Panóptica Ed. 14 (2008) AS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO E O DIREITO CONSTITUCIONAL PROCESSUAL Eduardo Ferrer Mac-Gregor Diretor da Revista Iberoamericana de Derecho Procesal Constitucional. Presidente do Instituto Mexicano de Derecho Procesal Constitucional. Traduzido por: Bruno Costa Teixeira A constitucionalização do ordenamento jurídico tem se caracterizado como um fenômeno em expansão a partir do epílogo da Segunda Guerra Mundial. Ainda que Guastini fale em “condições de constitucionalização”,1 vale ressaltar que estamos diante de uma das múltiplas manifestações do fenômeno em tela, que é a incorporação de princípios e instituições processuais ao próprio ordenamento constitucional. Ademais, a vinculação das categorias processuais à Constituição adiquiriu maior relevância com os estudos dogmáticos empreendidos por Eduardo Juan Couture.2 Este autor realiza uma primeira aproximação em relação ao tema em seu ensaio entitulado “Las garantías constitucionales del proceso civil”, de 1946,3 que logo 1 Este fenômeno da constitucionalização do ordenamento jurídico tem várias dimensões e facetas. Guastini fala de sete condições para que um ordenamento se considere constituído por normas constitucionais. Cfr. GUASTINI, Riccardo, “La constitucionalización del ordenamiento jurídico: el caso italiano”, trad. de José María Lujambio, en CARBONELL, Miguel (ed.), Neoconstitucionalismo(s), Madrid, Trotta-UNAM, 2003, pp. 49-73. 2 Para ver estudos biográficos sobre o jurista, conferir GELSI BIDART, Adolfo, y ALCALÁ-ZAMORA Y CASTILLO, Niceto, “Eduardo J. Couture (Datos biográficos)”, en Revista de la Facultad de Derecho de México, núm. 24, octubre-diciembre de 1956, pp.13 e ss. 3 Publicado na obra Estudios de derecho procesal en honor de Hugo Alsina, Buenos Aires, Ediar, 1946, pp. 151 e ss. No México foi publicada sob a nomenclatura Anales de Jurisprudencia, Tomos LXV-LXVI, abril-mayo y julio-septiembre, 1950; e em Foro de México, núms. 27-30, junio-septiembre de 1955. 25 Panóptica Ed. 14 (2008) apareceria em seu clássico “Estudios de derecho procesal civil” (1948).4 Nesta obra, Couture descata que “a doutrina processual moderna ainda deve dar um passo substancial. Um exame dos institutos peculiares a este ramo do Direito, a partir do ponto de vista constitucional, consiste em uma tarefa cuja importância e fecundidade ainda não se pode determinar”.5 As observações do referido autor ecoaram na melhor doutrina processual6 de tal maneira que já é possível concluir que aquele foi o pioneiro de toda uma corrente dogmática que se tem consolidado contemporaneamente,7 inclusive no que se refere aos recentes estudos das “bases constitucionais para um processo civil justo”.8 Na “terceira parte” da obra supramencionada, o professor uruguaio se refere aos “casos de direito processual constitucional”.9 Ainda que faça uso da expressão “direito processual constitucional”, não é afirmado em momento algum que tal disciplina faz referência aos instrumentos processuais de regularidade constitucional, mas, em verdade, ao devido processo legal e outras instituições processuais adjacentes, todas em sua dimensão constitucional. Todavia, questiona-se: todas as instituições processuais estabelecidas na Constituição são matérias de análise da Ciência processual? Este é um questionamento importante e objeto fulcral do debate necessário para determinar o 4 Cfr. Estudios de derecho procesal civil, tomo I: “La constitución y el proceso civil”, Reimpresión de la 3ª ed., al cuidado de Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, Depalma, pp. 19 e ss. A primeira edição é de 1948. 5 Ibidem, pp. 21 e 22. 6 Cfr., entre outros, LIEBMAN, Enrico Tullio, “Diritto constituzionale e proceso civile”, en Rivista di diritto processuale, Padua, 1952, pp. 327-332. Existe tradução desta obra em Revista de Derecho, Jurisprudencia y Administración, Montevideo, junio-julio, 1953, pp. 121-124. FIX-ZAMUDIO, Héctor, “El pensamiento de Eduardo J. Couture y el derecho constitucional procesal”, em Boletín Mexicano de Derecho Comparado, año X, núm. 30, septiembre-diciembre, 1977, pp. 315-348; também reproduzido em Revista de la Facultad de Derecho y Ciencias Sociales, año XXIV, núm. 1 (cuarta época): “Estudios en honor de Eduardo J. Couture”, Montevideo, enero-junio, 1980, tomo I, pp. 69-107; íd, Constitución y proceso civil en Latinoamérica, México, UNAM, 1974. “Las garantías constitucionales de las partes en el proceso civil de Latinoamérica”, em Revista del Colegio de Abogados de La Plata, año XVI, núm. 33, julio-diciembre de 1974, pp. 105-186. 7 Dentre a abundante bibliografia contemporânea, ver os trabalhos gerais de OVALLE FAVELA, José, Las garantías constitucionales del proceso, 3ª ed, México, Oxford, 2007; PICÓ I JUNOY, Joan, Las garantías constitucionales del proceso, Barcelona, Bosch, 1997 (Existe uma terceira reimpressão de 2002). 8 Elaboradas por José Ovalle Favela e as XX Jornadas Iberoamericanas de Derecho Procesal (Málaga, octubre de 2006). 9 Estudios de derecho procesal civil, op. cit., Tomo I, pp. 193-265. 26 Panóptica Ed. 14 (2008) conteúdo do Direito Processual Constitucional. De fato, na atualidade, o “devido processo legal” foi convertido em uma categoria constitucional, constituindo-se em verdadeiro “devido processo constitucional”. De acordo com Gozaíni, “o processo como ferramenta a serviço dos direitos materiais perde consistência: não se trata de um fim em si mesmo, mas algo que deve realizar o direito material”.10 E sob esta concepção, qualquer setor da doutrina considera como superfície de estudo do Direito Processual Constitucional as instituições ou categorias processuais (ação, devido processo, etc.) contidas na própria Constituição.11 O problema da transcendência constitucional das instituições processuais constitui uma “área ou zona comum” entre o “constitucional” e o “processual”. De todas maneiras, constitui em uma aproximação eminentemente teórica, capaz de marcar as particularidades do estudo das disciplinas envolvidas. Neste sentido, Fix-Zamudio não apenas acolhe a postura de Couture relativa às garantias constitucionais do processo,12 mas também agrupa tal gama de tutelas em uma nova disciplina denominada “Direito Constitucional Processual”, que tem por objetivo o exame das normas e princípios constitucionais que, por sua vez, contém os delineamentos dos instrumentos processuais.13 Por outro lado, o mesmo autor assevera que o “direito processual constitucional”, enquanto disciplina de confluência e limítrofe com a primeira, deve ser objeto de estudo da Ciência processual. Comenta Fix-Zamudio, de modo a recordar o mestre de Montevidel, ser “muito recente a disciplina que chamamos direito constitucional processual, que consiste no 10 GOZAÍNI, Osvaldo Alfredo, “El debido proceso en la actualidad”, en Revista Iberoamericana de Derecho Procesal Constitucional, núm. 2, julio-diciembre de 2004, pp. 57-70, em p. 65. 11 GOZAÍNI, Osvaldo Alfredo, Derecho procesal constitucional y derechos humanos (vínculos y autonomías), México, UNAM, 1995, pp. 77 y ss.; GARCÍA BELAUNDE, Domingo, “Sobre la jurisdicción constitucional”, em QUIROGA LEÓN, Aníbal (coord.), Sobre la jurisdicción constitucional, Lima, PUCP, 1990, pp. 33 e ss. 12 Ver, entre outros, seu trabalho chamado “Las garantías de las partes en el proceso civil de Latinoamérica,” en Revista del Colegio de Abogados de La Plata, año XVI, núm. 33, julio-diciembre de 1974, pp. 105-186. 13 Cfr. Seus trabalhos em “El pensamiento de Eduardo J. Couture y el derecho constitucional procesal”, em Boletín Mexicano de Derecho Comparado, op. cit., pp. 315 e ss.; “Ejercicio de las garantías constitucionales sobre la eficacia del proceso”, em Latinoamérica: constitución, proceso y derechos humanos, México, Miguel Ángel Porrúa, 1988, pp. 463-542; “Reflexiones sobre el derecho constitucional procesal mexicano”, em Memoria de El Colegio Nacional 1981, México, El Colegio Nacional, 1982, pp. 37-91; e “Breves reflexiones sobre el concepto y contenido del Derecho Constitucional Procesal”, en el libro colectivo coordinado por el Ministro Juventino V. Castro y Castro. Estudios en honor de Humberto Román Palacios, México, Porrúa, 2005, pp. 95-117. 27 Panóptica Ed. 14 (2008) ramo do direito constitucional, ocupando-se do estudo sistemático dos conceitos, categorias e instituições processuais consagradas pelas disposições da Lei Fundamental, e, desta forma, em sua ciração, é fundamental o destaque ao pensamento do ilustre processualista uruguaiano Eduardo J. Couture, um dos primeiros juristas, não só latino-americanos, mas também no âmbito mundial, que ressaltou a necessidade de se analisar cientificamente as normas constitucionais que regulam as instituições processuais”.14 A postura de Fix-Zamudio tem sido aceita paulatinamente,15 mas ainda encontra barreiras em opiniões de alguns juristas. García Belaunde, por exemplo, tem sustentato que, mais do que um simples jogo de palavras, estamos diante de um crescimento desnecessário de disciplinas jurídicas e o fato de certos constitucionalistas se interessarem, em grande medida, pela análise da matéria, não pode nos levar à aceitação deste novo ramo que, “não obstante sua utilidade docente, carece de rigor científico”.16 De todo modo, ainda não existe precisão metodológica na localização de certas instituições processuais elevadas ao patamar constitucional. Especialmente em relação àquelas cujas origens remontam à Carta Magna inglesa de 1215, levada a cabo pelo Rei Juan e motivada pelas demandas formuladas por barões de Runnymede, com o objetivo de reconhecer aos nobres certos direitos fundamentais, dentre eles, o estabelecimento da cláusula 39: “Ningún hombre libre será arrestado, aprisionado, desposeído de su dependencia, libertad o libres usanzas, puesto fuera de la ley, exiliado, molestado en alguna manera, y nosotros no meteremos, ni haremos meter la mano sobre él, sin en virtud de un juicio legal de sus iguales según la ley de la tierra”; ademais, remonta à própria expressão due process of law conforme definida em 1354, no Estatuto expedido pelo Rei Eduardo III. Assim, a garantia do processo justo foi levantada em diversos documentos normativos, desde 14 FIX-ZAMUDIO, Héctor, “El pensamiento de Eduardo J. Couture y el derecho constitucional procesal”, en Revista de la Facultad de Derecho y Ciencias Sociales, op. cit., pp. 78-79. 15 Dentre muitos outros autores que têm aceitado o “Direito Constitucional Processual” se encontram SAGÜÉS, Néstor P., Derecho procesal constitucional. Recurso extraordinario, op. cit., pp. 3-4; PICÓ I JUNOY, Joan, Las garantías constitucionales del proceso, Barcelona, op. cit., p. 15; RODRÍGUEZ DOMÍNGUEZ, Elvito, Derecho procesal constitucional, op. cit., pp.112-120; REY CANTOR, Ernesto, Derecho procesal constitucional. Derecho constitucional procesal. Derechos humanos, Bogotá, Ed. Ciencia y Derecho, p. 138. 16 Derecho procesal constitucional, Bogotá, Temis, pp. 9-11. 28 Panóptica Ed. 14 (2008) o Habeas Corpus Act de 1679, à Declaração francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que influenciou as Cartas Constitucionales de 1795 (art. 11) e de 1814 (art. 4º), bem como à V emenda da Constituição dos Estados Unidos das América de 1791 e sua evolução em sede das decisões proferidas pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América. Como se infere, a garantia do justo processo compreende não só o adjective due process of law, mas também uma garantia dirigida à aplicação da lei de maneira justa e razoável, isto é, o sustantive due process of law.17 As conotações do devido processo legal, processo justo, ou garantia de audiência que são frequentemente utilizadas para identificar uma categoria processual, especialmente em razão de sua concepção constitucional, refletem profundos e prolixos estudos contemporâneos sobre o tema. É comum, por outro lado, que haja confusão entre sua caracterização enquanto direito fundamental – visto que em muitas ocasiões esta matéria é encontrada em capítulos presentes nas constituições modernas –, e a tutela dos dereitos por meio de aparatos processuais e procedimentos constitucionais desenhados para dar efetivada a tal tutela. E aí está parte do problema que justifica a investigação científica da matéria. As categorias processuais elevadas a direitos fundamentais devem ser estudadas à luz da metodologia e ideologia do direito constitucional, como qualquer outro direito constitucional que se encontre na própria Lei fundamental. E também é de maneira independente que deve ser analisada à luz do processualismo, haja vista que suas projeções enquanto garantia constitucional – devido processo – refletem em todo o ordenamento secundário, onde se encontram os processos civil, penal, do trabalho, etc. Nesta perspectiva, cabe a nós o questionamento sobre o fato de ser apropiada a inclusão desta instituição – e outras categorias processuais – no Direito Processual Constitucional. Se aceitarmos esta postura como apropriada, a disciplina em questão deveria ser subdividida em pelo menos três setores, conforme a natureza das 17 Cfr. CARBONELL, Miguel, y FERRER MAC-GREGOR, Eduardo “Comentario al Artículo 14 de la Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos” em: Derechos del pueblo mexicano, México a través de sus Constituciones, México, Cámara de Diputados – Senado de la República – Suprema Corte de Justicia de la Nación – Tribunal Electoral del Poder Judicial de la Federación – Instituto Federal Electoral – Miguel Ángel Porrúa, 2006, tomo XVI, pp. 506-526. 29 Panóptica Ed. 14 (2008) instituições. O primeiro compreende os instrumentos preferencialmente processuais (processos e procedimentos) capazes de evitar a contradição na – ou para reestabelecer a – ordem normativa constitucional, assim como a análise da jurisdição e dos órgãos que lhe dão vida. Já o segundo setor teria enfoque sobre a análise das garantias constitucionais do processo na direção estabelecida por Couture, dentre as quais estão a ação e o devido processo legal. Por fim, o terceiro setor compreenderia aquelas categorias processuais que, sem prévia caracterização, representam instituições que devem ser analisadas a partir do âmbito processual, como é o caso das garantias processuais que asseguram a independência e imparcialidade do julgador. Esta ampla concepção do conteúdo do Direito Processual Constitucional repousa sobre uma premissa peculiar: considerar-se como sua matéria de estudo qualquer instituição, categoria ou princípio processual que se encontre na Constituição. Por outro lado, uma versão mais reduzida da referida disciplina seria concentrada, especialmente, no primeiro setor. Quer dizer, somente no que se refere aos instrumentos ou mecanismos processuais de proteção à Constituição, definidos como tais, assim como a jurisdição e os órgãos que se encargam de tal seara. Se se aceita esta superfície reduzida do Direito Processual Constitucional, cabe delinear, por conseguinte, o âmbito de estudo das diversas categorias processuais. Em que área específica tal estudo deve ocorrer? No âmbito constitucional, ainda que sejam categorias de ordem processual? Ou no âmbito processual? Em ambos, mas com diferentes perspectivas? Se aceitarmos estudar está temática dentro do âmbito processual, em que área de tal seara aquela seria inserida? Na teoria geral do processo? Neste sentido, e com o escopo de delimitar as categorias processuais indicadas na Constituição, a proposta sistemática de Fix-Zamudio ressalta a importância de: 1) delimitar com maior nitidez o conteúdo próprio do Direito Processual Constitucional; e 2) agrupar as restantes categorias processuais previstas na Constituição. Ademais, nesta última direção e com o objetivo de estabelecer o que é Ciência Constitucional e Ciência Processual, o professor mexicano abre uma nova vertente 30 Panóptica Ed. 14 (2008) com base nos estudos pioneiros de Couture para advertir que estamos no terreno da Ciência Constitucional e, dentro dele, cabe estudar estas categorias processuais enquanto uma nova disciplina limítrofe e de confluência, denominada Direito Constitucional Processual, cujo conteúdo é dividido em três setores, a saber: a) a jurisidição; b) as garantias judiciais (estabilidade, inamovilidade, remuneração, responsabilidade, etc.); e c) as garantias das partes (ação processual, devido processo, etc.).18 Estando de acordo ou não com tal postura, é razoável que se está diante de um primeiro intento no sentido de delimitar o conteúdo do Direito Processual Constitucional em sua dimensão científica. Especialmente porque, até o dia de hoje, não existe qualquer construção dogmática nesse sentido. Como se pode perceber, a nova vertente relativa às garantias constitucionais do processo tratadas por Couture há mais de cinquenta anos, tiveram uma recepção importante no corrente processualismo científico. Contudo, não existe ainda consenso geral acerca da temática em voga, especialmente dentre as demais disciplinas jurídicas, nas quais tal enfoque deve ser inserido. 18 Sobre o conteúdo do Direito Constitucional Processual e sua delimitação em face do Direito Processual Constitucional, ver FIX-ZAMUDIO, Héctor, e VALENCIA CARMONA, Salvador, Derecho constitucional mexicano y comparado, op. cit., pp. 216-231; ver também, de autoria dos mesmos autores, Estudio de la defensa de la constitución en el ordenamiento mexicano, 2ª ed., México, Porrúa-UNAM, 2005, pp.107 e ss. 31