exatamente estas contradições que traduzem bem o espírito vitoriano, nas quais
Dickens apóia suas críticas. A era vitoriana é produto de uma sociedade híbrida, com valores,
crenças e grupos sociais divergentes, como podemos observar em:
É deste mundo de contrastes tão impressionantes, de fausto e de miséria, de
grandeza e de vileza, de arte extrema e de decadência estética, de injustiças
gritantes e de reivindicações, de lirismo e de realismo, de idéias gastas e de novos
surtos de pensamento, de egoísmo e devotamento, de sentimentalismo e de espírito
pratico, de materialismo e de espiritualidade, que é a Era Vitoriana, que planejei
traçar um panorama abrangente, era que, apesar de suas limitações, de seus erros,
de seus altos e baixos, merece por tudo quanto nela existiu de esplêndido e de
grande, denominar uma época, marcar um estilo de vida, enriquecer sobreposse
uma literatura e afirmar perante o mundo, aturdido pelas grandes conquistas de suas
máquinas, de suas indústrias, de seus homens de comércio e de política, a elevada
espiritualidade de um povo. (MENDES, 1983, p. 16)
Dickens não viveu o período retratado em seu romance A Tale of Two Cities, que foi
publicado em 1859, mas não podemos esquecer que a Revolução Francesa marcou
profundamente a história da Inglaterra, e que o período vitoriano é produto de toda a
movimentação suscitada por este movimento. Além disso, através de seu tema “Liberdade,
Igualdade e Fraternidade” ela assegurava aos filhos pobres o que sempre lhes foi negado, uma
sociedade sem divisão de margens. Tema que será lembrado e reclamado durante a nova era
que se segue.
Apesar de não se ter atingido o objetivo de aproximação e união das duas margens, a
Revolução Francesa e, posteriormente, o período vitoriano constituíram-se como importantes
tentativas de afirmação de um nacionalismo britânico. Além disso, pode-se dizer que a
fascinação e a riqueza vitoriana reside justamente na alteridade, tem-se uma enorme variedade
de perspectivas, de valores, de crenças, elementos plurais que se complementaram para
formar esta esplêndida era.
A margem feminina
Há duas personagens femininas que se destacam nos textos trabalhados, Marina ou
Malinche de Carlos Fuentes e Madame Defarge de Charles Dickens. Estas personagens
representam a margem oprimida e explorada, além de representarem a classe feminina, que
por si só já ocupa esta outra margem.
Estas mulheres simbolizam fecundidade, ou seja, as futuras mães de seus filhos
mexicanos e britânicos. Ao mesmo tempo que estas mulheres geram vida, elas também podem
trazer morte, nas palavras de Paz: “É a imagem da fecundidade, mas também a da morte. Em
quase todas as culturas as deusas da criação são também deidades da destruição.” (PAZ, 1972,
p. 244). Marina é responsável pela destruição do seu povo, ela representa a índia que se
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entregou ao colonizador e traiu seu povo, contribuindo para sua destruição: “Sua passividade
é abjeta: não oferece resistência à violência, é um montão inerte de sangue, ossos e pó.”
(PAZ, 1972, p. 258). Madame Defarge mostra-se firme em seus ideais revolucionários, suas
idéias e atos revolucionários a tornam uma mulher cruel e sem limite. Portanto, ela também
carrega o símbolo da vida versus a morte, pois ela usa friamente seu poder como líder entre as
mulheres, sacrificando a todos sem piedade, como observamos na seguinte passagem ““To
me, women!” cried Madame his wife. “What! We can kill as well as the men when the place
is taken!” and to her, with a shrill thirsty cry, trooping women variously armed, but all armed
alike in hunger and revenge.”” (DICKENS, 1994, p. 215) 87.
Entretanto, elas se distanciam na escolha de seus companheiros - Marina, mesmo que
seduzida, entrega-se voluntariamente ao conquistador Cortés, e Madame Defarge tem como
parceiro o não menos revolucionário Monsieur Defarge. Marina une-se à outra margem (a dos
espanhóis), representando, assim, a vergonha de seu povo. Diferentemente de Madame
Defarge, que luta incansavelmente ao lado de seu companheiro na margem que realmente
pertence a ela e a seu povo, portanto, ela desperta orgulho e honra. Ambas agiram em defesa
de sua própria sobrevivência, mas utilizaram meios diferentes, uma opta pela parceria, outra
pela luta. Pode-se afirmar que esta atitude destas duas mulheres refletirá no futuro de seus
filhos, na identificação deles com a nova nação que está se formando.
Como filhos de uma Chingada, os mexicanos negam sua origem, tentando romper com
seu passado de vergonha e dor, nas palavras de Paz: “Para o espanhol a desonra consiste em
ter um filho de uma mulher que voluntariamente se entrega, uma prostituta; para o mexicano,
em ser fruto de uma violação.” (PAZ, 1972, p. 254). Madame Defarge, por sua vez, deixa aos
britânicos um exemplo de luta e determinação, de um passado de dor, mas também de glória e
conquista.
Marina pode ser associada à Eva, figura bíblica que também simboliza fecundidade e
morte. Todas as duas Evas traíram seu povo, uma por ter comido do fruto proibido, outra por
ter se unido ao inimigo. Ambas foram conquistadas pelo poder de sedução da serpente e de
Cortés, que oferecia a elas a possibilidade de desfrutar de um mundo novo e melhor. Não
somente elas foram expulsas do paraíso, mas puseram em perigo a sobrevivência de seus
filhos. Por outro lado, Madame Defarge defendia com sua própria vida a construção de um
mundo melhor para seus filhos, um paraíso de justiça e igualdade: “Liberty, Equality,
Fraternity, or Death” (DICKENS, 1994, p. 285) 88. As duas Evas são exemplo do que não se
deve fazer, seus filhos foram retirados do paraíso para sempre, como se tivessem sido
arrancados de seu ventre e lançados em um mundo cheio de perigo e maldade.
Considerações Finais
As Duas Margens e A Tale of Two Cities constituem excelentes textos para trabalhar
com as questões que envolvem o hibridismo cultural. Carlos Fuentes e Charles Dickens
retratam, respectivamente, as duas margens que separam o povo indígena mexicano e o
colonizador espanhol e as que separam as duas Londres presentes na mesma cidade. O
hibridismo cultural mexicano e britânico originou fortes contrastes em seus territórios, e
conseqüentemente, originou obstáculos na constituição de suas identidades nacionais.
87
Tradução literal minha: ““Comigo, mulheres!” gritou madame a esposa dele. “O quê! Nós podemos matar
tanto quanto os homens quando o lugar for tomado!” E para ela, com um grito estridente e seco, conduzindo as
mulheres armadas, mas todas armadas igualmente na fome e na vingança.”
88
Tradução literal minha: “Liberdade, Igualdade, Fraternidade, ou morte.”
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O híbrido é sempre filho de uma chingada, possui várias origens, vários passados,
todos marcados pela violência e pela opressão. Embora o mestiço possa representar um
passado marcado pelo entrega, ele também representa uma história de resistência, pois ele
desempenha a função de porta-voz de culturas negligenciadas, de grupos sociais que foram
silenciados e lançados nos porões da história, de forma a evitar que costumes e tradições
caiam no esquecimento. Esse sujeito transita entre as duas margens, que conhece realidades
distintas. Portanto, traz à tona uma forma de pensar e viver diferente da ocidental,
promovendo um descentramento do eu e forçando um trânsito para as margens, o que tem
conduzido a modo novo de relacionar o “eu com os outros”. É nesse trânsito que sua
mexicanidade, sua inglesidade têm se construído.
Os dois textos apresentam a intolerância de grupos éticos e sociais diferentes, cujas
divergências levam a um distanciamento cada vez maior. A alteridade é vista como
deficiência, como defeito. Por um lado, os índios mexicanos são vistos como menores, e, por
outro lado, a Londres pobre e feia é considerada um produto defeituoso da Inglaterra
desenvolvida e industrializada. Ambos provocam um sentimento desagradável e
desconfortante, transpor este enorme oceano que separa estas margens requer a ruptura com
um momento doloroso no passado, que não foi resolvido até hoje.
Referencias bibliográficas
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas – Walter Benjamin. 3. Ed. São Paulo: Brasiliense,
1987.
CEVASCO, Maria Elisa e SIQUEIRA, Valter Lellis. Rumos da Literatura Inglesa. São Paulo:
Editora Ática, 1985.
DICKENS, Charles. A Tale of Two Cities. England: Penguin Books, 1994.
ELIOT, T. S. Four Quartets.
FUENTES, Carlos. A Laranjeira. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
HALL, Stuart. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. A Identidade Cultural na
Pós-Modernidade. 5ª Ed. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2001.
MENDES, Oscar. Estética Literária Inglesa. Belo Horizonte: Editora Itatiaia Limitada, 1983.
PAZ, Octavio. Trad. Sebastião Uchoa Leite. Signos em Rotação. São Paulo: Editora
Perspectiva, 1972.
PIGLIA, Ricardo. Memória y tradición. In: Literatura e memória Cultura. 2°. Congresso da
Abralic: Anais. Belo Horizonte: Associação Brasileira de Literatura Comparada, 1991, v. 1, p.
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Vidas Secas: identidades que se fundem e se repelem
Geruza Zelnys de Almeida
Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP
Resumo: O artigo propõe uma reflexão a respeito da crise de identidade moderna analisando,
à luz da teoria do discurso de Bakhtin, as vozes do narrador, do autor e da personagem
Fabiano no romance Vidas Secas, focando as estratégias lingüísticas que os delimitam e
separam da aparente homogeneidade dos discursos indireto e indireto livre.
Palavras-Chave: identidade, discurso, Vidas Secas.
Abstract: This article proposes a reflection about of the modern identity crisis investigating,
in the light of Bakhtin’s discourse theory, the voices of the narrator, author and personage
Fabiano in the romance Vidas Secas, focusing the linguistic strategies which delimit and
separate themselves of the apparent homogeneity of indirect and free indirect discourse.
Key words: identity, discourse, Vidas Secas.
Vidas Secas representa, no conjunto da obra de Graciliano Ramos, um hiato: está entre
suas autobiografias e suas ficções em primeira pessoa. Destituído do eu-narrativo que teima
em remeter à autoria, Vidas Secas apresenta-se como uma “arena”, na qual o embate de vozes
é o grande espetáculo narrativo.
As vozes que se ouvem no romance, tal qual uma sinfonia de pontos de vista, são
orquestradas por um autor-maestro e marcam posições diferenciadas frente aos
acontecimentos que compõem o tempo-espaço da obra. Tem-se, assim, um discurso do
falante, outro daquele que o representa (o autor) e entre eles – personagem e autor – está a
esfera narrativa, como elemento de mediação de duas realidades diversas: o real e o
representado.
Todavia, essas vozes, atraídas e mescladas no discurso indireto livre, diluem-se numa
falsa homogeneidade. Os discursos se interpenetram e se parecem a imagens sobrepostas do
mesmo ponto de vista.
Por isso, só por meio do olhar atento sobre as diferentes imagens de linguagem que
fundam o espaço-tempo de cada componente da obra, é possível resgatar as identidades do
narrador, da personagem-herói (Fabiano) e da máscara autoral, apontando os contornos sutis
que ainda separam suas identidades político-sociais e garantem a singularidade do ser
ficcional.
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O discurso indireto como chão para a dialogia
Em VS, devido ao domínio dos discursos indireto e indireto livre, narração e discurso
amalgamam-se: o narrador ao repassar a palavra da personagem, dialoga com ela e possibilita
o intercâmbio com a entidade autoral. Desse modo, o grande diálogo da obra deixa entrever
avaliações, questionamentos, respostas que se voltam sobre si mesmas, enfim, parafraseando
Pound, é um discurso “carregado” de consciência até o máximo grau possível.
Certamente a utilização dessa tipologia discursiva tem um propósito específico e
indica uma espécie de olhar: olhar próximo que (com)partilha o momento vivido com as
personagens. Para Bakhtin (1999: 182-183), o discurso indireto livre açula o imaginário, pois
não serve para “relatar um fato qualquer ou um produto do seu pensamento, mas comunicar
suas impressões, despertar na alma do leitor imagens e representações vívidas”.
É dessa maneira que o narrador coloca-se ao lado das personagens e olha na mesma
direção: “Os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se” (p. 9), marcando sua posição
na narrativa por meio da sensibilidade de falar com e não de: “Ainda na véspera eram seis
viventes, contando com o papagaio. Coitado, morrera na areia do rio” (p. 11)
Atingido pela morte da ave, o narrador reparte o sentimento que assola aquelas
criaturas com as quais simpatiza, conforme se verifica no tratamento dispensado a elas: “Os
infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos” (p.9); “Miudinhos,
perdidos no deserto queimado. Os fugitivos agarravam-se, somaram as suas desgraças e os
seus pavores” (p. 13).
Nota-se que a esfera narrativa, como mediadora que é, submete-se ao movimento do
olhar, cuja particularidade é deslizar pelo tecido textual, aproximando-se e distanciando-se
dos elementos de representação. Nesse jogo de avanços e recuos, ora se focaliza o ideologema
das personagens, ora o ideologema autoral, porém, ambos aparecem refratados pela fala do
narrador que também possui um ideologema próprio. Observe-se a cena:
“Pelo espírito atribulado do sertanejo passou a idéia de abandonar o filho naquele
descampado. Pensou nos urubus nas ossadas (...) Aí a cólera desapareceu e Fabiano
teve pena. Impossível abandonar o anjinho aos bichos do mato” (p. 10)
Aqui aparecem momentos que marcam posições diferenciadas do narrador: primeiro, à
distância, ele vê um pensamento que caracteriza Fabiano cruel, depois, aproximando mais, ele
olha para os sentimentos da personagem e, finalmente, mergulha neles. A visão do narrador
penetra na visão do herói, porém sem que o ideologema narrativo dilua-se no ideologema da
personagem.
Podemos distinguir a aproximação e o afastamento do narrador no trecho acima
usando para isso a seleção lexical: se “anjinho, bicho do mato, urubu” levam o narrador para
perto da visão e da fala da personagem; “espírito atribulado, cólera, sertanejo, impossível” são
termos próprios da língua escrita, do letrado, do homem da cidade e não do sertanejo.
Portanto, o discurso é construído de modo a não dissimular a distância e diferença que o
narrador guarda da visão e do discurso da personagem. Isso é dialogia autêntica e
bivocalidade do discurso, pois na fusão discursiva pode-se notar a (mu)dança vocabular: a
orientação para a fala oral enriquece a fala culta e vice-versa.
Assim, o narrador não perde sua identidade, coisa que empobreceria a obra, já que sua
importância está, justamente, na maneira particular de ver e representar o mundo. Como
substituto composicional na realização do projeto autoral, o narrador precisa assegurar a
eficácia do romance de modo a proporcionar a independência e a não-coincidência entre o
autor e o herói.
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Mas, embora a narração esteja confiada ao narrador, as marcas discursivas denunciam
as intenções do autor que está disseminado na obra, como veremos adiante.
Os limites entre autor, narrador e herói
A instância narrativa é o lugar da ebulição da dialogia: no cruzamento de vozes, dentro
de um mesmo enunciado, somos capazes de distinguir as intenções do autor que “manipula” a
fala do narrador “para seus próprios fins, forçando-nos a perceber nitidamente a distância
entre ele e essa palavra de um outro” (Bakhtin, 1983, p. 469). Ou ainda:
“no interior de um discurso único, dois centros de fala e duas unidades de fala: a
unidade constituída pelo enunciado do autor e a constituída pelo enunciado do
personagem”, ou, “por trás do relato [do narrador], nós lemos um segundo, o relato do
autor sobre o que narra o narrador, e, além disso, sobre o próprio narrador”. (Idem, p.
467-468)
As opiniões dos teóricos no tocante à questão autoral divergem e revelam uma
polêmica: a figura do criador encontra-se ou não no todo da criação?
Para evitar associações entre autor-pessoa, o que acarretaria uma indesejável
subordinação da obra à biografia do autor, Bakhtin concebe-o como o princípio criador da
obra. Ele é a força motriz que se demora sobre cada personagem em particular e sobre o
conjunto que constituem, ou seja, “cada uma das personagens expressa a si mesma, [e só] o
todo da obra expressa o autor” (2000: 82).
O autor, portanto, não cria “porta-vozes” ideológicos, mas, mantém um diálogo com
heróis criados para expressarem a si próprios. Objetivar o autor em determinada personagem
“é um ato que o torna passivo” (Idem: 220) e destrói o princípio dialógico do romance. Por
isso, sua representação está, apenas, no modo como reage à criação:
“a reação ativa do autor se manifesta na estrutura, que ela [a obra] mesma condiciona,
de uma visão ativa do herói percebido como um todo, na estrutura de sua imagem, no
ritmo de sua revelação, na estrutura de entonação e na escolha das unidades
significantes da obra”. (Idem: 28)
A partir de tais contestações, podem-se analisar as especificidades da obra e encontrar
a máscara autoral. Por exemplo, o discurso indireto livre não é usado na conversação e por
isso o seu valor estilístico é imenso, tornando evidente a preocupação do autor com a
representação literária.
Outrossim, percebe-se nessa seleção discursiva uma contradição entre os aspectos
formais de VS e a estética regionalista. Ora, se um autor se propõe a realizar um projeto
regional, testemunho da situação do nordestino, para que apelar para a imaginação ao invés de
aproveitar-se da objetividade realista contida no discurso direto?
À primeira vista, o largo uso do discurso indireto em detrimento do direto pode
parecer artificial e índice do controle do narrador sobre a personagem. Entretanto, essa
construção é um sinal de respeito pela diferença que os separa. O narrador não procura imitar
falsamente a fala de um nordestino, por isso marca o distanciamento entre a fala (objeto de
representação) e a escritura (representação literária). A escritura do narrador é um discurso
sobre discurso, ou seja, é a imagem da linguagem de um sertanejo refratada no discurso
narrativo.
A consciência da bivocalidade, da presença de pontos de vista diferentes, em respeito
ao princípio do realismo e em oposição aos clichês regionalistas (caipirismo = linguagem
morta, estática, esclerosada, incapaz de representar o tempo-espaço histórico que habita no ser
da língua), culmina numa veracidade ilimitada na representação.
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Assim, o discurso direto das personagens não aparece de forma caricatural nem
abusiva, mas brota da própria seca narrativa: ora como “eco” de reiteração da narração:
“Fabiano fingira-se desentendido: não compreendia nada, era bruto. (...) - Um bruto, está
percebendo?” (p. 94-95); ora expressão interjetiva: “-Hum! Hum!” (p. 94), ora como
construções totêmicas: “- Festa é festa” (p. 77), “- Governo é governo” (p. 107).
Portanto, os raros discursos direto resguardam a singularidade e mantém o respeito
pela forma de falar sertaneja. Nesses momentos i, “o autor joga sobre o herói a
responsabilidade daquilo que é dito” (BAKHTIN, 1999: 185) mantendo uma posição
autônoma: a consciência do herói convive com a consciência que o autor tem dele.
Nesse sentido a imagem do autor não se mescla com a do herói, mas, ao contrário, se
distancia dela como que num “olhar suspenso”. Quanto maior a distância autor-herói, melhor
a determinação de ambos.
Ademais, a voz autoral está presente na superação de um material gasto, no contexto
de valores no qual se insere e nas questões estilísticas que a envolvem. Mas, contrariamente a
imagem do narrador, que é construída tendo em vista o seu grau de proximidade com a cena
narrada, a imagem do autor constrói-se no distanciamento dela.
Enquanto escrever pressupõe um “sentido” em relação ao mundo, narrar pressupõe um
“sentido” em relação ao objeto da narração (mundo representado). O ato de narrar torna o
objeto muito mais próximo, já que a narrativa é marcada pelo caráter sinestésico e
impressionista, traduzindo a materialidade sensorial. Já a esfera autoral tem uma dureza e um
distanciamento que a faz ser mais conceitual e preditiva em relação à inevitabilidade do ciclo
da seca, cuja irreversibilidade, no nível da temporalidade cíclica, não deixa espaço para a
criação de um futuro aberto para novas soluções.
Tome-se como exemplo a passagem: “A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso
salpicado de manchas brancas que eram ossadas. O vôo negro dos urubus fazia círculos altos
em redor de bichos moribundos.” (p. 9-10)
É bastante perceptível o olhar e a narração impressionista e sinestésica do narrador que
se coloca em cena, ampliando o horizonte do leitor através de imagens materializantes: a
catinga estende-se e o olhar estende-se junto dando a impressão da dimensão do sertão; a
seleção cromatológica sugere, nas pinceladas livres (“vermelho indeciso”, “salpicado de
manchas brancas”, “círculos”), o calor do sol a pique, bem como o negrume sombreando o
quadro.
Já o autor opera à distância, no sentido “suspenso” materializado na cena observada
que retorna em Fuga. Sugere nessas imagens a rotatividade, o caráter cíclico de uma catinga
que se estende porque é “sem-fim”: “Voavam sempre, não se podia saber de onde vinha tanto
urubu. (...) Olhou as sombras movediças (...) talvez estivessem fazendo círculos em redor do
pobre cavalo (...)” (p. 124).
A separação céu/terra, alto/baixo, planos superior/inferior, contém uma visão
determinista dos fatos sociais. Assentado na realidade do Nordeste e na tentativa de
descortiná-la, o autor aponta para o caráter trágico desse herói: “Fabiano aligeirou o passo,
esqueceu a fome, a canseira e os ferimentos. As alpercatas dele estavam gastas nos saltos, e a
embira tinha-lhe aberto entre os dedos rachaduras muito dolorosas” (p. 12)
O trecho concentra uma visão de mundo que dá margem à intertextualidade entre o
herói Fabiano e o herói mítico Jesus Cristo quando de sua caminhada no deserto. Ao
aproximar seu herói daquele que foi um mártir, o autor universaliza o que era particular e
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estabelece a prioridade do acabamento sobre o inacabamento, ou ainda, do ciclo que se repete
e não muda jamais.
Já para a esfera narrativa, esse herói é único e por isso ela representa-o “ligeiro” tanto
nos pés que fogem da seca, quanto na mente que esquece as dificuldades e, a despeito da dor,
segue sempre adiante. A voz narrativa tem como princípio primeiro dar movimento e
materialidade ao herói, para isso enumera a seqüência de esquecimentos: fome, canseira,
ferimentos. Dar veracidade ao herói é vi(vê)-lo na sua integridade e por isso no seu
desconhecimento do futuro, sua abertura ao novo.
Portanto, são duas vozes diferenciando as imagens representacionais do narrador e do
autor, que se fundem na figura biforme de narrador-autor. Nesse intercâmbio constroem-se as
imagens de linguagem de um narrador dominantemente estético-visual e um autor plantado na
tradição literária, porém desejoso de superar a forma e compor um herói, embora
historicamente realista, sob o signo do devir, como uma esfera em mutação.
Pode-se aproveitar da excelente imagem da bolandeira para traçar as diferenças entre
esses três olhares - o de Fabiano, o do narrador e o do autor - cada um deles dando um sentido
diverso a ela e conduzindo-nos para o encontro com três instâncias perceptivas diferentes,
responsáveis pela arquitetura de VS: “Caminhando, movia-se como uma coisa, para bem dizer
não se diferenciava muito da bolandeira de seu Tomás” (p.14).
Observa-se que para Fabiano a bolandeira condensa o movimento e a coisificação dos
seus pés plantados na terra, mas também do olhar que observa e começa a construir sua
autoconsciência, embora ainda não consiga concluir a cadeia de pensamentos já que sua
capacidade imagética supera, em muito, sua capacidade explicativa.
É visível, também, como o discurso narrativo constrói o ir e vir das imagens poéticas
no “rodar” da bolandeira (a moagem e trituração dos pensamentos e da autoconsciência de
Fabiano se fazendo). No interior do discurso indireto livre, o movimento entre a bolandeira
(terra, chão, pé plantado na terra, ciclo da seca) e as estrelas no céu (alto, abertura para o
futuro, imaginação, saída do ciclo):
“(...) com a seca, a bolandeira estava parada. E ele, Fabiano, era como a bolandeira, Não sabia porquê, mas era.
Uma, duas três, havia mais de cinco estrelas no céu” (VS, p.15).
No texto em grifo, observa-se a existência de “dois contornos dialogizados a duas
vozes e a duas linguagens” (BAKHTIN, 1998:156), pois, a voz narrativa, ao se aproximar da
personagem, respeita sua ignorância, mas deixa soar o ideologema da voz autoral. Dessa
forma, apesar do narrador, com esmerado realismo, limitar-se a nos comunicar o que se passa
na visão restrita do herói, por trás desse relato ouvimos a voz do autor, que participa de um
tempo-espaço diferenciado: para ele, a bolandeira pode condensar a representação da “roda do
tempo” do ciclo da seca, num olhar que antevê a predeterminação do futuro, alimentando seu
projeto regionalista.
O autor aproveita-se da capacidade visual do vaqueiro esbarrar no limite físico do
objeto, pois, devido ao forte vínculo com a terra, seu olhar não alcança vôos longínquos. Para
Fabiano, o horizonte resume-se ao pequeno espaço que o rodeia e o prende, ainda mais, ao seu
“aqui e agora”. Por isso, sua visão da seca “como um fato necessário” (p. 10) evidencia a
imagem da luta e da resistência, fortalecendo a questão regional de VS e colaborando para a
manutenção do aspecto cíclico que aparece nos romances dessa linha e, em especial, deste
romance que já foi chamado de circular.
Seu olhar detém-se sobre coisas concretas como: “as manchas dos juazeiros”, “um
canto de cerca”, “um barreiro vazio, um bosque de catingueiras murchas, um pé de turco e o
prolongamento da cerca do curral” (p. 12). Todas essas imagens proporcionadas pelo olhar
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servem para intensificar a imagem de um “Fabiano aligeir[ando] o passo” (p. 12) para chegar
a um objetivo que tem ligação estreita com o chão: um chão para depositar sua família, um
chão que fosse seu. Para isso é necessário seguir sem desviar o olhar e os pés desse caminho:
os pés funcionam como olhos e condensam toda sua força e fraqueza, como um Aquiles
moderno.
Enfrentar o solo quente e espinhoso é mais tolerante do que enfrentar “a claridade do
sol”, pois, ver implica tomar uma atitude consciente. Fabiano tem medo da visão “daquele
azul que deslumbrava e endoidecia a gente”, porque tem medo de desviar-se de sua rota e, no
mais, a luz do conhecimento é “uma luz dura”, que pode fazê-lo “perder a esperança que os
alentava” (p. 13).
Apesar disso, delineia-se, como traço essencial do vaqueiro, a capacidade de pensar,
mesmo que com os pés, sobre si e sobre os outros. Sua imagem e a imagem de sua linguagem,
fundidas, mostram a tensão dialógica em que vive a personagem: o enfrentar cego dos pés x o
enfrentar conhecedor do olhar: “olhou o céu com resolução” e “pisou com segurança,
esquecendo as rachaduras que lhe estragavam os dedos e os calcanhares” (p. 14).
Nesses contornos informes, o Fabiano sonhador desafia a máscara autoral:
“Uma, duas, três, quatro, havia mais de cinco no céu. [...] uma alegria doida enchia
o coração de Fabiano (...) Uma, duas, três, quatro, havia mais de cinco no céu (...)
Ia chover. Bem. A catinga ressuscitaria, a semente do gado voltaria ao curral, ele,
Fabiano seria o dono daquela fazenda morta” (p. 14-15).
“Eram todos felizes. Sinhá Vitória vestiria uma saia larga de ramagens. A cara
murcha de sinhá Vitória remoçaria” (VS, p. 16).
Portanto, essa “orientação para a palavra do outro” encontrada no romance VS
promove uma reação dentro do enunciado, acarretando uma “polêmica” discursiva, possível à
medida que cada elemento participa de um lugar só ocupado por ele no tempo-espaço da obra.
Assim, a partir de imagens distintas, centros de condensação dos pontos de vista
particulares na obra, pode-se delinear as linhas que separam um discurso de outro na
narrativa.
A análise discursiva de VS nos coloca frente a um problema não só lingüísticoliterário, mas de ordem política, econômica e social. Assiste-se, na modernidade, a uma crise
na identidade: a impossibilidade de ser, a fragmentação ou, ainda mais especificamente, a
diluição do “si-mesmo” na massa homogênea da sociedade. É nesse sentido que a literatura
colabora com re-construção da identidade do ser: ao espelhar o processo de diluição do
homem, deixa entrever, também, os elementos de sua singularidade. Portanto, observar e
refletir sobre as diferentes imagens de linguagem das instâncias de representação no romance
Vidas Secas devolve-nos a possibilidade de ser, por meio da delimitação dos contornos de
Fabiano, do narrador e do autor, antes camuflados num discurso que os funde numa aparente
homogeneidade.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoievski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de
Janeiro: Ed. Forense-Universitária, 1981.
_____ “A tipologia do discurso na prosa”.
In: LIMA, Luiz Costa
literatura em suas fontes. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983.
(org).
Teoria da
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_____ Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método
sociológico na ciência da linguagem. 9º ed. São Paulo: Hucitec, 1999.
______Estética da criação verbal. 3º ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
______ Questões de Literatura e Estética (A teoria do Romance). 4º ed. São Paulo:
Editora Unesp, 1998.
JAKOBSON, Roman. “Dois tipos de Afasia”. In: Lingüística e Comunicação. São Paulo:
Cultrix, 1970.
MALARD, Letícia. Ensaio de Literatura Brasileira: Ideologia e realidade em Graciliano
Ramos. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia Ltda, s/d.
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FATORES RELEVANTES NA CONSTRUÇÃO DO SENTIDO DE UM TEXTO
Greici Quéli Machado
Mestranda em Letras – Leitura e Cognição-Unisc RS
Resumo:O presente artigo busca identificar fatores que interferem na construção do sentido
de um texto. Fatores esses que se dividem em dois grandes grupos: a influência exercida pelos
aspectos textuais e o papel exercido pelos aspectos relativos ao leitor. Dessa maneira, os
estudos que visam os aspectos textuais na compreensão de um texto consideram como fatores
importantes a leiturabilidade, o vocabulário, a organização interna e a estrutura textual.
Enquanto que os estudos que visam aos aspectos relativos ao leitor preponderam o
conhecimento prévio, o processo inferencial e os aspectos culturais e ideológicos – os quais
englobam o conhecimento lingüístico, a capacidade de raciocínio, o objetivo e as expectativas
da leitura por parte do leitor. Com base nesses fatores muitos estudiosos tentam explicar o
fenômeno da compreensão do sentido de um texto, através da construção de significados
decorrente da integração dos diversos fatores referentes ao texto, ao leitor, ao autor e ao
contexto.
Palavras-chave: compreensão do sentido textual, características do texto, características do
leitor.
Abstract: The present article looks for to identify factors that interfere in the construction of
the sense of a text. Factors those that become separated in two great groups: the influence
exercised by the textual aspects and the paper exercised by the relative aspects to the reader.
Of that it sorts things out, the studies that seek the textual aspects in the comprehension of a
text consider as important factors the readability, the vocabulary, the interns organization and
the textual structure. While the studies that seek to the relative aspects to the reader the
previous knowledge, the process inferencial and the cultural and ideological aspects prevail which include the linguistic knowledge, the reasoning power, the objective and the
expectations of the reading on the part of the reader. With base in those studious many factors
try to explain the phenomenon of the comprehension of the sense of a text, through the
construction of meanings due to the integration of the several factors regarding the text, to the
reader, to the author and the context.
Keywords: comprehension of text, characteristics of the text, the reader's characteristics.
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INTRODUÇÃO
Muitos estudos apontam que a compreensão do sentido de um texto caracteriza-se por
dois processos extremos, um enfatizando o próprio texto e o outro, o leitor. E, cada um desses
enfoques possui argumentos distintos para explicitar os fatores que interferem na construção
do sentido. Em vista disso, é importante investigar o que está na base do processo da
compreensão leitora e a sua complexidade.
Este artigo tem por objetivo fazer um levantamento dos principais aspectos que contribuem
para a construção do sentido de um texto, os quais resultam da interação entre escritor, texto e
leitor.
De um modo geral, este estudo busca identificar os processos mais diretamente
relacionados à compreensão leitora através de dois grandes grupos: de um lado a influência
exercida pelos aspectos textuais e de outro, o papel exercido pelos aspectos relativos ao leitor.
No primeiro grupo apresenta-se a leiturabilidade, o vocabulário, a estrutura e a organização
interna do texto. Já no segundo, evidencia-se o processo inferencial, o conhecimento prévio e
os aspectos culturais e ideológicos que envolvem o leitor.
O processo de compreensão, por ser interativo, implica em diferentes aspectos,
havendo um processo de troca entre escritor e leitor. Dessa forma, não podendo transmitir um
sentido que só se encontra na sua mente, o escritor se vale de uma seqüência de sinais para
levar o leitor a construir mentalmente um sentido semelhante ao que pretende veicular pelo
texto. Assim, compreender um texto é construir sentidos.
Além disso, atingir a compreensão leitora depende tanto do conhecimento das
qualidades intrínsecas referentes ao texto, quanto do nível cognitivo e cultural do leitor.
1.
LEITURA COMPREENSIVA
1.1 Leitura como processo lingüístico
A Psicolingüística considera a leitura como uma habilidade complexa, na qual
intervém uma série de processos até chegar a compreensão. A importância da leitura vinculase com o desenvolvimento do ser humano, ela é vista como uma habilidade relacionada com
os mais importantes aspectos da vida e da relação pessoal.
O aprendizado da leitura é um processo lingüístico gradativo. Sendo assim, no período
inicial, a compreensão decorre da decodificação de palavras. Logo, o leitor vai amadurecendo
e passa a armazenar informações e interpretar sentenças, já percebendo as informações
implícitas no texto. E, em última instância, leitores habilidosos usam seu conhecimento de
mundo para formar conexões e compreender as proposições trazidas pelo texto.
Abordando essa questão, Kleiman (1989) enfatiza ainda a importância do
conhecimento prévio independente do nível de construção do sentido de um texto. Pois a
significação de cada sentença – idéia transmitida pelo escritor – é percebida de uma forma ou
de outra dependendo da experiência vivida pelo leitor.
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Além do mais, Goodman (apud Poersch e Chiele, 1998) afirma que o processo de
construção do sentido se dá, também, através de pistas colocadas no texto pelo escritor. É por
meio dessas pistas que o leitor vai construindo um texto paralelo, e a partir daí o leitor
compreende o texto ativando um conhecimento existente e construindo um conhecimento
novo.
Na estrutura e organização interna do texto, podemos identificar essas pistas através da
seqüência lógico-temporal das ações, dos conectores, estabelecendo as relações de
circunstância entre as orações, dos pressupostos e subentendidos.
1.2 Leitura como interação entre escritor, texto e leitor
Como já foi citado, o processo da compreensão leitora envolve vários aspectos, não
apenas características do texto, mas também características do leitor, do escritor e do contexto
histórico em que o texto está inserido.
O processo interativo na leitura perpassa por várias abordagens psicolingüísticas,
demonstrando a importância desses mecanismos entre o conhecimento antigo e os dados do
texto através da relação entre texto e leitor para construir o sentido. O argumento mais forte é
que esse envolvimento é necessário para uma compreensão adequada e completa da leitura.
Essa abordagem interativa permite o estudo dos vários elementos que compõem a
leitura, de maneira distribuída e equilibrada, evitando a centralização num único foco de
interesse:
Ao examinar o processo da leitura de três perspectivas básicas - o texto, o leitor e a
comunidade não se parte de elementos isolados para a análise do processo, mas de
perspectivas diferentes, onde, independente da focalização dada num determinado
momento, mantém-se a visão dos outros aspectos. Olha-se a leitura primeiramente
sob a perspectiva do texto, depois do leitor e finalmente da comunidade discursiva,
descrevendo-se cada uma dessas perspectivas não como pontos de vista fixos, mas
dinâmicos, em mudança constante, na medida em que interagem durante o processo
extremamente complexo da leitura. (Leffa, 1999)
A compreensão não depende somente das características intrínsecas do texto, mas do
conhecimento prévio compartilhado entre autor e leitor. É necessário o leitor relacionar os
elementos do texto com a representação do mundo, presente na sua mente, para efetivar a
construção do sentido:
O que se pretende é descrever a leitura como um processo de interação. [...] Para
haver interação é necessário que haja pelo menos dois elementos e que esses
elementos se relacionem de alguma maneira. No processo da leitura, por exemplo,
esses elementos podem ser o leitor e o texto, o leitor e o autor, as fontes de
conhecimento envolvidas na leitura, existentes na mente do leitor, como o
conhecimento de mundo e o conhecimento lingüístico, ou ainda, o leitor e os outros
leitores. (Leffa, 1999)
Dessa forma, o leitor não apreende meramente o sentido que está no texto, mas, sim,
ele atribui sentidos ao texto. A partir dessas constatações, pode-se afirmar que a leitura não é
um ato solitário, e sim coletivo, inserido em uma sociedade que possui regras e convenções.
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A respeito disso, Gabriel e Frömmin (2002) argumentam que quanto mais o leitor
compartilhar dos mesmos significados culturais do escritor, mais plena será a leitura. E, é
preciso que o leitor apreenda a significação dos textos com que se defronta, capacitando-se a
reconstruí-los e a reinventá-lo.
2
.A CONSTRUÇÃO DO SENTIDO
Nenhuma palavra tem sentido em si mesma, quem lhe dá o sentido é o contexto no qual é utilizada. 89
Vasco Pedro Moretto
A compreensão dos textos escritos é um fenômeno complexo. Pois, é através dos
fatores que a determinam que o leitor irá reconstruir o sentido dado pelo autor ao texto.
Portanto, a construção do sentido de um texto não é feita por um processo de extração de
informações do texto, mas é um processo consciente onde o leitor não extrai, e sim, constrói
significados a partir dos dados emitidos pelo autor.
O emissor (autor ou escritor em nosso caso), apelando para um conjunto de códigos
que maneja e para o patrimônio de seus conhecimentos, produz uma mensagem
(texto escrito) num determinado contexto que poderíamos denominar
“circunstancias da emissão” (em nosso caso, da escrita). (Alliende e Condemarín:
2005, p. 112)
Essa construção de significados, conforme Van Dijk e Kintsch (apud Castro e Pereira,
2005) se dá através de um resumo mental. Nele o leitor vai construindo em sua mente um
resumo do que está lendo, do modo que, ao finalizar a leitura, terá uma idéia geral sobre o
assunto do texto lido. Este resumo mental ocorre em conformidade com os objetivos do leitor,
dessa forma, as informações são selecionadas com base na importância do texto (o que o
leitor julga essencial) e a importância contextual (interferência do conhecimento prévio e dos
interesses pessoais).
A compreensão é essencialmente um processo construtivo, que se dá por níveis. Em
um primeiro nível reconhece-se a recodificação (sinal gráfico e sonoro) do código escrito; em
um segundo nível, entra o processo de decodificação (sinal gráfico em sentido) do texto. E em
um nível mais elevado, a capacidade de interpretar possibilita ao indivíduo a tecitura de
críticas à leitura realizada, fazendo um paralelo entre a leitura e a realidade social.
É, por meio desse olhar através da realidade social que a construção do sentido pode
ser vista como um processo de interação entre o escritor e o leitor, principalmente. Conforme
Goodman (apud Poersch e Chiele: 1998, p.190)
a compreensão em leitura resulta da interação entre as características dos três
elementos (escritor, texto, leitor), porém, o fator que realmente influencia na
construção do sentido é a maneira como cada leitor percebe e utiliza as
características do texto lido.
Como se sabe, cada texto abre a perspectiva de uma multiplicidade de interpretações,
por isso a atividade de construção do sentido deve sempre se apoiar na idéia de que o escritor
tem determinadas intenções. E, que a compreensão adequada exige a captação dessas
intenções pelo leitor.
89
Frase de Vasco Pedro Moretto em palestra no V Seminário Nacional de Educação/ ULBRA Concórdia –
Candelária – RS, no dia 20 de agosto de 2005.
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3. FATORES IMPORTANTES NA CONSTRUÇÃO DO SENTIDO REFERENTES AO
TEXTO
3.1 Leiturabilidade
A leiturabilidade não é uma propriedade do texto, mas o resultado da interação entre
texto e leitor. O texto apresenta uma série de proposições e, ao ler, o leitor deve reorganizá-las
em uma seqüência que represente o que o escritor quis transmitir. Essa característica pode ser
definida como um conjunto de elementos que direcionam a compreensão e o interesse do
leitor.
Há algumas variáveis consideradas como responsáveis pela leiturabilidade, como o
texto e suas características internas, o leitor e o contexto (situação da leitura). Por isso, um dos
pré-requisitos para a leiturabilidade de um texto é a inteligibilidade. O texto inteligível é
aquele que apresenta um vocabulário comum, porém correto, conforme os padrões cultos da
língua, e uma estrutura simples.
Conforme Leffa (1996), conceitos complexos podem ser expressos em linguagem
simples, usando um vocabulário comum, frases curtas e a voz ativa do verbo. O aspecto mais
importante nessa perspectiva é a compreensão do conteúdo que subjaz ao texto, pois ele não
está no leitor ou no contexto, mas no texto. E é na interação entre estes três elementos que o
sentido será construído e a leiturabilidade alcançada.
3.2 Vocabulário
Outro aspecto importante que interfere na compreensão leitora é o vocabulário usado
no texto. Nesse sentido, como afirma Poersch e Chiele (1998), as palavras são pistas que o
leitor usa para relacionar as idéias do escritor às suas próprias idéias.
Por isso, quanto mais próximo o vocabulário do texto ao do leitor, maior será a
compreensão. A relação entre vocabulário e compreensão é vista como causa-efeito, pois
quanto mais amplo for o vocabulário do leitor, maior será a sua compreensão leitora.
3.3 Organização interna e estrutura textual
A organização interna do texto tem significativa importância na compreensão, devido
ao uso de conectores que estabelecem relações entre as partes e a ordem cronológica ou
psicológica dos fatos e idéias. A esses recursos denominamos, respectivamente, coesão e
coerência.
Podemos conceituar a coesão como fenômeno que diz respeito ao modo como os
elementos lingüísticos presentes na superfície textual se encontram interligados
entre si, [...] formando seqüências veiculadoras de sentido. (Koch, 2003)
Através de recursos coesivos, que funcionam como pistas para orientar o leitor na
construção do sentido, chega-se à coerência – a qual não está no texto, mas pode ser
construída a partir dele:
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A coerência [...] é o resultado de uma construção feita pelos interlocutores [...] pela
atuação conjunta de uma série de fatores de ordem cognitiva, situacional,
sociocultural e interacional. (Koch, 2003)
Outro fator que é associado à compreensibilidade é a estrutura do texto. Aspectos
como o comprimento das frases, as idéias, o grau de abstração, os conteúdos abordados são
decisivos para a construção do sentido na leitura.
Devido a esses mecanismos a organização interna passa a constituir uma via de mão
única do complexo fenômeno que é o texto.
4. FATORES IMPORTANTES NA CONSTRUÇÃO DO SENTIDO REFERENTES AO
LEITOR
4.1 Conhecimento Prévio
Pelo fato de que ler não é só enxergar letras e palavras, mas reportar-se a idéias e
conceitos, a compreensão é um processo dependente do conhecimento prévio. Durante o
processo da leitura, o leitor intercala o seu conhecimento prévio com as informações novas
presentes no texto. Essa interação permite que o leitor construa sentidos, chegando à
compreensão.
Kleiman (2002) assegura que sem o engajamento do conhecimento prévio do leitor,
durante a leitura, não haverá compreensão. Por isso, cada um faz a sua própria interpretação,
devido ao conhecimento prévio ser diferente em cada leitor.
A ativação do conhecimento prévio é, então, essencial à compreensão, pois é o
conhecimento que o leitor tem sobre o assunto que lhe permite fazer as inferências
necessárias para relacionar diferentes partes discretas do texto num todo coerente.
[...] Há evidencias experimentais que mostram com clareza que o que lembramos
mais tarde, após a leitura, são as inferências que fizemos durante a leitura; não
lembramos o que o texto dizia literalmente. (Kleiman: 2002, p. 25)
Os conhecimentos lingüístico, textual e de mundo devem ser ativados durante a leitura
para atingir a compreensão, pois é o conhecimento que o leitor tem sobre o assunto que lhe
permite fazer as inferências necessárias para relacionar as partes do texto num todo coerente.
O conhecimento prévio também é importante por facilitar o uso de estratégias, como
selecionar as partes mais significativas do texto e relacionar o significado das palavras ao
contexto em que elas estão inseridas.Pois, as palavras não têm um significado fixo, mas
significados que interagem entre as informações recebidas e o conhecimento existente na
mente do leitor.
Em conseqüência disso, quanto maior a quantidade e a qualidade das informações
armazenadas, mais plena será a capacidade do leitor de adquirir novas informações e fazer
inferências sobre elas.
Portanto, ler não é uma atividade passiva, ao contrário, a leitura implica em uma
atividade de procura por parte do leitor – no seu passado, nas suas lembranças e nos seus
conhecimentos – que lhe fornece pistas e caminhos para construir o sentido do texto.
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4.2 Processo Inferencial
Nem todas as informações contidas em um texto estão explícitas; na verdade, a
maior parte delas está implícita, devendo ser resgatada pelo leitor. (Poersch: 1998,
p.195)
É através do processo inferencial que o leitor resgata o conteúdo implícito do texto,
aquele sentido que deve ser lido, ainda que não esteja escrito. Assim, a capacidade de gerar
inferências constitui uma atividade de raciocínio, a qual leva o leitor a compreender as
informações que o escritor quis transmitir nas entrelinhas.
Essa habilidade de percepção depende da agilidade na leitura, que é influenciada pelo
conhecimento prévio. Além do mais, as inferências geradas a partir do conhecimento de
mundo são condições primordiais para o sucesso da compreensão em leitura.
Estudos demonstram que os leitores buscam informações adicionais do seu
conhecimento prévio para suprir as lacunas conceituais em um texto. Como afirma Kintsch
(1998, p.94), as inferências são geradas com o objetivo de manter a coerência textual durante
a leitura e, essa coerência resulta, certamente, em compreensão.
4.3 Aspectos culturais e ideológicos
Alguns fatores culturais e ideológicos têm papel significativo na compreensão, tanto
de domínio cognitivo – conhecimento da língua e do assunto, capacidade de raciocínio –
como de domínio afetivo – interesse, atitude, empenho.
A familiaridade com os aspectos culturais é um fator importante na compreensão de
um texto. Há variações no nível da construção de sentido dependendo do dialeto, da raça, do
sexo ou da língua.
Além disso, o envolvimento emocional e o interesse interferem visivelmente na
leitura, pois se o leitor está interessado no assunto que lê, irá fazer as inferências necessárias
com maior facilidade para compreender o que o autor quis transmitir.
Leffa (1996) também relacionou a compreensão em leitura com a habilidade de
raciocínio, que significa fazer inferências, estabelecer relações entre pessoas e objetos e
prever as conseqüências de um determinado conjunto de fatores. Ele chegou à conclusão que
aqueles leitores que tinham uma maior capacidade de raciocínio compreendiam melhor os
textos lidos do que aqueles que tinham menos capacidade de raciocínio.
Outro aspecto que é importante ressaltar aqui é o estabelecimento de objetivos e a
expectativa da leitura. Nesse campo existem duas atividades relevantes para a compreensão:
primeiro, o estabelecimento de objetivo e, segundo, a formulação de hipóteses. Sobre isso
afirma Kleiman (2002, p. 43):
Uma vez que o leitor conseguir formular hipóteses de leitura independentemente,
utilizando tanto seu conhecimento prévio como os elementos formais mais visíveis
e de alto grau de informatividade, como título, subtítulo, datas, fontes, ilustrações, a
leitura passará a ter esse caráter de verificação de hipóteses, para confirmação ou
refutação e revisão, [...] uma atividade consciente, autocontrolada pelo leitor, bem
como uma série de estratégias necessárias à compreensão. Ao formular hipóteses o
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leitor estará predizendo temas, e ao testá-las ele estará depreendendo o tema; ele
estará também postulando uma possível estrutura textual, e, na testagem de
hipóteses, estará reconstruindo uma estrutura textual; na predição ele estará
ativando seu conhecimento prévio, e na testagem ele estará enriquecendo,
refinando, checando esse conhecimento. São, todas essas, estratégias próprias da
leitura que levam à compreensão do texto.
A capacidade de estabelecer objetivos para a leitura é uma estratégia de controle do
próprio conhecimento. A leitura deve surgir da necessidade para chegar a um propósito.
CONCLUSÃO
Ler é significar, ler é interpretar. 90
(Gaudêncio Frigotto)
A compreensão da linguagem escrita constitui a principal meta da leitura. O que
implica em um pensamento multidimensional que ocorre nos limites da interação entre o
leitor, o autor, o texto e o contexto.
Para que isso possa acontecer, o leitor deve estabelecer relações entre os fatores
referentes ao seu próprio conhecimento e os fatores referentes ao texto . A partir dessa relação
inicia-se o processo da compreensão do texto escrito.
Com base nesse argumento destacam-se os fatores referentes ao texto – a
leiturabilidade, o vocabulário, a organização interna e a estrutura textual. Os quais tornam o
texto coeso e coerente, além de harmonizar o que é transmitido pelo escritor. Já, dos fatores
referentes ao leitor, evidencia-se o processo inferencial, o conhecimento prévio, os aspectos
culturais e ideológicos, que dizem respeito à experiência que o leitor tem na sua mente,
construída ao longo da sua vivência no contexto cognitivo e no seu meio social.
Mesmo quando essas relações são estabelecidas, a compreensão do texto é
completamente individual, porque a interpretação tem um caráter único para cada leitor. O
significado que se constrói a partir de um mesmo texto pode variar consideravelmente entre
um leitor e outro, por causa do desconhecimento do tema, da diversidade em sua experiência
prévia ou da sua falta de conhecimento das estruturas do código lingüístico.
Os fatores envolvidos no processo de construção do significado dos textos merecem
uma análise teórica em profundidade que facilite para o leitor a detecção das fontes das
dificuldades de compreensão lhe oferecendo os modos para facilitá-la.
A compreensão textual é um fenômeno complexo, porque o sentido não se apresenta
preexistente ao texto, mas como algo a ser construído pelo leitor através da exploração dos
aspectos apresentados nesse artigo.
90
Frase de Gaudêncio Frigotto em palestra no V Seminário Nacional de Educação/ ULBRA Concórdia –
Candelária – RS, no dia 19 de agosto de 2005.
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ASPECTOS BÁSICOS DA TEORIA OCKHAMISTA DA SUPOSIÇÃO PRÓPRIA
Guilherme Wyllie 91
Doutor em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Atualmente, integra o corpo
docente do curso de filosofia da Universidade Federal do Mato Grosso e participa do ILTC e do IBFCRL
.
Resumo: A lógica ockhamista envolve três relações semânticas, a saber, a significação, a
suposição e a verdade, que interagem a fim de possibilitar a determinação das condições de
verdade das proposições e a elaboração da teoria da inferência. Nesse contexto, a suposição
ocupa um lugar de destaque como intermediária entre a significação de um termo isolado e o
valor de verdade de uma proposição.
Palavras-chave: Guilherme de Ockham; história da lógica; filosofia medieval.
Abstract: The ockhamist logic includes three semantic relations, namely, signification,
supposition and truth, that interacts in order to enable the determination of truth conditions of
propositions and the development of the inference theory. In this context, the supposition
plays a important role as intermediary between the signification of certain term and the truth
value of proposition.
Keywords: William of Ockham; History of Logic; Medieval Philosophy.
1. Noção geral de suposição
No capítulo da Summa logicae que inaugura a exposição da teoria da suposição, 92
Ockham caracteriza a referida noção como uma propriedade dos termos decorrente da sua
função sintática.
[A suposição] é uma propriedade que convém ao termo, mas nunca fora da
proposição. (...) Geralmente, tudo que pode ser sujeito ou predicado de uma
proposição supõe. 93
Em seguida, tal noção sofre um refinamento semântico ao ser estabelecida como uma
relação que um termo mantém com algo quando ele é inserido numa proposição na qualidade
de sujeito ou predicado. 94
91
Doutor em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Atualmente, integra o corpo
docente do curso de filosofia da Universidade Federal do Mato Grosso e participa do ILTC e do IBFCRL..
92
Como não há um uso consagrado em língua portuguesa, traduzir-se-á o substantivo suppositio e o verbo
supponere por ‘suposição’ e ‘supor’, respectivamente. Cabe ressaltar, porém, que o sentido assumido por tais
palavras nas linguagens modernas é distinto daquele presente nos textos elaborados pelos lógicos medievais (cf.
BOEHNER, P. Medieval Logic, p. 27).
93
GUILHERME DE OCKHAM. Summa logicae, I, 63: ‘Dicto de significatione terminorum restat dicere de
suppositione, quae est proprietas conveniens termino sed numquam nisi in propositione. Est autem primo
sciendum quod suppositio accipitur dupliciter, scilicet large et stricte. Large accepta non distinguitur contra
appelationem, sed appelatio est unum contentum sub suppositione. Aliter accipitur stricte, secundum quod
distinguitur contra appelationem. Sed sic non intendo loqui de suppositione sed primo modo tantum. Et sic tam
subiectum quam praedicatum supponit; et universaliter quidquid potest esse subiectum propositionis vel
praedicatum supponit’.
94
Na Idade Média, a concepção segundo a qual a suposição é uma propriedade que diz respeito tanto ao sujeito
quanto ao predicado das proposições era amplamente empregada na lógica e diferenciava-se da concepção
gramatical que restringia tal propriedade ao sujeito (cf. SPADE, P. V. Thoughts, Words and Things, p. 243-245).
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A suposição é concebida como um posicionar-se por outro; assim, quando um
termo está numa proposição por algo, de tal modo que nós o empregamos por algo
e ele ou seu caso reto, se ele estiver no caso oblíquo, verifica-se daquilo ou do
pronome demonstrativo que o designa, então ele supõe algo. E isso é verdadeiro ao
menos quando o termo que supõe é tomado significativamente. 95
Consoante o que foi dito, verifica-se que um termo T supõe um objeto x numa
proposição p se T é um termo de p e x é significado por T. 96 Não obstante a sua correção, essa
caracterização restringe-se apenas à suposição significativa. 97 Por tal razão, segue-se uma
definição mais complexa que estabelece a noção suposição, seja ela significativa ou nãosignificativa.
Em geral, se o termo que supõe é o sujeito, ele supõe o que é designado por um
pronome demonstrativo ou aquilo de que a proposição denota que o predicado se
predica. Por outro lado, se o termo que supõe é o predicado, a proposição denota
que o sujeito relaciona-se enquanto sujeito relativamente àquilo ou ao pronome
demonstrativo que o designa, se uma proposição [pronominal] é formada. Assim, a
proposição ‘o homem é um animal’ denota que Sócrates é verdadeiramente um
animal, de sorte que a proposição ‘isto é um animal’ é verdadeira caso seja formada
designando Sócrates. Todavia, a proposição ‘o homem é um nome’ denota que a
palavra oral ‘homem’ é um nome; por conseguinte, ‘homem’ supõe tal palavra oral
na referida proposição. De maneira similar, a proposição ‘o branco é um animal’
denota que algo que é branco é um animal, de sorte que a proposição ‘isto é um
animal’ é verdadeira, designando o que é branco; e, por tal razão, o sujeito supõe
aquilo. E, assim, cumpre proceder analogamente no que diz respeito ao predicado,
pois, a proposição ‘Sócrates é branco’ denota que Sócrates é aquilo que possui a
brancura, e, por isso, o predicado supõe o que possui a brancura; e se nada, exceto
Sócrates, possuísse a brancura, então o predicado suporia apenas Sócrates. 98
Na passagem anterior, Ockham especifica tanto as condições segundo as quais algo é um
suposto (suppositum) do sujeito, quanto às condições segundo as quais algo é um suposto do
predicado de uma proposição categórica. De acordo com ele, poder-se-ia dizer que
95
GUILHERME DE OCKHAM. Summa logicae, I, 63: ‘Dicitur autem suppositio quasi pro alio positio, ita
quod quando terminus in propositione estat pro aliquo, ita quod utimur illo termino pro aliquo de quo, sive de
pronomine demonstrante ipsum, ille terminus vel rectus illius termini si sit obliquus verificatur, supponit pro
illo. Et hoc saltem verum est quanto terminus supponens significative accipitur’.
96
Cf. ADAMS, M. M. What Does Ockham Mean by ‘Supposition’? Notre Dame Journal of Formal Logic, 17,
p. 375-391, 1976; NORMORE, C. Some Aspects of Ockham’s Logic, p. 35-36.
97
É importante salientar que a suposição e a significação são relações semânticas distintas. De fato, um termo
supõe apenas no contexto proposicional, não obstante ele significar tanto isoladamente quanto na proposição.
Ademais, um termo pode supor algo inteiramente diverso do que ele significa (cf. SPADE, P. V. Thoughts,
Words and Things, p. 245-248).
98
GUILHERME DE OCKHAM. Summa logicae, I, 63: ‘Et sic universaliter terminus supponit pro illo de quo –
vel de pronomine demonstrante ipsum – per propositionem denotatur praedicatum praedicari, si terminus
supponens sit subiectum; si autem terminus supponens sit praedicatum, denotatur quod subiectum subicitur
respectu illius, vel respectu pronominis demonstrantis ipsum, si propositio formentur. Sicut per istam ‘homo est
animal’ denotatur quod Sortes vere est animal, ita quod haec sit vera si formetur ‘hoc est animal’,
demonstrando Sortem. Per istam autem ‘homo est nomen’ denotatur quod haec vox ‘homo’ sit nomen, ideo in
ista supponit ‘homo’ pro illa voce. Similiter per istam ‘album est animal’ denotatur quod illa res quae est alba
sit animal, ita quod haec sit vera ‘hoc est animal’ demonstrando illam rem quae est alba; et propter hoc pro illa
re subiectum supponit. Et sic, proporcionaliter, dicendum est de praedicato: nam per istam ‘Sortes est albus’
denotatur quod Sortes est illa res quae habet albedinem, et ideo praedicatum supponit pro illa re quae habet
albedinem; et si nulla res haberet albedinem nisi Sortes, tunc praedicatum praecise supponeret pro Sorte’.
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(a) um termo geral T, sujeito de uma proposição categórica p, supõe um objeto x, expresso
por um indivíduo a no instante t, se e somente se (i) p significa que x é T ao ser
expressa por a em t e (ii) p segue-se per medium intrinsecum 99 daquilo que x é T
e
(b) um termo geral T, predicado de uma proposição categórica p, supõe um objeto x,
expresso por um indivíduo a no instante t, se e somente se (i) p significa que T é x ao
ser expressa por a em t e (ii) p segue-se per medium intrinsecum daquilo que T é x. 100
Por conseguinte, dado que a primeira cláusula de (a) e (b) concerne aos termos que não
supõem pessoalmente e a segunda cláusula diz respeito aos termos que supõem pessoalmente,
segue-se que o texto supracitado 101 realmente caracteriza a noção ockhamista de suposição
em geral.
2. Divisão da suposição
Na Summa logicae, Ockham retoma as divisões de suposição amplamente difundidas
pelos lógicos no ocidente medieval, não obstante ele modificar os principais tipos de
suposição segundo as suas próprias concepções ontológicas e epistemológicas. 102
Imóvel
Distributiva
Confusa
Móvel
Comum
Pessoal
Meramente confusa
Determinada
Discreta
Própria
Suposição
Simples
Imprópria
99
Material
Antonomástica
Metonímica
Sinedóquica
O meio intrínseco (medium intrinsecum) é uma proposição que assegura a validade de uma inferência
(consequentia) quando ambas compartilham ao menos um termo categoremático. Por exemplo, a validade da
inferência ‘Sócrates não está correndo; logo, um homem não está correndo’ é garantida per medium intrinsecum,
visto que ela depende da adição da proposição ‘Sócrates é um homem’ (cf. GUILHERME DE OCKHAM.
Summa logicae, III-3, 1). A utilização implícita do referido recurso na definição geral de suposição é
particularmente importante na medida que determina o sentido do termo ‘denotar’ presente nos exemplos onde
Ockham aplica as condições segundo as quais algo é suposto do sujeito ou do predicado de uma proposição
categórica (cf. KARGER, E. Une définition de la supposition par Guillaume d’Ockham et sa reprise par Albert
de Saxe, p. 59-66).
100
KARGER, E. Une définition de la supposition par Guillaume d’Ockham et sa reprise par Albert de Saxe. In:
BIARD, J. (org.) Paris-Vienne au XIVe siècle. Itinéraires d'Albert de Saxe. Paris: Vrin, 1990, p. 51-69.
101
Cf. nota 9.
102
Cf. BERGER, H. Simple supposition in William of Ockham, John Buridan, and Albert of Saxony, p. 31.
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Inicialmente, constata-se a adoção da distinção entre suposição própria e suposição
imprópria em detrimento da distinção entre suposição natural e suposição acidental, que diz
respeito à ocorrência de um termo num contexto extraproposicional ou num contexto
sintático, e da distinção entre suposição material e suposição formal, que concerne ao fato de
um termo supor a si mesmo ou aquilo que ele significa.
3. Suposição própria e suposição imprópria
Tal distinção surge no século XIV, embora seja omitida por alguns autores da
época. De acordo com Ockham, a suposição própria ocorre quando um termo supõe o que
ele propriamente significa, ao passo que a suposição imprópria verifica-se quando um termo é
usado metaforicamente. 104
103
3.1. Suposição imprópria
Este tipo de suposição compete aos termos convencionais na medida que eles são
tomados em sentido figurado e distingue-se em antonomástica, que diz respeito aos termos
cujo suposto é único por causa de sua excelência, como na proposição ‘O Filósofo nega isto’,
onde o termo ‘Filósofo’ supõe Aristóteles, sinedóquica, que ocorre quando um termo significa
apenas uma parte, mas supõe o todo, como na proposição ‘A proa está no mar’, onde o termo
‘proa’ indica que toda embarcação está no mar, e metonímica, que concerne aos termos cujo
significado é o que contém, embora o suposto é o que está contido, como na proposição ‘A
Inglaterra luta’. 105
3.2. Suposição própria
O fato de proposições tais como ‘Homem corre’, ‘Homem é dissílabo’ e ‘Homem é uma
espécie’ apresentarem o mesmo sujeito, mas denotarem objetos distintos induziu grande parte
dos lógicos medievais a estabelecer a suposição própria e dividi-la em suposição pessoal,
material e simples a partir da concepção segundo a qual um termo pode ter diferentes tipos de
suposição em contextos proposicionais diversos. Assim, na proposição ‘Homem corre’, o
termo ‘homem' supõe pessoalmente os indivíduos que são homens, enquanto que nas
proposições ‘Homem é dissílabo’ e ‘Homem é uma espécie’, o referido termo supõe
materialmente sons ou inscrições e simplesmente a natureza humana, respectivamente. 106
Ockham elabora sua divisão da suposição própria com base em duas distinções segundo as
quais (i) há três tipos de objetos, a saber, os termos mentais (conceptus ou intentiones
animae), os termos convencionais (voces e scripta) e os objetos extramentais que não são
sinais (verae res) e (ii) os termos podem ser usados significativamente ou nãosignificativamente. 107 Com efeito, poder-se-ia dizer que os termos empregados
103
Cf. MAIERÙ, A. Terminologia logica della tarda scolastica, p. 306-317.
GUILHERME DE OCKHAM. Summa logicae, I, 63: ‘Oportet autem cognoscere quod sicut est suppositio
propria, quando scilicet terminus supponit pro eo quod significat proprie, ita est suppositio impropria, quando
terminus accipitur improprie’.
105
Ibid. I, 77: ‘Multiplex autem est suppositio impropria, scilicet antonomastica, quando terminus supponit
praecise pro illo cui maxime convenit, sicut in talibus ‘Apostolus dicit hoc’, ‘Philosophus negat hoc’, et
similibus. Alia est synecdochica, quando pars supponit pro toto. Alia est metonymica, quando continens supponit
pro contento vel quando abstractum accidentis supponit pro subiecto, et sic de allis’.
106
ADAMS, M. M. William Ockham, I, p. 328-329; SPADE, P. V. Thoughts, Words and Things, p. 251.
107
Um termo T é usado significativamente quando ele é empregado conforme sua imposição principal. Para
constatar tal fato, recorre-se às proposições do tipo ‘Isto é um T’, onde o pronome demonstrativo ‘isto’ deve
indicar aquilo que o termo T representa. Se a proposição em questão for verdadeira, então o termo T é usado
104
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significativamente suporiam pessoalmente tanto sinais mentais, quanto sinais extramentais e
objetos extramentais que não são sinais, ao passo que os termos utilizados nãosignificativamente suporiam simplesmente sinais mentais e materialmente sinais
extramentais. 108
Nesse contexto, cumpre salientar que (a) os três tipos de suposição em questão aplicamse aos termos mentais e aos termos convencionais; 109 (b) há regras que determinam a
suposição do sujeito em vários contextos; 110 e (c) as condições de verdade das proposições
apóiam-se no fato de que o sujeito e o predicado supõem o mesmo. 111, 112
3.2.1. Suposição material
A principal condição estabelecida por Ockham a fim de caracterizar a suposição
material concerne à necessidade de um termo não possuir uma função significativa.
A suposição material ocorre quando um termo não supõe significativamente, mas supõe a palavra oral
ou a palavra escrita. 113
Com efeito, na proposição ‘Homem é um nome’, por exemplo, o termo ‘homem’ supõe
a si mesmo, embora não signifique a si próprio. 114 Além disso, há duas regras que também
determinam o presente tipo de suposição, isto é, (i) um termo não deve representar
indiretamente um termo mental ou concreto, mas denotar um som ou uma inscrição e (ii) um
termo deve referir-se ao outro extremo da proposição que diz respeito a um termo
convencional. 115, 116
significativamente, caso contrário, T é usado não-significativamente (BERGER, H. Simple supposition in
William of Ockham, John Buridan, and Albert of Saxony, p. 32). Cf. primeira parte, cap. I.
108
Cf. SPADE, P. V. Thoughts, Words and Things, p. 255.
109
Cf. GUILHERME DE OCKHAM. Summa logicae, I, 64.
110
Cf. Ibid. I, 65.
111
Cf. Ibid. II, 2.
112
BERGER, H. Simple supposition in William of Ockham, John Buridan, and Albert of Saxony, p. 32.
113
GUILHERME DE OCKHAM. Summa logicae, I, 64: ‘Suppositio materialis est quando terminus non
supponit significative, sed supponit vel pro voce vel pro scripto’.
114
Ibid. I, 64: ‘Sicut patet hic ‘homo est nomen’, li homo supponit pro se ipso, et tamen non significat se ipsum’.
115
Ibid. I, 65: ‘Sed terminus non in omni propositione potest habere suppositionem simplicem vel materialem,
sed tunc tantum quando terminus talis comparatur alteri extreme quod respicit intentionem animae vel vocem
vel scriptum’.
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Finalmente, Ockham divide a suposição material conforme o termo suponha a si
mesmo, como na proposição ‘Homem é dissílabo’ ou suponha algo que, todavia, não
significa, como na proposição ‘Animal predica-se de homem’. 117
3.2.2. Suposição simples
A despeito dos lógicos medievais que defendiam a concepção ontológica realista segundo a
qual há universais ou naturezas comuns extramentais e, por tal razão, sustentavam que a
suposição simples cabe àqueles termos que supõem seu significado primário, isto é, aquilo
que verdadeiramente predica-se deles, 118 Ockham acreditava que o referido tipo de suposição
concernia aos termos que supõem conceitos. 119
A suposição simples ocorre quando um termo supõe uma intenção da alma, mas não é tomado
significativamente. 120
Assim, na proposição verdadeira ‘Homem é uma espécie’, por exemplo, o sujeito não supõe a
natureza humana, mas o conceito de homem. Neste caso, Ockham salienta que o termo
‘homem’ não é tomado significativamente, já que ele não supõe homens. 121
Ademais, é importante notar que as regras de identificação estabelecidas por Ockham
para suposição simples são análogas àquelas enunciadas para suposição material. 122
3.2.3. Suposição pessoal
Ockham inicia a caracterização da suposição pessoal ao afirmar que ela cabe aos termos que
supõe seu significado primário.
Em geral, a suposição pessoal é aquela em que o termo supõe seu significado, seja
ele um objeto extramental, uma palavra oral, uma intenção da alma, uma palavra
escrita, ou o que quer que se possa ainda imaginar; de sorte que, toda vez que o
116
Adams menciona uma regra inadequada redigida por Ockham na terceira parte da Summa logicae, segundo a
qual a suposição material cabe a determinado termo se este é um termo de primeira imposição que não esteja
determinado por um sinal universal ou particular e se o mesmo denota um termo de segunda imposição. (cf.
GUILHERME DE OCKHAM. Summa logicae, III-4, 4; ADAMS, M. M. William Ockham, I, p. 331-333).
117
GUILHERME DE OCKHAM. Summa logicae, I, 67: ‘Potest autem dividi suppositio materialis, quia
quaedam est quando vox vel scriptum supponit pro se, sicut in istis ‘homo: est nomen’, ‘hominis: est genitivi
casus’, ‘homo est animal: est propositio vera’, ‘bene: est adverbium’, ‘legit: est verbum’ et huismodi.
Quandoque autem vox vel scriptum vel conceptus mentis non supponit pro se sed pro voce vel scripto, quod
tamen scriptum vel quam vocem non significat. Sicut in ista propositione vocali ‘animal: praedicatur de homine’
haec vox ‘homine’ non supponit pro hac voce ‘homine’, quia ‘animal’ non praedicatur de hac voce ‘homine’;
sed ibi illud imcomplexum ‘homine’ supponit pro hac voce ‘homo’, quia de hac voce ‘homo’ praedicatur
‘animal’, sic dicendo ‘homo est animal’. Similiter in ista ‘hominem currere est verum’, illud subiectum
‘hominem currere’ non supponit pro se, sed supponit pro ista propositione ‘homo currit’, quam tamen non
significat’. É importante salientar que esse tipo de suposição material só diz respeito aos termos convencionais.
118
Cf. PEDRO HISPANO. Tractatus, IV; GUILHERME DE SHERWOOD. Introductiones in logicam, V, 2;
WALTER BURLEY. De puritate artis logicae: Tractatus longior, III, 11.
119
Para Ockham, não há universais extramentais. De fato, somente os conceitos podem ser universais por
predicarem-se de muitos, não obstante sua natureza ser individual.
120
GUILHERME DE OCKHAM. Summa logicae, I, 67: ‘Suppositio simplex est quando terminus supponit pro
intentione animae, sed non tenetur significative’.
121
Ibid. I, 64: ‘Verbi gratia sic dicendo ‘homo est species’ iste terminus ‘homo’ supponit pro intentione animae,
quia illa intentio est species; et tamen iste terminus ‘homo’ non significat proprie loquendo illam intentionem,
sed illa vox et illa intentio animae sunt tantum signa subordinata in significando idem, secundum modum alibi
expositum’.
122
Cf. nota 26.
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sujeito ou o predicado de uma proposição supõe seu significado, de tal
maneira que seja tomado significativamente, a suposição é sempre
pessoal. 123
Em seguida, ele fornece exemplos para cada uma das situações descritas acima, a saber,
na proposição ‘Todo homem é um animal’, o termo ‘homem’ supõe pessoalmente um objeto
extramental, ao passo que na proposição ‘Todo nome oral é parte do discurso’, ‘nome’ supõe
pessoalmente uma palavra oral, na proposição ‘Toda intenção da alma está na alma’,
‘intenção da alma’ supõe pessoalmente uma intenção da alma e na proposição ‘Toda palavra
escrita é uma palavra’, ‘palavra escrita’ supõe pessoalmente uma palavra escrita. 124
Por outro lado, ao sustentar que somente os termos categoremáticos possuem suposição
pessoal, uma vez que a função significativa é inerente a eles, e que a referida suposição
sempre pode caber a determinado termo, não importa em que proposição, 125 Ockham parece
defender a prioridade da suposição pessoal em relação aos outros tipos de suposição
própria. 126
Consoante o que foi dito, cumpre ainda ressaltar uma regra de identificação para a
suposição pessoal segundo a qual um termo supõe pessoalmente se ele é um categorema que
ocorre numa proposição como sujeito integral ou predicado integral. Assim, na proposição
‘Um homem branco é um animal’, por exemplo, nem ‘homem’ nem ‘branco’ supõem, mas
todo sujeito supõe. 127
123
GUILHERME DE OCKHAM. Summa logicae, I, 64: ‘Suppositio personalis, universaliter, est illa quando
terminus supponit pro suo significato, sive illud significatum sit res extra animam, sive sit vox, sive intentio
animae, sive sit scriptum, sive quodcumque aliud imaginabile; ita quod quandocumque subiectum vel
praedicatum propositionis supponit pro suo significato, ita quod significative tenetur, semper est suppositio
personalis’.
124
Ibid. I, 64: ‘Exemplum primi: sic dicendo ‘omnis homo est animal’, li homo supponit pro suis significatis, quia
‘homo’ non imponitur nisi ad significandum istos homines, non enim significat proprie aliquid commune eis sed
ipsosmet homines, secundum Damascenum. Exemplum secundi: sic dicendo ‘omne nomen vocale est pars
orationis’, li nomen non supponit nisi pro vocibus; quia tamen imponitur ad significandum illas voces, ideo
supponit personaliter. Exemplum tertii: sic dicendo ‘omnis species est universale’ vel ‘omnis intentio animae est
in anima’ utrumque subiectum supponit personaliter, quia supponit pro illis quibus imponitur ad significandum.
Exemplum quarti: sic dicendo ‘omnis dictio scripta est dictio’ subiectum non supponit nisi pro significatis suis,
puta pro scriptis, ideo supponit personaliter’.
125
GUILHERME DE OCKHAM. Summa logicae, I, 65: ‘Notandum est etiam quod semper terminus, in
quacumque propositione ponatur, potest habere suppositionem personalem’. Tal fato não quer dizer que um
termo sempre deva possuir a suposição pessoal. Na verdade, os termos também podem ter outra suposição
relativa ao contexto proposicional e à vontade de quem os emprega.
126
Cf. GHISALBERTI, A. La semiotica medioevale: i terministi. Quaderni del circolo semiologico siciliano, 15,
p. 53-68, 1981; MAURER, A. William of Ockham on language and Reality. Miscellanea Mediaevalia, 13, p.
795-802, 1981.
127
GUILHERME DE OCKHAM. Summa logicae, I, 69: ‘Nunc accedendum est ad suppositionem personalem.
Circa quam est sciendum quod solum categorema, quod est extremum propositionis, significative acceptum,
supponit personaliter. Per primum excluduntur omnia syncategoremata, sive sint nomina sive coniunctiones sive
adverbial sive praepositiones sive quaecumque alia, si alia sint. Per secundum excluditur omne verbum, quia
numquam verbum potest esse extremumpropositionis quando accipitur significative. (...) Per illa partículam
‘extremum propositionis’ excluditur pars extremi, quantumcumque sit nomen et categorema. Sicut hic ‘homo
albus est animal’ nec ‘homo’ supponit nec ‘albus’ supponit sed totum extremum supponit. Et ideo
quantumcumque aliquando partes extremorum se habeant secundum superius et inferius, non oportet
consequentiam esse bonam inter illas propositiones, quia illa regula debet intelligi quando ipsa extrema quae
supponunt in propositionibus ordinantur secundum superius et inferius. Unde non sequitur ‘tu vadens ad forum,
ergo tu es exsistens ad forum’; et tamen ‘vadens’ et ‘exsistens’ ordinantur secundum superius et inferius; sed
ista extrema ‘vadens ad forum’ et ‘exsistens ad forum’ non sic ordinantur, ideo consequentia non valet. Tamen
aliquando consequentia valet, quia aliquando non possunt tales partes ordinari secundum superius et inferius
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nisi etiam tota extrema sic ordinentur vel possint sic ordinari, sicut patet hic ‘homo albus – animal album’,
‘videns hominem – videns animal’et sic de multis aliis. Et ideo frequenter est talis consequentia bona sed non
semper, et ita pars extremi non supponit in tali propositione, tamen in alia propositione supponere potest’. Cabe
salientar que Ockham ignora tal restrição ao presumir que, na prática, todos os termos comuns possuem
suposição pessoal (SPADE, P. V. The Logic of the Categorical: The Medieval Theory of Descent and Ascent, p.
195).
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ENSINO DE LÍNGUA ESTRANGEIRA E CULTURA NO ESPAÇO DIGITAL
Jacqueline Ramos da Silva
Aluna do Curso de Graduação em Letras da Universidade Federal de Alagoas (UFAL)
Roseanne Rocha Tavares
Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística da Universidade Federal de Alagoas
PPGLL/UFAL AL
Resumo: Este trabalho tem por objetivo fazer um mapeamento dos sítios que se dedicam ao
ensino da língua inglesa como língua estrangeira (LE) e analisar como a língua e a cultura são
abordadas e incorporadas em tais ambientes. Questiona-se se o espaço digital tem sido
realmente um lugar de mudança e inovação no ensino de LE, contribuindo com a construção
de um Entre-espaço Cultural (Kramsch, 1993; Tavares, 2005) para o aprendiz ou se estabelece
como mera reprodução da realidade de salas de aulas de LE tradicionais. Como
fundamentação teórica, adotaremos as idéias difundidas pela Etnografia da Comunicação e
pelos Estudos Culturais, no que concerne às questões relacionadas à língua e à cultura com a
sociedade, pela Lingüística Aplicada ao analisarmos abordagens de ensino e suas relações
com língua e cultura, e pela Análise Crítica do Discurso ao investigarmos as relações de poder
e possíveis reproduções discursivas de ambientes de sala de aula tradicional no espaço digital.
Palavras-chave: Ensino e aprendizagem de LE, Hipertexto, Língua e Cultura.
Abstract: The objective of this study is to research sites in the internet that work with English
language teaching and to analyze how language and culture are incorporated in such places.
The main research question is to verify whether these sites are really places of change in EFL
teaching contributing to the construction of a cultural enter-space or if they reproduce the
actual reality of conventional foreign language classes. For theoretical foundation we use the
concepts and ideas developed by Cultural Studies, Applied Linguistics and Critical Discourse
Analysis.
Key words: Teaching and learning foreign language, Hypertext, Language and culture.
Introdução
O domínio de apenas uma língua, a materna, não é suficiente para que o indivíduo
possa exercer efetivamente a cidadania no mundo do século XXI. Assim, ao desconhecer pelo
menos uma língua estrangeira, o indivíduo se sujeita a ter acesso apenas às informações que
estão disponíveis na língua materna. Com isso, priva-se da participação no mundo moderno
(Nicholls, 2003).
Falar inglês ou, pelo menos, ser capaz de entender um contexto discursivo neste
idioma é, no mundo atual, um pré-requisito fundamental para o indivíduo ser considerado
apto a concorrer no mercado de trabalho. O avanço tecnológico e a expansão da Internet
também ajudaram bastante nesse predomínio da Língua Inglesa como língua estrangeira,
sendo esta atualmente o idioma oficial do mundo globalizado. Por tudo isso, a procura pelo
idioma tem sido imensa, e dessa forma, o número de sítios virtuais tem aumentado
consideravelmente.
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Seja pela comodidade, seja pela falta de tempo característica do século XXI, ou pelas
supostas “vantagens” que os cursos de idioma à distância oferecem (Fale inglês em 8
semanas, fale inglês básico em 4 dias – propostas freqüentes na rede mundial oferecidas por
alguns deles), os cursos virtuais têm sido procurados para que a distância proveniente da falta
de conhecimento do idioma e a necessidade de entendê-lo ou praticá-lo sejam supridas. Mas
será que eles são realmente inovadores no ensino de língua estrangeira? Ou será que apenas
reproduzem as aulas tradicionais, acrescidos dos recursos multimodais do ambiente virtual?
Ao se estudar uma LE estuda-se, de forma simultânea, também a cultura a que esta
pertence. Para que a aprendizagem seja considerada eficiente e desenvolva efeitos produtivos
sob o aluno, torna-se necessário que este tome conhecimento da posição que ocupa em cada
contexto cultural, discernindo entre o que representa a própria cultura e o que representa a
cultura alvo. Alguns pesquisadores defendem que a aprendizagem cultural tem afetado
positivamente os estudantes, mas outros acham que a cultura pode ser usada como um
instrumento no processo de comunicação quando convenções comportamentais culturalmente
determinadas são ensinadas (Byram et al. 1994, In: Tavares e Cavalcanti, 1996). Questiona-se
se o espaço digital tem sido realmente um lugar de mudança e inovação no ensino de LE,
contribuindo com a construção de um Entre-espaço Cultural 128 (Kramsch, 1993; Tavares,
2005) para o aprendiz ou se estabelece como mera reprodução da realidade de salas de aulas
de LE tradicionais. O material digital permite, devido às possibilidades de escolha, que o
aluno determine a forma de navegação que seja mais adequada às suas necessidades pessoais
ou a forma de estudar que lhe seja mais confortável. A autonomia do aprendiz é essencial para
que este saiba como explorar as possibilidades comunicativas oferecidas pelo hipertexto 129 e
pela hipermodalidade 130. O sucesso da interação depende diretamente da adequação dos
textos aos interlocutores e aos contextos de uso previstos (Braga, 2001).
Mudanças tecnológicas e fatores sócio-culturais
As mudanças tecnológicas interagem com outros fatores sócio-culturais, determinando
novas formas de aprendizagem, na qual a era da comunicação on-line, que ganhou força
global, vincula-se a uma nova revolução, que é centrada no manuseio da informação, do
conhecimento e das redes de comunicação. Tais mudanças vêm moldando os hábitos sociais
contemporâneos de tal modo que vem propiciando a emergência de formas de comunicação e
estilos de vida bastante diferenciados. Segundo Nicholls, Língua e Cultura estão intimamente
ligadas. O ensino de uma LE vem, assim, necessariamente acompanhado de um sistema
complexo de costumes culturais, valores, modos de pensar, agir e sentir que geralmente são
introduzidos junto com conteúdos lingüísticos. À medida que o aluno adaptar sua linguagem
aos traços culturais da LE, o seu desempenho comunicativo se tornará bem mais significativo
(Nicholls, 2001). O uso do computador como ferramenta mediadora da comunicação leva-nos
a considerar textos que contemplam tanto a “interatividade tecnológica”, onde prevalece o
diálogo, a comunicação e a troca de mensagens, quanto à “interatividade situacional”,
definida pela possibilidade de agir, interferir no programa e/ou conteúdo (Silva, 2000: pg87
In: Braga, 2001).
128
Entende-se por Entre-espaço Cultural o lugar onde o aprendiz cria significados, que só têm valor dentro da
cultura, para as lacunas que ficam entre a cultura em que cresceu e as novas em que ele venha a ser introduzido.
129
Conjunto de informações textuais, podendo estar combinadas com imagens (animadas ou fixas) e sons,
organizadas de forma a permitir uma leitura (ou navegação) não linear, baseada em indexações e associações de
idéias e conceitos, sob a forma de links (Siqueira).
130
Relação dentro de uma estrutura hipertextual de unidades de informação de natureza diversa – texto verbal,
som, imagem – gerando uma nova realidade comunicativa que ultrapassa as possibilidades interpretativas dos
gêneros multimodais tradicionais.
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Como atividade da comunicação social, as línguas constituem fonte de ação e de
interação humana. Para tanto, a Internet tem se tornado um dos meios de difusão de
mensagens mais acessíveis e, desse modo, sua linguagem também se propagou e se tornou
globalizada, o que foi considerado fator essencial para o contato entre as culturas. Uma das
marcas da globalização é a velocidade com que a tecnologia evolui, e a informática,
responsável por esse avanço, tem contribuído para a melhoria da qualidade dos serviços em
todas as áreas do conhecimento (Galli, 2001).
A informação no espaço digital
A literatura atual tem procurado entender a natureza e o impacto dos novos gêneros
textuais que surgem no contexto digital, não havendo ainda consenso quanto a serem positivas
ou negativas as mudanças observadas, posto que o excesso de informação oferecido no meio
pode sobrecarregar cognitivamente e desencorajar os alunos que não possuam conhecimento
na área da pesquisa (Burbules e Callister, 2000 In: Braga, 2001). A extrapolação dos limites
impostos ao texto impresso pelo texto virtual se deve a possibilidade do apoio visual e oral, no
qual a informação pode ser apresentada de forma estática ou em movimento, permitindo o
auxílio de formas dinâmicas e acrescidas de som na apresentação de uma mesma informação
através de canais diferenciados, o que pode auxiliar alunos que tenham estilos cognitivos
distintos a encontrar sua maneira individual de aprendizagem devido à possibilidade de
escolha que, segundo Braga, permite que eles ajustem o material às suas necessidades
individuais.
A rede mundial de computadores permite ao usuário o acesso a informações do mundo
todo. Desse modo, ele troca, armazena e obtém informações globalizadas. Neste sentido, o
desenvolvimento e a utilização da Internet acabaram produzindo, entre seus usuários, uma
linguagem própria, repleta de termos típicos. As expressões, no campo da lexicologia,
ultrapassam o contexto cibernético, ou virtual, e representam um fator concreto da
globalização (Galli, 2001). Como exemplos, temos palavras tipo deletar, já incorporada ao
português, ou termos como e-mail, que apesar de existir tradução para o mesmo em português
(mensagem/correio eletrônico), ainda é bastante usado.
A virtualização do texto
Os links eletrônicos, responsáveis pela interatividade constitutiva do hipertexto, cujo
acesso se dá de forma não-linear, geram uma organização textual que não é totalmente nova
(Braga, 2001). Os textos eletrônicos se apresentam por intermédio de suas dissoluções. Eles
são lidos onde são escritos e são escritos ao serem lidos (Joyce, 1995 In: Plaza, 2000). Ao
utilizar a hipertextualização (tornar o texto virtual), o interlocutor tem a oportunidade de
ampliar as ocasiões de produção de sentido e enriquecer sua leitura (Galli, 2001). No entanto,
na tela essas ligações através dos links passam a ser fundamentais para a estrutura do texto,
posto que o processo de navegação modifica a natureza dos segmentos em si, e as relações
identificadas e criadas entre eles passam a ser essenciais para a construção do seu significado.
O hipertexto difere radicalmente do texto impresso na medida em que oferece ao leitor
possibilidades de trajetórias diversas, de forma não-seqüencial, ativando no leitor a
expectativa de que haverá links atrelados aos diferentes segmentos textuais, sem uma
seqüência pré-estabelecida, que pode ser observada ou não pelo leitor, exigindo que ele faça
escolhas e também determine tanto a ordem de acesso aos diferentes segmentos
disponibilizados no hipertexto, quanto o eixo coesivo que confere um sentido global ao texto
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lido. Isso difere radicalmente o hipertexto do texto impresso e faz com que o autor de um
hipertexto tenha menos controle sobre o seu texto, tornando-se difícil para ele prever a gama
de possíveis sentidos que podem ser construídos durante a leitura (Braga, 2001).
A dinamicidade e a interatividade 131 do hipertexto permitem ao leitor seguir diferentes
"rotas" ou "trilhas" de leitura, acionando, assim, uma série de possibilidades de construção de
sentido (Palácios, 2005). A idéia de Multi-linearidade 132 do Hipertexto, em contraposição a
Uni-linearidade 133 do texto tradicional – ainda que leituras transgressivas sejam possíveis no
texto tradicional, criando Multi-linearidades – é ainda mais evidente nos ambientes
hipermídia, nos quais a hipertextualidade é agregada a multimodalidade 134, e aquela vai além
desta da mesma forma que o hipertexto vai além do texto concebido tradicionalmente.
Tratando-se da relação do hipertexto eletrônico, a diferença incide somente no suporte e na
forma e rapidez do acessamento, o que caracteriza a multiplicidade de possibilidades de
construção e leitura abertas pelo hipertexto.
Construção do sentido textual
Como indica o estudo de Lemke, faz parte da nossa experiência como leitor integrar de
forma significativa textos verbais e visuais, assim como orientar nossa leitura por uma série
de recursos visuais. No texto hipermodal 135, esses recursos são ampliados e ressignificados.
Lemke explica o potencial multiplicador de sentidos inerentes aos construtos multimodais
retomando três categorias postuladas por Halliday: os significados aparentes, que são
construídos principalmente pelo conteúdo ideacional dos textos verbais e pelo que é mostrado
ou retratado pela imagem nos textos visuais; o significado performativo, que veicula o que
está acontecendo na relação comunicativa e o lugar que os diferentes participantes assumem
entre si em relação ao conteúdo apresentado; e o significado organizacional, que permite que
o significado aparente e o performativo sejam integrados de forma a atingir graus mais
elevados de complexidade e precisão (Lemke In: Braga, 2001).
Como esses diferentes tipos de significados se integram na construção do sentido
textual, é possível compreender por que em produções multimodais as possibilidades de
construção de sentido se ampliam, explicando, assim, a multiplicidade de leituras possíveis
para os textos multimodais. As vantagens que o material multimídia 136 e hipermídia 137 abre
para o ensino/aprendizagem justificam o investimento de recursos humanos e financeiros para
sua produção (Braga, 2001).
131
A interatividade pode ser considerada como uma simulação da interação, e graças a ela o diálogo entre
realidades diferentes se torna possível.
132
Várias seqüências possíveis estabelecidas pela ordem de acesso ao texto.
133
Seqüência de leitura pré-estabelecida pelo autor do texto.
134
Uso simultâneo de dados em diferentes formas de mídia, tais como: texto, vídeo, músicas, voz, animações,
gráficos e fotografias.
135
Processo de co-construção de conhecimento entre fontes e destinos de informação por meio de estímulos que
podem estar materializados sob a combinação de mais de uma dentre as diferentes modalidades: visual (textual,
gráfica), sonora (verbal, ruídos), olfativa, tatual e palatal.
136
Uso simultâneo de dados em diferentes formas de mídia.
137
Associação entre hipertexto e multimídia. Textos, imagens e sons tornam-se disponíveis conforme o leitor
percorre as ligações existentes entre eles.
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A leitura em segunda língua
Na compreensão de leitura em segunda língua, enfatiza-se a importância que o
contexto e o conhecimento prévio do leitor têm para a melhoria da aprendizagem de textos
verbais, tendo o uso de recursos visuais como uma alternativa promissora para levar o aluno a
ativar, antes do início da leitura, o conhecimento prévio que é relevante para a compreensão
do texto (Chun e Plass, In: Braga, 2001). As análises apontam que a imagem, apresentada de
forma estática ou em movimento, agregada ao texto verbal pode contribuir positivamente para
a retenção de vocabulário em uma língua estrangeira. Da mesma forma, a apresentação de
uma mesma informação através de canais diferenciados pode auxiliar alunos que tenham
estilos cognitivos diferentes.
A autonomia do aprendiz é essencial para que esse saiba como explorar as
possibilidades comunicativas oferecidas pelo hipertexto e pela hipermodalidade. Porém
alguns princípios não se alteram: aprendemos a interagir com textos a partir da prática situada
em contextos sociais concretos; o sucesso da interação depende diretamente da adequação dos
textos aos interlocutores e aos contextos de uso previstos (Braga, 2001).
Conclusão:
A interatividade digital caminha para a superação das barreiras físicas entre os agentes
(homens e máquinas), e para uma interação cada vez maior do usuário com as informações
(Lemos, 2005). Dessa forma, as infinitas possibilidades de conexões entre trechos de textos e
textos inteiros favorecem a flexibilização das fronteiras entre diferentes áreas do
conhecimento humano (Correia e Andrade, 2005).
O hipertexto desmistifica a idéia de texto como um todo composto de começo, meio e
fim definidos. A arte em rede problematiza as trocas sócio-culturais relacionadas com o
progresso tecnológico, onde o sentido evolutivo da tecnologia é abrir novas possibilidades de
ação, abrir novos espaços sociais e culturais. Segundo Lemos, podemos compreender a
interatividade digital como um diálogo entre homens e máquinas, onde a tecnologia digital
possibilita ao usuário interagir, não mais apenas com o objeto (a máquina ou a ferramenta),
mas com a informação, isto é, com o “conteúdo”. O ciberespaço tem sido assim, um espaço
onde a sociedade contemporânea tem redefinido suas identidades culturais e imposto um novo
modo de socialização interpessoal.
Tomando por base a teoria cognitivista, aprende-se melhor quando existe um
conhecimento prévio do que está sendo ensinado. Isto ocorre devido ao papel ativo do
aprendiz na ativação de esquemas mentais (schemata), relacionando a nova aprendizagem ao
conhecimento prévio. Esses esquemas ativados no indivíduo são os responsáveis pelos
diferentes tipos de leitura e interpretação do texto e são acionados durante todo o processo de
leitura, de modo que a informação recebida possa ser integrada a conhecimentos já existentes,
ampliando e modificando-os, permitindo a produção de sentidos e, dessa forma, o surgimento
de interpretações e formas de leituras diferentes. Por isso se fala da incompletude do texto,
pois o sentido não está nem no texto nem nos interlocutores, mas no espaço discursivo criado
pelos dois, autor e leitor, na interação através do texto. Para tanto, é necessário que o material
apresentado seja significativo ao aluno.
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Ciências Sociais – Ano 02 Nº 02 Vol 01 – 2006
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E é nesta necessidade que o hipertexto digital ganha força, pois apresenta a informação
com a possibilidade de se acrescentar imagens - fixas ou em movimento - e sons, numa
organização que permite a leitura, ou navegação, de forma não linear, através dos links,
possibilitando ao leitor caminhos diferentes na leitura, e seqüências estabelecidas pela ordem
de acesso.
A idéia de Multi-linearidade do Hipertexto, em contraposição a Uni-lieariedade do
texto tradicional – ainda que leituras transgressivas sejam possíveis no texto tradicional,
criando Multi-linearidades – é ainda mais evidente nos ambientes hipermídia, nos quais a
hipertextualidade é agregada a multi-modalidade, a forma e rapidez de acesso ao conteúdo
também contribui para tornar a leitura e compreensão do texto mais subjetiva. Um texto
escrito também é um hipertexto quando a leitura é feita através de interconexões à memória
do leitor, às referências do texto, aos índices e ao index que remetem o leitor para fora da
linearidade do texto.
O hipertexto, devido às várias possibilidades de escolha que oferece ao leitor, tanto
pode aumentar a qualidade da informação, quanto pode facilitar seu uso, à medida que
disponibiliza ferramentas consistentes para apresentação e manipulação do conteúdo.
A arte em rede problematiza as trocas sócio-culturais relacionadas com o progresso
tecnológico, onde o sentido evolutivo da tecnologia é abrir novas possibilidades de ação, abrir
novos espaços sociais e culturais. As redes hipertextuais permitem uma conexão mais livre
entre as informações veiculadas pelas unidades textuais construídas a partir de diferentes
modalidades. Esse potencial comunicativo diferenciado pode favorecer a construção de textos
e materiais mais didáticos, já que uma mesma informação pode ser complementada, reiterada
e mesmo sistematizada ao ser apresentada ao aprendiz na forma de um complexo multimodal.
O acesso a informações do mundo todo também é um dos pontos positivos no uso da
Internet como ferramenta de auxílio à aprendizagem, mas é preciso tomar cuidado, pois o
excesso de informação no meio digital pode fazer um processo inverso se o aprendiz não
estiver apto a manipular a informação recebida. A autonomia do aprendiz é essencial para que
esse saiba como explorar as possibilidades comunicativas oferecidas pelo hipertexto e pela
hipermodalidade. E é neste momento que o conhecimento prévio do conteúdo auxilia na
compreensão e na forma como a leitura será guiada. O sucesso da interação dependerá
diretamente dessa adequação dos textos aos interlocutores e aos contextos de uso previstos.
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