RESUMO A IRA DE DEUS: ESTUDO BÍBLICO TEOLÓGICO E PROPOSTA HOMILÉTICA por Emilson dos Reis Orientador: Reinaldo W. Siqueira RESUMO DE PESQUISA DE PÓS-GRADUAÇÃO Tese de Doutorado em Teologia Pastoral Seminário Adventista Latino-Americano de Teologia Centro Universitário Adventista de São Paulo Campus Engenheiro Coelho Título: A IRA DE DEUS: ESTUDO BÍBLICO TEOLÓGICO E PROPOSTA HOMILÉTICA Nome do pesquisador: Emilson dos Reis Nome e título do orientador: Reinaldo W. Siqueira, Ph.D. Data do término: dezembro de 2009 Tópico A pesquisa estudou a ira divina, como entendida por teólogos conservadores e por Ellen White, sistematizou o tema e ofereceu uma proposta homilética na forma de esboços de sermões. Propósito O objetivo da pesquisa é primordialmente pastoral, pois busca oferecer uma sistematização detalhada do tema da ira de Deus e uma série sugestiva de esboços de sermões, que esteja disponível para uma abordagem eficaz no âmbito da pregação. Fontes Este estudo foi fundamentado em pesquisa bibliográfica que investigou as análises e observações feitas por teólogos que estudaram o tema da ira de Deus nas Escrituras, e seguiram uma abordagem cristã conservadora, e os escritos de Ellen White. Conclusões A ira é uma das perfeições divinas e retrata sua aversão ao pecado. Os vocábulos hebraicos e gregos empregados no texto bíblico a descrevem tanto como uma paixão violenta como uma atitude racional frente ao pecado. Ela tem uma característica presente e outra escatológica. É uma expressão justa e natural de sua santidade, mas também do seu amor que foi desprezado ou abusado. Diferentemente da ira humana e da ira dos deuses da mitologia pagã, ela não inclui muitos dos aspectos negativos tão comuns a estas. Antes, é sempre seu desprazer e reação contra o mal, inteiramente previsível, coerente, constante e imutável, em perfeita harmonia com sua justiça e santidade. Até o dia final do julgamento será temperada com misericórdia, buscando de uma maneira adequada, preservar a ordem e promover a paz. Esta ira de Deus tem sido uma realidade no mundo dos homens desde o surgimento do pecado e permanecerá atuante até a extinção do mal e a restauração de todas as coisas. Seus efeitos são percebidos em nossa própria natureza ímpia e perversa, no afastamento de Deus (o qual deixa o pecador contumaz seguir seu próprio caminho) e nas punições, sendo que algumas são conseqüências naturais dos atos de pecado e outras, penalidades diretas impostas por Deus como juiz. Em seu sentido escatológico a ênfase recai sobre o castigo que os ímpios – Satanás, seus anjos e os homens impenitentes – terão ao se encerrar a história humana. Ao final, todos compreenderão tanto a ira como o amor de Deus e proclamarão sua perfeita justiça. Com respeito à relação de Cristo com a ira divina, o exame do texto neotestamentário demonstrou que a ira de Deus era uma característica tanto da vida quanto dos ensinos de Jesus e que, em todos os casos, ela despertou quando sua misericórdia foi desprezada. Mas ele não apenas possuiu essa ira, ele também a sofreu. Embora o derramamento de seu sangue tenha sido a revelação direta do amor do Pai para conosco, foi também o impedimento direto da ira do Pai contra nós. Sua morte foi tanto uma expiação quanto uma propiciação e, como tal, evidenciou o perdão de Deus, mas também sua justiça, como fundamento para esse mesmo perdão. Ali, Deus satisfez suas próprias exigências santas e voltou contra si mesmo sua ira justa que o pecador merece. Por essa razão, Deus pode ser, simultaneamente, justo e justificador de todo aquele que crê. Dando continuidade à sua obra de salvação, Cristo atua como intercessor, ouvindo nossa confissão de pecados e intercedendo continuamente por nós, aplicando em nosso benefício o que ele realizou na cruz. Acrescente-se ainda que, se Cristo retratasse somente os atributos pacíficos de Deus, não seria a plena revelação de Deus, mas apenas uma revelação parcial. Por isso, ele também foi apontado como o executor da ira de Deus. Em sua soberania Deus estabeleceu que o destino eterno do homem estivesse ligado à sua pessoa. O homem se salva ou se perde em função de sua relação com Cristo. Ou aceita o sangue do Cordeiro ou a ira do Cordeiro. Levando-se em conta a realidade de que o tema da ira divina se encontra distribuído ao longo de todo o texto sagrado e que, ao lado da misericórdia de Deus, é parte integrante da mensagem central da Bíblia e do Evangelho, pode-se considerar que a pregação cristã deve incluir mais do que a vida abundante que vem de Deus quando manifestamos fé em Cristo. Faz-se necessário pregar e ensinar sobre a ira divina e a condenação que vem sobre todos aqueles que recusam a misericórdia de Deus. Desse modo, o anúncio de salvação está indissoluvelmente ligado à pregação da ira de Deus sobre os homens e a comissão do pregador é proclamar a mensagem de que todos estão sob a ira de Deus até que eles creiam no Senhor Jesus Cristo. ABSTRACT OF GRADUATE STUDENT RESEARCH Doctor of Pastoral Theology Dissertation Seminário Adventista Latino-Americano de Teologia Centro Universitário Adventista de São Paulo Campus Engenheiro Coelho Title: THE WRATH OF GOD: A THEOLOGICAL BIBLICAL STUDY AND A HOMILETICAL PROPOSAL Name of researcher: Emilson dos Reis Name and degree of advisor: Reinaldo W. Siqueira, Ph.D. Date completed: December, 2009 Topic This research has studied the divine wrath from conservative theologians’ and Ellen White’s perspective. It also systematized the theme and offered a homiletical proposal as sermons’ outline. Purpose The purpose of this research is primarily pastoral, since it aims to present a detailed systematization of God’s wrath theme and a series of suggestive sermons outlines that will provide an effective approach on the topic for preachers. Sources This study was based on an investigated bibliographical research with analysis and observations performed by theologians who studied the God’s wrath theme on Scripture and followed a conservative Christian approach and Ellen White’s writings. Conclusions Wrath is one of the divine perfections and portrays God’s repulse to sin. The Greek and Hebrew words used on the biblical text describe it as a violent passion as well as a rational attitude against sin. It has a current as well a scatological characteristic. It expresses God’s holiness fairly and naturally, and also of His love that was abused and forsaken. Unlikely the human wrath and the mythological pagan god’s wrath, it does not include many of the negative aspects of both. Instead, it always shows His displeasure and reaction against evil, completely predictable, coherent, constant, and unchangeable in a perfect harmony with His justice and holiness. Even up to the final judgment day it will be mingled with mercy, trying in a proper way to preserve order and promote peace. God’s wrath has been a reality in men’s world since sin appeared and will remain there until evil’s extinction and the restoration of all things. Its effects are noticed in our own evil and perverse nature, in God’s separation (which makes the hardhearted sinner follow his own way), and in the punishment, considering that some of them are natural consequences of sin, and others, direct punishment imposed by God as Judge. In its eschatological sense, the emphasis is on the punishment that the wicked – Satan, his angels and impenitent men – will have at the closing of human history. At the end, everyone will understand both, the wrath and the love of God and will proclaim His perfect justice. In regard to the relationship between Christ and the divine wrath, the neo testamentary text presents God’s wrath as a characteristic of Jesus’ life as well as His teachings. Also, it was manifested in all instances when His mercy was forsaken. Yet, He not only manifested this wrath, He also suffered it. Even though the shedding of His blood has been a directly revelation from the love of the Father to us, it was also time the immediately obstruction of the Father’s wrath against us. His death was atonement as well as a propitiation act, and thus, it made clear not only God’s forgiveness, but also His justice, as a foundation of the same forgiveness. At the cross, God fulfilled His own holly requirement and brought against Himself the wrath deserved by sinners. Therefore, God can be at the same time, just and the justifier of all who believes in Him. Throughout His work of salvation, Christ acts as intercessor, listening to our confessions and continuously interceding for us, and applying in our behalf whatever He realized in the cross. Furthermore, if Christ would have demonstrated only the peaceful attributes of God, He would not be the complete revelation of God, but only a partial one. As a result, He was also appointed the executer of God’s wrath. In His sovereignty God established that the eternal destiny of men would be linked to Him. Man would be saved or lost due to his relationship to Christ, either choosing the blood of Christ or the wrath of the lamb. Considering that both, the theme of the divine wrath, which is found throughout the sacred text and God’s mercy, are part of the central message of the Bible and the Gospel, we come to the conclusion that the Christian preaching must include more than abundant life that comes from God as a result of our faith in God. It is necessary to preach and teach about God’s wrath and the condemnation that comes over all who refuse God’s mercy. Therefore, the proclamation of salvation is connected to the preaching of God’s wrath over mankind and preachers ought to proclaim the message that everyone is under God’s wrath up to the moment he or she believes in Jesus Christ. Seminário Adventista Latino-Americano de Teologia Centro Universitário Adventista de São Paulo Campus Engenheiro Coelho A IRA DE DEUS: ESTUDO BÍBLICO TEOLÓGICO E PROPOSTA HOMILÉTICA Tese Doutoral Apresentada em Cumprimento Parcial dos Requisitos para o Programa de Doutorado em Teologia Pastoral por Emilson dos Reis 2009 © Copyright por Emilson dos Reis 2009 Todos os direitos reservado A IRA DE DEUS: ESTUDO BÍBLICO TEOLÓGICO E PROPOSTA HOMILÉTICA Tese Apresentada em cumprimento parcial dos requisitos para o título de Doutor em Teologia Pastoral por Emilson dos Reis COMISSÃO DE APROVAÇÃO: ____________________________ Dr. Reinaldo Wenceslau Siqueira Orientador da Tese Professor de Teologia Bíblica ___________________________________ Dr. Roberto Pereyra Suárez Examinador Adjunto Professor de Teologia Bíblica Diretor do Programa de Pós-Graduação ____________________________ Dr. Ozeas Caldas Moura Examinador Externo Professor de Teologia Bíblica ___________________________________ Data de Aprovação iii SUMÁRIO Lista de Abreviaturas ................................................................................................ viii Agradecimentos ........................................................................................................... x INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 1 Definição do Problema.......................................................................................... 2 Propósito do Estudo .............................................................................................. 4 Escopo e Delimitações do Estudo ......................................................................... 4 Revisão de Literatura ............................................................................................ 5 Metodologia ........................................................................................................ 30 Organização do Estudo ....................................................................................... 30 I. O SIGNIFICADO DA IRA DE DEUS .................................................................. 32 Discussão Lingüística ......................................................................................... 32 O Uso de Antropomorfismo e Antropopatia................................................ 32 Os Termos Hebraicos para Ira ..................................................................... 33 ’Ânaph, ’aph ......................................................................................... 34 Chêmâh ................................................................................................. 37 Chârâh, chârôn ..................................................................................... 39 Kâ‘as, ka‘as .......................................................................................... 41 Qâtsaph, qêtseph ................................................................................... 43 Bâ‘ar, ‘ebhrah ...................................................................................... 45 Râgaz, rôgez.......................................................................................... 47 Zâ‘am, za‘am ........................................................................................ 49 Zâ‘aph, za‘aph, za‘eph e zal‘âphâh...................................................... 51 Rûach .................................................................................................... 52 Os Termos Gregos para Ira .......................................................................... 53 Thumos .................................................................................................. 53 Orgē ...................................................................................................... 55 A Ira de Deus em Relação a seus Outros Atributos Morais................................ 58 A Ira de Deus em Relação a sua Santidade.................................................. 58 A Ira de Deus em Relação a sua Justiça ...................................................... 63 A Ira de Deus em Relação ao seu Amor ...................................................... 69 A bondade de Deus.. ............................................................................. 76 A misericórdia de Deus......................................................................... 80 A graça de Deus .................................................................................... 83 A longanimidade de Deus ..................................................................... 88 A Ira de Deus comparada à Ira do Homem e à Ira dos Deuses........................... 91 A Ira do Homem .......................................................................................... 92 Aspectos negativos e positivos ............................................................. 92 Comparação com a ira de Deus ............................................................ 93 iv A Ira dos Deuses .......................................................................................... 95 No Oriente Médio ................................................................................. 95 No Mundo Grego .................................................................................. 99 No Mundo Romano ............................................................................ 101 Resumo e Conclusões ....................................................................................... 103 II. A REALIDADE DA IRA DE DEUS .................................................................. 107 A Ira de Deus no Antigo Testamento................................................................ 107 As Causas da Ira de Deus........................................................................... 108 A quebra da aliança............................................................................. 108 A desumanidade .................................................................................. 112 Os Efeitos da Ira de Deus........................................................................... 116 O Tempo da Ira de Deus ............................................................................ 118 A Ira de Deus no Novo Testamento .................................................................. 119 A Causa da Ira de Deus.............................................................................. 120 Os Efeitos da Ira de Deus........................................................................... 122 A natureza de filhos da ira .................................................................. 123 A atitude divina de entregar ................................................................ 123 A punição ............................................................................................ 127 O Tempo da Ira de Deus ............................................................................ 129 Tempo histórico .................................................................................. 130 Tempo escatológico ............................................................................ 133 A Ira de Deus nos Escritos de Ellen White ....................................................... 140 Os Propósitos da Ira de Deus ..................................................................... 143 Tipos da Ira de Deus .................................................................................. 144 Falsas Idéias sobre a Ira de Deus ............................................................... 145 Instrumentos da Ira de Deus ...................................................................... 146 Os anjos............................................................................................... 147 Os anjos da luz ............................................................................. 147 Os anjos das trevas....................................................................... 149 Os homens........................................................................................... 151 Um indivíduo como executor da ira de Deus .............................. 152 Grupos de indivíduos como executores da ira de Deus ............... 152 Israel como executor da ira de Deus ............................................ 153 Nações pagãs como executoras da ira de Deus............................ 155 A natureza ........................................................................................... 156 Elementos da natureza ................................................................. 156 Animais ........................................................................................ 158 Doenças e pestilências ........................................................................ 159 Acidentes ............................................................................................ 163 Resumo e Conclusões ....................................................................................... 163 III. CRISTO E A IRA DE DEUS ............................................................................ 167 Perspectiva Bíblica e Teológica ........................................................................ 167 Cristo – O Detentor da Ira de Deus ............................................................ 167 Cristo – O Alvo da Ira de Deus .................................................................. 169 Cristo – O Libertador da Ira de Deus ......................................................... 171 v A obra expiatória de Cristo ................................................................. 172 A necessidade de expiação .......................................................... 172 O significado da expiação ............................................................ 177 A origem da expiação .................................................................. 179 Objeções à realidade da expiação ................................................ 179 Teorias da expiação ..................................................................... 182 O alcance da expiação ................................................................. 187 A relevância da expiação ............................................................. 188 A obra propiciatória de Cristo ............................................................ 189 Teorias da propiciação ................................................................. 190 A justiça de Deus revelada através da propiciação ...................... 197 A obra sacerdotal de Cristo ................................................................. 200 Cristo – O Executor da Ira de Deus ........................................................... 204 A ira do Cordeiro ................................................................................ 204 A ira do Rei Guerreiro ........................................................................ 206 A ira do Senhor ................................................................................... 214 Perspectiva de Ellen White ............................................................................... 215 Cristo – O Fiador Diante da Ira de Deus.................................................... 215 Cristo – O Alvo da Ira de Deus .................................................................. 217 Cristo – O Libertador da Ira de Deus ......................................................... 218 A obra de Cristo na cruz: o sacrifício.................................................. 218 A obra de Cristo no santuário celestial: a intercessão ......................... 223 A obra de Cristo no homem: a aceitação ............................................ 225 Cristo – O Executor da Ira de Deus ........................................................... 226 O derramamento das sete pragas e o segundo advento ....................... 227 O milênio ............................................................................................ 228 O julgamento diante do grande trono branco...................................... 228 O castigo final ..................................................................................... 229 Resumo e Conclusões ....................................................................................... 231 IV. A PREGAÇÃO DA IRA DE DEUS.................................................................. 236 Esboço 1 – Atributos Divinos que são uma Reação ao Pecado ........................ 238 Esboço 2 – A Ira de Deus em Relação a Seus Outros Atributos Morais .......... 246 Esboço 3 – A Ira de Deus Comparada com a Ira dos Homens e a Ira dos Deuses ............................................................................. 257 Esboço 4 – Causas da Ira de Deus .................................................................... 263 Esboço 5 – O Abandono do Homem é uma Forma da Ira de Deus .................. 270 Esboço 6 – Instrumentos da Ira de Deus ........................................................... 274 Esboço 7 – O Tempo da Ira de Deus ................................................................ 282 Esboço 8 – Cristo, o Fiador e Alvo da Ira de Deus ........................................... 287 Esboço 9 – O Livramento da Ira de Deus: A Obra Expiatória de Cristo .......... 292 Esboço 10 – O Livramento da Ira de Deus: A Obra Propiciatória de Cristo .... 302 Esboço 11 – Cristo, o Executor da Ira de Deus ................................................ 308 RESUMO, CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES.................................................. 317 Resumo ............................................................................................................. 317 Conclusões ........................................................................................................ 318 vi Recomendações................................................................................................. 326 ANEXOS ...................................................................................................................... 327 Anexo A: Resultados da Rejeição da Graça ..................................................... 328 Anexo B: Hilastērion ........................................................................................ 330 BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................... 334 VITA ............................................................................................................................. 355 vii LISTA DE ABREVIAÇÕES ABD The Anchor Bible Dictionary AT Antigo Testamento DB Diccionario de la Biblia DBHP Dicionário bíblico hebraico-português – Schökel DBm Dicionário bíblico – Mackenzie DEPNT Diccionario expositivo de palavras del Nuevo Testamento DITAT Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento DITNT Dicionário internacional de teologia do Novo Testamento DTAT Diccionario teologico del Antiguo Testamento DTMAT Diccionario teologico manual del Antiguo Testamento DTNT Diccionario teologico del Nuevo Testamento EBD The Eerdmans Bible Dictionary EBTF Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia – Champlin EDT Evangelical Dictionary of Theology LXX Septuaginta NDBI Nuevo dicctionario bíblico ilustrado NIDOTTE New International Dictionary of Old Testament Theology and Exegesis NT Novo Testamento TDNT Theological Dictionary of the New Testament TDOT Theological Dictionary of the Old Testament viii TWOT Theological Wordbook of the Old Testament WBE Wycliffe Bible Encyclopedia ix AGRADECIMENTOS Ao decidir sobre o tema da tese, escolhi um que me proporcionasse a oportunidade de conhecer mais a Deus e, agora, ao encerrar minha pesquisa, eu O louvo por sua revelação de Si mesmo e pelo privilégio que me concedeu de empregar uma significativa parte de minha vida na desafiadora e prazerosa atividade de conhecê-Lo. Agradeço-Lhe por me haver guiado tanto na compreensão como na exposição verbal do tema. Agradeço de maneira especial ao Dr. Reinaldo W. Siqueira que, na qualidade de orientador nesta investigação, prestou-me grande ajuda. Sua capacidade, boa vontade e as orientações específicas que deu foram fundamentais para que a pesquisa chegasse a bom termo. Agradeço também ao Dr. Roberto Pereyra, pela prontidão em avaliar cada porção da pesquisa que lhe era entregue e por suas valiosas sugestões que serviram para aprimorar o resultado final. Minha gratidão ao Dr. Amin A. Rodor que, na qualidade de coordenador do curso de Teologia, proporcionou-me a oportunidade de, por um semestre, ser liberado de minhas atividades administrativas e docentes no Seminário de modo que eu pudesse me dedicar à pesquisa, o que foi vital para o preparo desta investigação. Por extensão, agradeço à direção do UNASP-EC que ratificou esta decisão e, também, porque me proporcionou a oportunidade de cursar o programa doutoral que agora se encerra. Finalmente, expresso meu reconhecimento à Prof.ª Rita C. Timóteo Soares por haver realizado o importante trabalho de editoração desta tese. x INTRODUÇÃO A natureza essencial de Deus nos é manifesta através de seus atributos (Rm 1:20). Dentre eles o que mais nos cativa é, sem dúvida, o amor e o que mais causa estranheza e perplexidade é a ira, especialmente porque parece estar em oposição àquele. Todavia, o tema da ira divina, que se encontra distribuído ao longo de todo o texto sagrado, é parte integrante da mensagem central da Bíblia e do Evangelho. Podemos até afirmar que a ira de Deus se destaca como um dos mais relevantes temas das Escrituras1 e que, apesar disso, são poucos aqueles que o entendem corretamente. A tendência atual é pregar, ensinar e escrever abundantemente sobre o amor de Deus, sua misericórdia, graça, bondade e compaixão, enquanto pouca atenção é dada à sua justiça, sua ira, ou ao juízo e ao tormento que incidirão sobre os impenitentes. É verdade que o primeiro grupo de conceitos merece ser enfatizado, mas o segundo não deve ser desconsiderado.2 O assunto da presente investigação não é novo. Não é uma nova teoria, nova doutrina ou nova teologia. As verdades analisadas são tão antigas quanto a própria Bíblia e merecem ser entendidas e proclamadas. 1 J. I. Packer, O conhecimento de Deus, 3ª ed. (São Paulo: Mundo Cristão, 1987), 135. 2 A. W. Pink, Os atributos de Deus (São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1985), 86. 1 2 Definição do Problema O tema da ira de Deus é um tabu na sociedade atual3 e tem sido uma pedra de tropeço para muitos cristãos,4 os quais, devido à ignorância tanto da verdadeira natureza do pecado como da santidade de Deus,5 consideram que Deus é bom demais para punir os incrédulos.6 Quando ouvem uma proclamação clara sobre a verdade concernente ao juízo, à punição e ao inferno, sua mente culturalmente sensível e delicada se revolta.7 Também, muitos teólogos têm feito forte objeção à idéia de que a ira de Deus é parte integrante da proclamação bíblica. Eles alegam basear-se, principalmente, na crença do amor de Deus. Se Deus é verdadeiramente amor, dizem eles, ele não pode se irar.8 Em decorrência disso, grande parte do cristianismo contemporâneo trata somente da vida abundante em Cristo – da alegria e das bênçãos da salvação e da paz que vêm de Deus pela fé em Cristo – deixando de pregar e ensinar sobre a ira de Deus e a condenação que vem sobre todos aqueles que têm pecado não perdoado. Consequentemente, o evangelho apresentado é mutilado, pois não se constitui no quadro completo do plano de salvação, e está muito distante daquele que foi proclamado por Jesus e pelo apóstolo Paulo.9 3 Packer, 134. 4 J. F. MacArthur, Comentario MacArthur del Nuevo Testamento: Romanos 1-8 (Grand Rapids: Editorial Portavoz, 2001), 89. 5 Idem, Expositional Commentary on Revelation (Eugene, Oregon: Certain Sound Publishing House, 1973), 297. 6 A. W. Tozer, Mais perto de Deus (São Paulo: Mundo Cristão, 1980), 106. 7 MacArthur, Expositional Commentary on Revelation, 297. É verdade que, no passado, com freqüência, o assunto foi abordado de forma especulativa, irreverente e maldosa. Packer, 142. 8 M. G. Stählin, “Orgē: The Wrath of Man and the Wrath of God in the New Testament”, Theological Dictionary of the New Testament, traduzido por Geoffrey W. Bromiley (Grand Rapids, MI: Eerdmans, reimpressão 1984), 5:425. 9 MacArthur, Comentario MacArthur del Nuevo Testamento: Romanos 1-8, 89-90; Donald Grey 3 Todavia, a ira de Deus aparece na Bíblia do início ao fim. Ao lado da misericórdia de Deus, ela foi ensinada e pregada desde os tempos patriarcais até os dias dos apóstolos.10 A pregação da ira feita pelos profetas ecoou na proclamação do evangelho no NT, sendo um ingrediente importante da pregação de João Batista (Mt 3:7; Mc 1:3-8; Lc 3:2-17) e do próprio Jesus (Mt 22:7; Lc 21:23-27; Jo 3:36).11 Os evangelhos, o livro de Atos, as epístolas paulinas e as gerais, e o Apocalipse declaram uma mensagem que proclama não apenas a graça e a misericórdia, mas também a ira de Deus (Mt 3:7; Lc 3:7; Jo 3:36; At 5:111; 12:20-23; Rm 1:18; Ef 2:3; Tg 2:13; 5:1-9; 2Pe 2:4-9; 3:1-7; Jd 5-7, 14-16; Ap 14:10). Esta não é, em nenhum sentido, considerada como inconsistente com a religião do NT e como algo pertencente somente ao AT. Antes, não havia nenhum evangelho à parte da ira de Deus e é justamente por causa dela que o evangelho era pregado.12 O assunto também permeia os escritos de Ellen G. White e, oficialmente, se constitui numa das ênfases da mensagem adventista.13 Sendo assim, é de se esperar que o tema da ira divina deva ser considerado seriamente e anunciado como parte integrante do evangelho. Entretanto, uma pesquisa da literatura teológica revela que até o presente Barnhouse, Man’s Ruin / God’s Wrath (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1959), 218. 10 D. M. Lloid-Jones, Darkness and Light, 4a ed. (Grand Rapids, MI: Baker Book House, 1988), 360; Stählin, 5:422. 11 Alois Stoeger, “Ira”, Dicionário de teologia bíblica, ed. Johannes B. Bauer, traduzido por Helmuth Alfredo Simon (São Paulo: Edições Loyola, 1979), 539. 12 Stählin, 5:422; D. M. Lloyd-Jones, Romans: Atonement and Justification (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1971), 75; Idem, God’s Way of Reconciliation, 8a ed. (Grand Rapids, MI: Baker Book House, 1989), 52-53. 13 A Igreja Adventista do Sétimo Dia crê que nos últimos dias haveria um povo remanescente com uma missão especial, simbolizado pelos três anjos de Apocalipse 14:6-12, e que ela cumpre essa profecia. A tônica da mensagem do terceiro anjo é a ira de Deus. Ver Rubens S. Lessa, ed., Nisto cremos (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1989), 223-233. Ver também o Manual da Igreja Adventista do Sétimo Dia, 14ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2000), 13. 4 momento não há uma sistematização detalhada da mensagem bíblica sobre a ira de Deus na língua portuguesa, que sirva de base para a aplicação prática na homilética.14 Propósito do Estudo O objetivo da pesquisa é primordialmente pastoral, pois busca oferecer uma sistematização detalhada do tema da ira de Deus e uma série sugestiva de esboços de sermões, que esteja disponível para uma abordagem eficaz no âmbito da pregação. Os beneficiados serão primeiramente os pregadores, incluindo os próprios pastores, que terão um apropriado e oportuno instrumento que facilitará a compreensão do tema e a apresentação de sermões pertinentes. Por extensão, toda a Igreja poderá se beneficiar através de uma melhor compreensão do caráter de Deus e do plano da salvação. Escopo e Delimitações do Estudo Este estudo não tem como objetivo efetuar um tratamento exegético dos muitos textos que tratam do tema, nem apresentar uma abordagem histórica detalhando como o Cristianismo em geral, ou a Igreja Adventista do Sétimo Dia em particular, o têm entendido através dos tempos. Antes, busca compreender o tópico seguindo uma abordagem cristã conservadora do texto bíblico e da perspectiva de Ellen White, como evidenciado em seus escritos (considerados como “autorizada fonte de verdade” pelos adventistas do sétimo 14 Ver seção “Revisão de Literatura” onde se percebe que não há nenhum estudo detalhado, em português, inclusive nas teologias sistemáticas, sobre o tema, que possa ser usado por pregadores brasileiros. 5 dia,15 embora não sirvam para substituir a Bíblia nem sejam colocados no mesmo nível que ela16). Os esboços de sermões apresentados têm a pretensão de servir de modelo quanto ao conteúdo e à abordagem do tema, mas não esgotam as possibilidades homiléticas pertinentes. Revisão de Literatura Embora na pesquisa tenham sido analisadas centenas de obras com conteúdo de algum modo pertinente ao tema proposto, nesta seção são apresentadas uma análise apenas daquelas que tratam da ira de Deus como tema principal ou que, pelo menos, se detiveram em aprofundar e sistematizar o assunto. Os autores estão dispostos de modo que inicialmente são mencionados aqueles que trataram exclusiva ou principalmente do tema. Depois, aqueles que discorreram sobre a ira de Deus em meio a uma variedade de outros assuntos, numa seqüência que parte daquela obra que trouxe a maior contribuição para a compreensão do tema e segue numa ordem decrescente. Bruce E. Baloian foi o único erudito encontrado que escreveu uma obra abalizada e extensa exclusivamente sobre o assunto da ira, embora focalizasse também o fenômeno da ira humana, além da ira divina. Seu estudo, inicialmente uma tese doutoral, foi, posteriormente, publicado com o título Anger in the Old Testament. Baloian apresenta o resultado de sua pesquisa em cinco capítulos. O primeiro inicia com uma apresentação de seu duplo propósito: o interesse pessoal em compreender essa poderosa paixão humana que é a ira e lançar luz sobre a natureza 15 Manual da Igreja Adventista do Sétimo Dia, 15. 16 Lessa, 305. 6 divina como dotada de paixão, especialmente a ira.17 Na sequência ele comenta, de modo resumido, as pesquisas sobre a ira feitas por outros eruditos; apresenta o procedimento que adotou na exposição de seu material18 e, de modo bastante conciso, discorre sobre as dez palavras hebraicas usadas no AT para indicar a presença da ira – as quais aparecem 714x no AT para referir-se explicitamente à ira, sendo que cerca de 70% (518x) se referem à ira de Deus e o restante (196x), à ira humana. Afirma que essas palavras advêm de diversas formações e possuem uma grande variedade de nuances e que, apesar disso, nenhuma delas foi utilizada para enunciar um significado teológico especial. O uso múltiplo que é feito destas palavras dentro de um mesmo verso ou perícope demonstra que elas possuem significados paralelos.19 O segundo capítulo consiste em uma avaliação da ira humana e expõe tanto a necessidade de controlá-la como as motivações que a causam.20 O terceiro capítulo trata da ira de Deus. Discute as motivações divinas para ficar irado, destacando a quebra da aliança21 e defende a legalidade dessa ira, mediante uma análise de textos pertinentes na literatura de sabedoria, no Pentateuco, na literatura histórica e nos escritos proféticos.22 17 Bruce Edward Baloian, Anger in the Old Testament, America University Studies, Series VII, Theology and Religion, v. 99 (New York: Peter Lang, 1992), 1. 18 Ibid., 4-5. 19 Ibid., 5-8. 20 Ibid., 19-64. 21 Ibid., 71-76. 22 Ibid., 77-97. 7 Discorre também sobre os efeitos desejados e os classifica como derivados da justiça e do amor de Deus.23 O quarto capítulo faz uma correlação entre a ira humana e a divina, incluindo os aspectos teológicos e psicológicos envolvidos.24 Ele afirma que toda a linguagem é analógica e que, embora possa ser perigoso e mesmo inadequado explicar a Deus por analogia com o homem, somos compelidos a fazê-lo, porque não temos nenhum outro meio de interpretá-lo.25 Então, ao comparar a ira divina com a ira humana, diz que, talvez, o aspecto comum mais destacado seja a natureza potencialmente destrutiva de ambas e que, a mais significativa diferença seja a irracionalidade que pode frequentemente acompanhar a ira humana, enquanto que a ira divina está sempre à serviço dos propósitos racionais de Deus.26 A ira divina é apresentada como uma direta demonstração de seu interesse pelos homens, o que é verdade para Israel, seu mais frequente alvo, como também para os demais povos da terra. O ponto de destaque é que com o aumento de privilégios, vem o aumento de responsabilidade. Em razão disso, Israel, embora tenha sido recipiente de mais abundante graça, também se tornou mais culpável devido a seu status de eleito. As expressões dessa ira, encontradas nas profecias a respeito de outras nações, mostram o interesse divino em que haja justiça em toda a terra.27 23 Ibid., 121-148. 24 Ibid., 149-155. 25 Ibid., 160-161. 26 Ibid., 163. 27 Ibid., 157. 8 Baloian declara que nunca a ira divina é retratada como atuando no mundo sem uma de duas motivações: a rebelião contra sua pessoa e a violação da justiça básica. Ela é sempre mostrada como racional, mesmo no calor da paixão. Isto pode ser constatado quando se atenta para o momento em que ela aparece, ao ser usada uma metáfora judicial para descrevê-la. Ela sempre está presente na implementação final de um veredito e nunca em uma fase anterior do processo legal. Deus não conduz o julgamento em ira, antes ele cumpre o veredito em ira.28 Ele argumenta que os textos bíblicos apresentam a ira de Deus como perigosa, pois com frequência, quando ele estava irado, havia efeitos catastróficos terríveis, cujo efeito imediato pretendido era causar admiração e temor, embora operasse tendo em vista um alvo definido: executar a justiça contra alguém e abençoar os demais. Essa ira é apresentada como sempre estando sob seu controle e ao serviço de seus propósitos de justiça, mas também de amor. Essa exibição de amor, em relação à manifestação de sua ira, pode ser vista de três modos: (1) antes de sua ira se manifestar, ele adverte que ela está para vir. Se a justiça fosse a única motivação, a advertência não seria dada. (2) Enquanto ela está se manifestando, é entendido que ela pode terminar. Numerosos textos demonstram que Deus continua acessível mesmo em meio à operação de sua ira. (3) Quando a ira tinha cumprido seu papel e se extinguido, os relatos do que ocorrera (no livro de Lamentações, por exemplo) davam à comunidade a oportunidade de evitar os erros do passado e, assim, evitar nova manifestação de ira no futuro.29 28 Ibid., 157-158. 29 Ibid., 158-159. 9 Finalmente, o capítulo cinco, expõe o ponto de vista teológico, segundo o qual a descrição da pessoa de Deus não muda ideologicamente de literatura para literatura à medida que os livros do AT vão sendo escritos. As mudanças encontradas dizem respeito às necessidades de circunstâncias específicas às quais cada tipo de literatura é endereçado.30 As implicações epistemológicas, por sua vez, são: (1) toda a literatura do AT evidencia a Deus como possuindo uma personalidade emotiva; (2) este conhecimento foi obtido ao longo do tempo pelas experiências individuais e corporativas de Israel através das ações de Deus no meio deles; e (3) foi isto que guiou o desenvolvimento dessa literatura.31 O ponto de vista teológico mostra que a compreensão tanto da ira de Deus como da ira humana tem como pano de fundo o conceito da justiça de Deus, mas não uma justiça ministrada por um princípio impessoal, antes aquela que advém de um Deus que tem fortes emoções e que está pessoalmente interessado na humanidade.32 A seção justifica a ira humana em certas circunstâncias e demonstra a racionalidade, a justiça e mesmo o amor que podem ser discernidos nas manifestações da ira de Deus. Assim, segundo o autor, a ira humana é teologicamente justificável se ela se conforma com as normas de justiça. A ira humana justa, controlada pela razão, pode ser um dos meios pelos quais um ser humano ama outro ser humano. Os não israelitas incorriam na ira divina se eles, à luz da revelação natural que possuem todos os homens, atacavam cruelmente a outros. Em 30 Ibid., 173. 31 Ibid., 175. 32 Ibid., 176. 10 realidade, a sociedade humana degenera se tais ações não são reduzidas e, além disso, há algo dentro da espécie humana que clama por justiça. Os homens necessitam ter justiça para manter uma existência mental saudável e racional no mundo. Isso é parte de sua natureza profundamente psicológica. Portanto, a resposta da ira de Deus à crueldade humana se baseia na justiça, mas também demonstra o amor de Deus para com os seres humanos, porque serve para salvar a humanidade de si mesma, ajuda a manter a ordem e dá esperança e significado para os que são oprimidos.33 Baloian também é autor de um valioso artigo sobre a ira divina em New International Dictionary of Old Testament Theology and Exegesisi,34 onde argumenta de modo semelhante. Tasker, professor de exegese do NT na Universidade de Londres, preparou um estudo sobre o tema para ser apresentado na Conferência de Teologia Bíblica de 1951, intitulado The Biblical Doctrine of the Wrath of God. As 48 páginas desta obra iniciam declarando que no AT e no NT, Deus é apresentado tanto como um Deus de ira, como um Deus de amor.35 Ele também demonstrou sua preocupação com a pregação dos anos mais recentes, em que a ênfase tem sido colocada quase que exclusivamente no amor de Deus e disse que chegou o tempo de restabelecer o equilíbrio, i.e., pregar a realidade tanto da ira como do amor perdoador de Deus.36 Declarou ainda, que a ira é um elemento essencial do 33 Ibid., 176. 34 Idem, “Wrath”, New International Dictionary of Old Testament Theology and Exegesis, 5 vols. (Carlisle, U. K.: Paternoster Press, 1997), 4:377-385. 35 Randolp V. G. Tasker, The Biblical Doctrine of the Wrath of God ( Londres: The Tyndale Press, 1951), vii. 36 Ibid. 11 divino amor e que sem a compreensão desta ira é improvável que venhamos a ter o temor de Deus, que é o princípio da sabedoria.37 Em sua introdução, ele discorre sobre a manifestação da ira divina e sugere que se inicie a compreensão do tema por uma cuidadosa exegese de Rm 1:18.38 Para ele, a pregação das boas novas deve ser precedida pela pregação das más notícias, i.e., primeiro deve ser pregada a ira de Deus, depois, seu amor.39 Sua investigação consta de cinco capítulos. O primeiro, que trata da manifestação da ira divina para com aqueles que estavam fora da aliança, os pagãos, se concentra numa análise de Rm 1:19-32. A ira de Deus tem se manifestado contra a humanidade desde que foi cometido o primeiro pecado, o que pode ser constatado por uma análise do Gênesis, a partir do relato da queda de Adão.40 O segundo capítulo, que comenta as manifestações da ira divina sob a velha aliança, parte de uma análise de Rm 2 e apresenta os israelitas como pecadores, culpados e merecedores da ira divina até mais do que os pagãos, porque seus privilégios e bênçãos haviam sido significativamente maiores. Também mostra como Deus manifestou sua ira contra aqueles que se opuseram a seu povo, inclusive aqueles que Deus mesmo usara para punir Israel, devido aos excessos cometidos. Na ótica do autor, o amor de Deus para com Israel não eliminou sua ira contra eles, mas a limitou e sua aliança com seu povo nunca 37 Ibid. 38 Ibid., 9. 39 Ibid., 10. 40 Ibid., 13-18. 12 pôde ser abandonada, mesmo quando foi estabelecida a nova aliança (conforme ensinada no NT).41 O terceiro capítulo expõe a manifestação da ira de Deus em Jesus Cristo. Argumenta que o pensamento de que o AT trata da ira de Deus e o NT, de seu amor, é incorreto. Ambos tratam da ira e ambos tratam do amor. Apresenta declarações e narrativas do NT que salientam a ira de Deus e mostra como ela foi revelada no ministério de Cristo: em seus ensinos (Lc 12:4-5; 21:23), em suas atitudes (Mc 3:5; 10:14) e em suas palavras de denúncia (Mt 23. Afirma que Cristo veio a este mundo revelar tanto a ira como o amor de Deus e que eliminar a ideia da ira de Deus também acaba por eliminar a ideia de seu amor.42 Tasker também declara que a ressurreição de Cristo foi a maior demonstração de que Deus aceitou seu sacrifício expiatório no lugar do pecador e que ao aceitar o salvador ele é colocado em um novo status diante de Deus, o qual o protegerá no dia final da ira de Deus.43 O quarto capítulo se refere às manifestações da ira de Deus sob a nova aliança. Segundo o NT, o cristão não está automaticamente isento de qualquer manifestação da ira divina. Antes, é por sua contínua submissão ao Espírito Santo que ele permanece debaixo da graça e escapa da ira. O autor analisa diversos textos do NT que tratam da ira divina e os compara com textos semelhantes do AT.44 41 Ibid., 19-26. 42 Ibid., 27-37. 43 Ibid., 37. 44 Ibid., 38-44. 13 O quinto e último capítulo tem como tema o dia final da ira e inicia analisando a expressão “o Dia do Senhor”, como empregada pelos profetas do AT. Este era um dia de julgamento e podia referir-se a um evento na história ou a uma realidade futura e podia sobrevir às nações ou a Israel.45 No NT, esta expressão é uma referência à segunda vinda de Cristo, que será o dia da ira de Deus e do Cordeiro, quando este, a quem cabe o julgamento, será o agente da ira de Deus.46 Uma grande contribuição para esta pesquisa veio do Theological Dictionary of the New Testament, editado por Gerhard Kittel, onde o tema da ira de Deus é longamente discutido por diversos eruditos. No volume 3, R. F. Büchsel, discorre sobre a palavra thumos e afirma que não há nenhuma diferença importante entre esta e orgē47 e, no volume 5, diversos outros autores discorrem sobre o termo orgē. M. H. Kleinknecht analisa o conceito da ira dos deuses na antiguidade, com destaque para o pensamento no mundo grego e romano. Todas as escolas filosóficas gregas aceitavam o conceito de ira como uma prerrogativa das divindades e tentativas têm sido feitas para explicar cada culto como um esforço para antecipar-se a ela ou suavizá-la. Esta raiva dos deuses aparecia de duas formas: ou raiva entre os deuses, ou raiva dirigida contra os homens. Em ambos os casos, era uma forma de autoafirmação e protesto. Nem sempre, no entanto, a ira era vista como algo negativo. Na literatura pagã havia uma orgē moral que protegia contra o mal e que 45 Ibid., 45. 46 Ibid., 45-48. 47 R. F. Büchsel, “Thymós”, TDNT, 3:167-172. 14 algumas vezes era chamada de ira justa. Por ela, a ordem era restaurada e o futuro assegurado. Em casos assim, a ira dos deuses não era uma raiva cega, antes, em consideração ao homem, conferia-lhe dignidade por corrigi-lo ou colocá-lo nos limites estabelecidos para ele.48 Entre os romanos, os ritos expiatórios e usos formais mostram que já havia a idéia de que a ira da divindade caía especificamente sobre os ímpios, aqueles que desrespeitavam os deuses. A culpa religiosa e a negligência às cerimônias eram as principais responsáveis por despertar a ira dos deuses, e isso exigia expiação. Para os romanos, a estabilidade do Estado e do governo residia essencialmente sobre a religião. Desse modo, os eventos desastrosos na vida política e histórica, como dissensões internas, luta de classes, guerra civil e rebelião eram vistas como relacionados à ira dos deuses. Por isso, nos historiadores romanos, esta forma de pensamento cúltico e religioso adquire uma significância histórica que nunca havia tido para os gregos.49 E. O. Grether e B. J. Fichtner comentam sobre o significado das palavras hebraicas empregadas para tratar da ira de Deus. Em primeira instância esta ira é dirigida contra o próprio Israel, com quem Deus fizera uma aliança especial (Êx 19), o que pode ser visto em sua peregrinação no deserto e na história do povo, da conquista ao exílio. Especialmente no período inicial, a solidariedade coletiva do indivíduo com a totalidade do povo era evidente, de maneira que a ira de Deus era dirigida contra o indivíduo em sua específica função dentro do povo de Deus. Desse modo, a ira divina levantou-se contra indivíduos: Moisés (Êx 4:14, 24; Dt 1:37), Arão (Dt 9:20), Miriã (Nm 12:9), Nadabe e Abiú (Lv 10:6) e contra 48 M. H. Kleinknecht, “Orgē: Wrath in Classical Antiquity”, TDNT, 5:384-389. 49 Ibid., TDNT, 5:389-392. 15 reis e profetas (1Sm 15; 2Re 23:36; 2Cr 29:8; Jr 21:1-7); mas também veio sobre todo o povo, por causa dos pecados individuais (ver Js 7; 2Sm 24).50 Os autores também discorrem sobre as palavras gregas utilizadas na LXX com referência à ira divina, num contraste com aquelas registradas no grego secular para retratar a ira dos deuses. Assim, em etimologia e significado orgē e thumos são originalmente distintos: enquanto thumos denota emoção, orgē indica sua manifestação e expressão. Na LXX, contudo, tal distinção se perde. Além disso, as três palavras empregadas no grego secular para a raiva dos deuses (kotos, cholos e mēnis) não são usadas na LXX para a ira de Deus.51 No mesmo volume, B. J. Fichtner apresenta a ira divina como uma antropopatia e comenta sua ocorrência no AT, incluindo as várias metáforas ali empregadas. Aponta sua relação com a santidade de Deus, a quebra da aliança como sua causa principal, sua presença no dia a dia dos homens e como libertar-se dela.52 A ira de Deus foi o tema central dos profetas que viveram antes do exílio, embora nem todos usassem o termo ira. Eles combatiam o falso senso de segurança que o povo tinha contra a ira e o julgamento, com destaque para Jeremias e Ezequiel. Os profetas durante e após o exílio viam o exílio como o término da obra de ira de Deus e, mesmo depois do retorno, eles compreenderam que a ira de Deus ainda permanecia sobre seu povo (Ag 1: 5-11; Zc 1:3, 12). Especialmente os profetas pós-exílicos declaram que, junto com 50 E. O. Grether e B. J. Fichtner, “Orgē: The Wrath of Men and the Wrath of God in the Old Testament”, TDNT., 5:392-394. 51 Ibid., “Orgē: The Wrath of God in the LXX”, TDNT, 5:409-412. 52 B. J. Fichtner, “Orgē: The Wrath of God in the LXX”, TDNT, 5:394-409. 16 Israel, as nações e seus governos também são objetos da ira de Deus, de modo que a terra inteira e toda a humanidade são afetadas por ela (Dt 32:22; Jr 10:10; Is 13:9, 11; Sf 3:8).53 Segundo este autor, o motivo central da ira de Deus contra Israel pode ser visto na mensagem dos profetas. Eles nunca cessaram de anunciar o que Deus fez por Israel com sua eleição e guia, e este é o pano de fundo contra o qual eles trazem sua mensagem da ira de Deus. Em suas mensagens, seja referindo-se ao culto ou à injustiça social, à política de armamentos e alianças, ou mesmo à adoração de outros deuses, a questão é que o povo tinha abandonado seu Deus e desprezado seu amor. Esta é a mais profunda raiz do conceito de ira, e nesta luz podemos compreender a esmagadora força da mensagem. É o amor ferido de Deus que desperta sua ira, que vem como resultado da quebra da relação de aliança. Ele sente-se enciumado e zeloso por causa da atitude de Israel, sua esposa, e isto encontra expressão na ira (Dt 32:20; Sl 78:58; 79:5; Ez 16; 23). Todavia, a ira também pode denotar o zelo de Deus por seu povo quando Israel é ameaçado por outras nações, de maneira que ele se posiciona como um amante esposo para destruir estas nações e salvar seu povo (Is 42:13; 59:17; 63:15; Zc 1:14 ss; 8:2 ss; Na 1:2).54 O AT demonstra que toda a vida humana, por causa do pecado, está sob a constante operação da ira de Deus, mas também dá amplo testemunho da longanimidade de Deus, que não dá livre curso à sua ira, mas restringe a si mesmo e espera, dando espaço para arrependimento e conversão (Êx 34:6; Nm 14:18; Sl 103:8; Is 48:9; Na 1:3). Há situações em que Deus aceita uma intercessão e a ira é limitada em sua obra (Nm 14; Dt 9) ou 53 Ibid., 398-399. 54 Ibid.403-404. 17 completamente desfeita (Nm 11; 2Sm 24). Mas pode chegar o tempo em que Deus não mais ouça a intercessão (Am 7:8; 8:2; Ez 14:14) ou mesmo proíba seus servos de fazê-la (Jr 7:16). Nestes casos, nada pode impedir a ira, e ela é executada implacavelmente e irresistivelmente (Ez 8:18; 14:14).55 Na sequência, E. Sjöberg e M. G. Stählin expõem o conceito da ira de Deus como sendo bastante comum na literatura judaica pós-canônica, tanto na dispersão, como na Palestina, e também na literatura rabínica.56 Finalmente, Stählin discorre longamente sobre orgē, contrastando-a com thumos. Sugere que thumos, que possui uma conotação de explosão de paixão, embora bem adaptada para descrever as visões do Apocalipse, não servia para delinear o conceito de Paulo sobre a ira de Deus e que o significado de orgē pode ser fixado mais precisamente quando se considera os termos que são colocados em paralelo ou em contraste com ela no NT. Vê-se ali que o significado é maior do que a emoção, sendo uma verdadeira atitude (Lc 21:22; Rm 12:19; Mc 13:9; Rm 2:8ss).57 O autor salienta a importância do tema no NT, já a partir das primeiras pregações. Desse modo, Jesus e João Batista trazem um evangelho que inclui a proclamação da ira de Deus (Mt 3:7; Lc 3:18; 21:23) e Paulo, os evangelhos e o Apocalipse declaram uma mensagem que proclama não apenas a graça e a misericórdia, mas também esta ira (Rm 1:18; Jo 3:36; Ap 14:10). No NT, então, a ira divina não é em nenhum sentido considerada 55 Ibid., 404-406. 56 Erik Sjöberg e M. G. Stählin, “Orgē: The Wrath of God in Later Judaism”, TDNT, 5:412-416. 57 Stählin, “Orgē: The Wrath of Man and the Wrath of God in the New Testament”, TDNT, 5:422. 18 como inconsistente com a religião cristã, como se a referência a ela pertencesse somente ao AT e a referência ao seu amor estivesse confinada no NT. Antes, o AT, proclama o amor e a misericórdia de Deus tão impressivamente como sua ira, e o NT prega sua ira bem como sua misericórdia.58 Ele defende veementemente a pregação da ira de Deus, incluindo a questão do tormento, como parte da proclamação do evangelho. Relaciona a ira de Deus com o amor em seus vários aspectos e afirma que a revelação dessa ira é um pano de fundo indispensável para a revelação de sua misericórdia.59 Traz também um tópico sobre a presença da ira de Deus em Jesus e sua mensagem (Mt 9:30; Mc 1:41, 43; 3:5; Jo 11:33, 38) e declara que a ira de Jesus, ainda que humana, já continha algo da natureza da ira de Deus, o que pode ser percebido de uma análise das coisas que deixavam Jesus irado.60 Stählin ainda expõe as características presentes e futuras de orgē e discorre sobre as imagens, objetos, instrumentos, causas e efeitos da ira de Deus no NT, bem como o caminho de libertação dela, por meio da fé em Cristo.61 Gary A. Herion, em seu artigo sobre a ira de Deus, em The Anchor Bible Dictionary, inicia afirmando que uma combinação de pressuposições filosóficas originais do pensamento grego clássico tem contribuído para uma má compreensão do conceito bíblico da ira de Deus. O pensamento de que ações emotivas são fraqueza ou pecado e uma 58 Ibid., 422-423. 59 Ibid., 425-426. 60 Ibid., 427-429. 61 Ibid., 430-447. 19 visão da divindade como sendo impassível e distanciada, indiferente para com a humanidade, tem sido transpostos para o cristianismo. Todavia, percebe-se no AT que Deus é possuidor de emoções semelhantes às nossas, em alguns aspectos, o que pode ser comprovado por uma análise das palavras hebraicas empregadas para retratar a ira divina, por exemplo. Então o autor analisa tais palavras, uma a uma. Ressalva, contudo, a diferença que há entre paixão e sentimento (pathos). A paixão pode ser entendida como um distúrbio emocional que envolve a perda do domínio próprio e incapacita o indivíduo para determinar sua conduta em acordo com os princípios que conhece, enquanto que pathos é uma ação formada com cuidado e intenção, resultante de determinação e decisão. Pathos é complexamente semelhante a ethos e aproxima-se da idéia que queremos expressar quando falamos de uma “justa indignação”. A ira de Deus é apresentada não como um atributo essencial da pessoa de Deus, mas uma expressão de sua vontade. É uma reação à má conduta humana.62 Baseando-se nas pesquisas feitas no Oriente Médio sobre as divindades pagãs, Herion afirma que há um grupo de textos orientados historicamente (e não mitologicamente), que retratam a ira dos deuses como um tipo de pathos, legitimamente ocasionada por ofensas humanas contra a justa vontade daqueles deuses. Nesses textos ocorrem dois tipos de transgressão humana que tendem a provocar uma ira legítima dos deuses: o desdém para com o templo do deus e a violação de um juramento solene. Nesse sentido, haveria alguma semelhança com a revelação do AT sobre a ira de Deus.63 62 Gary A. Herion, “Wrath of God”, The Anchor Bible Dictionary (New York: Doubleday, 1992), 6:989-991. 63 Ibid., 6:992. 20 Sobre as causas da ira de Deus no AT, o autor apresenta o que ele chama de caprichos inexplicáveis, quando Deus manifesta sua ira e parece não haver uma explicação, embora devamos ter em mente que não sabemos tudo sobre Deus, os pecados humanos, a transgressão da aliança e a arrogância pagã.64 Também, na busca da compreensão da ira divina, ele faz uma comparação de Deus com os outros reis do antigo Oriente Médio, os quais, algumas vezes manifestavam ira não como uma disposição pessoal, mas como uma figura de linguagem para referir-se mais a um dever, uma questão de política oficial do que a um sentimento. Era do tipo pathos e não paixão. Também, nas demonstrações de ira sobre Israel, Deus age como seu rei, por causa da aliança. Nas demonstrações para com as outras nações, ele age como soberano do universo, que é sua criação. Desse modo, os textos que tratam da ira de Deus no AT não objetivam humanizar a Deus, mas exaltá-Lo.65 Entretanto, Deus é frequentemente retratado como temperando sua ira contra Israel com compaixão e amor (Êx 32:12-14; Is 54:7-8; Os 11:8; Mq 7:18), e como tendo o desejo de restringir sua própria ira, em contraste com os deuses do antigo Oriente Médio, cuja ira com frequência precisava ser restringida pela intervenção de outros deuses. Herion declara, também que os instrumentos da ira de Deus incluem elementos naturais (Is 30:30; Jl 1), doenças e enfermidades (Nm 11:33; 1Sm 6:4), fome e pestilência (Ez 5:13-17; 7:15), cataclismos de proporções aparentemente sobrenaturais (Gn 6:17; 19:24) e as nações (Is 10:5-19; Jr 10;25; 25:7-14; 50 e 51; Ez 25; Na 1).66 64 Ibid., 6:993-994. 65 Ibid., 6:994-995. 66 Ibid., 6:993. 21 Na mesma obra e sob o mesmo verbete, Stephen H. Travis, inicia analisando o tema sob o prisma do NT, declarando que a ira de Deus aparece especialmente nos escritos de Paulo e no Apocalipse. Então, passa a tratar da mesma, de modo sucinto. Alega que no grego clássico há uma tendência para thumos representar a emoção interna da ira, enquanto orgē aponta para sua expressão externa, mas que a LXX usa as duas palavras de modo intercambiável para representar a grande variedade de palavras hebraicas usadas para expressar a ira – o que foi seguido no NT, embora Paulo prefira usar o termo orgē e o Apocalipse, a expressão thumos (14:19; 15:1, 7), ou ambas juntas (14;10; 16:19; 19:15).67 Depois de efetuar uma análise das 18 referências à ira nos escritos de Paulo, o autor conclui que: (1) a ira ocorre dentro da história e no juízo final. Hoje ela é revelada (Rm 1:18-32) quando as pessoas sofrem as conseqüências de suas próprias escolhas erradas. (2) Paulo não pensa na ira como algo impessoal. Ela se origina claramente em Deus (1Ts 5:9; Rm 3:5; 9:22; 12:19). (3) A ira de Deus representa não tanto um sentimento como uma ação de Deus: seu julgamento sobre o pecado. (4) A ira de Deus é sempre dirigida aos que não crêem, de acordo com sua “perversão e impiedade” (Rm 1:18). (5) A ira de Deus é expressa como uma condição espiritual de alienação de Deus (Rm 1:24, 26, 28), quando Deus permite que experimentem as consequências de sua recusa de viver um relacionamento com ele. (6) A ira de Deus deve ser compreendida em relação ao seu amor. A ira não é um atributo permanente de Deus, enquanto que o amor e a santidade são parte essencial de sua natureza. Se não houvesse pecado não haveria ira. É o amor de Deus que 67 Stephen H. Travis, “Wrath of God”, ABD, 6:996. 22 provê a propiciação e a justificação. (7) Há uma escatologia apocalíptica judaica e ela trata do dia final da ira.68 Segundo Travis, no Apocalipse, João vê a ira como um fenômeno escatológico que, todavia, já lança suas sombras na experiência da história com a intenção de induzir as pessoas ao arrependimento (Ap 9:20; 16:9). A ira do Cordeiro, por sua vez, é a ira de alguém que em si mesmo experimentou a alienação de Deus de modo que aqueles que nele crêem podem ser livrados dela.69 B. T. Dahlberg, sob o verbete “Wrath of God”, em The Interpreter’s Dictionary of the Bible, possui um comentário bastante semelhante ao de Herion e também ao de Travis, quando este analisa as palavras gregas para ira no NT. Há, contudo, em acréscimo, um breve comentário sobre a relação de Cristo com a ira divina, onde ele demonstra como Cristo também se indignava e discorria sobra a ira em seus ensinos, e o apresenta como alvo desta mesma ira e, finalmente, como o agente de Deus para manifestá-la na destruição dos ímpios.70 D. Martin Lloyd-Jones, em God’s Way of Reconciliation, ressalta a necessidade da pregação sobre a ira de Deus. Partindo da constatação de que esta doutrina, na atualidade, não é apenas impopular, mas também odiada e detestada, ele a define tanto como a manifestação de indignação baseada na justiça, como o outro lado do amor de Deus, quando este é rejeitado. Ele assevera que é impossível crer no AT e no NT sem aceitá-la 68 Ibid., 997. 69 Ibid. 70 B. T. Dahlberg, “Wrath of God”, The Interpreter’s Dictionary of the Bible, ed. George Arthur Buttrick (Nashville, TN: Abington Press, 1962), 4:903-908. 23 como uma realidade, e menciona como João Batista, o próprio Cristo, João, o apóstolo do amor, e também Paulo a ensinaram. O autor ressalta que, para Paulo, não havia nenhum evangelho à parte da ira de Deus, antes, é justamente por causa dela que o evangelho precisa ser pregado. Pelo nascimento todo ser humano é filho da ira. Ele não se torna, mas é. Ele nasce neste mundo sob a ira de Deus e permanece sob ela até que creia no Senhor Jesus Cristo.71 Em outro de seus livros, Darkness and Light, Lloyd-Jones argumenta que a idéia de pecado e da responsabilidade que o acompanha está desaparecendo da sociedade, como também a idéia de punição. Todavia, não é possível crer na Bíblia sem crer na ira de Deus, a qual aparece na Bíblia do início ao fim, tendo sido ensinada e pregada por patriarcas, reis, profetas, Cristo e os apóstolos.72 Ele define a ira de Deus como sua atitude diante do pecado e do mal, seu desprazer ao pecado, seu firme ódio contra ele e sua declarada determinação de punir o pecado. Quanto ao tempo em que ela ocorre, o autor diz que ela vem no presente e que virá no futuro. No presente, ela já começa a se manifestar no próprio instante em que se comete um ato de pecado, pois a consciência acusa e o sentimento de remorso já é uma manifestação da ira de Deus. Depois, há o sofrimento físico que o pecado causa. Quando o homem cometeu o primeiro pecado, a terra foi amaldiçoada por Deus. Isso foi parte da ira de Deus, e continua sendo. 71 D. Martin Lloyd-Jones, God’s Way of Reconciliation, 8ª ed. (Grand Rapids, MI: Baker Book House, 1989), 50-56. 72 Idem, Darkness and Light, 4a ed. (Grand Rapids, MI: Baker Book House, 1988), 354-360. 24 Além disso, há o sofrimento mental, a infelicidade. Quando o mundo não ouve os apelos do evangelho, Deus o abandona, retira a si mesmo, e o mundo vem para um terrível estado. Lloyd-Jones afirma, ainda, que as duas guerras mundiais foram punições de Deus e que o mundo é hoje do jeito que é, porque tem pecado e porque Deus está punindo seu pecado. Mas a ira de Deus também será revelada no futuro, na segunda vinda e no fim do mundo, no julgamento.73 Ainda, o mesmo autor, em Romans: Atonement and Justification, discorre sobre os vários aspectos dos fenômenos da expiação e propiciação. Ao comentar sobre Rm 3:25, afirma que este é um dos mais importantes versos das Escrituras e, embora apresente a posição dos que defendem a idéia de que hilastērion significa “assento da misericórdia”, sugere que a melhor tradução é “propiciação” ou “sacrifício expiatório” porque nesta epístola Paulo não usa nada do cerimonial levítico e seria estranho introduzir o elemento “assento da misericórdia”, sem acrescentar qualquer explicação. Além disso, em nenhum lugar da Bíblia Jesus é figurado como “assento da misericórdia”, enquanto que em várias passagens ele é referido como propiciação ou expiação. Assim, parece melhor traduzir por “meio de propiciação” ou “sacrifício propiciatório”, o que transmite a idéia de apaziguar, aplacar, evitar a ira. Sendo assim, na cruz, Cristo apaziguou, aplacou, a ira de Deus.74 Ao ponderar sobre a expiação, ele a apresenta como necessária, pelo motivo de que não pode haver verdadeiro relacionamento entre Deus e o homem enquanto houver pecado. Quanto à morte sacrifical dos animais no AT, assevera que: (1) seu propósito era tornar Deus propício, eles não afetavam as pessoas, mas a Deus; (2) a propiciação era assegurada pela expiação ou o cancelamento da culpa do pecador; (3) a propiciação foi efetuada pela punição vicária da vítima que substituía o ofensor e para ele; e (4) o efeito das ofertas de sacrifício era o perdão do ofensor e sua restauração ao favor e à amizade de Deus.75 73 Ibid., 360-364. 74 Idem, Romans: Atonement and Justification (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1971), 65-70. 75 Ibid., 76-77, 88-89. 25 Todavia, os muitos sacrifícios do AT não podiam tratar com o pecado em profundidade e adequadamente. Eles apenas apontavam, como figuras, para aquele sacrifício que viria e que poderia limpar a consciência e reconciliar o homem com Deus. Assim, os santos do AT não foram perdoados por causa daqueles sacrifícios que eles ofereceram. Foram perdoados porque eles olharam para Cristo. Eles não o viram claramente, mas creram no ensino da Palavra de Deus, que o prometera, e fizeram suas oferendas pela fé, e foi esta fé em Cristo que os salvou, como ocorre hoje conosco. De fato, a morte de Cristo na cruz pagou estes pecados passados. Mas fez mais do que isso. Tratou com pecados presentes e futuros. Com todos, de uma vez por todas (1Jo 2:2). A cruz declara que Deus nos perdoa, mas faz mais do que isto. Ela nos fala sobre o caráter de Deus, mostra-nos que Deus é amor e justiça ao mesmo tempo.76 Millard J. Erickson, em sua obra Christian Theology, trata dos atributos divinos da santidade, justiça e amor em suas diferentes dimensões. Ele discorre sobre a tensão que o pecado causou entre eles e como operam juntos,77 e o que é necessário compreender para se entender o tema da ira divina. Sua justiça ressalta a administração de sua lei, que não mostra favoritismo nem imparcialidade, embora, às vezes não pareça ser justa, pois quem vive em pecado nem sempre é punido e os justos com freqüência parecem não ser recompensados. Todavia, a justiça de Deus não deve ser avaliada no curto espaço de uma vida, uma vez que, aqui, ela é frequentemente incompleta ou imperfeita. É no escopo da eternidade que a justiça de Deus será completa.78 O amor de Deus pode ser visto no que ele tem feito (Jo 3;16; 1Jo 4:10; Rm 5:8) e suas dimensões básicas são benevolência, graça, misericórdia e persistência. Desse modo, Deus é benevolente para com toda a humanidade e não só para com os crentes (Mt 5:4; At 76 Ibid., 102-106. 77 Millard J. Erickson, Christian Theology, 7a. ed. (Grand Rapids, MI: Baker Book House, 1989), 288-298. 78 Ibid., 288-289. 26 14:17); sua graça implica em que ele age conosco não na base de nossos méritos ou valor, mas de acordo com nossas necessidades e que nos supre com favores que não merecemos. A misericórdia é sua compaixão manifestada para com quem é miserável e necessitado e a longanimidade o retrata como refreando o julgamento e continuando a oferecer salvação e graça por longos períodos de tempo (Êx 34:6; Sl 86:15; Rm 2:4; 9:22; 1Pe 3:20; 2Pe 3:15).79 Portanto, enquanto que a justiça requer que haja o pagamento da penalidade do pecado, o amor deseja que o homem seja restaurado à amizade com Deus. Por meio de Jesus, como expiação pelo pecado, ambos são mantidos, de modo que não há, em realidade, nenhuma tensão entre eles. A tensão só existe quando se pensa que o amor requer que Deus perdoe sem qualquer pagamento.80 Erickson também analisa as teorias da expiação: (1) teoria segundo a qual o sacrifício de Cristo nos serve de exemplo; (2) teoria da influência moral – a expiação como uma demonstração de amor de Deus; (3) teoria governamental – a expiação como uma demonstração da justiça divina; (4) teoria do resgate – a expiação como vitória sobre as forças do mal e o pecado; e (5) teoria da satisfação – a expiação como compensação para o Pai. Embora ele defenda a última teoria e argumente sobre os pontos negativos das outras, reconhece que cada uma delas possui aspectos positivos.81 Quanto à propiciação, o autor defende o conceito do apaziguamento da ira de Deus e cita outros eruditos, que possuem o mesmo pensamento, tais como George Ladd, John 79 Ibid., 294-296. 80 Ibid., 298. 81 Ibid., 783-799. 27 Murray e Roger Nicole. Compreende que a ideia de Paulo não é que a morte de Cristo apenas cobre pecados e purifica da corrupção (expiação), mas que, também, apazigua a Deus o qual odeia o pecado e é radicalmente oposto a ele (propiciação). A propiciação foi provida por um divino Pai de amor (1Jo 4:10) e não desmerece o amor de Deus, antes mostra quão grande ele é.82 J. F. MacArthur, no Comentario MacArthur del Nuevo Testamento: Romanos 1-8, analisando o ensino de Paulo sobre o Evangelho, afirma que ele se empenhava para que os pecadores compreendessem o que significa estar sob a ira de Deus, antes de oferecer-lhes o modo de escapar dela. Essa abordagem do assunto tinha um sentido tanto lógico como teológico, pois uma pessoa não pode apreciar o perdão de Deus e a salvação do pecado senão souber que está condenada por causa dele.83 Discorrendo sobre Rm 1:18, MacArthur apresenta seis aspectos que caracterizam a ira de Deus: (1) Seu caráter. Ela provém do próprio Deus e, por isso não é como a cólera humana, manchada e destorcida pelo pecado, antes, é sempre e completamente justa. (2) O tempo. A ira de Deus está sendo revelada continuamente e se manifesta todo tempo, atingindo o máximo ao ser derramada sobre seu próprio Filho na cruz do Calvário. (3) A fonte. A ira é enviada do céu, de onde se manifesta constante e dinamicamente no mundo dos homens, o que acontece mediante sua ordem moral, quando o homem colhe o mal que semeou, e através de sua intervenção direta e pessoal. O autor então comenta as principais palavras empregadas no AT para descrever a ira divina, as quais transmitem a idéia de um caráter altamente pessoal. (4) O alcance. A ira de Deus é universal porque alcança a todos (Rm 3:9, 23), inclusive a pessoa mais integra e decente, 82 83 Ibid., 810-818. J. F. MacArthur, Comentario MacArthur del Nuevo Testamento: Romanos 1-8 (Grand Rapids: Editorial Portavoz, 2001), 89-92. 28 porque mesmo esta se encontra longe de alcançar a justiça perfeita estabelecida por Deus. (5) A natureza. Ela é sempre uma reação divina voltada para o pecado, seja este na forma de impiedade ou de injustiça. (6) A causa. É o pecado, a disposição para seguir o pecado, resistir a Deus e se opor à sua verdade (Jo 3:19; Sl 7:11).84 Ele discorre a respeito da longanimidade de Deus para com a humanidade e a apresenta como uma espécie de trégua divina temporária que adia o envio da ira. Isso ocorre porque ele “não quer que ninguém pereça, mas que todos cheguem ao arrependimento” (2Pe 3:9). O autor argumenta, também, sobre as respostas que o homem pode dar a Deus: por um lado a fé salvadora e, por outro, a dureza de coração que, por recusar, com obstinação e sem arrependimento o perdão que Deus oferece em Cristo, se constitui no pior de todos os pecados (ver Mc 3:5; 6:52; 8:17; Jo 12:40; Hb 3:8, 15; 4:7).85 Joseph S. Exell, em The Biblical Illustrator, discute sobre a ira em sua relação com outros atributos divinos e demonstra as diferenças entre esta e a ira humana. Ele argumenta que a ira divina é sempre direcionada contra o pecado e que o escape só é possível mediante Cristo. Arrazoando sobre o papel de Cristo como executor da ira divina, acrescenta que, se Cristo retratasse somente os atributos pacíficos de Deus, ele não seria a representação de Deus, mas apenas meia manifestação. Portanto, é necessário que ele manifeste também a ira, justiça e indignação de Deus.86 Neste estudo foram encontrados dois estudiosos adventistas do sétimo dia que escreveram sobre a ira de Deus de um modo mais extenso. Um deles foi Ron du Preez, em uma monografia contendo três capítulos e 60 páginas, que foi apresentada como parte de seu programa doutoral no Seventh-day Adventist Theological Seminary. Seu primeiro 84 Ibid., 92-98, 129-131. 85 Ibid., 151-153; 255-262. 86 Joseph S. Exell, “Revelation”, The Biblical Illustrator (Grand Rapids, MI: Backer Book House, s. d.), 23:1-787. 29 capítulo mostra como a doutrina da ira de Deus tem encontrado forte oposição e sido negligenciada, e as objeções levantadas contra ela, mas também sua importância, devido, especialmente, a sua íntima conexão com o amor de Deus. O segundo capítulo, depois de uma breve discussão sobre os atributos de Deus, examina, de modo resumido, o conceito de justiça e da ira de Deus nos escritos de destacados teólogos que crêem que a ira de Deus é uma doutrina bíblica. Primeiramente é apresentado o ponto de vista de quatro líderes cristãos do passado: Agostinho, Tomás de Aquino, Lutero e Calvino; e, depois, de quatro eruditos mais recentes, cuja compreensão é bem mais ampla que a daqueles: Augustus H. Strong, Louis Berkhof, Paul Tillich e Karl Barth. Então, o último capítulo, considera a doutrina bíblica da ira de Deus, expondo o pensamento do AT, do NT e de Paulo, e uma análise do texto de Rm 1:18, considerado como o “locus” bíblico da ira de Deus.87 O outro autor adventista foi John C. Brunt, que tratou do tema ao comentar Rm 1:18-3:20, como parte da série The Abundant Life Bible Amplifier. Ali, Brunt apresenta quatro aspectos da ira divina: (1) sua revelação, que é presente e futura. Presente, no sentido da possibilidade de fazer o mal e de colher suas conseqüências e, futura, porque haverá um julgamento divino para pôr fim ao pecado. (2) Seu resultado: o aumento progressivo da maldade e da imoralidade e, por fim, a destruição daqueles que se apegaram 87 Ron du Preez, “A Systematic Study of the Doctrine of the Wrath of God”, paper for the course “Seminar in Systematic Theology”, Seventh-day Adventist Theological Seminary, Andrews University, Berrien Springs, MI, December of 1986, 1-60. 30 ao mal. (3) Sua razão: o pecado humano. (4) Sua imparcialidade: ninguém escapa dela, em razão que todos pecaram.88 O autor também discorre sobre expressões forenses empregadas por Paulo, as quais devem ser entendidas no contexto dos conceitos bíblicos e não segundo o pensamento ocidental atual. Desse modo, um indivíduo que ocupasse a função de juiz, estava muito mais envolvido com as pessoas a quem ele servia do que na atualidade. Ele devia se empenhar para corrigir as coisas e defender os oprimidos. Também, justificação era mais do que uma declaração, pois expressava uma dimensão relacional vinculada à aliança entre Deus e seu povo e possuía desdobramentos éticos e sociais.89 Como pôde ser visto, embora muitos eruditos cristãos, especialmente do passado, tenham tratado do tema da ira divina, suas abordagens foram bastante parciais, abrangendo uns poucos aspectos, frequentemente em razão de que seu tema principal era outro. Ficou evidente, também, que foram poucos aqueles que se aventuraram a discorrer sobre o tema de um modo mais abrangente. Metodologia A investigação segue uma metodologia bíblica teológica com vistas a um aproveitamento na homilética. Busca compreender o tema da ira de Deus seguindo uma abordagem cristã conservadora, sistematiza as informações e oferece uma série de esboços de sermões. 88 John C. Brunt, Roman: Mercy for All, The Abundant Life Bible Amplifier (Boise, ID: Pacific Press, 1996), 52-54. 89 Ibid., 83-86. 31 Organização do Estudo O estudo apresenta quatro capítulos. Após a Introdução, o primeiro trata do significado da ira de Deus. Partindo de uma discussão linguística que procura esclarecer o uso de antropomorfismo e antropopatia, segue com o estudo das palavras hebraicas e gregas empregadas nas Escrituras para descrevê-la e, depois, relaciona-a com outros atributos morais de Deus e a compara e contrasta com a ira dos deuses pagãos e com a ira humana, demonstrando desse modo, sua natureza. O segundo capítulo expõe a realidade da ira divina a partir da perspectiva bíblica da manifestação de Deus na história e na escatologia, apontando suas causas e efeitos, bem como seus variados propósitos e os instrumentos que Deus utiliza para manifestá-la. O terceiro capítulo, também partindo da perspectiva bíblica, focaliza a relação entre Cristo e a ira de Deus desde os dias da eternidade até a execução dos ímpios por ocasião do juízo final. Apresenta-o como o fiador do homem diante da ira divina, por ocasião da entrada do pecado neste mundo, mas também como aquele que, ao viver entre os homens, a possuiu – em certa medida – e a sofreu em nosso lugar e em nosso favor, para libertar-nos dela e que, ao final, a executará sobre todos que desprezaram seu amor. São destacadas suas obras de expiação, propiciação e intercessão. O capítulo ainda aponta o caminho a ser seguido por quem quer livrar-se dessa ira. O quarto capítulo traz uma proposta homilética que consiste numa série sugestiva de esboços de sermões, cujo conteúdo está baseado nos capítulos precedentes desta investigação, e que pretende servir de modelo de conteúdo e abordagem no âmbito da pregação sobre a ira de Deus. Finalmente, serão apresentados o Resumo, Conclusões e Sugestões para novos estudos. CAPÍTULO I O SIGNIFICADO DA IRA DE DEUS O tema da ira divina deve ser compreendido a partir do estudo das palavras empregadas pelos escritores bíblicos e do uso que fizeram da antropopatia e de expressões antropomórficas. Também é necessário um exame de outros atributos morais de Deus que estão diretamente relacionados, a fim de se perceber como eles se harmonizam na personalidade divina. Além disso, porque a expressão “ira de Deus” quase sempre nos leva a pensar nos aspectos negativos da ira humana e da ira dos deuses, conforme aparece na mitologia pagã, também é imprescindível que se efetue tal comparação com a necessária profundidade. Discussão Lingüística Para que a revelação aconteça, Deus precisa usar palavras humanas em acomodação às exigências do pensamento humano, e ele faz isso empregando antropomorfismo e antropopatia. O Uso de Antropomorfismo e Antropopatia O antropomorfismo é um modo de expressão do pensamento em que as características de Deus são afirmadas em termos de elementos humanos, e frequentemente 32 33 se referem ao corpo humano e as suas várias propriedades.1 O uso destes antropomorfismos não significa que Deus tenha os membros mencionados, mas que ele é capaz de fazer aquelas coisas que o corpo humano faz (Sl 94:9).2 A antropopatia, por sua vez, consiste na atribuição de sentimentos humanos à divindade.3 Deste modo, a atribuição da ira a Deus constitui uma antropopatia e representa uma parte essencial da concepção bíblica de Deus enquanto ser dotado de forte personalidade. Deve ser entendida no contexto de suas motivações e dos outros traços pessoais a ele atribuídos4 e não significa, necessariamente, com precisão, o mesmo que quando aplicada ao homem. A natureza do sentimento precisa ser julgada pelo caráter da pessoa. Os Termos Hebraicos para Ira No AT são empregadas basicamente dez palavras hebraicas para indicar a presença da ira de Deus – sendo que em sua maior parte, os verbos são cognatos com os respectivos 1 Como exemplos, citamos: a face (Êx 33:11, 20); o ouvido (Is 59:1); os olhos (2Cr 16:9); as narinas (2Sm 22:9, 16); a boca (2Sm 22:9; Is 58:14); os lábios (Sl 17:4; Is 30:27); a língua (Is 30:27); os lombos (Is 11:5); os rins (Is 11:5); os braços (Dt 33:27); a mão (Is 59:1; Jo 10:29); pés (Is 66:1). 2 Lewis Sperry Chafer, Teologia sistemática, 8 vols., traduzido por Heber Carlos de Campos (São Paulo: Hagnos, 2003), 2:208; Albert Barnes, “The Epistle of Paul the Apostle to the Romans”, Barnes’ Notes on the New Testament, 2a. ed. (Grand Rapids, MI: Kregel Publications, 1963), 551. Desde o AT, o perigo que antropopatismos fortes demais apagassem os limites entre Deus e o homem era afastado pelo forte senso de distância que o fiel sentia em relação a Deus e também pelo profundo discernimento da natureza da divina ira que ele sabia claramente diferenciar da raiva humana, a qual tem suas raízes no prepotente ego do homem. B. J. Fichtner, “Orgē: The Wrath of God in the LXX”, Theological Dictionary of the New Testament, traduzido por Geoffrey W. Bromiley, 10 vols. (Grand Rapids, MI: Eerdmans, reimpressão 1984), 5:397; Diccionario de la Biblia, ed. 1981, ver “Ira” e “Ira de Dios”. 3 Exemplos: amar (Dt 7:8, 13); odiar (Dt 12:31; Sl 45:7; Ml 2:16; Ap 2:6); entristecer-se (Ef 4:30); Alegrar-se (Dt 28:63; Is 62:5); ter ciúmes (Ez 16:42; Tg 4:5); indignar-se (Dt 1:34, 37; 4:21; Sl 78:59); ficar aborrecido (Dt 5:9; Am 5:21); ter zelo (Êx 20:5; Dt 5:9); encolerizar-se (Sl 78:49; 90:11; Ap 14:10, 19; 15:1, 7; 16:1). 4 Dicionário bíblico, ed. 1984, ver “Ira”; W. White Jr., “Wrath”, The Zondervan Pictorial Encyclopedia of the Bible, ed. Merrill C. Tenney (Grand Rapids, MI: Zondervan, reimpressão 1986), 5:990991. 34 substantivos. Elas advêm de diversas formações e possuem uma grande variedade de nuances. Apesar disso nem uma delas foi utilizada para enunciar um significado teológico especial. O uso múltiplo destas palavras dentro de um mesmo verso ou perícope demonstra que elas possuem significado paralelo.5 Estas dez palavras aparecem 714x no AT para referir-se explicitamente à ira, sendo que cerca de 70% (518x) se referem à ira de Deus e o restante (196x), à ira humana.6 Na sequência, elas são apresentadas de acordo com sua freqüência, seguindo uma ordem decrescente. ’Ânaph, ’Aph O verbo ’ânaph tem o significado de “irritar-se, indignar-se, encolerizar-se, enfurecer-se; estar irado”.7 Claramente se percebe que possui uma associação com “resfolegar”, “bufar”.8 O substantivo ’aph (II) significa “nariz, olfato, ira”,9 e também rosto 5 Bruce Edward Baloian, Anger in the Old Testament, América University Studies, Series VII, Theology and Religion, v. 99 (New York: Peter Lang, 1992), 5. As obras que são citadas a seguir empregam diferentes padrões de transliteração. Optamos por um. Todavia, quando uma obra além do verbete hebraico, apresenta sua transliteração, nós a mencionamos nas notas de rodapé e na bibliografia. 6 Ibid.; B. Wiklander, “zâ‘am, za‘am”, Theological Dictionary of the Old Testament, 14 vols., traduzido por John T. Willis (Grand Rapids, MI: Eerdmans, reimpressão 1983), 4:110; DB, ver “Ira” e “Ira de Dios”. Para a terminologia da ira no AT ver também White Jr., 5:990-991; B. T. Dahlberg, “Wrath of God”, The Interpreter’s Dictionary of the Bible, ed. George Arthur Buttrick, 4 vols. (Nashville, TN: Abington Press, 1962), 4:904; Bruce Edward Baloian, New International Dictionary of Old Testament Theology and Exegesis, ed. Willem A. Vangemeren, 5 vols. (Carlisle, U. K.: Paternoster Press, 1997), 4:377, 380. Além disso, há as metáforas e as referências indiretas. Ibid., 4:380. 7 Luis Alonso Schökel, Dicionário bíblico hebraico-português, traduzido por Ivo Storniolo e José Bortolini (São Paulo: Paulus, 1997), ver “’ânaph”. Ver também Gale B. Struthers, “’np” NIDOTT, 1:462; Gerard Van Groningen, “’ânep”, Theological Wordbook of the Old Testament, ed. R. Lair Harris, 2 vols (Chicago: Moody Press, reimpressão, 1981), 1:58. 8 Baloian, Anger in the Old Testament, 6; Lund Elsie Johnson, “’anaph, ’aph (za‘am, za‘aph, chemah, charah, ‘abhar, qatsaph, raghaz): Words for ‘Anger’ in the O. T.”, TDOT, 1:354; Gary A. Herion, “Wrath of God”, The Anchor Bible Dictionary (New York: Doubleday, 1992), 6:990. 9 DBHP, ed. 1997, ver “’aph”. 35 e narinas.10 “Do sentido físico passa a designar ira, cólera, aborrecimento, coragem, raiva, fúria, irritação, indignação, despeito, sanha”.11 ’Ânaph é a palavra mais freqüente no AT para expressar a ideia de ira. O verbo ocorre 14x, sempre tendo a Deus como sujeito (exceto em Sl 2:12, onde o sujeito é o rei como filho de Deus).12 Primeiro designa o nariz (Pv 11:22), logo seu tremor e seu ressoar (Gn 30:2; Êx 4:14), e, a partir daí, a causa deles, a ira (Jó 4:9).13 Seu principal uso diz respeito ao aspecto emocional da ira porque, devido às alterações na respiração que esta provoca em quem a possui, o nariz fica dilatado.14 O substantivo ’aph é derivado do verbo e é a mais comum designação para ira encontrada no AT. Das 277 ocorrências, 224 se referem à ira e as 53 restantes, ao nariz, narinas e rosto.15 O substantivo pode ser encontrado no singular, ’aph, ou na forma dual ’apphayim, sendo que ambos podem transmitir a idéia de ira, tanto a humana (40x) quanto a divina (170x).16 Em duas passagens (Jó 4:9 e Sl 18:15) as duas formas são sobrepostas e 10 Struthers, 1:462; Groningen, 1:58; AOT, 6. 11 DBHP, 71. 12 Johnson, 1:354; idem, “’ānap – estar enojado, ira”, Diccionario teológico del Antiguo Testamento, eds. Johannes Botterwick e Helmer Ringgren, traduzido por Alfonso de la Fuente Adanez e José Luis Zubizarreta, 2 vols. ( Madrid: Ediciones Cristiandad, 1978),1:376; Struthers, 1:462; Grether, E. O. e B. J. Fichtner, “Orgē: The Wrath of Men and the Wrath of God in the Old Testament”, TDNT, 5:392. 13 H.- Chr. Hahn, “Ira”, Hahn, Diccionario teológico del Nuevo Testamento, 2ª ed., eds. Mario Sala e Araceli Herrera, traduzido por Manuel Balash e outros (Salamanca: Ediciones Sigueme, 1980), 2:358. 14 Gerard Van Groningen, “’ap – narina, face, ira”, Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento, organizado por R. Laird Harris, traduzido por Márcio Loureiro Redondo e outros (São Paulo: Vida Nova, 1998), 97.; R. Michaud, “Ira”, Vocabulário bíblico, ed. Jean-Jacques Von Allmen (São Paulo: ASTE, 2001), 257-258. 15 Struthers, 1:462; AOT, 6; Herion, 6:990. 16 Johnson, DTAT, 2:376; idem, TDOT, 1:354. 36 em ambos os contextos é evidente que a respiração das narinas do Senhor é uma expressão de sua ira.17 No AT existe uma clara relação entre a ira e o fôlego (Êx 15:8; Sl 18:16: Jó 4:9),18 e o nariz é mencionado mais como órgão da ira do que do cheiro.19 Por isso, o nariz é considerado como o assento da ira (Ez 38;18; Sl 18:8).20 Algumas passagens trazem a idéia da respiração agitada pela ira,21 de um intenso estado emocional, em que as paixões se elevam e o rosto fica corado. Quando a forma substantivada é empregada para os homens, pode indicar uma ira irracional e descontrolada (cf. Nm 22:27; 1Sm 20:30), todavia, geralmente refere-se à ira de Deus, que, é tanto racional como controlada.22 Este grupo de palavras é usado particularmente para expressar a atitude de ira que Deus tem para com o povo do concerto quando eles pecam (Dt 1:37; 9:8, 20),23 e significa que seu amor, que foi ferido ou ofendido, tem como resposta emocional a ira (Dt 13:1217),24 que se expressa em punições (Sl 6:1; Is 12:1) e castigos (2Sm 6:7; Jr 4:6). De fato, ’aph pode ser empregado num contexto forense referindo-se ao dia da sentença condenatória (Is 13:13; Sf 2:2; Lm 2:22), à revogação da condenação (Dt 13:1718; cf. Nm 25:4), ao instrumento de execução (Is 10:5), à correção, não condenação (Jr 17 Struthers, 1:462-463. 18 Johnson, DTAT, 2:374. 19 Grether e Fichtner, 5:392. 20 Herion, 6:990. 21 Johnson, DTAT, 2:376. 22 Struthers, 1:463. 23 Groningen, 1:58. 24 Struthers, 1:464. 37 10:24), ou à justiça vindicativa (Mq 5:15).25 Há ocasiões em que é possível desviar a ira de Deus (2Cr 29:10) e outras em que ela não pode ser posta de lado (cf. Jr 23:20). No episódio do bezerro de ouro (Êx 32), por exemplo, aparece cinco vezes o substantivo ’aph para retratar o quanto Deus estava furioso com seu povo, a tal ponto de intentar aniquilá-los. Entretanto, Moisés pleiteou para que Deus tornasse de sua fúria e manifestasse compaixão. Outro aspecto da ira de Deus é revelado nos livros poéticos: ela dura apenas um momento (Sl 30:5 ou 6) e é frequentemente restringida (Sl 78:38), porque o Senhor é compassivo, gracioso, tardio para se irar e abundante em seu amor e fidelidade (Sl 86:15; cf. 103:8; 145:8).26 Chêmâh O substantivo chêmâh tem os significados de “ira, cólera, arrebatamento, fúria, furor, iracúndia, irritação, indignação, raiva, sanha, vesânia, coragem; veneno, peçonha, tóxico”,27 calor e desprazer intenso.28 Chêmâh é a segunda palavra mais usada para “ira” no AT.29 Ocorre 125x,30 sendo que 90x se referem à ira de Deus.31 Por ser derivada de yâcham,32 “estar quente”, tem uma conotação incendiária33 e pode transmitir a idéia tanto de um calor físico como a febre, quanto de um ardor 25 DBHP, ed. 1997, ver “’aph”. 26 Struthers, 1:464. 27 DBHP, ed. 1997, ver “chêmâh”. 28 G. Van Groningen, “yāham– estar quente”, DITAT, 611; Struthers, “hêmâ”, NIDOTT, 2:170-171. 29 Ibid.; Johnson, “chêmâh”, DTAT, 2:375, 377; idem, “chêmâh”, TDOT, 1: 354. 30 Struthers, “hêmâ”, 2:170-171. 31 Johnson, TDOT, 1: 354; idem, DTAT, 2:377-378; Herion, 6:990. 32 Este verbo é usado no AT apenas no piel, significando “estar no cio” ou “conceber” – Groningen, DITAT, 611. 38 emocional em diversos níveis, sendo empregada para a raiva e a ira, tanto do homem como de Deus (Gn 27:44; Pv 21:14).34 Quando usada no sentido de ira, ressalta sua “manifestação de calor, ardor, afogueamento”.35 Seguidamente se refere à ira de Deus como “fogo” (Sl 89:46; Jr 4:4; 21:12; Lm 2:4; Na 1:6), ou como “sendo acesa” (2Rs 22:13, 17), mas também pode ser usada com o significado de derramar-se como água (Os 5:10) e com ambas estas imagens (Is 42: 25; Jr 7:20; 44:6).36 Além de ser empregada como um referência ao “excitamento” do espírito (Ez 3:14),37 pode ser usada também em relação à “quentura” do vinho (Hc 2:15; Jó 36:16-18; Os 7:5), ao “veneno” de serpentes (Dt 32:24; Jó 6:4; Sl 58:4; 140:3) e às flechas envenenadas (Jó 6:4) – pois se presume que o “calor” corporal seja produzido pela ira, pelo veneno ou pelo vinho.38 Ainda é empregada como sinônimo de “repreensão” (Is 51:20 e 66:15) e aparece em expressões que se referem a algum “castigo” (Ez 5:15 e Sl 6:1 e 38:1).39 Seu uso primário no AT é para referir-se à ira de Deus, indicando seu ardor ou furor (Nm 25:11; Dt 9:19; Ez 36:6; Na 1:2, 6) que, pelo menos em certas circunstâncias, se 33 Johnson, TDOT, 1: 354-355; idem, DTAT, 2:375; Herion, 6:990; Baloian, Anger in the Old Testament, 6. 34 Groningen, DITAT, 612. 35 DBHP, ed. 1997, ver “chêmâh”. 36 Johnson, TDOT, 1: 352, 354-355; idem, DTAT, 2:377-378; Baloian, Anger in the Old Testament, 6. 37 Chêmâh é usada 25x para designar o excitamento ou ira humana, o que pode ser visto especialmente em Provérbios, Ester e em textos exílicos e pós-exílicos em geral. Ela pode ocorrer em indivíduos, grupos ou nações e surge como um sentimento quando alguém é ofendido, insultado ou enganado por outrem, ou quando há inveja ou a compreensão de que a conduta de alguém tem sido errada. K.-D. Schunck, “chemah”, TDOT, 4:463; Hahn, 2:358; Groningen, DITAT, 612; Herion, 6:990; Johnson, DTAT, 2:375; Baloian, Anger in the Old Testament, 6. 38 Grether e Fichtner, 5:392; Johnson, TDOT, 1:352; idem, DTAT, 2:375. 39 Johnson, TDOT, 1: 354; idem, DTAT, 2:375. 39 extinguiria somente depois que fosse derramado por meio de um juízo (2 Rs 22:13-17; Jr 42:18).40 Pode ter o aspecto judicial de condenação (Dt 9:9; 2Rs 22:13; Is 63:3; Jr 32:37).41 No período pré-exílico é voltada principalmente contra o povo de Deus (2 Rs 22:13; Sl 89:46; Jr 4:4).42 Sua maior frequência aparece em Ezequiel (33x) e Jeremias (17x), que atuaram na época em que findavam os dias de Judá como nação e iniciavam os anos do cativeiro babilônico, justamente quando a paciência de Deus com seu povo chegou ao limite. Um exame dos escritos desses homens demonstra que chêmâh tem a conotação de uma emoção mais forte do que aquela expressa por ’ap (quando ’ap é usada sem modificadores), uma emoção tão intensa que resulta em julgamento (Jr 4:4; cf. 21:12; 23:19 cf 30:23; Ez 5:5-13).43 Nos períodos exílico e pós-exílico a ira divina é direcionada especialmente contra as nações estrangeiras (Is 34:2; Ez 25:11, 17; Mq 5:15), mas também contra pecadores individuais de Israel.44 Chârâh, chârôn A raiz verbal chrh transmite a ideia de queimar, arder, estar inflamado ou aceso (de ira); estar irado com.45 É a segunda raiz mais comum empregada para denotar ira: 139x.46 O verbo chârâh – que aparece 93x no AT47 – provindo da experiência fisiológica do calor 40 Schunck, TDOT, 4:464. 41 DBHP, ed. 1997, ver “chêmâh”. 42 Schunck, TDOT, 4:464. 43 Struthers, NIDOTTE, 2:170-171. 44 Schunck, “chemah”, TDOT, 4:464. 45 Jerome F. D. Creach, “hrh”, NIDOTTE, 2:265; D. N. Freedman e J. R. Lundbom, “chârâ, chârôn, chorî”, TDOT, 5:171; Leon J. Wood, “harâ – queimar, estar aceso”, DITAT, 529; Baloian, Anger in the Old Testament, 7. 46 Wood, 529-530. Baloian menciona 136x. Baloian, Anger in the Old Testament, 7. 47 Creach, 2:265-266; Freedman e Lundbom, 5:171. 40 facial, que é um sintoma da ira, é empregado sempre para significar ira,48 sendo que na maioria das ocorrências a referência é à ira de Deus.49 Chârâh transmite a ideia de “irar-se, encolerizar-se, indignar-se, enojar-se, enraivecer-se, enfadar-se, incomodar-se (Gn 4:5; Nm 16:15; Nm 3:33).50 O sentido da raiz difere de outros termos que designam “ira” porque enfatiza o “acender” a ira, como se acende um fogo, ou o “insuflar” a ira quando ela já se encontra presente (Gn 31:36; 39:19; Nm 11:1).51 O substantivo chârôn significa incêndio,52 e é empregado 41x, sempre com relação à ira de Deus.53 Quando é usado com ’aph, e isto ocorre 35x, a referência é ao ímpeto ou ardor da ira divina. Outro substantivo, chôrî, que tem o mesmo sentido de chârôn, é usado apenas seis vezes, sendo duas para Deus.54 Quando empregados em relação a Deus, tanto o verbo como o substantivo sempre expressam a noção de uma ira legítima, como a de um suserano contra um vassalo desobediente. Em quase todos os casos, o objeto dessa ira é Israel e ela é acesa por causa de sua infidelidade ao constante amor de Deus: a desobediência às estipulações da aliança (ver Js 7:1; 23:16; Jz 2:20), ou a procura por outros deuses (Dt 6:14-15; 11:16-17; 31:16-17), ou a transgressão dos mandamentos (Is 5:24-25; cf Os 8:5).55 48 DBHP, ed. 1997, ver “chârâh”. 49 Freedman e Lundbom, 5:171-175; Johnson, “chârâh”, TDOT , 1:355. 50 DBHP, ed. 1997, ver “chârâh”. 51 Wood, 529-530. 52 DBHP, ed. 1997, ver “chârôn”; Creach, 2:266; Herion, 6:990. 53 Ibid.; Johnson, TDOT, 1:353; Wood, DITAT, 530. 54 Ibid. 55 Creach, 2:266-267; Freedman e Lundbom, 5:174; Herion, 6:990. 41 Também é digno de nota que nos livros proféticos a ira de Deus parece maior do que nos dias de Moisés, o que pode ser visto, por exemplo, em Jr 4. Isso ocorre porque essa ira aumenta à medida que Israel persevera em sua apostasia. Em razão disso, o substantivo chârôn é mais empregado nos últimos livros do AT.56 Kâ‘as, ka‘as O verbo kâ‘as tem o sentido de “irritar-se, enfadar-se, enfurecer-se, desgostar-se”; provocar; enfadar, desgostar, indignar, enfastiar, importunar; incitar, impacientar, encolerizar, fazer perder a calma.57 Denota uma ação interna, que, geralmente, não tem um objeto. Transmite a ideia de irritar ou provocar alguém de maneira que ele não se contenha e reaja.58 O AT o emprega 54x, sendo 43x para Deus e 11x para os homens.59 As outras palavras para ira raramente se conectam com ka‘as. Algumas vezes aparece como uma idéia paralela de “ter ciúmes, ter zelos” (Dt 32:16, 21; Sl 78:58-59).60 O substantivo ka‘as significa “raiva, despeito, irritabilidade, ira, cólera; desgosto, irritação, sofrimento, aflição; provocação”.61 É empregado 23x,62 sendo que oito delas para referir-se à divina “irritação” (1Re 15:30; 21:22; Jó 10:17).63 É o mais introspectivo dos 56 Struthers, “’np”, NIDOTTE, 1:464-465. 57 DBHP, ed. 1997, ver “kâ‘as”. 58 Groningen, “ka’as – estar irritado, indignado, irado, enfurecido, magoado, desgostoso; provocar à ira”, DITAT, 740; Creach, “k‘s”, NIDOTT, 2:684. 59 Baloian, Anger in the Old Testament, 7; Johnson, “kâ‘as”, DTAT, 1:378; idem, “kâ‘as”, TDOT, 60 Ibid., 1:353, 355. 61 DBHP, ed. 1997, ver “ka‘as”. 62 Creach, “k‘s”, NIDOTT, 2:684; Johnson, “kâ‘as”, DTAT, 1:378. 63 Ibid.; Herion, 6:990-991. 1:355. 42 termos para ira.64 Na maioria dos casos designa o sentimento que vem como resultado de um tratamento injusto e, assim, deve ser traduzida preferencialmente por “desgosto” ou “mágoa” antes que por “ira” (ex.: Jó 17:7; Sl 6:7; 31:9-10; Ec 7:3).65 Em alguns casos excepcionais, quando usado no sentido de “irar-se”, é dirigida contra os homens (Jó 10:17; 2Cr 16:10; Sl 85:5).66 Deus é, frequentemente, o objeto do verbo, o que transmite a ideia de que alguém enfureceu a divindade. A razão primária para essa indignação é a adoração de outros ídolos por parte de Israel (1Rs 14:9, 15; 2Rs 22:17), o que evidencia que a exclusiva reivindicação de Deus sobre Israel foi ignorada.67 Quando o povo da aliança, a quem ele escolheu para comunhão e serviço, é infiel, Deus, por causa de seu amor e santidade, fica profundamente magoado e irritado. E quando essa provocação persiste, pode chegar ao ponto de que sua ira contra eles só se aplaque após o envio de seus juízos (ver 2Rs 21:1-26; 23:26), que são a expressão do amor divino que se defende e remove aquilo que lhe irrita e entristece.68 Portanto, quando usado em relação a Deus, esses termos demonstram que o homem, por meio do pecado e da rebeldia, pode irritá-lo, magoá-lo e entristecê-lo (Dt 4:25; 9:1-8),69 todavia a irritação não é um atributo permanente de Deus (Ez 16:42).70 64 Baloian, Anger in the Old Testament, 7. 65 Ibid.; Creach, “k‘s”, NIDOTT, 2:684; Johnson, “kâ‘as”, DTAT, 1:376, 378; idem, “kâ‘as”, TDOT, 1:353-355. 66 Idem, TDOT , 1:353; idem, DTAT, 1:376. 67 Idem, 1:378; Creach, “k‘s”, NIDOTTE, 2:684-685. 68 Groningen, “ka’as – estar irritado, indignado, irado, enfurecido, magoado, desgostoso; provocar à ira”, DITAT, 741. 69 Ibid., 740-741. 70 Ibid., 740. 43 Qâtsaph, qêtseph O verbo qâtsaph significa “irar-se, encolerizar-se, irritar-se, indignar-se, enfurecerse, enfadar-se, zangar-se”;71 “sentir ira, cólera, etc.; estar irado, irritado”;72 “irritar, provocar, aborrecer”.73 É possível que tenha o sentido básico de “brotar”, “irromper”, do qual evoluiu para ter o sentido de “encolerizar-se”, “estar furioso”.74 Com o significado de estar irado, ocorre 34x, tendo 29x o Senhor como sujeito.75 Qâtsaph é empregado para dar expressão ao relacionamento interpessoal quando uma das partes sente ira, por causa do que a outra disse ou fez.76 O substantivo qetseph I denota “ira, enfado, zanga, irritação, indignação, fúria, raiva, cólera, sanha, furor”,77 aborrecimento, desprazer.78 Ocorre 28x e, com exceção de Ec 5:17 e Et 1:18, é usado nas outras 26x para referir-se à ira de Deus (Dt 29:27; Jr 10:10).79 Com frequência se trata de um sentimento repentino, violento e que rapidamente se desfaz. Isso pode ser visto nos episódios em que Faraó se encolerizou pela infidelidade de seus servos (Gn 40:2; 41:10); Moisés, pela desobediência do povo (Êx 16:20) e porque os filhos de Arão não observaram corretamente o ritual do santuário (Lv 10:16); Naamã, contra 71 DBHP, ed. 1997, ver “qâtsaph”. 72 Ibid., 587. 73 Ibid., 587; Struthers, “qsp”, NIDOTTE, 3:962; F. V. Reiterer, “qasap; qesep”, TDOT, 13:89. 74 Grether e Fichtner, 5:392. 75 Struthers, “qsp”, NIDOTTE, 3:962-963. 76 Groningen, “qatsap – estar descontente, estar irado, exaltar-se”, DITAT, 1360; idem, “qâsap I – estar descontente, irado; aborrecer-se”, TWOT, 2:808. 77 DBHP, ed. 1997, ver “qetseph”. 78 Reiterer, “qāsap; qesep”, TDOT, 13:89; Struthers, “qsp”, NIDOTTE, 3:962. 79 Ibid.; Herion, 6:990-991; Grether e Fichtner, 5:392; Baloian, Anger in the Old Testament, 7. 44 Eliseu (2Re 5:11). Qetseph é utilizado também para Deus (Lv 10:6; Nm 16:22; Ec 5:5; Lm 5:22; etc.)80 e aparece intercambiavelmente com outras palavras para ira.81 Qetseph pode ser descrito como uma dramática manifestação do desagrado de Deus, que, apesar disso, não pretende destruir (Sl 38:1-4).82 Aparece em textos que salientam que a ira divina é transitória (Is 57:16) e que será superada pela graça e a misericórdia (Is 54:8).83 Todavia, algumas passagens expressam mais claramente o tratamento de destruição inerente a qêtseph (ver Nm 31:14-18; Dt 1:34). A raiz qtsp pode ter consequências que afetam outras pessoas além daquelas que provocaram a ira de Deus (Lv 10:6; Sl 106:32) e assume uma particular intensidade quando associada com nações estrangeiras (Jr 10:10; Zc 1:12-17).84 A qetseph atua para proteger a santidade e o amor de Deus (aos quais está indissoluvelmente ligada) e aqueles que são objetos desse amor. Ela se manifesta quando seu amor é profanado, distorcido ou rejeitado85 e, podendo operar de diversas maneiras, seu propósito é “restringir o mal, corrigir o pecador e castigar o rebelde endurecido e obstinado”.86 A frase qêtseph gâdol ocorre seis vezes (Dt 29:27; 2Rs 3:27; Jr 21:5; 32:37; Zc 1:15; 7:12) e indica grande ira, sendo uma advertência quanto às consequências da apostasia e do abandono da aliança do Senhor.87 80 G. Sauer, “Ira”, Diccionario teológico manual del Antiguo Testamento, ed. Ernst Jenni, traduzido por Rufino Godoy (Madrid: Ediciones Cristiandad, 1985), 2:837. 81 Baloian, Anger in the Old Testament, 7; Struthers, “qsp”, NIDOTTE, 3:963. 82 Ibid., 13:94. Para uma exposição das origens e usos de qêtseph ver Sauer, 2:835-839. 83 Ibid., 2:837-838. 84 Reiterer, 13:92-95; Sauer, 2:837. 85 Groningen, “qatsap – estar descontente, estar irado, exaltar-se”, DITAT, 1361. 86 Ibid.; idem, “qâsap I – estar descontente, irado; aborrecer-se”, TWOD, 2:808. 87 Struthers, “qsp”, NIDOTTE, 3:962-963. 45 Bâ‘ar, ‘ebhrah O verbo ‘br II ocorre oito vezes e tem uma etimologia incerta.88 De fato, as palavras com as consoantes b‘r apresentam um quadro muito confuso com relação à etimologia e significado. Há pelo menos três diferentes raízes contendo estas consoantes: a primeira significa “queimar”; a segunda, “exterminar”, “alimentar ou apascentar”; e a terceira, “ser estúpido”, que deriva de ba‘îr, “besta, gado”.89 Com o significado de “queimar”, “arder”, bâ‘ar aparece, primeiramente, em descrições de teofanias (Êx 3:2ss.; Dt 4:11; 5:23; 9:15; 2Sm 22:13; Sl 18:8) e, em segundo lugar, freqüentemente é encontrada revelando o poder abrasador da ira de Deus (Is 30:27 e 33), que pode ser de tal intensidade, em situações extremas, que ninguém possa apagá-lo antes que ele cumpra seu propósito (Jr 4:4; 7:20; 21:12; Ml 4:1). Em terceiro lugar, é usada como “fogo”, o qual é retratado como instrumento de Deus para punir os ímpios (Nm 11:1; Is 1:31; 10:17; Sl 106:18).90 Com o significado de “exterminar”, bâ‘ar aparece em diversas passagens que apresentam o destino de pessoas que cometeram atrocidades (2Sm 4:11; 1Re 14:10 e 21:21). Há também um grupo de leis em Deuteronômio, que apresenta a punição caracterizada pelas palavras “eliminarás o mal do meio de ti” (Dt 21:18-21; ver também 88 Idem, “‘br”, NIDOTTE, 3:316. Para um estudo mais aprofundado sobre este verbo: DBHP, ed. 1997, ver “‘br II”. 89 Ringgren, “b‘r, ba‘ar, bā‘îr”, TDOT, 2:201. Obviamente, apenas as duas primeiras raízes são pertinentes a esta investigação. Para um estudo mais aprofundado dessas raízes: DBHP, ed. 1997, ver “bâ‘ar” 90 Ringgren, 2:201-202; Schunck, “‘ebrâ; ‘abar”, TDOT, 10:426; Johnson, “bâ‘ar”, DTAT, 2: 378. 46 19:11-13; 22:22; 24:7), significando que deve ocorrer a purificação da tribo ou da nação, de modo que o mal seja rejeitado.91 O substantivo ‘Ebhrah significa “cólera, fúria, furor, indignação, paixão, arrogância”.92 Derivado da raiz verbal ‘br, que tem a conotação de “passar”, “transpor” e “transbordar”, ‘ebhrah traz a idéia de “transpor os limites permitidos”, de algo insuperável ou excessivo e pode significar uma vasta gama de sentimentos, desde orgulho e arrogância até o de ira destruidora.93 Ocorre 34x no AT, sendo que em 30 delas a idéia é a de ira (seis vezes se referem à ira do homem – ex.: Gn 49:7; Sl 7:6 – e 24x se referem à fúria divina – ex.: Ez 22:21, 31; 38;19; Os 13:11; Hc 3:8 e).94 A expressão “‘ebhrah de Deus” é sempre compreendida como a reação divina ao comportamento humano inapropriado e salienta a impetuosidade de sua ira (ver Dt 3:26; Sl 78:21, 49; Is 9:19; Ez 22:1), que transborda, queima e consome aquilo que a causou.95 É usada nas expressões “fogo do meu furor”, que ocorre quatro vezes (Ez 21:31; 22:21, 31; 38:19) e “dia da ira”, mencionada cinco vezes (Ez 7:19; Sf 1:15, 18; Jó 21:30; Pv 11:4).96 Conforme a descrição de Sf 1:15-18, este dia surge como uma consequência do pecado 91 Ringgren, 2:203-204. Enquanto que karath (separar) é usado para expressar a punição, ba‘ar vem após o anúncio da punição. Karath é utilizado para expressar a ideia de excomunhão, enquanto que ba‘ar traz a idéia de purificação da comunidade (ver Jz 20:13; 1Re 22:47; 2Re 23:24; 2Cr 19:3). Ibid. 92 DBHP, ed. 1997, ver “bâ‘ar”. 93 Johnson, “‘ebhrah”, TDOT , 1:353; idem, “‘ebhrah, DTAT”, 2:376; Groningen, ‘ebrâ – ira, raiva, indignação”, DITAT, 1073; Baloian, Anger in the Old Testament, 7. Para uma melhor compreensão das origens e do uso de ‘ebhrah, ver Sauer, 2:267 a 270. 94 Struthers, “‘br”, NIDOTTE, 3:316; Herion, 6:990-991; Grether e Fichtner, 5:392; Johnson, ‘ebhrah, DTAT, 2:378. 95 Ibid.; idem, “‘ebhrah”, TDOT , 1:355; Schunck, “‘ebrâ, ‘abar”, TDOT, 10:426, 429; Herion, 6:990; Grether e Fichtner, 5:392; Groningen, “‘ebrâ – ira, raiva, indignação”, DITAT, 1073; Struthers, “‘br”, NIDOTTE, 3:317. 96 Johnson, ‘ebhrah, TDOT , 1:355; Schunck, “‘ebrâ, ‘abar”, TDOT, 10:428. 47 humano (1:17) e a palavra ‘ebhrah (1:18), neste caso, aponta para a natureza esmagadora da ira de Deus contra o pecado, da qual as pessoas não podem ser libertas.97 Râgaz, Rôgez Nas línguas semíticas, as raízes com as consoantes rgz expressam a ideia de “movimento”, de “tremer” e tem o principal significado de “estar irado”.98 O verbo râgaz significa “tremer, vibrar; estremecer-se, agitar-se; irritar-se, brigar; temer”; “agitar, sacudir, cirandar; estremecer, inquietar, desassossegar”; “revolver-se”;99 perturbar, agitar, mover, excitar; fazer estremecer, ativar.100 Ocorre 41x ao longo do AT e, fundamentalmente, expressa a idéia de movimento físico. Assim, tremem, a terra (1Sm 14:15; Jl 2:10), os fundamentos dos céus (2Sm 22:8), os montes (Is 5:25), as ondas (Sl 77:17).101 Todavia, seu significado tem se expandido além de seu limite original e é capaz de expressar idéias de rebelião, medo, perturbação, raiva e excitação (Êx 15:14; 2Sm 19:1).102 Quando râgaz é usado com um sujeito animado, denota primariamente um fenômeno somático, uma agitação crescente, derivada de uma profunda emoção, que em Ez 12:18 aparece como “tremor”103 e que só pode ser identificada pelo contexto.104 Desse modo, pode-se tremer de alegria (Jr 33:9) ou de medo (Êx 15:14) e só esporadicamente se aplica à 97 Struthers, “‘br”, NIDOTTE, 3:316-317. 98 G. Vanoni, “rāgaz; rōgez; rogzâ; raggaz, ’argaz”, TDOT, 13:304. 99 DBHP, ed. 1997, ver “râgaz”. 100 M. V. Van Pelt e W. C. Kaiser, Jr., “rgz”, NIDOTTE, 3:1045; Andrew Bowling, “râgaz”, TWOD, 101 DBHP, ed. 1997, ver “râgaz”. 102 Ibid.; Pelt e Kaiser, 3:1045; Bowling, 2:830. 103 Vanoni, 13:306; Bowling, 2:831. 104 Bowling, “râgaz – tremer, estremecer-se, irar-se”, DITAT, 1397. 2:830. 48 ira (Jó 12:6; 37:2; 2Re 19:27-28; Hc 3:2).105 Na verdade, râgaz é uma das palavras mais raramente usadas para denotar a ira no AT, onde ocorre apenas sete vezes.106 O substantivo rôgez traz a ideia de tremor, trepidação; agitação, inquietação, sobressalto, susto,107 excitação, perturbação.108 É empregado nove vezes: oito na forma masculina, a qual pode aparecer para expressar o tipo de ira furiosa que com frequência é acompanhada por estremecimento (Hc 3:2; Dn 3:13); e uma vez na forma feminina, usada no sentido de medo ou ansiedade (Ez 12:18).109 Nos oito textos em que Deus é associado com râgaz, sempre há uma revelação de seu poder (Jó 9:5-6; Is 28:21; Hc 3:2; etc.).110 Esse verbo é empregado para referir-se àquelas situações em que Deus treme de indignação ou ira, porque é provocado.111 Desse modo, Is 28:21 mostra Deus levantando-se ou agitando-se para a batalha.112 O substantivo rôgez é empregado para referir-se a agitações externas, como o estremecimento da terra, que é um tema comum no AT. Nesse caso, a ira de Deus é tipicamente descrita como a razão para tal estremecimento (1Sm 14:15; 2Sm 22:8; Sl 18:7; Am 8:8). Juntamente com a terra – montanhas, céus, nações, reinos e seus habitantes – também estremecem diante da ira de Deus (1Sm 13:13; Is 5:25; 23:11; 64:2). Estremecimento semelhante pode ocorrer em uma teofania (Jr 33:9) e acontecerá no grande 105 Johnson, “râgaz”, DTAT, 2:376; idem, “râgaz”, TDOT, 1:353. 106 Baloian, Anger in the Old Testament, 7. 107 DBHP, ed. 1997, ver “rôgez”. 108 Bowling, “rôgez”, TWOD, 2:830; Pelt e Kaiser, “rôgez”, NIDOTTE, 3:1045. 109 Ibid., 3:1046. 110 Vanoni, 13:304-308. 111 Bowling, “râgaz – tremer, estremecer-se, irar-se”, DITAT, 1397-1398; idem, rôgez, TWOD, 2:831. 112 Pelt e Kaiser, “rôgez”, 3:1045. 49 e terrível dia do Senhor (Jl 2:1, 10).113 Todavia, rôgez é empregado apenas uma vez para expressar a ira de Deus (Hc 3:2).114 Zâ‘am, Za‘am O verbo zâ‘am traz a ideia de “estar irritado; descarregar a cólera”,115 expressar indignação, denunciar,116 repreender, reprovar117 e tem a conotação primária de amaldiçoar (Nm 23:7; Pv 24:24).118 É empregado para indicar tanto a condição de estar indignado como a atividade que dá expressão a esse estado,119 mas sua ideia básica é a de expressar indignação especialmente na forma de denúncia.120 Zâ‘am pode ser usado para retratar uma atitude de ruptura, de inimizade (Zc 1:12; Ml 1:4); para manifestar indignação contra alguém (Pv 24:24), seja através de um pronunciamento de maldição (Nm 23:7), seja descarregando sua cólera (Dn 11:30); para referir-se à indignação do juiz (Sl 7:11).121 Aparece apenas 12x122 sendo que em sete delas a referência é à ira divina e a um claro aspecto de juízo.123 Parece ter sido parte de uma 113 Ibid. 114 Bowling, “râgaz – tremer, estremecer-se, irar-se”, DITAT, 1398. 115 DBHP, ed. 1997, ver “zâ‘am”. 116 Wood, “zâ‘am”, TWOD, 1:247; idem, “zâ‘am – estar indignado, mostrar indignação, denunciar”, DITAT, 400. 117 Grether e Fichtner, 5:393. 118 Ibid.; Baloian, Anger in the Old Testament, 6; Johnson, “zâ‘am”, DTAT, 1:374-375. 119 DBHP, ed. 1997, ver “zâ‘am”; Wood, “zâ‘am – estar indignado, mostrar indignação, denunciar”, DITAT, 400; idem , zâ‘am”, TWOD, 1:247. 120 Idem. 121 DBHP, ed. 1997, ver “zâ‘am”. 122 Wood, “zâ‘am”, TWOD, 1:247; idem, “zâ‘am – estar indignado, mostrar indignação, denunciar”, DITAT, 400; Johnson, “zâ‘am”, TDOT, 1:354; Grether e Fichtner, 5:393. 123 B. Wiklander, “zâ‘am, za‘am”, TDOT, 4:108-109; Wood, “zâ‘am”, TWOD, 1:247; idem, “zâ‘am – estar indignado, mostrar indignação, denunciar”, DITAT, 400. 50 fórmula de maldição que posteriormente veio a significar a condição emocional por detrás da maldição (Is 30:27).124 O substantivo za‘am é traduzido por “cólera, indignação, irritação, ira, furor, fúria, raiva”.125 Significa a paixão, mas especialmente a sua manifestação ativa (Jr 15:17; Na 1:6; Sl 38:3; 102:10; Dn 8:19; 11:36),126 e denota raiva expressa em palavras de repreensão (ver Is 30:27).127 Na maioria das 22x em que ocorre, a referência é à ira de Deus (ex.: Sl 102:10; Is 10:5; 66:14-15; Jr 10:10; Ez 22:31).128 Nos textos apocalípticos tem o significado especial de “tempo da ira” (Is 26:20; Dn 8:19; 11:76).129 A za‘am de Deus é expressa em dor e sofrimento (Sl 38:1-3; Jr 15:17), cativeiro e exílio (Lm 2:6; Zc 1:12), seca (Ez 21:31-32; 22:24, 31), trovão, fogo e fumaça (Is 30:2730), terremoto (Na 1:5; Hc 3:12), pragas no Egito (Sl 78:49) a opressão de Israel por nações estrangeiras (Is 10:5, 25; Jr 50:25);130 e em várias teofanias proféticas de juízo. Ela é parte de um tríplice esquema: (1) o relato de uma teofania, envolvendo catástrofe na natureza e terminologia de ira, frequentemente associado com fogo abrasador (Is 30:27-28; Na 1:2-6; Hc 3:3-12; Sf 3:8); (2) julgamento das nações (Is 30:28-33; Na 1:8-11; Hc 3:12-13; Sf 3:8); 124 Johnson, “zâ‘am”, TDOT, 1:352. 125 Wood, “za‘am”, TWOD, 1:247; DBHP, ed. 1997, ver “za‘am”. 126 Ibid. 127 Grether e Fichtner, 5:393. 128 Wood, “za‘am”, TWOD, 1:247; idem, “zâ‘am – estar indignado, mostrar indignação, denunciar”, DITAT, 400; Johnson, “za‘am”, TDOT, 1:354; Herion, 6:990-991; Baloian, Anger in the Old Testament, 6; Johnson, “za‘am”, DTAT, 1:377. 129 Ibid. 130 Wiklander, 4:108-110. 51 e (3) palavras de salvação para o próprio povo do profeta, a quem é prometido livramento da za‘am (Is 30:19-26, 29; Na 1:7, 12ss.; Hc 3:13; Sf 3:9-20).131 Zâ‘aph, Za‘aph, Zâ‘êph e Zal‘âphâh O verbo zâ‘aph tem a conotação fundamental de estar agitado,132 mas também significa estar turbado, abatido,133 triste, irado,134 indignar-se, irritar-se.135 Os substantivos derivados são za‘aph (sete vezes), za‘eph (duas vezes) e zal‘âphâh (3 vezes).136 O substantivo za‘aph significa “cólera, fúria”,137 ataque, indignação,138 furor.139 Ao que tudo indica za‘aph evoluiu da ideia inicial de “agitação”, para “ira”.140 É empregado em relação com os fenômenos naturais (Jn 1:15 – o furor do mar; Sl 11:6 – o torvelinho); a agitação do espírito humano (o que ocorre seis vezes, com a ideia de “aflição” ou “abatimento” – ver Gn 40:6; Dn 1:10141 – e forte indignação – 1Re 20:43; 21:4; 2Cr 16:10; 26:19);142 e a ira Deus (duas vezes – Is 30:30; Mq 7:9).143 Portanto, za‘aph é uma palavra raramente empregada, e quando aparece, é utilizada mais em paralelo com 131 Ibid., 4:108-109. 132 Herion, 6:991. 133 Groningen, “zā’ap – estar perturbado, turbado, abatido”, DITAT, 400. 134 Groningen, “zâ‘ap”, TWOD, 1:247. 135 DBHP, ed. 1997, ver “zâ‘aph”. 136 Johnson, “zâ‘aph”, TDOT, 1:354. 137 DBHP, ed. 1997, ver “za‘aph”. 138 Groningen, “za‘ap”, TWOD, 1:247. 139 Idem, “zâ’ap – estar perturbado, turbado, abatido”, DITAT, 401. 140 Johnson, “za‘aph”, TDOT, 1:352; Baloian, Anger in the Old Testament, 6. 141 Johnson, “za‘aph”, TDOT, 1:352; idem, “za‘aph”, DTAT, 1:375. 142 Ibid., 1:377; Ringgren, “zâ‘aph, zâ‘eph, za‘aph”, TDOT, 4:111-112. 143 Ibid., 111; Groningen, , “za‘ap”, TWOD, 1:248; Groningen, “zâ’ap – estar perturbado, turbado, abatido”, DITAT, 401; Herion, 6:991. 52 termos como “desgosto” ou “descontentamento” (Gn 40:6ss.; 1Re 20:43; 21:4) do que “ira” (2Cr 16:10).144 Com base em Mq 7:9 pode-se dizer que a ira de Deus é sua reação ao pecado de seu povo e, todavia, ela não perdurará para sempre, antes será substituída pela restauradora graça de Deus.145 Rûach O significado mais básico do rûach é “ar em movimento”,146 “vento, vendaval, lufada, brisa, aragem; ar; direção”; “alento, hálito; alento vital, alma, espírito; respiração, fôlego, ofego; sopro, assopro”,147 mas também é variadamente definido como transitoriedade, volição, disposição, temperamento, espírito, Espírito.148 Pode designar a ira como uma paixão pertinente à esfera do espírito.149 Este substantivo ocorre 387x no AT,150 mas em apenas seis passagens é traduzido por ira (Jz 8:3; Pv 16:32; 29:11; Is 25:4; 30:28; Zc 6:8), sendo que em duas delas retrata a ira de Deus.151 Uma possibilidade é que seu uso para a ira derive da observação feita de que a ira é acompanhada de uma excitação que causa uma respiração ofegante, um movimento forte e rápido de ar, uma bufada através das 144 Baloian, Anger in the Old Testament, 6; Johnson, “za‘aph”, TDOT, 1:352, 354; idem, “za‘aph”, DTAT, 1:377. 145 Ringgren, “zâ‘aph, zâ‘eph, za‘aph”, TDOT, 4:111-112; ver também Herion, 6:991. 146 M. V. Van Pelt, W. C. Kaiser, Jr. e D. I. Block, “rûach”, NIDOTTE, 3:1073; J. Barton Payne, “rûach”, TWOD, 2:836; idem, “rûach – vento, sopro, mente, espírito”, DITAT, 1407. 147 DBHP, ed. 1997, ver “rûach”. 148 Pelt, Kaiser e Block, 3:1073. 149 DBHP, ed. 1997, ver “rûach”. 150 Payne, DITAT, 1407. 151 Baloian, Anger in the Old Testament, 7. 53 narinas.152 Quando aplicado a Deus, rûach, no sentido de ira, o retrata como um Ser dotado de forte emoção.153 Os Termos Gregos para Ira Enquanto que o AT possui uma grande variedade de expressões para retratar o conceito de ira, o NT emprega apenas duas palavras, orgē e thumos.154 Em etimologia e significado, orgē e thumos são originalmente distintos. Na língua grega o processo psíquico, a que chamamos de ira, estava originalmente diferenciado. Thumos Thumos significa originalmente “o que se encontra em movimento, em ebulição” e, a partir daí, também aquilo que causa estes efeitos. Pode tratar-se tanto de um movimento externo como de uma emoção interna (do sentimento, do coração). No grego profano, nos estágios mais antigos da língua, thumos significa “força vital, anelo, ânimo e ira” e, mais tarde apenas “ânimo, cólera e ira”.155 No grego secular envolve uma graduação de 152 Idem; Johnson, “rûach”, DTAT, 1:376; idem, “ruach”, TDOT, 1:353; Payne, “rûach”, TWOD, 2:836; Payne, “rûach – vento, sopro, mente, espírito”, DITAT, 1407; Heinz-Josef. Fabry, “rûach”, TDOT, 13:376. 153 Baloian, Anger in the Old Testament, 7. Além disso, simbolicamente, a expressão “o sopro das narinas de Deus”, que é uma provável referência ao vento, é empregada para descrever a força de seu poder no julgamento (Jó 4:9; cf. Êx 15:8; 2Sm 23:16; Sl 18:15 ; Is 30:28; 33:11; 40:7). O mesmo ocorre com a expressão “sopro de seus lábios”, em Is 11:4 – Pelt, Kaiser e Block, 3:1074. Também, em numerosas ocasiões o AT se refere ao “vento oriental” (Êx 10:13), o vento quente, escaldante, do deserto, o qual é tipicamente associado ao julgamento, à punição ou à ira de Deus (Sl 48:7; Jr 18:17; Ez 17:10; Os 13;15; Jr 4:8), mas que também, em contrapartida, pode trazer alívio e livramento (Êx 10:19). Idem, 3:1073-1074. 154 155 Os termos gregos para ira são explicados em Dahlberg, 4:904. H. Schönweiss, “Ira”, Diccionario teológico del Nuevo Testamento, 2ª ed., eds. Mario Sala e Araceli Herrera, traduzido por Manuel Balash e outros (Salamanca: Ediciones Sigueme, 1980), 2:357; R. F. Büchsel, “Thymós”, Theological Dictionary of the New Testament, ed. Gerhard Kittel, traduzido por Geoffrey W. Bromiley, 10 vols. (Grand Rapids, MI: Eerdmans, reimpressão 1984), 3:167; H. W. Hollander, “Thumós”, Exegetical Dictionary of the New Testament, ed. Horst Balz e Gerhard Schneider, 2 vols. (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1991), 2:159-160. Na antiguidade clássica era usado com o sentido de “pródiga expressão da seiva e vigor”, “crescimento impulsivo e agitado” na natureza, um “impulso natural” de homem ou de animal. O 54 significados: desejo, impulso, paixão, coragem, disposição, reflexão. Posteriormente foi usado por escritores como Platão, Tucídides e outros, significando, coragem, raiva e ira.156 Thumos tem sido usado no sentido de paixão, desejo, impulso, inclinação, espírito, raiva, ira, fúria, sensibilidade, disposição, mente, pensamento, consideração. Tanto a literatura judaica como os escritos do NT fizeram um uso semelhante.157 Aparece umas 200x na LXX 158 e 18 no NT, onde significa mau humor, cólera, sendo cinco vezes em Paulo (Rm 2:8; 2Co 12:20; Gl 5:20; Ef 4:31; Cl 3:8); uma vez em Hb (11: 27); duas vezes em Lucas (Lc 4:28; At 19:28) e dez vezes no Ap (14:8, 10, 19;12:12; 15:1, 7; 16:1, 19; 18:3; 19:15). Em algumas passagens (Lc 4:28; At 19:28) se percebe claramente a idéia original de algo que ferve, como um fluído borbulhante que enche o homem, vai subindo de pressão e acaba por explodir.159 É ira a que se inflama subitamente e logo se apaga, ainda que isto não aconteça em cada caso. Indica uma condição mais agitada do sentimento, uma explosão de ira devido à indignação interna, e pede que chegue à vingança, ainda que não a inclua necessariamente.160 Outras expressões derivadas de thumos, como é o caso do verbo enthumeomai (Mt 1:20), têm o significado básico de “ter em mente”, reflexionar, meditar, pensar; e o substantivo enthumēsis (Mt 9:4; 12:25; At 17:29; Hb 4:12), “o que se encontra na mente, estado impulsivo da natureza humana que contrasta com ethos. M. H. Kleinknecht, “Orgē: Wrath in Classical Antiquity”, TDNT, 5:383. 156 Hollander, 2:159-160. 157 Ibid.; Büchsel, 3:167; H. Schönweiss, “Ira, raiva - Thymós”, Dicionário internacional de teologia do Novo Testamento, traduzido por Gordon Chown, 4 vols. (São Paulo: Vida Nova, 1985), 2:441-442. 158 Ibid.; idem, “Ira”, DTNT, 2:356. 159 Ibid.; idem, “Ira, raiva - Thymós”, DITNT, 2:441-442; Hollander, 2:159-160; Büchsel, 3:168. 160 Diccionario expositivo de palabras del Nuevo Testamento, ed. 1984, ver “Enojar, enojo”; ver também H.- Chr. Hahn, “Ira”, DTNT, 2:357. 55 pensamento”, meditação, reflexão, mas sempre no sentido negativo de um pensamento mau ou néscio.161 Quando thumos é aplicado para Deus, e isso ocorre oito vezes (Rm 2:8; Ap 14:10, 19;15:1, 7; 16:1, 19;19:15), tem sempre um sentido escatológico, uma referência à cólera divina que incidirá, ao final da história humana, sobre o pecador contumaz, aquele que rejeitou muitos chamados para se arrepender e resistiu de maneira definitiva ao amor de Deus,162 e destaca o ardor dessa ira163 que resultará em tribulação e angústia.164 Orgē Diferentemente de thumos, orgē assinala a manifestação externa ativa e ao mesmo tempo o movimento anímico que acompanha esta manifestação: a ira que irrompe.165 Sugere uma condição mais fixa ou permanente da mente, frequentemente com a intenção de vingar-se. Orgē é menos súbita que thumos em seu aparecimento, todavia mais duradoura.166 Traz a ideia de uma indignação que se levanta gradualmente até tornar-se mais estabelecida167 e inclui sempre um elemento de reflexão orientada para algo, por 161 Schönweiss, “Ira”, DTNT, 2:356-357. 162 Morris Aschcraft, “Apocalipse”, Comentário bíblico Broadman, traduzido por Adiel Almeida de Oliveira (Rio de Janeiro: JUERP, 1984), 12:373-374; George Ladd, Apocalipse: Introdução e comentário, 2ª ed. (São Paulo: Vida Nova e mundo Cristão, 1982), 144-146. 163 Fritz Rienecker e Cleon Rogers, Chave linguística do Novo Testamento grego, traduzido por Gordon Chown e Júlio Paulo T. Zabatiero (São Paulo: Vida Nova, 1985), 627. 164 Dale Moody, “Romanos”, Comentário bíblico Broadman, traduzido por Adiel Almeida de Oliveira (Rio de Janeiro: JUERP, 1984), 10:207. 165 Grether e Fichtner, “Orgē: The Wrath of God in the LXX”, TDNT, 5:409; Schönweiss, “Ira”, DTNT, 2:355-356. Orgē significa primeiramente “impulso, modo de sentir”, mas também é usado para designar uma emoção forte, como uma paixão, especialmente a ira, a indignação e a raiva. Em determinado contexto pode significar castigo. Hahn, 2:357. 166 DEPNT, ed., 1984, ver “Enojar, enojo”; ver também Hahn, 2:357; Stephen H. Travis, “Wrath of God”, ABD, 6:996. 167 Donald Grey Barnhouse, Man’s Ruin / God’s Wrath (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1959), 219. 56 exemplo, para a vergonha ou para o castigo.168 Na literatura de tragédia, orgē é sempre vista como protegendo algo que é correto e, na vida política, aparece como uma atitude característica e legítima de um governante que deve vingar a justiça.169 Embora originalmente thumos possuísse a conotação de emoção interna, e orgē fosse empregada para sua manifestação externa, na LXX quase que se perdeu totalmente esta distinção, de modo que ambas traduzem em conjunto e indiscriminadamente os mesmos equivalentes hebreus, sendo empregadas de modo intercambiável.170 O NT parece ter seguido o uso da LXX,171 embora prefira empregar orgē para tratar da ira de Deus, provavelmente porque ele tem poucas conotações de emoção e excesso.172 O significado de orgē pode ser fixado mais precisamente quando se consideram os termos que são colocados em paralelo ou em contraste com ele no NT. Na maioria das passagens, orgē é uma realidade da obra de Deus e seu julgamento e apresenta uma ideia maior do que uma mera emoção: a de uma verdadeira atitude de Deus (Lc 21:22; Rm 2:8-11; 12:19).173 Isso é corroborado por muitos textos pertinentes (Rm 1:18; 9:22; Ap 6:16; etc.) e é percebido mais claramente na citação do AT em Hb 3:11; 4:3.174 168 Schönweiss, “Ira”, DTNT, 2:355. 169 Büchsel, 3:384. 170 Schönweiss, “Ira”, DTNT, 2:355-356; Dahlberg, 4:904; Travis, 6:996; Grether e Fichtner, 5:409; Creach, “hrh”, NIDOTTE, 2:267. 171 Dahlberg, 4:904; Schönweiss, “Ira”, DTNT, 2:355. 172 W. Pesch, “Orgē / Wrath”, Exegetical Dictionary of the New Testament, ed. Horst Balz e Gerhard Schneider (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1991), 2:529; Hollander, 160. O mesmo ocorre na literatura do judaísmo posterior à LXX. Ibid. 173 M. G. Stählin, “Orgē: The Wrath of Man and the Wrath of God in the New Testament”, TDNT, 5:422. 174 Ibid., 5:424-425. Há estudiosos que declaram que algumas vezes, mesmo no NT, a ira de Deus parece ser uma força operando independente e separada de Deus, personificada, como um demônio. (A propósito, em quinze das dezoito passagens em que Paulo usa orgê, não há o qualificativo “de Deus”. Algo assim começou já a aparecer no AT. Ver Ed 7:23; Dn 8:19; Is 26:20). Todavia esta ideia não se sustenta, quando se considera a totalidade das informações bíblicas sobre a ira de Deus. Mesmo quando Paulo não 57 Orgē aparece 36x no NT, sendo 12 delas em Romanos. No Apocalipse ela ocorre seis vezes,175 e tem sido vertida por raiva, indignação, ira.176 Pode ser empregada tanto em referência ao homem177 (Cl 3:8; 1Tm 2:8; Tg 1:19) como a Deus. Todavia, quando aplicada a Deus deve ser despojada de tudo que se assemelhe à paixão do homem, especialmente da paixão da vingança.178 Orgē é a atitude de Deus frente ao pecado, não cólera, mas a ira da razão e da lei179 e, por isso, Paulo, ao tratar da ira, prefere usar o termo orgē. Na verdade, ele usa thumos uma vez, em Rm 2:8, onde as duas expressões são combinadas numa citação do AT.180 Como outras palavras do NT, orgē tem uma característica presente e outra escatológica. Quando possui um sentido escatológico aparece como antônimo de zoe aiōnios [vida eterna] (Rm 2:7; cf. v. 5) e peripoiēsis sōtērias [alcançar a salvação] (1Ts 5:9) e é retratada pelas imagens do fogo (Mt 3:10-12), do cálice (Ap 14:10) e do lagar do vinho (Ap 19:15).181 O Apocalipse, por sua vez, prefere usar thumos,182 quase sempre se referindo à ira divina, embora haja duas passagens em que elas apareçam juntas na mesma frase: acrescenta a expressão “de Deus” ao falar da ira, fica absolutamente claro, pelos contextos, que ele está discorrendo sobre a ira de Deus. Ibid., 5:423-424. 175 Pesch, 2:529. 176 Hahn, “Ira, raiva - Orgē”, DITNT, 2:442. 177 Quando diz respeito ao homem, orgē denota aquele intenso apetite ou desejo, pelo qual se busca qualquer coisa, ou um intenso esforço para obtê-la e é particularmente aplicada ao desejo de tomar vingança quando se é injuriado e quando se está enraivecido –Albert Barnes, “Romans”, Notes on the New Testamento: Explanatory and Practical, 11 vols. (Grand Rapids, MI: Baker Book House, reimpressão 1967), 4:38; ibid, Barnes’s Notes on the New Testament, 550-551. 178 Ibid. 179 Archibald Thomas Robertson, Las Epistolas de Pablo, Imágenes Verbales en el Nuevo Testamento (Barcelone: CLIE, 1989), 4:441. 180 Travis, 6:996. Thumos, que possui uma conotação de explosão de paixão, embora bem adaptada para descrever as visões de João no Apocalipse, não servia para delinear o conceito de Paulo sobre a ira de Deus. Stählin, 5:422. 181 Ibid., 5:430. 182 Travis, 6:996; DEPNT, ed., 1984, ver “Enojar, enojo”. 58 “furor [thumos] da sua ira [orgē]” (Ap 16:19) e “do furor [thumós] da ira [orgē] do Deus Todo-Poderoso” (19:15). A Ira de Deus em Relação a Seus Outros Atributos Morais Para a correta compreensão do tema da ira divina é absolutamente necessário relacioná-la a outros atributos morais de Deus, notadamente a santidade, a justiça e o amor. Este último atributo deve ser estudado também em suas várias formas de manifestação, como bondade, misericórdia, graça e longanimidade. A Ira de Deus em Relação a Sua Santidade Uma das palavras mais importantes de todo o AT é qâdôsh, que significa cortar, separar. Sua ideia primária é a de separação. Desse modo, santo é aquilo que é separado, retirado do uso comum, como é o caso de lugares e objetos (em que não há qualquer conotação moral) frequentemente mencionados no AT. No texto do NT, o mesmo conceito aparece na palavra hagios. Quando tais palavras são empregadas para Deus referem-se à relação que há entre ele e alguém ou alguma coisa,183 e podem indicar dois aspectos: a santidade majestosa e a santidade moral. Em primeiro lugar Deus é santo porque é totalmente separado da criação no sentido de que somente ele é Deus, Criador, Eterno e Infinito, enquanto tudo o mais teve começo, é criação, é finito e não possui natureza divina. Em outras palavras, ele é singular, distinto de tudo e de todos, exaltado sobre tudo em sua natureza de infinita majestade (Êx 15:11; 1Sm 183 Heber Carlos de Campos, O ser de Deus e os seus atributos, 2ª ed. (São Paulo: Cultura Cristã, 2002), 323; Louis Berkhof, Teologia sistemática, 2ª ed., traduzido por Odair Olivetti (Campinas: Luz Para o Caminho Publicações, 1992), 75. Toda a religião de AT pode ser caracterizada como uma “religião de santidade.” Walter Eichrodt, Theology of the Old Testament, 2 vols., The Old Testament Library, traduzido por John A. Baker (Philadelphia: The Westminster Press, 1967), 1:270. 59 2:2; Is 57:15). Nesse aspecto, somente Ele pode ser santo.184 Mas há um sentido secundário e ético, o de santidade moral, que indica ser ele absolutamente puro ou bondoso, isento de qualquer deficiência moral ou vestígio do mal, completamente separado do pecado (Jó 34:10; Hc 1:13).185 Isso significa também que Deus é a “perfeição moral e espiritual”,186 “a fonte e o padrão do direito”,187 e, como tal, ama o que é bom e a odeia o que é mau (Êx 3:5; Lv 19:2; Jó 15:15; Sl 22:3; 47:8; 111:9; Is 6:3; 1Jo 1:5; Ap 4:8; 6:10; 15:4),188 opõe-se à impureza e mantém sua excelência moral.189 Porque os atributos divinos estão todos inter-relacionados, quando Deus age, ele não o faz apenas com um atributo, mas com a totalidade de sua excelência moral,190 de modo que cada qualidade esteja unificada e harmonizada com as demais.191 Todavia, de todas elas, há uma que, em virtude tanto da frequência como da ênfase com o qual é usada, ocupa uma posição única de importância: a santidade. Tem sido usada como uma definição da 184 Campos, 323-324; Millard J. Erickson, Christian Theology, 7a. ed. (Grand Rapids, MI: Baker Book House, 1989), 284- 285; Louis Berkhof, Teologia sistemática, 2ª ed., traduzido por Odair Olivetti (Campinas: Luz Para o Caminho Publicações,1992), 75-76. 185 Campos, 323-324; Erickson, 284-285; Berkhof, 76; G. H. Lacy, Introduccion a la teología sistemática, 2ª ed. (S. L.: Casa Bautista de Publicaciones, 1976), 83; Charles Hodge, Teologia sistemática, traduzido por Valter Martins (São Paulo: Hagnos, 2001), 312. “A característica da divindade para os israelitas é a santidade em seu sentido ôntico, de transcendência, e ético, de impecabilidade. Por isso, não concebem a Deus manifestando cegamente sua onipotência, passando por cima dos imperativos de justiça e santidade”. M. García Cordero, “Ira de Dios”, Enciclopedia de la Biblia, 6 vols. (Barcelona: Ediciones Garriga S. A., 1963), 4:212. 186 Jack MacArthur, Expositional Commentary on Revelation (Eugene, Oregon: Certain Sound Publishing House, 1973), 298; DBm, ed. 1984, ver “Ira”; Hodge, 312. 187 Augustus H. Strong, Teologia sistemática, traduzido por Augusto Victorino (São Paulo: Teológica, 2002), 407. 188 Chafer, 226. 189 Strong, 399. 190 Ibid., 440. 191 Thomas O. Oden, The Worl Life, 3 vols. (San Francisco, CA: Harper & Row, 1992), 1:99. 60 natureza de Deus192 e é o atributo divino que qualifica todos os demais,193 mas também condiciona e limita seu exercício. Por essa razão, na punição dos ímpios, a exigência da santidade reprime a defesa do amor aos sofredores.194 Mais do que qualquer outro atributo, a santidade constitui a plenitude gloriosa do ser moral de Deus.195 Por isso, quando vai fazer qualquer juramento, não tendo ninguém mais alto por quem jurar, jura por sua própria santidade (ver Sl 89:34-36; Am 4:2).196 A santidade diz respeito à natureza e ao caráter de Deus. Assim, ao tratar de todas as questões sobre o pecado e sua origem, e o fim dos pecadores, Deus sempre escolhe os métodos e fins que estão em absoluta conformidade com sua santidade. Sua vontade e todas as suas decisões e atividades necessariamente devem estar em harmonia com ela. São santas porque a sua personalidade é santa.197 A santidade moral de Deus pode ser vista em suas obras, em suas leis e na redenção dos pecadores. Deste modo, nada que vem dele é imperfeito, os seres racionais foram criados como santos e também santas são suas leis (Rm 7:12), que proíbem o pecado em todas as suas formas.198 Ela é “a base moral do universo [...] o sol de todo o Seu 192 Eichrodt, 1:270. 193 Campos, 325. Alguns eruditos considerem a santidade como a combinação de todos os seus atributos morais. J. M. Pendleton, Compendio de teología cristiana (El Paso, Texas: Casa Bautista de Publicaciones, 1960), 59; A. B. Langston, Esbôço de teologia sistemática, 4ª ed. (Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1959), 57. Mas há quem pense diferente. Uma vez que nas Escrituras a santidade de Deus não se contrasta com a finitude ou pequenez, mas com a impureza e a pecaminosidade ela não pode se referir ao conjunto das perfeições divinas, antes é distinta dos outros atributos. Strong, 401-402. 194 Ibid., 443. 195 Ibid., 440-441; Langston, 57. 196 Campos, 325. 197 Lacy, 84-85; Langston, 57. 198 Campos, 326-327; Oden, 1:100; chafer, 226; Alfredo Borges Teixeira, Dogmática evangélica (São Paulo: Atena, 1958), 92. 61 sistema”,199 o padrão e o alvo da obrigação moral das criaturas racionais: “Sede santos porque eu sou santo” (1Pe 1:16).200 Dessa forma, “Deus demanda de todos os seres morais uma pureza que corresponda à mesma pureza de Sua natureza”.201 Possivelmente Isaías 6 seja a passagem bíblica que melhor ilustre a santidade de Deus. Este capítulo mostra como a revelação da santidade majestosa levou o profeta ao reconhecimento da santidade moral de Deus e de seu próprio pecado diante dela. Mostra como o pequeno enxergava o grande e como o pecador se via diante da santidade moral de Deus, porque o senso de depravação num homem é determinado pelo senso da santidade de Deus que ele possui.202 As Escrituras nos dizem que “Deus é amor” (1Jo 4:8), mas se for perguntado: amor a que? A resposta é: acima de tudo, amor à santidade.203 Seu amor para com os seres humanos também pode ser expresso como o desejo que ele tem de dar-nos aquilo que ele é – santidade; e de possuir-nos em íntima comunhão com aquilo que ele é: santidade. Desse modo, “tanto o amor insiste na santidade, como a própria santidade de Deus exige santidade no homem. Não pode, pois, haver conflito entre estes dois atributos”.204 De fato, Deus não é somente amor, mas luz moral – e, por isso, “um fogo consumidor” (Hb 12:29) para toda a iniquidade. Embora o amor possa castigar (Jr 10:24; 199 Langston, 60. 200 Strong, 450; Langston, 58. 201 Lacy, 91. “A santidade é o alvo da carreira espiritual do homem” (1Ts 3:13; 5:23). Strong, 451. “Toda manifestação da ira de Deus através da história tem sido um ato santo para preservar a saúde moral do universo, ou seja, sua santidade, demonstrando assim, sua total intolerância pelo que degrada e destrói. Desse modo, “a santidade de Deus, a Sua ira e o bem estar da criação, são coisas inseparáveis”. A. W. Tozer, Mais perto de Deus (São Paulo: Mundo Cristão, 1980), 125. 202 Campos, 335-336. 203 Strong, 451. 204 Langston, 67. É função do amor divino difundir a santidade de Deus. Chafer, 432. 62 Hb 12:6), é a santidade que pune (Ez 28:22).205 Quando posta em operação, atuando judicialmente206 e exigindo pureza das criaturas,207 é chamada de justiça208 e é administrada aos que não se conformam com a santidade de Deus, aos que resistem, aos que se identificam com o pecado, na forma de penas e sofrimentos.209 A conexão da ira de Deus com sua santidade pode ser vista no fato de que a ira divina é constantemente apresentada em expressões e metáforas relacionadas à teofanias (Êx 19; Sl 18; Is 30; Hc 3). Indica a natureza viva e pessoal de Deus210 e é apresentada como uma expressão justa, própria e natural da natureza divina, a qual é absolutamente santa – e que deve ser mantida em todas as circunstâncias e a todo custo – e que ataca todas as forças que a ela se opõe.211 A ira de Deus não é uma vingança maligna e pecaminosa como a nossa, mas uma das perfeições divinas. É o desagrado e a indignação da santidade de Deus em reação contra 205 Ibid., 406. Na Bíblia, os ímpios são castigados pela ira de Deus mas o Seu povo é castigado por Seu amor. No primeiro caso o objetivo é atender às demandas da justiça para cumprir com a santidade. No segundo, visa a correção. Quando Ele envia aflições sobre Seus filhos, estas não são castigos pelo pecado, mas açoites, controlados segundo podemos suportar e para o nosso bem. Lacy, 92. 206 Ibid., 93; Strong, 401. 207 Ibid. 208 Lacy, 84. 209 Ibid., 91; Langston, 61; Chefer, 432. Hahn, “Ira, raiva – Orgē”, DITNT, 2:444. Nas religiões dos outros povos do Oriente Próximo o predicado “santo” era prodigamente aplicado aos objetos, ações e pessoas dos cultos, mas raramente era usado para divindade e quando o era, referia-se meramente a um poder naturalístico ou uma realidade não pessoal. Por contraste, é Deus mesmo que é primariamente designado pelo AT como santo. Assim há a introdução de um elemento pessoal na idéia de santidade. Eichrodt, 1:271-272. 210 211 Fichtner, “Orgē: The Wrath of God in the LXX”, TDNT, 5:407; Williams Evans, “Wrath”, The International Standart Bible Encyclopedia, ed. James Orr (Wilmington, Delawere: Associated Publishers and Authors, 1915), 5:3113. Alguns textos do AT podem dar margem para se pensar na ira de Deus como tendo um elemento de irracionalidade e capricho cruel. Todavia, do ponto de vista bíblico, este elemento misterioso e perigoso não deixa de estar em harmonia com aquele aspecto de santidade o qual é marcado pela transcendência, inescrutabilidade e radical separação de suas criaturas, e que contem inerentemente a ameaça de morte para quem a trata levianamente. Dahlberg, 4:904. 63 o pecado.212 Se Deus deixasse de mostrar sua ira, seria injusto primeiramente consigo mesmo, pois estaria negando sua própria santidade, e também com os homens, uma vez que não daria a eles o que merecem. Além disso, mostraria falta de caráter por ser indiferente para com o pecado.213 A Ira de Deus em Relação à Sua Justiça Os termos hebraicos que aparecem no AT para “justo” e “justiça” são tsaddiq, tsedheq, tsedhâqâh, e os termos gregos correspondentes no NT são dikaios e dikaiosunē, todos tendo a ideia fundamental de conformidade a um padrão, de estrito apego à lei. Esta qualidade é repetidamente atribuída a Deus (Ed 9:15; Ne 9:8; Sl 119:137; 145:17; Jr 12;1; Lm 1:18; Dn 9:14; Jo 17:25; 2Tm 4:8; 1Jo 2:29; 3:7; Ap 16:5), pois embora não haja qualquer lei acima dele, certamente há uma lei em sua própria natureza divina, da qual derivam todas as leis que são reputadas por justas.214 212 Campos, 348; Wilber T. Dayton, “The Epistle of Paul to the Romans”, The Wesleyan Bible Commentary (WeBC), 2a. ed. (Grand Rapids, MI: Eerdmans, reimpressão 1971), 5:20; Donald Guthrie, New Testament Theology (Leicester: Inter-Varsity Press, 1981), 102; A. W. Pink, Os atributos de Deus, traduzido por Odayr Olivetti (São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1985), 86; John Murray, The Epistle to the Romans, 2 vols., The New International Commentary on the New Testament (Grand Rapids, MI: Eerdmans, reimpressão 1975), 35; Gleason L. Archer Jr., The Epistle to the Romans: A Study Manual (Grand Rapids, MI: Baker Book House, reimpressão 1969), 10; R. C. H. Lenski, The Interpretation of St. Paul’s Epistle to the Romans (Minneapolis, Minnesota: Augsburg Publishing House, 1961), 90; K.-D. Schunck, “‘ebrâ, ‘abar”, TDOT, 10: 430; Lacy, 93; W. C. Robinson, “Wrath of God”, Evangelical Dictionary of Theology, ed. Walter A. Elwell (Grand Rapids: Baker book House, reimpressão 1992), 1196; John Murray em Leon Morris, The Apostolic Preaching of the Cross (Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing Company, 1965), 165; William M. Greathouse, “Romans”, Beacon Bible Commentary (Kansas City, Missouri: Beacon Hill Press of Kansas City, 1968), 8: 49; John Owen, The Works of John Owen, 16 vols., Ed. William H. Goold, 2a. ed. (Edinburg / Carlisse, Pennsylvania: The Banner of Truth Trust, 1976), 10:555-556; Ellen G. White, Patriarcas e profetas,16ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 723. Ver também idem, Testemunhos seletos, 6ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 1:228; idem, O grande conflito, 41ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 36; idem, Profetas e reis, 9ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 417; idem, O desejado de todas as nações, 22ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 753. 213 214 Campos, 347-348. Berkhof, 77; ver também Lacy, 91-92. “Ele não está sujeito a nenhuma lei a não ser à lei da sua própria natureza”. Strong, 449. 64 Pode-se considerar a justiça de Deus de duas maneiras: (1) justiça absoluta (ou essencial) – aquela inerente a Deus e que se refere à perfeição moral e à excelência de Seu caráter, à retidão pela qual ele se sustenta a si mesmo contra as violações de sua santidade (Dt 32:4; Sl 97:1-2; cf. 89:14); e (2) justiça relativa – aquela que ele manifesta em relação a suas criaturas, governando-as com retidão inflexível, dando a cada um conforme o seu merecimento e agindo de modo que todos assim o vejam e o reconheçam.215 Tal manifestação de justiça é uma necessidade de sua natureza santa que sempre o inclina a agir desse modo.216 A justiça relativa pode ser classificada como: (1) justiça rectoral (governativa ou legislativa) – a que estabelece que Deus é reto ao atuar como governador moral do universo, legislando e impondo suas justas leis com promessas de recompensas e advertências de castigo (Dt 4:8; Sl 99:4; Is 33:22; Rm 1:32; Tg 4:12). (2) Justiça distributiva (ou administrativa) – aquela que mostra a retidão de Deus na execução de suas leis, sem mostrar favoritismo ou parcialidade (Rm 2:11), e diz respeito à distribuição das recompensas e castigos (Is 3:10-11; Rm 2:5-10; 1Pe 1:17). Pode ser vista na Providência de Deus no decorrer da história, inclusive enquanto opera nossa salvação, e é mais completamente revelada na morte e ressurreição de Cristo.217 215 Campos, 340-341; B. L. Goodard, “Justice”, EDT, 593; Pendleton, 53-54; Oden, 1: 106-107. “Justiça e retidão são a santidade transitiva de Deus, em virtude da qual seu tratamento para com as criaturas se conforma com a pureza de sua natureza, a retidão demandando de todos os seres morais a conformidade com a perfeição de Deus, e a justiça visitando a inconformidade com aquela perfeição na perda judicial ou sofrimento”. Strong, 1:433. A atual compreensão de justiça é aquela expressa nas Institutas de Justiniano (483-565): “Justiça é o constante e perpétuo desejo de dar ao outro o que lhe é devido”. Justinian, The Institutes of Justinian, traduzido por Thomas Collett Sandars (London: Longmans, Green & Co, 1888), Livro I, Tit. I, D. i. 1. 10, 54, citado em Otto Webwe, Fundations of Dogmatics, 2 vols., traduzido por Darrell L. Guder (Grand Rapids, MI: Eerdmans, reimpressão 1988), 1:429. 216 217 Campos, 349, 355; Strong, 442. Berkhof, 78; Goodard, 593; Erickson, 288; George Eldon Ladd, Teologia do Novo Testamento, 2ª ed. traduzido por Darci Dusilek e Jussara M. P. S. Arias (Rio de Janeiro: JUERP, reimpressão, 1986), 398; 65 Ela pode ser apresentada como remunerativa e retributiva: (a) A justiça remunerativa é a recompensa distribuída aos seres racionais em razão daquilo que fazem de bom, e suas bênçãos são expressão da bondade de Deus (1Cr 29:14, 16) e sempre condicionais à observância da aliança, i.e., à obediência às leis (Dt 7:12-24; Mt 25:21); mas não são meritórias, porque uma vez que somos servos, devemos obedecer ao nosso senhor, o que não implica em recompensa, porque é uma obrigação (Lc 17:10).218 Deus se torna devedor ao homem não por causa de algum mérito deste, mas em razão das promessas de bênçãos que Deus lhe fez. Na epístola aos Romanos (6:23) pode ser visto que a recompensa da obediência é caracterizada como um dom, enquanto que a da desobediência é chamada de salário.219 Já a (b) justiça retributiva (punitiva, vindicativa ou judicial) é a justiça responsável pela aplicação das punições e nessa ação Deus é visto como vingador, manifestando sua ira contra os transgressores (Sl 7:11; 9:4-5; 62:12; Mt 16:27; Rm 2:1-11; 2Co 5:10; 2Ts 1:6-9). Portanto, ira é o aspecto da justiça que trata da retribuição dos ímpios.220 Numerosos textos Oden, 1:106-109; Strong, 435; Ellen White, Eventos finais, 2ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 240-241. 218 Campos, 341-345; Berkhof, 78. No AT a justiça de Deus tem uma clara relação com a aliança de Deus. Pode ser vista no que ele é e faz em relação à aliança. Isto é chamado de justiça transitiva. Webwe, 431, 433. 219 220 Campos, 345-346; Goodard, 593. Campos, 346-347; Goodard, 593; Webwe, 1:429-430; Strong, 401, 434; ver também Oden, 1:106, 109; Stählin, 5:426; A. Berkeley Michelsen, “La Epistola a los Romanos”, El comentario biblico Moody, red. Everett F. Harrison (Chicago: Editorial Moody, 1971), 247; Lacy, 91; Owen, 10:543-544, 555; James D. G. Dunn, Romans 1-8, Word Biblical Commentary (Dallas, Texas: Words Books, Publishers, 1988), 38a:56; Groningen, “qâsap I – estar descontente, irado; aborrecer-se”, TWOT, 2:808. Para Karl Barth a ira de Deus é sua justiça. Karl Barth, The Epistle to the Romans, traduzido por Edwin C. Hoskyns (London: Oxford University Press, 1933), 43, 93; Ron du Preez, “A Systematic Study of the Doctrine of the Wrath of God”, Paper for the course “Seminar in Systematic Theology”, Seventh-Day Adventist Theological Seminary, Andrews University, Berrien Springs, MI, December of 1986, 20. “Deus não atua no mesmo nível que o homem. Ele pode fazer infinita justiça que o homem não tem o direito de fazer aos semelhantes. Noé teria desagradado a Deus se houvesse afogado um dos escarnecedores e zombadores que o importunavam, mas Deus submergiu o vasto mundo. Ló não teria o direito de impor alguma punição aos genros, mas Deus faria 66 bíblicos apresentam a ira de Deus em termos de uma terrível demonstração de poder (Is 30:30; Jr 10:10; Hc 3:12), que servia para informar que Deus atua para manter a justiça. Por um lado, vinha contra os que se opunham a Deus, por outro, servia para encorajar os crentes a fim de que cressem nele como seu libertador (Is 59:16-18; 63:1-6).221 A justiça retributiva é a própria e principal esfera de operação da ira de Deus, agindo em conformidade com a santidade divina. Toda punição do pecado é considerada como a intervenção da ira de Deus. Essa conexão entre ira e retribuição, ou julgamento, foi constantemente apresentada à consciência nacional de Israel222 e também explica os desastres que tem vindo sobre a humanidade.223 Paulo declara que “a ira de Deus se revela do céu” (Rm 1:18), i.e., sob a direção de Deus, ou por um divino poder e providência, punindo os pecados e fraquezas dos homens e manifestando a justiça de Deus. Tal revelação não foi inferior àquela que ele tem feito de sua bondade, paciência, longanimidade ou de quaisquer outros de seus atributos.224 Deus tem cuidado para que sua isso com toda a justiça. Quem dirá que Deus não fará o que Ele diz que irá fazer?”. White, Eventos finais, 241. 221 Baloian, “Anger”, NIDOTTE, 4:383; Leslie C. Allen, “Romans”, The International Bible Commentary (Grand Rapids, MI: Marshall Pickering e Zondervan, 1986), 1318. Nesse sentido, justiça e salvação são sinônimos, o que pode ser visto na LXX que os usa como termos intercambiáveis. Webwe, 432. 222 Eichrodt, 1:263-264; Lacy, 84. 223 The International Standart Bible Encyclopedia, ed. Geoffrey W. Bromiley, reimpressão 1991, ver “Wrath; anger”. 224 Owen, 10:546. A. Ritschl rejeita completamente a idéia de justiça distributiva e somente encoraja o ponto de vista de que Deus é apenas um Pai de amor, sem qualquer acréscimo. Webwe, 435. Todavia, Deus não é apenas amor, Ele é justiça e, mais ainda, “fogo consumidor” (Hb 12:29) e “horrível coisa é cair mas mãos do Deus vivo” (Hb 10:31). Por isso, nenhum ponto de vista sentimental sobre a misericórdia e o perdão de Deus, e nenhuma tênue e leviana esperança de que Deus é bom demais para punir, podem excluir a manifestação de sua justa e santa ira contra o pecado e o pecador por causa de sua transgressão (1Pe 1:17). Evans, 5: 3113; Tozer, 106. “Por um instante sequer, a justiça é amaciada ou reduzida no interesse da misericórdia. Por causa do seu caráter santo, Deus não pode olhar para o pecado com o menor grau de indulgência. A verdade permanece, de que a alma que pecar, essa morrerá”. Chafer, 68. 67 ira contra o pecado, ou sua justiça, apareça mediante numerosos exemplos de punição infligidos sobre os homens por seus pecados, em seu providencial governo do mundo. Desse modo, o mesmo Deus que dá a todos o sol, a chuva e sua bondade (Mt 5:45; At 14:17) também oferece claros sinais e testemunhos de sua ira, severidade, e indignação ou justiça punitiva,225 aos que não se conformam com a santidade.226 A justiça de Deus também é revelada na constituição de nossa natureza, pois a despeito dos sofismas do entendimento e da degradação moral, todos os homens têm uma consciência de justiça e sabem que é justo o juízo de Deus segundo o qual os que pecam são dignos de morte (Rm 1:18-20, 32; 2:12-16).227 Como obra de sua justiça, a ira de Deus é revelada aos que estão fora de Cristo e sem Cristo (Ef 2:3, 12),228 mas nunca é injusta nem excessiva e enquanto houver tempo de graça, Deus não a deixa alcançar sua plenitude (Os 11:9).229 É verdade que às vezes o governo divino não parece ser justo, pois quem vive em pecado nem sempre é punido e os justos com frequência parecem não ser recompensados. Já no AT, o conceito de retribuição não era dominante, pois nem sempre as coisas iam bem para os justos ou iam mal para os ímpios.230 De fato, tanto o Pentateuco, como os Salmos, 225 Owen, 10:545-546; Hodge, 850. 226 Lacy, 91. Como autor de nossa natureza moral Deus é visto como santo, mas quando relacionado com as criaturas racionais, é considerado como justo. Ibid., 91-92. Contudo, sua justiça é um atributo moral diretamente vinculado e dependente de sua santidade. É a característica divina que o leva a manter sua santidade e é ela que dá a cada um o que é devido. Campos, 340; ver também D. M. Lloyd-Jones, Romans: Atonement and Justification (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1971), 98. 227 Hodge, 850, 886. 228 Karl Barth, Carta aos Romanos, traduzido por Lindolfo K. Anders (São Paulo: Novo Século Ltda., 2003), 51. 229 230 Dicionário bíblico, ed. 1984, ver “Ira”. Além disso, o fato de Deus como juiz se colocar ao lado do pobre revela que não havia um princípio de retribuição que operava mecanicamente. Webwe, 431-432. 68 os profetas e o livro de Jó atestam o contrário.231 Também no NT pode ser visto que o clamor dos mártires por vingança não é de pronto atendido (Ap 6:10-11). Há uma demora, para mostrar que “a vingança, purificada de toda a ânsia humana em prol dela, é deixada para Deus”.232 A compreensão da ira de Deus tem como pano de fundo o conceito da justiça de Deus, mas não uma justiça ministrada por um princípio impessoal, de efeito automático, antes aquela que advém de um Deus que tem fortes emoções e que está pessoalmente interessado. Em razão disso, a justiça divina não deve ser avaliada no curto espaço de uma vida, pois aqui ela é frequentemente incompleta ou imperfeita. Antes, como nossa vida aqui não é tudo, essa justiça precisa ser vista também como escatológica e no escopo da eternidade quando então será completa (Is 9:7; 11:4; 42:1; 56:1; Jr 23:5; Os 2:19).233 Deus é o legislador e o justo juiz e é somente no juízo final, quando apresentar um veredicto judicial sobre cada homem, que todos, mesmo aqueles que serão amaldiçoados, terão e saberão que sua maldição é justa, de modo que nenhuma criatura encontrará mesmo a menor falha em sua perfeição. E é nesta vindicação do caráter de Deus que residirá a segurança e a liberdade do universo inteiro, por toda a eternidade.234 231 Ibid. 232 U. Falkenroth, “Castigo, vingança: dikē”, DITNT, 1:392. Um bom comentário sobre justiça no AT e seus reflexos no NT pode ser encontrado em Allen, 1318- 1319. 233 234 Erickson, 289; Webwe, 1:432; Baloian, Anger in the Old Testament, 176. Ladd, Teologia do Novo Testamento, 413; Lenski, 143-144; Alberto R. Treyer, El enigma de los sellos y las trompetas a la luz de la vision del trono y de la recompensa final (Mayagüez, Puerto Rico: Proyecciones Biblicas, 1990), 245. 69 A Ira de Deus em Relação ao Seu Amor Ao abordar o tema do amor, o hebraico usa o termo ’âhabh e seus derivados, que significam amar, gostar, apaixonar-se, ser amável. Seu sentido básico é amplo, podendo variar desde o grandioso amor de Deus por seu povo até os apetites carnais e pecaminosos. É utilizado no mandamento que nos manda amar o nosso próximo (Lv 19:18), em várias passagens que descrevem o amor entre os seres humanos (ex.: Gn 22:2; 37:3; Dt 10:19; Rt 4:15; etc.) e para referir-se ao amor de Deus para com seu povo (Dt 4:37; Is 43:4; Jr 31:3; Os 11:4; Ml 1:2).235 O NT emprega dois termos para denotar a ação de amar. Um é fileō, que se refere a uma afeição emocional (Jo 11:36). O outro é agapaō e significa um amor racional e voluntário que se baseia numa escolha deliberada, onde o componente emocional se encontra subordinado à verdade e santidade (Mt 5:44; 19:19), e é esta palavra que, na maioria das vezes, é empregada no NT para indicar o amor de Deus (Jo 3:16).236 O amor é um atributo no qual se combinam dois impulsos ou desejos aparentemente paradoxais: o de dar-se ao objeto amado, de fazer-lhe o máximo bem e o de possuí-lo em íntima comunhão. Um impulso dá e o outro toma. O primeiro, que é autodoação é chamado āgapē, o segundo, eros. Enquanto que o amor āgapē anela completar o outro ainda que com um custo para si mesmo, o amor éros busca completar a si mesmo pelo outro. O ideal é que eles coexistam de forma equilibrada. 235 Robert L. Alden, “’aheb”, DITAT, 19-21. 236 Lacy, 82; Chafer, 394-395. 70 Em Deus o amor é assim. Deus ama toda a criatura no sentido de lhes ser amplamente favorável, mas também deseja sua resposta de amor ao seu amor.237 Mesmo na eternidade, antes de qualquer criação, ele encontrava sua satisfação nas relações de amor que existiam na própria trindade (Jo 17:24).238 O fato de que Deus é amor (1Jo 4:8, 16), mostra que o amor é essencial e necessário à divindade, de sorte que a sua natureza consiste nele. Portanto, há evidência de que o amor precede a criação e é a sua base.239 A santidade e o amor de Deus estão intrinsecamente ligados. Se por um lado a santidade de Deus sujeita, ordena e condiciona seu amor, por outro, este impregna, habilita, sujeita e complementa aquela. Deus não seria tão santo se não fosse incomparavelmente amoroso. Nem seria tão amoroso como é sem ser incomparavelmente santo. O amor de Deus sem a santidade de Deus não seria justo por ignorar as ofensas do pecado. A santidade de Deus sem o seu amor seria insuportável e incapaz de efetuar a reconciliação. Nenhum deles sozinho poderia prover a salvação dos pecadores.240 São como dois pólos morais do ser de Deus. Como santo, ele se opõe ao pecado e exige sua punição; mas como amor, anela fortemente perdoar e salvar e torna o pagamento da penalidade possível. Deste modo, em si mesmo é encontrada concordância, pois um lado de sua natureza 237 Langston, 62-64; Oden, 1:119, 121-122; Chafer, 395. Como será visto no capítulo dois, em Cristo Deus se deu aos homens e é por ele que Deus pode possuí-los. 238 Lacy, 82; Wayne Grudem, Teologia sistemática (São Paulo: Vida Nova, 1999), 145-148; Strong, 395. Embora não haja em todas as Escrituras a menção de éros para descrever o amor entre os membros da Trindade ou o amor de Deus para com os seres humanos, um exame atento dos muitos textos que tratam do amor divino, demonstra que isso é um fato: Deus ama, mas também espera ser amado (ver Dt 6:5; 10:12; 30:6; Mt 22:37; Jo 10:17; 15:9; 21:15; Rm 8:28; 1Co 2:9; 8:3; Tg 2:5; 1Jo 5:2). 239 240 Ibid, 396. Ver Também Guthrie, 104-105. Oden, 2:349; 1:124. Todavia, alguns eruditos são da opinião que a santidade é superior ao amor e o regula. Ver Strong, 404-406; Lacy, 83. 71 proporciona o que o outro lado de sua natureza exige.241 Como já foi dito, “a santidade é o trilho onde a locomotiva do amor deve correr”.242 Também o amor não pode ser completamente compreendido a menos que se inclua a justiça (Êx 34:7). Sem ela o amor não passa de mero sentimentalismo. O amor e a justiça operam justos no trato de Deus com os homens. Enquanto a justiça requer que haja pagamento da penalidade do pecado, o amor deseja que o homem seja restaurado à amizade com Deus, mas não há nenhuma tensão entre eles. A tensão só existe quando se pensa que o amor requer que Deus perdoe sem qualquer pagamento.243 “Deus não é parcialmente amor e parcialmente justiça, mas perfeito amor e perfeita justiça e tudo de Deus é amor e tudo de Deus é justiça”.244 Sendo assim, sua ira é a mais verdadeira expressão de sua santidade e justiça punitiva contra o pecado, e está em perfeita harmonia com seu amor, que por ser santo, rejeita o mal com o mesmo empenho com o qual aprova o bem.245 Essa ira, embora não seja um atributo permanente, é um potencial divino sempre presente, por causa da permanente presença, em Deus, dessas qualidades.246 O fato de Deus ser amor não significa que ele aprove tudo o que o objeto de seu amor faça. A aprovação não é necessária ao amor. Por isso, Deus nos amou quando ainda éramos seus inimigos (Rm 5:8; Ef 2:3-5). Por isso, uma mãe ama seu filho rebelde, embora 241 Henny C. Mabie, Under the Redeeming Aegis an Exposition of the Evangelical Principle (London: Hodder and Stoughton, 1913), 89-92; Chafer, 3: 69-70; Oden, 2:350; 1:124; Lacy, 83. 242 Chafer, 405. 243 Erickson, 298; M. L. Andreasen, The Book of Hebrews (Washington, D. C.: Review and herald Publishing Association, 1948), 452. O capítulo dois desta pesquisa discorre sobre como a justiça e o amor foram satisfeitos no Cristo crucificado. 244 Ladd, Teologia do Novo Testamento, 416. 245 John Peter Lange, “Romans”, A commentary the Holy Scripture-Critical, Doctrinal and Homiletical, traduzido por Philip Schaff (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1869), 80-81; Preez, 9. 246 Groningen, “qâsap I – estar descontente, irado; aborrecer-se”, TWOT, 2:808. 72 não aprove seus atos. Há um amor que inclui aprovação, é o amor que se compraz, cujo objeto amado é amável e traz alegria. Este é o amor que Deus tinha para com Jesus que em tudo lhe era obediente (Mt 3:17; 12:18; 17:5 cf. Jo 5:20; 15:9-10). Este é o amor de Deus para com aqueles que o amam e obedecem (ver Dn 9:23; 10:11, 19; Ef 4:25-5:1). Mas há um amor que não se regozija no objeto amado, é o amor que se compadece. Este é o amor de Deus para com os ingratos e maus. Não que haja dois amores, mas, sim, dois objetos amados diferentes. Desta maneira é o amor de Deus para com o crente e o descrente.247 O tema do amor é o pano de fundo para o tema da ira.248 A ira de Deus é a reação do seu amor rejeitado (Am 3:2).249 É a forma que o amor toma frente ao pecado, ao mal e àqueles que a ele se opõem.250 “É o não de Deus ao pecado. Uma vez que o pecado é a rejeição do amor de Deus, a ira de Deus é o seu próprio amor voltado contra sua própria rejeição; é a reação de Deus ao pecado. Mostra que Deus permanece o mesmo quando seu amor é rejeitado”.251 Quando o amor de Deus – em suas várias manifestações de bondade, 247 Langston, 65-66; Chafer, 432-433. 248 DBm, ed. 1984, ver “Ira”; Preez, 3. 249 Stählin, 5:433; Carl E. Braaten, e Robert W. Jenson, eds., Dogmática cristã, 2 vols., traduzido por Gerrit Delfstra e outros (São Leopoldo: Sinodal, 1990), 1:445; D. Martin Lloid-Jones, God’s Way of Reconciliation, 8a ed., (Grand Rapids, MI: Baker Book House, 1989), 51; Nuevo dicctionario bíblico ilustrado, ed. 1985, ver “Ira de Dios”; Evans, 5:3113; Archer Jr., 10; J. M. Boice, “Ira de Dios”, Diccionario ilustrado de la Bíblia, ed. Wilton M. Nelson, 3ª ed., (Miami, FL: Editorial Caribe, 1975), 304; Barnhouse, 232; Preez, 24-25; Randolp V. G. Tasker, The Biblical Doctrine of the Wrath of God ( Londres: The Tyndale Press, 1951), vii. 250 Burton H. Throckmorton Jr., Romans for the Layman (Philadelphia: The Westminster Press, 1961), 24; Greathouse, 8:49; A. M. Hunter, Interpreting Paul’s Gospel (Philadelphia: The Westminster Press, 1954), 69-70; Curtis Vaughan, Efésios: Comentário bíblico, Traduzido por Jorge César Mota (Miami, Florida: Vida, 1986), 56; Preez, 9, 32; Groningen, “qâsap I – estar descontente, irado; aborrecer-se”, TWOT, 2:808; Preez, 21; Karl Barth, A Shorter Commentary on Romans (Richmond, VI: John Knox Press, 1959), 26. 251 Webwe, 437-438; Preez, 20; Paul Tillich, Systematic Theology (Chicago, IL: University of Chicago Press, 1951), 283-284. 73 misericórdia e longanimidade – encontra-se com a perversa vontade do homem ao invés da fé, da gratidão, da boa vontade e do amor, torna-se ira (Mt 18:34; Mc 3:5; Rm 2:5).252 Esta pode causar sofrimento, castigar e prolongar-se, contudo permanece temperada por sua misericórdia enquanto durar o tempo de graça, produzindo um salutar temor do Senhor e tendo como propósito final o bem de suas criaturas.253 Revela que Deus tem amor ou positivas intenções para com os seres humanos, o que pode ser visto de três modos: (1) antes de sua ira se manifestar, ele adverte que ela está para vir. Se a justiça fosse a única motivação, a advertência não seria dada. (2) Enquanto ela está se manifestando, é entendido que ela pode terminar. Numerosos textos demonstram que Deus continua acessível mesmo em meio à operação de sua ira e falam de esperança para o futuro, quando a ira tiver completado sua obra, e de como as futuras gerações podem evitar os erros do passado (Sl 27; Is 12:1; 54:8; Zc 8:14-15). (3) Quando a ira tinha cumprido seu papel e se extinguido, os relatos do que ocorrera (no livro de Lamentações, por exemplo) davam à comunidade a oportunidade de evitar os erros do passado e, assim evitar nova manifestação de ira no futuro.254 252 Stählin, 5:425. Na pregação dos profetas a razão central da ira de Deus é o amor santo de Deus que foi ofendido (Is 1:2ss; 5:1-7; 17:9-10; Jr 2:1-19; Ez 16:4-43; Os 11:1-6; Am 2:9-16; 3:1-2). Alois Stoeger, “Ira”, Dicionário de teologia bíblica, ed. Johannes B. Bauer, traduzido por Helmuth Alfredo Simon (São Paulo: Edições Loyola, 1979), 537. No livro de Oséias a ira do amor é apresentada em toda a sua paradoxal realidade, de modo que o profeta vê como que um conflito do próprio ser de Deus, que é retratado como sofrendo e perplexo em face da ingratidão de seu povo (Os 6:4; 11:8). Particularmente no profeta Jeremias é evidenciado como o amor de Deus pode se tornar ódio, que não conhece nem compaixão, nem misericórdia (Jr 11:13-14; 12:7-13; 13:14; 16:5; 21:7). Eichrodt, 1:252-253. 253 Enciclopédia de Bíblia, teologia e filosofia, ed. 1995, ver “ira de Deus”; R. Allan Killen, “Wrath”, Wycliffe Bible Encyclopedia, ed. Cavalles F. Pfeiffer, Howard F. Voos e John Rea (Chicago: Moody Press, reimpressão 1975), 2:1826. 254 Baloian, Anger in the Old Testament, 159; Idem, “anger”, NIDOTTE, 4:384. 74 Além disso, ela também é motivada pelo amor de Deus para com os seus buscando protegê-los,255 porque o amor inclui um elemento de zelo (ciúme) para com o amado, com a correspondente reação contra aqueles que se voltam contra este objeto do amor.256 Quando se ama alguém e se vê essa pessoa sendo atingida pelo mal, qual será a reação? Permancese indiferente? Não! Ocorre uma indignação e uma ação para proteger. O amor humano será deficiente se o elemento de ira estiver completamente ausente. O mesmo ocorre em relação a Deus.257 Em certas circunstâncias, a falta de ira significa falha em cuidar de quem amamos e por quem somos responsáveis, falha em demonstrar amor.258 Semelhantemente, se Deus não tivesse ira, equivaleria a não ter compromisso com o universo que criou e interesse em suas criaturas, o que também evidenciaria falta de amor.259 Em sua carta aos efésios, Paulo, depois de expor a dura realidade de toda a humanidade, escravizada à Satanás, ao curso deste mundo e à natureza pecaminosa, acrescenta “e éramos, por natureza, filhos da ira, como os demais. Mas Deus, sendo rico em misericórdia, por causa do grande amor com que nos amou, e estando nós mortos em nossos delitos, nos deu vida juntamente com Cristo [...]” (Ef 2:3-5). Tal declaração, de que 255 Michaud, R., “Ira”, Vocabulário bíblico, Ed. Jean-Jacques Von Allmen (São Paulo: ASTE, 2001), 257-258; White, Eventos finais, 241. Quando, por exemplo, o rei do Egito pensou em fazer de Sara sua esposa, “o Senhor, em Sua grande misericórdia, protegeu a Sara, enviando juízos sobre a casa real.” [Ver Gn 12:10-20]. Idem, Patriarcas e profetas, 130. E, séculos mais tarde, quando ainda no Egito os descendentes de Abraão tiveram uma experiência semelhante, “mediante as manifestações dos juízos divinos em seu favor o seu temor caiu sobre os egípcios; e, enriquecidos pelas dádivas dos gentios, saíram com muitos recursos”. Ibid., 131. De fato, ao “executar Seus juízos sobre Faraó ... era desígnio de Deus que estas exibições de poder fortificassem a fé de Seu povo, para que sua posteridade adorasse firmemente somente Aquele que tinha realizado misericordiosas maravilhas em seu favor”. Idem, História da redenção, 9ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 115. Ver também idem, Patriarcas e profetas, 263. 256 Guthrie, 103; Groningen, “qâsap I – estar descontente, irado; aborrecer-se”, TWOT, 2:808. 257 Preez, 9. 258 Ibid., 31. 259 Archer Jr., 10. 75 embora filhos da ira, Deus nos amou com grande amor, evidencia que a ira de Deus não é incompatível com seu amor e que tais atributos podem coexistir na personalidade de Deus.260 Outras passagens bíblicas são do mesmo teor: Deus expressa seu amor por aqueles que são objetos de sua ira. Assim, ele diz que ama Israel com amor eterno (Jr 31:3, 20) e ao mesmo tempo, em sua ira, envia contra eles os babilônios para executarem seu juízo (Jr 21:5-7); ele declara seu amor para com mundo e age em seu favor (Jo 3:16; Rm 5:8; Ef 2:3), mas também revela dos céus sua ira, de múltiplas formas, sobre os mesmos homens (Rm 1:18-32).261 É bastante difundida a idéia de que Deus ama o pecador, mas aborrece o pecado.262 Todavia, esta não é toda a verdade sobre o assunto. Embora, a ira de Deus contra o pecado não implique em qualquer diminuição do seu amor para com as moralmente perdidas criaturas,263 a verdade é que Deus experimenta para com o pecador tanto a ira quanto o amor ao mesmo tempo, sem que haja qualquer ação contrária de um para com o outro.264 Em outras palavras, “Deus ama as mesmas pessoas que ele detesta [...] ele tanto ama como 260 John R. W. Stott, A mensagem de Efésios (São Paulo: ABU, 1986), 50; ver também Raul Dederen, Cristologia, traduzido por Neuza Belz (São Paulo: SALT, 1984), 62. 261 The Eerdmans Bible Dictionary, ed.1987, ver “Wrath”. 262 Charles R. Erdman, Comentários de Romanos, traduzido por Waldir Carvalho Luz (S/L: Casa Editora Presbiteriana, s/d), 33; Barnhouse, 217; Ellen White, Serviço cristão, 9ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 54; ver também “The wrath of God” [Rom 1:18], Seventh-Day Adventist Bible Commentary, ed. Francis D Nichols, 7 vols. (Washington, DC: Review and Herald, 1953-1957), 6:477. 263 Oden, 1:109. 264 Chafer, 3: 69. 76 detesta o pecador”.265 Deus detesta o pecador quando este se opõe voluntariamente contra a verdade e a santidade, mas o ama quando o vê arruinado pela transgressão.266 O amor inerente em Deus é um sentimento, mas também um princípio ativo. Como sentimento positivo, almeja o bem estar dos objetos que ele ama, e como princípio ativo, age para que seja assim.267 Este amor tem suas manifestações na forma de misericórdia, graça, bondade e longanimidade para com as criaturas, que podem ser denominadas de amor transitivo e não se referem a algo que Deus deve a elas, nem a algo ao qual tenham direito, pois são expressões da vontade divina, o que significa que Ele as manifesta se assim o desejar.268 A bondade de Deus O verbo chsd traz a idéia de mostrar-se bondoso. Sua única ocorrência está em 2Sm 22:26, que é repetida no Sl 18:25.269 O substantivo chesed denota lealdade, fidelidade, bondade,270 misericórdia e, às vezes, constante amor, lealdade, amor infalível.271 Chesed possui um aspecto fortemente relacional. Ocorre 246x no AT, sendo a metade nos Salmos. Embora seja empregada para descrever atitudes e comportamentos dos homens em seus relacionamentos, mais frequentemente descreve a disposição e as ações beneficentes de 265 Strong, 433. 266 Ibid. 267 Erickson, 294. 268 Strong, 392, 432; Lacy, 82; Campos, 349. 269 D. A. Baer e R. P. Gordon, “hsd”, NIDOTTE, 2:211. 270 Ibid., “hesed”, 2:211. 271 R. Lair Harris, “hesed”, TWOT, 1:305. 77 Deus para com aqueles que lhe são fiéis: tanto para de Israel, como da humanidade em geral.272 Por séculos chesed foi traduzido como bondade, misericórdia, amor e outras semelhantes. A LXX usa eleos, misericórdia.273 Todavia, em 1927, Nelson Glueck publicou uma tese doutoral sobre o uso desta palavra na Bíblia, apontando para outra direção. Segundo ele, as relações de Deus com Israel eram baseadas na aliança e, portanto, chesed não significa misericórdia, mas lealdade em face das obrigações da aliança. Outros discordam veementemente e mantêm as versões tradicionais, alegando que o amor de Deus está por detrás da aliança, que era apenas sua expressão e sinal. Assim, chesed é uma das palavras usadas para descrever a bondade de Deus (Êx 34:6-7; Nm 14:18-19; Ne 9:17; Sl 86:15; Jn 4:2; etc.).274 272 Baer e Gordon, “hesed”, 2:211. 273 Harris, 1:305. 274 Idem, “hsd”, DITAT, 499-503. Ver também H.-H. Esser, “Misericórdia, Compaixão”, DITNT, 3:177. Em 1927 Nelson Glueck publicou uma dissertação doutoral em alemão, traduzida para o inglês por A. Gottschalk, Hesed in the Bible, com uma introdução de G. A. LaRue a qual é um divisor de águas na discussão. Seu ponto de vista tem sido amplamente aceito. De acordo com ele, Israel estava comprometido com sua divindade por alianças semelhantes aos tratados dos hititas e outros. Harris, “hesed”, TWOT, 1:305. Para Glueck, chesed possui a conotação de mútua obrigação, seja de indivíduos ou de grupos, e possui três principais aspectos: 1) o comportamento humano no âmbito secular, 2) o comportamento humano na esfera religiosa, especialmente direcionado para com Deus e, 3) o tratamento de Deus com a humanidade. Para ele, chesed opera especialmente no contexto da aliança, sendo de fato sua essência, de modo que o divino exercício de chesed está baseado na relação de aliança com seu povo. Baer e Gordon, “hesed”, 2:211, com base em N. Glueck, Das Wort Hesed im alttestamentlichen Sprachgebrauche als menschliche und göttliche gemeinschaftgemässe Verhaltungsweise, (Giessen, A. Töpelmann, 1927). Ver também idem, Hesed in the Bible, traduzido por Alfred Gottschalk, (Cincinnati, Hebrew Union College Press, 1967). Desse modo, os Dez Mandamentos eram as estipulações da aliança, as vitórias nas batalhas eram recompensas pela guarda da aliança, sua apostasia era a violação da aliança e a chesed de Deus não era basicamente misericórdia, mas lealdade para com suas obrigações, uma lealdade que os israelitas também deviam mostrar. Ele foi seguido substancialmente por W. F. Lofthouse, H. H. Snaith, H. W. Robinson, Ugo Masing e muitos mais. Contudo, outros discordaram. Desse modo, F. Assension defendeu a ideia de misericórdia, baseando seu ponto de vista nas versões do AT; H. J. Stoebe, também em uma dissertação doutoral, em 1951, e em artigos publicados no ano seguinte, defende o conceito de bondade; Sidney Hills e Katherine D. Sakenfeld afirmam que em geral chesed denota os livres atos de resgate ou livramento os quais no uso profético incluem lealdade. Harris, “hesed”, TWOT, 1:305. Portanto, enquanto que Glueck afirma que chesed é praticada em uma relação eticamente obrigatória, de parentes, exércitos, aliados, amigos e governantes e que a fidelidade às obrigações de uma aliança está 78 Em resumo, pode-se dizer que a chesed de Deus, em todas as passagens bíblicas em que aparece, é sempre livre e não ocorre meramente por causa de uma obrigação à alguma aliança que ele fez e nem deveria ser traduzida como fidelidade. Antes, as alianças são sinais e expressões da chesed de Deus, que é o pano de fundo delas, e esta expressão é um modo de o AT dizer que “Deus é amor”.275 As características da divina chesed são: (1) Ela salva as pessoas de desastres ou de opressão (Gn 19:19; Sl 31:7, 21; 32:10; 57:3; 59:10; 94:18; 143:12). (2) Ela é duradoura, persistente e eterna. Isso pode ser percebido: (a) pelo contraste com coisas que duram muito, mas não para sempre (Is 54:10); (b) por declarações do próprio Deus (Jr 31:3); (c) pelas repetidas declarações que aparecem no Saltério (Sl 89:2, 28, 33; 103:17; 117:2; 138:8; 100:5; 106:1; 107:1; 136). Certo número de textos aponta para a hipotética possibilidade da perda da chesed de Deus ou de ela ter se afastado para longe (Gn 24:27; Sl 98:3; 106:45; Jr 16:5; 2Sm 7:15; cf. 1Cr 17:13). Também há orações que suplicam pela continuação da chesed de Deus (Sl 36:10; cf. 2Cr 6:42; Sl 138:8). A mutualidade pressuposta pela divina chesed é bastante nítida (1Rs 3:6) de modo que ela é direcionada para aqueles que seguem e amam seus preceitos (Sl 119:149, 159). (3) Ela é considerada a base ou motivo para petição ou aproximação de Deus (Nm 14:17-19; Ne 13:22; Sl 6:4; 44:26; 109:21). (4) Ela ocupa um lugar preeminente na vida interna e comunitária do povo de Deus. De um lado, ela os guia para Deus (Êx 15:13) e caracteriza seus ensinos (Sl 119:124; 143:8) e, de outro, é o foco de suas esperanças, quando estão em dificuldade (Sl explicita ou implícita, Sakenfeld, examinando o mesmo material, concluiu que, embora os relacionamentos estejam presentes – porque o amor necessita de uma relação de sujeito e objeto – a chesed é dada livremente. Ibid. 275 Ibid., 306-307. 79 13:5; 17:7; 26:1-3; etc.). (5) Ela é abundante. Isso é atestado de dois modos: (a) pelas declarações cosmológicas feitas nos salmos: chesed enche a terra (Sl 33:5; 119:64), estende-se ao céu, às nuvens ou além (Sl 36:5; 57:10; 103:11; 108:4), e é percebida até aos confins da terra (Sl 98:3); (b) por simples declarações: chesed é grande (Sl 86:13), abundante (Sl 106:7, 45; Lm 3:22; Ne 13:22) e poderosa (Sl 117:2). (6) Ela caracteriza o governo de Deus e estabelece seu rei (Sl 89:14; 2Sm 7:15-16; 22:51; 1 Rs 3:6; 2Cr 1:8). (7) Ela neutraliza a ira de Deus. Algumas vezes os textos bíblicos parecem sugerir que as respostas de Deus ao pecado humano, seguem em direções opostas: uma de ira, outra de bondade. Em tais momentos a chesed de Deus exerce um papel limitador sobre a ira (Is 54:8; Mq 7:18; Lm 3:31-32). Desse modo, embora a ira seja uma palavra verdadeira, correta e inevitável, parece não ser a última palavra. Essa honra é reservada para chesed – o infalível amor de Deus. Diversos textos bíblicos apresentam essa dupla ideia: de chesed e da ira de Deus (Êx 20:5-6; 34:6-7; Dt 5:9-10; 7:9-10; Ne 9:17; Sl 145:8). Tanto uma como a outra brotam da mesma fonte, mas a chesed se destaca em virtude de sua superior quantidade e permanência.276 O hebraico também emprega tûbh, derivado da raiz tôbh, que por sua vez se refere ao “bem” ou à “bondade” com uma ampla variedade de sentidos. Um uso importante refere-se à bondade moral (2Cr 31:20; Sl 34:14), inclusive a de Deus, à qual se pode recorrer em busca de perdão (Sl 25:7) e que deve ser objeto de louvor (Sl 145:7).277 A bondade de Deus é uma modalidade de seu amor. Para referir-se a ela, o NT emprega por dez vezes o termo chrēstotes, todas de autoria paulina (ex.: Rm 11:22; Ef 2:7; 276 Baer e Gordon,, “hesed”, 2:213-217. 277 Andrew Bowling, “tôb”, DITAT, 564-566; Robert P. Gordom, “twb”, NIDOTTE, 2:353. 80 Tt 3:4).278 É sua disposição favorável para toda a criação e independe de qualquer motivação nas suas criaturas. Quando voltada para as criaturas irracionais dá-lhes o que precisam (Jó 38:41; Sl 145:15-16; 147:7-9); quando se manifesta aos filhos de Deus é para comunicar-lhes vida e bênção (Sl 31:19; Ef 2:5-7), sendo a base do galardão e levando-o a cumprir suas promessas; e quando dirigida aos homens que vivem longe de Deus, busca trazê-los ao arrependimento a fim de que não recebam a ira de Deus no dia de seu justo juízo (Rm 2:4-5).279 Desse modo, somos todos convidados a considerar “a bondade e a severidade de Deus” (Rm 11:22). Enquanto sua bondade contempla aqueles que têm fé e nela permanecem, seus juízos são direcionados àqueles que se mantém na incredulidade. Todavia, mesmo estes, se não continuarem na incredulidade, antes se voltarem para o Senhor, voltarão a ser alvos da bondade que ele manifesta para com seus filhos.280 A misericórdia de Deus O AT emprega a raiz râcham, que significa amar profundamente, ter misericórdia, ser compassivo. É um profundo sentimento íntimo manifestado para com quem se tem um vínculo natural e está em posição inferior, como é o caso do amor de um pai (Sl 103:13) ou de uma mãe (Is 49:15) e daquele manifestado para com as criancinhas (Is 13:18). Quando empregada em relação a Deus, o que ocorre na maioria das vezes, pode indicar o vínculo de Deus para com seus filhos (Sl 103:13; Mq 7:18), ou o conceito da livre escolha de Deus 278 E. Beyreuther, “Bom, Belo, Bondoso”, DITNT, 1:326; Barnhouse, 25. 279 Teixeira, 95; Campos, 255-256; Strong, 432, 437; Chafer, 230. Ver também G. Raymond Carlson, “The Epistle of Paul to the Romans”, The Complete Biblical Library (Springfield, MI: The Complete Biblical Library, s. d.), 7:39; Michelsen, 249. 280 Moody, “Romanos”, 10:286. 81 (Êx 33:19) e engloba sua eleição, misericórdia e perdão (Êx 33:19; Dt 13:17). O reverso desta misericórdia amorosa é a ira de Deus (Sl 77:9; Zc 1:12).281 A raiz hâmal também se refere àquele sentimento que induz alguém a livrar ou poupar aquele que é objeto de sua afeição (Ml 3:17), mas ainda pode exprimir a emoção de piedade (2Sm 12:6; Lm 2:2; 3:43; Jl 2:18) e a consideração ou compaixão que Deus tem para com seu nome e que o leva à reagir quando ele é profanado (Ez 36:21).282 É importante notar que o AT demonstra que a ira divina pode não apenas ser evitada, mas, às vezes, suspensa. E isso pode ocorrer não por causa do arrependimento, mas da misericórdia de Deus (Hc 3:2). Desse modo, a ira percorre certo caminho, a fim de servir à justiça (Ne 13:18; Jr 30:24; 32:27; Ez 5:13-17), mas, então um remanescente emerge, totalmente pela graça (Is 10:20-25). Agindo assim, Deus revelou que Israel não deveria esperar que pudesse pecar livremente e escapar da ira pelo arrependimento, mas também que, a justiça de Deus é temperada por sua misericórdia.283 O NT, por sua vez, emprega três palavras gregas, com seus respectivos derivados, para significar misericórdia ou compaixão. São elas: eleeō (Rm 9:15, 16, 18), oikteirō (Rm 9:15; 12:1; 2Co 1:3) e splagxnon (2Co 6:12; Ef 4:32; 1Pe 3:8). Originalmente elas tinham um enfoque predominantemente psicológico, de modo que eleeō referia-se ao sentimento 281 Leonard J. Coppes, “râham – amar profundamente, ter misericórdia, ser compassivo”, DITAT, 1417-1420. 282 Idem, “hâmal – poupar, ter compaixão”, DITAT, 483-484. Sob este verbete há uma discussão mais detalhada e bastante elucidativa sobre as duas correntes de interpretação de hesed. 283 Baloian, “anger”, NIDOTTE, 4:384; Groningen, “qâsap I – estar descontente, irado; aborrecerse”, TWOT, 2:808. 82 de compaixão, oikteirō, à exclamação de dó que alguém emite ao ver o infortúnio de outro, e splagxnon, à sede das emoções, que hoje é chamado de coração.284 Misericórdia está diretamente vinculada à miséria. A misericórdia de Deus é uma forma de seu amor a qual é manifestada para com quem é miserável e se encontra em ruína, desgraça e necessidade (Dt 5:10; Sl 86:5-7; 103:3-8; Mc 1:40-41; 6:34 cf. Mt 14:14). Por causa dela, Deus vê o homem suportando as terríveis conseqüências do pecado e desesperadamente carente do socorro que unicamente ele pode oferecer e, comovido em seu coração, age, mesmo a custo do sacrifício próprio, em busca do bem temporal e da salvação eterna de quem se opôs à sua vontade.285 A misericórdia é tanto optativa como limitada. Deus não tem obrigação de prover redenção para os pecadores (ver Rm 9:14-18; 2Pe 2:4). Do mesmo modo que a onipotência, a misericórdia pode existir em Deus mesmo sem ser exercida.286 Embora Deus seja soberano e livre para decidir e agir, ele sempre o faz em harmonia com seu próprio caráter o que inclui sua santidade, que regula e condiciona seus outros atributos. Portanto, o exercício da misericórdia tem suas condições e pode haver interesses mais elevados que requeiram que ele seja recusado. Por essa razão, ao Deus exercer misericórdia não há violação ou desistência das exigências legais, i.e., não há abolição de sua lei moral, nem redução da pena, mas, sim, a substituição de quem recebe a punição, de modo que a justiça é estritamente satisfeita através de uma pessoa vicária. Assim, a magnitude da misericórdia pode ser vista em três ações divinas: (1) ao permitir que outra pessoa assuma o lugar do 284 H.-H. Esser, 3:176-177. Todavia o uso de eleeō no NT tem um fundo de pensamento totalmente diferente, baseando-se em conceitos legais. Para estudos adicionais ver todo o artigo. 285 Pendleton, 53; Berkhof, 752; Erickson, 295-296; Teixeira, 93; Chafer, 230; Grudem, 145-148; Strong, 431. 286 Ibid., 410, 441-442. 83 pecador e receba o castigo em seu lugar; (2) em providenciar tal pessoa; e (3) em oferecerse para ser essa pessoa.287 Portanto, a misericórdia é um aspecto do amor de Deus e está vinculada à sua justiça. Como foi dito, “o oceano da sua misericórdia limita-se às praias da sua justiça”.288 A misericórdia que não respeita tais limites pode ser chamada de “misericórdia pecaminosa”289 e não faz parte do caráter de Deus. É somente quando seus justos juízos são considerados, que sua misericórdia torna-se uma vívida realidade.290 Além disso, as Escrituras declaram que enquanto o tempo de graça continua, a ira de Deus é mesclada com elementos que expressam misericórdia. Desse modo, Deus, por ser misericordioso, não se ira facilmente (Êx 34:6-7; Sl 103:8-9) e, quando irado, não retém sua ira para sempre (Mq 7:18-20) e na ira lembra-se da misericórdia (Hc 3:2). E quando sua ira cessa, ele consola (Is 12:1). A graça de Deus O verbo chânan possui a idéia de favorecer, ser benévolo para, generoso para com, ter compaixão de; ser favorecido, suplicar por graça291 (Sl 31:9; 51:1). Aparece 78x no AT292 e quando a conotação é de mostrar favor, geralmente tem a Deus como sujeito (41x).293 É empregado para descrever a ação de um superior para com um inferior que não 287 Ibid., 442-443. 288 Ibid., 443. 289 Ibid. 290 Guthrie, 107. 291 Terence E. Fretheim, “hnn”, NIDOTTE, 2:203; Edwin Yamauchi, “chânan – ser gracioso, compadecer-se; no grau hitpael, suplicar, implorar”, DITAT, 494. 292 Ibid. 293 Fretheim, 2:203. 84 tem direito a um tratamento clemente e a reação sincera de alguém que tem algo a dar a outro que está em necessidade.294 O substantivo chen possui o significado de graça, favor, encanto295 e é utilizado 69x, tendo na grande maioria das ocorrências, um significado secular e não teológico. Ele aparece 43x em frases que têm a idéia de “encontrar favor aos olhos de” (Gn 6:8; 39:21; Êx 3:21; 33:12)296 sendo que destas, 24x é usado para Deus (Gn 30:27). Como acontece na atualidade, os antigos olhavam nos olhos de outrem para perceber sua disposição favorável ou não. Embora a face de Deus não possa ser vista, a expressão foi mantida para falar também da disposição de Deus.297 A graça divina não é apenas uma questão espiritual, mas diz respeito a todos os aspectos da vida, como fica evidente nas fórmulas usadas para abençoar (Nm 6:25; Sl 67:1). Desse modo, Deus, em sua graça, provê alimento para o faminto (Sl 111:4-5), boa colheita para os homens (Sl 67:1), salvação para quem sofre uma grande aflição (Sl 126:16), vindicação para os que são oprimidos (Sl 103:6-8), perdão para o pecador (Sl 103:8-10), regozijo para o triste (Sl 30:10-11) e muitas outras obras de bondade e compaixão (Sl 145:8-9).298 O favor de Deus pode ser assegurado através de uma resposta humana positiva (lealdade, Pv 3:3-4; justiça, Gn 6:8-9; arrependimento, Is 30:19), mas Deus pode reter tal favor em razão de uma resposta humana pecaminosa (Jr 16:13) ou por causa dos propósitos 294 Yamauchi, 494. 295 Fretheim, 2:203; Yamauchi, 495; idem, “hên”, TWOT, 1:303. Em alguns textos, como em provérbios, chên possui um significado estético de beleza ou encanto o qual cria uma impressão favorável. Ibid. 296 Ibid.; idem, “chânan”, DITAT, 495; Fretheim, 2:203-204. 297 Ibid. 298 Ibid., 2:205. 85 divinos mais amplos (Js 11:20). Deus também pode escolher estendê-lo em paciência para com aqueles que ainda não se arrependeram (Ne 9:17, 31), ou para com aqueles cuja resposta é questionável (Gn 33:5, 11), ou unicamente por causa de suas promessas (2Rs 13:23), ou em vista de seus propósitos para com Israel (Ed 9:8). Assim, a graça de Deus está estabelecida, não no que as pessoas fazem, mas na disposição divina de ser gracioso, além de qualquer esquema humano (Êx 33:19; 34:6). Os apelos à graça divina são apresentados não com base em nossa justiça, mas em razão da grande misericórdia de Deus (Dn 9:18).299 O adjetivo channun – gracioso – ocorre 13x, sempre se referindo a Deus (exceto em Sl 112:4) e geralmente vem emparelhado com râhum, misericordioso (Êx 34:6).300 Este adjetivo descreve os atos graciosos de Deus e a maioria dos textos que o empregam, falam também de seu julgamento sobre o mal, de modo que sua graça é revelada junto com sua justiça (Êx 34:6-7; Nm 14:18; Sl 86:15; 103:8; 145:8; Jl 2:13; Jn 4:2).301 A palavra “graça” (charis) foi amplamente usada em uma variedade de significados associados na literatura grega clássica, na LXX e no NT. Originalmente referia-se a algo muito agradável ou atrativo em uma pessoa, algo que trazia prazer aos outros, transmitindo as idéias de beleza, graciosidade, amabilidade e outras que deleitam o agraciado, o que pode ser visto em Sl 45:2; Pv 1:8-9; Lc 4:22; e Cl 4:6. A partir daí passou a ter a ideia de favor, boa vontade ou bondade feitos para outro ou um presente que traz prazer ao outro 299 Ibid. 300 Ibid., 2:204; Yamauchi, “chânan”, DITAT, 497. 301 Ibid.; Idem, “hên”, TWOT, 1:303. 86 (ver Lc 2:40; At 2:47; 7:10; 46). Do ponto de vista de quem recebe, foi usada para referir-se à gratidão sentida por um presente ou favor (ver Lc 17:9; 1Co 15:57; 2Co 8:16).302 Embora, com exceção de Lucas, a palavra “charis” ou seus cognatos não apareça nos sinóticos, está implícita nos ensinos e nas obras de Jesus303 e ocorre cerca de 150x no NT onde frequentemente parece ter um significado especial não encontrado completamente em nenhum outro lugar: o amor salvador de Deus para os pecadores como revelado em Cristo, o que é destacado especialmente nos escritos de Paulo, como pode ser visto em Rm 5-6; Ef 1:5-8; 2:7-9; Tt 2:11; 3:7.304 De fato, a graça de Deus é um aspecto essencial de seu amor. É o amor de Deus visto na relação com o pecado e manifestado apenas para aqueles que são pecadores e indignos e que age para com eles com bondade e generosidade, suprindo-lhes com favores, não na base de seus méritos ou valor, mas de acordo com suas necessidades. É, mais especificamente, o amor em ação, todo inclusivo, expandindo-se mais e mais para prover a redenção dos pecadores. Todavia, não é apenas um sentimento de compaixão e boa vontade em perdoar, mas um poder ativo, energizante, capaz de transformar e salvar o maior pecador mantendo-o numa correta relação com Deus (Rm 5:21; 1Co 15:10; 2Co 12:9). Como disse o apóstolo, “é o poder de Deus para a salvação” (Rm 1:16).305 302 “Grace” [Rom 3:24], Seventh-Day Adventist Bible Commentary, 6:503; John Polhill, “Grace”, Holman Bible Dictionary (Nashville, TN: Holman Bible Publishers, 1991), 573. 303 Guthrie, 106. 304 Ibid., 105-106; Polhill, 573; “Grace” [Rom 3:24], SDABC, 6:503-504. 305 Ibid.; Greathouse, 8:90; Guthrie, 105-106; Strong, 432; H. J. Brokke, Romanos, o evangelho do Cristo ressurreto, traduzido por Myrian Talitha Lins (Belo Horizonte, MG: Editora Betânia, 1981), 60; Ellen White, Mensagens escolhidas, 5ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 1:394; Erickson, 294296; Pendleton, 53; Berkhof, 75; Chafer, 230; Grudem, 145-148. Comentários adicionais podem ser encontrados em J. Baillie, J. T. McNeill e H. P. van Dusen, eds., Library of Christian Classics (Philadelphia: Westminster Press, 1953), XIX, 87; Heppe Heinrich, Reformed Dogmatics: Set Outand Illustrated from the 87 Os anjos de Deus, que nada conhecem de pecado, gozam do amor de Deus e da bondade que ele manifesta para com suas criaturas, mas nunca receberam sua graça, porque dela nunca necessitaram.306 Mas e os anjos que pecaram? As Escrituras afirmam que “Deus não poupou anjos quando pecaram, antes, precipitando-os no inferno, os entregou a abismos de trevas, reservando-os para juízo” (2Pe 2:4). Deus não manifestou graça para com eles. Não elaborou um plano para dar-lhes nova oportunidade, para salvá-los de sua condição e restaurá-los (ver Hb 2:16)307. Poderia ter feito o mesmo com a raça humana. Não tinha necessidade de nos salvar. Por ser Criador e Soberano, ele é livre para decidir e atuar como lhe agrada (ver Rm 9:15, 20-21). Portanto, graça não é dívida, não pode ser cobrada. Foi por sua livre vontade que ele decidiu salvar a humanidade, manifestando-lhe sua graça.308 Na verdade, há alguns atributos divinos que, embora façam parte de seu caráter, estavam ocultos em seu ser e jamais teriam sido conhecidos por suas criaturas não fosse o surgimento do pecado. Sua manifestação não seria necessária nem pertinente em um universo santo e perfeito. São eles: a ira, a graça, a misericórdia e a longanimidade. Todos expressam a reação de Deus face ao pecado309 e são endereçados a toda humanidade. Por um lado, todos os homens estão debaixo da ira de Deus (Rm 1:18; Ef 5:6 cf. Rm 3:10-12; Sources, rev. e ed. Ernst Bizer, traduzido por G. T. Thomson (London: Allen & Unwin Ltd., 1950), 96 e Webwe, 1:424-425. 306 Pendleton, 53; White, Mensagens escolhidas, 1:331-332. 307 Talvez a razão disto se encontre no grau de revelação que cada qual recebera. Assim, ao passo que a humanidade poderia receber uma maior revelação do caráter de Deus e, conseqüentemente, reconhecer seu pecado, voltar-se de coração para ele e ser restaurada, os anjos que se rebelaram, já conviviam intimamente com Deus e já conheciam o que lhes era possível conhecer sobre ele de modo que nenhuma revelação posterior poderia beneficiá-los, conduzindo-os a um arrependimento genuíno. Haviam ultrapassado os limites e não havia mais como retornar. Ver idem, História da redenção, 18. 308 Grudem, 472-473. 309 Ver Chafer, 2:636. 88 Ef 2:3; 1Jo 1:8, 10) e, por outro, todos igualmente são alcançados pela graça, pela misericórdia e pela longanimidade de Deus (Rm 2:4; 3:25; 5:18, 20; Tt 2:11; 2Pe 3:9, 15). Como será demonstrado posteriormente, a ira de Deus possui um aspecto histórico e outro escatológico.310 Embora a ira final resulte na destruição de todos que rejeitarem a graça,311 a ira presente tem seus aspectos positivos312 que cooperam com a graça visando a salvação do homem. Portanto, é do interesse de cada ser humano submeter-se à graça de Deus a fim de escapar da ira futura que virá no dia do juízo.313 A longanimidade de Deus A longanimidade de Deus é expressa no hebraico pela expressão erekh ’appayim (Êx 34:6; Nm 14:18; Sl 86:15; 103:8; Is 48:9; Na 1:3) literalmente, “longo de rosto”, e a partir daí transmite a idéia de lentidão para a ira e para punir o erro. No grego a expressão é makrothumía (Rm 2:4; 9:22; 2Pe 3:15), literalmente, “grandeza de ânimo” – para amar e esperar, perdoar e esquecer. É o aspecto da bondade de Deus que tolera o pecador, apesar de sua demora no mau caminho. Fica entre os extremos da ira e da graça e se manifesta quando Deus adia, temporariamente, o merecido julgamento e continua a oferecer salvação e graça por longos períodos de tempo, dando espaço para arrependimento e conversão (1Tm 1:16; Ap 2:21). Este procedimento pode ser visto em seu trato com Israel (Nm 14:18; 310 Ver a argumentação pertinente nas páginas 140-142; 153-166. 311 Ver o apêndice A. 312 Ver a exposição na página 157. 313 Ver Hahn, “Ira”, DTNT, 2:361 e Allen, 1320. 89 Sl 103:8-9) e com os antediluvianos (1Pe 3:20) e, na atualidade, com o mundo em relação ao retorno de seu Filho (2Pe 3:9).314 O NT também traz a palavra anochē, empregada apenas em Rm 2:4 e 3:25, em ambos os casos traduzida geralmente como tolerância e referindo-se à longanimidade de Deus, sem qualquer distinção nítida de makrothumía.315 Significa conter, fazendo referência ao juízo. É empregada na literatura grega, às vezes, para referir-se a uma trégua, a qual implica na cessação das hostilidades das partes em conflito. Semelhantemente, a longanimidade de Deus com a humanidade é uma espécie de trégua divina temporária que Ele tem proclamado em Sua graça.316 Todavia, há o perigo de o homem abusar da longanimidade de Deus, o que ocorre quando ao invés de gratidão e correto aproveitamento da oportunidade para arrependimento 314 Berkhof, 75; Barnhouse, 26; Fichtner, 5:405; Matthew Henry, “Romanos”, Comentario exegeticodevocional a toda la Bíblia, traduzido por Francisco Lacueva (Barcelona: CLIE, 1989), 11:253; Falkenroth e Brown, “Paciência, Firmeza, Perseverança”, DITNT, 3:372; Luis Bonnet e Alfredo Schroeder, Comentario del Nuevo Testamento: Epistolas de Pablo, 2ª ed. (Buenos Aires: Casa Bautista de Publicaciones, 1974), 3:136; Stählin, 5:49, 425-426; “Willing” [Rom 9:22], SDABC, 6:589; J. F. MacArthur, Comentario MacArthur del Nuevo Testamento: Romanos 1-8 (Grand Rapids: Editorial Portavoz, 2001), 151; J. Barmby e J. Radford Thomson, “The Epistle of Paul to the Romans”, The Pulpit Commentary (Grand Rapids, MI: Eerdmans, reimpressão 1977), 18:58-59; Grudem, 145-148; White, Mensagens escolhidas, 2:372-373; idem, Profetas e reis, 413; idem, Vida e ensinos, 10ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 185; idem, O desejado de todas as nações, 587; idem, Caminho a Cristo, 28ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 85; idem, Educação, 8ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 27; idem, Testemunhos seletos, 1:477; idem, Grande conflito, 7; idem, Patriarcas e profetas, 405. “Makrothumía... pode ser traduzida, com a mesma exatidão, por ‘paciência’” (ex.: Mt 18:26, 29). Falkenroth e Brown, 3:372. Entretanto, na versão bíblica adotada nesta investigação, o único texto bíblico que se refere à paciência de Deus é Rm 15:5, onde a palavra grega empregada é outra: hupomonēs, derivada do verbo hupomenō, que originalmente era utilizada em contextos militares e significava “ficar para trás”, “manter-se firme”, “sobreviver”, “permanecer constante”, “perseverar”, “esperar” e “aguardar”. Ibid., 3:378. Como, no contexto dessa passagem (Rm 15:5), os crentes estavam sendo incentivados a manter a unidade, o que exigiria deles muita paciência e perseverança, Deus é apontado como a fonte de onde poderiam obtê-las. Moody, 10:317. 315 “Mesmo assim é possível detectar certos matizes de sentidos. Macrothumia é indubitavelmente menos ativa e vigorosa... Além disso, tem implicações escatológicas mais fortes, e antecipa o julgamento final de Deus, enquanto anochē denota o período da graciosa longanimidade de Deus, com referência especial em Romanos a Israel e ao período até a cruz de Cristo.” Falkenroth e Brown, 3:372. 316 MacArthur, 151; Falkenroth e Brown, 3:372; Everett F. Harrison, “Romans”, The Expositor’s Bible Commentary (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1984), 10:29. 90 e reforma de vida, há manifesto desprezo para essa longanimidade. Aqueles que assim procedem imaginam que por ser Deus longânimo e por frequentemente reter a condenação e a punição merecidas, não cumprirá as ameaças que fez, ou que, por alguma razão, estão excluídos da punição judicial de Deus (como foi o caso dos judeus que confiavam que sairiam ilesos por serem o povo da aliança e por seu parentesco com Abraão (ver Mt 3:7-9; Lc 13:28-29; Rm 9:6-8 cf. Gl 3:7).317 Embora Deus seja longânimo para com a humanidade pecadora, esta longanimidade tem um limite temporal, além do qual sua ira permanece.318 Se for desprezada ou abusada (1Pe 3:20), servirá para exasperar a ira de Deus e para confirmar a destruição anunciada, resultando em grande severidade no juízo, como o que ocorreu com Faraó.319 Ao tratar desse tema, o NT também emprega o substantivo paresis, “tolerância”,320 que aparece unicamente em Rm 3:25 e significa “deixar passar”, “passar por alto” ou 317 Barmby, J. e J. Radford Thomson. “The Epistle of Paul to the Romans”. The Pulpit Commentary. Grand Rapids, MI: Eerdmans, reimpressão 1977. 18: 58-59. Discorrendo sobre este tópico Ellen White declarou que “passado o período de nossa prova, se formos achados transgressores da lei de Deus, encontraremos no Deus de amor um ministro de vingança. Deus não Se compromete com o pecado. Os desobedientes serão punidos... O amor de Deus agora se expande para incluir o mais baixo e vil pecador que, contrito, venha a Cristo. Estende-se para transformar o pecador num obediente e fiel filho de Deus; mas nenhuma alma pode ser salva se continuar em pecado. “O pecado é a transgressão da lei, e o braço que é agora poderoso para salvar, será forte para punir quando o transgressor ultrapassar as fronteiras que limitam a paciência divina”. White, Mensagens escolhidas, 1:313. 318 EBD, ver “Wrath”; White, Profetas e reis, 276, 417; idem, Testemunhos seletos, 2:62-63; idem, Grande conflito, 36; idem, Educação, 178; idem, Vida e ensinos, 185. 319 Stählin, 5:425-426; “Willing” [Rom 9:22], SDABC, 6:589. Podemos ver exemplos disso nos juízos de Deus sobre o mundo antediluviano porque se havia tornado “incurável”, sobre os habitantes de Sodoma porque “eram incorrigíveis no pecado” (White, Testemunhos para ministros e obreiros evangélicos, 4ª ed. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001, 75) e sobre os amorreus, os antigos moradores de Canaã, que apesar de terem visto “o poder divino manifestado de maneira assinalada”, não apresentaram nenhuma “mudança para melhor”. Idem, Testemunhos seletos, 2:63. 320 O conceito de tolerância não se encontra no AT com o sentido positivo de Deus em relação ao homem. Como substantivo não aparece no hebraico, mas sim como verbo: kûl, que é utilizado trinta e oito vezes com os significados de conter, segurar, tolerar, suportar, alimentar e prover. Seu sentido básico é o de conter ou comportar algo como num utensílio (exs.: 1Re 7:26, 38; 8:64; 2Cr 4:5; 7:7). Jeremias o emprega figuradamente para expressar a impossibilidade de conter dentro de si a ira divina, que é qual fogo ardente em 91 “deixar ir sem castigo”.321 Paresis era uma palavra usada na Lei Romana, onde, geralmente referia-se a alguma pessoa que fez um testamento e que deixou de fora alguém importante que, portanto, não entrou em consideração, foi passado por alto, esquecido intencionalmente.322 Ao usar esta expressão Paulo não se refere à remissão, ao perdão para os pecados passados, mas à suspensão provisória da pena desses pecados.323 Desse modo, embora os pecados ainda continuem a ser castigados (ver Rm 1:18-32), ainda que não completamente, Deus, ao invés de intervir a cada instante, prefere aguardar e suportar até que chegue o tempo de tratá-los de modo definitivo.324 O Senhor não se esqueceu dos pecados passados, todavia não se ocupou deles de imediato.325 Houve um adiamento do julgamento.326 A Ira de Deus Comparada à Ira do Homem e à Ira dos Deuses A expressão “ira de Deus” costuma alarmar as pessoas. Isso ocorre porque a tendência do pensamento humano, que frequentemente aprende por comparação, é identificá-la com os aspectos negativos tão comuns nas demonstrações da ira humana e nos seu interior (Jr 6:11; 20:9). Também profetas anunciaram a impossibilidade de alguém suportar a ira de Deus no Dia do Senhor (Jl 2:11; Ml 3:2). John N. Oswalt, “kûl”, DITAT, 706-707. 321 H. Vorländer, “Perdão”, DITNT, 3: 525, 528; Sakae Kubo, A Reader’s Greek–English Lexicon of the New Testament and a Beginner’s Guide for the Translation of New Testament Greek, 6ª ed. (Grand Rapids, MI: Zondervan Publisching House, 1979), 137; MacArthur, 254. 322 Lloyd-Jones, 98. 323 Ibid., 99-100; Murray, 119-120. 324 Claus Westermann, Fundamentos da teologia do Antigo Testamento, traduzido por Frederico Battler (São Paulo: Ed. Academia Cristã Ltda., 2005), 137; Harrison, 10:44; Marvin R. Vincent, “The Epistle to the Romans”, Word Studies in the New Testament: The Epistles of Paul (Grand Rapids, MI: Eerdmans, reimpressão 1946), 3:48. Ver o comentário pertinente no capítulo dois. 325 Michelsen, 253. 326 Barnhouse, 26; Grudem, 151-152. 92 relatos mitológicos das divindades pagãs. Todavia, embora haja alguma semelhança, há grandes diferenças. A Ira do Homem De modo geral a ira é a expressão de um sentimento experimentado diante de uma situação injusta ou contrária à nossa vontade. Aspectos negativos e positivos Este sentimento frequentemente está associado à exasperação desaforada, ao ódio vingativo e à paixão descontrolada e irracional, podendo nos fazer perder o equilíbrio e até o juízo e nos levar a cometer atropelos e injustiças.327 Embora seja definida como “uma loucura temporária”, isso só é verdade quando ela é egoísta ou pecaminosa, o que nem sempre acontece. Há uma ira justa que nem é loucura, nem é breve.328 Embora pecador, e por isso imperfeito, o homem pode ter ira sem maldade, como a que ocorre em face de uma grave injustiça feita à outra pessoa, sendo neste caso uma ira boa e necessária.329 No AT, a ira humana é às vezes encarada de modo negativo, como um pecado (Gn 49:5-7; 1Sm 20:30; Jó 36:13 e 18; Sl 37:8-9; Pv 12:16; 27:3-4; 29:8; 30:33) e outras, de modo positivo, como algo justificável (Êx 16:20; 32:19; 1Sm 11:1-6; 2Sm 12:5; Ne 5:4-6; Jr 6:11-15).330 Isso também é válido quanto ao NT. Assim, quando uma autoridade secular, 327 Domingo Fernandez Suarez, Una interpretación del Apocalipsis, 6ª ed. (Buenos Aires: Casa Bautista de Publicaciones, 1976), 153. 328 Grudem, 439. 329 Teixeira, 216. Um desprazer semelhante pode ser visto também na experiência daqueles que seguem a Cristo, quando têm uma “indignação justificável” que nasce da “sensibilidade moral” e que surge, por exemplo, “quando vêem que Deus é desonrado, e Seu serviço exposto ao descrédito” e “quando vêem o inocente opresso”. White, O desejado de todas as nações, 310. 330 Hahn, “Ira, raiva - Orgē”, DITNT, 2:444. 93 representando o Estado, pune um criminoso, não o faz em espírito de vingança, mas por vindicação da lei, que representa a estabilidade social (ver Jo 19:11; Tt 3:1; 1Pe 2:13-17), sendo vista como ministro de Deus para castigar (literalmente “executar ira”) sobre o que pratica o mal (Rm 13:4). Todavia, em outras situações somos instados a dar lugar à operação da ira de Deus em lugar da nossa (Rm 12:19; Hb 10:30).331 Comparação com a ira de Deus O termo “ira de Deus” sugere, algumas vezes de modo inconsciente, aquelas qualidades negativas que podem ser associadas com a ira humana e, desse modo, as pessoas confundem a ira divina com os seus próprios sentimentos pecaminosos e a expressão “ira de Deus” contribui para perverter a concepção de Deus, criando por um lado uma forte objeção e, por outro, uma atitude de desculpar a Deus por ele mostrar sua ira, como se isso fosse uma falha de seu caráter. Todavia, a ira humana é frequentemente uma ira que está corrompida. Deus é santo legislador e tem toda razão de mostrar o seu desprazer para com o pecado. Sua ira tem um caráter judicial (ver Rm 13:4-5).332 Ao se comparar a ira de Deus com a ira humana pecaminosa percebe-se que: (1) No homem é uma paixão maligna que perturba o equilíbrio emocional e o faz arder com o desejo de ferir a outros. Mas não há nenhuma malignidade no coração de Deus. Antes, sua ira provém de seu amor e se levanta contra o mal que quer arruinar suas criaturas.333 (2) No 331 Ibid., 2:446-447; Falkenroth, 1:392 ; Teixeira, 216. 332 John Knox e Gerald R. Cragg, “The Epistle of the Romans”, The Interpreter’s Bible (New York / Nashville, TN: Abingdon Press, 1959), 9:396-397; Everett F. Harrison, “Romans”, The Zondervan NIV Bible Commentary (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1994), 2:527; idem, “Romans”, EBC, 10:22; Campos, 347; Guthrie, 102. 333 Joseph S. Exell, Romans, 2 vols., The Biblical Illustrator (Grand Rapids, MI: Backer Book House, s. d.), 1:73; “Epístola aos Romanos”, O Novo Testamento interpretado, 6 vols., ed. Russell Norman Champlin (São Paulo: Hagnos, reimpressão 1998), 3: 576. 94 homem é uma paixão dolorosa que frequentemente prejudica mais quem a abriga do que aquele a quem é endereçada. Todavia, nada pode perturbar a paz de Deus.334 (3) No homem é uma paixão egoísta, pois desponta em quem se sente de algum modo prejudicado. Mas isso não acorre com Deus, o qual nunca pode ser prejudicado por alguém.335 (4) A ira humana se volta contra a ofensa, ou o ofensor, ou ambos, e pode resultar em recolhimento e antagonismo. Há algo assim na ira de Deus. O mal moral lhe é repugnante e extremamente desagradável em razão de sua natureza santa, e sua indignação pode resultar em seu abandono do pecador contumaz ou no envio de seus juízos contra ele.336 (5) No homem há uma tendência natural para a vingança pessoal, o que não ocorre com a ira de Deus. Isso pode ser percebido no fato de que dificilmente um homem irado consentiria em transferir sua ira, canalizando-a para uma pessoa perfeitamente inocente; contudo, foi isso o que Deus fez, quando transferiu para Cristo a responsabilidade por nossos pecados.337 Portanto, a ira de Deus não é como a do homem, não é paixão maligna, não é fundada no egoísmo, nem tem conotação de vingança pessoal. Ao contrário, é sempre uma reação contra uma única ação: o mal. Assim, é inteiramente previsível, coerente, constante e imutável, sempre em harmonia com sua justiça e até o dia final do julgamento temperada com misericórdia.338 334 Exell, 1:73. 335 Ibid. 336 “Em contraste com a ira humana, a ira de Deus é sempre vista positivamente, não apenas porque é sempre uma reação ao falso comportamento humano que se manifesta contra a vontade revelada de Yahweh; como tal ela é coincidente com a santidade, majestade e poder de Yahweh”. Schunck, “‘ebrâ, ‘abar”, TDOT, 10:430. 337 Ibid.; EBTF, ed. 1985, ver “Ira de Deus”. Ver no capítulo 3, a seção que trata de Cristo como substituto do pecador. 338 Stott, 49-50; Dicionário bíblico Vida Nova, ed. 2000, ver “Ira”; Killen, WBE, ver “Wrath”. 95 A Ira dos Deuses A ira dos deuses é o fundamento de todas as religiões pagãs, em todas as épocas e lugares.339 Ela tem sido tão vividamente apresentada à consciência de todos os povos, ao ponto que cada culto pagão pode ser entendido como um esforço para antecipar-se a ou suavizar a ira dos deuses. O próprio nome de alguns deles, como é o caso de Fúrias, mostra que ira é sua natureza.340 Cícero chegou a afirmar que todas as escolas filosóficas têm em comum o conceito de que a divindade tem liberdade para se enraivecer.341 Segundo a compreensão pagã, a ira dos deuses era direcionada de modo a atingir a outros deuses ou aos homens e, em ambos os casos, era uma forma de autoafirmação e protesto.342 Algumas obras da antiguidade contêm muitas informações a respeito das divindades. Entre elas destacamos Timeu, de Platão, De natura Deorum, de Cícero e Teogonia, de Hesíodo, que explana a origem e a descendência dos deuses. Um erudito romano, Marcus Terentius Varro Reatinus, catalogou cerca de 30 mil deuses pagãos. Todavia, a realidade aponta para um número incalculável.343 No Oriente Médio Há numerosos textos do Oriente Médio que tratam da ira dos deuses. Parte dessa literatura pagã seguia uma orientação mitológica, e parte, uma orientação histórica.344 Os documentos que seguem uma abordagem mitológica evidenciam que havia vários deuses, 339 J. I. Packer, O conhecimento de Deus, 3ª ed., traduzido por Cleide Wolf (São Paulo: Mundo Cristão, 1987), 163-164; Hahn, “Ira, raiva - Orgē”, DITNT, 2:443. 340 Kleinknecht, 5:385. 341 Ibid., 5:386. 342 Hahn, “Ira, raiva – Orgē”, DITNT, 2:443; Kleinknecht, 5: 385. 343 EBTF, ed. 1985, ver “Deuses falsos”. 344 Herion, 6:991-992. 96 de várias categorias e graus de poder, de temperamento inconstante, cheios de caprichos, que se rivalizavam, ofendiam e irritavam por qualquer motivo contra os homens, dificultando-lhes a existência; estes, por sua vez precisavam, periodicamente, negociar com eles e aplacar-lhes a ira, o que era feito mediante dádivas custosas, em especial o sacrifício humano.345 A grande maioria desses textos tem seu foco no mundo dos deuses e no relacionamento que há entre eles. As descrições antropomórficas e da antropopatia tendem a ser especialmente intensificadas: há deuses que se embriagam até ficarem bêbados, que são estimulados sexualmente, que ficam amedrontados, surpresos, cheios de alegria ou malhumorados e vingativos. Desse modo, as divindades das várias culturas ao redor de Israel são retratadas como instáveis, arbitrárias, atuando sem propósito e frequentemente ficando iradas sem nenhuma boa razão. Aparentam ser dotadas de uma paixão maliciosa e incontrolável que costuma caracterizar uma personalidade implacável. Examinemos uns poucos exemplos: no mito de Atrahasis, os deuses permitem que Enlil, o deus da tormenta, destrua a humanidade por meio de um dilúvio, em razão desta haver se multiplicado tanto que o barulho que fazia não deixava os deuses, especialmente Enlil, dormir à noite. Do mesmo modo, no Épico de Gilgamesh, foi Enlil quem ficou muito furioso quando viu o bote que Utnapishtin fizera para se salvar e percebeu que seus planos haviam sido frustrados. É bastante comum que nesses textos um deus irado precise ser acalmado por outros deuses que receiam que essa ira saia do controle. Ainda no Épico de Gilgamesh, Ishtar – a deusa do amor e da guerra – é apresentada como uma amimada adolescente que, 345 Packer, 163-164. 97 ao ser contrariada por Gilgamesh, muito irada e chorosa, suplica a seu pai Anu que destrua Gilgamesh, porque ele lançara sobre ela muitos insultos chamando a atenção para o seu mau comportamento.346 Em acádio há dois vocábulos para ira: agâgu designa uma irritação momentânea e ezēzu, uma qualidade permanente. Nos hinos sumérios a ira dos deuses aparece algumas vezes como um entre outros atributos que causavam terror, sendo que esses deuses podiam estar encolerizados entre si ou enraivecidos contra os homens, por causa dos pecados destes. Também havia orações próprias para aplacar as divindades.347 Na religião dos hititas, os deuses eram obrigados a castigar os homens quando estes não cumpriam seus deveres ou quando se rebelavam contra o domínio daqueles. Tal castigo podia não ocorrer de imediato, podia até mesmo não vir sobre o culpado, mas sim sobre toda sua descendência.348 Se a desgraça que se abatesse sobre um homem tivesse sua origem em um deus irado, era necessário primeiro identificar tal divindade e, depois, descobrir o que lhe oferecer para conseguir seu favor e assim ter a alegria de viver.349 Os deuses egípcios também tinham suas invectivas apaixonadas. A deusa Neith, por exemplo, promete irar-se e fazer com que o clima entre em colapso se Horus, seu favorito, 346 Herion, 6:991-992. 347 Johnson, “za‘am”, DTAT, 1:374. 348 Louis Delaporte, Los Hititas, La evolucion de la humanidad, vol. 9, traduzido por Luis Perigot Garcia (México, DF: Union Tipográfica Editorial Hispano-Americana, 1957), 9:205. 349 Ibid., 9:208. Um exemplo disso pode ser visto num episódio envolvendo o rei Mursil. Este, tendose perdido em uma viagem durante a qual enfrentou uma violenta tempestade, decidiu consultar os oráculos. O primeiro lhe revelou que fora o deus-da-tempestade da cidade de Manuzzija quem estava irado contra ele. O segundo lhe explicou que aquela divindade poderia ser aplacada por meio do holocausto de algumas aves e de um novilho carregado com os pecados do rei. Finalmente, o terceiro oráculo lhe disse que a oferenda deveria ocorrer no templo da cidade de Kummani – ibid. Outro mito dos hititas apresenta o deus Telepinu tão furioso – talvez por um desentendimento com seu pai – a ponto de não conseguir calçar corretamente seus sapatos. Como resultado enviou seca e fome sobre a terra. Mais tarde essa ira se intensificou, quando uma abelha o encontro dormindo e lhe deu uma ferroada para acordá-lo. Herion, 6:991-992. 98 não for escolhido para substituir Osíris. Em outro mito, a sanguinária divindade Sekhmet, investe contra a humanidade para aniquilá-la, todavia esta é salva pela intervenção de outros deuses. Também o deus Seth é tão vividamente retratado que veio a ser conhecido como “o furioso”. Sua ira irracional contra a ordem ideal parece representar todos os aspectos caóticos do mundo.350 No panteão cananeu havia, por exemplo, Moloque, o deus dos amonitas, também conhecido como Milcom (1Rs 11:5, 33) e Malcom (Jz 49:1, 3), o qual exigia o sacrifício de crianças, queimadas em sua honra. Em Israel seu culto era proibido sob pena de morte (Lv 18:21; 20:1-5); todavia, em certos períodos, tanto o povo como seus reis praticaram essa terrível idolatria (2Rs 17:17; 2Cr 28:3; 33:6) tão veementemente condenada pelos profetas (Jr 7:29-34; Ez 16:20-22). Escavações feitas na Palestina descobriram restos de esqueletos calcinados de criancinhas, ao redor dos santuários dessa divindade.351 Também Quemós, a divindade nacional dos moabitas (Nm 21:29), era honrada com ritos cruéis semelhantes aos oferecidos a Moloque. A fúria dessa divindade está registrada na Pedra Moabita como a razão para o domínio de Israel sobre aquele povo (Jz 11:24).352 Entretanto, há textos pagãos, orientados historicamente (e não mitologicamente), que retratam a ira dos deuses como um tipo de pathos (paixão, tristeza353), legitimamente ocasionada por ofensas humanas contra a justa vontade daqueles deuses. Nesses textos as transgressões humanas que tendem a provocar uma ira legítima dos deuses são: o desdém 350 Ibid., 6:991. 351 NDBI, ed. 1985, ver “Divinidades paganas”; Merrill F. Unger, Unger’s Bible Dictionary, 3ª ed. (Chicago: Moody Press, reimpressão 1965), 416. 352 Ibid., 414-415. Quando YHWH, repreendendo a Israel se refere a essas práticas abomináveis, declara que tais sacrifícios nunca lhe passaram pela mente (Jr 7:31; 19:5; 32:35; Ez 20:31). 353 Ver B. Gärtner, “paschō ”, DITNT, 4:520 e Hermann Haarbeck, Hans–Gerog Link, “lypeô”, DITNT, 3:26. 99 para com o templo do deus e a violação de um juramento solene,354 mas também a transgressão de alguma das exigências fundamentais da vida, da moralidade, ou da lei. Assim, não era uma ira cega, pois visava a colocar limites e a restaurar a ordem.355 Nesses textos orientados historicamente, a ira dos deuses pagãos era mais semelhante à ira de Deus entre os israelitas, uma ira legítima. Um exemplo é aquele da Pedra Moabita.356 Tanto na literatura pagã quanto na Bíblia, o desprezo manifestado para com a divindade e a busca de uma vida independente dela são apresentados como razão para a ira divina.357 Contudo, enquanto que a ira dos deuses do antigo Oriente Médio precisava ser, com frequência, restringida pela intervenção de outros deuses, o Deus da Bíblia é frequentemente retratado como temperando sua ira contra Israel com clemência e amor (Êx 32:12-14; Is 54:7-8; Os 11:8-9; Mq 7:18), e até como tendo o desejo de restringir sua própria ira.358 No mundo grego Um dos vários elementos unificadores das cidades gregas foi a religião, pois ao menos algumas crenças e ritos eram comuns a todas elas.359 O chefe do Olimpo era Zeus. Ele e seus irmãos tiraram sortes entre si para dividirem o comando da terra. Desse modo, Zeus ficou com o domínio do céu, Posseidon com os oceanos e Hades, com as entranhas da terra. Além desses, havia outros deuses principais, que habitavam o Olimpo – todos 354 Herion, 6:991-992; Hahn, “Ira”, DTNT, 2:357. 355 Ibid., “Ira, raiva – Orgē”, DITNT, 2:443; idem, “Ira”, DTNT, 2: 357; Kleinknecht, 5:385. 356 Herion, 6:992-993. 357 Stählin, 5:423. 358 Herion, 6:995. 359 Will Durant, História da civilização, traduzido por Gulnara de Morais Lobato, 9 vols., 3ª ed. (São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957), 4:225. 100 provavelmente introduzidos na Grécia através das invasões dos aqueanos e dóricos – os quais sobrepujaram as divindades locais. Esses deuses olímpicos não eram onipotentes nem oniscientes, antes se imitavam e mesmo se opunham uns aos outros, sendo que qualquer um deles poderia ser enganado, inclusive Zeus. Este tinha suas amantes: a primeira foi Dione, a quem depois abandonou; outra, Metis, foi engolida por ele; e também Temis, Eurinome, Leto e até suas irmãs Demeter e Hera, esta última muito briguenta.360 Posseidon – que comandava os oceanos, os rios e as fontes de águas – era muito temido e a ele os navegantes gregos erguiam preces e erigiam templos nos promontórios perigosos com a intenção de aplacar sua ira. Até as nações desprovidas de mares o adoravam.361 Além dos deuses do Olimpo, comandados por Zeus, havia as divindades locais que não seguiam a orientação dele e cujos cultos eram mais intensos.362 Os mais terríveis deuses habitavam as entranhas da terra. Hecate, por exemplo, um espírito mau, terrível e assombroso, saía da terra e espalhava a desgraça por toda parte onde incidia seu olhar.363 Na Grécia antiga, todos os objetos e forças que havia na terra e no céu, todas as bênçãos e todos os terrores, bem como todas as qualidades do homem, eram personificados nos deuses, em geral de forma humana, de modo que nenhuma outra religião foi tão antropomórfica quanto a grega. Além disso, todo ofício, profissão ou arte possuía um deus 360 Ibid., 4:232-234. 361 Ibid., 4:239. 362 Ibid., 4:225. 363 Ibid., 4:230-231. 101 como patrono. E ainda havia demônios, harpias, fúrias, fadas, monstros, sereias e ninfas – tão numerosos quanto os homens.364 Às vezes, em ocasião de grande necessidade, havia sacrifícios humanos. Assim, Agamenon imolou sua filha Ifigênia em troca de um vento favorável que lhe movesse as naus; Aquiles queimou 12 rapazes troianos em uma pira fúnebre; vítimas humanas foram ofertadas a Dionísio e outras lançadas do alto dos penhascos de Chipre e Leucas para saciar Apolo; e os espartanos celebraram os festejos de Artemis Ortia reunindo meninos em seu altar e chibatando-os até a morte.365 Entretanto, com o correr do tempo, os ritos e mitos mais selvagens foram desaparecendo e houve um governo divino mais organizado, o que nada mais era do que um reflexo do desenvolvimento da estabilidade política da região.366 Inicialmente a ira dos deuses não era abordada mediante o uso de orgê, que não é uma palavra homérica, mas cholos (cólera), kotos (rancor), mēnis (ira) e seus verbos associados. Esta última era uma palavra utilizada quase que exclusivamente na esfera sacra. Apenas na literatura de tragédia passou-se a usar orgē para a ira dos deuses. Mais tarde, orgē adquiriu uma conotação negativa e foi tida como uma paixão inapropriada aos homens e aos deuses.367 No mundo romano Percebe-se também nos grandes historiadores romanos como Tácito e Tito Lívio que a forma de pensamento cúltico e religioso adquire uma significância histórica que 364 Ibid., 4:226. 365 Ibid., 4:249. 366 Ibid., 4:233. 367 Hahn, “Ira, raiva – Orgē ”, DITNT, 2:444. Para uma discussão sobre a ira dos deuses no mundo grego, ver Kleinknecht, 5:385-389. 102 nunca havia tido para os gregos. Assim, entre os romanos já havia a idéia de que a ira da divindade cai especificamente sobre os ímpios, aqueles que desrespeitam os deuses. Para eles, a estabilidade do estado e do governo residia essencialmente sobre a religião, de modo que os eventos desastrosos que ocorriam na vida política e histórica – tais como dissensões internas, lutas de classes, guerra civil e rebelião, além das doenças e dores ao homem particular – eram vistos como relacionados à ira dos deuses, motivada especialmente pela culpa religiosa e a negligência às cerimônias.368 Entretanto, eles também apresentam a possibilidade de se contrabalançar tal ira, e mesmo promover a reconciliação, através de ações cúlticas tais como orações, votos, sacrifícios e ritos de expiação.369 No pensamento pagão, os deuses com freqüência se iravam contra os homens, mas esta ira podia ser aplacada e a boa vontade deles assegurada por iniciativa do ofensor, que ofertava um sacrifício conciliatório. Entretanto, no AT o procedimento é outro, pois a conciliação é realizada pelo próprio Deus e não pelo transgressor.370 Além disso, a ira de Deus não é caprichosa nem possui aquelas qualidades antiéticas tão comuns nos relatos da ira dos deuses pagãos.371 Também é relevante que o NT, ao tratar da ira de Deus, seguindo a LXX, não emprega as palavras gregas utilizadas para descrever a ira dos deuses – cholos (cólera), kotos (rancor) e mēnis (ira) e seus verbos associados – mas apenas orgē e 368 Ibid., 5:389-391; Hahn, “Ira”, DTNT, 2:357-358; idem, “Ira, raiva – Orgē”, DITNT, 2:443. 369 Ibid. Para uma discussão sobre a ira dos deuses no mundo romano, ver Kleinknecht, 5:389-391 e Hahn, “Ira”, DTNT, 2:357. 370 Ladd, Teologia do Novo Testamento, 398. 371 Evans, 5:3113. 103 thumos.372 Desse modo, o conceito da ira de Deus, que é comum em Paulo, deriva da apocalíptica judaica do AT e não da tradição grega.373 Resumo e Conclusões Ao discorrer sobre o significado da ira divina, este capítulo iniciou com uma discussão linguística que abarcou o emprego de expressões antropomórficas e da antropopatia nas descrições das características de Deus, ambas revelando que a ira é sua aversão ao pecado, contra o qual trava um combate sem tréguas. Na sequência, foram analisados os vocábulos hebraicos e gregos que os escritores bíblicos empregaram para retratar a ira de Deus. No AT vários deles possuem um caráter figurado: chârôn e chêmâh designam o ardor, a excitação, o fogo interno da emoção do ódio; ’aph (literalmente “nariz”) e rûah (alento) reproduzem o efeito da ira sobre a respiração e seus órgãos; ‘ebhrah, za‘am, za‘aph, transmitem a idéia de “espumar” ou “ferver” e qetseph, a de quebrar alguma coisa sob pressão. Portanto, a ira de Deus é descrita como uma paixão violenta que, pelo menos em algumas circunstâncias, necessita ser descarregada para acalmar-se (Ez 5:13; 6:12; 7:8; 13:15; 16:42; 24:13).374 Já no NT são utilizadas apenas duas palavras, orgē e thumos, e não há diferença muito significativa entre elas, sendo que ambas são empregadas para traduzir as várias 372 Kleinknecht, 5:385-386; Grether e Fichtner, “Orgē: The Wrath of God in the LXX”, TDNT, 5:410; Hahn, “Ira”, DTNT, 2:357. 373 Ernst Kasemann, Commentary on Romans, traduzido por Geoffrey W. Bromiley (Grand Rapids, MI: Eerdmans, reimpressão 1990), 37. DB, ver “Ira” e “Ira de Dios”; Eichrodt, 1:58-59. Na literatura judaica pós-canônica, tanto na dispersão como na Palestina, o pensamento sobre a ira de Deus continuou na mesma linha encontrada no AT. Sjöberg e Stählin, “Orgē: The Wrath of God in Later Judaism Fichtner”, TDNT, 5:412. Também é muito comum na literatura rabínica, não havendo ali qualquer traço de aversão à ideia. Ibid., 5:416. 374 104 palavras do AT para ira.375 Também não há nenhuma distinção precisa entre a ira como uma emoção divina e sua expressão, seja esta por meio de palavras – de ameaça e de maldição – ou de ações mais concretas.376 O estudo também avaliou a relação entre a ira e os outros atributos morais de Deus, de maneira especial a santidade, a justiça e o amor em suas várias formas. Assim, em relação à santidade, foi visto que em Deus há perfeição moral e espiritual e que ele demanda de todos os seres morais uma pureza que corresponda a sua, de modo que sua ira é apresentada como uma das perfeições divinas, expressão justa e natural de sua santidade como reação contra o pecado. Com respeito à justiça de Deus, foi demonstrado que toda punição do pecado é considerada como justa intervenção da ira de Deus contra aqueles que não se conformam com sua santidade. Todavia, porque isso não acontece como um princípio de efeito automático, há a impressão de que o governo divino não é justo. Para se evitar essa ideia, faz-se necessário que a justiça divina seja vista também como escatológica e no escopo da eternidade. Então, quando o plano de salvação se concretizar, essa justiça será vista como perfeita e Deus, considerado justo por todo o universo, tanto pelos que serão salvos quanto pelos que se perderão. As considerações sobre o amor de Deus demonstraram que este não é simplesmente um sentimento ou emoção, mas um amor racional e voluntário que se baseia numa escolha deliberada, onde o componente emocional se encontra subordinado à verdade e santidade. Embora Deus ame suas criaturas de muitas formas (misericórdia, graça, bondade, 375 Büchsel, 3:168. 376 Wiklander, 4:110. 105 longanimidade), também espera que elas correspondam ao seu amor. Este amor de Deus não pode apenas ignorar as ofensas do pecado, caso contrário não passará de mero sentimentalismo. Para ser compreendido, necessita incluir os aspectos da justiça e da santidade que se opõem ao mal em todas as suas formas e àqueles que o rejeitam. Sendo assim, a ira de Deus, além de ser a mais verdadeira expressão de sua santidade e justiça punitiva contra o pecado, é também a reação do seu amor desprezado ou abusado. Em realidade, as evidências bíblicas apontam para o fato de que sua ira não é incompatível com seu amor e que tais atributos coexistem em sua personalidade e que, além disso, Deus experimenta simultaneamente, para com o pecador, tanto a ira quanto o amor: a ira, por causa da falta de santidade nele, e o amor, em razão de sua necessidade. A comparação da ira de Deus tanto com a ira humana quanto com a ira dos deuses da mitologia pagã, demonstrou que a ira divina não inclui muitos dos aspectos negativos tão comuns a estas. Antes, é sempre seu desprazer e reação contra o mal, inteiramente previsível, coerente, constante e imutável, em perfeita harmonia com sua justiça e santidade, e até o dia final do julgamento, temperada com misericórdia, que busca de uma maneira adequada, preservar a ordem e promover a paz. Pesquisas feitas no Oriente Médio descobriram que embora haja textos de orientação mitológica, que apontam para a ira dos deuses como um tipo de paixão maliciosa e temperamental, que frequentemente caracteriza uma personalidade insensível, há outros, de cunho histórico, que retratam a ira dos deuses como um sentimento admissível, ocasionado por ofensas humanas que violavam alguma das exigências fundamentais da vida, da moralidade, ou da lei, e que visava, deste modo, a coibir excessos e a restaurar a ordem. 106 A história da Grécia revela que todos os objetos e forças que havia na terra e no céu, todas as bênçãos e todos os terrores, bem como todas as qualidades do homem, eram personificadas nos deuses. E ainda havia demônios, harpias, fúrias, fadas, monstros, sereias e ninfas – tão numerosos quanto os homens. Nenhum deles era onipotente nem onisciente, antes rivalizavam entre si e, por vezes, voltavam-se contra os homens. Com a intenção de aplacar sua ira, erigiam-se templos, faziam-se preces e oferceciam-se sacrifícios, inclusive humanos. Entretanto, com a passagem do tempo e o desenvolvimento da estabilidade política da região, essas cerimônias mais selvagens foram desaparecendo. Também entre os romanos já havia a crença tanto de que a estabilidade social e individual repousava sobre a religião – de modo que todos os eventos desastrosos eram resultados direto da ira dos deuses – como de que era possível abrandar essa ira através de orações, votos e sacrifícios conciliatórios. Em contrapartida, embora seja um fato que o Deus da Bíblia, por um lado, também se ira contra aqueles que transgridem suas leis e busca manter a ordem do universo aplicando o devido castigo, por outro, ele é retratado como mesclando sua ira com compaixão e amor e mesmo tendo a iniciativa de restringi-la e de promover a reconciliação. O capítulo a seguir expoem a realidade da ira de Deus no mundo dos homens: o que a desperta, como acontece e seus resultados, bem como a forma como ela cumpre os propósitos de Deus e beneficia o universo. CAPÍTULO II A REALIDADE DA IRA DE DEUS Uma simples leitura das Sagradas Escrituras é suficiente para se constatar a contínua presença da ira de Deus no mundo dos homens. Por vezes, ele abandona os homens que teimosamente recusam seu auxílio, retirando deles sua mão restritiva e protetora, e permite que sofram as consequências naturais de seus pecados. Em outras ocasiões, ele lhes envia a punição que seus pecados merecem, tanto no decorrer de sua vida como no juízo final. Os registros bíblicos demonstram que ao enviar seus justos juízos sobre os homens Deus faz uso de variados instrumentos, tais como anjos, homens, forças da natureza, pragas, doenças e acidentes. As manifestações de sua ira possuem dois aspectos, um histórico e outro escatológico. Desse modo, embora no presente ela esteja sendo revelada na experiência daqueles que se distanciam da verdade de Deus, ainda resta uma manifestação futura e final que ocorrerá na vinda do Senhor e no juízo final. Todavia, as Escrituras também enfatizam que o escape da ira divina é possível e que foi o próprio Deus que, em seu amor, o proveu em Cristo, e que o mesmo se encontra disponível a todo aquele que nele crer e a ele se submeter. A Ira de Deus no Antigo Testamento O texto do AT está repleto de informações a respeito da ira divina. Patriarcas, reis e profetas a descreveram. Uma análise de suas narrativas e profecias torna evidente o que a 107 108 causava, quais seus efeitos sobre aqueles que a recebiam e o tempo em que ela se manifestava. As Causas da Ira de Deus Ao se considerar o tema da ira de Deus, no AT, percebe-se que há basicamente duas causas. Na maioria das ocorrências ela é causada por ações humanas que violam a aliança, mas também pela desumanidade do homem para com os semelhantes. A quebra da aliança Escavações arqueológicas realizadas no Oriente Médio descobriram documentos, na forma de tabletes, de culturas vizinhas ao antigo Israel, os quais revelam que eram comuns dois tipos principais de tratados internacionais. Um deles ocorria entre partes iguais, com obrigações idênticas de ambas as partes;1 o outro, era feito entre um superior e um inferior,2 como o que acontecia entre um suserano e seu vassalo.3 Os tratados hititas – feitos com uma nação inferior – continham, entre outros itens, um prólogo histórico que relembrava o relacionamento já ocorrido entre as partes, destacando a bondade manifestada pelo superior para com o inferior, dando assim motivo para este ser grato e obediente aquele. Outros tratados, feitos entre um suserano e seu 1 Abraão realizou alguns tratados deste tipo. Em certa ocasião com uma família de amorreus (Gn 14:13) e, posteriormente, com Abimeleque, rei de Gerar (Gn 20:1-2, 21:22-34). 2 No período da conquista de Canaã há um incidente que ilustra este tipo de tratado: a aliança de Israel com os gibeonitas, segundo a qual, estes serviriam àquele e gozariam de sua proteção (ver Js 9). 3 As narrativas bíblicas trazem exemplos de violação desses tratados por meio de rebelião de uma nação contra seu suserano ou contra um poder dominante: o norte de Israel contra a casa de Davi (1 Rs 12:19; 2Cr10:19); Moabe contra Israel (2 Rs 1:1; 3:5, 7); Edom contra Judá (2 Rs 8:20, 22; 2Cr 21:8, 10); Judá contra Babilônia (Ez 21:29). Reinaldo W. Siqueira, “The Presence of the Covenant in Amos 1:2 – 2:16”, dissertation de PhD., Seventh-day Adventist Theological Seminary, Andrews University, May 1996, 228. 109 vassalo, também continham um procedimento básico que indicava a penalidade que ocorreria se a parte inferior se negasse a cumprir o que fora estipulado pela parte superior. Enfim, fazer uma aliança foi o modo encontrado pelo mundo antigo para formar relacionamentos mais amplos que garantissem uma maior segurança, e todo este procedimento proveu o contexto cultural em que a aliança entre Deus e Israel foi formulada. Tal aliança, feita no Sinai – embora fosse singular no sentido de que não ocorreu com nenhuma outra nação e colocasse Israel num relacionamento especial com Deus – corresponde ao padrão deste tipo de tratado.4 Ela ocorrera por iniciativa divina como um ato de graça soberana (ver Dt 4:13, 23, 32-40; 29:13) com um povo que ele mesmo redimira (Dt 26: 13:5; 21:8) e estipulava, por um lado, que Deus adotara Israel como seu povo e que por isso o protegeria e abençoaria ricamente e, por outro, que Israel lhe seria santo (Lv 19:2; 11:44; 20:7, 26) e obediente (ver Êx 20-24). Se cumprissem com sua parte gozariam do favor e das bênçãos de Deus (Dt 7:12-24; 28:1-13), mas se falhassem receberiam as maldições (Dt 28:15-68) e a ira de Deus (Dt 6:10-19). Além disso, é teologicamente significativo que, no AT, sempre que um termo para ira se refere a Deus, o nome divino empregado é Yahweh, o Deus da aliança (Êx 32:1-10; Dt 11:16-17; 2Re 24:2), demonstrando assim a íntima associação entre a ira de Deus e a 4 R. K. Harrison, Jeremias e Lamentações: Introdução e comentário (São Paulo: Vida Nova e Mundo Cristão, 1980), 20-22. Ver também William S.Lasor, David A. Hubbard e Frederic W. Bush, Introdução ao Antigo Testamento, traduzido por Lucy Yamakami (São Paulo: Vida Nova, reimpressão 1999), 78-82; Elmer B. Smick, “brh”, Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento, organizado por R. Laird Harris, traduzido por Márcio Loureiro Redondo e outros (São Paulo: Vida Nova, 1998), 215. Alguns especialistas, como é o caso de Eichrodt declaram que o conceito da aliança é o tema central e unificador do AT, ver Walter Eichrodt, Theology of the Old Testament, 2 vols., traduzido por John A. Baker, The Old Testament Library (Philadelphia: The Westminster Press, 1967), 1. Para um estudo detalhado do tema da aliança ver Dennis J. McCarthy, Old Testament Covenant: a Survey of Current Opinions (Oxford: Basil Blackwell, 1972); Paul Kalluveettil, Declaration and Covenant (Roma: Biblical Institute Press, 1982); Hans K. LaRondelle, Our Creator Redeemer: An introduction to Biblical Covenant Theology (Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 2005). 110 histórica aliança de fé de Israel (Am 3:2).5 Portanto, é nesse contexto da teologia da aliança que a ira de Deus no AT deve ser compreendida. Isto implica duas verdades: (1) qualquer violação da lei dentro da nação, de modo coletivo ou individual (Dt 29:27; Jz 2:20; Js 23:16; Ed 9:14), provocava a ira de Deus (Ez 5:13; Os 5:10; Is 9:8-10),6 especialmente quando seu povo seguia após outros deuses (Êx 32; Nm 25; Dt 2:15; 4:25; Js 2:14; 1Re 11:9; etc.); e (2) quando alguma outra nação oprimia Israel, incorria na ira de Deus (Is 10:5-27; Jr 50:11-17; Ez 36:5-6).7 De fato, no AT, a mais importante razão para a manifestação da ira de Deus era a quebra da aliança entre Deus e seu povo, a falha em cumprir as obrigações desta aliança (Dt 29:28; 2Re 22:13; 2Cr 34:1; Ez 20:13, 21).8 Como regra, a ira de Deus era uma reação à ingratidão e 5 B. T. Dahlberg, “Wrath of God”, The Interpreter’s Dictionary of the Bible, ed. George Arthur Buttrick (Nashville, TN: Abington Press, 1962), 4:906; Lund Elsie Johnson, “’anaph, ’aph (za‘am, za‘aph, chemah, charah, ‘abhar, qatsaph, raghaz): Words for ‘Anger’ in the O. T.”, Theological Dictionary of the Old Testament, 14 vols. (Grand Rapids, MI: Eerdmans, reimpressão 1983), 1:357. 6 Em primeira instância a ira de Deus é dirigida contra o próprio Israel, aqueles que em face da aliança feita no Sinai conheciam sua majestade (Êx 19) e, por isso, podiam infringí-la. Ela teve um papel importante na história da peregrinação do deserto e no período da conquista de Canaã ao exílio (1Sm 6:19; 15; 28:18; 2Sm 6:7; 24:1) o qual é retratado completamente do ponto de vista da contínua provocação da ira de Deus. Algo semelhante também se encontra nas Crônicas e nos Salmos. Além disso, especialmente no período inicial, a solidariedade coletiva do indivíduo com a totalidade do povo é evidente. A ira de Deus era dirigida contra o indivíduo em sua específica função dentro do povo de Deus. B. J. Fichtner, “Orgē: The Wrath of God in the LXX”, Theological Dictionary of the New Testament, traduzido por Geoffrey W. Bromiley (Grand Rapids, MI: Eerdmans, reimpressão 1984), 5:398. Ver também Maximiliano Garcia Cordero O. P., Teología de la Biblia, Biblioteca de Autores Cristianos (Madrid: La Editorial Catolica, 1970), 1:275. 7 Johnson, 1:357; Randolp V. G. Tasker, The Biblical Doctrine of the Wrath of God ( Londres: The Tyndale Press, 1951), 19-26; Jack MacArthur, Expositional Commentary on Revelation (Eugene, Oregon: Certain Sound Publishing House, 1973), 306; Joseph A. Fitzmyer, “Carta a los Romanos”, Comentario biblico San Jerônimo, traduzido por Alfonso de la Fuente Adanez e outros (Madrid: Ediciones Cristiandad, reimpressão 1986), 4:113; Allan Richardson, An introduction to the Theology of the New Testament (New York / Evanston / London: Harper & Row, 1958), 75. Estas duas últimas obras, embora tratem de textos do NT, o fazem a partir do AT, no qual aqueles estão enraizados. 8 K.-D. Schunck, “chemah”, TDOT, 4:464; Elsie Johnson, “Ira”, Diccionario teológico manual del Antiguo Testamento, traduzido por Rufino Godoy (Madrid: Ediciones Cristiandad, 1985), 2:380; Claus Westermann, Fundamentos da teología do Antigo Testamento, traduzido por Frederico Battler (São Paulo: Academia Cristã, 2005), 138; H.- Chr. Hahn, “Ira”, Diccionario teológico del Nuevo Testamento, ed. Mario Sala e Aracely Herrera, traduzido por Manuel Balash e outros, 2ª ed. (Salamanca: Ediciones Sigueme, 1980), 2:358; Eichrodt, 1:259-260; Williams Evans, “Wrath”, The International Standart Bible Encyclopedia, ed. James Orr (Wilmington, DE: Associated Publishers and Authors, 1915), 5:1135. Para os escritores bíblicos 111 incredulidade de Israel, que não fora fiel à aliança e, portanto, Deus, que queria manifestar amor ao seu povo (Os 1:9), aparecia como um Deus irado (Mq 7:9; Ed 8:22).9 A ira de Deus foi o tema central dos profetas que viveram antes do exílio, embora nem todos usassem o termo ira. Eles combatiam o falso senso de segurança que o povo tinha contra a ira e o julgamento, com destaque para Jeremias e Ezequiel. Esses profetas nunca cessaram de anunciar o que Deus fez por Israel com sua eleição e guia (Am 2:9-11; 3:2; Os 11:3-10; Is 1:2), e este é o pano de fundo contra o qual eles trazem sua mensagem da ira de Deus. Seja referindo-se ao culto sincretista (Is 1:10-17; Jr 6:20; Os 6:6; Am 5:2127) ou à injustiça social (Is 1:15-17; Js 5:28; Am 5:7, 10-12; Mq 3:1), à política que trata de armamentos e alianças (Is 30: 1-5; Jr 2:35-37; Ez 16:26), ou mesmo à adoração de outros deuses, a questão era que o povo tinha abandonado seu Deus e desprezado seu amor, quebrado a aliança, e por isso, merecia a ira divina. Esta é a mais profunda raiz do conceito de ira, e nesta luz podemos compreender a esmagadora força da mensagem. É o amor ferido de Deus que desperta sua ira. Vem como resultado da quebra da relação de aliança. O Senhor sente-se enciumado e zeloso por causa da atitude de Israel, sua esposa, e isto encontra expressão na ira (Dt 32:20; Sl 78:58; 79:5; Ez 16; 23).10 Todavia, a mesma expressão também denota o zelo de Deus por seu povo quando Israel é ameaçado por outras nações e ele se posiciona como um amante esposo para pecado era a infidelidade à aliança. A. R. Crabtree, Teologia do Velho Testamento (Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1960), 151. 9 Johnson, 1:360; D. N. Freedman e J. R. Lundbom, “‘chârâ, chârôn, chorî”, TDOT, 5:174. 10 Johnson, “Ira”, DTMAT, 2:382; idem, “’anaph, ’aph (za‘am, za‘aph, chemah, charah, ‘abhar, qatsaph, raghaz): Words for ‘Anger’ in the O. T.”, TDOT, 1:357; Fichtner, “Orgē: The Wrath of God in the LXX”, TDNT, 5:398, 403 (ver também 407- 408); Hahn, 2:358; H. C. Hahn, “Ira, raiva – Orgē”, Dicionário internacional de teologia do Novo Testamento, traduzido por Gordon Chown (São Paulo: Vida Nova, 1985), 2:445; William M. Greathouse, “Romans”, Beacon Bible Commentary (Kansas City, Missouri: Beacon Hill Press of Kansas City, 1968), 8:50; Cordero, 1:275. A ira de Deus é um aspecto particular do zelo divino, que é um amor exclusivo quando Israel é fiel, mas se transforma em ira quando esse povo despreza seu amor. Ibid., 1:277. 112 destruir estas nações e salvar seu povo (Is 42:13; 59:17-18; 63:15; Zc 1:14-21; 8:2-15; Na 1:2).11 As profecias que se referiam aos tempos posteriores ao cativeiro e que tratam da ira de Deus, apresentam-na como endereçada contra as nações, em razão do mal que intentaram fazer contra Israel (Ob 1-15; Jr 10:25).12 A desumanidade Uma análise de todas as perícopes que tratam da ira divina no AT revelou que ela nunca é retratada como atuando no mundo sem uma de duas justificativas: ou rebelião contra a pessoa de Deus – na forma de orgulho, sincretismo ou idolatria – ou falha de comportamento em relação aos semelhantes,13 o que é válido tanto para Israel como para as demais nações. Nos numerosos oráculos pronunciados pelos profetas contra as nações se percebe os desdobramentos desses motivos, que são: arrogância e orgulho (Is 2:12-17; 10:13-16; 13:11; 14:13; 16:6; 47:8, 10; Jr 48:29-30, 42; 49:16; 50:29, 31-32; Ez 28:2; 30:10, 18; 31:10-11, 14; Ob 3; Zc 9:6); idolatria (Is 2:18-21; 17:8; 19:1-3; 20:9; Jr 48:7, 13, 35; 49:3; 50:2; 51:17, 47; Ez 30:13; Na 1:14; Hc 2:18-19; Zc 9:7); feitiçarias e 11 Ibid., 1:274-275; Fichtner, 5:403-404. Em contraste com os deuses das nações, o Deus de Israel é único, não tolerando ao seu lado nenhuma divindade e requerendo um culto absolutamente exclusivo. Por isso ele diz: “Não terás outros deuses diante de mim” (Êx 20:3) e se apresenta como “Deus zeloso” (Êx 20:5). Esse zelo está vinculado à sua santidade (Js 24:19) e tem como consequência a manifestação de sua ira (Nm 25:11; Dt 4:24; 5:9; 6:15; 32:16, 21; 1 Rs 14:22; Sl 78:58; Ez 18:42). Ele se comprometeu por meio de promessas com seu povo e precisa mostrar-se zeloso em cumpri-las, a fim de salvaguardar seu santo nome (Ez 38:19). Quando a santidade deste nome foi profanada entre as nações por causa de seu povo, Deus se dispôs a agir para inverter a situação (Ez 36:23). Seu zelo, como esposo de Israel, se manifesta tanto quando seu povo é infiel à aliança como quando as nações se voltam contra Israel. Mas este zelo, que se identifica com sua ira, tem uma finalidade de salvação para Israel, para que volte a relacionar-se bem com Deus, sendo, então, também, uma expressão de seu amor para com seu povo escolhido (2 Rs 19:31; Is 9:9; 26:11; 37:32; Ez 36:5-15; Jl 2:18; Zc 1:14; 8:2). Cordero, 1:272-274. 12 Johnson, “’anaph, ’aph (za‘am, za‘aph, chemah, charah, ‘abhar, qatsaph, raghaz): Words for ‘Anger’ in the O. T.”, TDOT, 1:357-358. Para uma compreensão mais ampla dos aspectos envolvidos na aliança, ver George E. Mendenhall e Gary A. Herion, “Covenant”, The Anchor Bible Dictionary, ed. David Noel Freedman (New York: Doubleday Anchor Books, 1992), 1:1179-1202. 13 Bruce Edward Baloian, Anger in the Old Testament, América University Studies, Series VII, Theology and Religion, v. 99 (New York: Peter Lang, 1992), 157; idem, “Anger”, New International Dictionary of Old Testament Theology and Exegesis, 5 vols. (Carlisle, U. K.: Paternoster Press, 1997), 4:381. Ver também Siqueira, 240. 113 encantamentos (Is 47:9-15; Na 3:4); maldade (Is 13:11; 47:10; Jr 51:6, 24; Na 1:11); iniquidade (Is 13:11); confiança nas riquezas (Jr 48:7; 49:4; 51:13; Ez 28:4-5); injustiça no comércio (Ez 28:18); inimizade contra Israel (Ez 25:3-7, 12-14; 35:5-6, 11-15; Jl 3:2-8; Am 1:11, 13; Ob 10-14; Sf 2:8); e furor incessante, violência excessiva, no relacionamento com outros povos (Is 14:6; 16:6; 47:6; Jr 51:35; Ez 25:15-16; 28:16; Am 1:3, 6, 9; 2:1; Na 3:1; Hc 2:8, 17). As perícopes que tratam da ira de Deus contra as nações estrangeiras apresentam a crueldade humana que havia em seus habitantes como o principal fator a atraí-la e demonstram que os não israelitas são julgados com base em seu conhecimento e que, mesmo assim, podem ser responsabilizados.14 Quanto a isso, é significativa a profecia de Amós. Embora fosse destinada a Israel (Am 1:1), e com brevidade mencionasse a Judá (Am 2:4-5), primeiramente pronuncia julgamento sobre as nações que estavam à sua volta: Síria, Filístia, Fenícia, Edom, Amom e Moabe (1:3-2:3). Em Am 1 e 2 as nações são condenadas por crimes contra a humanidade.15 Enquanto que Israel e Judá seriam castigados por pecarem contra a vontade revelada de Deus, as outras nações seriam punidas porque agiram em desacordo com a luz natural que possuem todos os homens,16 transgrediram princípios universais de moralidade e justiça, os quais estavam escritos na consciência de todas as pessoas sendo parte da moralidade universal da espécie humana17 e 14 Baloian, NIDOTTE, 4:381. 15 Lasor, 323. 16 Baloian, Anger in the Old Testament, 176. 17 Siqueira, 232-233; Antonio Bonora, Amós, o profeta da justiça, 2ª ed. (São Paulo: Paulinas, 1983), 61-62; Charles L. Feinberg, Os profetas menores (Miami: Vida, 1988), 88; Warren W. Wiersbe, “Amós”, Comentário bíblico expositivo, 6 vols. (Santo André: Geográfica Editora, 2006), 4:430. 114 que foram desde o início comunicados através da divina Palavra, explicitamente ordenados.18 Deus as reprova não por fazerem guerra, nem mesmo por negociarem escravos, mas por sua excessiva crueldade para com as populações que elas haviam conquistado. Ele condena a destruição furiosa e a paixão para humilhar, a supressão de toda esperança para o futuro do país ocupado por suas tropas, a eliminação completa dos adversários.19 Mesmo aquelas nações que foram usadas por Deus para punir o seu povo rebelde, sofrerão sua ira em razão de seus excessos em sua missão de castigar.20 Os pecados denunciados são atos de desumanidade (para com qualquer ser humano e não apenas contra um israelita), considerados perversos segundo os padrões daqueles dias; são os mesmos crimes que levaram Deus a destruir os antediluvianos (Gn 6-7), os habitantes de Sodoma e Gomorra (Gn 19) e os cananitas (Lv 18 e 20);21 são também pecados contra Deus.22 As expressões da ira divina contra aqueles que os praticam mostram o amor de Deus para com os seres humanos e seu interesse em que haja justiça em toda a terra.23 Como outros profetas, Amós afirma que Deus controla os destinos das nações, estabelecendo (6:14) e pondo abaixo (2:9), como lhe apraz. Mas Deus não apenas as 18 Siqueira, 247. 19 R. Martin-Achard, A Commentary on the Book of Amos, International Theological Commentary, eds. George A. F. knight e F. C. Holmgren (Edinburg: The Handsel Press LTD e Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1994), 25; Cordero, 1:280. Ver também Siqueira, 237. A expressão “por três transgressões... e por quatro” (Am 1:6, 9, 13; 2:1, 4, 6), ou fórmula “X, X + 1,” é encontrada em qualquer lugar do AT e na literatura do Oriente Médio. Aqui indica que as nações tinham pecado “suficiente e mais do que suficiente” para garantir o juízo de Deus. Lasor, 323. 20 Cordero, 1:280. 21 Siqueira, 242. 22 Lasor, 326; Crabtree, 152. 23 Baloian, Anger in the Old Testament, 157, 176. 115 restringe, ele atua como seu juiz quando elas transgridem seus princípios morais.24 Amós declara que Deus tem o direito de julgar a todos por duas razões básicas: ele é o criador de todos (Am 4:13; 5:8-9; 9:5-6) e o soberano que domina sobre todos (Am 2:9-10; 3:1-2; 4:11; 6:14; 9:7-10).25 Parece que sua visão tem como base o texto de Gn 1-11, onde Deus é apontado como criador, soberano e legislador. Ali é patenteado que desde o início Deus deu mandamentos que regulam a relação dos homens: com Deus (submissão e obediência – Gn 1:28-30; 2:16-17; 3:11, 16-19; 4:3-7; 6:13-7:9; 8:15-18; 9:1-17), com seus semelhantes (igualdade, respeito pelo homem e sua esposa, relações sexuais e casamento – Gn 1:26-28; 2:18, 20-24; 3:16; 4:7, 9-15; 5:1-2; 9:5-7, 18-10:32), e com o mundo criado (governo, trabalho, alimento – Gn 1:26-29; 2:15-16, 19-20; 3:17-19, 23; 9:1-5, 7); e também que a transgressão dessas leis estabelecidas trazia juízo divino sobre os violadores (Gn 3:16-19; 4:10-12; 6:5-7, 11-13, 17; 7:4, 10-24; 11:5-9). Portanto, em razão de tudo isso, Deus tem todo o direito de impor suas regras, requerer obediência e punir sua transgressão.26 Além disso, a resposta da ira de Deus à crueldade humana é necessária para salvar a humanidade de si mesma, ajudar a manter a ordem e dar esperança e significado para os que são oprimidos; e em razão de haver algo em nossa natureza profundamente psicológica que clama por justiça, necessitamos tê-la para manter uma existência mental saudável e racional no mundo.27 24 R. K. Harrison, Introduction to the Old Testament (Grand Rapids, MI: Eerdmans, reimpressão 1991), 894. 25 Siqueira, 238-239. 26 Ibid., 246. 27 Baloian, Anger in the Old Testament, 176. 116 Os Efeitos da Ira de Deus A ira de Deus frequentemente se exprime por meio de punições.28 Essas expressam a reação da natureza divina em face do mal, a indignação judicial da pureza contra a impureza e, por isso, não são vingativas, mas vindicativas, destituídas de toda paixão ou capricho.29 As declarações de que Deus estava irado eram um indicativo de que a punição estava a caminho (Is 10:4). Portanto, “estar irado” pode ser sinônimo de “destruir” (Ez 9:14). Quando a ira de Deus é provocada, segue-se com frequência o extermínio ou a destruição (Êx 32:10; Dt 6:15; 7:4; Js 23:16).30 De um modo geral, pode ser dito que a punição divina tem como propósito beneficiar o próprio Deus, o transgressor e a sociedade. O propósito mais importante é a vindicação da santidade e justiça de Deus (Jó 34:10-11). Nesse caso, sua lei é satisfeita e a punição ocorre para o bem dele que está punindo.31 Outro objetivo da punição é disciplinar o pecador, corrigi-lo e recuperá-lo do mal e do pecado que ele tinha cometido. Sendo assim, o próprio pecador é beneficiado.32 Esta finalidade da punição é com frequência mencionada na Bíblia (Lv 26:23). Algumas vezes era alcançada em certa medida (Sl 78:32-35), mas em outras, não (Is 1:5).33 Finalmente, também objetiva dissuadir os homens de pecar, servindo de advertência para que outros, especialmente aqueles que tenham a mesma disposição 28 John Owen, The Works of John Owen, 2a. ed., ed. William H. Goold (Edinburg / Carlisle, Pennsylvania: The Banner of Truth Trust, 1976), 12: 433-434; Louis Berkhof, Teologia sistemática, 2ª ed., traduzido por Odair Olivetti (Campinas: Luz para o Caminho Publicações, 1992), 78. 29 Augustus H. Strong, Teologia sistemática, traduzido por Augusto Victorino (São Paulo: Teológica, 2002), 438. 30 Johnson, “’anaph, ’aph (za‘am, za‘aph, chemah, charah, ‘abhar, qatsaph, raghaz): Words for ‘Anger’ in the O. T.”, TDOT, 1:358. 31 Owen, 12: 439; Berkhof, 78, 259. Este é o tipo de punição que foi a morte de Cristo, a qual cumpriu as exigências da lei e revelou a justiça divina, como será visto no próximo capítulo. Ibid. 32 Ibid.; J. M. Pendleton, Compendio de teología cristiana (El Paso, Texas: Casa Bautista de Publicaciones, 1960), 55; Berkhof, 78. 33 Owen, 12: 437. 117 mental daquele que está sendo punido (Dt 17: 12-13), não enveredem pelo mesmo caminho, não sofram o prejuízo que o mal costuma causar e nem sejam prejudicados como alguns foram pela punição que veio sobre o pecado. Assim, a punição serve de exemplo e a sociedade é beneficiada. Caso contrário, a própria impunidade seria um incentivo à prática do mal.34 Há dois tipos de punições. O primeiro se refere àquelas que são consequências naturais dos atos de pecado (Jó 4:8; Sl 9:15; 94:23; Pv 5:22). Isso pode ser visto na pobreza que resulta da preguiça (Pv 6:9-11) e na ruína da família em decorrência da embriaguez (Pv 23:21). Muitas vezes elas persistem em acompanhar o homem mesmo quando este se arrepende e é perdoado, embora haja situações em que são abrandadas ou neutralizadas pelos meios que Deus colocou à nossa disposição. O segundo são as penalidades impostas por Deus como juiz35 quando o pecado é punido por um ato direto de Deus, tais como: o Dilúvio (Gn 6-7), a destruição por fogo e enxofre (Gn 18:21-22; 19:23-25), a guerra (Lv 26:17); a peste (Lv 26:25); o exílio (Lv 26:33); etc.36 O fato de Deus ser o governante moral do universo implica o direito e dever de recompensar e punir de modo justo, necessário e proporcional, o mérito ou o demérito, para 34 Berkhof, 78, 260; Pendleton, 55; Owen, 12:438-439. 35 A punição provém de quem tem poder soberano e direito judiciário sobre os ofensores. Pode vir de diretamente de Deus (Tg 4:12), ou ele pode delegar a outros a autoridade para punir, como ocorreu com Pilatos (Jo 19:11). Ibid., 12: 434. 36 Berkhof, 257-258; Owen, 12:434. Ver também Dt 28:15-68. Há teólogos para os quais as idéias de recompensa e punição pertencem a uma forma inferior de pensamento e que, por isso, negam o castigo do pecado como penalidade judicial, como a execução de uma sentença pronunciada tendo como base os méritos do caso, aceitando a punição apenas como a operação de uma lei geral ou a consequência natural resultante do pecado. Entre eles estão J. F. Clarke, Thayer, Williamson, Washington Gladden, Schelling, Bruch, Strauss e John Young. Berkhof, 258; Charles Hodge, Teologia sistemática, traduzido por Valter Martins (São Paulo: Hagnos, 2001), 321. 118 o bem do próprio universo.37 Assim, segundo as Escrituras Sagradas, a punição era aplicada em cada caso segundo a proporção do pecado cometido. A lei de Moisés, que exigia que o mesmo ferimento fosse aplicado ao culpado (Êx 21:23-25; Lv 24:19-20; Dt 19:21) buscava estabelecer um “princípio de equidade”, a fim de que o castigo equivalesse ao crime.38 De fato, era muito menos severa que aquelas adotadas em outras nações. Os crimes sexuais, tais como prostituição e homossexualidade e relações carnais com animais, eram punidos com a pena de morte (Lv 18 e 20). A lei mosaica estipulava várias formas de castigo: a morte por apedrejamento, que incluía a participação máxima da comunidade naqueles casos em que ela era afetada de modo geral (Lv 20:2-5, 27; 24;15-16; Nm 15:32-36; Dt 13:1-5; 17:2-7, 17); por fogo (LV 20:14; 21:9); pela espada (Êx 32:27; Nm 35;19, 21; Dt 13;15); a mutilação (Êx 21:23-25; Dt 25;12); o açoitamento (Dt 25:1-3); multas monetárias (Êx 21:22; Dt 22:18-19, 29) e a escravização (Êx 22:3).39 O Tempo da Ira de Deus A ira divina ocorre já no tempo presente. Embora, por um lado, Deus seja paciente e tolerante para com os pecadores, por outro, cada dia é um dia de ira para os pecadores (Sl 7:11)40 e essa ira exerce um papel sobre a completa vida humana (ver Sl 90:2-11). Como 37 Charles Finney, Teologia sistemática, traduzido por Lucy Iamakami e outros (Rio de Janeiro: CPAD, 2001), 54-55. 38 C. Brown, “Castigo, Vingança – dikē”, DITNT, 1:389-390. 39 Algumas das leis de Moisés que tratavam de castigos podem ser comparadas com aquelas do Código de Hamurabi, que reinou na Babilônia de 1728 a 1686 AC, contudo, a base destas era de natureza pragmática, enquanto a daquelas era a vontade revelada de Deus, que exigia uma vida santa, em relação a Deus e aos homens. Ibid. Ver também Strong, 439. 40 Matthew Henry, “An Exposition, with Practical Observations, of the Epistle of St. Paul to the Romans”, Matthew Henry’s Commentary on the Whole Bible (London: Fleming H. Revell Company, s. d.), 6: S. P. 119 consta na literatura sapiencial: “[...] o caminho dos pérfidos é intransitável” (Pv 13:15). E foi Deus quem determinou que fosse assim.41 Nos primórdios de Israel, a ira de Deus era concebida como a operação de um ato individual de punição, algo transitório, enquanto que seu amor e justiça eram tidos como permanentes. Posteriormente, segundo a pregação dos profetas, as punições eram esforços para purificar e educar, mas também apontavam para a iminente e final manifestação da ira de Deus. Assim, a ideia da ira de Deus passou de uma desgraça temporária para um julgamento escatológico inescapável: o Dia do Senhor torna-se o dia da ira.42 A expressão “dia do Senhor”,43 como empregada nos profetas, era, em primeiro lugar, uma referência a um dia de julgamento na história, quando Deus intervinha para punir o pecado que havia chegado ao seu clímax. Entretanto, tendo uma conotação escatológica, apontava também para os eventos finais da história humana, com a vinda do Senhor e o juízo final.44 A Ira de Deus no Novo Testamento A ênfase da mensagem do NT é o amor de Deus manifestado na dádiva de Cristo, para tornar-se um conosco e morrer por nós. Todavia, a par desse enfoque, pode ser 41 D. Martin Lloid-Jones, Darkness and Light, 4a ed. (Grand Rapids, MI: Baker Book House, 1988), 361; William S. Plumer, Commentary on Romans (Grand Rapids, MI: Kregel Publications, 1971), 63; A. M. Hunter, Interpreting Paul’s Gospel (Philadelphia: The Westminster Press, 1954), 69-70; Greathouse, 8:49; Fichtner, “Orgē: The Wrath of God in the LXX”, TDNT, 5:404; Edward A. McDowell Jr., A soberania de Deus na historia: a mensagem e significado do Apocalipse, 2ª ed., tr. Robert G. Bratcher e Werner Kaschel (Rio de Janeiro: JUERP, 1976), 136; Diccionario de la Biblia, ed. 1981, ver “Ira” e “Ira de Dios”; Francis Foulkes, Efésios: Introdução e comentário, 2ª. ed., traduzido por Márcio Loureiro Redondo (São Paulo: Vida Nova / Mundo Cristão, reimpressão 1986), 118. A ira de Deus pode ser vista em determinadas catástrofes históricas e naturais, bem como em desastres privados e pessoais, embora nem todos os eventos deste tipo sejam necessariamente interpretados deste modo. Dahlberg, 4:903. 42 Eichrodt, 1:266-267. 43 Tanto no AT como no NT, “dia do Senhor” pode apontar para um dia de juízo (Is 13:6, 9; 1Co 5:5) ou um dia de guarda (exs.: Is 58:13; Ap 1:10). O contexto determinará o significado. Obviamente este presente estudo se limita a compreender a expressão no contexto de juízo. 44 W. Stanley Johnson, “Wrath , Wrath of God”, Holman Bible Dictionary (Nashville, TN: Holman Bible Publishers, 1991), 1423; J. S. Wright, “Dia do Senhor”, O novo dicionário da Bíblia, ed. R. P. Shedd., traduzido por João Bentes (São Paulo: Vida Nova, s. d.), 1:416-417. 120 percebida a realidade da ira de Deus. Os argumentos dos evangelhos, das cartas apostólicas e do Apocalipse apontam aquilo que atrai a ira de Deus e os efeitos que ela tem sobre os homens, bem como sua manifestação nos acontecimentos da história e seu significado escatológico. A Causa da Ira de Deus Na abordagem do tema da ira divina no NT, Deus é visto como o Criador de todos (Rm 1:18-25).45 A causa básica da ira divina é o pecado. Mas, o que é pecado? É qualquer falta de conformidade com a lei de Deus,46 mas é mais do que isso porque a lei pode não incorporar tudo que o caráter de Deus é. Pecado é tudo aquilo que contradiga o caráter de Deus, é uma oposição a Deus,47 é a quebra do relacionamento pessoal com Deus.48 O pecado é uma ação (1Jo 3:4), mas também um estado da vontade e condição pessoal que se opõe a Deus e sua vontade (Rm 7:14; 8:6-8),49 de modo que se não houvesse Deus nem a possibilidade de uma relação com ele, não poderia existir pecado.50 Portanto, em essência, pecado é asebeia (impiedade – Rm 1:18) e abrange uma grande diversidade da dinâmica humana.51 Ou, como Paulo descreveu, “tudo que não 45 James D. G. Dunn, Romans 1-8, Word Biblical Commentary, vol. 38a (Dallas, TX: Word Books, 1988), 54. 46 Lewis Sperry Chafer, Teologia sistemática, 8 vols., traduzido por Heber Carlos de Campos (São Paulo: Hagnos, 2003), 632. 47 Ibid. 48 D. M. Lloyd-Jones, Romans: Atonement and Justification (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1971), 76. Carl E. Braaten, e Robert W. Jenson, eds., Dogmática cristã, 2 vols., traduzido por Gerrit Delfstra e outros (São Leopoldo, RS: Sinodal, 1990), 1:363 e 366. Nenhuma pessoa inicia sua vida neste mundo com uma ficha limpa. Como dizem as Escrituras: “Eu nasci na iniquidade, e em pecado me concebeu minha mãe” (Sl 51:5) e “Não há justo, nem sequer um” (Rm 3.10). Mesmo aqueles que são chamados de justos (como Noé e Jó) não o são por serem sem pecado, mas por estarem em relação com Deus. Ibid., 1:379-380. 49 50 Ibid., 1:366. 51 Ibid., 1:366-367. 121 procede da fé é pecado” (Rm 14.23). Todavia, a realidade do pecado abrange mais do que a relação entre Deus e o ser humano: inclui o relacionamento do homem com o resto da humanidade, de maneira que os pecados podem ser classificados como pecados religiosos ou ofensas morais. Os pecados religiosos (asebeia – impiedade) envolvem negligência e rebelião contra Deus, enquanto que as ofensas morais (adikia – injustiça) abarcam toda espécie de desvio de conduta e são, consequentemente, contra os homens (Rm 1:18). Os pecados contra os homens derivam dos pecados contra Deus.52 O pecado não é inconsequente, antes tem resultados definidos, que mais cedo ou mais tarde acabam aparecendo (Rm 6:23; 12:19). Por ser uma violação da ordem moral estabelecida por Deus e repudiar sua luz, sua lei e seu amor, é destrutivo, e como um câncer moral e espiritual, devora pouco a pouco a alma do homem, impedindo-o de se tornar o que Deus planejou que ele fosse. É o veneno da morte que, sem o adequado tratamento que apenas o céu pode aplicar, resultará na eterna separação de Deus.53 Assim, por ser o pecado o que é e por suas maléficas consequências, Deus não tem nenhum prazer nele (Rm 8:3; 1Jo 1:5; 3:5; 3Jo 11), não pode aprová-lo, nem encorajá-lo (Tg 1:13-14), nem tolerá-lo indefinidamente (Ap 18:4-8).54 Antes, o pecado sempre provoca a oposição de Deus e desperta sua ira (Rm1:18; Ef 5:6; Cl 3:6). Como disse Agostinho, “a ira de Deus não é uma perturbação de seu espírito, senão um juízo pelo qual 52 John Knox e Gerald R. Cragg, “The Epistle of the Romans”, The Interpreter’s Bible (New York / Nashville, TN: Abingdon Press, 1959), 9:397; John Murray, The Epistle to the Romans, 2 vols., The New International Commentary on the New Testament (Grand Rapids, MI: Eerdmans, reimpressão 1975), 1:36; Everett F. Harrison, “Romans”, The Expositor’s Bible Commentary (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1984), 10:22; R. C. H. Lenski, The Interpretation of St. Paul’s Epistle to the Romans (Minneapolis, Minnesota: Augsburg Publishing House, 1961), 91; Archibald Thomas Robertson, Las epistolas de Pablo, Imágenes verbales en el Nuevo Testamento, vol. 4 (Barcelone: CLIE, 1989), 4:441. 53 MacArthur, 297-298; Millard J. Erickson, Christian Theology, 7a. ed. (Grand Rapids, MI: Baker Book House, 1989), 288. 54 G. R. Lewis, “God, Attributes of”, Evangelical Dictionary of Theology, ed. Walter A. Elwell (Grand Rapids: Baker book House, reimpressão, 1992), 457. 122 o castigo é pronunciado sobre o pecado”.55 É sua atitude de desprazer frente ao pecado e ao mal e seu firme ódio contra ele. É sua declarada determinação de punir o pecado em todas as suas formas.56 A locução “ira de Deus” é empregada para expressar qualquer manifestação do desagrado de Deus contra o pecado, e inclui seu desprazer, sua forte resistência e também seu ataque judicial após isso (Rm 2:5-8).57 Em suma, é a reação divina ao pecado58 (Ef 5:6), a qual se origina não apenas em sua escolha, mas em sua própria natureza59 e, de acordo com o apóstolo Paulo, é revelada contra todas as deficiências na esfera religiosa e na esfera moral (Rm 1:18).60 Os Efeitos da Ira de Deus As consequências da ira de Deus podem ser vistas basicamente na índole humana, ímpia e perversa e em contínuo distanciamento de Deus (Rm 3:9-18), no ato de Deus abandonar os homens permitindo que sigam suas próprias paixões e recebam as consequências inevitáveis de seus pecados (Rm 1:20-32) e na aplicação de punições (Jd 7). 55 Agostinho citado em Luis Bonnet e Alfredo Schroeder, “Epístolas de Pablo a los Romanos”, Comentario del Nuevo Testamento: Epístolas de Pablo, 2ª ed. (Buenos Aires: Casa Bautista de Publicaciones, 1974), 3:44; George Eldon Ladd, Teologia do Novo Testamento, 2a. ed., traduzido por Darci Dusilek e Jussara M. P. S. Arias (Rio de Janeiro: JUERP, reimpressão, 1986), 398-399. 56 Lloid-Jones, Darkness and Light, 360-361; Richardson, 224; Greathouse, 8:49; Lloyd-Jones, Romans – Atonement and Justification, 76. 57 Hodge, 942; M.G. Stählin, “Orgē: The Wrath of Man and the Wrath of God in the New Testament”, TDNT, 5:424-425. 58 Ladd, 398-399. 59 Owen, 10:550-551; Pendleton, 398. 60 Charles R. Erdman, Comentários de Romanos, traduzido por Waldir Carvalho Luz (S/L.: Casa Editora Presbiteriana, s.d.), 34. 123 A natureza de filhos da ira O primeiro efeito da ira de Deus sobre nós é que somos “por natureza, filhos da ira” (Ef 2:3). A expressão “filhos da ira” é um hebraísmo e significa que somos merecedores da ira e estamos sujeitos a ela,61 ao passo que “por natureza” quer dizer por nascimento. Pelo nascimento somos todos filhos da ira. Não nos tornamos, somos. Este texto não diz que nascemos neste mundo num estado de inocência e neutralidade e que, depois, por causa do pecado, nos tornamos pecadores e então incorremos na ira de Deus. Ele diz que o pecado se encontra no homem como um princípio inato, e que já nascemos neste mundo sob a ira de Deus.62 A atitude divina de entregar Os últimos versículos do primeiro capítulo de Romanos descrevem a humanidade abandonada por Deus e a cena é terrível. Depois de discorrer sobre a impiedade e perversão dos homens em seu sucessivo afastamento de Deus, e sua recusa de responder positivamente à revelação de Deus, deificando a razão humana e chegando à loucura da mais corrupta forma de práticas idolátricas (Rm 1:18-23), o apóstolo por três vezes emprega a expressão “Deus os entregou”. Suas palavras são: “Por isso, Deus entregou tais homens à imundícia, pelas concupiscências de seu próprio coração [...], os entregou Deus a paixões infames; [...] Deus os entregou a uma disposição mental reprovável [...]” (Rm 1:24- Curtis Vaughan, Efésios: Comentário bíblico, traduzido por Jorge César Mota (Miami, Florida: Vida, 1986), 56; J. Precedo, “Ira, filhos da”, Enciclopedia de la Biblia (Barcelona: Ediciones Garriga S. A., 1963), 4:213. 61 62 D. Martin Lloyd-Jones, God’s Way of Reconciliation, 8a ed. (Grand Rapids, MI: Baker Book House, 1989), 54; Vaughan, 56. Ver também John R. W. Stott, A mensagem de Efésios (São Paulo: ABU, 1986), 53. 124 32).63 Esta entrega não originou a condição moral, pois esta condição já existia. Não deslizaram por este caminho porque Deus os abandonou ou os induziu ao pecado, antes Deus os deixou ir sem freio pelo caminho em que já se encontravam.64 Os eruditos se dividem quanto à natureza deste abandono. Alguns entendem que embora haja um destaque para o aspecto judicial do processo, a punição do pecado não ocorre por qualquer intervenção direta pela qual Deus disciplina os ofensores, mas é uma consequência que naturalmente acompanha uma vida de desobediência. É o caminho em que as leis de um universo moral operam.65 Consiste simplesmente na permissão para que a humanidade siga seu próprio caminho. Portanto, a punição do pecado é o próprio pecado. Segundo esta corrente de pensamento, Deus nos entrega a nossos próprios desejos e nos permite controlar nosso próprio destino de modo que “liberdade para fazermos o que queremos é a punição de uma rebelião contra Deus”.66 Outros, diferentemente, creem que o abandono de Deus não é uma consequência puramente natural do pecado, mas uma solene intervenção da justiça de Deus na história da humanidade.67 É definitivamente judicial e Donald Grey Barnhouse, Man’s Ruin / God’s Wrath (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1959), 271; Lloid-Jones, Darkness and Light, 364. O verbo paradidomi, significando “entregou”, é de muita intensidade e foi usado com sentido jurídico para referir-se ao ato de colocar um homem na prisão (Mc 1:14; At 8:3), de entregar para o juízo (Mt 5:25; 10:17, 19, 21; 18:34), e de entregar os anjos rebeldes às trevas (2Pe 2:4). J. F. MacArthur, Comentario MacArthur del Nuevo Testamento: Romanos 1-8 (Grand Rapids: Editorial Portavoz, 2001), 129. Ver também 1Co 5:5; 1Tm 1:20; At 7:42 onde aparecem expressões semelhantes. 63 64 Matthew Henry, “Romanos”, Comentario exegetico-devocional a toda la Biblia, traduzido por Francisco Lacueva (Barcelona: CLIE, 1989), 11:249; Albert Barnes, “The Epistle to the Romans”, Notes on the New Testament: Explanatory and Practical, 11 vols. (Grand Rapids, MI: Baker Book House, reimpressão 1967), 4:46; Murray, 1:44-45. 65 Knox e Cragg, 9:400. 66 Paul J. Achtemeier, “Romans”, Interpretation, a Bible Commentary for Teaching and Preaching (Atlanta, Geórgia: John Knox Press, 1985), 39-40. 67 Harrison, 10:22; “Epístola aos Romanos”, O Novo Testamento interpretado, ed. Russell Norman Champlin (São Paulo: Hagnos, reimpressão 1998), 3:582; Braaten e Jenson, 1:378; John Peter Lange, “Romans”, A commentary the Holy Scripture- critical, doctrinal and homiletical, traduzido por Philip Schaff (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1869), 85; Tasker, 15-16. A tríplice repetição “Deus entregou” mostra que a orgê não é uma nemesis impessoal, mas a operação do próprio Deus. Ernst Kasemann, Commentary on Romans, traduzido por Geoffrey W. Bromiley (Grand Rapids, MI: Eerdmans, reimpressão 1990), 37. Paulo 125 punitivo, e não apenas permissivo no sentido que Deus permitiu ou retirou sua graça. É o primeiro estágio no exercício de uma atividade punitiva positiva para a ignorância culpada e a perversidade intencional,68 que resultará finalmente no abandono do homem ao julgamento da morte (Rm 6:23; Jo 3:36),69 quando Deus empregar atos específicos de juízo, como os que ocorreram no Dilúvio e em Sodoma.70 As três penalidades mencionadas não se referem a estágios progressivos ou intensificações do juízo divino, mas a três grandes aspectos deste único julgamento, três terríveis lados dele: “impurezas”, “vis paixões” e “uma disposição mental reprovável,” i.e., uma mente em que as distinções entre o bem e o mal são confusas ou perdidas.71 Como resultado de sua rebeldia o homem descamba para a tolice indescritível da idolatria, o deplorável amor próprio e para uma sociedade que despreza as pessoas e que destrói a si mesma.72 estabelece a relação intrínseca entre pecado e castigo. A impiedade leva consigo sua própria retribuição (ver Ez 23:28-29). Fitzmyer, 4:115. 68 F. Davidson e Ralph P. Martin, “Romans”, New Bible Commentary Revised, 3a. ed. (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1970), 1018; Henry Alford, Alford’s Greek Testament – an Exegetical and Critical Commentary, 4 vols. (Grand Rapids, MI: Guardian Press, 1976), 323; Lange, 80-81; James Denney, “St. Paul’s Epistle to the Romans”, The Expositor’s Greek Testament (Grand Rapids, MI: Eerdmans, s.d.), 2:593; Gordon H. Clark, “Romans”, The Biblical Expositor (Philadelphia, PA: A. J. Holman Company, 1960), 3:239. Esta entrega de Deus não pode ser reduzida à noção de não interferência com as consequências naturais do pecado. Além de que dificilmente a ação permissiva de Deus seria de si mesma retribuição judicial, os termos empregados não podem ser satisfeitos por tal construção. Murray, 1:44-45. 69 “Gave them up”, Seventh-day Adventist Bible Commentary, ed. Francis D. Nichols (Washington, DC: Review and Herald, 1953-1957), 6:480. 70 MacArthur, Comentario MacArthur del Nuevo Testamento: Romanos 1-8, 131. 71 Lenski, 107-108; Archibald Thomas Robertson, “The Epistles of Paul”, Word Pictures in the New Testament (Grand Rapids, MI: Baker Book House, 1931), 330; idem, Las epístolas de Pablo, 4:444; Eerdmans, 37. 72 Adolf Pohl, Carta aos Romanos: Comentário esperança (Curitiba, PR: Editora Evangélica Esperança, 1999), 46; Greathouse, 8:53. 126 Abandonar os homens às suas próprias paixões é uma forma de ira.73 É digno de nota que se Paulo não tivesse declarado que estas coisas são sinais da ira, nós as interpretaríamos como sinais da graça, porque esta visitação de sua ira consiste em permitir que a humanidade siga seu próprio caminho (At 7:42; 14:16).74 Por haverem abandonado voluntariamente a Deus, o Senhor os entrega a uma rebeldia ainda maior. Ele retira sua mão restritiva e protetora permitindo que as consequências do pecado sigam seu curso inevitável e destrutivo. Permite que os rebeldes sigam desembaraçadamente pelo seu caminho descendente, sem freio, sem qualquer intervenção divina, até a plena profundeza da depravação.75 Desse modo, pecado gera pecado, e trevas aprofundam as trevas, o que endurece os homens, e precipita-os para mais terríveis graus de depravação.76 O abandono da verdade de Deus resulta na degradação da imagem de Deus, na perda da dignidade e na destruição dos relacionamentos pessoais, pois apenas a verdade de Deus pode restringir o mal.77 73 H. J. Brokke, Romanos, o evangelho do Cristo ressurreto, traduzido por Myrian Talitha Lins (Belo Horizonte, MG: Betânia, 1981), 35. 74 Achtemeier, 39-40. 75 “Epístola aos Romanos”, O Novo Testamento interpretado, 3:582; Robertson, Las epístolas de Pablo, 4:444; Barnes, 4:46; MacArthur, Comentario MacArthur del Nuevo Testamento: Romanos 1-8, 129130; Braaten e Jenson, 1:377; Everett F. Harrison, “Romans”, The Zondervan NIV Bible Commentary (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1994), 2:528; A. Berkeley Michelsen, “La Epístola a los Romanos”, El Comentario Biblico Moody, red. Everett F. Harrison (Chicago: Editorial Moody, 1971), 248; Erdman, 36; John C. Brunt, Roman: Mercy for All, The Abundant Life Bible Amplifier (Boise, ID: Pacific Press Publishing Association, 1996), 53; J. Barmby e J. Radford Thomson, “The Epistle of Paul to the Romans”, The Pulpit Commentary (Grand Rapids, MI: Eerdmans, reimpressão 1977), 18:49. 76 77 Alford, 2:323; Brokke, Romanos, o evangelho do Cristo ressurreto, 35. Arno C. Gaebelein, “The Epistle to the Romans”, The Annotated Bible (S. L.: Moody Press / Loizeaux Brothers, 1970), 3:15; MacArthur, Comentario MacArthur del Nuevo Testamento: Romanos 1-8, 129-130; Achtemeier, 40. Ao procurar rebaixar a Divindade, o homem rebaixou-se a si mesmo. Harrison, “Romans”, The Expositor’s Bible Commentary, 10:26. Na verdade, o humanismo resulta na desumanização do homem. Tendo os homens invertido a relação criatura-Criador, Deus os visitou com a terrível inversão de criatura-criatura. Brokke, 35. Pecado, na realidade religiosa, é punido com pecado na esfera do moral (Rm 1:24). Murray, 1:43. 127 Por não compreenderem o significado da santidade, da justiça e do amor de Deus alguns imaginam que ele nunca abandona os homens. A verdade é que Deus nunca abandona aquele que aceita a Cristo como seu Salvador (2Tm 2:13). Embora ele seja criador de todos os homens e todos possam escolher ser filhos de Deus, é pai somente daqueles que nasceram de novo pela fé em Cristo.78 As desobediências isoladas destes são tratadas de outra maneira, com o castigo e disciplina do amor paterno (Hb 12: 5-13), enquanto que trata os pecados dos rebeldes como juiz e os deixa ceifarem o que semeiam aqui e serem entregues à justiça divina no último dia.79 Todavia, esta ação divina de entregar o homem ao seu próprio pecado não é aqui um abandono eterno, pois, enquanto a vida segue, Deus em sua graça provê oportunidades para a salvação. Escrevendo aos coríntios, depois de apresentar uma lista de pecados semelhantes à de Rm 1:29-31, Paulo menciona que alguns deles haviam vivido daquele modo e, todavia, Deus os transformara (1Co 6:11).80 A punição Desde o início, a punição com a qual Deus ameaçou o homem, caso ele pecasse, foi a pena de morte (Rm 5:12-14; 6:23; 1Co 15:22), que inclui: (1) morte espiritual, que resultou na natureza pecaminosa com a qual nascemos, e que nos torna impuros, afeta todo o nosso viver e nos faz carregar o fardo da culpa e ter medo da punição (Ef 2:3, 5); (2) os sofrimentos da vida, tais como as fraquezas, as doenças, os conflitos íntimos e também a corrupção e as convulsões da natureza (Rm 7:15-24; 8:18-23); (3) a morte física, (Gn 3:19; 78 Barnhouse, 273. 79 William Carey Taylor, Evangelho segundo João, 3 vols., 2ª ed. (Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1957), 2:41; Braaten e Jenson, 1:377. 80 MacArthur, Comentario MacArthur del Nuevo Testamento: Romanos 1-8, 131. 128 Rm 5:12-21; 1Co 15:12-23; Hb 9:27), o que não é somente resultado natural, mas, também, penalidade do pecado; (4) a morte eterna, a completa e definitiva separação de Deus, que inclui os sofrimentos físicos e angústias de consciência (Mt 5:29-30; Mt 18: 8-9;Mc 9:4348; Ap 14:9-11; 20:10, 15; 21:8) que os ímpios receberão quando forem lançados no fogo preparado para Satanás e seus anjos (Mt 25:41). Quando o homem pecou, essa penalidade efetivamente ocorreu, embora ainda não em sua plenitude, sustada que foi, temporariamente, pela graça de Deus.81 Em se tratando da punição final, embora todos os ímpios recebam o mesmo salário, a morte (Rm 1:32; 2:5-6; 3:23), haverá diferentes graus de punição, baseados no demérito da ofensa, conforme as obras de cada um (Mt 16:27; 2Tm 4:14; 1Pe 1:17; Ap 2:23; 20:1213; 22:12), o que refletirá a infinitamente sábia, santa e justa vontade de Deus tão bem estipulada em sua lei.82 A expressão grega “eis aiōnai aiōnion”, literalmente, “pelos séculos dos séculos” e outras semelhantes, encontradas nas Escrituras (Lc 1:33; Rm 1:25; 11:36; Mt 18:8; 19:16, 29; 25:41, 46) não denotam necessariamente existência eterna. Seu significado depende mais daquilo que está associado do que da própria expressão. A figura vem de Is 34:10 onde o profeta retrata a destruição de Edom e, todavia, se percebe que ele não intentava indicar que o fogo abarcaria todo o lugar e arderia eternamente, porque o mesmo texto descreve vários animais vivendo naquele lugar após este ser assolado (vs. 1115).83 81 Berkhof, 260-262. 82 Owen, 12: 436-437. Aqueles que defendem o pensamento de que o sofrimento será por toda a eternidade afirmam que o castigo será graduado em intensidade, mas não em duração. Pendleton, 398. 83 Donald Grey Barnhouse, God’s Remedy, 10 vols., 3a ed., Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1966), 832; Alfred Wikenhausen, El Apocalipsis de San Juan, 2ª ed. (Barcelona: Editorial Herder, 1981), 189-190. 129 O Tempo da Ira de Deus No NT, a expressão “dia do Senhor” é uma referência direta àquela ocasião em que Deus será revelado como justo juiz (ver 2Co 1:14).84 Ali são empregadas diversas expressões sinônimas: “o dia da ira” (Rm 2: 5; Ap 6:17); “o dia do julgamento” (Mt 11:22); “o último dia” (Jo 6:39); “o dia de Deus” (2Pe 3:12); “aquele dia” (2Tm 1:12, 18; 4:8); “o dia (1Co 3:13; Hb 10:25); e “o Dia de nosso Senhor Jesus Cristo” (1Co 1:8). Embora apareça o termo “dia”, isto não é uma referência a 24 horas, mas a um período de tempo indeterminado, suficiente para Deus cumprir o seu propósito.85 A expressão é ampla o bastante para abranger todo o período que inclui o fim desta era e a inauguração da próxima. É um dia de juízo e ira para os ímpios, mas também de redenção para os justos.86 Desse modo, o NT apresenta a ira de Deus como ocorrendo no tempo histórico (ex.: Rm 1:18) e no tempo escatológico (ex.: Sf 3:8; Ap 6:16-17),87 seguindo, desse modo, a mesma ideia apresentada no AT (Sf 3:8). 84 Ibid. 85 Ver MacArthur, Expositional Commentary on Revelation, 175. 86 George Eldon Ladd, El Apocalipsis de Juan: Un comentario (Miami, FL: Editorial Caribe, 1978), 96. 87 Hunter, 69-70; Greathouse, 8:49-50; Fichtner, TDNT, 5:398; DB, ver “Ira” e “Ira de Dios”; McDowell Jr., 136; Brunt, 53; D. A. Carson, The Goslpel According to John (Leicester: Inter-Varsity Press / Grand Rapids, MI: Eerdmans, reimpressão 1992), 214; Foulkes, 118; Lloid-Jones, Darkness and Light, 361; Richardson, 75, 78; Heber Carlos de Campos, O ser de Deus e os seus atributos, 2ª ed. (São Paulo: Cultura Cristã, 2002), 356-358; H. C. Hahn, “Ira, raiva - Orgē”, Dicionário internacional de teologia do Novo Testamento, 4 vols., traduzido por Gordon Chown (São Paulo: Vida Nova, 1985), 2:448; Eichrodt, 1:267; Rudolf Schnackengurg, The Gospel According to St John, traduzido por, Kevin Smyth (New York: The Crossroad Publishing Company, 1982), 391; Dahlberg, 4:903; “The wrath of God”, Seventh-day Adventist Bible Commentary, 6: 477; Henry, “An Exposition, with Practical Observations, of the Epistle of St. Paul to the Romans”, 6:S/P; J. M. Boice, “Ira de Dios”, Diccionario ilustrado de la Biblia. 3ª ed. (Miami, FL: Editorial Caribe, 1975), 304; Harrison, “Romans”, The Expositor’s Bible Commentary, 10:22. 130 Tempo histórico Em sua carta aos Romanos, o apóstolo escreveu: “[...] visto que a justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como está escrito: O justo viverá por fé. A ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça” (Rm 1:17-18). Uma análise detalhada deste texto revela vários aspectos dessa revelação da ira divina. (1) Deus tem feito duas revelações: uma de sua justiça, sob o anúncio do evangelho; a outra, de sua ira, dos céus. Uma é de fé em fé, e diz respeito àquele que crê e resulta em vida e salvação. A outra é “contra toda impiedade e perversão dos homens” e está agora em constante progresso.88 (2) A revelação da ira é parte da autorevelação divina, por um lado associada com o evangelho porque está sendo revelada do mesmo modo que a justiça, diante dos nossos olhos89 e, por outro, revela-se independentemente da Palavra, porque em qualquer lugar, mesmo aonde o evangelho ainda não chegou, ela se manifesta sobre as nações.90 (3) Como a futura salvação dos crentes está agora no presente sendo revelada no evangelho de Jesus Cristo e é apropriada pela fé, assim a futura ira de Deus está na atualidade sendo revelada na experiência daqueles que se distanciam da verdade de Deus.91 (4) A ira se revela não apenas no evangelho ou por algum ato sobrenatural, mas, pelo que a história mostra, na degradação que resulta do pecado e pela universal convicção da humanidade de que o pecado é inevitavelmente punido por sofrimento, miséria e morte.92 Desse modo, há uma aplicação da ira de Deus que, embora 88 Lenski, 89-90; Pohl, 43. 89 Greathouse, 8:48. 90 Pohl, 43. 91 Brokke, 31; Carson, 214. 92 Erdman, 33. Nem toda a ira de Deus está reservada para o futuro. No caso da promiscuidade sexual a ira de Deus pode ser vista sendo derramada continuamente mediante as enfermidades venéreas. Esta ira também pode ser vista manifestando-se como solidão, frustração, falta de sentido, ansiedade e 131 parcial, já ocorre no presente, na história do mundo, e prefigura a ira em sua manifestação final.93 (5) Essa revelação procede “do céu”, o lugar onde tem Deus a sua morada e onde está seu trono, o que mostra que a inseparável relação entre o pecado e as consequências da ira de Deus está em conformidade com uma ordem divinamente estabelecida.94 (6) O uso do passivo denota que o próprio Deus está revelando95 e o verbo é empregado de modo a que se refira a uma revelação presente e constante.96 Por que a ira de Deus é uma resposta ao pecado, ela começou com a entrada do pecado no universo e desde então permanece sobre a raça inteira.97 Quando o homem cometeu o primeiro pecado, a terra foi amaldiçoada por Deus (Rm 8:20-23; cf. Gn 3:1719). Isto foi parte da ira de Deus, e continua sendo.98 Sua ira está dinamicamente, efetivamente, operando no mundo dos homens99 e é revelada em todo o curso da providência em todas as épocas. Algumas vezes ela irrompe em terríveis julgamentos, algumas vezes em justiça punitiva executada pela lei e a sociedade (ver Rm 13:4). Mas também ela já começa a se manifestar no próprio instante em que se comete um ato de pecado. O fardo da culpa, a acusação da consciência e o sentimento de remorso são manifestações dessa ira. Também o são os sofrimentos físicos que o pecado causa, bem como o sofrimento mental, a desesperança na sociedade moderna. MacArthur, Comentario MacArthur del Nuevo Testamento: Romanos 18, 130. 93 Campos, 356-358. 94 Erdman, 33. 95 Lenski, 90. 96 Campos, 356-358. 97 The Eerdmans Bible Dictionary, ed. 1987, ver “Wrath”; Taylor, 40. 98 Lloid-Jones, Darkness and Light, 361. 99 Murray, 1:35. 132 infelicidade, os desajustes na família, a degeneração e o aviltamento do pecador e sua finitude (Rm1:18-31; Gl 5:19-21; Cl 3:5-9). Portanto, a ira de Deus, embora seja um fenômeno escatológico, já lança suas sombras na experiência presente. Seus juízos ainda não são juízos totais, mas juízos dentro da história (Rm 1:18-31). Possuem um sentido pedagógico e são aplicados como que com freios acionados, mesclados com uma profusão de paciência e longanimidade (Rm 2:4), realizando o propósito de Deus, preservando o mundo para a revelação da sua justiça no evangelho (1Tm 2:4; 2Pe 3:9) com a intenção de induzir as pessoas ao arrependimento (Ap 9:20).100 O mesmo pode ser visto no evangelho de João onde o tema da ira de Deus é abordado uma única vez. Em seu registro do encontro de Nicodemos com Jesus, o apóstolo anotou a conclusão da mensagem de Cristo para o príncipe judeu: “Por isso, quem crê no filho tem a vida eterna; o que, todavia, se mantém rebelde contra o filho não verá a vida, mas sobre ele permanece a ira de Deus” (Jo 3:36). Fica assim evidenciado que o julgamento escatológico de Deus já está operando aqui e agora, pois a missão salvadora de Jesus tornase um julgamento para aquele que não crê em Jesus. O incrédulo passa o julgamento sobre si mesmo por não crer no enviado de Deus, o único que pode tirá-lo das trevas e da morte e, assim, permanece em um presente estado de alienação de Deus em contraste com a vida eterna que o crente já possui no presente. A hora da decisão torna-se para o que não crê a hora da condenação, da qual o futuro julgamento será apenas a manifestação (Jo 5:29). 100 Pohl, 47; Stephen H. Travis, “Wrath of God”, ABD, 6:997; Richardson, 78. 133 Desse modo, o evangelho tem a dupla função de salvar e julgar, revelar tanto a salvação como a ira de Deus.101 Tempo escatológico Alguns dizem que não há necessidade de um juízo final porque a lei moral é como a lei física: executa-se a si mesma, ou seja, o transgressor recebe a consequência automaticamente. Como alguém que não respeita as leis de saúde acaba adoecendo. Tal pensamento está equivocado porque a lei moral tem analogia com outra lei, a civil, que não se executa a si mesma, mas depende de uma pessoa para tanto. Por sua própria natureza, exige um julgamento. Por isso, Deus “estabeleceu um dia em que há de julgar o mundo com justiça” (At 17:31).102 No texto do NT a ira de Deus com o sentido escatológico ocupa um lugar importante. O tema é introduzido pela pregação de João Batista anunciando a “ira vindoura” (Mt 3:7) e termina com “o lagar do vinho do furor da ira do Deus TodoPoderoso” (Ap 19:15). A ênfase recai não sobre guerras ou calamidades naturais, mas sobre o castigo que os ímpios terão ao final da história humana,103 o que será simplesmente o fim de um processo já em andamento, que objetiva pôr um fim ao pecado (Mt 25:41, 46; 2Ts 101 Schnackengurg, 391; W. Pesch, “Orgē / Wrath”, Exegetical Dictionary of the New Testament, ed. Horst Balz e Gerhard Schneider (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1991), 2:530; Travis, 6:996; ver também Carson, 214. 102 A. B. Langston, Esboço de teologia sistemática, 4ª ed. (Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1959), 325. 103 Ver Enciclopédia de Bíblia, teologia e filosofia, ed. 1995, ver “ira”; DB, ver “Ira” e “Ira de Dios”; M. García Cordero, “Ira de Dios”, Enciclopedia de la Biblia (Barcelona: Ediciones Garriga, 1963), 4:212. 134 1:7-10; Ap 20:15; 21:8).104 E porque a ira de Deus é uma resposta ao pecado, é correto esperar que ela termine quando o pecado deixar de existir (Ap 21:4; 22:3).105 O último livro da Bíblia apresenta os juízos de Deus em três séries, não simultâneas, mas seqüenciais, e cada vez mais severas: os sete selos (Ap 6:1-8:1), as sete trombetas (Ap 8:1-9:21; 11:15-19) e as sete taças (Ap 16:1-21).106 O fluxo desse escrito é baseado, em sua maior parte, nestas séries. O restante é parentético, ou antecipando ou revendo uma fase daquele fluxo.107 A abertura de todos os setes selos precede a abertura do livro que se encontra na mão direita daquele que estava assentado no trono (Ap 5:1). Esse livro contém as profecias do fim do mundo, que incluem uma variedade de ações, entre as quais o derramamento da ira de Deus. Assim, a ruptura do sétimo selo abre o livro e começa a história do tempo final (Ap 8:1).108 Os selos podem ser chamados de selos da ira de Deus.109 Cada selo apresenta uma fase diferente do grande conflito entre Cristo e Satanás e é empregado para demonstrar ao universo a justiça de Deus.110 Os juízos apresentados nos primeiros selos (Ap 6:1-11) – que envolviam guerra, fome, peste, morte e martírio dos santos – originaram-se em decisões humanas, pelo mal no coração dos homens. As sementes do mal que os homens semearam 104 Dunn, 54; McDowell Jr., 136; Brunt, 53; G. Raymond Carlson, “The Epistle of Paul to the Romans”, The Complete Biblical Library (Springfield, MO: The Complete Biblical Library, s.d.), 7:27. 105 EBD, ed. 1987, ver “Wrath”. 106 Gary G. Cohen e Salem Kirban, Revelation Visualized, 3a ed. (Chicago, IL: Moody Press, 1972), 300; Wiersbe, “Apocalipse”, Comentário bíblico expositivo, 6:753; Morris Ashcraft, “Apocalipse”, Comentário bíblico Broadman, traduzido por Adiel Almeida de Oliveira (Rio de Janeiro: JUERP, 1984), 12:343; EBTF, ver “trombetas, as sete”. Na interpretação do livro do apocalipse, foi adotado o método histórico, que encara o livro “como uma profecia simbólica da toda a história da igreja até a volta de Cristo e o fim dos tempos”. George Eldon Ladd, Apocalipse: Introdução e comentário, 2ª ed. (São Paulo: Vida Nova e Mundo Cristão, 1982), 11. 107 John Phillips, Exploring Revelation (Chicago, IL: Moody Press, 1974), 110. 108 Ladd, Apocalipse: Introdução e comentário, 96. 109 MacArthur, Expositional Commentary on Revelation, 171. 110 “Who shall be able to stand?” [Rev. 6:17], Seventh-day Adventist Bible Commentary, 7:780. 135 floresceram, frutificaram e arruinaram o mundo.111 Todavia os juízos descritos no sexto selo (Ap 6:12-17) originam-se com Deus, como uma punição divina. Com esse selo tem início o julgamento final.112 As sete trombetas (Ap 8:1-9:21; 11:15-19) retratam, simbolicamente, eventos políticos e militares específicos de destaque na história humana,113 entre a primeira e a segunda vindas de Cristo,114 que afetaram a igreja e seu testemunho.115 São consideradas como juízos parciais,116 uma “terrível série de ais que prenunciam o Fim”117 e têm a intenção de chamar ao arrependimento aqueles que delas escaparem.118 As pragas das sete taças contêm alguma semelhança com outras que são mencionadas nas Escrituras. Elas têm como modelo as pragas que caíram sobre o Egito (Êx 6:1 a 12:30). Ambas são literais e golpeiam algum aspecto da religião apóstata, mostram a superioridade de Deus e seu poder e a derrota de quem o desafiou, bem como o livramento de seu povo.119 Ainda, a despeito das semelhanças com as pragas das sete trombetas, enquanto que estas são parciais (1/3), as das taças não têm tal limitação. Não são uma simples repetição, 111 Phillips, 110-111; MacArthur, Expositional Commentary on Revelation, 172. 112 Ibid. 113 “Seven trumpets” [Rev. 8:6], Seventh-day Adventist Bible Commentary, 7:788. 114 “Additional note on chapter 2” [Rev. 2], Seventh-day Adventist Bible Commentary, 7:752-753. 115 Roy Allan Anderson, O apocalipse revelado (Santo André, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1977), 100. 116 “Third part” [Rev. 8:7], Seventh-day Adventist Bible Commentary, 7:788; Wiersbe, “Apocalipse”, Comentário bíblico expositivo, 6:753-754. 117 Ashcraft, Comentário bíblico Broadman,12:344. 118 Ray Summers, A mensagem do Apocalipse: Digno é o Cordeiro, 5ª ed. (Rio de Janeiro: JUERP, 1986), 148-149; Ladd, El Apocalipsis de Juan: Un comentario, 179-180. 119 Barnhouse, God’s Remedy, 3:839; Wikenhausen, 199; Domingo Fernandez Suarez, Una interpretación del Apocalipsis, 6ª ed. (Buenos Aires: Casa Bautista de Publicaciones, 1976), 155. 136 mas, castigos bem mais graves, punitivos e posteriores no tempo.120 Portanto, sob os juízos das taças, o mundo é resgatado por Deus. A ira de Deus é revelada e o império de Satanás é golpeado vez após vez pelo próprio Deus, até que Cristo volte e ponha fim a este mundo de desgraça.121 O extravasar da ira de Deus por meio das sete pragas é vindicado no cântico de Moisés e no cântico do Cordeiro (Ap 15:3-4), na declaração do anjo responsável pela terceira praga (Ap 15:4-6) e pela voz que provém do altar (Ap 15:7). Em todos estes casos a ira de Deus se baseia na santidade de Deus.122 Nessas pragas, Deus terá derramado totalmente sua ira (Ap 15:1) no contexto particular que antecipa o juízo final, o que não se refere à totalidade da ira de Deus, uma vez que ainda haverá o lago de fogo (Ap 19:20; 20:10, 14-15; 21:8), que, então, será a manifestação final da ira de Deus. Elas são apenas uma introdução à última e decisiva expressão de ira de Deus,123 uma manifestação extraordinariamente extensa e intensa dessa ira contra a atitude desafiadora, soberba e criminosa daqueles que tem frustrado o propósito de Deus no mundo – a besta e os que a apóiam. São a resposta de Deus ao último e maior esforço de Satanás para frustrar o governo divino.124 O Apocalipse fala da ira das nações, da ira do dragão e da ira de Deus e do Cordeiro, o que permite se chegar à conclusão que o grande conflito entre o bem e o mal é um conflito entre duas iras, a ira de Deus e do Cordeiro versus a ira de Satanás e de suas 120 Leon Morris, El Apocalipsis, traduzido por C. René Padilla (Buenos Aires: Ediciones Certeza, 1977), 227; Wikenhausen, 199. 121 Phillips, 110-111. 122 McDowell Jr., 135. 123 Ladd, El Apocalipsis de Juan: Un comentario, 179-180; Wikenhausen, 195. 124 Ladd, El Apocalipsis de Juan: Un comentario, 185; Suarez, 154. 137 instrumentalidades (Ap 12:7; 11:18).125 A ira das nações que desafiam a Deus chegará à sua consumação em uma expressão final de ira (Ap 11:18). Por outro lado, a visitação da ira de Deus sobre aqueles que de modo irreversível se posicionam contra sua soberania é absolutamente essencial para o estabelecimento de seu reino misericordioso no mundo (Ap 14:10). Isso inclui a necessidade de juízo,126 o qual precisa ser adiado até o fim do mundo para que se possa levar em conta não apenas os resultados imediatos de nossos atos, mas, também, os de longo alcance, pois, quando alguém morre, sua influência permanece.127 Uma análise de Rm 2:1-5 permite a conclusão que diante do tribunal de Deus cada ser humano confrontará cinco perigos: (1) O perigo do conhecimento (v. 1). Quem é capaz de discernir a verdade ou falsidade em outro, demonstra ser responsável por sua própria conduta naquele ponto. E se ele souber mais do que o outro, será ainda mais responsável. Assim, enquanto parece que apenas julga o outro, está condenando a si mesmo. (2) O perigo de pecar (v. 2). A base do julgamento é a verdade, não a nossa racionalização. A condenação está sobre aqueles que pecam, não apenas sobre aqueles que admitem que pecam. Não há segurança no pecado. (3) O perigo de julgar (v. 3). É bastante comum a tendência humana de condenar alguém por um pecado, contudo fazer uma exceção para si mesmo quando pratica o mesmo. Mas a Escritura diz: “Pensas que te livrarás do juízo de Deus?” (4) O perigo de desprezar o tribunal divino e o modo como ele opera (v. 4). A misericórdia divina é frequentemente confundida com indulgência. A demora em punir é tomada como desistência em punir. Assim, as riquezas de sua bondade, tolerância e 125 Hahn, “Ira, raiva - Orgē”, DITNT, 2:447; Stählin, “Orgē: The Wrath of Man and the Wrath of God in the New Testament”, TDNT, 5:439; Alois Stoeger, “Ira”, Dicionário de teologia bíblica, ed. Johannes B. Bauer, traduzido por Helmuth Alfredo Simon (São Paulo: Edições Loyola, 1979), 541. 126 127 Ladd, El Apocalipsis de Juan: Un comentario, 172. M. L. Andreasen, O ritual do santuário, 3ª ed. (Santo André, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1983), 261-262. 138 longanimidade, manifestadas com a intenção de conduzir o transgressor ao arrependimento, são vistas com desdém como fraqueza ou frouxidão. (5) O perigo da dureza (v. 5). Quem rejeita as ternas misericórdias de Deus, torna-se insensível aos brandos procedimentos de Deus. Desse modo, quanto mais Deus demora em retribuir, mais se multiplica a ofensa e sua respectiva punição se acumula, sendo estocada como se fosse um grande tesouro, aguardando o tempo de sua manifestação, no juízo.128 Quem será julgado? O juízo incluirá: (1) os justos (Mt 25:35-36) – que embora reconciliados (2Co 5:20-21) e justificados (Rm 5:1; 8:1), ainda têm que prestar contas e cujas boas obras serão reveladas e reconhecidas como fruto de sua fé e provas de sua justificação;129 (2) os maus – com diferentes graus de culpabilidade, segundo a luz, as bênçãos e as oportunidades que tiveram (Lc 12:48), compreendidos por: (a) as nações pagãs, julgadas segundo a lei escrita nos seus corações e pela luz fornecida pela natureza (Rm 1:20; 2:12, 16); (b) os que viveram sob a luz da lei do AT, que serão julgados por ela (Lc 16:31; Rm 2:12); (c) os que viveram sob a economia cristã, que serão julgados também pelo evangelho (Jo 12:48; Mt 11:22, 24; Hb 10:28-29); e (3) os anjos caídos (2Pe 2:4; Jd 6; Mt 8:29).130 Qual o propósito do julgamento? O julgamento não tem a intenção de informar a Deus, que a todos conhece com perfeição. Antes, é para colocar tudo às claras (Mt 10:26). Não é descobrir a verdade, mas revelar a verdade.131 Na ocasião o caráter de cada um será 128 Wilber T. Dayton, “The Epistle of Paul to the Romans”, The Wesleyan Bible Commentary, 2a. ed. (Grand Rapids, MI: Eerdmans, reimpressão 1971), 5:22-23. 129 Pendleton, 383-388; Wayne Grudem, Teologia sistemática (São Paulo: Vida Nova, 1999), 974980; T. McComiskey, “Julgamento, Juiz, Entregar, Tribunal – Bema”, DITNT, 2:517. Jo 5:24 claramente se refere ao juízo condenatório, como pode ser visto pelo contexto. Na ocasião serão trazidos a público os seus pecados, mas aparecerão como pecados perdoados. Berkhof, 738. 130 Pendleton, 383-388; Grudem, 974-980; Berkhof, 739. 131 Langston, 324. 139 revelado de tal modo que a própria pessoa e todos os que a conheceram vejam a justiça do veredito.132 Cada um receberá o que lhe é devido.133 Mas é também verdade que, ao participarem do julgamento, estarão também, em certo sentido, julgando o próprio Deus: seus princípios, suas leis, seu modo de agir (Rm 3:4). Então serão manifestos os grandes propósitos de Deus; todos conhecerão tanto sua ira como seu amor. Ao final todos proclamarão que seus caminhos e seus juízos foram justos (Ap 16:5 e 7; 19:1; 15:3; 19:6; 11:15; 12:10; 22:5).134 Procedendo assim, nenhuma dúvida se levantará nem se poderá jamais levantar na mente de ninguém.135 A doutrina do juízo final é positiva e traz vários benefícios para a nossa vida atual. (1) Ela satisfaz o nosso desejo íntimo de justiça no mundo. Mostra que tudo que acontece é registrado com fidelidade, que Deus detém o comando de todas as coisas e que, por fim, a justiça triunfará (2Pe 3:9-13; Ap 20:11-15) (2) Ela nos leva a viver sem amargura ou ressentimento, pelos agravos que sofremos, confiando tudo aos cuidados de Deus, como Jesus, que “quando ultrajado, não revidava com ultraje; quando maltratado, não fazia ameaças, mas entregava-se àquele que julga retamente” (1Pe 2:22-23; veja também Rm 12:19), sabendo que todo o mal que nos for feito receberá sua retribuição: ou será tido como pago por Cristo (se o ofensor se salvar) ou será pago no juízo final (se o ofensor se perder). (3) Ela nos incentiva a uma vida justa e a buscar maior galardão (Mt 6:20). Para o incrédulo que a conhece acredita-se que pode servir para que ele tenha, pelo menos, um 132 Hodge, 1642-1644; Andreasen, 263, 268. 133 Berkhof, 739. 134 Andreasen, 270-271; Langston, 324; Brunt, 63; Knox e Cragg, 9:401. 135 Andreasen, 267. 140 pouco do temor a Deus e seja refreado em sua maldade. (4) Ela serve de grande estímulo à obra de evangelização (2Pe 3:7-9; Ap 22:17 cf. 20:11-15).136 A Ira de Deus nos Escritos de Ellen White Em seus comentários sobre o texto bíblico e ao discorrer sobre os atributos e o caráter de Deus, Ellen White muitas vezes faz referência à ira de Deus e à sua manifestação por meio de juízos.137 Ela definiu essa ira como “a terrível manifestação de Seu desagrado por causa da iniquidade”.138 Para ela é sempre a transgressão da lei,139 o pecado, que causa a manifestação da ira divina contra o pecador.140 Talvez a expressão “ira” não pareça muito adequada quando aplicada a Deus, todavia, algumas vezes ele se exprimiu “segundo a maneira dos homens, para que a justiça de Seu trato pudesse ser compreendida”.141 136 Grudem, 981-982. Haverá graus de punição para os perdidos. E esses graus serão determinados pelo que é feito enquanto na carne (Mt 11:22, 24; Lc 12:47-48; 20:47; 2Co 9:6). Ibid., 974-980; Herbert Lockyer, Apocalipse: O drama dos séculos (São Paulo: Vida, 1982), 151. 137 Ellen White, Testemunhos seletos, 3 vols., 6ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 2:61, 65. 138 Idem, O desejado de todas as nações, 22ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 753. Um desprazer semelhante pode ser visto também na experiência daqueles que seguem a Cristo, quando têm uma “indignação justificável” que nasce da “sensibilidade moral” e que surge, por exemplo, “quando vêem que Deus é desonrado, e Seu serviço exposto ao descrédito” e “quando vêem o inocente opresso”. Ibid., 310. Ver também idem, Patriarcas e profetas, 16ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 723; idem, Testemunhos seletos, 1:228; idem, O grande conflito, 41ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 36 e idem, Profetas e reis, 9ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 417. 139 Idem, Atos dos apóstolos, 9ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 393. 140 Idem, Mensagens escolhidas, 3 vols., 5ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 1:218. 141 Idem, Patriarcas e profetas, 139. Essa expressão foi utilizada pela autora no contexto da ira divina, ao comentar o que o Senhor disse a Abraão ao estar se dirigindo para Sodoma a fim de destruí-la (Gn 18:17-33). No estudo deste tema, deve-se considerar que o fato de alguém enfrentar dificuldades e tribulações não implica necessariamente em que esteja sob a ira de Deus, porque neste mundo onde impera o mal, todos passam por lutas e dificuldades. Idem, Caminho a Cristo, 28ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 119; ver também idem, A ciência do bom viver, 10ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 119 e 257. Essa continuará a ser nossa experiência enquanto não alcançarmos o lar celestial. Ibid., 247. O próprio Jesus declarou a seus seguidores: “No mundo, passais aflições; mas tende bom ânimo; eu venci o mundo” (Jo 16:33). Assim, “não devemos pensar, quando somos aflitos, que a ira do Senhor esteja sobre nós. Deus nos permite as provas para que sejamos atraídos para perto dEle”. Idem, a Henry D. Wessells, 8 de outubro de 1895, Carta 97, 1895, pág. 10, Centro de Pesquisas Ellen G. White – Brasil, Engenheiro Coelho, SP. 141 Além de misericordioso e benigno, ele também é justo e imparcial142 e, por ser legislador e governante moral, precisa fazer e executar Suas leis.143 Ele mantém como que uma conta aberta com todas as nações, a qual é encerrada quando estas atingem o limite que Ele fixou. Então, cessa a paciência divina, de modo que a misericórdia não mais intercede a favor delas e tem início o ministério de Sua ira.144 O mesmo também ocorre no plano particular, pessoal, pois Deus está medindo tanto as nações como os indivíduos.145 Deus não tem nenhum prazer em castigar, antes, sente pesar quando o faz (Ez 33:11).146 Ao reter seus juízos e demonstrar misericórdia de todas as maneiras possíveis, ele busca atrair aqueles que estão no erro.147 Sua paciência e longanimidade objetivam enternecer-lhes o coração.148 Através das gerações ele tem concedido aos homens um período limitado de luz e privilégios a fim de que se reconciliem com ele.149 Durante esse tempo, seu Espírito opera no coração humano, convidando,150 aconselhando,151 advertindo,152 reprovando e convencendo do pecado.153 Se o pecador finalmente rejeita esse ministério do Espírito, nada mais há que Deus possa fazer por ele. Então, “já não resta mais sacrifício pelos pecados, mas certa expectação 142 Ibid., 240. 143 Ibid., 241. 144 Idem, Testemunhos seletos, 2:63. 145 Idem, Educação, 8ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 178. 146 Idem, O desejado de todas as nações, 582. 147 Idem, Profetas e reis, 413. 148 Idem, Vida e ensinos, 10ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 185. 149 Idem, O desejado de todas as nações, 587. 150 Idem, Caminho a Cristo, 85. Ver também idem, Educação, 27. 151 Idem, Testemunhos seletos, 1:477. 152 Idem, O grande conflito, 7. 153 Idem, Profetas e reis, 405. 142 horrível de juízo, e ardor de fogo, que há de devorar os adversários” (Hb 10:26 e 27).154 Seus juízos retributivos não podem ser contidos indefinidamente.155 Quando, finalmente, os homens completarem a medida de seus pecados, “a ira de Deus, que por tanto tempo tem estado dormitando, despertará”156 e eles a receberão, sem mistura.157 [...] passado o período de nossa prova, se formos achados transgressores da lei de Deus, encontraremos no Deus de amor um ministro de vingança. Deus não Se compromete com o pecado. Os desobedientes serão punidos [...]. O amor de Deus agora se expande para incluir o mais baixo e vil pecador que, contrito, venha a Cristo. Estende-se para transformar o pecador num obediente e fiel filho de Deus; mas nenhuma alma pode ser salva se continuar em pecado. O pecado é a transgressão da lei, e o braço que é agora poderoso para salvar, será forte para punir quando o transgressor ultrapassar as fronteiras que limitam a paciência divina.158 Portanto, quando a ira de Deus vem sobre os homens, não é apenas por causa dos pecados que cometeram,159 mas porque rejeitaram sua graça160 e os meios que ele designou para restaurar o pecador:161 menosprezaram as reprovações e advertências de seu Espírito,162 desprezaram sua mensagem e seus mensageiros,163 manifestaram obstinada resistência às reprovações da consciência,164 e recusaram aceitar seu Filho como Redentor.165 É a deliberada oposição a Deus,166 a persistente rejeição de suas presentes 154 Ibid. 155 Ibid., 276, 417, 426; idem, Testemunhos seletos, 2:62-63 e idem, O grande conflito, 36. 156 Idem, Eventos finais, 2ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 41. 157 Ibid. 158 Idem, Mensagens escolhidas, 1:313. 159 Idem, Atos dos apóstolos, 62. 160 Idem, O grande conflito, 543. 161 Idem, O desejado de todas as nações, 587. 162 Ibid. 163 Ibid. 164 Idem, Profetas e reis, 97. 165 Idem, O desejado de todas as nações, 600. Ver também idem, Testemunhos seletos, 1:229. 166 Ibid. 143 misericórdias e advertências,167 ou preferir continuar num estado de incredulidade, de resistência,168 determinados a não ceder,169 enfim, o desdenhar da salvação,170 que os fará receber os justos juízos de Deus.171 Os Propósitos da Ira de Deus Analisando as muitas manifestações da ira de Deus, Ellen White indica que elas possuem uma diversidade de propósitos, que podem variar conforme as circunstâncias: (1) Manter a honra e o governo de Deus, revelando seus atributos de justiça e santidade. Nesses casos, as manifestações de ira mostram sua superioridade sobre os deuses das nações e sua aversão ao pecado, e levam os homens a temê-lo e a se dispor a ouvir sua voz.172 (2) Deter os pecadores em seu mau caminho e conduzi-los ao arrependimento, à reforma da vida e ao caminho da salvação.173 (3) Proteger aqueles que não incorreram em pecado de modo que não sejam prejudicados pelo mal.174 (4) Servir de testemunho para as gerações futuras para 167 Idem, O desejado de todas as nações, 587. 168 Ibid., 587. 169 Idem, Testemunhos para ministros e obreiros evangélicos, 4ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 74-75. 170 Idem, História da redenção, 9ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 403. 171 Ver os Anexos. 172 Uma amostra dessa intenção pode ser vista na declaração que segue: “Desde o dilúvio, o fogo bem como a água tem sido o agente de Deus para destruir cidades muito ímpias. Estes juízos são enviados a fim de que aqueles que consideram levianamente a lei de Deus e menosprezam Sua autoridade, possam ser levados a tremer ante o Seu poder, e confessar Sua justa soberania. Vendo os homens montanhas ardentes a derramar fogo e chamas, e torrentes de minério derretido a secar rios, submergindo cidades populosas, e por toda parte espalhando a ruína e desolação, o mais arrogante coração tem-se enchido de terror, e os incrédulos e blasfemos têm sido constrangidos a reconhecer o infinito poder de Deus.” Idem, Patriarcas e profetas, 108109. Outros comentários que apresentam esse mesmo propósito podem ser encontrados em ibid., 361, 492, 445, 582, 723; idem, História da redenção, 115 e 324; idem, Profetas e reis, 292; idem, Eventos finais, 28. Essa intenção divina foi demonstrada pela autora em idem, Patriarcas e profetas, 123, 396, 401, 605; idem, Profetas e reis, 77-86, 107, 255, 309; 425, 673-676, 705; idem, Parábolas de Jesus, 14ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 213-214; idem, O maior discurso de Cristo, 15ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 67; idem, Testemunhos seletos, 3:330; idem, Eventos finais, 28-29. 173 174 Ibid., 241; idem, Parábolas de Jesus, 325. Ver comentários sobre exemplos dessa realidade em idem, Patriarcas e profetas, 130-131, 263; idem, História da redenção, 115. 144 que não cometam os mesmos pecados a fim de não incorrerem nos mesmos castigos.175 (5) Manifestar misericórdia para com os próprios pecadores,176 pois a continuação de sua vida resultaria em ódio e contenda entre eles mesmos, de modo que se destruiriam uns aos outros, resultando em maior sofrimento.177 (6) A completa erradicação do pecado e dos pecadores.178 Tipos da Ira de Deus Para Ellen White, os juízos divinos podem ser classificados como diretos ou indiretos. Ela chama de juízos indiretos as ocorrências em que Deus se afasta e deixa o pecador seguir seu próprio caminho.179 Nesses casos o Espírito Santo é retirado definitivamente do pecador e este fica à mercê de suas próprias paixões e da maldade de Satanás.180 Não há mais a interferência divina em sua vida. O exemplo mais evidente de um caso assim pode ser visto na destruição de Jerusalém, no ano 70.181 Após descrever o que ocorreu, a autora afirma que “jamais foi dado um testemunho mais decisivo do ódio ao pecado por parte de Deus, e do castigo certo que recairá sobre o culpado”.182 Outras vezes os juízos de Deus são diretos, o que significa que Deus é sua fonte. Podemos ver exemplos disso nos juízos de Deus sobre o mundo antediluviano porque se 175 Ibid. 176 Ibid.; idem, Profetas e reis, 428. 177 Ibid., 325-326. 178 Idem, O grande conflito, 669-670, 675. 179 Idem, Fé e obras, 4ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 46. 180 Idem, O grande conflito, 36. As mesmas coisas ocorrerão, todavia em escala mundial, com todos os ímpios, quando o Espírito de Deus for totalmente retirado deles, ao final da história humana. Ver pág. 37. 181 182 Ibid., 25. Ibid., 33. Quando ela trata dos eventos que ocorrerão após encerrar o período de graça, dado por Deus aos homens, um pouco antes do retorno de Cristo a este mundo, declara que “o mundo inteiro se envolverá em ruína mais terrível do que a que sobreveio a Jerusalém na antiguidade”. Ibid., 613. 145 havia tornado “incurável”,183 sobre os habitantes de Sodoma porque “eram incorrigíveis no pecado”,184 e sobre os amorreus, os antigos moradores de Canaã, que apesar de terem visto “o poder divino manifestado de maneira assinalada”, não apresentaram nenhuma “mudança para melhor”.185 Falsas Ideias Sobre a Ira de Deus Em seus escritos, Ellen White analisa e combate o que para ela são falsos ensinamentos a respeito dos juízos de Deus e de Sua ira. Ela focaliza especialmente: (1) a doutrina do tormento eterno como castigo pelo pecado. Para ela, essa doutrina retrata a Deus como um ser vingativo, que se alegra com o sofrimento de suas criaturas, o que tem levado os homens à grande perturbação, incredulidade e rebeldia.186 Esse ensino derivou dos dogmas da filosofia pagã, entre os quais a “crença na imortalidade natural do homem e sua consciência na morte” que, especialmente através do papado, acabaram sendo incorporados à fé cristã.187 A autora argumenta que, se por um lado, a idéia de os ímpios serem atormentados eternamente por causa dos pecados de uma breve vida terrestre não reflete a justiça,188 por outro, o acúmulo de pecado, devido às maldições e blasfêmias que os ímpios proferem enquanto torturados, não promove a glória de Deus, antes “o apresenta 183 Idem, Testemunhos para ministros e obreiros evangélicos, 75. Nessa ocasião, “o próprio Satanás, que fora obrigado a permanecer no meio dos elementos em fúria, temeu pela sua existência”. Idem, Patriarcas e profetas, 96. 184 Idem, Testemunhos para ministros e obreiros evangélicos, 75. 185 Idem, Testemunhos seletos, 2:63. 186 Idem, Conselhos aos professores, pais e estudantes, 5ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 27-28. Ver também idem, O grande conflito, 534, 536; Idem, Primeiros escritos, 4ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 220. 187 Ibid., 57-58. 188 Idem, O grande conflito, 535. 146 como o maior tirano do Universo”189 e perpetua o pecado.190 (2) A ideia de que a recompensa segue-se imediatamente após a morte. Se fosse assim, não haveria necessidade de um juízo futuro, como é tão amplamente ensinado no evangelho191 (Mt 11:22; 12:41-42; 2Tm 4:1; 1Pe 4:5; 2Pe 2:9; 3:7; Jd 6; Ap 20:11-15). Além disso, o pensamento de que seus queridos que faleceram sem estarem preparados estão agora sofrendo nas chamas, traz imensa angústia para os que continuam vivos.192 (3) O conceito de que as ameaças de Deus não se cumprirão literalmente, antes o seu propósito é meramente amedrontar os homens e levá-los à obediência.193 Ao final, não importa como vivam os homens, toda a humanidade se salvará.194 Tal consideração, embora admita a misericórdia divina, passa por alto sua justiça e serve de incentivo a uma vida ímpia.195 (4) A morte é um sono eterno. Esta crença nega o valor da Bíblia196 a qual declara repetidamente que esta vida não é tudo e que todos os que morreram um dia ressurgirão: uns para a vida eterna e outros para a destruição eterna (Jo 5:28-29; Ap 20:4-6, 11-15). Instrumentos da Ira de Deus Ao enviar Seus justos juízos sobre os homens, Deus faz uso de variados instrumentos, tais como anjos, homens, forças da natureza, pragas e doenças. 189 Idem, Testemunhos para a igreja, 9 vols. (Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2000-2006), 1:120. 190 Idem, O grande conflito, 536. 191 Ibid., 549. 192 Ibid., 535. 193 Ibid., 537; Idem, Primeiros escritos, 219. 194 Ibid. Ver também idem, História da redenção, 389. 195 Idem, O grande conflito, 537. 196 Idem, Primeiros escritos, 219. 147 Os anjos Uma leitura atenta das Escrituras Sagradas revela que Deus emprega como agentes de sua ira tanto os anjos que lhe são sempre leais como aqueles que se rebelaram contra ele. Os anjos da luz Nas páginas da Bíblia pode-se perceber com frequência a atividade dos anjos em favor dos homens. Eles trazem revelações ou orientações específicas, animam, confortam, cuidam e protegem (Gn 24:7; 1Re 19:4-8; 2Cr 32:21; Sl 34:7; 91:11; Mt 1:18-21; 2:13-15; Lc 1:8-20, 26-38; At 5:17-21; 10:1-5; 12:3-11). Como registrou o autor da carta aos Hebreus: “Não são todos eles espíritos ministradores, enviados para serviço a favor dos que hão de herdar a salvação?” (Hb 1:14). Todavia, há também um “poder destruidor exercido pelos santos anjos quando Deus ordena”.197 No relato do Gênesis, por exemplo, o contexto mostra que os viajores que visitaram a Abraão (Gn 18) eram anjos, “mensageiros celestiais” e “ministros da ira”, que se dirigiam a Sodoma com a finalidade de destruí-la (Gn 19).198 Também, quando ocorreu a décima praga contra o Egito (Êx 12:29-30), “um único anjo destruiu todos os primogênitos dos egípcios, enchendo a Terra de pranto”.199 Séculos mais tarde, quando o rei Davi mandou transportar a arca sagrada para a capital, “estendeu Uzá a mão à arca de Deus e a segurou, porque os bois tropeçaram. Então, a ira do Senhor se acendeu contra Uzá, e Deus o feriu ali por esta irreverência; e morreu ali junto à arca de Deus" (2Sm 6:6-7). Uzá “demonstrou uma manifesta desconfiança de Deus, como se Aquele que tinha trazido a arca da terra dos 197 Idem, O grande conflito, 614. 198 Idem, Patriarcas e profetas, 138-139. 199 Idem, O grande conflito, 614. 148 filisteus não pudesse tomar conta dela. Os anjos que atendiam à arca feriram Uzá por sua impaciente presunção de colocar a mão sobre a arca de Deus”.200 Outra ocorrência se deu nos dias do rei Ezequias, por ocasião da invasão dos assírios que, comandados por Senaqueribe, afrontaram e blasfemaram de Deus. O juízo divino veio por meio de um anjo. “Naquela mesma noite, saiu o Anjo do Senhor e feriu, no arraial dos assírios cento e oitenta e cinco mil” (2Re 19:35); “destruiu todos os homens valentes, os chefes e os príncipes no arraial do rei da Assíria” (2Cr 32:21). Semelhantemente, nos dias da igreja primitiva, percebe-se que um anjo foi “o mensageiro da ira e juízo a Herodes [...] trazendo sobre ele o castigo do Todo-poderoso [...] [de modo que ele] morreu em grande angústia de espírito e corpo, sob o juízo retributivo de Deus”201 (At 12:20-23). Ainda nos eventos escatológicos que ocorrerão por ocasião do derramamento das sete últimas pragas, os anjos de Deus executarão seus juízos, pois serão “mensageiros de vingança”202 (Ap 15:1, 8; 16:1-17). Portanto, os anjos que têm a função de proteger e livrar a uns, podem receber a ordem de punir a outros. 200 Idem, História da redenção, 192. Noutra obra são fornecidos mais detalhes sobre a razão do juízo de Deus ter ocorrido nessa ocasião: “A sorte de Uzá foi um juízo divino pela violação de um mandado explícito. Por meio de Moisés o Senhor dera instrução especial com relação ao transporte da arca. Ninguém, a não ser os sacerdotes, descendentes de Arão, devia tocá-la, ou mesmo olhar para ela, estando descoberta. A instrução divina era: "Os filhos de Coate virão para levá-lo; mas no santuário não tocarão, para que não morram." Núm. 4:15. Os sacerdotes deviam cobrir a arca, e então os coatitas deviam carregá-la pelas hastes, as quais eram colocadas em argolas de cada lado da arca, e nunca se removiam. [...] “[...] Em Uzá recaía a maior culpa de arrogância. A transgressão à lei de Deus diminuíra a intuição que ele tinha da santidade da mesma, e, tendo sobre si pecados não confessados, atrevera-se em face da proibição divina a tocar no símbolo da presença de Deus. Deus não pode aceitar uma obediência parcial, uma maneira frouxa de tratar os Seus mandamentos. Pelo juízo sobre Uzá, era Seu intuito impressionar todo o Israel quanto à importância de dar estrita atenção aos Seus requisitos. Assim a morte daquele homem, levando o povo ao arrependimento, poderia impedir a necessidade de infligir juízos sobre milhares.” Idem, Patriarcas e profetas, 705-706. 201 Idem, Atos dos apóstolos, 152. 202 Ibid., 431-432. 149 Os anjos das trevas Há algumas situações em que Satanás e seus anjos são os executores dos juízos de Deus. Isto não significa que haja uma espécie de parceria entre Deus e Satanás ou que este preste algum tipo de obediência Àquele. Todavia, quando o pecador, por sua contumácia no pecado, ultrapassa os limites da misericórdia, Deus se afasta dele e não mais interfere em sua vida, deixando-o seguir seu próprio caminho e entregue à sua própria sorte. Então, Satanás, cuja índole é causar aflição a quem puder, tem amplo espaço para agir a seu belprazer.203 Fatalmente, tal indivíduo é mergulhado num mundo de sofrimento e desespero e o que lhe sucede também é considerado como juízo de Deus. Foi o que aconteceu, de modo coletivo, por ocasião da destruição de Jerusalém no ano 70 de nossa era, conforme fora predito por Cristo (Mt 24 e Lc 21). Em Sua longanimidade, Deus a poupou por quase 40 anos, a fim de que mais luz resplandecesse sobre aqueles que não estavam endurecidos no pecado. Contudo, como persistissem em rejeitar a misericórdia divina, completaram a medida de seus pecados.204 “Afastou Deus então deles a proteção, retirando o poder com que restringia a Satanás e seus anjos, de maneira que a nação ficou sob o controle do chefe que haviam escolhido”.205 A partir daquele momento, tudo que aconteceu à cidade foi por vontade e ação de Satanás,206 o qual “suscitou as mais violentas e vis paixões da alma. Os homens [...] 203 Idem, O grande conflito, 36. 204 Ibid., 27-28. 205 Ibid., 28. “Quando, porém, os homens passam os limites da clemência divina, a restrição é removida. Deus não fica em relação ao pecador como executor da sentença contra a transgressão; mas deixa entregues a si mesmos os que rejeitam Sua misericórdia, para colherem aquilo que semearam.... O Espírito de Deus, persistentemente resistido, é afinal retirado do pecador, e então poder algum permanece para dominar as más paixões da alma, e nenhuma proteção contra a maldade e inimizade de Satanás.” Ibid., 36. 206 Ibid., 28-29. 150 tornaram-se satânicos em sua crueldade”.207 Como consequência, houve saques, torturas, dissensões internas, combate dos exércitos estrangeiros, fome, peste e muito derramamento de sangue.208 Assim, “as horríveis crueldades executadas na destruição de Jerusalém são uma demonstração do poder vingador de Satanás sobre os que se rendem ao seu controle”.209 Todas essas desgraças são classificadas como juízos de Deus.210 Ainda é acrescentado que a profecia de Cristo sobre os “juízos que deveriam cair sobre Jerusalém há de ter outro cumprimento, do qual aquela terrível desolação não foi senão tênue sombra [...] da condenação de um mundo que rejeitou a misericórdia de Deus e calcou a pés a Sua lei”.211 Isso ocorrerá após Cristo completar sua obra de intercessão pelos homens e sair do santuário celestial.212 Discorrendo sobre aquele tempo Ellen White diz: Removeu-se a restrição que estivera sobre os ímpios, e Satanás tem domínio completo sobre os que finalmente se encontram impenitentes. ... Os ímpios passaram os limites de seu tempo de graça; o Espírito de Deus, persistentemente resistido, foi, por fim, retirado. Desabrigados da graça divina, não têm proteção contra o maligno. Satanás mergulhará então os habitantes da Terra em uma grande angústia final.213 Esses acontecimentos futuros são apresentados como cumprimento de uma visão apocalíptica e simbólica, na qual “quatro ventos” querem soprar para “fazer dano à terra e ao mar”, mas são impedidos, durante algum tempo, por “quatro anjos”. Depois que os 207 Ibid., 25. 208 Ibid., 28-35. 209 Ibid., 35. “Os judeus haviam forjado seus próprios grilhões; eles mesmos encheram a taça da vingança. Na destruição completa que lhes sobreveio como nação, e em todas as desgraças que os acompanharam depois de dispersos, não estavam senão recolhendo a colheita que suas próprias mãos semearam. [...] Seus sofrimentos são muitas vezes representados como sendo castigo a eles infligido por decreto direto da parte de Deus. É assim que o grande enganador procura esconder sua própria obra. Pela obstinada rejeição do amor e misericórdia divina, os judeus fizeram com que a proteção de Deus fosse deles retirada, e permitiu-se a Satanás dirigi-los segundo a sua vontade.” Ibid. 210 Ibid., 36. 211 Ibid. 212 Ibid., 614. 213 Ibid. 151 servos de Deus são selados, os ventos são soltos (Ap 7:1-3). Esses quatro ventos representam as forças demoníacas que em sua fúria desejam arruinar a humanidade214 enquanto que os anjos que os seguram simbolizam os anjos de Deus que limitam o poder das forças do mal.215 “Com insone vigilância eles estão mantendo em xeque os exércitos de Satanás até ser concluído o selamento do povo de Deus”.216 Aqueles que foram selados são servos de Deus, isto é, aceitaram plenamente seu oferecimento de salvação e refletem “completamente a imagem de Jesus”.217 De modo algum sofrerão a ira de Deus.218 Quando Deus ordenar a seus anjos que soltem os ventos, “o mesmo poder destruidor exercido pelos santos anjos quando Deus ordena, será exercido pelos maus quando Ele o permitir. Há agora forças preparadas, e que aguardam apenas o consentimento divino para espalharem a desolação por toda parte”.219 Os homens Em diferentes ocasiões, Deus também se valeu de homens como executores de seus juízos podendo ser um indivíduo ou uma coletividade. Alguns deles eram seus inimigos enquanto que outros eram de seu povo. Alguns sabiam que estavam cumprindo um juízo divino, enquanto que outros não. Todos, porém, a seu tempo, realizaram o propósito divino. 214 Idem, “Losing our First Love”, Review and Herald, 7 de junho de 1887 par. 13. 215 Ibid. 216 Idem, a William Kerr, 10 de maio de 1900, Carta 79, 1900, p. 12-13, Centro de Pesquisas Ellen G. White – Brasil, Engenheiro Coelho, SP. 217 Idem, Primeiros escritos, 70. 218 O final do capítulo seis do Apocalipse apresenta uma breve descrição da segunda vinda de Cristo e do terror que se apossará dos ímpios, que desejarão se esconder “da face daquele que se assenta no trono e da ira do Cordeiro, porque chegou o grande Dia da ira deles” (Ap 6:15-17). O capítulo, então, encerra com a pergunta: “e quem pode suster-se?” (V. 17). A resposta é dada na próxima visão, a do selamento dos servos de Deus, mostrando que eles são os que não sofrerão a ira de Deus (Ap 7:1-4). 219 Idem, O grande conflito, 614. 152 Um indivíduo como executor da ira de Deus Pouco antes dos israelitas entrarem em Canaã foram seduzidos pelas mulheres que habitavam na localidade de Baal-Peor. Prostituíram-se com elas e participaram dos sacrifícios aos seus deuses, o que despertou a ira de Deus. Na ocasião um príncipe simeonita, atrevidamente, trouxe uma dessas mulheres midianitas à sua tenda, no arraial de Israel, fazendo “ostentação de seu pecado à vista da congregação, como que a desafiar a vingança de Deus”.220 Então, o sacerdote Finéias, tomando de uma lança foi após eles e os matou (Nm 25:6-8). Como consequência, “o sacerdote que executara o juízo divino foi honrado perante todo o Israel, e o sacerdócio foi confirmado a ele e sua casa para sempre”.221 Com seu ato ele desviou a ira de Deus (Nm 25:11-13). Grupos de indivíduos como executores da ira de Deus Dentro do povo de Israel, em diferentes momentos de sua história, houve grupos de indivíduos a quem Deus utilizou como instrumentos de sua ira contra a rebeldia. Vemos um exemplo disso logo após a saída de Israel do Egito, no episódio da adoração do bezerro de ouro (Êx 32:1-29). Depois que o povo se afastou dos caminhos de Deus, podia-se classificar os israelitas em três grupos. O primeiro era formado por aqueles que não haviam participado da idolatria. Esse foi o caso da tribo dos levitas. O segundo, por aqueles que, embora houvessem pecado, demonstravam seu arrependimento. E o terceiro, por aqueles que persistiam em sua rebelião, incluindo os que haviam encabeçado o evento. Por ordem divina, o primeiro grupo destruiu o terceiro, enquanto que o segundo, foi poupado.222 Desse modo, os levitas, “que efetuaram esta terrível obra de juízo, estiveram a agir com 220 Idem, Patriarcas e profetas, 455. 221 Ibid., 455-456. 222 Ibid., 323-325. 153 autoridade divina, executando a sentença do Rei do Céu”.223 Posteriormente, em Baal-Peor, logo após a ação de Finéias, “Deus ordenou que os líderes desta apostasia fossem mortos pelos magistrados. Esta ordem foi prontamente obedecida [...] para que a congregação [...] pudesse ter uma intuição profunda da aversão de Deus ao seu pecado, e do terror de Sua ira contra eles”224 (Nm 25:1-5). Houve também ocasião em que o Senhor usou um grupo de homens infiéis para cumprir seus propósitos. Isso pode ser visto na conspiração encabeçada por Absalão contra Davi, seu pai, o que trouxe a este intensa aflição, ocasionando a perda de muitas vidas e fazendo perigar o reino (2Sm 15-18). Esta revolução é considerada como “o justo juízo de Deus” por causa do pecado de Davi225 (2Sm 12). Israel como executor da ira de Deus Nas narrativas bíblicas encontramos diversas situações em que Deus empregou o povo de Israel para executar sua ira contra as nações. Desse modo, após a rebeldia de BaalPeor, o Senhor ordenou a Israel, por meio de Moisés, que destruísse os midianitas (Nm 31:1-18). Esse episódio pode ser visto como um exemplo de tantos outros em que Deus exigiu que Israel fizesse guerra contra outros povos. Nesses casos, “Deus os suportou até que encheram a medida de sua iniquidade, então trouxe sobre eles rápida destruição. Usou Seu povo como instrumento de Sua ira, para punir as nações ímpias, que os haviam afligido, e seduzido à idolatria”.226 223 Ibid., 325; idem, Cristo em seu santuário, 2ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 224 Idem, Profetas e reis, 455. 30. 225 226 Ibid., 732. Idem, Mensagens escolhidas, 2:333. 154 Posteriormente, quando os israelitas entrassem em Canaã, deveriam destruir totalmente as nações que ali habitavam. Instruído por Deus, Moisés lhes disse: Quando o Senhor, teu Deus, te introduzir na terra a qual passas a possuir, e tiver lançado muitas nações diante de ti, os heteus, e os girgaseus, e os amorreus, e os cananeus, e os ferezeus, e os heveus, e os jebuseus, sete nações mais numerosas e mais poderosas do que tu; e o Senhor, teu Deus, as tiver dado diante de ti, para as ferir, totalmente as destruirás; não farás com elas aliança, nem terás piedade delas” (Dt 7:1-2). E foi isso o que ocorreu em vários dos combates relatados por Josué. Quando diversos reis se uniram e os atacaram, “o Senhor os entregou nas mãos de Israel; e [...] feriram-nos sem deixar nem sequer um. [...] [e] nesse mesmo tempo, voltou Josué, tomou Hazor e [...] a todos os que nela estavam feriram à espada e totalmente os destruíram, e ninguém sobreviveu; e a Hazor queimou” (Js 11:1-23). Em todas essas batalhas os israelitas eram “encarregados de executar Seus juízos”.227 Também, no princípio da monarquia em Israel, Saul recebeu, por meio do profeta Samuel, a incumbência de guerrear contra os amalequitas. Foi-lhe dito: “Assim diz o Senhor dos Exércitos: Castigarei Amaleque pelo que fez a Israel: Ter-se oposto a Israel no caminho, quando este subia do Egito. Vai, pois, agora, e fere a Amaleque, e destrói totalmente a tudo o que tiver, e nada lhe poupes” (1Sm 15:2-3; cf. Dt 25:17-19). Aqueles que foram convocados para acompanhá-lo “deviam empenhar-se na guerra unicamente como um ato de obediência a Deus, a fim de executar Seu juízo sobre os amalequitas”.228 227 Idem, Profetas e reis, 494. 228 Ibid., 629. 155 Nações pagãs como executoras da ira de Deus De todos os agentes da ira de Deus no AT, as nações são apresentadas como os mais poderosos. Elas foram empregadas para castigar outras nações pagãs229 (Is 13:1-5, 16-19; 20:1, 4; 23:13-15; 36:18-20; 37:8-13 cf. 37:21-27), mas também, muitas vezes, para punir o próprio povo de Israel por sua infidelidade.230 Desse modo, Israel foi afligido por diversas nações vizinhas (Jz 2:11-15; 4:1-2; 6:1-2), pelos filisteus, nos dias do sacerdote Eli (1Sm 4:1-11), pelos assírios, comandados por Salmaneser, a quem Deus chamou de “cetro da minha ira”, e de quem disse “a vara em sua mão é o instrumento do meu furor” (Is 10:5). De fato, “a destruição que abateu o reino do norte foi um juízo direto do Céu. Os assírios foram meramente os instrumentos de que Deus Se serviu para realizar o Seu propósito”231 (Is 7:17-20). O mesmo pode ser dito de Babilônia e de seu rei. Deus os usou como instrumentos de sua ira para punir o impenitente Judá. Em consequência, houve ataques e invasões, a capital foi devastada e saqueada, a nação caiu e veio o cativeiro (2Cr 36:17-21; Sl 106:4041; Lm 2).232 Também o domínio romano sobre os judeus, ocorrido séculos mais tarde, é interpretado como um dos juízos de Deus, em razão de seus pecados e de seu afastamento do Senhor.233 Portanto, com frequência, a ira de Deus toma a forma de guerra e carnificina e tais formas humanas de violência são empregadas para a glória de Deus (Êx 14:4, 17-18, 26-31; Is 42:10-13; Ez 38:21-23).234 229 Ibid., 350. 230 Ibid., 585. Ver também idem, Eventos finais, 242. 231 Ibid., Profetas e reis, 291. 232 Ibid., 422-425. 233 Ibid., O desejado de todas as nações, 106. 234 Ver idem, Profetas e reis, 491, 513. 156 A natureza Com muita frequência, Deus tem usado os elementos da natureza e, em alguns casos, até os animais para mostrar Seu desagrado com o pecado. Elementos da natureza Deus é o criador da natureza e a tem usado para cumprir seus propósitos, incluindo a punição dos que sistematicamente se rebelam contra ele. Foi assim por ocasião do Dilúvio (Gn 6-7), considerado como um “terrível derramamento da ira de Deus”,235 e na destruição de Sodoma e das demais cidades do vale de Sidim (Gn 18:16-19:29), quando “o Senhor fez chover do Céu enxofre e fogo”,236 o que foi chamado de “os fogos de Sua vingança”.237 Um dos episódios mais esclarecedores, que demonstram como Deus se vale dos elementos da natureza para manifestar Sua ira, pode ser visto nas dez pragas que vieram sobre o Egito. Claramente, Deus preferiu usar os recursos da natureza, de modo que, enquanto as pragas caíam, muitos se convenceram de que Faraó “se achava opondo a um Ser que fez de todas as forças da natureza ministros de Sua vontade”.238 Deste modo, na primeira delas, as águas se tornaram em sangue (Êx 7:20-21), em outra houve uma chuva de pedras misturada com fogo (Êx 9:22-25) e, posteriormente, houve trevas espessas (Êx 10:21-23).239 Ainda na história de Israel, quando da rebelião encabeçada por Coré, Datã e Abirão, 250 príncipes de Israel, contrariando a vontade divina, se ajuntaram contra Moisés e Arão 235 Ellen White, Santificação, 10ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 72-73. 236 Idem, Profetas e reis, 162. 237 Ibid., 159. 238 Ibid., 271. 239 Ibid., 265, 269 e 272. 157 na tentativa de assumir a liderança da nação, Deus enviou seus juízos sobre os rebeldes usando a terra e o fogo. Assim, a terra se abriu e tragou os chefes da rebelião e, depois, o “fogo que flamejou da nuvem consumiu os duzentos e cinquenta príncipes” porque não se arrependeram240 (Nm 16:1-35). Do mesmo modo, a grande seca que se abateu sobre Israel durante três anos e meio, nos dias de sua apostasia, sob o governo de Acabe (1Re 17:1, 7; Tg 5:17) deveria ser reconhecida como “juízo de Jeová”.241 Tratando deste tema, Ellen White declara que ao longo do tempo Satanás tem levado cidades e nações a provocarem a ira de Deus por meio de seus pecados de maneira que fossem destruídas através das forças da natureza;242 e apresenta esses juízos como já estando presentes no mundo243 e como devendo ocorrer, em escala cada vez maior, à medida que o fim se aproxima.244 Por isso, diz ela, “quão frequentemente ouvimos de terremotos e furacões, de destruição pelo fogo e inundações, com grandes perdas de vidas e propriedades!”245 Também as profecias apocalípticas apontam para as sete últimas pragas que incidirão sobre os ímpios, quando Deus usará a natureza para puni-los. Então, todas as águas se tornarão em sangue (Ap 16:3-4), o sol será afetado de modo que “os homens se queimarão com intenso calor” (vs. 8-9), haverá trevas (v. 10) e um “terremoto como nunca houve” e também uma “grande saraivada” com enormes pedras (vs. 17-21).246 240 Idem, O grande conflito, 401. 241 Idem, Profetas e reis, 126. 242 Idem, No deserto da tentação, 2ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 41-42. 243 Idem, Conselhos sobre o regime alimentar, 11ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 244 Idem, Testemunhos seletos, 3:333. 245 Idem, Eventos finais, 29. 246 Idem, O grande conflito, 627-628, 637. 40. 158 Animais Semelhantemente, algumas vezes Deus usou os animais para efetuarem o seu juízo. Em quatro das pragas que vieram sobre o Egito ele empregou pequenos seres do reino animal: rãs (Êx 8:5-6), piolhos (Êx 8:16-17), moscas (Êx 8:24) e gafanhotos (Êx 10:13-15) – que, sendo muito numerosos, causaram grande desconforto e graves prejuízos.247 Os próprios israelitas, em sua peregrinação, sofreram um juízo por esse meio. Ao se tornarem impacientes e murmurarem contra Deus e contra Moisés, cometeram “grande pecado”.248 “Então, o Senhor mandou entre o povo serpentes abrasadoras, que mordiam o povo; e morreram muitos do povo de Israel” (Nm 21:6). Deus, que até então cuidara deles e suprira-lhes todas as necessidades (Dt 8:14-16), retirou “sua proteção até que fossem levados a apreciar Seu misericordioso cuidado, e a voltar-se para Ele com arrependimento e humilhação”.249 Como parte das bênçãos que Israel receberia, se fosse fiel, está a promessa de que Deus os ajudaria a conquistar as terras de Canaã, e isso incluiria o uso de vespões. “Também enviarei vespas diante de ti, que lancem os heveus, os cananeus e os heteus de diante de ti” (Êx 23:28). Muitas décadas depois, quando já haviam se estabelecido em Canaã, Josué, recordando o que Deus fizera por eles, declarou, em nome do Senhor: “Enviei vespões adiante de vós, que os expulsaram da vossa presença, bem como os dois reis dos amorreus, e isso não com a tua espada, nem com o teu arco” (Js 24:12). Portanto, essas investidas dos vespões estão associadas com o uso que Deus fez dos israelitas como 247 Idem, Patriarcas e profetas, 265-266, 271. 248 Ibid., 429. 249 Ibid. 159 instrumentos para punir as nações de Canaã.250 Também, após a destruição das dez tribos de Israel, quando o rei da Assíria trouxe estrangeiros para que habitassem nas cidades de Samaria em lugar dos filhos de Israel, porque eles não temerem a Deus, “mandou o Senhor para o meio deles leões, os quais mataram a alguns do povo” (2Rs 17:24-25). Outro incidente ocorreu em relação ao profeta Eliseu, quando houve um “exemplo de terrível severidade”, com o objetivo de salvaguardar a importante e longa missão de Seu servo. No início de seu ministério, quando caminhava de Jericó a Betel, “uns rapazinhos saíram da cidade, e zombavam dele, e diziam-lhe: Sobe, calvo! Sobe, calvo! Virando-se ele para trás, viu-os e os amaldiçoou em nome do Senhor; então, duas ursas saíram do bosque e despedaçaram quarenta e dois deles.” (1Re 2:23-24). Este “terrível juízo que se seguiu foi de Deus”.251 Doenças e pestilências A ira de Deus tem-se manifestado também por meio da pestilência.252 Um dos primeiros exemplos bíblicos pode ser visto na narrativa sobre a rebelião liderada por Coré. Depois da destruição daqueles que haviam liderado a conspiração, “no dia seguinte, toda a congregação dos filhos de Israel murmurou contra Moisés e contra Arão, dizendo: Vós matastes o povo do Senhor” (Nm 16:41). Como resultado, sofreram a ira de Deus na forma de uma praga que dizimou a quatorze mil e setecentos deles253 (vs. 42-50). Posteriormente, porque os israelitas participaram do culto licencioso aos deuses pagãos, junto a Baal-Peor, “acendeu-se a ira de Deus [...]. Por meio de juízos que se não fizeram esperar, o povo foi 250 Idem, História da redenção, 143-144. 251 Idem, Profetas e reis, 236. 252 Idem, No deserto da tentação, 41-42. Ver também idem, Primeiros escritos, 64-65. 253 Ibid., Patriarcas e profetas, 402-403. 160 despertado para a enormidade de seu pecado. Uma pestilência terrível irrompeu no arraial, da qual dezenas de milhares de pronto foram presa”254 (Nm 25:1-3, 9). De igual modo, séculos mais tarde, nos dias de Davi, a peste atingiu Israel. Movido por orgulho e a ambição e a fim de mostrar a “força e prosperidade” do reino de Israel sob sua administração, Davi mandou realizar um censo. Isso ofendeu a Deus.255 O próprio Davi, reconhecendo seu pecado, confessou: “Muito pequei em fazer tal coisa; [...] procedi mui loucamente” (1Cr 21:8). “Então, enviou o Senhor a peste a Israel; e caíram de Israel setenta mil homens.” (1Cr 21:14). Em realidade, embora os próprios israelitas estivessem descontentes com o levantamento do censo, “tinham acariciado os mesmos pecados que determinaram a ação de Davi. Assim, [...] pelo erro de Davi Ele puniu os pecados de Israel”.256 Deus também utilizou algumas vezes as doenças, especialmente a lepra. Embora adquirir a lepra não seja necessariamente uma indicação de que seu portador esteja recebendo um juízo divino, houve pelo menos três exemplos bíblicos em que isso ocorreu. Talvez fosse por essa razão que a lepra, nos dias de Cristo, “entre os judeus, era considerada um juízo sobre o pecado, sendo chamada: ‘o açoite’, ‘o dedo de Deus’”,257 e a mais temida das doenças.258 254 Ibid., 455. 255 Ibid., 746. 256 Ibid., 748. Nos relatos de Samuel (2Sm 24:16-17) e Crônicas (1Cr 21:15-16), bem como no comentário correspondente de Ellen G. White (Profetas e reis, 748), aparece um anjo com a missão de ferir. A linguagem utilizada em todos estes escritos não é suficientemente esclarecedora, dando margem para as seguintes ideias: 1) O anjo estava encarregado de aplicar uma pestilência; 2) A pestilência era o anjo matando com sua espada; e 3) As mortes foram causadas em parte pelo anjo com sua espada e em parte por uma pestilência (1Cr 21:12). 257 Ibid., O desejado de todas as nações, 262. 258 Ibid. 161 O primeiro caso ocorreu no início da jornada de Israel pelo deserto. Zípora, ao ser trazida por seu pai para se reunir a Israel, viu o estafante trabalho de Moisés, seu esposo, e manifestou sua preocupação a Jetro, que sugeriu medidas para aliviarem seu trabalho. Como resultado, outros foram escolhidos para dividir as cargas com Moisés (Êx 18), o que levou Miriã e Arão a se ressentirem com a suposta perda de sua influência. Na sequência, Miriã, movida por inveja e descontentamento, lançou queixas e acusações contra Moisés. Então, o Senhor se manifestou e os repreendeu (Nm 12:1-8) e “Miriã foi castigada”,259 recebendo um juízo de Deus.260 Diz o texto sagrado: “E a ira do Senhor contra eles se acendeu [...] e eis que Miriã achou-se leprosa, branca como a neve” (Nm 12:9-10). Depois, “em resposta às orações de Moisés, a lepra foi purificada”.261 A segunda ocorrência se deu com Geazi, o servo do profeta Eliseu. Quando cobiçou parte dos presentes que Naamã, após ser curado da lepra, oferecera ao profeta, e, mentindo, tentou conseguir um talento de prata e duas vestes festivais, recebendo, como castigo divino, a lepra que antes estivera sobre Naamã (2Rs 5:9-27).262 O terceiro exemplo aconteceu quando o rei Uzias entrou no templo com a intenção de queimar incenso, o que era prerrogativa unicamente dos sacerdotes, que, com firmeza o impediram. Considerando sua elevada posição não suportou o ser repreendido e encheu-se de ira. Então, “foi ele subitamente ferido pelo juízo divino. Em sua testa apareceu lepra... Até o dia de sua morte, alguns anos mais tarde, Uzias ficou leproso... pelo presunçoso pecado com que mareou os anos derradeiros de seu reinado”263 (2Cr 26:16-21). 259 Idem, Patriarcas e profetas, 385. 260 Ibid., 386. 261 Ibid., 385. 262 263 Idem, Profetas e reis, 250-253. Ibid., 304. 162 Há ainda outros exemplos. As Escrituras relatam que o rei Davi adulterou com Bate-Seba e por meio de um artifício assassinou seu esposo (2Sm 11), e como “isto que Davi fizera foi mal aos olhos do Senhor” (v. 27). Então acrescentam que o Senhor enviou o profeta Natã a Davi a fim de repreendê-lo (2Sm 12:1-15) e completam o quadro com a informação de “que o Senhor feriu a criança que a mulher de Urias dera à luz a Davi; e a criança adoeceu gravemente. [...] Ao sétimo dia, morreu a criança” (2Sm 12:15, 18). Houve também um caso em que um rei teve parte de seu corpo ferida por Deus. Isso aconteceu logo após o cisma de Israel, quando Jeroboão, o primeiro rei das dez tribos, estava junto ao altar pagão de Betel para queimar incenso. Deus lhe enviou um profeta com uma mensagem de reprovação por seus pecados. E “tendo o rei ouvido as palavras do homem de Deus... estendeu a mão [...] dizendo: prendei-o! Mas a mão que estendera contra o homem de Deus secou, e não a podia recolher” (1Re 13:4). Então, o rei pediu que o profeta implorasse o favor de Deus para que voltasse a ficar são. O profeta orou e seu desejo foi atendido (v. 6). Esse temporário secamento do braço é apresentado como um juízo de Deus.264 Além disso, temos os conhecidos exemplos da sexta praga sobre o Egito, que consistiu em “úlceras nos homens e nos animais”265 (Êx 9:10) e a primeira das sete pragas que incidirão sobre os ímpios no final dos tempos, que será de “úlceras malignas e perniciosas”266 (Ap 16:1-2). 264 Ibid., 107. 265 Idem, Patriarcas e profetas, 266-267. 266 Idem, O grande conflito, 628. 163 Acidentes Alguns acidentes podem também ser vistos como juízos de Deus, embora nem sempre haja uma revelação específica que indique se ocorrem por uma ação divina direta ou apenas como um resultado do afastamento por parte de Deus. Esse foi o caso do rei Acazias, filho de Acabe. Ele “fez o que era mau perante o Senhor [...] serviu a Baal, e o adorou, e provocou à ira ao Senhor, Deus de Israel, segundo tudo quanto fizera seu pai [...] E caiu Acazias pelas grades de um quarto alto, em Samaria, e adoeceu” (1Re 22:53-2Re 1:2), vindo em consequência a falecer (2Re 1:3-4, 17), vítima da ira de Deus contra ele.267 Ao comentar a situação do mundo em seus dias e nos dias futuros, Ellen White declara que a ira de Deus igualmente pode ser percebida em alguns acidentes na terra e no mar,268 nos episódios em que edifícios suntuosos se transformam em cinzas,269 navios são tragados pelo oceano270 e nos “desastres de estradas de ferro”.271 Resumo e Conclusões Este capítulo analisou o tema da ira de Deus a partir das perspectivas do AT, NT e dos escritos de Ellen White. Demonstrou como essa ira tem sido uma realidade no mundo dos homens desde o surgimento do pecado e que ela permanecerá atuante até a extinção do mal e a restauração de todas as coisas. Apontou o fator que desperta essa ira, ou seja, o pecado, em todas as suas formas, com destaque para a quebra da aliança com Deus e a desumanidade do homem para com seu semelhante. Porque o pecado não é inconsequente, 267 Idem, Testemunhos seletos, 2:50. 268 Idem, Eventos finais, 27-28. 269 Idem, “The Coming Crisis”, The Signs of the Times, 9 de outubro de, 1901 parte 3. 270 Ibid. 271 Idem, Mensagens aos jovens, 10ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 90. 164 mas destrutivo e, se não tratado adequadamente, resultará na morte eterna. Ele sempre aborrece a Deus, desperta sua ira e atrai seu ataque judicial. O exame dos efeitos da ira de Deus constatou que eles são percebidos primeiramente em nossa própria constituição, porque o pecado se encontra no homem como um princípio inato e o faz ímpio e perverso. Em segundo lugar, no abandono de Deus, que entrega os rebeldes a seus próprios desejos e permite que sigam desembaraçadamente seu caminho descendente, sem freio, sem qualquer intervenção divina, até a plena profundeza da depravação (embora Deus nunca abandone quem aceita a Cristo como seu Salvador e esta ação divina de entregar o homem ao seu próprio pecado não seja necessariamente um abandono eterno, pois enquanto a vida segue, Deus, em sua graça, provê oportunidades para a salvação). E, finalmente, os resultados da ira divina são vistos nas punições, sendo que algumas são consequências naturais dos atos de pecado e outras, penalidades diretas impostas por Deus como juiz. Essas punições têm vários propósitos: a vindicação da santidade e justiça de Deus, a correção e recuperação do pecador, a dissuasão dos homens para que não enveredem pelo mau caminho nem sofram o prejuízo que o mal costuma causar e a erradicação do pecado e pecadores. A ira de Deus abrange, em seu escopo, a história e a escatologia. Apesar de sua paciência e tolerância para com os pecados, sua ira é revelada ao logo de todas as épocas, seja por meio da acusação da consciência, do sentimento de culpa e remorso, dos sofrimentos físicos e angústias mentais, da quebra dos relacionamentos e do envilecimento que o pecado causa; seja por meio da justiça aplicada pela lei e a sociedade, seja quando irrompe em terríveis julgamentos. Em suma, a ira divina está, agora mesmo, em constante progresso, como uma resposta ao pecado. Todavia, porque ainda estamos no tempo da graça, os juízos divinos ainda não são juízos totais, mas juízos dentro da história. Possuem 165 um sentido pedagógico e estão mesclados com a paciência e a longanimidade de Deus, preservando o mundo para que tenha a oportunidade de apreciar a revelação do evangelho de modo que, quem quiser, se volte para o Senhor. Em seu sentido escatológico, a ênfase recai sobre o castigo que os ímpios – Satanás, seus anjos e os homens impenitentes – terão ao final da história humana. Antes, porém, deve ocorrer um julgamento, não para informar a Deus, mas a fim de pôr tudo às claras. A intenção não é descobrir a verdade, mas revelá-la, tendo em vista a segurança futura do universo. Por isso, Deus mantém com fidelidade os registros da vida de todos e permite que aqueles que viverão pela eternidade participem do julgamento. Desse modo, em certo sentido, Deus também estará sendo julgado: seus princípios, suas leis, seus propósitos, seu modo de agir. Ao final, todos compreenderão tanto sua ira como seu amor e proclamarão sua perfeita justiça. Procedendo assim, Deus protege todos os interesses, de maneira que nenhuma dúvida se levantará por toda a eternidade. Os juízos divinos podem ser diretos ou indiretos. São chamadas de juízos indiretos as ocorrências em que Deus se afasta e deixa o pecador seguir seu próprio caminho. Em alguns casos, o Espírito Santo é retirado definitivamente do pecador e este fica à mercê de suas próprias paixões e da maldade de Satanás. Contudo, outras vezes, os juízos de Deus são diretos, o que significa que Deus é sua fonte. Há uma variedade de instrumentos empregados por Deus ao longo da história humana para trazer seus justos juízos sobre os homens. Ele faz uso tanto dos anjos que lhe são leais como daqueles que se rebelaram. De fato, há situações em que Satanás e seus anjos são os executores dos juízos de Deus. Isto não significa que haja sociedade entre Deus e Satanás ou que este ofereça algum tipo de obediência àquele, mas que, ao Deus se afastar do pecador contumaz, aquele que ultrapassou os limites de sua misericórdia, Satanás 166 o domina completamente e o sofrimento e desespero que se sucedem também são considerados como juízo de Deus. Em muitas circunstâncias Deus também se valeu de homens como executores de seus juízos. Podia ser um indivíduo ou uma coletividade. Alguns deles eram seus inimigos enquanto que outros eram de seu próprio povo. Alguns sabiam que estavam cumprindo um juízo divino, enquanto que outros não. Todos, porém, a seu tempo, realizaram o propósito divino. Assim, algumas vezes Deus empregou Israel para punir as nações ao passo que em outras circunstâncias foram as nações pagãs que puniram Israel por sua rebeldia. Tanto no passado como no presente, Deus serve-se das autoridades constituídas para castigar os malfeitores. Também, repetidamente, Deus tem aproveitado a natureza para mostrar seu desagrado com o pecado. Isso foi evidenciado no Dilúvio, na destruição de Sodoma, nas pragas que vieram sobre o Egito e em diversas rebeliões de Israel. Acrescentem-se ainda a expressão da ira divina por meio de pestilências, doenças e acidentes. Portanto, a ira de Deus é um tema bastante recorrente na Bíblia e nos escritos de Ellen White, sendo suas causas, efeitos, propósitos, modos e instrumentos de manifestação muito bem definidos e amplamente exemplificados, e se apresentando como uma constante realidade no mundo dos homens, enquanto não se encerrar o grande conflito entre o bem e o mal. O próximo capítulo expõe o tema da ira divina em sua vinculação com Cristo, o Filho de Deus: o que ele tem feito e fará para libertar-nos dela, mas também seu papel como executor dessa mesma ira nos eventos finais do grande conflito entre o bem e o mal. CAPÍTULO III CRISTO E A IRA DE DEUS O presente capítulo discorre sobre os diferentes vínculos de Cristo com a ira de Deus a partir das informações contidas nas Sagradas Escrituras, especialmente no NT, e sob a ótica de teólogos conservadores e de Ellen White. Perspectiva Bíblica e Teológica As Sagradas Escrituras expõem o papel de Cristo no contexto da ira divina. No AT encontram-se textos messiânicos reveladores, tanto nos Salmos como nos profetas. No NT, os evangelhos registram a indignação de Jesus, seus ensinos a respeito e seu sofrimento na morte de cruz; as epístolas discorrem sobre a necessidade dessa morte em relação à ira divina, bem como seu significado, importância e alcance; e o Apocalipse de João prevê a vinda gloriosa de Cristo para executar essa mesma ira. Cristo – o Detentor da Ira de Deus O autor da carta aos Hebreus argumenta que uma das provas da divindade de Jesus, era seu amor à justiça e seu ódio para com a iniquidade (Hb 1:9).1 Um exame atento do evangelho revela que a ira de Deus é uma característica integrante tanto da vida quanto dos ensinos de Jesus, embora as referências expressas sejam raras (Mt 9:30; Mc 1:41, 43; 3:5; Jo 11:33, 38) e seja significativo que nenhum de seus milagres e sinais tenha caráter 1 Donald Grey Barnhouse, Man’s Ruin / God’s Wrath (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1959), 218. 167 168 punitivo, contrastando assim fortemente, nesse ponto, com o AT, onde com frequência os milagres – embora também fossem atos redentivos de Deus para os que permaneciam fiéis – eram juízos de Deus.2 Todavia, isso ocorreu porque em seu primeiro advento “o Filho veio com o propósito de dar vida, não de executar juízo”.3 A indignação de Jesus “era uma emoção humana, santificada por elevado nível de espiritualidade”,4 e já continha algo da natureza da ira de Deus, o que pode ser percebido pela análise das coisas que o deixavam irado. Ele se irava em face de forças e poderes de vontade que se estabeleciam contra Deus. Assim, Ele se irou contra Satanás (Mt 4:10; 16:23) e os demônios (Mc 1:25; 9:25; Lc 4:41) e por causa da natureza demoníaca dos homens (Jo 8:44), notadamente os fariseus (Mt 12:34; 15:7; 23:33), por causa da “dureza do seu coração” (Mc 3:5-6; cf. Lc 6:6-7). Ele também se irou contra aquelas cidades que recusaram seus apelos para conversão (Mt 11:20-24), contra os vendedores do templo que por sua profanação mostravam que não tomavam Deus a sério (Mt 21:12-13; Jo 2:13-17) e contra os discípulos por sua falta de fé (Mt 17:17). Assim, a ira de Deus misturava-se à sua compaixão. É a mesma ira que, em seus ensinos, foi atribuída ao senhor da festa quando seu convite foi desprezado pelos convidados (Lc 14:21) e manifestada contra o mau servo que não correspondeu à grande 2 Instituto Catequético Superior de Nijmegen, O Novo Catecismo, 6ª ed. (São Paulo: Loyola, 1982), 133; Alois Stoeger, “Ira”, Dicionário de teologia bíblica, editado por Johannes B. Bauer, traduzido por Helmuth Alfredo Simon (São Paulo: Edições Loyola, 1979), 539; W. Pesch, “Orgē / Wrath”, Exegetical Dictionary of the New Testament, editado po Horst Balz e Gerhard Schneider (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1991), 2:529; J. F. MacArthur, Comentario MacArthur del Nuevo Testamento: Romanos 1-8 (Grand Rapids: Editorial Portavoz, 2001), 91; Randolp V. G. Tasker, The Biblical Doctrine of the Wrath of God ( Londres: The Tyndale Press, 1951), 28-34. 3 F. F. Bruce, João: Iintrodução e comentário (São Paulo: Vida Nova e Mundo Cristão, 1987), 237. 4 Enciclopédia de Bíblia, teologia e filosofia, ed. 1995, ver “ira”. 169 misericórdia que fora demonstrada para com ele (Mt 18:34-35). Em todos estes casos foi a misericórdia desprezada e o amor ferido que despertaram a ira.5 A ira de Jesus basicamente revelava a ira de Deus escatológica, que é um aspecto dos eventos finais a serem cumpridos em seu segundo advento. Ele é o Senhor que repudia toda ligação com aqueles contra os quais está irado (Mt 7:23; 25:12; Lc 13:27), que em ira destrói seus inimigos (Lc 12:46; 19:16; Mt 22:7), e que lança os rejeitados no fogo (Mt 13:41-42; 49-50; 25:41) e onde há choro e ranger de dentes (Mt 22:13; 25:30). Na linguagem apocalíptica, ele é “o Rei dos Reis e Senhor dos senhores” que “pisa o lagar do vinho do furor da ira do Deus Todo-Poderoso” (Ap 19:15-16), no “grande Dia” da “ira do Cordeiro” (Ap 6:15-16), quando sua ira é particularmente contra os que desprezam o autosacrifício do Cordeiro.6 Cristo – O Alvo da Ira de Deus O tema da morte de Cristo sobressai aos demais e é a base da doutrina cristã. Considerando-se o que ocorreu no Calvário podem ser percebidos quatro aspectos da dor que Jesus experimentou na cruz: (1) A dor física e morte por crucificação, uma das mais terríveis já inventadas pelo homem, que era bem demorada e levava à sufocação. (2) A dor psicológica de assumir a culpa por nossos pecados, o que lhe foi uma agonia por ser tão contrário à sua natureza completamente pura. (3) A dor de ser abandonado por Deus e pelos homens, a quem sempre amara (Mt 27:46; 26:56; Jo 13:1), enfrentando sozinho os pecados 5 M. G. Stählin, “Orgē: The Wrath of Man and the Wrath of God in the New Testament”, Theological Dictionary of the New Testament, 10 vols., editado por Gerhard Kittel, traduzido por Geoffrey W. Bromiley (Grand Rapids, MI: Eerdmans, reimpressão 1984), 5:427-429. 6 Ibid., 5:429. 170 colocados sobre ele. (4) A dor maior, a de sofrer a fúria da ira de Deus que tinha sido armazenada com longanimidade desde o primeiro pecado no Éden. Na cruz, Jesus suportou o ódio e a vingança de Deus contra o pecado.7 Esta foi a maior demonstração da aversão de Deus contra o pecado. Nenhum dos poderosos atos de juízo de Deus, no passado, no presente ou no futuro oferece uma tão grande demonstração do ódio que Ele tem contra o pecado como a ira que foi derramada sobre seu filho.8 Essa realidade é “o coração da doutrina da expiação”. Isso fica evidente também pelo uso das expressões “fazer propiciação” (hilaskomai) e “sacrifício de propiciação” (hilasmos) que indicam (Hb 2:17; 1Jo 2:2; 4:10) o “sacrifício que afasta a ira de Deus – e dessa forma torna Deus propício (ou favorável) a nós”.9 Nenhum ser humano jamais seria capaz de sofrer toda a ira de Deus, mas Cristo a recebeu em sua plenitude por causa da união, em sua pessoa, das naturezas divina e humana. Sua morte e sofrimento têm a natureza de punição.10 O texto de Is 53 apresenta claramente a ideia de punição, com expressões pertinentes tanto em relação com a pessoa que pune como com a que é punida. Quanto a Deus, que puniu, é dito: “o Senhor fez cair sobre ele a iniquidade de nós todos” (v. 6) e “ao Senhor, agradou moê-lo, fazendo-o enfermar; quando 7 Wayne Grudem, Teologia sistemática (São Paulo: Vida Nova, 1999), 475-478. Para uma descrição da origem, método e uso da crucificação, ver John R. W. Stott, A cruz de Cristo (São Paulo: Vida, 1991), 17, 41. 8 Stephen Charnock, The Existence and the Attributes of God (Grand Rapids: Baker, 1990), 2:134; Heber Carlos de Campos, O ser de Deus e os seus atributos, 2ª ed. (São Paulo: Cultura Cristã, 2002), 327328. 9 Grudem, 475-478. 10 John Owen, The Works of John Owen, 16 vols., editado por William H. Goold, 2a. ed. (Edinburg / Carlisse, Pennsylvania: The Banner of Truth Trust, 1976), 12:442. Em certo sentido, nossos pecados levaram Jesus ao inferno, ao gehena – lugar de castigo. Stott, 69. 171 der ele a sua alma como oferta pelo pecado” (v. 10).11 Quanto a Cristo, que é punido, lemos: “as iniquidades deles levará sobre si” (v. 11). Mas qual foi o objetivo da punição de Cristo? (1) Não foi para sua própria correção, porque é dito que ele “nunca fez injustiça, nem dolo algum se achou em sua boca” (v. 9). (2) Não foi para sua própria instrução na vontade de Deus porque estava findando seu período de prova neste mundo, tendo consumado tudo que o Pai lhe dera para realizar (Jo 19:30) e logo voltaria a empregar toda a autoridade no céu e na terra (Mt 28:18). (3) Não foi para que servisse de exemplo para os outros, para instrução dos outros, porque ele próprio nunca pecou (Hb 4:15). Ele foi um exemplo em sua obediência, mas não em sua punição. (4) Nem foi um sofrimento para manter o testemunho e testemunhar a verdade. Não há nenhuma indicação disto na profecia. (5) Conforme evidenciado no texto, as causas da punição foram “as nossas transgressões”, “as nossas iniquidades”, “o pecado de muitos” (vss. 5, 6 e 12).12 Cristo – O Libertador da Ira de Deus O grande destaque da mensagem das Escrituras é a apresentação de Cristo como Salvador. Do que ele nos salva? Por um lado, ele nos salva do pecado: sua culpa, seu poder e sua presença e, por outro, ele nos liberta da ira de Deus contra o pecador. Esta libertação centraliza-se na expiação e propiciação realizadas na cruz e em sua obra sacerdotal no santuário celestial. 11 Cristo sofreu nas mãos dos homens e nas mãos do Pai. Dos homens podia receber sofrimento físico e morte como qualquer outro, mas somente Deus poderia fazer cair sobre ele a iniquidade de outros (Is 53:6; 2 Co 5:21). Somente Deus poderia imputar pecado àquele que ele escolheu. Lewis Sperry Chafer, Teologia sistemática, 8 vols., traduzido por Heber Carlos de Campos (São Paulo: Hagnos, 2003), 3:61-62. 12 Owen, 12: 442. 172 A obra expiatória de Cristo A crença na necessidade de expiação pelo pecado é universal e isso é demonstrado com clareza pela história das religiões, tanto as antigas quanto as modernas. Essa crença está presente entre os pagãos, entre os hebreus e entre os cristãos e faz parte da consciência natural. 13 Todas as religiões têm procurado tratar do problema da culpa e dos atos expiatórios que, oferecidos à divindade, pretensamente, podem removê-la e alcançar a reconciliação,14 e incorporam o conceito de um inocente sofrer pelo culpado como uma das maiores demonstrações do amor abnegado.15 A necessidade de expiação Na própria religião hebraica, as ofertas pelo pecado não eram apenas expressões de adoração ou penitência, ou uma maneira didática de se ensinar algo ao pecador e aos espectadores, nem visavam apenas a reforma do ofensor; eram “expiações, nas quais a vítima levava a culpa do pecador e morria em seu lugar e para seu livramento”.16 Todavia, a noção bíblica de expiação e propiciação é completamente diferente daquela que existe nas demais religiões, porque não são os pecadores que vão a Deus com um dom compensatório, mas é Deus quem vem à humanidade em autodoação para eliminar a separação existente entre os homens e Deus. Não são seres humanos que conciliam a Deus, mas “Deus estava em Cristo reconciliando o mundo” (2Co 5:19). Ele não espera passivamente ser 13 Charles Hodge, Teologia sistemática, traduzido por Valter Martins (São Paulo: Hagnos, 2001), 857; Thomas O. Oden, The Worl Life, 3 vols. (San Francisco, CA: Harper & Row, 1992), 2:352-353. 14 Ibid. 15 Hodge, 887. 16 Ibid., 857-859; Campos, 328. 173 reconciliado, antes toma a iniciativa em reconciá-los (Gn 3:9; Rm 5:8; 2Co 5:18; 1Jo 4:10).17 A expiação é necessária por causa da lei de Deus. Esta, por ser uma expressão de sua própria natureza santa, só pode ser o que é. Se a lei de Deus fosse algo à parte dele, poderia fazê-la diferente, mas não é este o caso.18 Ao criar o homem, Deus quis fazê-lo como um ser moral com quem pudesse ter relações pessoais, e por isso o fez à sua imagem e semelhança (Gn 1:26-27), com uma consciência moral na qual inscreveu a mesma lei da santidade que é atributo de sua natureza (Rm 2:11-16). A harmonia do homem com essa lei, ou com a pessoa de Deus, glorificaria o Criador e resultaria em felicidade e vida eterna enquanto que sua transgressão desonraria a Deus e teria como efeito a manifestação de sua ira na forma da punição incluída na lei – a morte (Rm 6:23).19 Por isso, a lei não pode ser relaxada de modo a não punir seus transgressores. A “punição é parte da sua estrutura e é tão inevitável como inevitável era que a lei fosse expressão da natureza divina”.20 Em razão de que a punição decretada por Deus para o pecado é a morte, o pecado nunca pode ser tratado separado dela.21 Por ser justo, Deus não pode, simplesmente, fechar os olhos ao pecado, escusá-lo ou perdoá-lo.22 Ele quer perdoar, 17 Oden, 2:352-353. 18 Alfredo Borges Teixeira, Dogmática evangélica (São Paulo: Atena, 1958), 92, 205, 217; Oden, 1:110; Louis Berkhof, Teologia sistemática, 2ª ed., traduzido por Odair Olivetti (Campinas: Luz Para o Caminho Publicações,1992), 371. A santidade majestosa de Deus é apresentada na primeira tábua do decálogo, enquanto a santidade moral, na segunda. Essa lei moral pode ser também vista no NT, especialmente no sermão do monte que revisa, interpreta e espiritualiza os dez mandamentos. W. G. T. Shedd, Dogmatic Theology (Nashville: Thomas Nelson, 1980), 1: 363; Campos, 327-328. 19 Teixeira, 92, 205, 217; Campos, 340. 20 Teixeira, 217. 21 D. M. Lloyd-Jones, Romans: Atonement and Justification (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1971), 89-90; Morris L. Venden, 95 Teses Sobre Justificação pela Fé, traduzido por Azenilto G.Brito (Tatuí, São Paulo: Casa Publicadora Brasileira, 1990), 117-118. 22 Aracely S. de Melo, Justificação pela fé (S/L: S/E, 1978), 7. 174 quer manifestar misericórdia, mas “em caso algum Deus concede Sua misericórdia independente de Sua imutável justiça”. 23 Ao mesmo tempo em que quer dizer sim ao pecador precisa dizer não ao pecado e demonstrar que conquanto esteja a favor dos homens, está contra o pecado.24 O pecado torna a pessoa culpada e, portanto, devedora à lei, e isso exige uma expiação.25 Porque todos os homens são pecadores (Rm 3:10-12), nenhum deles é capaz de satisfazer a justiça de Deus. O que alguém deve à justiça tem que pagar. Todavia, quando há uma obrigação entre dois homens a lei permite que um terceiro pague o débito, contanto que não haja nenhuma injustiça. 26 Desse modo, o infrator deve pagar, em sua própria pessoa ou na pessoa de um substituto, um “vigário”, que a justiça mesma aceite.27 O termo “vicário” ou “vigário” se refere a alguém que age em lugar de outro, ou toma o lugar do outro, a fim de remir ou agir como um substituto.28 No caso da relação do homem com Deus, em razão de que todos pecaram, nenhum ser humano poderia ser o vigário de outro.29 Mas também não bastava que alguém fosse isento do pecado: um anjo não tem pecado, mas apesar disso, não pode ser um substituto do homem. Era necessário que o substituto, por um lado, pertencesse à humanidade, e, por outro, fosse divino, i.e., estivesse à altura da lei que fora transgredida. Por isso, é que Cristo, que era divino (Jo 1:1-3), 23 Ibid., 8. 24 Otto Webwe, Fundations of Dogmatics, 2 vols., traduzido por Darrell L. Guder (Grand Rapids, MI: Eerdmans, reimpressão 1988), 1:436. 25 Berkhof, 372. Frank B. Holbrook, O sacerdócio expiatório de Jesus Cristo, traduzido por José Barbosa (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2002), 87-88. 26 Chafer, 68. 27 G. H. Lacy, Introduccion a la teologia sistemática, 2ª ed. (S/L.: Casa Bautista de Publicaciones, 1976), 83, 92. 28 Chafer, 68. 29 Ibid., 68; Hodge, 843. 175 encarnou (Jo 1:14), a fim de que se qualificasse para preencher essas condições e morresse “pelos nossos pecados, segundo as Escrituras” (1Co 15:3).30 Ele não morreu apenas como um evento na história, nem morreu por causa própria. Ele morreu por nós (1Ts 5:10; Rm 5:8; 8:32; Ef 5:2; Gl 3:13; Mc 10:45). Sua morte foi vicária. Foi uma substituição penal porque ele morreu em nosso lugar e como cumprimento de uma pena. Ele assumiu o nosso lugar e nos representou, recebendo o castigo que merecíamos de modo a nos libertar desta experiência.31 No NT, a realidade da morte de Cristo como sendo uma substituição, pode ser percebida em vários textos que contêm as preposições anti e hyper em conexão com a obra realizada por Cristo em nosso favor. O significado delas depende do contexto. Desse modo, anti, embora possa ter outro sentido, também traz a idéia de substituição – referindo-se a alguém que toma o lugar de outro (Mt 2:22; 5:38; 20:28; Mc 10:45; Lc 11:11). A palavra hyper é mais ampla e significa, em alguns casos, não mais do que um benefício proporcionado ou recebido, enquanto que, em outros, é um equivalente de anti, tendo o sentido vicário (ver Fm 1:13; 2Co 5:1 cf. com Lc 22:19-20; Jo 6:51; 11:50; 15:13; Rm 5:68; 8:32; 2Co 5:14-15, 21; Gl 3:13; Ef 5:2, 25; 1Tm 2: 5-6; Hb 2:9; 1Pe 3:18).32 Portanto, como nosso substituto, Cristo pagou nossa dívida à justiça de Deus. O documento de dívida foi cancelado e encravado por ele na cruz e assim ficamos isentos (Cl 2:14).33 30 Hodge, 843-845. 31 George Eldon Ladd, Teologia do Novo Testamento, 2ª ed., traduzido por Darci Dusilek e Jussara M. P. S. Arias (Rio de Janeiro: JUERP, reimpressão, 1986), 400; Grudem, 482; Chafer, 3: 54; Hodge, 942. 32 Chafer, 3:67; Berkhof, 378. Muitos intérpretes contemporâneos recusam-se a reconhecer o elemento substitutivo na doutrina de Paulo, uma vez que não usa a preposição anti (com exceção de 1 Tm 2:6, cuja autoria Paulina é amplamente negada). Contudo, no Grego Helenístico, a preposição hyper é frequentemente usada no lugar de anti. Ladd, 401. Ver também Stott, 133; Holbrook, 93-95. 33 Hodge, 887. 176 A expiação vicária é provida pela parte ofendida e oferece reconciliação e vida eterna, representando, assim, a mais elevada forma de misericórdia .34 O pagamento se origina com o Salvador e é oferecido em lugar do pecador,35 de modo que ao este aceitar esta substituição ele é salvo. Isso é conhecido, como salvação pela fé – representa tudo o que Deus fez pelo homem e assegura todas as bênçãos espirituais em Cristo.36 Portanto, a única maneira de livrar o pecador da consequência inevitável do pecado é mediante a expiação vicária.37 Apenas por este meio pode Deus preservar a autoridade e validade de 34 Berkhof, 376. 35 Aqui se apresenta outro conceito teológico bastante significativo na teologia do NT, o de redenção (apolytrōsis). Essa era a palavra empregada pelos gregos para indicar o pagamento exigido para o resgate de escravos e de prisioneiros de guerra. Luis Bonnet e Alfredo Schroeder, “Epistolas de Pablo a los Romanos”, Comentario del Nuevo Testamento: Epistolas de Pablo, 2ª ed. 3 vols. (Buenos Aires: Casa Bautista de Publicaciones, 1974), 3:62; F. Davidson e Ralph P. Martin, “Romans”, New Bible Commentary Revised, 3a. ed. (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1970), 1022; James. D. G. Dunn, A teologia do apóstolo Paulo, traduzido por Edwino Royer (São Paulo: Paulus, 2003), 273-274. Portanto, implicava em cativeiro, libertação e um preço pago. Alexander Maclaren, “Romans”, Maclaren’s Expositions of Holy Scripture, 11 vols. (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1959), 8:50. No NT é uma referência à provisão da graça de Deus para livrar-nos do cativeiro do pecado e sempre inclui o pagamento de um preço de resgate, que é o sangue, a vida de Cristo (Mt 20: 28; Mc 10: 45; Ef 1:7; Tt 2:14; Rm 3: 24-26; 8:23, etc). John Murray, The Epistle to the Roman, 2 vols., The New International Commentary on the New Testament (Grand Rapids, MI: Eerdmans, reimpressão 1975), 1:115-116. Portanto, Deus não proveu a justificação para os homens por capricho, sem fazer nada com respeito aos pecados dos homens. Archibald Thomas Robertson, Las Epistolas de Pablo, vol. 4, Imágenes Verbales en el Nuevo Testamento (Barcelone: CLIE, 1989), 4:464. Havia a necessidade de um pagamento, imposta a Deus não a partir de fora, mas a partir de dentro dele mesmo, em virtude de sua própria natureza. A. Berkeley Michelsen, “La Epistola a los Romanos”, El comentario biblico Moody, red. Everett F. Harrison (Chicago: Editorial Moody, 1971), 253. Isso foi suprido pela morte de Cristo, o que já havia sido prefigurado no AT e pode ser percebido inclusive no episódio em que Oséias comprou sua esposa (Os 3:1-2), [Donald Grey Barnhouse, God’s Remedy, 10 vols., 3a ed., Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1966), 3:105-107] e, de modo mais destacado, no livramento de Israel do Egito (Êx 6:6; Dt 7:8; 9:26; 13:5; 2 Sm 7:23; 1 Cr 17:21). Francis D. Nichols, ed., “Redemption”, Seventh-Day Adventist Bible Commentary, 7 vols. (Washington, DC: Review and Herald, 1953-1957), 6:504. 36 37 Chafer, 3:68-69. Teixeira, 217. O conceito da substituição está no âmago tanto do pecado quanto da salvação. Se por um lado a essência do pecado é o homem substituindo a Deus, por outro, a essência da salvação é Deus substituindo o homem. “O homem declara-se contra Deus e coloca-se onde Deus merece estar; Deus sacrifica-se a si mesmo pelo homem e coloca-se onde o homem merece estar. O homem reivindica prerrogativas que pertencem somente a Deus; Deus aceita penalidades que pertencem ao homem somente.” Stott, 144. 177 sua lei moral, que demanda a morte do transgressor, e ainda assim excusá-lo de pagar pessoalmente a penalidade da morte.38 O significado da expiação A raiz hebraica das palavras associadas com a expiação (kaphar, kippurim) inclui as nuanças de purgar, limpar, expiar, purificar, cancelar, cobrir, ocultar da vista, apagar, espalhar ou perdoar.39 Por conseguinte, expiação é um ritual mediante o qual o pecado é coberto, afastado, ou extinto, de modo a deixar de ser um entrave à comunhão entre o homem e Deus.40 Ocorria por meio de sacrifícios41 que eram feitos como uma reparação ou satisfação por uma injúria ou ofensa42 para que, pelo cumprimento da punição merecida, adviesse a eliminação da culpa43 e o livramento do castigo ou do mal.44 De fato, o propósito da expiação era resolver o problema do pecado. A intenção era retirar o pecado do pecador de modo que este fosse perdoado. Por isso, ao colocar a mão sobre a cabeça do animal (Lv 1:4), o pecador indicava que o animal o representava e que a 38 Gleason L. Archer Jr., The Epistle to the Romans: A Study Manual (Grand Rapids, MI: Baker Book House, reimpressão 1969), 23. A cruz de Cristo, pela qual é possível a justificação pela fé, não invalida a lei, antes a confirma. “No que se refere à salvação o evangelho nunca substitui a lei porque a lei nunca foi um meio de salvação. A lei foi dada para mostrar aos homens quais eram os padrões perfeitos da justiça de Deus e para mostrar que estes padrões são impossíveis de alcançar para o homem em suas próprias forças. O propósito da lei era levar os homens à fé em Deus.” MacArthur, 265. A morte de Cristo na cruz estabelece ou confirma a lei em três sentidos: (1) Ao ser o pagamento, a morte, exigida pela lei quando a justiça não é realizada. Quando Jesus disse que não veio abolir a lei ou os profetas (Mt 5:17) ele não falava apenas de sua vida sem pecados, mas também de sua morte, quando suportou todo o pecado do mundo. (2) Ao corroborar com ela para cumprir seu propósito de levar os homens à fé em Cristo (Gl 3:24). (3) Ao prover aos crentes o potencial para cumprir a lei (Rm 8:3-4). Ibid. 39 Oden, 2:352; Hodge, 858; Chafer, 3:128. 40 J. I. Packer, O conhecimento de Deus, 3ª ed., traduzido por Cleide Wolf (São Paulo: Mundo Cristão, 1987), 165-166; Berkhof, 375; Lloyd-Jones, 76-77; George R. Knigth, int., Questões sobre doutrinas: o clássico mais polêmico da história do adventismo (Tatuí, SP; Casa Publicadora Brasileira, 2008), 250. 41 Hodge, 858; Oden, 2:352; Berkhof, 375; Dunn, 264. 42 Oden, 2:352; Berkhof, 376. 43 Teixeira, 205; Lloyd-Jones, 73, 88-89. 44 Hodge, 858. 178 vida deste substituía a sua. Havia uma troca: pelo sacrifício o pecador era feito puro e vivia livre daquele pecado e o animal puro era tornado impuro e sofria a morte por causa do pecado que agora carregava (Lv 4:27-35). Como o pecado foi transferido numa direção, levando a morte ao animal sacrifical, assim sua pureza e continuação de vida eram efetivamente transferidos em sentido inverso (ver 2Co 5:21; Rm 8:3; Gl 4:4-5; 3:13).45 Segundo os escritores do NT, a expiação é uma referência ao sacrifício de Cristo que removeu a culpa do pecado do homem46 e o limpou do seu demérito (2Co 5:21).47 Eles falam constantemente sobre o sangue de Cristo (At 20:28; Rm 3:25; 5:9; Ef 1:7; Cl 1:20; 1Pe 1:18-19; 1Jo 1:7; Ap 1:5) e não apenas sobre sua morte, para lembrar os ritos do AT, quando o sangue jorrava da garganta cortada do cordeiro, significando vida tirada violentamente, vida oferecida em sacrifício.48 A intenção era mostrar que estão afinados com o pensamento do AT49 e que os dois testamentos se ajustam e se pertencem um ao outro com perfeição, apresentando o mesmo Deus e a mesma salvação.50 45 Dunn, 264-268; Berkhof, 377; Holbrook, 88-91. 46 Ralph Earle, “The Book of the Revelation”, Beacon Bible Commentary, 10 vols. (Kansas City, Missouri: Beacon Hill Press of Kansas City, 1968), 10:92. Ao contrastar os sacrifícios da lei com o de Cristo, Hb 9:11-14 apresenta-os como expiatórios, não reformatórios. A purificação é a da culpa e não a renovação espiritual. Hodge, 864. 47 Earle, 10:92. 48 Ladd, 399. 49 Ibid. Os eruditos bíblicos se dividem quanto à definição exata da expiação feita por Cristo. Enquanto haja quem limite o significado do termo como expressando a obra total de Cristo sobre a cruz [Chafer, 3:128], há quem a defina como incluindo tudo que ele realizou em sua vida e morte para obter nossa salvação [Grudem, 471]. Ainda outro parecer é o de que embora o sacrifício de Cristo na cruz tenha sido completo e não haja necessidade, nem possamos fazer nada para melhorar, a expiação não estava completa. Pois, de acordo com o simbolismo do AT, isto só ocorreria depois que bode expiatório fosse conduzido ao deserto. Nesse caso, a expiação parece envolver todo o plano de salvação, incluindo o trabalho de Cristo como sumo-secerdote no santuário celestial. Venden, 125-126; Knigth, 250-260. 50 Lloyd-Jones, 83-84. 179 A origem da expiação A expiação é do início ao fim uma obra do próprio Deus (Is 53:10; Lc 2:14; Jo 3:16; Gl 1:4; Cl 1:19-20)51 e tem sua origem em seu amor e justiça.52 Se por um lado a justiça exigiu a satisfação das exigências da lei, por outro, o amor encontrou um meio de livramento para o pecador. Como disse Paulo, o que Deus realizou foi “[...] por sua graça [...] para manifestar sua justiça [...]” (Rm 3:24-25).53 Por essa razão, a cruz é um adequado símbolo da expiação, pois ela representa a interseção desses dois atributos ou facetas da natureza de Deus, o lugar onde seu amor e sua justiça se encontram.54 Portanto, “Deus requer a satisfação porque ele é santo, mas ele satisfaz porque ele é amor”.55 Objeções à realidade da expiação Em muitos círculos cristãos, a doutrina da expiação sempre enfrentou oposição e isso é verdade especialmente em nossos dias.56 As objeções mais destacadas são: 51 Earle, 10:92; Berkhof, 368-369. 52 Grudem, 471. 53 Berkhof, 369; Millard J. Erickson, Christian Theology, 7a. ed. (Grand Rapids, MI: Baker Book House, 1989), 818; Augustus H. Strong, Teologia sistemática, traduzido por Augusto Victorino (São Paulo: Teológica, 2002), 397. Assim como o amor de Deus não impediu a perdição dos anjos rebeldes e nem impedirá a sua destruição pelo fogo, também não pode exigir a salvação de homens pecadores sem uma expiação adequada. Hodge, 887. “Todas as instituições religiosas ordenadas por Deus, sejam patriarcais, mosaicas ou cristãs, basearam-se no axioma da justiça de Deus, e tiveram como desígnio imprimir esta grande verdade na mente dos homens. Pressupõe que os homens são pecadores; e que, sendo pecadores, necessitam igualmente da expiação para sua culpa e da purificação moral a fim de serem salvos. Portanto, desde o princípio instituíram-se sacrifícios com o fim de ensinar a necessidade de expiação e para servir como tipos proféticos da única expiação eficaz que, na plenitude do tempo, seria oferecida pelos pecados dos homens.” Ibid., 850. 54 Erickson , 818. 55 Strong, 444; ver também Oden, 2:349. No decorrer da história cristã houve muitos que limitaram a obra de Cristo como tendo valor apenas para perdoar os pecados cometidos antes do batismo, asseverando a necessidade de uma satisfação suplementar pelo pecador para expiar os pecados pós-batismais, o que ocorreria mediante os castigos temporais nesta vida. Para a Igreja Católica, as penas do purgatório após a morte, têm o mesmo objetivo. Contudo, se é verdade que a satisfação de Cristo foi perfeita, então é impossível haver outras satisfações pelo pecado. Hodge, 844-846; Lloyd-Jones, 90-92. 56 Berkhof, 382. 180 1. A expiação não é uma doutrina ensinada nos Evangelhos. Alguns rejeitam a doutrina da expiação alegando que ela não é ensinada nos Evangelhos. Todavia, deve ser considerado que os evangelhos contêm evidências suficientes para entendermos a morte de Cristo como uma expiação (Mt 20:28; 26:26-28; Mc 14:22-25; Lc 22:17-20; Jo 1:29; 3:1418; 6:48-51; 10:11; 15:13). Além disso, as cartas apostólicas, que contêm uma mais ampla explicação do significado da cruz, declaram categoricamente que foi uma expiação (Rm 14:15; Gl 3:13; Ef 5:2; Hb 7;26-27; 9:28; 10:12; 1Pe 1:18-19; 2:21; 3:18; 1Jo 3:16).57 2. A expiação não é moralmente possível. Outros objetam que a doutrina da expiação é moralmente impossível porque uma vez que a culpa é uma situação pessoal que não pode ser transferida, a substituição é impossível. Entretanto, a transferência que Cristo recebeu e pela qual sofreu não foi a dos pecados humanos, mas, sim, a punição merecida pelos pecadores.58 Quando as Escrituras declaram que os nossos pecados foram imputados a Cristo, não significa que a nossa pecaminosidade foi transferida para Ele – o que seria impossível – mas, sim, que a culpa do nosso pecado lhe foi imputada e isso só pôde ocorrer porque a culpa não era inerente à pessoa do pecador, mas uma coisa objetiva.59 Entretanto, quando a culpa do pecado, entendida como condição passível de punição, foi transferida para Jesus Cristo, a ira de Deus contra o pecado também o foi (Is 53; Jo 3:16; Rm 4:25; 8:32), o que ocorreu no Getsêmani e na cruz. 60 Ele tomou sobre si todas as consequências da ira de Deus contra o pecado, desviando assim a justa indignação de Deus 57 Ibid., 384. 58 Teixeira, 218. 59 Berkhof, 378. Ver também Chafer, 3:81. 60 Berkhof, 382; Lloyd-Jones, 90-91; Leslie C. Allen, “Romans”, The International Bible Commentary (Grand Rapids, MI: Marshall Pickering e Zondervan, 1986), 1323. 181 contra os pecadores. 61 Portanto, em sua misericórdia, Deus proveu salvação para os culpados e a morte de Cristo foi contada em lugar do que requeria a lei para que se cumprisse justiça.62 “A justiça atendeu ao apelo da misericórdia, aceitando um substituto para os pecadores, e a misericórdia atendeu à injunção da justiça oferecendo o substituto”.63 3. A expiação é desnecessária. A alegação de que a expiação não era necessária porque se o fosse Deus seria menos bondoso que o homem – porque este perdoa sem exigir nada – não tem fundamento. Uma vez que Deus é o juiz da terra, como tal precisa “manter a lei e exercer estrita justiça. Um juiz pode ser muito bondoso e generoso, e pode perdoar particularmente, como indivíduo, mas em sua capacidade oficial ele deve cuidar para que a lei siga o seu curso”.64 A verdade é que Deus nem sequer tinha necessidade de nos salvar. Contudo, ele decidiu nos salvar e para que isso ocorresse era absolutamente necessária a expiação. Não havia outro modo a não ser enviar seu Filho para morrer por nós (Mt 26:39; Lc 24:25-26; Hb 2:17; 9:23). 65 Embora Deus seja um pai amoroso, a necessidade de expiação deve ser vista à luz da ira de Deus contra o pecado. Paulo não percebia qualquer contradição entre o amor de Deus e sua ira. Ele não atribui as consequências do pecado a 61 Gudem, 482-483. 62 Lacy, 93. Àqueles que alegam que seria injusto Deus o Pai fazer o inocente sofrer pelo mau, pode se asseverar que “não foi o Pai, mas o trino Deus que concebeu o plano de redenção. Houve um solene acordo entre as três pessoas da Divindade. E neste plano o Filho se incumbiu voluntariamente de sofrer a pena pelo pecado e de satisfazer as exigências da lei divina. E não somente isso, mas a obra sacrifical de Cristo trouxe também imenso proveito e glória para Cristo como Mediador. Significou para Ele uma numerosa semente, adoração cheia de amor e um reino glorioso.” Berkhof, 380. E se a expiação não fosse necessária e, mesmo assim, o Pai enviou Seu Filho para sofrer, isto sim seria crueldade. Ibid. 63 Teixeira, 209. Ver também Campos, 350-351. 64 Berkhof, 372. 65 Grudem, 472-473; Strong, 444. 182 um princípio impessoal, mas sim à vontade de um Deus pessoal, que não se deixa escarnecer (Gl 6:7).66 Teorias da expiação Ao longo dos séculos, os cristãos têm compreendido a doutrina da expiação de diferentes maneiras. São muitas as teorias a respeito, sendo que algumas foram mais divulgadas e aceitas do que outras. Na verdade algumas nem deveriam ser tratadas como teorias da expiação porque descartam a necessidade de qualquer expiação, todavia, por terem sido difundidas como tal, serão aqui consideradas. As principais são: 1. Teoria da expiação como pagamento ao Diabo. Defendida inicialmente por Orígenes (c. 185-c. 254), teólogo de Alexandria e de Cesaréia, e depois por Irineu, Agostinho, Gregório de Nissa e outros – afirmava que a morte de Cristo foi um pagamento ao Diabo, que havia conquistado os homens. Baseava-se naquelas passagens bíblicas que descrevem o homem como escravizado sob o domínio do príncipe das trevas. Essa foi uma crença muito popular durante os primeiros séculos .67 Consideremos alguns aspectos: (1) Cristo era o verdadeiro Criador e dono deste mundo, pois tudo fora feito por ele e para ele (Jo 1:1-3; Cl 1:15-16), inclusive a humanidade. Ele não a dera nem a vendera a Satanás. Este a tomara mediante o engano. Ao tentar recuperá-la, Cristo não devia nada a ele, pois o que estava buscando era seu. (2) O Filho de Deus sempre se negou a negociar com o Diabo. Quando no deserto foi tentado a 66 Ladd, 398. O primeiro obstáculo ao perdão se encontra no próprio Deus: ele precisa satisfazer sua própria natureza. Ele não pode salvar contradizendo a si mesmo. Stott, 101. 67 Teixeira, 211-212. Stott, 101-102; Grudem, 483-484; Franklin Ferreira e Alan Myatt, Teologia sistemática: uma análise histórica, bíblica e apologética para o contexto atual (São Paulo: Vida Nova, 2007), 582-584; Hodge, 905. Para uma discussão mais ampla sobre essa teoria e seus desdobramentos mais recentes ver Carl E. Braaten e Robert W. Jenson, eds., Dogmática cristã, 2 vols., traduzido por Gerrit Delfstra e outros (São Leopoldo: Sinodal, 1990), 2:54-60. 183 fazê-lo, ele se recusou de imediato e ordenou que o inimigo se retirasse (Mt 4:8-10). (3) Quando Cristo entregou sua vida, na cruz, ele o fez ao seu Pai, e não ao seu inimigo (Lc 23:46). Portanto, não há indicativos de que a expiação realizada por Cristo tenha sido um pagamento ao Diabo. Além disso, esse ensinamento negligencia por completo as exigências da justiça de Deus em relação ao pecado. 68 Sendo assim, por não possuir suporte nas Sagradas Escrituras, essa doutrina gradualmente desapareceu e hoje só desperta algum interesse como tema histórico.69 2. Teoria da expiação como satisfação à justiça de Deus. Originada com Anselmo de Cantuária (1033-1109) e desenvolvida com o passar do tempo, tornou-se padrão para os grandes sistemas da escolástica medieval e para a ortodoxia protestante, sendo amplamente aceita pela maioria dos cristãos conservadores, tanto católicos como protestantes. Defendia a ideia de que o pecado acarretou uma grande dívida para com Deus e que a honra divina exigia uma satisfação que somente poderia ser cumprida por um Deus-homem, o que foi realizado plenamente pelo sacrifício de Cristo. Como resultado, houve uma reconciliação entre o amor de Deus e sua ira, e ele pode ser visto não só como misericordioso, mas como justo também.70 Anselmo percebeu com clareza a extrema gravidade do pecado, a santidade imutável de Deus e as perfeições singulares de Cristo, mas alguns de seus argumentos 68 Grudem, 484. 69 Berkhof, 353; Hodge, 906. 70 Ibid.; Erickson, 796-799; Ferreira e Myatt, 584-586; Berkhof, 354; EBTF, ver “satisfação”; Braaten e Jenson, 2:35; Essa doutrina “parece ser pressuposta tanto pelos documentos confessionais da Reforma quanto pelo Concílio de Trento, e quase foi elevada ao nível de dogma formal pelo Vaticano I.” Ibid. Anselmo de Cantuária – através de sua obra: Cur Deus Homo? (Por que o Deus-homem?) – expôs o relacionamento da encarnação com a expiação, incluindo uma exposição sistemática da cruz como uma satisfação à honra ofendida de Deus. Posteriormente, este argumentou foi desenvolvido pelos escolásticos e seguido pelos reformadores, em sua ênfase sobre a justificação pela fé. Stott, 106, 109. Para uma ampla discussão sobre o que Cristo realizou na cruz, ver o capítulo “A satisfação de Cristo”, em Hodge, 842-889. 184 ultrapassaram a revelação bíblica, como sua tentativa de comparar o número dos que serão salvos com o número dos anjos caídos.71 Outro aspecto negativo é seu ensino de que Cristo não sofreu a penalidade do pecado, antes, sua morte, se constitui num mérito superrogatório, compensando o demérito dos outros – o que é a doutrina católica da penitência aplicada à obra de Cristo.72 3. Teoria da expiação como influência moral. Pedro Abelardo (1079-1142), teólogo francês, discípulo de Anselmo, fez outra proposição, adotada por teólogos liberais nos séculos 17 a 19 e pelo evangelista Charles Finney, no século 19, e conhecida como Teoria da Influência Moral. O parecer é que Deus não necessita de satisfação e que o sacrifício de Cristo não ocorreu para apaziguar a ira de Deus, satisfazer sua justiça, fazer expiação pelo pecado ou compensar a desobediência do homem, mas para demonstrar seu amor para conosco e, com isso, ganhar-nos o coração e levar-nos ao arrependimento. Seu propósito era mudar a atitude do homem para com Deus e não a atitude de Deus para com o homem. Ensina ainda que há um livramento da penalidade através da transformação moral, de modo que o homem alienado é aproximado de Deus. O exemplo é exposto como a mais poderosa influencia moral que pode ser praticada.73 A influência moral da morte de Cristo sobre a vida humana não deve ser ignorada apenas porque se tem abusado deste ensino e erroneamente feito dele a verdade central da expiação. O principal significado da morte de Cristo é de um sacrifício substitutivo, cujos benefícios devem ser recebidos pela fé, mas a influência subjetiva da sua morte, 71 Ferreira e Myatt, 586. 72 Berkhof, 354. 73 Teixeira, 212-213; Erickson, 783-788; Ladd, 405; Marvin R. Vincent, “The Epistle to the Romans”, Word Studies in the New Testament: The Epistles of Paul (Grand Rapids, MI: Eerdmans, reimpressão 1946), 3:46-47; Stott, 108; Ferreira e Myatt, 589; Berkhof, 354-355; Hodge, 907-909; EBTF, ver “expiação”. 185 despertando uma reação de amor no coração dos homens, também é uma realidade. O amor de Cristo em dar-se a si mesmo deve ser imitado através de nosso andar em amor (Ef 5:2).74 Este ponto de vista possui alguns pontos fracos: (1) não toma em consideração os muitos textos bíblicos que apresentam a Cristo levando sobre si os nossos pecados e morrendo por eles; (2) esquece que, se a morte de Cristo não era exigida, então foi inteiramente desnecessária e ele não morreu por nossos pecados, seguindo-se daí que não precisamos dele para sermos perdoados; (3) o fato de que é impossível o pecador ser influenciado moralmente pela morte de Cristo, enquanto não se apropriar pela fé da justiça do Filho de Deus.75 4. Teoria da expiação como satisfação ao governo de Deus. Outra teoria, a governamental – sugerida por Hugo Grócio, (1583-1645), teólogo e jurista holandês, e, seguida mais tarde por Richard Baxter, ministro puritano do século 17 – também rejeitou o conceito de que a morte de Cristo fosse para a satisfação da natureza divina. Segundo essa hipótese, a lei é somente um produto da vontade de Deus, de modo que ele a pode alterar como lhe apraz. Por ele ser Onipotente, podia deixar de lado qualquer exigência de castigo pelo pecado, qualquer satisfação, e simplesmente perdoar, mas escolheu não ignorar o pecado, a fim de manter seu governo moral do universo. O castigo infligido tem o propósito de preservar a ordem e promover os melhores interesses da comunidade. Portanto, a morte de Cristo foi apenas uma exibição de satisfação à lei, mostrando que Deus ainda era o governador do universo e que, havendo violação, alguma espécie de pena deve ser paga de modo a exercer influência moral sobre os homens, no interesse do governo de Deus.76 74 Ladd, 405. 75 Grudem, 484; Berkhof, 355; Hodge, 910-911. 76 Teixeira, 213; Erickson, 788-792; Grudem, 484; Berkhof, 356-357; Hodge, 911-913; EBTF, ver 186 Embora esta teoria apresente a morte de Cristo como também tendo a intenção de garantir os interesses do governo divino, ela não se coaduna em vários pontos com a revelação bíblica: (1) desconsidera o ensino da expiação, da propiciação e da satisfação da justiça divina e, por isso, reduz consideravelmente a obra salvadora de Cristo; (2) assevera que a morte de Cristo não pagou a penalidade do pecado e seu sacrifício não foi substitutivo; (3) afirma que se Cristo não tivesse morrido na cruz, os próprios homens poderiam ter pago a penalidade por seus pecados; (4) deixa de compreender a lei como sendo uma expressão da natureza essencial de Deus, e não apenas de sua vontade arbitrária; (5) a penalidade tem apenas a função de dissuadir os homens de futuras ofensas à lei, mas não de satisfazer a justiça; e (6) não explica como foram salvos os fiéis dos tempos do AT.77 5. Teoria da expiação como exemplo. Essa teoria foi ensinada pelos socinianos – seguidores de Fausto Socino (1539-1604), teólogo italiano – durante o século 16. Nega que haja uma justiça retributiva em Deus – a punição do pecado. Afirma, portanto, que a morte de Cristo não expiou os pecados, apenas proveu um exemplo de como devemos viver em nosso relacionamento com Deus: com plena confiança e obediência, mesmo diante do sofrimento e de uma morte dolorosa. Em suma, Cristo foi o modelo de vida autêntica e de auto-sacrificio. O texto de 1Pe 2:21 é empregado como dando apoio a esta ideia.78 “expiação”. 77 78 Grudem, 484; Ferreira e Myatt, 590-591; Berkhof, 356-357; Hodge, 846. Grudem, 484; Ferreira e Myatt, 589-590; Berkhof, 355-356. De modo semelhante, a teologia dialética, de R. Niebuhr, afirma que a morte de Cristo – considerado por ele como um mero homem – não teve finalidade expiatória, antes foi apenas uma ilustração de que é possível a vitória sobre o pecado e de como o homem pode salvar-se: demonstrando um amor disposto a sacrificar-se. Teixeira, 214-215. Assim, quando o homem se empenha para atingir esse ideal Deus age em correspondência e ocorre uma espécie de diálogo ou dialética. Ibid. O sangue dos sacrifícios é visto como representando a vida e não a morte, uma consagração de si mesmo a Deus. Desse modo, quando Cristo verteu seu sangue sobre a cruz, ele, que sempre fora obediente, prestou sua última obediência ofertando sua vida a Deus, na cruz. Por conseguinte, se o pecador crer em Cristo, deve imitá-lo e apresentar sua vida a Deus, em Cristo e através dele. Lloyd-Jones, 86. Esta teologia, contudo, parece ter a finalidade de evitar os ensinamentos bíblicos da ira de Deus, da punição do pecado e da necessidade da propiciação. Ibid., 86-87. O pensamento de que é possível ter vida no sangue 187 Em realidade, esta doutrina é uma mistura de várias heresias antigas, entre as quais o Pelagianismo e a negação da depravação humana e da divindade de Cristo – o qual é apresentado como um mero homem com qualidades excepcionais. Não compreende que o exemplo de Cristo serve apenas para o que crê, e que o incrédulo não será salvo apenas por tentar imitá-lo. Como outras teorias, ela não explica os textos bíblicos que apresentam a Cristo como propiciação pelos nossos pecados e falha em apontar o pecado como culpa e, consequentemente, em mostrar como ela pode ser removida. Também não explica como ocorre a salvação daqueles que viveram antes de terem o exemplo de Cristo.79 O alcance da expiação Há nas Escrituras uma aparente contradição quanto à extensão da expiação efetuada por Cristo. De acordo com alguns textos, ela foi realizada em prol de toda a humanidade (1Jo 2:2; 1Tm 2:6; 5:10; Tt 2:11; Jo 3:16; Rm 5:19) e, de acordo com outros, somente aqueles que se arrependem e creem são realmente salvos por ela (Ef 1:4; 2Tm 1:9-10; Jo 17:9, 20).80 Entretanto, há harmonia quando se percebe que os textos que apresentam a expiação como universal e ilimitada, a consideraram de um ponto de vista objetivo, genérico e coletivo, como uma satisfação dada à justiça divina, que aconteceu num tempo inteiramente separada do corpo, afastado dele, é alguma coisa que nunca foi conhecida para os hebreus. Eles sempre conectavam a vida intimamente e necessariamente com o corpo. O sangue sempre significa a vida derramada. Desse modo, o sangue do sacrifício provava que o animal tinha sido morto e significava que a vida tinha sido tomada e que a punição que teria vindo sobre o pecador veio sobre o animal como substituto. Ibid., 88. 79 Ferreira e Myatt, 589; Grudem, 484; Berkhof, 355-356. Pelágio (c. 360-c. 420) foi um monge e teólogo britânico, distinguido por sua erudição e elevado caráter moral, cujas doutrinas, todavia, foram combatidas por Agostinho e condenadas no Concílio de Éfeso, em 431. Entre os pontos principais de seu sistema doutrinário encontra-se a crença de que o pecado se restringe ao ato e não inclui a natureza humana depravada; que é possível ao homem viver isento do pecado e que ele pode manter ou recuperar a perfeição original. EBTF, ver “Pelágio, pelagianismo”. 80 Há, por exemplo, um grupo de estudiosos – chamados de hipercalvinistas – que crê que o sofrimento de Cristo é um equivalente exato pelos pecados dos salvos. Assim, Cristo não morreu para salvar a todos, mas somente os eleitos, cujo pecado foi transferido para Cristo, de modo que ele sofreu exatamente o mesmo que eles deveriam ter sofrido, nem mais, nem menos. Chafer, 3:77-78. 188 específico da história e foi realizada uma vez por todas, de maneira a não haver mais nada no foro divino contra a humanidade genérica representada por Cristo. Enquanto que o outro grupo de passagens trata do aspecto subjetivo, individual, e diz respeito à aceitação da expiação mediante o arrependimento dos pecados e a fé na pessoa e obra do substituto a fim de que tenha valor para o indivíduo. Deste modo, embora a expiação seja suficientemente ampla para incluir a todos e seja a todos oferecida, encontra limitação no número de pessoas que a aceitam.81 A relevância da expiação A doutrina da expiação é a “grande e central doutrina82” do cristianismo e, nela, as várias doutrinas são reunidas adequadamente de um modo coesivo. 83 Ela tem sido considerada como [...] a mais profunda de todas as verdades... o foco da revelação, o ponto em que vemos mais profundamente a verdade de Deus, e ficamos mais completamente debaixo do seu poder... é o cristianismo em suma; nela se concentra como em gérmen de poder infinito, tudo o que a sabedoria, poder e amor de Deus significam para os homens pecadores”.84 81 Teixeira, 220-221; Strong, 422; Chafer, 3:76; Raul Dederen, Cristologia, traduzido por Neuza Belz (São Paulo: SALT, 1984), 72; Ladd, 405; Maclaren, 8:50-51; William M. Greathouse, “Romans”, Beacon Bible Commentary, 8:93; Michelsen, 253; Jurgen Becker, Apóstolo Paulo, vida, obra e teologia, traduzido por Irineu J. Rabuske (São Paulo: Academia Cristã, 2007), 569. Embora a expiação seja sempre objetiva [Berkhof, 376], deve-se levar em conta a resposta subjetiva de cada pecador ao que Cristo realizou em seu favor. Por isso, “o trabalho objetivo de Cristo” não pode ser “isolado do trabalho subjetivo, que o acompanha... Através da morte de Cristo, o crente não encontra somente uma expiação objetiva para o pecado; ele encontra também a libertação do poder do pecado e da dominação e servidão da Lei e do mundo.” Ladd, 401-402. As Escrituras, por meio de ritos indicados pelo próprio Deus, demonstram que é necessário apropriar-nos pessoalmente da morte de Cristo a fim de que ela tenha significado em nossa vida. Isso pode ser percebido tanto na cerimônia pascal quanto na ceia do Senhor. Na Páscoa original, quando Israel se preparava para deixar definitivamente o Egito, não bastava o cordeiro ser morto. Seu sangue deveria assinalar a porta da casa e sua carne, comida (Êx 12:1-13). Na celebração da santa ceia o pão deve ser comido, e o vinho, bebido (1 Co 11:23-26) e, desse modo, ela é um sinal externo tanto da dádiva de Deus como da recepção humana. Stott, 61-62. 82 Lloyd-Jones, 95. 83 Erickson, 782. 84 James Denney, The Death of Christ (London: Tyndale Press, 1951) citado em Chafer, 3:54 -55. 189 A obra propiciatória de Cristo O tema da ira divina incide diretamente sobre o âmago do cristianismo: a significação da morte de Cristo. Referindo-se ao que ocorreu na cruz do Calvário, o NT assevera que Cristo “é a propiciação pelos nossos pecados” (1Jo 2:2) e, todavia, há grande discussão teológica sobre o significado da propiciação. O termo “propiciação” é uma tradução do hebraico kapporeth 85 e do grego hilastērion. 86 No AT, kapporeth era a cobertura da arca que continha os mandamentos e sobre a qual o sumo sacerdote espargia o sangue no ritual da expiação no dia do yom kipur (Lv 16:1-34).87 Na LXX, kapporeth é traduzido por hilastērion, de modo que a tampa que cobria a arca era chamada de propiciatório e recebia o sangue ali aspergido, o qual cobria os pecados de quem o oferecia.88 Tratando da justiça divina, o apóstolo Paulo, declara que “todos pecaram e carecem da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus, a quem Deus propôs, no seu sangue, como propiciação, mediante a fé, para manifestar a sua justiça [...]”(Rm 3:21-26). A palavra hilastērion, conforme aparece neste texto, é considerada como a chave para a compreensão da obra expiatória de Cristo.89 85 R. C. H. Lenski, The Interpretation of St. Paul’s Epistle to the Romans (Minneapolis, Minnesota: Augsburg Publishing House, 1961), 257-258; Chafer, 3:100; Berkhof, 375. Adolf Pohl, Carta aos Romanos: Comentário esperança (Curitiba: Editora Evangélica Esperança, 1999), 76; Ladd, 402; Davidson e Martin, 1017, 1022. Para uma discussão mais detalhada sobre o significado do termo hilastērion, ver o apêndice A. 86 87 Chafer, 3:100; Lenski, 257-258. O termo hebraico kipper (no piel) denota a idéia de expiação do pecado pela cobertura do pecado ou do pecador – Berkhof, 375. 88 Teixeira, 207; Everett F. Harrison, “Romans”, The Expositor’s Bible Commentary (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1984), 10:43; Lloyd-Jones, 67-68; Vincent, 3:47. Ver Barnhouse, God’s Remedy, 3:114. 89 Vincent, 3:47. 190 Teorias da propiciação Quanto à compreensão do tema da propiciação, os teólogos estão divididos, basicamente, entre dois principais pontos de vista. 1. Propiciação equivale a expiação. Para alguns teólogos o significado bíblico de propiciação é praticamente o mesmo de expiação.90 São basicamente duas as razões pelas quais muitos teólogos preferem traduzir a palavra hilastērion (em Rm 3:25) por expiação e não por propiciação: (1) Embora o emprego de propiciação pelos autores pagãos sempre implique na sugestão de aplacamento ou apaziguamento de deuses irados, seu uso na LXX é despojado desta idéia e o mesmo deve-se entender dos escritos de Paulo, que se baseou nessa versão. (2) Alegam também que a completa noção da ira de Deus está equivocada e deve ser totalmente rejeitada, chegando a ser quase blasfema, porque retrata a Deus como um monstro. Alguns a consideram como uma idéia judaica de Deus.91 Por isso, afirmam que traduzir a palavra hilastērion por propiciação é um lamentável erro.92 Dentre os que raciocinam desse modo, há aqueles que interpretam a ira de Deus como sendo nada mais do que a inevitável consequência do pecado, de praticar o erro. É o sofrimento automático e inevitável que se segue ao erro. A obediência ou não às leis morais teria seus efeitos do mesmo modo como ocorre com as leis da natureza. Assim, o fogo queimará, a água escoará para baixo, o ar poluído intoxicará. Se o homem desafiar estas leis sofrerá as consequências.93 90 Allan Richardson, An Introduction to the Theology of the New Testament (New York / Evanston / London: Harper & Row, Publishers, 1958), 223-224; Greathouse, 8:92; Ladd, 402; Pohl, 76. 91 Lloyd-Jones, 72. 92 Lenski, 257. 93 J. Barmby e J. Radford Thomson, “The Epistle of Paul to the Romans”, The Pulpit Commentary, 22 vols. (Grand Rapids, MI: Eerdmans, reimpressão 1977), 18:30. Ver Edward A. McDowell Jr., A soberania de Deus na historia: a mensagem e significado do Apocalipse, traduzido por Robert G. Bratcher e Werner Kaschel, 2ª ed. (Rio de Janeiro: JUERP, 1976), 136. 191 Portanto, para o homem reconciliar-se com Deus, nada precisa ser feito do lado de Deus. Ele sempre perdoa. Tudo que é necessário é que o homem, que está cegado pelo pecado, abra os olhos e perceba que Deus é amor. Tudo que é necessário é a expiação: o processo pelo qual a culpa do pecado é cancelada e o pecador é purificado dela. Assim em suas traduções, optam por expiação, em vez de propiciação.94 Declaram que no caso dos verbos análogos, o sentido dominante do AT não é propiciação, significando alguma oferenda para aplacar ou apaziguar a ira, mas expiação ou reconciliação, através da cobertura, obtendo assim livramento do pecado, que permanecera entre Deus e o homem. A força da ideia está sobre o pecado ou impureza, não sobre a parte ofendida. Por isso o frequente intercâmbio com “santificar” e “purificar” (Ez 43:26; Êx 30:10).95 Assim, embora concordem em que a morte de Cristo era essencial para nossa salvação, rejeitam o pensamento de que ela tivesse como propósito abrandar a ira de Deus.96 A ideia não é de conciliação de um Deus irado para com a humanidade pecadora, mas de uma expiação por um Deus misericordioso através da morte expiatória de Seu Filho.97 O mais destacado defensor dessa opinião foi C. H. Dodd. Segundo ele, quando os tradutores da LXX usaram o verbo hilaskesthai (“para fazer propiciação”) e seus derivados para traduzir a raiz hebraica “kipper”, não vincularam à palavra o sentido clássico de 94 Lloyd-Jones, 73. 95 Vincent, 3:43-45. Para os defensores desta ideia, o objeto da propiciação não é Deus, mas a ofensa e, portanto, a intenção da propiciação não é aplacar a ira, mas mudar o caráter daquele que se afastou de Deus. I. Howard Marshall, Las cartas de Juan (Buenos Aires e Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1991), 113. 96 Venden, 122; A. G. Hebert, “Atone, Atonement”, em A Theological Wordbook of the Bible, ed. Alan Richardson (New York: Macmillan, 1951), 26; Erickson, 810. 97 Davidson e Martin, 1022; Russell Norman Champlin, “Epístola aos Romanos”, O Novo Testamento interpretado, 6 vols. (São Paulo: Hagnos, reimpressão 1998), 3:623; Joseph A. Fitzmyer, “Carta a los Romanos”, Comentario bíblico San Jerônimo, traducido por Alfonso de la Fuente Adanez e outros, 4 vols. (Madrid: Ediciones Cristiandad, reimpressão 1986), 4:115; Lloyd-Jones, 73. 192 propiciação, mas deram-lhe a força de expiação, a qual está envolvida na remoção da culpa do pecado. Para ele, quando o sujeito é divino, o conceito é o de perdão.98 2. Propiciação é distinta de expiação. Há, todavia, outros eruditos, para quem a idéia de propiciação é diferente do que a de expiação.99 Segundo estes, há quatro elementos essenciais em qualquer propiciação: (1) uma ofensa para ser afastada; (2) uma pessoa ofendida que necessita ser pacificada; (3) uma pessoa culpada de ofensa; e (4) um sacrifício ou algum outro meio para fazer expiação pela ofensa.100 Hilastērion é um substantivo associado aos verbos exilaskomai e hilaskomai. Em toda literatura grega, exilaskomai significa propiciar ou acalmar uma pessoa que foi ofendida.101 Em autores judeus helenísticos não bíblicos, como Josefo e Filo, hilaskomai sempre significa “propiciar”.102 E embora o Deus da Bíblia seja tão diferente dos deuses pagãos – sendo único, soberano absoluto do universo, imutável, que aborrece o mal em todas as suas formas, e fonte de todo o bem – a ideia de apaziguar sua ira por meio de ofertas, pode também ser percebida nas Escrituras.103 No AT ela pode ser encontrada nos rituais para a expiação do pecado e da culpa – onde o sangue dos sacrifícios era interposto entre Deus e o pecador de modo a afastar deste a ira de Deus (Jó 42:7-9; 2Sm 24:1-25; 2Cr 29:1-24) – e em narrativas, como aquela em que Arão, usando de incenso, fez expiação 98 Ver C. H. Dodd, The Bible and the Greeks (London: Hodder and Stoughton, 1935), 82-95, onde a terminologia hebraica para a palavra expiação e os equivalentes gregos na LXX são analisados. Harrison, 10:44. Ver também Ladd, 402. Essa idéia de Dodd contrasta com a de apaziguamento da ira, que é inerente ao conceito de propiciação. 99 Lloyd-Jones, 78. 100 Ibid., 70, 78. 101 Ladd, 402; Marshall, 113; Glenn W. Barker, “1 John”, The Expositor’s Bible Commentary, editado por Frank E. Gaebelein, 12 vols. (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1984), 12:314; Stephen S. Smalley, “1, 2, 3 John”, Word Biblical Commentary, editado por David A. Hubbard e Glenn W. Barker (Dallas, Texas: Words Books, Publishers, 1988), 51:38-39. 102 Ladd, 429-430. 103 Packer, 164. 193 pelo povo de Israel, a fim de deter a praga que Deus havia enviado sobre eles (Lv 4:1-6; 16; Nm 16:41-50).104 Na LXX, há três passagens em que exilaskomai refere-se à propiciação ou apaziguamento de Deus (Zc 7:2; 8:22; Ml 1:9).105 Nela os termos hilaskomai e hilasmos são termos de caráter objetivo e empregados num sentido associado: o verbo significando “tornar propício”, e o substantivo tendo a conotação de “apaziguamento” ou “meio de apaziguar”. No NT encontra-se o mesmo uso de hilaskomai e hilasmos, 106 enquanto que exilaskomai nunca é usado com a palavra “pecado” como seu objeto direto. De igual maneira, na literatura dos pais apostólicos, hilaskomai sempre significa “propiciar”. 107 Desse modo, enquanto que expiação “denota a cobertura, o afastamento, ou a extinção do pecado de modo que ele não mais se constitui numa barreira a uma comunhão amigável entre o homem e Deus”, propiciação significa tudo isso mais o apaziguamento da ira de Deus.108 Portanto, o objeto da propiciação inclui a ira de Deus e não apenas o pecado dos 104 Berkhof, 375; Hodge, 856. “O sistema sacrifical dos hebreus tinha por finalidade reconhecer o pecado e aplacar a Deus com respeito ao mesmo.” EBTF, ver “satisfação”. No AT encontramos algumas passagens em que kipper [e hilaskomai] é empregado também em relação à propiciação da ira dos homens. Desse modo, vemos Jacó buscando aplacar Esaú com presentes para, assim, obter seu favor (Gn 32:20) e o sábio que consegue apaziguar o furor do rei (Pv 16:14). Stott, 153. 105 Ladd, 429-430. 106 Berkhof, 375. 107 Ladd, 429-430. Quando hilasmos e seus cognatos são empregados, está frequentemente presente a idéia de aplacar a ira da parte injuriada. Desse modo, quando aplicados a Deus, possuem caráter objetivo, de modo que Deus é visto mais como o objeto da oferenda do que o seu originador. Smalley, 51:39. 108 Packer, 165-166; Erickson, 811. Comentando o texto de Rm 3:25, onde Paulo apresenta a Cristo como propiciação, Holbrook, seguindo o pensamento de Leon Morris [em The Atonement, its Meaning in Significance (Leicester, Inglaterra: Inter Varsity Press, 1983), 151-176] declara que “o substantivo hilastērion, ‘aquilo que propicia’, pertence ao grupo semântico hilaskomai, que significa ‘propiciar’. Versões modernas, influenciadas pelos estudos de certos eruditos, tendem a traduzir este grupo semântico como ‘expiar’, ‘expiação’. ‘Os dois conceitos são, na verdade, muito diferentes. Propiciar significa aplacar a ira, enquanto expiar é corrigir erros. Propiciação é uma palavra pessoal: propicia-se uma pessoa. Expiação é uma palavra impessoal; expia-se pecado ou crime.’[...] “A morte de Cristo jamais foi o aplacamento da ira do Pai na forma como os pagãos aplacam seus deuses. Ao contrário, Sua morte foi o meio pelo qual o Deus triuno decidiu aplacar ou sufocar a ‘ira’divina de uma forma coerente com Sua santidade e que, ao mesmo tempo, tornasse possível a salvação de pecadores arrependidos.” Holbrook, 90. 194 homens.109 Enquanto a expiação trata com o pecado humano, a propiciação trata também com a ira, a divina reação ao pecado, 110 enquanto que a expiação é uma referência ao sacrifício de Cristo que removeu a culpa do pecado do homem, a propiciação é uma alusão indicativa de que através da morte de Cristo a ira de Deus é vitoriosa e sua justiça é demonstrada.111 “O hilastērion que Deus providenciou em Cristo não só retira a impiedade e injustica dos homens, como também, ao mesmo tempo, afasta a ira ou retribuição que é o resultado inevitável dessas atitudes e ações num universo moral”. 112 A propiciação contempla a parte ofendida, que necessita ser apaziguada, e nossa responsabilidade para com a ira de Deus e é a provisão da graça pelo qual nós podemos ser libertos dessa ira113 de maneira que Deus se torne propício ou com disposição favorável a nós.114 Logo, embora o derramamento do sangue de Cristo tenha sido a revelação direta do amor do Pai para conosco, foi também o impedimento direto da ira do Pai contra nós.115 109 Ladd, 404. 110 Allen, 1323. 111 Greathouse, 8:92. As idéias de expiação e propiciação não se excluem mutuamente. Não há contradição, mas complementação. Smalley, 51:40; Barker, 12:314. “... a satisfação dada por Cristo envolve tanto a propiciação quanto a expiação: é um aplacamento e é uma substituição”. EBTF, ver “satisfação”. 112 F. F. Bruce, Romanos: Introdução e comentário, 2ª ed. (São Paulo: Vida Nova e Mundo Cristão, 1981), 87. 113 Murray, 1:116; Gordon H. Clark, “Romans”, The Biblical Expositor, editado por Carl F. H. Henry, 3 vols. (Philadelphia: A. J. Holman Company, 1960), 3:243; Ladd, 402. Os homens estavam sentenciados a encontrar a ira de Deus no dia do juízo (Rm 2:5). Mas Deus interveio do céu e o juízo final foi antecipado no Calvário. Ali o pecado foi julgado e o livramento tornou-se disponível para aquele que crê. Desse modo, em Cristo, o crente está protegido da ira de Deus e de sua força destrutiva pelo poder propiciatório da crucifixão (Rm 3:25). Allen, 1318; B. T. Dahlberg, “Wrath of God”, The Interpreter’s Dictionary of the Bible, editador por George Arthur Buttrick, 4 vols. (Nashville, TN: Abington Press, 1962), 4:907; Stählin, 5:446; Maclaren, 8:50-51. 114 115 Grudem, 471. Packer, 167-168; Lloyd-Jones, 70; Erickson, 809 e 811. Como John Murray declarou, o conceito de que “o irado Deus é amoroso... é profundamente verdadeiro.” John Murray, Redemption: Accomplished and Applied ( Grand Rapids: Eerdmans, 1955), 31. Para outros teólogos, o conceito cristão de propiciação envolve um afastamento da ira de Deus que é transferida do pecador para Cristo, embora permaneça o fato de que “Deus prova o seu próprio amor para conosco pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores” (Rm 5:8) e que a dádiva de Cristo é derivada de seu amor para conosco (Jo 3:16). Dederen, 63. 195 Leon Morris, empregando os mesmos materiais que Dodd, chegou a outros resultados, que podem ser resumidos em duas observações, ambas atinentes ao contexto: (1) Dodd ignorou o fato de que o verbo hilaskesthai, o qual ele verteu por “perdoar”, em referência a Deus, é usado repetidamente em situações em que a ira de Deus é um fator, o que indica que a propiciação está realmente envolvida. (2) Uma vez que a primeira secção principal da epístola aos Rm (1:18-3:20) está permeada com o conceito da ira de Deus (1:18; 2:5, 8; 3:5) juntamente com a ênfase no julgamento, é de se esperar que Paulo, ao dar uma declaração do remédio para o pecado e injustiça do homem, indique que a ira de Deus foi satisfeita por sua própria provisão. E é isso que ele faz ao empregar o termo hilastērion em 3:21-26.116 Além disso, uma análise da morte sacrifical dos animais no AT evidencia quatro realidades: (1) Seu propósito era tornar Deus propício. Ela não afetava as pessoas, mas a Deus. (2) A propiciação era assegurada pela expiação ou o cancelamento da culpa do pecador. O pecado é apagado, cancelado, e, portanto, o pecador pode ir a Deus que está agora propiciado. Expiação necessariamente leva à propiciação. (3) A propiciação foi efetuada pela punição vicária da vítima que substituía o ofensor. (4) O efeito das ofertas de sacrifício era o perdão do ofensor e sua restauração ao favor e à amizade de Deus.117 A intenção divina é promover a reconciliação entre Deus e o homem. Para tanto é necessário que, em primeiro lugar, Deus seja reconciliado com o pecador e, depois, que o pecador se reconcilie com Deus. A reconciliação de Deus com o homem acontece quando 116 Leon Morrris, The Apostolic Preaching of the Cross (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1955), 138, 169; Harrison, 10:44. Outro estudo independente, feito por David Hill, chegou a conclusões muito semelhantes às de Morris. David Hill, Greek Words and Hebrew Meanings: Studies in the Semantics of Soteriological terms (Cambridge: Cambridge University Press, 1967), 23-48. Para uma mais extensiva refutação da posição de Dodd, ver Roger Nicole, “C. H. Dodd and the Doctrine of Propiciation”, Westminster Theological Journal, 17 (1955): 117-157. 117 Lloyd-Jones, 88-89. 196 sua ira é propiciada, o que ocorreu quando Cristo, mediante sua morte na cruz, removeu a necessidade do castigo dos pecadores – porque ele fora castigado em lugar deles – e tornou possível a Deus, legalmente, manifestar para com eles seu amor, perdão e salvação.118 Desse modo, a expiação efetuou uma importante mudança, não no ser interior de Deus, pois ele é imutável, mas na sua relação com os pecadores, que eram objetos da sua ira judicial. Pela cobertura sacrifical do pecado deles essa ira foi desviada e desse modo removidos os obstáculos à manifestação de seu amor redentor, o que resultou no oferecimento do perdão, da reconciliação e da santificação e na satisfação da justiça de Deus e das exigências de sua lei. Agora, com justiça, Deus podia perdoar e salvar em lugar de enviar seus juízos.119 Entretando, ainda deve ocorrer a reconciliação do pecador com Deus.120 Assim, o Deus reconciliado opera de tal modo pelo Espírito Santo no coração do pecador que este, pondo de lado sua alienação, participa dos benefícios da perfeita expiação de Cristo e se reconcilia com Deus.121 No pensamento paulino o homem é alienado de Deus pelo pecado e Deus é alienado do homem pela ira. É na morte substitutiva de Cristo que o pecado é vencido e a ira desviada, de 118 Berkhof, 374; Hodge, 868; Chafer, 3:123; Ladd, 403. O principal propósito da morte de Cristo foi satisfazer as exigências da santidade, da justiça e da lei de Deus, removendo assim, o obstáculo ao perdão, à reconciliação e à herança eterna, a fim de que Deus pudesse ser justo ao justificar os ímpios. Hodge, 319, 844, 849, 851-852; Oden, 2:349; A. W. Tozer, Mais perto de Deus (São Paulo: Mundo Cristão, 1980), 105; Owen, 12: 419-551; Lloyd-Jones, 90-92; Strong, 444. “Em Rm 5.10 e 11.28 os pecadores são chamados ‘inimigos de Deus’ (echtroi) num sentido passivo, indicando, não que são hostis a Deus, mas que são objetos do desprazer de Deus. Na primeira passagem este sentido é exigido por sua ligação com o versículo anterior; na última, pelo fato de que echtroi está em contraste com agapetoi, que não significa ‘os que amam a Deus’, mas, sim, ‘amados de Deus’.... Em Rm 5.10, 11 o termo ‘reconciliação’ só pode ser entendido num sentido objetivo, pois, (1) dela se diz que foi efetuada pela morte de Cristo, ao passo que a reconciliação é resultado da obra do Espírito; (2) foi efetuada enquanto ainda éramos inimigos, isto é, enquanto ainda éramos objetos da ira de Deus; e (3) é descrita no versículo 11 como uma coisa objetiva que recebemos.” Berkhof, 344. 119 Ibid., 393. Por essa razão pode ser dito que em ambos os testamentos a obra de reconciliação efetuada por Cristo envolve o tratamento da ira de Deus. Ladd, 397-398. 120 A razão de este propósito ser mais destacado nas Escrituras reside em que o primeiro é um fato consumado e este não. Berkhof, 374. 121 Ibid. 197 modo que Deus possa olhar para o homem sem desprazer, e o homem olhar para Deus sem temor. O pecado é expiado, e Deus propiciado.122 Portanto, os conceitos de expiação e propiciação nos ajudam a compreender como a ira divina pode ser afastada123 e como somos reconciliados com Deus através da ação do próprio Deus (2Co 5:19; Rm 5:10; Cl 1: 21-22; Ef 2:15-16).124 A justiça de Deus revelada através da propiciação Existem três fatos sobre a propiciação, conforme a Bíblia: (1) Deus mesmo é o ofertante, aquele que realiza a propiciação (Jó 42:7-8; Is 60:10; Os 6:1). Não é o homem, como ocorre em todas as religiões pagãs. Entre os pagãos a propiciação era uma maneira jeitosa de o indivíduo, por si mesmo, mudar o pensamento de uma divindade, ou seja, influenciá-la para que lhe fosse favorável. Todavia, na religião da Bíblia, a iniciativa da reconciliação entre Deus e o homem e a oferta para apaziguar sua ira são obras de Deus125 (2Co 5:18-19). O sacrifício de Cristo não tinha como objetivo despertar amor no coração de Deus, mas manifestar o amor que lá se encontrava.126 (2) Cristo foi o sacrifício. Foi o 122 David F. Wells, Search for Salvation (Downers Grove, IL: Inter Varsity Press, 1978), 29. 123 Dederen, 63. 124 Ladd, 421. Ver Becker, 510. 125 Packer, 168. Também não foi um Filho misericordioso que tentou mudar o coração de um Pai cruel, através de sua morte, antes, “Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho . . .” (Jo 3;16). Ibid., 168-169. Michelsen, 253; Lloyd-Jones, 78; Erickson, 817-818; Chafer, 3:100; Richardson, 223-224; Murray, “The Epistle to the Romans”, 1:117-118; Greathouse, 8:92; Robertson, 465; Dederen, 63; H. A. Ironside, Lectures on the Epistle to the Romans, 22a. ed. (Neptune, NJ: Loizeaux Brothers, Inc., 1978), 52; Alexander Ross, The Epistles of John, The New International Commentary on the New Testament (Grand Rapids, MI: Eerdmans, reimpressão 1975), 151. A revelação das Escrituras sobre a propiciação é a de uma doutrina pura, à parte dos desvirtuamentos comuns à idéia de propiciação como se encontra entre os animistas e pagãos. Stott, 151. “... a insistência de Paulo em que é Deus, e não o homem pecador, que providenciou este hilastērion impede que seja mal compreendido. De modo semelhante, o Velho Testamento atribui a iniciativa à graça de Deus, nesta questão: ‘porque a vida da carne está no sangue. Eu vo-lo tenho dado sobre o altar, para fazer expiação (heb. Kipper; LXX exilaskomai) pelas vossas almas’” [Lv 17:11]. F. F. Bruce, Romanos: Introdução e comentário, 86-87. 126 “Propitiation”, Seventh-Day Adventist Bible Commentary, 6:506. No texto de 1 Jo 2:1-2, Cristo é apresentado como advogado e como propiciação e estes dois termos parecem contrastar Jesus com Deus. Parece que Cristo está ativamente empenhado por nós, ao passo que Deus está relutante e precisa ser 198 derramamento do seu sangue que alcançou a propiciação, extinguindo a ira de Deus e nos redimindo da morte, porque ocupou o nosso lugar como substituto e representante.127 (3) A propiciação demonstra a justiça de Deus. A propiciação na cruz evidenciou não apenas o perdão de Deus, mas também a justiça como fundamento para esse mesmo perdão.128 Em Cristo, Deus satisfez suas próprias exigências santas, desviando do pecador a ira justa que ele merecia e voltando-a contra si mesmo. Pelo sacrifício de Cristo, Deus satisfez, ou propiciou sua própria ira.129 Consequentemente, Deus não mais necessita de propiciação antes que possa perdoar, porque esta propiciação já foi feita por Cristo em prol de todo pecador.130 A idéia de propiciação, conforme aparece em Romanos, é a de que todos os homens, estando “debaixo do pecado” (Rm 3:9), “permanecem expostos à ira de Deus tanto na sua manifestação presente como na futura”. Contudo, por causa da fé em Cristo – “a quem Deus propôs como propiciação [...] pelo seu sangue” – “seremos por ele salvos da ira” (5:9). Nós que éramos ímpios (4:5) e inimigos de Deus (5:10), fomos reconciliados com ele (5:10) e temos paz com ele (5:1). Doravante, ele é por nós em todas as situações (8:31).131 Além disso, permanece a realidade de que os benefícios da propiciação são tão extensivos quanto persuadido. Todavia, essa é uma conclusão falsa, pois em 1 Jo 4:9-10 é visto que foi o Pai, por causa de seu amor, que enviou a Cristo para termos vida por seu intermédio. Marshall, 115; Stott, 136. 127 Packer, 170; Michelsen, 253; Allen, 1323; Grudem, 471; Ross, 153; Smalley, 51:39. 128 Packer, 171; Michelsen, 253; Ladd, 418. 129 David S. Dockery, ed., Manual bíblico Vida Nova, traduzido por Lucy Yamakami e outros (São Paulo: Vida Nova, 2001), 717. Para uma argumentação sobre a nossa responsabilidade e merecimento de punição, devido aos nossos pecados, ver Stott, 89-92. 130 Richardson, 223-224. 131 Packer, 167. 199 o pecado: eles são oferecidos ao mundo inteiro (1Jo 2:2).132 Portanto, o sacrifício de Cristo é necessário a todos e suficiente para todos.133 Há quem considere Rm 3:25-26 como o texto mais importante das Escrituras.134 Nele, Paulo declara que “Deus propôs”, i.e., “manifestou” a Cristo como propiciação. A morte de Cristo na cruz não foi um acidente, antes, uma obra de Deus, algo deliberado, com um propósito definido (At 2:23). A expressão também indica que foi um ato público, para ser visto e contemplado. 135 Deus precisava ser visto publicamente não apenas como justificador, mas, também, como justo.136 Desde o Dilúvio ele nunca tratou a humanidade, má e desobediente, como ela merece. Antes, continuou “fazendo o bem, dando-vos do céu, chuvas e estações frutíferas, enchendo os vossos corações de fartura e alegria” (At 14:17). Então, a justiça de Deus não podia ser vista, porque o mal não era punido. Mas Deus, em sua paciência, estava apenas adiando o julgamento. No devido tempo, o juízo foi realizado, e “os pecados que foram anteriormente cometidos” (v. 26), sob a velha aliança nos tempos do AT, foram punidos, mas na pessoa de Cristo que, como o Cordeiro de Deus, nos substituiu.137 A economia divina, com relação aos pecados cometidos antes da cruz, foi a de cobrir – como mostra a raiz hebraica kaphar, traduzida como “expiação” – o que foi representado pelos muitos sacrifícios oferecidos desde o surgimento do pecado. Deus agira com justiça baseando-se na futura morte de Cristo. Assim, do ponto de vista de Deus, o 132 Ross, 151 e 153. 133 Barker, 12:314. 134 Lloyd-Jones, 94-95. 135 Ibid., 67-68, 97. 136 Packer, 171. 137 Ibid., 171-172; Lloyd-Jones, 100. 200 pecado fora coberto pelos sacrifícios que ele próprio estipulara, mas não retirado. Referindo-se aos pecados cometidos antes da cruz, a epístola aos Romanos declara que Deus, em sua tolerância, os havia “deixado impunes” [páresis] (Rm 3:25). Diferente de aphesis, que indica um perdão pleno, paresis sugere não mais do que a procrastinação do juízo e revela que Deus pôs de lado o pecado, temporariamente, em vista dos sacrifícios. Mas quando o verdadeiro Cordeiro de Deus foi sacrificado “já não mais resta sacrifício pelos pecados” (Hb 10:26). Sua morte, em cumprimento do que fora prefigurado, possibilitou que os pecados fossem tirados, pelo justo juízo, enquanto ao mesmo tempo, demonstrou que Deus fora justo em procrastinar seu juízo sobre aqueles pecados (Rm 3: 25). 138 Assim, na sexta-feira da paixão, tendo acabada a tolerância Divina, ele atacou radicalmente o pecado.139 O ponto é que Deus fizera algo no passado e que agora propôs a Cristo para fazer algo em relação ao que ele fizera. 140 Desse modo, Deus pode ser, simultaneamente, justo e justificador. A obra sacerdotal de Cristo A obra de Cristo como libertador da ira de Deus precisa ser compreendida a partir do ensino das escrituras do AT, onde se percebe a importante atividade dos intercessores. Deus recebia a intercessão de seus servos141 (Is 1:16-20; Jr 4:4; 36:7; cf. Dn 9:16) que rogavam pelo afastamento ou mitigação de sua ira. Assim, Jó orou por seus amigos (Jó 42:7 138 Chafer, 3:107-109; Hodge, 863. “Os anjos não caídos e os habitantes de outros mundos podem ver agora, na cruz, que o perdão de Deus para os pecadores arrependidos durante os milhares de anos entre Adão e Cristo não se baseava em sangue sacrifical, mas na morte expiatória do Redentor ainda por vir – prefigurado no tipo animal.” Holbrook, 89-90. 139 Pohl, 76. 140 Lloyd-Jones, 100. 141 W. C. Robinson, “Wrath of God”, Evangelical Dictionary of Theology, editado por Walter A. Elwell (Grand Rapids: Baker book House, 9a reimpressão, 1992), 1196; Chafer, 3: 69; B. J. Fichtner, “Orgê”, TDNT, 5:407. 201 ss.); Moisés intercedeu pelo povo apostatado (Êx 32:11-14, 31-35; Nm 11:1-2.; 14:11-19; Dt 9:19; Sl 106:23) ou por indivíduos culpados (Nm 12:13; Dt 9:20); Amós orou por Israel (Am 7:2, 5) e Jeremias por Judá (Jr 14:7-9; 18:20). Essas intercessões eram ouvidas por Deus e, como resultado, a ira podia ser limitada em sua obra (Nm 14; Dt 9) ou completamente desfeita (Nm 11; 2Sm 24). Entretanto, houve ocasiões em que foi tamanha a rebeldia que Deus não mais ouviu a intercessão (Am 7:8; 8:2; Ez 14:14) ou mesmo proibiu seu servo de fazê-la (Jr 7:16; 14:11). Nesses casos, nada podia impedir a ira, e ela era executada implacavelmente e irresistivelmente (Ez 8:18).142 O NT mantém a convicção de que a ira de Deus é uma realidade e que seu juízo paira ameaçador sobre os homens (2Co 5:10) e, com igual vigor, assevera que é admissível o escape desta ira (Rm 5:9; Ef 2:1-10; 1Ts 1:10)143 que, todavia, só é possível em Cristo, pois ele é “o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo!” (Jo 1:29).144 A finalidade de sua vinda era morrer e mediante a morte satisfazer a ira de Deus contra nossos pecados,145 o que teve um efeito retroativo para aqueles que morreram antes da cruz, salvando, como que a crédito, aqueles que, nessa época, depositaram sua confiança em Deus.146 É importante notar que em nenhum outro lugar do NT o aspecto sacerdotal da obra de Cristo é ressaltado com tanto impacto como na epístola aos Hebreus.147 Seu tema central 142 Ibid., 406; Dicionário bíblico, ed. 1984, ver “Ira”. 143 Rudolf Bultmann, Theology of the New Testament, 2 vols. (New York: Charles Scribner’s Sons, s.d.), 1:288; Hahn, H.- Chr, “Ira”, Diccionario teologico del Nuevo Testamento, editado por Mario Sala e Araceli Herrera, traduzido por Manuel Balash e outros, 2ª ed., 2 vols. (Salamanca: Ediciones Sigueme, 1980), 2:361-362. 144 Warren W. Wiersbe, “Hebreus”, Comentário bíblico expositivo, 6 vols. (Santo André: Geográfica Editora, 2006), 6:402. 145 Henrichsen, 105. 146 Ibid., 107. 147 Donald Guthrie, Hebreus: Introdução e comentário, traduzido por Gordon Chown (São Paulo: Vida Nova e Mundo Cristão, 1984), 50. 202 é o sacerdócio de Cristo e o que ele faz no céu em favor de seu povo148 e nela, a pessoa e a obra de Cristo são comparados com o sistema levítico do AT.149 Além disso, o escritor de Hebreus é o único do NT que chama a Jesus de sumo sacerdote. Por tudo isso, a epístola aos Hebreus “representa uma verdadeira chave de todo o AT e NT”.150 Em Hebreus se percebe que, desde o AT, o sacrifício sempre envolvia duas ideias: o derramamento de sangue e a mediação de sangue, i.e., o sacrifício e sua aplicação.151 Os sacrifícios não eram válidos, e não havia perdão, até que um sacerdote atuasse aplicando o sangue – os méritos do sacrifício – em favor do pecador arrependido.152 Por isso, a obra sacrifical de Cristo na terra requer o seu serviço no santuário celestial. Ambas são partes complementares da tarefa sacerdotal do salvador.153 Seu sacrifício, feito de uma vez por todas (Hb 9:11-14, 24-28), “permitiu a purificação do pecado à medida que Cristo realiza seu ministério sacerdotal, intercedendo por nós” (Hb 2:17, 7:22-25; 9:15).154 Fica evidente que a salvação do pecado – aquilo que os muitos sacrifícios de animais (10:4) 155 e os 148 Wiersbe, 6:374; Guthrie, 89. 149 Walter A. Henrichsen, Depois do sacrifício, traduzido por Luiz Aparecido Caruso (Deerfield, FL: Vida, 2ª impressão, 1990), 11. 150 Fritz Laubach, Carta aos hebreus: Comentário esperança, traduzido por Werner Fuchs (Curitiba: Editora Evangélica Esperança, 2000), 28. Frank B. Holbrook, A luz de Hebreus: Intercessão, expiação e juízo no santuário celestial, Santuário e profecias apocalípticas, editado por Frank B. Holbrook, vol. 4 (Engenheiro Coelho, SP: Unaspress, 2008),7. 151 152 Idem, O sacerdócio expiatório de Jesus Cristo, 114. 153 Ibid., 115; Berkhof, 368. 154 Herbert Kiesler, “Uma exegese de passagens selecionadas”, em A luz de Hebreus: Intercessão, expiação e juízo no santuário celestial, 65; William G. Johnsson, “Alusões ao dia da expiação”, em A luz de Hebreus: Intercessão, expiação e juízo no santuário celestial, 112. 155 Ibid. 203 muitos dias de expiação não puderam realizar – foi alcançada no Calvário, 156 que é o antítipo de todos os sacrifícios do AT.157 Enquanto que o sacrifício de Cristo na cruz foi expiatório e provido para todos os homens (1Jo 2:2), é mediante seu ministério sacerdotal no Céu que esse sacrifício é aplicado aquele que tem fé.158 Desse modo, a salvação, em Hebreus, é apresentada como uma atividade contínua: Cristo nos salva pelo sacrifício de si mesmo e sustenta a nossa salvação pela sua intercessão.159 Enquanto que seu sacrifício foi único, de uma vez por todas (Hb 9:26), seu sacerdócio é perpétuo (Hb 7:25; cf. Rm 8:34).160 Porque não somos perfeitos, não temos acesso direto a Deus e precisamos de um sacerdote que ofereça sacrifícios a Deus em propiciação por nossos pecados161 e interceda por nós,162 e este é Cristo. Ele não apenas ofereceu na terra o sacrifício que o sumo sacerdote devia oferecer, mas, hoje, serve a Deus como sumo sacerdote celestial.163 Ele é a ponte que cobre o vão que há entre Deus e o homem,164 aquele que ouve a confissão de pecados165 e intercede 156 Idem, 113; Richard M. Davidson, “Tipologia no livro de Hebreus”, em A luz de Hebreus: Intercessão, expiação e juízo no santuário celestial, 166. 157 Johnsson, “Contaminação / purificação e Hebreus 9:23”, em A luz de Hebreus: Intercessão, expiação e juízo no santuário celestial, 93. 158 Knigth, Questões sobre doutrinas, 252, 259. 159 Charles A. Trentham, “Hebreus”, Comentário bíblico Broadman, traduzido por Adiel Almeida de Oliveira, 12 vols. (Rio de Janeiro: JUERP, 1984), 12:73. 160 Laubach, 91, 154; Henrichsen , 85; Guthrie, 51. Ver J. Sidlow Baxter, Examinai as Escrituras: Atos a Apocalipse, traduzido por Neyd Siqueira, 2ª ed. (São Paulo: Vida Nova, 1995), 6:292. 161 Henrichsen, 81. 162 Hodge, 826. 163 Laubach, 84. Ele foi ao mesmo tempo sacrifício e sumo sacerdote. Lloyd-Jones, 90-92. E é sua morte expiatória e propiciatória que possibilita seu ministério celestial de sumo sacerdote. Laubach, 17; Henrichsen, 49. 164 Ibid., 12. 165 Trentham, 12:54. 204 continuamente por nós. 166 Como mediador (Hb 8:6; 9:15; 12:24), torna realidade os propósitos salvadores de Deus para os homens, de modo que todo bem-estar espiritual nos é proporcionado por seu ofício intermediário.167 Dessa maneira, sua obra consumada na Terra e sua obra em processo no Céu são suficientes e eficazes para tratar de nossos pecados.168 Cristo – O Executor da Ira de Deus No grande plano da salvação elaborado por Deus, Cristo também aparece como executor da ira divina. Embora essa sua função não seja uma ênfase das Sagradas Escrituras, pode ser claramente percebida, especialmente no Apocalipse. A ira do Cordeiro Ao leitor do Apocalipse não deve surpreender que o texto apresente a ideia da ira de Cristo e que ela seja identificada como a ira do Cordeiro (Ap 6:16-17). Em primeiro lugar, porque neste livro a ira de Deus e do Cordeiro é um tema contínuo, descrito sob as figuras das trombetas e das taças 169 e, também, em razão de que é possível que João tenha mencionado o cordeiro, e não o leão (como em Ap 5:5), porque seu principal pensamento era a preservação dos santos de modo que a alusão ao Cordeiro seria uma lembrança daquele que tanto os amou que se sacrificou por eles170 e que, agora, os protegeria. 166 Henrichsen, 48. 167 EBTF, ver “Mediação (mediador)”. 168 Wiersbe, 6:402. 169 Alan F. Johnson, “Revelation”, The Zondervan NIV Bible Commentary, 2 vols. (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1994), 2:1163. 170 Harvey J. S. Blaney, “Revelation”, The Wesleyan Bible Commentary, 2a. ed., 6 vols. (Grand Rapids, MI: Eerdmans, reimpressão 1971), 6:479. 205 É muito importante notar que na primeira vez que o Apocalipse fala na ira de Deus, não pode fazê-lo sem mencionar Cristo – o Cordeiro.171 Em sua soberania Deus fez do homem um ser responsável e ao mesmo tempo estabeleceu que seu destino eterno estivesse vinculado à pessoa de Cristo. O homem se salva ou se perde em função de sua relação com Cristo. Não há outra opção. 172 O Apocalipse apresenta a alternativa: ou o sangue do Cordeiro (7:14) ou a ira do Cordeiro (6:17). Para quem rejeitar o amor de Deus e recusar o sangue de Cristo, só restará o julgamento e a ira do Cordeiro (5:6, 9; cf. 7:10, 13-17; 13:1,8; 14:9-11).173 A vontade do Pai e do filho é uma para a salvação do mundo, mas também no julgamento daqueles que rejeitam a salvação (7:10; 6:16-17). 174 Se Cristo retratasse somente os atributos pacíficos de Deus, ele não seria a plena revelação de Deus, mas apenas uma revelação parcial. Como Filho de Deus e logos de Deus que é, deve manifestar também a justiça e a indignação de Deus.175 Essa ira do Cordeiro não é uma interrupção do amor, mas uma fase do amor. Há uma ira que é incompatível com a ausência do amor, a qual não pode existir sem que o amor tenha existido antes dela. É a ira do amor mesmo,176 a 171 Pierre Pringent, O Apocalypse, traduzido por Luiz João Baraúna (São Paulo: Loyola, 1993), 138. 172 Blaney, 6:503. 173 George Eldon Ladd, Apocalipse: Introdução e comentário, 2ª ed. (São Paulo: Vida Nova e mundo Cristão, 1982), 192; Pringent, 138; Ray Summers, A mensagem do Apocalipse: digno é o cordeiro, 5ª ed. (Rio de Janeiro: JUERP, 1986), 140. 174 Walter A. Elwell, ed., Baker Commentary on the Bible (Grand Rapids: Baker Book, 1989), 1210; Philip Edgcumbe Hughes, The Book of the Revelation a Commentary (Leicester, U.K.: Inter-Varsity Press e Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1990), 92; “Ira”, O Novo Testamento interpretado, 6:474. Ver também Hans K. LaRondelle, “Armagedom: Sixth and Seventh Plagues”, em Symposium on Revelation, 2 vols., Daniel & Revelation Committee Series, ed. Frank B. Holbrook (Silver Spring, MD: Biblical Research Institute, 1992), 2:383. 175 Joseph S. Exell, “Revelation”, The Biblical Illustrator, 23 vols. (Grand Rapids, MI: Backer Book House, s.d.), 23:349-350. 176 Ibid., 23:348. 206 ira do amor desprezado, rejeitado apesar de todo seu sacrifício e empenho em prol do pecador.177 A ira do Rei guerreiro Um dos grandes temas do Apocalipse é o do grande conflito entre Deus e Satanás, que atinge seu clímax nos últimos capítulos. A visão relatada em Ap 19:11-21 pertence ao ciclo do grande julgamento, iniciado no cap. 17 e concluído no 20,178 onde pode ser visto o triunfo de Cristo sobre o Anticristo e seus aliados – reis e nações que colaboraram com ele – na batalha do Armagedom e, depois, sobre o próprio Satanás.179 Os vs. 11-15 são uma leitura cristológica da profecia de Is 63:1-6, que se refere a Deus, 180 e os vs. 17-21 descrevem a grande batalha com as imagens tiradas de Ez 39:17-20 que, em linguagem simbólica, expõem a destruição total e decisiva dos inimigos de Deus.181 Quase todas as palavras empregadas se referem às profecias do AT ou aos nomes que apontam para a pessoa e a obra do Messias. O propósito é demonstrar que Cristo tem o direito de julgar em virtude de sua divina natureza e que ele, como rei guerreiro e Palavra 177 Matthew Henry, “Apocalipsis”, Comentario exegético-devocional a toda la Bíblia, traduzido por Francisco Lacueva (Barcelona: CLIE, 1989), 11:409; Wiersbe, “Apocalipse”, 6:750. 178 Richard Lehmann, “The Two Suppers”, em Symposium on Revelation, 2:217. 179 Ladd, Apocalipse: Introdução e comentário, 190-191. Os poderes do mal são destruídos na ordem inversa de sua aparição. Primeiro surgiu o dragão, depois as duas bestas e, por fim, Babilônia. Agora, Babilônia á primeira ser destruída. Depois é a vez das duas bestas e, então, Satanás. R. C. H. Lenski, The Interpretation of John’s Revelation (Minneapolis, MN: Augsburb Publishing House, 1961), 547; Lehmann, 2:217-218. 180 Os Targuns de Is 63 e de Gn 49 onde há informações semelhantes, já aplicavam essas declarações ao Messias. Pringent, 346. 181 Ladd, Apocalipse: Introdução e comentário, 190-191. A natureza do gênero profético é tal que descreve eventos futuros como passados e presentes em razão da certeza de sua ocorrência. A mistura de passado, presente e futuro para retratar o futuro ocorre em qualquer lugar no Apocalipse e no neste contexto. G. K. Beale, The Book of Revelation: A Commentary on the Greek Text, The New International Greek Testament Commentary (Grand Rapids, MI: Eerdmans e Carlisle, U. K.: The Paternoster Press, 1999), 959. 207 eficaz, cumpre as profecias que anunciavam a vitória de Deus.182 “Deus é um Deus que julga e combate o mal e os maus, mas seu julgamento e seu combate têm um nome: Jesus Cristo”.183 Este é apontado como juiz, aquele que não é indiferente para com o mal, nem se esquece, nem é benigno para com ele, antes o combate.184 A posição desta cena, antes do casamento do cordeiro (cap. 21) tem bastante afinidade com o Sl 45, onde o noivo está celebrando uma vitória na guerra antes de poder receber a noiva. Cristo não pode unir-se a seus seguidores até que o mal tenha sido derrotado 185 e isso ocorre na batalha do Armagedom. A visão inaugural de Cristo no Apocalipse (1:9-20) permite afirmar que as muitas imagens hebraicas que aparecem por todo o livro, incluindo nomes e lugares, devem ser entendidas não como vinculadas à antiga aliança, mas como cumpridas em Cristo e na igreja universal.186 Há duas passagens que tratam com clareza do Armagedom. São os caps. 17 e 19. Seu exame revela que se trata da contenda final entre as forças combinadas de Satanás de um lado e de Cristo e seus seguidores do outro.187 Ainda assim, os intérpretes divergem quanto ao protótipo do AT para a batalha do Armagedom. Para alguns, o modelo é a guerra no Vale de Josafá, onde Deus mesmo se encarregou de destruir os inimigos de 182 Pringent, 340, 345; Lehmann, 2:221; LaRondelle, 387; Alfred Wikenhausen, El Apocalipsis de San Juan, 2ª ed. (Barcelona: Editorial Herder, 1981), 234; Ranko Stefanovic, Revelation of Jesus Christ: Commentary on the Book of Revelation (Berrien springs, MI: Andrews University Press, 2002), 1:554; Ladd, Apocalipse: Introdução e comentário, 188. 183 Pringent, 340. 184 Ibid., 344. 185 Blaney, 6:502. 186 O protagonista, descrito como “semelhante a filho de homem”, e os “candeeiros de ouro”, são, respectivamente, Cristo e as igrejas cristãs. LaRondelle, 2:383. Para um estudo sobre o principio de interpretação envolvido na compreensão da guerra do Armagedom, ver Louis F. Were, The Certain of the Third Angel’s Message (Sarasota, FL: s. e., 1979), 324-328. 187 LaRondelle, 2:377-378.; Stefanovic, 1:549. 208 seu povo (2Cr 20:1-24 cf. Jl 3:2, 9-14).188 Para outros, o nome simbólico da batalha do Armagedom parece aludir à guerra santa de Israel contra Sísera, o comandante do rei cananita e à vitória próxima às águas de Megido (Jz 5:19) – o que foi declarado, no cântico de Débora, ser uma vitória do Senhor (Jz 5:31).189 Há ainda outra interpretação, também baseada no nome Armagedom, que significa “Monte de Megido”. Megido era uma cidade no Vale de Jezreel. Mas ela tinha um monte: o Carmelo. Como o arroio Quisom, situado nas proximidades, é chamado de “águas de Megido” (Jz 5:19, 21), parece correto, do mesmo modo, considerar o Monte Carmelo como o Monte de Megido. Assim, a batalha do Armagedom é a batalha do Monte Carmelo. A narrativa do AT mostra que foi no Monte Carmelo, nos dias do profeta Elias, que uma poderosa manifestação do poder de Deus alcançou a vitória sobre o falso sistema de adoração e, na sequência, houve uma terrível vingança contra os líderes religiosos que os haviam enganado por tanto tempo (1Rs 18:20-40). 190 De qualquer modo, a espécie de conflito em que Cristo se engaja é mais um enfrentamento espiritual com a execução da justiça, do que um conflito militar.191 Nessa batalha há uma única arma – a espada – e ela sai de boca de Cristo. A figura deriva de uma profecia de Isaías onde é dito que o Messias “julgará com justiça os pobres e decidirá a favor dos mansos da terra; ferirá a terra com a vara de sua boca e com o sopro dos seus lábios matará o perverso” (Is 11:4).192 Portanto, enquanto ele é a favor de alguns, 188 Loren Wade, El futuro del mundo revelado en el Apocalipsis (Buenos Aires: Asociacion Casa Editora Sudamenricana, 1990), 235. 189 LaRondelle, 382. 190 Wade, 214. 191 Ibid.; Johnson, “Revelation”, 2:1163; Blaney, 6:502; Stefanovic, 1:100. 192 Ladd, Apocalipse: Introdução e comentário, 189. 209 pune a outros. A espada é a verdade de Deus, como é em Cristo (ver Is 49:2; Ef 6:17; Hb 4:12). Seus dois fios indicam que ela nunca falha ao cortar. Se ela não corta com o fio da salvação, ela corta com o fio da condenação; porque a palavra de redenção para todo aquele que crê é, ao mesmo tempo, a palavra de destruição para aqueles que se recusam a crer (ver 2:16; 19:25; Jo 12:47-48).193 Aqui no final do livro de Apocalipse, a espada é a palavra falada de Cristo, que ele proferirá em seu retorno e será feito, como ocorreu na criação (Gn 1:3; Jo 1:3; Hb 1:2).194 Como símbolo da autoridade judicial e da sentença condenatória essa palavra será pronunciada para executar a ira de Deus e vai punir e destruir, de modo que ninguém possa resistir nem escapar.195 Tal manifestação de ira deve ser encarada dentro do escopo de seu amor redentor. No fim, a espada que sai da boca de Cristo cortará em apenas uma direção, mas isso não é antagônico ao quadro de Jesus retratado nos evangelhos. Mesmo chorando por Jerusalém, ele proclama juízo sobre a cidade, juízo que era certo e breve (Mt 23:3738).196 Uma amostra do poder de sua palavra para reprovar pode ser vista no que ocorreu no 193 Hughes, 27. Ver também Blaney, 6:425, 503; Charles Simeon, Expository Outlines on the Bible, 21 vols. (Grand Rapids, MI: Zondervan Publishing House, 1956), 21:21; Herbert Lockyer, Apocalipse: O drama dos séculos (São Paulo: Editora Vida, 1982), 44; Johnson, 2:1214. 194 Ladd, Apocalipse: Introdução e comentário, 28, 189; Morris Ashcraft, “Apocalipse”, Comentário Bíblico Broadman, traduzido por Adiel Almeida de Oliveira (Rio de Janeiro: JUERP, 1984), 12:308; Jack MacArthur, Expositional Commentary on Revelation (Eugene, Oregon: Certain Sound Publishing House, 1973), 29; Albert Barnes, Notes on the New Testament, editado por Robert Frew (Grand Rapids, MI: Baker Book House, reimpressão 1969), 88. Há também o pensamento de que esta palavra falada de Cristo refira-se àquela que ele já falou: o evangelho. Neste caso, conforme 2 Ts 2:8, o poder do homem do pecado será diminuído e enfraquecido pela influencia do evangelho, embora sua completa destruição ocorra na segunda vinda de Cristo. Ibid. “Há sempre um processo judicial na pregação da Palavra de Deus.... Nosso Senhor disse: ‘Quem me rejeita e não recebe as minhas palavras tem quem o julgue; a própria palavra que tenho proferido, essa o julgará no ultimo dia’(Jo 12:48).” MacArthur, Expositional Commentary on Revelation, 29. 195 Charles E. Erdman, Apocalipse de João (São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1960), 32; Earle, 10:484; Summers, 106; Wikenhausen, 58, 237; Ashcraft, 12:399; Arthur E. Bloomfield, O futuro glorioso do planeta terra, 2ª ed., Belo Horizonte: Editora Betânia, 1975), 236.; James Moffatt, “The Revelation of St. John the Divine”, The Expositor’s Greek Testament, editado por Carl F. H. Henry, 5 vols. (Grand Rapids, MI: Eerdmans, s.d.), 5:345. No Sl 149:6 a espada de dois gumes é empregada para executar juízo sobre os ímpios. Stefanovic, 1:100. 196 Blaney, 6:503. 210 Getsêmani. Quando Cristo disse à turba que viera para prendê-lo: “Sou eu”, o resultado foi que “recuaram e caíram por terra” (Jo 18:6).197 Portanto, esta última batalha será vencida por uma palavra, a palavra condenatória de Cristo.198 Como rei guerreiro, Cristo se apresenta com as vestes manchadas de sangue. Quanto a esse sangue, há três diferentes interpretações. A primeira o vê como o sangue do próprio Cristo, vertido na cruz; a segunda, como o sangue dos mártires que agora está para ser vingado; e a terceira, como o sangue dos inimigos de Cristo e de seu povo.199 Aqueles que alegam que é o sangue de Cristo, apresentam os seguintes argumentos: (1) Cristo já vem do céu com a veste manchada de sangue, antes do início da batalha; (2) no Apocalipse, o sangue mencionado em conexão com Cristo é seu próprio sangue (1:5; 5:6, 9; 7:14; 12:11); (3) a palavra “banhado” não se harmoniza com o texto de Is 63:2, mas ao uso em Apocalipse das vestes dos crentes sendo lavadas (7:14; 22:14); e (4) a espada não está em sua mão.200 Os defensores da segunda corrente afirmam que, como a batalha ainda não começou, parece que o sangue é das testemunhas de Cristo (17:6) que está vindo para resgatá-las e vingar seu sangue, dando-lhes a vitória sobre seus inimigos.201 Entretanto, o texto retrata a Cristo, não como redentor, mas como guerreiro e dominador do mal202 e seu tema não é o sofrimento dos justos causado pela opressão, mas o julgamento contra os opressores. 203 Ao descrever o Cristo vencedor, há o emprego de 197 Bloomfield, 235. 198 John Phillips, Exploring Revelation (Chicago; Moody Press, 1974), 246. 199 Ricardo Foulkes, El Apocalipsis de San Juan: Una lectura desde la América Latina (Buenos Aires: Nueva Creación e Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1989), 200; Beale, 958. 200 Johnson, 2:1214. 201 Stefanovic, 1:552. 202 Ladd, Apocalipse: Introdução e comentário, 189. Ver também Pringent, 347. 203 Beale, 959. 211 algumas figuras extraídas de Is 63, onde Deus é retratado como conquistador retornando da punição de Edom, havendo pisado o lagar da ira de Deus e tendo suas vestes manchadas com o sangue de seus inimigos. 204 Embora alguns manuscritos tragam “banhado” (bebammenon), merece melhor aceitação a leitura “salpicado” (rerantismenon), o que combina mais com o que ocorre em uma batalha e com o texto paralelo de Is 63:3.205 Desse modo, a figura do manto tinto de sangue sublinha sua vitória sobre seus inimigos.206 Em Ap 19:11-21, Cristo, se apresenta como um rei guerreiro, cavalgando um cavalo branco e seguido pelos exércitos que há no céu montando cavalos brancos e trajando vestiduras brancas (Ap 19:14). Quem são aqueles que compõem esses exércitos? Os exércitos que há no céu são os anjos que o acompanharão em sua segunda vinda a esta terra (ver Zc 14:5; Mc 8:38; Lc 9:26; 1Ts 3:13; 2 Ts 1:7).207 Na ocasião, a besta, o falso profeta e todos os seus exércitos se posicionam para o enfrentamento, mas são derrotados. A destruição é completa. A batalha se encerra e Cristo sai vitorioso.208 Os olhos desse rei guerreiro “são como chama de fogo”, o que simboliza sua habilidade para julgar com exatidão, seu julgamento perscrutador que vê todas as coisas e 204 Ladd, Apocalipse: Introdução e comentário, 189. 205 Henry, 11:542. 206 Wiersbe, “Apocalipse”, Comentário bíblico expositivo, 6:787; O Novo Testamento interpretado, 6:626; Lockyer, 197; Earle, 10:607; Henry, 11:542; Blaney, 6:502; Hughes, 204; Bloomfield, 235; Beale, 958-959; Lehmann, 220. 207 Earle, 10:607; “Armies”, Seventh-Day Adventist Bible Commentary, 7:874; Ladd, Apocalipse: Introdução e comentário, 189. 208 Ibid; Ashcraft, 12:400; Summers, 183; Bloomfield, 54-55; Wiersbe, “Apocalipse”, Comentário bíblico expositivo, 6:787-788; Lehmann, 221; Stefanovic, 1:553; Wikenhausen, 239; William Kelly, Estudos sobre o livro de Apocalipse, 2ª ed. (São Paulo: Depósito de Literatura Cristã, 2002), 178. 212 que tem poder para consumir como fogo.209 A chama pode iluminar e brilhar, mas também queimar e destruir. Assim também os olhos do verbo.210 Os “muitos diademas” que há em sua cabeça lembram de um costume que havia entre os monarcas orientais: quando entravam em alguma batalha, traziam coroas de identificação de sua alta posição. O mesmo sucederá com Cristo, quando, como Rei dos reis, entrar em conflito com os poderes do mal.211 O diadema é uma coroa real e indica poder e autoridade reais.212 O Apocalipse havia mencionado o uso de um diadema pelo dragão (12:3) e pela besta (13:1) ao registrar o clamor deles por soberania universal em oposição ao verdadeiro rei.213 Mas agora, os muitos diademas de Cristo contrastam com os deles214 e manifestam seu governo magnificente, poderoso e universal, como Rei dos reis, ao final do juízo.215 A grandeza de Cristo pode ser vista tanto em seus nomes como na descrição do rei conquistador.216 Ele se apresenta vestido de juiz e rei, alguém com honra e autoridade.217 Nessa visão do Cristo como rei e guerreiro, são mencionados alguns de seus nomes, e há a menção de outro que ninguém conhece. No Oriente Médio os nomes indicam o caráter218 e, 209 Wiersbe, “Apocalipse”, Comentário bíblico expositivo, 6:787; Charles Caldwell Ryrie, Apocalipsis, traduzido por José Flores Espinosa (s/l: Editorial Moody, 1974), 113; MacArthur, Expositional Commentary on Revelation, 388-389; Stefanovic, 1:551; Henry, 11:542; Beale, 951; Pringent, 341; O Novo Testamento interpretado, 6:626. 210 Orígenes, citado em Pringent, 341. 211 O Novo Testamento interpretado,6:626. 212 Hughes, 203. 213 Beale, 952. 214 Henry, 11:542. 215 Earle, 10:607; Wiersbe, “Apocalipse”, Comentário bíblico expositivo, 6:787; Stefanovic, 1:551; Hughes, 203. 216 Wiersbe, “Apocalipse”, Comentário bíblico expositivo, 6:787. 217 Ibid., 6:725. 218 Stefanovic, 1:551; O Novo Testamento interpretado, 6:626. 213 segundo uma antiga ideia, o nome expressa a natureza de quem o leva.219 O primeiro nome é “Fiel e Verdadeiro” (Ap 1:11), o que indica sua postura em relação à sua missão, não apenas como salvador, mas também como juiz, pois, em cumprimento de suas promessas, ele julga e combate com justiça contra os inimigos de Deus, pelejando para corrigir os erros, derrotar o mal e trazer a justiça ao mundo.220 Quanto ao nome de Cristo que ninguém conhece (Ap 1:12) pode ser uma referência à glória eterna do Filho, que somente o Pai conhece221 ou ao seu novo e desconhecido papel, o de vingador de seu povo (ver Is 28:21.)222 O termo logos significa um pensamento e, então, a expressão daquele pensamento em palavra.223 Tem sido traduzido como “verbo” ou “palavra”. Do modo como revelamos nossos pensamentos, sentimentos e intenções aos outros por meio de nossas palavras, também o Pai revelou-se a nós por meio de seu Filho, o Verbo encarnado,224 que é tanto revelador da mente divina como o agente da vontade divina.225 Desse modo, logos é uma alusão à missão de Cristo. Através dele Deus fala ao mundo e se revela.226 Em seu primeiro advento ele veio para revelar a graça de Deus; agora, no segundo, virá para revelar o juízo 219 Wikenhausen, 235. 220 O Novo Testamento interpretado, 6:625; Wikenhausen, 245. 221 Henry, 11:542. Ver também Wikenhausen, 235. 222 “Faithful and True”, Seventh-Day Adventist Bible Commentary, 7:873-874. 223 Earle, 10:607. 224 Wiersbe, “Apocalipse”, Comentário bíblico expositivo, 6:786; MacArthur, Expositional Commentary on Revelation, 390; Johnson, 2:1214; Ladd, Apocalipse: Introdução e comentário, 189. 225 Hughes, 204; McDowell Jr, 151. 226 Wikenhausen, 236. 214 de Deus.227 Ele, que antes condenou, mas perdoou o pecado, virá para condenar e julgar o pecado.228 Como Verbo de Deus revelará a justiça divina e castigará o mal.229 O nome “Rei dos reis e Senhor dos senhores” indica a soberania total de Cristo (ver 1Co 8:5-6). 230 Os reis e senhores deste mundo têm apenas um domínio limitado, eles governam apenas certo território e certa porção de gente, e são independentes uns dos outros. Mas Cristo governa sobre todos, eles são seus vassalos.231 A ira do Senhor Uma referência ao mesmo evento foi mencionada numa carta de Paulo aos tessalonicenses: “[...] então, será, de fato, revelado o iníquo, a quem o Senhor Jesus matará com o sopro de sua boca e o destruirá pela manifestação de sua vinda” (2Ts 2:8). Embora muitos dos mais antigos textos e outros testemunhos primitivos omitam o nome “Jesus”, após a designação “Senhor”, a evidência textual favorece sua presença no texto original e o contexto torna claro que o título “Senhor” se refere a “Jesus”.232 Ele é o agente de Deus para a destruição.233 Embora a expressão epiphaneia signifique simplesmente aparecimento 227 “Faithful and True”, Seventh-Day Adventist Bible Commentary, 7:873-874; “Word of God”, ibid., 7:874; Kelly, 176; Wiersbe, “Apocalipse”, Comentário bíblico expositivo, 6:787; Abraham Kuyper, The Revelation of ST. John, traduzido por John Hendrik de Vries (Grand Rapids, MI: Eerdmans, reimpressão 1964), 258; Phillips, 246. 228 Merrill C. Tenney, Interpreting Revelation (Grand Rapids, MI: Eerdmans, s/d), 131. 229 Wikenhausen, 236; O Novo Testamento interpretado, 6:627. Ver também Stefanovic, 1:554; Ryrie, 113; Ladd, Apocalipse: Introdução e comentário, 188; Henry, 11:543; Charles Simeon, Expository Outlines on the Bible, 21 vols. (Grand Rapids, MI: Zondervan Publishing House, 1956), 21:236. 230 Ladd, Apocalipse: Introdução e comentário, 190. 231 Simeon, 21:234; Elwell, 1225. 232 Charles A. Wanamaker, The Epistles to the Thessalonians: A Commentary on tre Greek Text (Grand Rapids, MI: Eerdmans e Exeter, U. K.: The Paternoster Press, 1990), 257-258. Em suas duas cartas aos tessalonicenses, Paulo usa repetidamente a fórmula “Senhor Jesus” e também aqui. R. C. H. Lenski, The Interpretation of St. Paul’s to the Colossians, to the Thessalonians, to Timothy, to Titus and to Philemon (Minneapolis, MN: Augsburb Publishing House, 1991), 421. 233 Wanamaker, 257. 215 e não possua, necessariamente, a idéia de esplendor,234 era frequentemente empregada na literatura grega para descrever uma gloriosa manifestação dos deuses, e especialmente de seu advento para ajudar.235 Aqui, nessa passagem, é praticamente sinônimo de parousia e se refere à vinda de Cristo (1Tm 6:14; 2Tm 1:10; 4:1, 8; Tt 2:13),236 sendo apresentada como um flagrante contraste com a parousia do homem do pecado (2Ts 2:9).237 O texto é uma alusão à profecia de Is 11:4 e denota a facilidade com que o Senhor destruirá (katargesei) quem a ele se opõe. Este verbo significa, basicamente, “inutilizar”, “deixar fora de combate”.238 O efeito do olhar e da voz de Cristo será suficiente para destruir o inimigo.239 Tal evento ocorrerá antes do milênio e fará parte da purificação da terra, a qual preparará o reino pessoal de Cristo.240 Perspectiva de Ellen White Em seus escritos Ellen White também tratou da relação de Cristo com a ira de Deus. Cristo – O Fiador Diante da Ira de Deus Discorrendo sobre os resultados da entrada do pecado em nosso mundo, afirma que, embora o Pai não pudesse abolir nem alterar sua lei “para socorrer o homem em sua 234 Barnes, 89. 235 Leon Morris, The First and Second Epistles to the Thessalonians, The New International Commentary on the New Testament (Grand Rapids, MI: Eerdmans, reimpressão 1975), 230-231; Arnold E. Airhart, “The First and Second Epistles to the Thessalonians”, Beacon Bible Commentary, 9:519. 236 Robert L. Thomas, “2 Thessalonians”, The Expositor’s Bible Commentary, 11:326. 237 Lenski, The Interpretation of St. Paul’s to the Colossians, to the Thessalonians, to Timothy, to Titus and to Philemon, 423; Airhart, 9:519; James Smith, Comentario homiletico de la Bíblia, 10 vols. (Barcelona: Editorial CLIE, s.d.), 10:303; Lily B.Freire, comp., Comentário às epístolas do apóstolo São Paulo aos Tessalonicenses, traduzido por José R.Couto (Lisboa: Edições de J. Ilídio Freire, s.d.), 137-138. 238 Leon Morris, Las cartas a los Tesalonicenses: Introdución y comentario (Buenos Aires: Ediciones Certeza, 1976), 150. 239 Freire, 135; Morris, The First and Second Epistles to the Thessalonians, 230. 240 C. M. Keen, As cartas aos tessalonicenses (Sao Paulo: Imprensa Batista Regular, 1959), 74. 216 condição perdida”,241 Cristo – por ser um com o Pai,242 igual a ele243 e “que em associação com o Pai criara o homem – podia fazer pelo homem uma expiação aceitável a Deus, dando Sua vida em sacrifício e enfrentando a ira de Seu Pai”. 244 Como consequência, a condenação ainda permaneceria sobre o homem, mas a indignação de Deus seria contida e a execução completa da sentença de morte, postergada.245 Desse modo, Adão passou a ter um novo relacionamento com o Criador. Embora ainda continuasse em estado decaído, havia esperança para ele. 246 Como consequência, através dos tempos do AT, “a obra expiatória de Cristo, representada pelo altar de sacrifício”, evitava que a justa ira de Deus caísse de pronto sobre aqueles que transgrediam sua lei 247 e os ensinava que “do Seu próprio amor vem o dom que os reconcilia com Ele”.248 Então, no devido tempo, segundo a graça e a misericórdia de Deus, Cristo, “como homem”,249 “substituto”250 e “fiador”251 do pecador, “tomou sobre Si a ira de Deus, que por justiça deveria cair sobre o homem”.252 Ellen G. White, Ellen White, Patriarcas e profetas, 16ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 48. 241 242 Idem, Mensagens escolhidas, 3 vols., 3ª-5ª eds. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 243 Idem, O grande conflito, 41ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 495. 244 Idem, História da redenção, 9ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 48. 245 Idem, O desejado de todas as nações, 22ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 24. 246 Ibid., 23-24. 247 Idem, Patriarcas e profetas, 500. 248 Idem, Profetas e reis, 9ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 685. 249 Idem, O desejado de todas as nações, 686. 1:321. 250 Ibid., 753; idem, Caminho a Cristo, 28ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 14; idem, Conselhos aos professores, pais e estudantes, 5ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 52; idem, Cristo em seu santuário, 2ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 35-36; idem, Conselhos sobre saúde, 5ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 63; idem, O desejado de todas as nações, 50, 484, 686, 741, 753; idem, No deserto da tentação, 2ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 51, 53, 55; idem, Eventos finais, 2ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 151; idem, Fé e obras, 4ª ed.(Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 74, 76; idem, História da redenção, 224-225; idem, Mensagens escolhidas, 1:215, 230, 250, 323; 3:139, 194; idem, Parábolas de Jesus, 14ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 157; idem, Patriarcas e profetas, 366; idem, Testemunhos para ministros e obreiros evangélicos, 4ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 21. 217 Cristo – O Alvo da Ira de Deus Ao se concentrar no que ocorreu na cruz, Ellen White descreve a Cristo enfrentando um tríplice sofrimento. Primeiramente o sofrimento físico, que, embora “terrível”, não foi mais doloroso do que aquele enfrentado por alguns dos mártires.253 Isso, porém, “não foi senão pequena parte da agonia do amado Filho de Deus”.254 Em segundo lugar, a partir de sua experiência no Getsêmani,255 “Ele foi oprimido pelos poderes das trevas”,256 torturado com cruéis tentações.257 E, em terceiro lugar – porque Cristo “estava levando os pecados do mundo inteiro”,258 “a culpa de todo descendente de Adão”259 – Deus assumiu para com ele “o caráter de um juiz, despojando-Se das afetuosas qualidades de um pai”260 e ele esteve “suportando nossa punição – a ira de Deus contra a transgressão”.261 Por isso lhe sobreveio “um senso de que Seu próprio e amado Pai O havia abandonado” e sua alma se encheu de Idem, No deserto da tentação, 51; idem, O desejado de todas as nações, 753, 834; idem, Evangelismo, 4ª ed. ( Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 190; idem, Eventos finais, 151, 200; idem, Fundamentos da educação cristã, 3ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 127, 135, 283, 456; idem, Mensagens escolhidas, 3: 139, 194; idem, Patriarcas e profetas, 366; idem, Testemunhos para ministros e obreiros evangélicos, 92. 251 252 Idem, No deserto da tentação, 24. Ver também idem, Primeiros escritos, 4ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 149-150; idem, História da redenção, 42-43; idem, Mensagens escolhidas, 1:313; idem, Testemunhos para a igreja, 9 vols. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2000-2006), 2:203. 253 Idem, Testemunhos seletos, 3 vols., 6ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 1:233. Ver também idem, Testemunhos para a igreja, 2:214-215. 254 Ibid. 255 Ibid., 1:222. 256 Ibid. Ver também a pág. 212. Idem, O desejado de todas as nações, 753. Referindo-se a toda a vida terrestre de Cristo e não apenas à sua experiência na cruz, ela afirma que “Satanás atacou mais fortemente a Cristo do que nunca o fará a nós. ... Nunca podereis ser tentados de maneira tão decidida e cruel como foi nosso Salvador. Satanás estava-Lhe no encalço a todo momento.” Idem, “The Life of Christ”, The Youth’s Instructor, April 1, No 5, 1873, par. 1 e 2. Ver também idem, Testemunhos seletos, 1:233. 257 258 Idem, Mensagens escolhidas, 1:132. 259 Idem, O desejado de todas as nações, 753. 260 Idem, Testemunhos para ministros e obreiros evangélicos, 246. 261 Idem, Mensagens escolhidas, 1:132. 218 “desespero”.262 “Tão grande era essa agonia, que Ele mal sentia a dor física”.263 “Não foi o sofrimento físico que pôs tão rápido fim à vida de Cristo na cruz. Foi o peso esmagador dos pecados do mundo, e o senso da ira de Seu Pai”.264 E isso o levou a exclamar: “Deus Meu, Deus Meu, por que Me desamparaste?” (Mt 27:46). De fato, “Cristo sentiu muito semelhantemente ao que os pecadores hão de sentir quando os cálices da ira de Deus forem derramados sobre eles. Negro desespero, como um manto, adensar-se-á em torno de suas almas culpadas”.265 Cristo – O Libertador da Ira de Deus Ellen White, discorrendo sobre o ensinamento bíblico a respeito da obra de Cristo em prol de nossa libertação da ira de Deus, declara que ele assumiu uma dupla posição: por um lado ele é a vítima, a oferta mediante a qual é feita a expiação e, por outro, o sacerdote, o ofertante que pleiteia pelo pecador.266 A obra de Cristo na cruz: o sacrifício Em face do pecado da humanidade, “a misericórdia e a justiça estavam separadas, em oposição uma a outra, afastadas por grande abismo”.267 Deus não podia simplesmente perdoar pecados e fazer isso “à custa de Sua justiça, santidade e verdade”.268 Todavia, Deus encontrou um modo de salvar o homem e manter sua justiça: o sacrifício de Cristo. Em 262 Idem, Testemunhos seletos, 1:233. 263 Idem, O desejado de todas as nações, 753. 264 Idem, Testemunhos seletos, 1:228. 265 Ibid., 229. Ver também idem, “Christian Experience”, Review and Herald, August 5, 1884, par. 266 Ibid., 105. 267 Idem, “Christ our Example”, The General Conference Bulletin, October 1, 1899, par. 22. 268 Idem, “Ellen G. White Comments: 1 Timothy”, Seventh-day Adventist Bible Commentary, 7:912- 12. 913. 219 diversos de seus escritos Ellen White trata desse sacrifício no contexto do pecado do homem e da ira de Deus.269 Quando, por exemplo, discorreu sobre o primeiro encontro de Deus com o homem, logo após a entrada do pecado em nosso mundo, ela afirmou que Gn 3:15 “foi o primeiro sermão evangélico pregado ao homem caído” e que “esta promessa foi apresentada em íntima conexão com o altar das ofertas sacrificais” de modo que “o altar e a promessa permaneceram lado a lado [...] mostrando que a justiça de um Deus ofendido poderia ser apaziguada somente pela morte de seu amado Filho”.270 269 Idem, “In Gethsemane”, The Signs of the Times, December 2, 1897 par. 10; idem, “In Gethsemane”(concluded)”, The Signs of the Times, Dec. 9, 1897, par. 6; idem, The Spirit of Prophecy, 4 vols. (Washington, DC: Review and Herald Publishing Association, 1969), 2:281; idem, “Divine Wisdom”, Review and Herald, April 17, 1888 par. 10; idem, “Christ our Exmple”, The General Conference Bulletin, October 1, 1899, par. 20; idem, “Ellen G. White Comments: John”, Seventh-Day Adventist Bible Commentary, 5:1137; idem, Seventh-Day Adventist Bible Commentary, 7: apêndice B. 270 Idem, “Cain and Abel Tested (Concluded)”, The Signs of the Times, 23 de dezembro de 1886 par. 4-5 (tradução do autor; grifos acrescentados). Em outro escrito, ao tratar dos dias da Reforma, descreveu, de forma resumida a conversão de Calvino e o apresentou como um jovem estudante bastante promissor, de vida correta e devoção religiosa, que tinha sido educado para o sacerdócio e se tornara membro do clero. Depois de entrar em contato com os ensinos protestantes, ele presenciou a queima de um herege em praça pública e foi profundamente tocado pela paz estampada no semblante da vítima. Isso o levou a estudar a Bíblia com o fim de descobrir, se possível, a fonte dessa paz. Como resultado, encontrou a Cristo. Idem, O grande conflito, 219-221. Na sequência ela cita a oração de Calvino: “Ó Pai,... Seu sacrifício apaziguou Tua ira; Seu sangue lavou minhas impurezas; Sua cruz arrostou minha maldição; Sua morte fez expiação por mim. Imaginamos para nós muitas tolices inúteis, mas Tu colocaste Tua Palavra diante de mim como uma tocha, e tocaste-me o coração, a fim de que eu abominasse todos os outros méritos, com exceção dos de Jesus.” Ibid., 221. Nessa oração, a compreensão de Calvino era que o sacrifício de Cristo apaziguara a ira de Deus e que sua confiança fora depositada completamente nos méritos de Cristo. Embora a oração seja de Calvino e não de Ellen White, um exame do contexto e da maneira como ela a emprega, parece indicar que ela concorda com o seu conteúdo, i. e., o conceito de que mediante o sacrifício de Cristo a ira de Deus foi apaziguada. Um exame de seus escritos revela que ao tratar da ira de Deus, a autora também emprega o verbo aplacar ou apaziguar, e o faz em relação ao passado, ao presente e ao futuro. Algumas vezes ela apenas cita alguma passagem bíblica pertinente e em outras, faz um breve comentário. Desse modo, em sua explanação sobre o episódio do anjo destruidor junto à eira de Ornã, ela afirma que “por indicação do profeta, Davi foi ao monte, e ali construiu um altar ao Senhor, 'e ofereceu nele holocaustos e sacrifícios pacíficos; e invocou o Senhor, o qual lhe respondeu com fogo do céu sobre o altar do holocausto’. I Crôn. 21:16-26. ‘Assim o Senhor Se aplacou para com a terra, cessou aquele castigo de sobre Israel.’ II Sam. 24:25”. Idem, Patriarcas e profetas, 748 (grifos acrescentados). Também ao tratar do arrependimento do rei Manassés, depois de ter sido levado cativo pelos assírios, ela menciona que “esta aflição trouxe o rei ao seu juízo; ‘ele, angustiado, orou deveras ao Senhor seu Deus, e humilhou-se muito perante o Deus de seus pais; e Lhe fez oração, e Deus Se aplacou para com ele, e ouviu a sua súplica, e o tornou a trazer a Jerusalém, ao seu reino. Então conheceu Manassés que o Senhor era Deus’. II Crôn. 33:11-13.” Idem, Profetas e reis, 383 (grifos acrescentados). Noutro escrito ela se refere ao presente, tendo em vista o que está para ocorrer no futuro: “Ao ser levantada a cortina e me ser mostrada a corrupção deste século, oprimiu-se-me o coração e quase me desfaleceu o espírito. Vi que os habitantes da Terra estavam enchendo a medida da taça de sua iniquidade. Está acesa a ira de Deus e não mais se aplacará até que os pecadores sejam destruídos da Terra.” Idem, Mensagens aos jovens, 10ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 60-61 (grifos acrescentados); 220 No plano efetuado por Deus para salvar a humanidade, a propiciação é apresentada tanto como uma exigência da lei,271 como uma obra derivada do amor de Deus272 – que o homem é incapaz de compreender plenamente.273 O pensamento de Ellen White não é que o Pai nos amou por causa do que Cristo fez, antes, primeiro o Pai nos amou e, então, por idem, Testemunhos para a igreja, 1:302. Há, ainda, referencia ao futuro, quando, por exemplo, ao discorrer sobre a tentação e queda do homem apresenta o resultado futuro e final do pecado: a “morte eterna, morte esta de que não haverá esperança de ressurreição; e então se aplacará a ira de Deus.” Idem, Primeiros escritos, 218 (grifos acrescentados). O mesmo comentário aparece também em idem, Vida e ensinos, 10ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 108; História da redenção, 388. Ver também idem, The Spiriual Gifts, 4 vols. (Battle Creek, MI: Review and Herald Publishing Association, 1858), 1:193. Por vezes encontramos nas Sagradas Escrituras algumas passagens que parecem estar em discordância com outras: dois grupos de textos em aparente conflito. Isso é o que ocorre, por exemplo, com o conceito do arrependimento de Deus. Enquanto que um grupo de passagens declara que Deus não Se arrepende (Nm 23:19; 1 Sm 15:29; Sl 110: 4), o outro afirma que Deus se arrependeu (Gn 6:6-7; Êx 32:14; 1 Sm 15:11, 35; Jn 3:10). Todavia, essa contradição é apenas aparente. Um estudo detalhado revelará que um grupo de textos se refere à mudança de pensamento e o outro à mudança de sentimento. O mesmo aparente conflito também pode estar presente nos escritos de Ellen White, e este é o caso em sua abordagem do apaziguamento da ira de Deus. Umas poucas vezes seu comentário sobre isso parece ser negativo. Entretanto, um exame mais atento poderá revelar, não que ela discorde do conceito em si, mas, sim, de algumas das idéias que são a ele associadas. Desse modo, em um capítulo em que ela discorre sobre a inimizade de Satanás contra a lei, comentando os mandamentos um a um, ao tratar do o 6º mandamento, sua discordância parece ser com relação aos sacrifícios humanos – oferecidos pelos pagãos com a intenção de aplacar a ira dos deuses e conseguir o seu favor – que tornaram a transgressão do mandamento divino parte da religião deles. Idem, Patriarcas e profetas, 337. Em outra obra, ao discutir sobre as trevas durante a Idade Média e as ações da Igreja de Roma que, para conseguir recursos, ameaçava os homens com a ira de Deus, a intenção de aplacar a ira divina é comentada negativamente, porque a atitude do adorador é a de considerar a Deus como se fosse um homem egoísta e caprichoso. Idem, O grande conflito, 56 (ver também idem, História da redenção, 332, onde aparecem as mesmas palavras no capítulo sobre o mistério da iniquidade). Do mesmo modo, em seu comentário sobre o Sermão da Montanha, ao tratar da espiritualidade da lei e discorrer sobre o amor de Deus, ela contrasta a religião da Bíblia com o Paganismo e assevera que Deus é nosso Pai compassivo e não uma divindade maligna que precisa ser olhada com temor e apaziguada por sacrifícios. Sua observação parece ser contra o conceito de divindade maligna e sem amor. Idem, O maior discurso de Cristo, 15ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 74. 271 Idem, Mensagens escolhidas, 1:237, 241; idem, “Nothing is Hidden”, Review and Herald, March 27, 1888, par. 8; idem, Parábolas de Jesus, 378. 272 Idem, Atos dos apóstolos, 9ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 334; Caminho a Cristo, 13; O desejado de todas as nações, 565; idem, “An Exceeding and Eternal Weight of Glory”, Review and Herald, May 6, 1902, par. 12; idem, “Ellen G. White Comments: 1 Thimothy”, Seventh-Day Adventist Bible Commentary, 7:913-914. 273 “Incomensurável é a verdade em Cristo e mediante Cristo. O estudante da Escritura, por assim dizer, contempla uma fonte que se aprofunda e amplia à medida que mira sua profundeza. Nesta vida não entenderemos o mistério do amor de Deus em entregar Seu Filho para propiciação por nossos pecados. A obra de nosso Redentor na Terra é e sempre será assunto que há de exigir o máximo de nossa mais arguta imaginação. O homem pode empenhar toda a sua faculdade mental no esforço de penetrar este mistério, mas a sua capacidade de compreensão desfalecerá e fatigar-se-á. O pesquisador mais esforçado ver-se-á diante de um mar ilimitado e sem praias.” Idem, Parábolas de Jesus, 128-129. 221 essa razão, ele mesmo proveu a propiciação: Cristo (Jo 3:16; 2Co 5:19), 274 o qual é retratado como o único que pode fazer propiciação por nós – em razão de sua natureza divina, da qual deriva a lei que fora transgredida, 275 e de sua humanidade “inocente”, “obediente” e sem “uma nódoa de corrupção”.276 Ao discorrer sobre o tempo em que Cristo começou a receber a ira de Deus, o que ocorreu a partir de sua passagem pelo Getsêmani, na noite anterior à sua morte, demonstra como ali, apesar da intensa agonia, ele decidiu tornar-se a propiciação em prol do homem. No relato também pode ser visto que, conquanto fosse alvo da ira divina, também recebeu o amor de seu Pai, que enviou um anjo para fortalecê-lo – o que reforça a idéia que, em Deus, o amor e a ira não são incompatíveis, que a expressão de ambos pode ser simultânea e que ambos foram manifestados na propiciação efetuada por Cristo.277 274 Idem, Caminho a Cristo, 13. 275 Idem, Patriarcas e profetas, 63. 276 Ibid., 267. Ver também idem, “An All-powerful Saviour”, The Youth’s Instructor, September 21, 1899, par. 1; idem, “Have You the Wedding Garment”, The Youth’s Instructor, 28 de outubro de 1897, par. 4. 277 “[...] Como homem, deve suportar a ira divina contra a transgressão. [...] “[...] O tremendo momento chegara - aquele momento que decidiria o destino do mundo. Na balança oscilava a sorte da humanidade. Cristo ainda podia, mesmo então, recusar beber o cálice reservado ao homem culpado. Ainda não era demasiado tarde. Poderia enxugar da fronte o suor de sangue, e deixar perecer o homem em sua iniquidade. Poderia dizer: Receba o pecador o castigo de seu pecado, e Eu voltarei a Meu Pai. Beberá o Filho de Deus o amargo cálice da humilhação e da agonia? Sofrerá o Inocente as consequências da maldição do pecado, para salvar o criminoso? Trêmulas caem as palavras dos pálidos lábios de Jesus: ‘Pai Meu, se este cálice não pode passar de Mim sem Eu o beber, faça-se a Tua vontade.’ Mat. 26:42. “Três vezes proferiu essa oração. Três vezes recuou Sua humanidade do derradeiro, supremo sacrifício. Surge, porém, então, a história da raça humana diante do Redentor do mundo. Vê que os transgressores da lei, se deixados a si mesmos, têm de perecer. Vê o desamparo do homem. Vê o poder do pecado. As misérias e os ais do mundo condenado erguem-se ante Ele. Contempla-lhe a sorte iminente, e decide-Se. Salvará o homem custe o que custar de Sua parte.... Tornar-Se-á a propiciação de uma raça que quis pecar. Sua prece agora respira apenas submissão: "Se este cálice não pode passar de Mim sem Eu o beber, faça-se a Tua vontade." Mat. 26:42. “[...] Nessa horrível crise, quando tudo estava em jogo, quando o misterioso cálice tremia nas mãos do Sofredor, abriu-se o Céu, surgiu uma luz por entre a tempestuosa treva da hora da crise, e o poderoso anjo que se acha na presença de Deus, ocupando a posição da qual Satanás caíra, veio para junto de Cristo. O anjo não veio para tomar-Lhe o cálice das mãos, mas para fortalecê-Lo a fim de que o bebesse, com a certeza do amor do Pai.” Idem, O desejado de todas as nações, 686-693 (grifos acrescentados). 222 Pelo menos uma vez ela parece fazer alguma distinção entre propiciação e expiação ao declarar que a propiciação ocorre através da expiação, e acrescentar que, desse modo, é removida toda obstrução, de maneira que o perdão divino possa fluir para o pecador.278 De fato, havia, entre Deus e o homem, “separação” e “inimizade”; todavia, os acontecimentos que ocorreram no Calvário possibilitaram uma mudança nesse relacionamento. Quando, pela fé, aceitamos a Cristo como propiciação pelo pecado, somos postos “em companheirismo com Deus” e, mais do que isso, nos tornamos seus filhos, com a perspectiva de sermos transformados à sua imagem. 279 O valor que a autora atribui à expiação realizada por Cristo pode ser visto na declaração que segue: O sacrifício de Cristo como expiação do pecado é a grande verdade em torno da qual se agrupam todas as outras verdades. Para que seja devidamente compreendida e apreciada, toda verdade contida na Palavra de Deus, do Gênesis ao Apocalipse, precisa ser estudada à luz que jorra da cruz do Calvário, e em ligação com a assombrosa verdade central da expiação do Salvador. Os que estudam o maravilhoso sacrifício do Redentor crescem em graça e conhecimento. Apresento-vos o grande, o grandioso monumento de misericórdia e regeneração, salvação e redenção – o Filho de Deus levantado na cruz do Calvário. Este deve ser o assunto de todo discurso. Cristo declara: "E Eu, quando for levantado da terra, todos atrairei a Mim." João 12:32.280 Seus comentários vinculam a propiciação a diversos temas diretamente conectados com o plano de salvação, tais como: a justificação, 281 o perdão dos pecados, 282 a reconciliação,283 a intercessão de Cristo284 e a salvação do mundo.285 278 “‘Convinha que, em todas as coisas, Se tornasse semelhante aos irmãos, para ser misericordioso e fiel Sumo Sacerdote nas coisas referentes a Deus e para fazer propiciação pelos pecados do povo’ (Heb. 2:17), mediante a expiação. ... Assim, pelo ato de Cristo oferecer-Se a Si mesmo, o Inocente pelo culpado, é removida toda obstrução, e o perdoador amor de Deus flui para o homem caído em abundantes caudais de misericórdia.” Idem, a Henry D. Wessells, 30 de novembro de 1895, Carta 91, 1895, pág. 2, Centro de Pesquisas Ellen G. White – Brasil, Engenheiro Coelho, SP. 279 Idem, a Edson e Emma, 22 de julho de 1907, Carta 230, 1907, pág. 9, Centro de Pesquisas Ellen G. White – Brasil, Engenheiro Coelho, SP. 1:394. 280 Ibid., 221. 281 Ibid., Fé e obras, 93-94, 104; ibid., Testemunhos seletos, 2:56; ibid., Mensagens escolhidas, 223 Portanto, Cristo “implantou Sua cruz entre o Céu e a Terra, e fê-la objeto de atração que atingiu os dois lados, atraindo tanto a Justiça como a Misericórdia através do abismo”.286 Desse modo, enquanto que a morte de Cristo na cruz “testifica que ‘o salário do pecado é a morte’, que toda violação da lei de Deus deve receber sua justa paga”,287 ao mesmo tempo anuncia “esperança e vida eterna a todos os que O recebem e nEle creem”,288 e se afirma como o “meio pelo qual são harmonizados o amor e a justiça de Deus”,289 de modo que ele pode ser tanto justo como justificador daquele que crê em Jesus (Rm 3:26).290 A obra de Cristo no santuário celestial: a intercessão Desde os dias do AT percebemos a presença de mediadores que atuavam eficazmente para desviar a ira de Deus. O mais destacado deles foi o libertador de Israel no Êxodo. Quando os pecados do povo atraíam os justos juízos de Deus, Moisés postava-se como mediador, ficando entre eles e a ira de Deus a fim de serem poupados (Nm 11:1-2).291 Outro mediador foi Samuel. No episódio em que Israel cometera a grande maldade de pedir um rei para si (1Sm 12:17), exigindo ser como as demais nações (1Sm 8:5), “Deus lhes deu 282 Ibid., Atos dos apóstolos, 552. 283 Idem, Mensagens escolhidas, 2:123; idem, “Ellen G. White Comments: Hebrews”, Seventh-Day Adventist Bible Commentary, 7:925. 284 Idem, Fé e obras, 105; idem, a Henry D. Wessells, Carta 91, 1895, pág. 2; idem, “Ellen G. White Comments: Romans”, Seventh-Day Adventist Bible Commentary, 6:1077-1078; ; idem, Mensagens escolhidas, 1:344. 285 Idem, O desejado de todas as nações, 622; idem, Fundamentos da educação cristã, 283. 286 Idem, “Christ our Example”, The General Conference Bulletin, October 1, 1899, par. 22. 287 Idem, O grande conflito, 539-540. 288 Idem, Testemunhos para ministros e obreiros evangélicos, 139. 289 Idem, ao irmão e à irmã Sanderson, 18 de setembro de 1901, Carta 123, 1901, pág. 3, Centro de Pesquisas Ellen G. White – Brasil, Engenheiro Coelho, SP. Ver também idem, Caminho a Cristo, 14-15, 2122. 290 Idem, “Words to the Young”, The Youth’s Instructor, November 29, 1894, par. 2. 291 Idem, Patriarcas e profetas, 162-163. 224 um rei em Sua ira” 292 (Os 13:11) e como sinal de seu desagrado por esse pecado, na assembléia nacional reunida em Gilgal a fim de confirmar publicamente o reino a Saul,293 “o Senhor deu trovões e chuva naquele dia; pelo que todo o povo temeu em grande maneira ao Senhor e a Samuel. Todo o povo disse a Samuel: Roga pelos teus servos ao Senhor, teu Deus, para que não venhamos a morrer; porque a todos os nossos pecados acrescentamos o mal de pedir para nós um rei. Então, disse Samuel ao povo: Não temais; tendes cometido todo este mal; no entanto, não vos desvieis de seguir o Senhor [...] Quanto a mim, longe de mim que eu peque contra o Senhor, deixando de orar por vós [...]” (1Sm 12:18-20, 23).294 Assim, em face da demonstração do desagrado divino, Israel pediu que o profeta Samuel intercedesse e ele concordou em fazê-lo. Em realidade, esses e outros mediadores serviram para prefigurar a obra intercessora de Jesus que, de acordo com o plano da salvação, estabelecido desde antes da fundação do mundo (1Pe 1:18-21; Ap 13:8),295 “ficaria entre a ira de Seu Pai e o homem culpado”.296 Também o ritual do santuário, além de servir como uma representação da obra expiatória de Cristo, expunha sua atividade intercessora. Enquanto que no pátio, no altar de holocaustos, ocorria a expiação por meio dos sacrifícios, no lugar santo, junto ao altar de ouro, ocorria a intercessão através do incenso,297 e no santo dos santos, por sua vez, se 292 Ibid., 605. 293 Ibid., 613. 294 Ibid., 614-615. 295 Ver idem, Educação, 8ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 113. 296 Idem, Primeiros escritos, 150. 297 Idem, Patriarcas e profetas, 353; idem, Cristo em seu santuário, 33-34. 225 centralizavam ambas as cerimônias.298 Desse modo, pelo sangue e pelo incenso, podiam os homens aproximar-se de Deus.299 A intercessão de Cristo,300 que iniciou após sua morte, ressurreição e ascensão e ocorre no santuário celestial, é “tão essencial” quanto seu sacrifício na cruz.301 Nessa obra, “quando o homem, por sua grande impiedade, provoca a ira de Deus, Cristo, intercessor do homem, suplica por ele”302 a fim de livrá-lo “dos sofrimentos e da ira que há de cair sobre os desobedientes”.303 Todavia, quando finalmente Cristo encerrar sua obra de intercessão, o tempo de graça para os homens terá expirado definitivamente.304 Então, “Deus não mais silenciará, mas derramará Sua ira sobre aqueles que rejeitaram Sua verdade”.305 A obra de Cristo no homem: a aceitação É possível escapar da ira divina? O que o homem pode fazer nesse sentido? A autora recomenda um cuidadoso exame das Escrituras Sagradas a fim de descobrir como isso pode ser feito. 306 Como já foi visto, Deus, em Cristo, objetivamente, colocou à disposição do homem poderosos recursos para que este possa se reconciliar com ele e se esquivar de sua ira. Todavia, cabe ao homem apropriar-se deles subjetivamente. Isso é 298 Ibid., 28. 299 Idem, Profetas e reis, 353.; Idem, Cristo em seu santuário, 33-34. 300 Idem, Caminho a Cristo, 54, 64; idem, Cristo em seu santuário, 15, 28, 103; idem, O desejado de todas as nações, 794; idem, Fé e obras, 105; idem, Fundamentos da educação cristã, 403; idem, O grande conflito, 416, 430, 489; idem, Mensagens escolhidas, 1:343, 271; 2:141; 3:148; idem, Primeiros escritos,152, 37, 391; idem, Testemunhos seletos, 3:12. 301 302 Conselhos sobre saúde, 118; Exaltai-O, 330. Idem, The Spiriual Gifts, 3:75. Ver também idem, Patriarcas e profetas, 107. 303 Idem, Obreiros evangélicos, 6ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 516. Ver também idem, Parábolas de Jesus, 234. 304 Idem, Testemunhos seletos, 1:285-286. 305 Idem, Primeiros escritos, 32, 136; idem, Testemunhos para ministros e obreiros evangélicos, 446. 306 Idem, Primeiros escritos, 64-65. O contexto se refere especificamente ao derramamento das sete últimas pragas. 226 possível mediante as respostas corretas à iniciativa divina. Os únicos meios designados por Deus pelos quais podemos alcançar reconciliação com ele e pureza de vida são o arrependimento, por termos transgredido sua lei, e a fé em Jesus Cristo,307 “fé na expiação e na intercessão de Cristo”,308 pois “é pela fé no Filho de Deus que se efetua a transformação do caráter, e o filho da ira torna-se filho de Deus. Passa da morte para a vida; torna-se espiritual e discerne as coisas espirituais”.309 Cristo – O Executor da Ira de Deus Para Deus, que é amor, a obra de destruição é uma estranha obra (Is 25:28)310 e, embora ele seja “estrito em notar a iniquidade, e em punir a transgressão, não tem prazer na vingança”, 311 “‘é misericordioso, compassivo, e tardio em irar-Se, e grande em beneficência’ (Jl 2:13)”. 312 Por essa razão é que “a misericórdia de Deus suporta longamente o transgressor”.313 Quando, porém, é atingido o limite estipulado por Deus, “os oferecimentos de misericórdia são retirados, e inicia-se o ministério do juízo”.314 No julgamento final, como será demonstrado a seguir, a ira de Deus contra o pecado se manifestará em dois tempos, separados por um período de mil anos. 307 Ibid., 136. 308 Ibid. 309 Idem, Mensagens escolhidas, 1:338. 310 Idem, Patriarcas e profetas, 139. 311 Ibid. 312 Idem, O grande conflito, 311. 313 Idem, Patriarcas e profetas, 165. 314 Ibid. 227 O derramamento das sete pragas e o segundo advento Descrevendo o momento em que se encerra a intercessão de Cristo, a autora explica que ao ele tirar suas vestes de mediador e revestir-se dos vestidos da vingança315 “nada havia para deter a ira de Deus, e ela irrompeu com fúria sobre a cabeça desabrigada do pecador culpado, que desdenhou a salvação e odiou a correção”.316 Essa ira se manifesta na forma das sete últimas pragas (Ap 15:1; 16; 19:11-21).317 Não muito tempo depois, por ocasião da vinda de Cristo é a ira do Cordeiro, e não apenas a ira de Deus, que causa a morte dos ímpios (Ap 6:16-17).318 Eles “são eliminados da face de toda a Terra: consumidos pelo espírito de Sua boca, e destruídos pelo resplendor de Sua glória”.319 Cumpre-se, então a profecia de Jeremias: "os que o Senhor entregar à morte naquele dia se estenderão de uma a outra extremidade da Terra; não serão pranteados, nem recolhidos, nem sepultados; serão como esterco sobre a face da terra" (Jr 25:33).320 315 Idem, Testemunhos para a igreja, 8:315. Ver também idem, Testemunhos seletos, 1:285; idem, Vida e ensinos, 100. 316 Idem, Primeiros escritos, 280. 317 Ibid., 43-44, 64; idem, Testemunhos para ministros e obreiros evangélicos, 182; idem, Vida e ensinos, 187. “No dia do Senhor, pouco antes da vinda de Cristo, Deus, em Sua ira, enviará raios do céu, que se unirão com o fogo na Terra. As montanhas arderão como uma fornalha, e derramarão terríveis correntes de lava, destruindo jardins e campos, vilas e cidades; e, ao arremessarem nos rios seus minérios derretidos, pedras e lodo aquecido, fá-los-ão ferver como uma panela, arremetendo também rochas maciças e espalhando seus fragmentos sobre a terra com indescritível violência. Rios inteiros tornar-se-ão secos. A Terra se convulsionará, e por toda parte haverá pavorosas erupções e terremotos. Deus afligirá os perversos habitantes da Terra até serem destruídos.” Idem, The Spiriual Gifts, 3:82-83. 318 Idem, Primeiros escritos, 52. 319 Idem, O grande conflito, 657. 320 Ibid. 228 O milênio Nessa ocasião de seu retorno, ocorre também um poderoso ato redentivo, quando “Cristo leva o Seu povo para a cidade de Deus, e a Terra é esvaziada de seus moradores”.321 Durante os próximos mil anos, ocorre, nos céus, o julgamento dos ímpios, quando os santos, em união com Cristo, analisando cada caso, decidirão a quantidade de castigo que os ímpios devem sofrer (Ap 20:4; 1Co 6:2).322 Nessa ocasião também Satanás e seus anjos serão igualmente julgados (1Co 6:3; Jd 6).323 O julgamento diante do grande trono branco Ao findarem os mil anos, ocorrerá a segunda ressurreição (Ap 20:5; Is 24:22), quando os ímpios ressuscitarão a fim de receberem a execução do juízo. 324 João, contemplando em visão essa cena escreveu: “Vi um grande trono branco e aquele que nele se assenta, de cuja presença fugiram a terra e o céu, e não se achou lugar para eles. Vi também os mortos, os grandes e os pequenos, postos em pé diante do trono. Então, se abriram os livros. Ainda outro livro, o Livro da Vida, foi aberto. E os mortos foram julgados, segundo as suas obras, conforme o que se achava escrito nos livros” (Ap 20:1112).325 Naquele dia, Cristo será o juiz,326 a “cena do juízo terá lugar em presença de todos os mundos”327 e “nós devemos encontrar com aqueles com quem nos associamos aqui”.328 , 321 Ibid. 322 Ibid., 660-661; Idem, Primeiros escritos, 52-53. 323 Idem, O grande conflito, 661. 324 Ibid. 325 Ibid., 666. 326 Idem, “The Day of Reckoning”, Review and Herald, November 22, 1898, par. 8-10. 327 Ibid., “Upon the Throne of His Glory”, Review and Herald, September 20, 1898, par. 2. Ver também Ibid., “The Day of Reckoning”, par. 2. 328 Idem, Testemunhos para ministros e obreiros evangélicos, 224. 229 “Pecados secretos serão então expostos à vista de todos. Serão revelados motivos e intenções que estiveram ocultos”.329 Em um de seus escritos a autora também descreve as cenas desse juízo e a reação daqueles que foram achados em falta: À medida que o Santo que estava sobre o trono ia virando lentamente as folhas do Contascorrentes e Seus olhos pousavam momentaneamente sobre os indivíduos, esse olhar parecia queimar-lhes até ao íntimo da alma, e no mesmo instante cada palavra e ação de sua vida passava-lhe diante da mente, clara como se fosse traçada ante seus olhos com letras de fogo. Apoderava-se deles o temor, e os rostos empalideciam. ... Todos os olhos se acham voltados para a face dAquele que está sobre o trono: e enquanto Seu olhar solene e esquadrinhador passa por aquele grupo, há tremor de coração; pois sentem-se em si mesmos condenados, sem que fosse pronunciada uma palavra. Em angústia de alma, cada um declara a própria culpa e de maneira terrivelmente vívida vê que, pecando, atirou fora a preciosa dádiva da vida eterna.330 Portanto, “cada pecador será levado a ver e reconhecer a justiça de sua condenação” 331 e “tanto os leais como os rebeldes se unirão em declarar: ‘Justos e verdadeiros são os Teus caminhos, ó Rei dos santos’ (Ap 15:3 e 4)”.332 Em seguida, na presença de todo universo, o Filho de Deus “pronuncia a sentença sobre os rebeldes contra Seu governo, e executa justiça sobre aqueles que transgrediram Sua lei e oprimiram Seu povo”.333 O castigo final Ao longo da história humana, desde o início até o final do tempo da graça, todos os juízos que vêm sobre os homens, são misturados com misericórdia.334 Isso ocorre porque “o 329 Idem, “God’s Estimate of Worldly of Wisdom”, Review and Herald, January 1, 1894, par. 13. 330 Idem, Testemunhos seletos, 1:518-519. Ver também idem, Testemunhos para a igreja, 4:385. A mente recordará todos os pensamentos e atos do passado; a vida inteira será passada em revista como as cenas de um panorama. Idem, “Notes of Travel”, Review and Herald, November 4, 1884, par. 11. 331 Idem, Patriarcas e profetas, 393. 332 Idem, O desejado de todas as nações, 58. 333 Idem, O grande conflito, 666. Ver também idem, Primeiros escritos, 52. 334 Idem, O grande conflito, 629. Um exemplo específico desta verdade pode ser visto nos juízos que vieram sobre Israel na época em que a casa de Acabe foi exterminada. Idem, Profetas e reis, 254-255. 230 sangue propiciatório de Cristo tem livrado o pecador de os receber na medida completa de sua culpa; mas no juízo final a ira é derramada sem mistura de misericórdia”.335 Os ímpios receberão o que os salvos, juntamente com Jesus, haviam decidido para eles durante os mil anos.336 “Sofrem castigo, que varia em duração e intensidade, ‘segundo suas obras’”,337 porque os juízos são “de acordo com a iniquidade das pessoas e a luz da verdade que elas tiveram”, 338 e sua existência “finalmente termina com a segunda morte” 339 e o aniquilamento.340 Descrevendo a cena, a autora diz que “alguns ficaram muitos dias a consumir-se, e precisamente enquanto houvesse uma parte deles a ser consumida, permaneceu toda a sensação de sofrimento”. 341 Ao tratar do castigo de Satanás, esclarece que “deveria ser muito maior do que o daqueles a quem ele enganara. Seu sofrimento excederia o deles a ponto de não haver comparação. Depois que todos aqueles a quem ele enganara houverem perecido, Satanás deverá ainda viver e sofrer muito mais tempo”.342 Quando, finalmente, Satanás e todos os ímpios forem destruídos, recebendo o salário do pecado, a morte eterna,343 “a ira de Deus se aplacará”344 e sua justiça ficará satisfeita.345 335 Idem, O grande conflito, 629. 336 Idem, Primeiros escritos, 54. 337 Idem, O grande conflito, 544. 338 Idem, Eventos finais, 111. 339 Idem, O grande conflito, 544. 340 Idem, Caminho a Cristo, 22. 341 Idem, Primeiros escritos, 294. 342 Ibid., 291. 343 Idem, O grande conflito, 544. 344 Idem, Primeiros escritos, 218. Ver também idem, História da redenção, 388. 345 Idem, Primeiros escritos, 295. 231 Resumo e Conclusões Este capítulo tratou da relação de Cristo com a ira divina. Primeiramente de acordo com as Sagradas Escrituras e, depois, conforme as informações contidas nos escritos de Ellen White. O exame da Bíblia demonstrou que a ira de Deus era uma característica tanto da vida quanto dos ensinos de Jesus e que em todos os casos essa ira foi despertada quando sua misericórdia foi desprezada. Mas ele não apenas possuiu essa ira, ele também a sofreu. Na cruz suportou a maior demonstração da aversão de Deus contra o pecado, uma punição – o que é o coração da doutrina da expiação. Nenhum ser humano jamais seria capaz de sofrer toda a ira de Deus, mas Cristo a recebeu em sua plenitude por causa da união, em sua pessoa, das naturezas divina e humana. O que ele realizou foi uma expiação, absolutamente necessária por causa da lei de Deus. Esta não pode ser relaxada de modo a não punir seus transgressores. Deus não pode, simplesmente, fechar os olhos ao pecado, escusá-lo ou perdoá-lo. O pecado torna a pessoa culpada e, portanto, devedora à lei, e sua salvação requer uma expiação. Essa expiação precisa ser vicária, em razão de que todos os homens são pecadores e, também, por isso mesmo, nenhum pode ser o vigário de outro. Mas não bastava ser isento do pecado: um anjo não tem pecado, mas apesar disso, não podia ser um substituto do homem. Era necessário que o substituto, por um lado, pertencesse à humanidade, e, por outro, fosse divino, i.e., estivesse à altura da lei que fora transgredida. Por isso, é que Cristo, que era divino, encarnou, a fim de que se qualificasse para preencher essas condições e morresse pelos nossos pecados. O que ocorreu na cruz foi uma substituição penal porque ele morreu em nosso lugar e como cumprimento de uma pena. Ele assumiu o nosso lugar e nos representou, recebendo o castigo que merecíamos de modo a nos libertar desta experiência. Essa expiação é do início ao fim uma obra do próprio Deus 232 porque, se por um lado sua justiça exigiu a satisfação das exigências da lei, por outro, seu amor encontrou um meio de livramento para o pecador. Ao longo dos séculos a doutrina da expiação sempre enfrentou oposição e os cristãos a têm compreendido de diferentes maneiras. A teoria mais correta, com os devidos ajustes, parece ser aquela originada com Anselmo e amplamente aceita por católicos e protestantes, segundo a qual o sacrifício de Cristo visava a satisfazer plenamente a justiça de Deus, de modo que ele fosse não só misericordioso, mas justo, também. Embora a expiação seja suficientemente ampla para incluir a todos e seja a todos oferecida, encontra limitação no número de pessoas que a aceitam. Referindo-se ao que ocorreu na cruz do Calvário, o NT assevera, semelhantemente, que Cristo é a propiciação pelos nossos pecados, o que tem causado grande discussão teológica. Quanto a isso, há basicamente dois principais pontos de vista. Para alguns teólogos o significado bíblico de propiciação é praticamente o mesmo de expiação, enquanto que, para outros, a idéia de propiciação é distinta de expiação, porque o objeto da propiciação é também a ira de Deus e não apenas o pecado dos homens. A propiciação contempla a parte ofendida, que necessita ser apaziguada, e nossa responsabilidade para com a ira de Deus é a provisão da graça pelo qual nós podemos ser libertos dessa ira de maneira que Deus se torne propício ou com disposição favorável a nós. Por conseguinte, embora o derramamento do sangue de Cristo tenha sido a revelação direta do amor do Pai para conosco, foi também o impedimento direto da ira do Pai contra nós. A propiciação realizada por Cristo na cruz demonstrou a justiça de Deus e evidenciou não apenas o perdão de Deus, mas também a justiça, como fundamento para esse mesmo perdão. Ali, Deus satisfez suas próprias exigências santas, desviando do pecador a ira que este com justiça merecia, voltando-a contra si mesmo. Portanto, a 233 propiciação já foi feita por Cristo em prol de todo pecador e, hoje, Deus pode ser, simultaneamente, justo e justificador de todo aquele que crê. A obra de Cristo como libertador da ira de Deus deve ser compreendida a partir do ensino das escrituras do AT e inclui, necessariamente, tanto o sacrifício como a intercessão. O NT mantém o ensino da ira de Deus e apresenta, igualmente, a possibilidade de escape dessa ira, o que só é possível em Cristo, “o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo!”. Esse aspecto sacrifical da obra de Cristo é ressaltado, sobretudo, na epístola aos Hebreus, onde o tema central é o sacerdócio de Cristo no santuário celestial. Nessa carta se percebe que a principal obra sacerdotal de Cristo jaz na expiação, mas que esta, naturalmente, não é completa sem a intercessão. Sua obra sacrifical na Terra requer o seu serviço no santuário do Céu. Em razão de não sermos perfeitos, não temos acesso direto a Deus e precisamos de um sacerdote que ofereça sacrifícios a Deus em propiciação por nossos pecados e interceda por nós, e este é Cristo. Como nosso intercessor, ele ouve nossa confissão de pecados e intercede continuamente por nós, tornando realidade os propósitos salvadores de Deus. Cristo também foi apontado como o executor da ira de Deus. Se ele retratasse somente os atributos pacíficos de Deus, não seria a plena revelação de Deus, mas apenas uma revelação parcial. Em sua soberania Deus estabeleceu que o destino eterno do homem estivesse ligado à pessoa de Cristo. O homem se salva ou se perde em função de sua relação com Cristo. Ou aceita o sangue do Cordeiro ou a ira do Cordeiro. A visão mais importante a destacar a Cristo como o executor da ira divina é aquela que se encontra em Ap 19. Seu propósito é demonstrar que ele tem o direito de julgar em virtude de sua divina natureza e que, como Rei guerreiro e Palavra eficaz, ele cumpre as profecias que anunciavam a vitória de Deus. A espécie de conflito em que ele se engaja – o 234 Armagedom – é mais um enfrentamento espiritual com a execução da justiça, do que um conflito militar. Nessa batalha há uma única arma – a espada – e ela sai da boca de Cristo. É a palavra falada que ele proferirá em seu retorno para executar a ira de Deus e punir e destruir, de modo que ninguém possa resistir nem escapar. Suas vestes manchadas de sangue salientam sua vitória sobre seus inimigos. Ele é o logos de Deus. Através dele Deus fala ao mundo e se revela. Ele que em seu primeiro advento veio para revelar a graça de Deus, agora, no segundo, virá para revelar o juízo de Deus. Uma breve referência ao mesmo evento foi mencionada numa carta de Paulo aos tessalonicenses. Ali, semelhantemente, Cristo é apresentado como o agente de Deus para a destruição (2Ts 2:8). Uma investigação nos escritos do Espírito de Profecia mostrou que ao escrever a respeito de Jesus Cristo, a autora dedicou algumas páginas para tratar de sua relação com a ira de Deus. Discorrendo sobre os resultados da entrada do pecado em nosso mundo, ela aponta a Cristo como fiador diante da ira de Deus até que, no devido tempo, na cruz, a tomasse sobre si. Ao realizar sua obra em prol de nossa libertação, Cristo assumiu uma dupla posição: por um lado ele é a vítima, a oferta mediante a qual é feita a expiação, o alvo da ira divina, aquele que suportou nossa punição; e, por outro, o sacerdote, o ofertante que pleiteia pelo pecador. Mediante seu sacrifício ele trouxe esperança e vida eterna a todos os que nele creem, mas ira e juízo sobre quem o rejeita. Em sua obra intercessora, que iniciou após a ascensão e que ocorre no santuário celestial, ele fica entre a ira de seu Pai e o homem culpado. Enfim, Deus, em Cristo, objetivamente, colocou à disposição do homem os recursos para que este possa se reconciliar com ele e se esquivar de sua ira. Todavia, cabe ao homem apropriar-se deles subjetivamente mediante o arrependimento e a fé em Jesus Cristo. 235 Finalmente, o mesmo Cristo é visto como o executor da ira de Deus, a qual se manifestará, no julgamento final, em dois tempos: primeiramente no derramamento das sete taças seguido por seu segundo advento e, posteriormente, quando todos se reunirem diante do grande trono branco e ele pronunciar a sentença condenatória e executar a justiça sobre aqueles que transgrediram sua lei e oprimiram seu povo. Na ocasião, a ira será derramada sem mistura de misericórdia e os ímpios sofrerão castigo, que variará em duração e intensidade, segundo suas obras, até que sua existência termine com a segunda morte. Então, como nunca mais haverá pecado e mal, a ira de Deus se aplacará para sempre. Na sequência é apresentado um conjunto de sermões que, embora não sejam completos nem exaustivos, refletem o que foi analisado até aqui e, seguindo as regras homiléticas, pretendem ser uma grande ajuda para os pregadores e suas congregações. CAPÍTULO IV A PREGAÇÃO DA IRA DE DEUS Após a realização do estudo sobre a ira de Deus e a sistematização das informações tanto do AT e do NT, como dos escritos de Ellen White, este capítulo apresenta uma proposta homilética, i.e., uma série sugestiva de esboços de sermões sobre o tema. Antes, porém, seguem algumas orientações e sugestões para melhor compreensão e aproveitamento dos próprios pregadores que farão uso desses esboços. 1. Os esboços que seguem estão baseados no conteúdo precedente desta pesquisa. Por isso eles não apresentam as notas bibliográficas correspondentes, o que seria repetitivo. Além disso, eles podem ser completados com o material ali detalhado, o que pode ser feito com facilidade mediante uma consulta ao sumário. 2. Os esboços não pretendem esgotar o assunto, antes apresentam o que é de maior relevância. 3. Os esboços, como o próprio nome sugere, não pretendem ser sermões completos. Enquanto que um esboço simples constaria de uma ou duas páginas e um sermão completamente escrito ocuparia de 20 a 30 páginas, os esboços que seguem são um meio termo entre essas duas modalidades. 4. Todos os esboços foram estruturados de modo a conterem três partes, na sequência: introdução, argumentação e conclusão. 236 237 5. A enumeração das divisões e subdivisões é aquela recomendada por Haddon W. Robinson.1 6. Com a intenção de ressaltar a ideia de unidade das partes, no caso da exposição de idéias paralelas, adotou-se o procedimento de usar palavras ou frases repetitivas, sempre que possível.2 Isso pode ser visto ao se comparar as divisões de um esboço – apresentadas em caixa alta e acompanhadas de algarismos romanos – umas com as outras e, também, ao se fazer o mesmo com as várias subdivisões dentro de uma mesma divisão. Algumas vezes, quando as expressões empregadas não são repetitivas, é porque as ideias são contrastantes, ou se desenvolvem num crescendo, o que fica bem evidente na própria linguagem utilizada. 7. Sugere-se que na exposição do sermão sejam lidas aquelas passagens bíblicas que não estão entre parênteses. As demais se destinam a reforçar a convicção pessoal do pregador. A leitura de todos os textos tenderia a tornar o sermão demasiadamente longo, cansativo e menos eficaz. 8. Em alguns dos esboços, apenas para proveito do pregador, aparecem palavras gregas ou hebraicas entre parênteses. Não há necessidade de mencioná-las na pregação. 9. Diferentemente do uso nos capítulos precedentes, que são mais acadêmicos, nos esboços de sermões os pronomes que se referem à divindade aparecem com a letra inicial em maiúscula, o que se justifica por serem estes esboços de natureza mais popular e por ser esta uma prática comum no meio cristão. 1 Haddon W. Robinson, A pregação bíblica: o desenvolvimento e a entrega de sermões expositivos (São Paulo: Vida Nova, 1983), 86-88. 2 Ver o mesmo procedimento adotado em ibid., 80-88; James D. Crane, O sermão eficaz, traduzido por João Soares da Fonseca, 2ª ed. (Rio de Janeiro: JUERP, 1990), 86-105; Jerry Stanley Key, O preparo e a pregação do sermão (Rio de Janeiro: JUERP, 2001), 174-182; James Braga, Como preparar mensagens bíblicas (Deerfield, FL: Vida, 1991), 122-143. 238 Esboço 1: Atributos Divinos que São uma Reação ao Pecado INTRODUÇÃO 1. Na teologia cristã, um atributo divino é uma qualidade ou propriedade que faz parte da natureza essencial de Deus. 2. Deus é uma unidade cujos atributos estão completamente integrados, não sendo possível separá-los. Todo o Seu ser, Suas ações e palavras estão sempre de acordo. 3. Os teólogos têm feito várias tentativas para classificar os atributos de Deus, tais como: naturais e morais, comunicáveis e incomunicáveis, positivos e negativos e absolutos e relativos. 4. Os absolutos tratam das relações de Deus consigo mesmo e os relativos retratam Suas relações com o universo e os seres inteligentes e morais. 5. Há alguns atributos divinos que, embora façam parte de Seu caráter, estavam ocultos em Seu ser e jamais teriam sido conhecidos por Suas criaturas não fosse o surgimento do pecado. Sua manifestação não seria necessária nem pertinente em um universo santo e perfeito. São eles: a ira, a graça, a misericórdia, a longanimidade e a tolerância. Todos expressam a reação de Deus face ao pecado e são endereçados a toda humanidade. Vamos agora estudar sobre eles. ARGUMENTAÇÃO I. IRA 1. A ira de Deus é sempre uma reação. Sempre a reação de Sua natureza divina e santa contra o mal. Nm 25:1-3. 239 2. A ira de Deus é despertada pelo pecado, em todas as suas formas. Porque o pecado não é inconsequente, mas destrutivo e, se não tratado adequadamente, resultará na morte eterna, ele sempre aborrece a Deus, desperta Sua ira e atrai Seu ataque judicial. 3. A ira de Deus, caso não existisse, revelaria ser Deus injusto, primeiramente consigo mesmo, pois estaria negando Sua própria santidade, mas também com os homens, uma vez que não daria a eles o que merecem. Além disso, mostraria Sua falta de caráter por ser indiferente para com o pecado. 4. A ira de Deus, diferentemente da pecaminosa ira humana, é inteiramente previsível, coerente, constante e imutável, em perfeita harmonia com sua justiça e santidade, e até o dia final do julgamento, temperada com misericórdia, que busca de uma maneira adequada, preservar a ordem e promover a paz. 5. A ira de Deus tem seus efeitos: (1) Primeiramente percebido em nossa própria constituição, porque o pecado se encontra no homem como um princípio inato e o faz ímpio e perverso. (2) Em segundo lugar, no abandono de Deus, que entrega os rebeldes a seus próprios desejos e permite que sigam desembaraçadamente seu caminho descendente, sem freio, sem qualquer intervenção divina, até a plena profundeza da depravação. Rm 1:18-27. a. Esse abandono de Deus nunca ocorre para quem aceita a Cristo como Seu salvador. Hb 13:5. b. Esse abandono de Deus não é necessariamente um abandono eterno, pois enquanto a vida segue, Deus, em Sua graça, provê oportunidades para a salvação. Is 55:7. (3) Finalmente, os resultados da ira divina são vistos nas punições. 240 a. As punições podem ser consequências naturais dos atos de pecado. Gl 6:7. b. As punições podem ser penalidades diretas impostas por Deus como juiz. At 12:21. c. As punições têm vários propósitos: a) A vindicação da santidade e justiça de Deus, b) A correção e recuperação do pecador, c) A dissuasão dos homens para que não enveredem pelo mau caminho nem sofram o prejuízo que o mal costuma causar. II. MISERICÓRDIA 1. A misericórdia (ou compaixão) está diretamente vinculada à miséria. A misericórdia de Deus é uma forma de Seu amor a qual é manifestada para com quem é miserável e se encontra em ruína, desgraça e necessidade. Mc 1:40-41 (Dt 5:10; Sl 86:5-7; 103:3-8; Mc 6:34 cf. Mt 14:14). 2. A misericórdia leva Deus a agir em favor do pecador. Ela faz com que Deus veja o homem suportando as terríveis consequências do pecado e, desesperadamente carente do socorro que unicamente Ele pode oferecer, de modo que, comovido em seu coração, aja em busca do bem temporal e da salvação eterna de quem se opôs à Sua vontade, mesmo a custo do sacrifício próprio. 3. A misericórdia é tanto optativa como limitada. Deus não tem obrigação de prover redenção para os pecadores (ver Rm 9:14-18; 2Pe 2:4). Do mesmo modo que a onipotência, a misericórdia pode existir em Deus mesmo sem ser exercida. 241 4. A misericórdia é regulada e condicionada por sua santidade. O exercício da misericórdia tem suas condições e pode haver interesses mais elevados que requeiram que ele seja recusado. 5. A misericórdia está em perfeita harmonia com a justiça. Ao Deus exercer misericórdia não há violação ou desistência das exigências legais, i.e., não há abolição de Sua lei moral, nem redução da pena, mas, sim, a substituição de quem recebe a punição, de modo que a justiça é estritamente satisfeita através de uma pessoa vicária. A misericórdia que não respeita tais limites pode ser chamada de “misericórdia pecaminosa” e não faz parte do caráter de Deus. É somente quando Seus justos juízos são considerados, que Sua misericórdia torna-se uma vívida realidade. 6. A misericórdia tem sua magnitude vista nas ações divinas. São elas: (1) o permitir que outra pessoa assuma o lugar do pecador e receba o castigo em seu lugar; (2) o providenciar tal pessoa; e (3) o oferecer-se para ser essa pessoa. 7. A misericórdia se encontra mesclada em meio às manifestações da ira divina, enquanto o tempo de graça continua. Desse modo, Deus não Se ira facilmente (Êx 34:6-7; Sl 103:8-9) e, quando irado, não retém Sua ira para sempre (Mq 7:18-20) e, na ira, lembra-Se da misericórdia (Hc 3:2). III. GRAÇA 1. Graça, originalmente, referia-se a algo muito agradável ou atrativo em uma pessoa, algo que trazia prazer aos outros, transmitindo as ideias de beleza, graciosidade, amabilidade e outras que deleitam o agraciado, o que pode ser visto em Sl 45:2; Pv 1:8-9; Lc 4:22; e Cl 4:6. 242 2. Graça passou a ter o sentido de favor, boa vontade ou bondade feitos para outro ou um presente que traz prazer ao outro (ver Lc 2:40; At 2:47; 7:10; 46). 3. Graça, do ponto de vista de quem recebe, foi usada para referir-se à gratidão sentida por um presente ou favor (ver Lc 17:9; 1Co 15:57; 2Co 8:16). 4. Graça (charis) no NT (onde ocorre cerca de 150 vezes) significa, principalmente, o amor salvador de Deus para os pecadores como revelado em Cristo, o que é destacado especialmente nos escritos de Paulo, como pode ser visto em Ef 2:7-9 (Cf. Rm 5-6; Ef 1:5-8; Tt 2:11; 3:7). 5. A graça de Deus é um aspecto de Seu amor. É o amor de Deus visto na relação com o pecado e manifestado apenas para aqueles que são pecadores e indignos e que age para com eles com bondade e generosidade, suprindo-lhes com favores, não na base de seus méritos ou valor, mas de acordo com suas necessidades. 6. A graça de Deus não é apenas um sentimento de compaixão e boa vontade em perdoar, mas um poder ativo, energizante, capaz de transformar e salvar o maior pecador mantendo-o numa correta relação com Deus (Rm 5:21; 1Co 15:10; 2Co 12:9). Como disse o apóstolo, “é o poder de Deus para a salvação” (Rm 1:16). 7. A graça de Deus nunca foi manifestada para com os anjos bons. Eles, que nada conhecem do pecado em sua experiência pessoal, gozam do amor de Deus e da bondade que ele manifesta para com suas criaturas, mas nunca receberam Sua graça, porque dela nunca necessitaram. 8. A graça de Deus nunca foi manifestada para com os anjos maus. As Escrituras afirmam que “Deus não poupou anjos quando pecaram, antes, precipitando-os no inferno, os entregou a abismos de trevas, reservando-os para juízo” (2Pe 2:4). Deus não 243 manifestou graça para com eles. Não elaborou um plano para dar-lhes nova oportunidade, para salvá-los de sua condição e restaurá-los (ver Hb 2:16). 9. A graça de Deus poderia nunca ter sido manifestada para com a raça humana. Deus não tinha necessidade de nos salvar. Por ser Criador e Soberano, Ele é livre para decidir e atuar como lhe agrada (ver Rm 9:15, 20-21). Portanto, graça não é dívida, não pode ser cobrada. Foi por Sua livre vontade que Ele decidiu salvar a humanidade, manifestandolhe Sua graça. IV. LONGANIMIDADE 1. Longanimidade (erekh ’appayim), no AT, transmite a ideia de lentidão para a ira e para punir o erro. Nm 14:18; Is 48:9 (Êx 34:6; Sl 86:15; 103:8; Na 1:3). 2. Longanimidade (makrothumia), no NT, significa literalmente “grandeza de ânimo” – para amar e esperar, perdoar e esquecer (Rm 2:4; 9:22; 2Pe 3:15). 3. Longanimidade é o aspecto da bondade de Deus que tolera o pecador, apesar de sua demora no mau caminho. Ela se manifesta quando Deus adia, temporariamente, o merecido julgamento e continua a oferecer salvação e graça por longos períodos de tempo, dando espaço para arrependimento e conversão (1Tm 1:16; Ap 2:21). 4. A longanimidade pode ser vista no trato de Deus com Israel (Nm 14:18; Sl 103:8-9) e com os antediluvianos (1Pe 3:20) e, na atualidade, com o mundo em relação ao retorno de Seu Filho (2Pe 3:9). 5. A longanimidade de Deus com a humanidade é uma espécie de trégua divina temporária que Ele tem proclamado em sua graça. Esse era, às vezes, o significado de longanimidade quando empregada na literatura grega com o sentido de tolerância 244 (anoche). Referia-se a uma trégua, a qual implicava na cessação das hostilidades das partes em conflito. 6. A longanimidade de Deus, ainda com o sentido de tolerância (paresis) tem o significado de “deixar passar”, “passar por alto” ou “deixar ir sem castigo”. Rm 3:25. (1) Tolerância (paresis) era um termo usado na Lei Romana, onde, geralmente referiase a alguma pessoa que fez um testamento e que deixou de fora alguém importante que, portanto, não entrou em consideração, foi passado por alto, esquecido intencionalmente. Ao usar esta expressão, Paulo não se refere ao perdão para os pecados passados, mas à suspensão provisória da pena desses pecados. (2) Tolerância implica em que, embora os pecados continuem a ser castigados (ver Rm 1:18-32), ainda que não completamente, Deus, ao invés de intervir a cada instante, prefere aguardar e suportar até que chegue o tempo de tratá-los de modo definitivo. A ideia é a de que o Senhor não Se esqueceu dos pecados passados, todavia não Se ocupou deles de imediato. Houve um adiamento do julgamento. 7. A longanimidade de Deus pode ser abusada pelo homem. Isso ocorre quando, em vez de gratidão e correto aproveitamento da oportunidade para arrependimento e reforma de vida, há manifesto desprezo para com a longanimidade de Deus. 8. A longanimidade de Deus para com a humanidade pecadora tem um limite temporal, além do qual sua ira permanece. Se for desprezada ou abusada (1Pe 3:20), servirá para exasperar a ira de Deus e para confirmar a destruição anunciada, resultando em grande severidade no juízo, como o que ocorreu com Faraó (Êx 5 a 12). 245 CONCLUSÃO 1. Por um lado, todos os homens estão debaixo da ira de Deus (Rm 1:18; Ef 5:6 cf. Rm 3:10-12; Ef 2:3; 1Jo 1:8, 10) e, por outro, todos igualmente são alcançados pela graça, pela misericórdia, pela longanimidade e pela tolerância de Deus (Rm 2:4; 3:25; 5:18, 20; Tt 2:11; 2Pe 3:9, 15). 2. Embora a ira final resulte na destruição de todos que rejeitarem a graça, a ira presente tem seus aspectos positivos que cooperam com a graça visando a salvação do homem. Vamos, portanto, submeter-nos à graça de Deus a fim de escapar da ira futura que virá no dia do juízo. 246 Esboço 2: A Ira de Deus em Relação a Seus Outros Atributos Morais INTRODUÇÃO 1. A natureza essencial de Deus nos é manifesta através de Seus atributos (Rm 1:20). Dentre eles o que mais nos cativa é, sem dúvida, o amor; e o que mais causa estranheza e perplexidade é a ira, especialmente porque parece estar em oposição àquele. 2. Todavia, o tema da ira divina, que se encontra distribuído ao longo de todo o texto sagrado, é parte integrante da mensagem central da Bíblia e do Evangelho. Podemos até afirmar que a ira de Deus se destaca como um dos mais relevantes temas das Escrituras e que, apesar disso, são poucos aqueles que o entendem corretamente. 3. A tendência atual é pregar, ensinar e escrever abundantemente sobre o amor de Deus, sua misericórdia, graça, bondade e compaixão, enquanto pouca atenção é dada à Sua justiça, Sua ira, ou ao juízo e ao tormento que incidirão sobre os impenitentes. É verdade que o primeiro grupo de conceitos merece ser enfatizado, mas o segundo não deve ser desconsiderado. 4. Para a correta compreensão do tema da ira divina é absolutamente necessário relacioná-la a outros atributos morais de Deus, notadamente a santidade, a justiça e o amor. ARGUMENTAÇÃO I. A IRA DE DEUS EM RELAÇÃO À SANTIDADE 1. “Santo” (qâdôsh) é uma das palavras mais importantes de todo o AT e tem a ideia primária de separação. Desse modo, santo é aquilo que é separado, retirado do uso 247 comum, como é o caso de lugares e objetos (em que não há qualquer conotação moral) frequentemente mencionados no AT. Este é o mesmo conceito no NT (hagios). 2. “Santo”, quanto expressão empregada para Deus, refere-se à relação que há entre Ele e alguém ou alguma coisa, e pode indicar dois aspectos: a santidade majestosa e a santidade moral. (1) Santidade majestosa. Is 57:15. Em primeiro lugar Deus é santo porque é totalmente separado da criação no sentido de que somente Ele é Deus, Criador, Eterno e infinito, enquanto tudo o mais teve começo, é criação, é finito e não possui natureza divina. Em outras palavras, Ele é singular, distinto de tudo e de todos, exaltado sobre tudo em Sua natureza de infinita majestade (Êx 15:11; 1Sm 2:2). Nesse aspecto, somente Ele pode ser santo. (2) Santidade moral. Hc 1:12a,13a. Este é um sentido secundário e ético, que indica ser Ele absolutamente puro ou bondoso, isento de qualquer deficiência moral ou vestígio do mal, completamente separado do pecado (Jó 34:10). Isso significa também que Deus é a perfeição moral e espiritual, a fonte e o padrão do direito e, como tal, ama o que é bom e odeia o que é mau (Êx 3:5; Lv 19:2; Jó 15:15; Sl 22:3; 47:8; 111:9; Is 6:3; 1Jo 1:5; Ap 4:8; 6:10; 15:4). 3. Santidade – Esse é o atributo divino que, em virtude tanto da frequência como da ênfase com o qual é usado, ocupa uma posição única de importância. Tem sido usado com uma definição da natureza de Deus e é o atributo que qualifica todos os demais e que condiciona e limita seu exercício. 4. A santidade, mais do que qualquer outro atributo, constitui a plenitude gloriosa do Ser moral de Deus. Por isso, quando vai fazer qualquer juramento, não tendo ninguém mais alto por quem jurar, jura por Sua própria santidade. Sl 89:34-36; Am 4:2. 248 5. A santidade é o parâmetro empregado por Deus ao tratar de todas as questões sobre o pecado e sua origem e o fim dos pecadores. Sua vontade, todas suas decisões e atividades, Seus métodos e fins, necessariamente devem estar em harmonia com ela. São santos porque a sua personalidade é santa. 6. A santidade de Deus é mais bem ilustrada pela passagem bíblica de Is 6. Esse capítulo mostra como a revelação da santidade majestosa levou o profeta ao reconhecimento da santidade moral de Deus e de seu próprio pecado diante dela. Mostra como o pequeno enxergava o grande e como o pecador se via diante da santidade moral de Deus – porque o senso de depravação num homem é determinado pelo senso da santidade de Deus que ele possui. 7. A santidade posta em operação, atuando judicialmente e exigindo pureza das criaturas, é chamada de justiça e é administrada aos que não se conformam, aos que resistem e aos que se identificam com o pecado, na forma de penas e sofrimentos. 8. A santidade de Deus é o referencial para a compreensão da ira de Deus, porque esta ira é o desagrado e a indignação da santidade de Deus em reação contra o pecado. Se Deus deixasse de mostrar Sua ira, seria injusto primeiramente consigo mesmo, pois estaria negando Sua própria santidade, e também com os homens, uma vez que não daria a eles o que merecem. Além disso, mostraria falta de caráter por ser indiferente para com o pecado. II. A IRA DE DEUS EM RELAÇÃO À JUSTIÇA 1. “Justiça” e “justo” são termos bíblicos cuja idéia fundamental é a de conformidade a um padrão, de estrito apego à lei. Esta qualidade é repetidamente atribuída a Deus, Sl 119:137 (Ed 9:15; Ne 9:8; Sl 145:17; Jr 12;1; Lm 1:18; Dn 9:14; Jo 17:25; 2Tm 4:8; 249 1Jo 2:29; 3:7; Ap 16:5), pois embora não haja qualquer lei acima dEle, certamente há uma lei em Sua própria natureza divina, da qual derivam todas as leis que são reputadas por justas. 2. A justiça de Deus pode ser classificada: (1) Justiça absoluta ou essencial – aquela inerente a Deus e que se refere à perfeição moral e à excelência de Seu caráter. (2) Justiça relativa – aquela que Ele manifesta em relação a Suas criaturas, governando-as com retidão inflexível, dando a cada um conforme o seu merecimento e agindo de modo que todos assim o vejam e o reconheçam. a. Quando o merecimento é uma punição, essa justiça é chamada de vindicativa e, nesse caso, Deus é visto como vingador, manifestando Sua ira contra os transgressores. 2Ts 1: 6-9 (Sl 7:11; 9:4-5; 62:12; Mt 16:27; Rm 2:1-11; 2Co 5:10). b. Quando o merecimento é uma punição, a ira é o aspecto da justiça que trata da retribuição dos ímpios. Desse modo, toda punição do pecado é considerada como a intervenção da ira de Deus. 3. A justiça de Deus que vem na forma de ira se revela do céu (Rm 1:18), i.e., sob a direção de Deus, por Seu poder e providência, e essa revelação não é inferior àquela que ele tem feito de sua bondade, paciência, longanimidade ou de quaisquer outros de Seus atributos. Ele tem cuidado para que Sua ira contra o pecado, ou Sua justiça, apareça mediante numerosos exemplos de punição infligidos sobre os homens por seus pecados, em seu providencial governo do mundo. 250 4. A justiça de Deus na forma de Sua ira é revelada aos que estão fora de Cristo e sem Cristo (Ef 2:3, 12), mas nunca é injusta nem excessiva e enquanto houver tempo de graça, Deus não a deixa alcançar sua plenitude (Os 11:9). 5. A justiça de Deus nem sempre aparece em Seu governo. Às vezes não parece ser um governo justo, pois quem vive em pecado nem sempre é punido e os justos com frequência parecem não ser recompensados. (1) No AT, o conceito de retribuição não era dominante, pois nem sempre as coisas iam bem para os justos ou iam mal para os ímpios. De fato, tanto o Pentateuco, como os Salmos, os profetas e o livro de Jó atestam o contrário. (2) No NT, pode ser visto que o clamor dos mártires por vingança não é de pronto atendido (Ap 6:10-11). Assim, a justiça de Deus não é um princípio de efeito automático e, por isso, não deve ser avaliada no curto espaço de uma vida, pois aqui ela é frequentemente incompleta ou imperfeita. 6. A justiça de Deus será vista como perfeita e completa apenas quando ocorrer o juízo final. Quando Deus apresentar um veredicto judicial sobre cada homem, todos, mesmo aqueles que serão amaldiçoados, saberão que sua maldição é justa, de modo que nenhuma criatura encontrará mesmo a menor falha em Sua perfeição. 7. A justiça de Deus assim demonstrada vindicará o caráter de Deus e nisso residirá a segurança e a liberdade do universo inteiro, por toda a eternidade. III. A IRA DE DEUS EM RELAÇÃO AO AMOR 1. O amor de Deus não é meramente um sentimento ou emoção, embora Deus tenha sentimento e isto em grau infinito. 251 2. O amor de Deus, no NT, é expresso pela palavra āgapē, que significa um amor racional e voluntário que se baseia numa escolha deliberada, onde o componente emocional se encontra subordinado à verdade e santidade. Jo 3:16. 3 O amor de Deus, assim como o nosso deve ser também, é um atributo no qual se combinam dois impulsos ou desejos aparentemente paradoxais: o de dar-se ao objeto amado, de fazer-lhe o máximo bem; e o de possuí-lo em íntima comunhão. Deus ama toda a criatura no sentido de lhes ser amplamente favorável, mas também deseja sua resposta de amor ao Seu amor. 4. O amor de Deus e Sua santidade estão intrinsecamente ligados. (1) O amor de Deus por um lado é sujeito, ordenado e condicionado por Sua santidade e, por outro, a impregna, habilita, sujeita e complementa. Deus não seria tão santo se não fosse incomparavelmente amoroso. Nem seria tão amoroso como é, sem ser incomparavelmente santo. (2) O amor de Deus sem a santidade de Deus não seria justo por ignorar as ofensas do pecado. A santidade de Deus sem o Seu amor seria insuportável e incapaz de efetuar a reconciliação. Nenhum deles sozinho poderia prover a salvação dos pecadores. (3) O amor e a santidade são como dois pólos morais do ser de Deus. Como santo, Ele se opõe ao pecado e exige sua punição; mas como amor, anela fortemente perdoar e salvar e torna o pagamento da penalidade possível. Deste modo, em Si mesmo é encontrada concordância, pois um lado de Sua natureza proporciona o que o outro lado de Sua natureza exige. Em outras palavras, “a santidade é o trilho onde a locomotiva do amor deve correr” [Strong, 2002]. 5. O amor de Deus não pode ser completamente compreendido a menos que se inclua a justiça (Êx 34:7). Sem ela o amor não passa de mero sentimentalismo. 252 (1) O amor de Deus e Sua justiça operam juntos em seu trato com os homens. Enquanto a justiça requer que haja pagamento da penalidade do pecado, o amor deseja que o homem seja restaurado à amizade com Deus, mas não há nenhuma tensão entre eles. A tensão só existe quando se pensa que o amor requer que Deus perdoe sem qualquer pagamento. (2) O amor de Deus e Sua justiça são completos. Ele não é parcialmente amor e parcialmente justiça, mas perfeito amor e perfeita justiça, e tudo de Deus é amor e tudo de Deus é justiça. Sendo assim, Sua ira é a mais verdadeira expressão de Sua santidade e justiça punitiva contra o pecado, e está em perfeita harmonia com Seu amor, que, por ser santo, rejeita o mal com o mesmo empenho com o qual aprova o bem. 6. O amor de Deus não implica em que Ele aprove tudo o que o objeto de Seu amor faça. (1) A aprovação não é necessária ao amor. Há um amor que não se regozija no objeto amado, é o amor que se compadece. Este é o amor de Deus para com os ingratos e maus. Por isso, Deus nos amou quando ainda éramos seus inimigos. Rm 5:8; Ef 2:35. Por isso, uma mãe ama seu filho rebelde embora não aprove seus atos. (2) A aprovação pode estar incluída no amor. Há um amor que inclui aprovação, é o amor que se compraz, cujo objeto amado é amável e traz alegria. Este é o amor que Deus tinha para com Jesus que em tudo Lhe era obediente. Mt 3:17 (Mt 12:18; 17:5 cf. Jo 5:20; 15:9-10). Este é o amor de Deus para com aqueles que O amam e obedecem (ver Dn 9:23; 10:11, 19; Ef 4:25-5:1). (3) A aprovação ou não do amor não significa que haja dois amores, mas, sim, dois objetos amados diferentes. Desta maneira é o amor de Deus para com o crente e o descrente. 253 7. O amor de Deus é o pano de fundo para o tema da ira de Deus. (1) A ira de Deus é a reação do seu amor rejeitado. É a forma que o amor toma frente ao pecado e ao mal e aqueles que se opõem a ele. “É o não de Deus ao pecado” [Webwe, 1988]. (2) A ira de Deus é a reação de Deus ao pecado. Mostra que Deus permanece o mesmo quando Seu amor é rejeitado. Quando o amor de Deus – em suas várias manifestações de bondade, misericórdia e longanimidade – encontra-se com a perversa vontade do homem ao invés da fé, da gratidão, da boa vontade e do amor, torna-se ira. Rm 2:4-8 (Mt 18:34; Mc 3:5). (3) A ira de Deus pode causar sofrimento, castigar e prolongar-se, contudo permanece temperada por Sua misericórdia enquanto durar o tempo de graça, produzindo um salutar temor do Senhor e tendo como propósito final o bem de Suas criaturas. (4) A ira de Deus, além disso, também é motivada pelo amor de Deus para com os Seus, buscando protegê-los. a. Porque o amor inclui um elemento de zelo (ciúme) para com o amado, com a correspondente reação contra aqueles que se voltam contra este objeto do amor. b. Porque se Deus não tivesse ira, equivaleria a não ter compromisso com o universo que criou e interesse em suas criaturas, o que também evidenciaria falta de amor. (5) A ira de Deus não é incompatível com Seu amor e tais atributos podem coexistir na personalidade de Deus. As Escrituras mostram que Deus expressa Seu amor por aqueles que são objetos de Sua ira. a. Embora Deus ame a Israel com amor eterno (Jr 31:3, 20), ao mesmo tempo, em Sua ira, envia contra eles os babilônios para executarem Seu juízo (Jr 21:5-7). 254 b. Embora como humanos sejamos filhos da ira (escravizados por Satanás e presos ao curso deste mundo e à natureza pecaminosa), Deus nos amou com grande amor (Ef 2:3-5). c. Embora Ele declare Seu amor para com mundo e aja em seu favor (Jo 3:16; Rm 5:8; Ef 2:3), também revela dos céus Sua ira, de múltiplas formas, sobre os mesmos homens (Rm 1:18-32). 8. O amor de Deus para com o pecador é simultâneo com Sua ira para com o mesmo pecador. (1) Deus ama o pecador e odeia o pecado. Todavia, esta não é toda a verdade sobre o assunto. Embora, a ira de Deus contra o pecado não implique em qualquer diminuição do Seu amor para com as moralmente perdidas criaturas, a verdade é que Deus experimenta para com o pecador tanto a ira quanto o amor ao mesmo tempo, sem que haja qualquer ação contrária de um para com o outro. (2) Deus detesta o pecador quando este se opõe voluntariamente contra a verdade e a santidade, mas o ama quando o vê arruinado pela transgressão. CONCLUSÃO 1. Nosso estudo demonstrou a relação entre a ira e os outros atributos morais de Deus, de maneira especial a santidade, a justiça e o amor em suas várias formas. 2. Assim, em relação à santidade, foi visto que em Deus há perfeição moral e espiritual e que Ele demanda de todos os seres morais uma pureza que corresponda à mesma pureza de Sua natureza, de modo que Sua ira é apresentada como uma das perfeições divinas, expressão justa e natural de Sua santidade como reação contra o pecado. 255 3. Com respeito à justiça de Deus, foi demonstrado que toda punição do pecado é considerada como justa intervenção da ira de Deus contra aqueles que não se conformam com Sua santidade. Todavia, como isso não acontece como um princípio de efeito automático fica, por vezes, a impressão de que o governo divino não é justo. Para se evitar essa ideia, faz-se necessário que a justiça divina seja vista também como escatológica e no escopo da eternidade. Então, quando o plano de salvação se concretizar, a justiça divina será vista como perfeita, e Deus, considerado justo por todo o universo, tanto pelos que serão salvos quanto pelos que se perderão. 4. As considerações sobre o amor de Deus demonstraram que este não é simplesmente um sentimento ou emoção, mas um amor racional e voluntário que se baseia numa escolha deliberada, onde o componente emocional se encontra subordinado à verdade e santidade. Embora Deus ame suas criaturas de muitas formas (misericórdia, graça, bondade, longanimidade e tolerância), também espera que elas correspondam ao Seu amor. Este amor de Deus não pode apenas ignorar as ofensas do pecado, caso contrário não passará de mero sentimentalismo. Para ser compreendido necessita incluir os aspectos da justiça e da santidade, que se opõem ao mal em todas as suas formas e especialmente àqueles que o rejeitam. Sendo assim, a ira de Deus, além de ser a mais verdadeira expressão de sua santidade e justiça punitiva contra o pecado, é também a reação do Seu amor desprezado ou abusado. Em realidade, as evidências bíblicas apontam para o fato de que Sua ira não é incompatível com Seu amor e que tais atributos coexistem em Sua personalidade e que, além disso, Deus experimenta simultaneamente, para com o pecador, tanto a ira quanto o amor: a ira, por causa da falta de santidade nele, e o amor, em razão de sua necessidade. 256 5. Continuemos a aprender mais e mais sobre Deus e Seus maravilhosos atributos e como Ele Se relaciona conosco. Sejamos gratos a Ele por Seu amor demonstrado para conosco de muitas formas, e correspondamos a tão grande amor vivendo, por Sua graça, como é do Seu agrado. 257 Esboço 3 – A Ira de Deus Comparada com a Ira dos Homens e a Ira dos Deuses INTRODUÇÃO 1. A ira de Deus é um tema que costuma alarmar as pessoas. Isso ocorre porque a tendência do pensamento humano, que frequentemente aprende por comparação, é identificá-la com os aspectos negativos tão comuns nas demonstrações da ira humana e nos relatos mitológicos das divindades pagãs. 2. A ira de Deus, apesar de ter algumas semelhanças com a ira humana e a ira das divindades pagãs retratada nos relatos mitológicos, é também marcadamente diferente. É sobre isso que vamos estudar agora. ARGUMENTAÇÃO I. A IRA DOS HOMENS De modo geral, a ira é a expressão de um sentimento experimentado diante de uma situação injusta ou contrária à nossa vontade. 1. Aspectos Negativos A ira humana é um sentimento frequentemente associado à exasperação desaforada, ao ódio vingativo e à paixão descontrolada e irracional, podendo nos fazer perder o equilíbrio e até o juízo e nos levar a cometer atropelos e injustiças. Nesse caso, a ira pode ser definida como “uma loucura temporária” e é egoísta e pecaminosa. Pv 27:3-4 (Gn 49:57; 1Sm 20:30; Jó 36:13 e 18; Sl 37:8-9; Pv 12:16; 29:8; 30:33). 258 2. Aspectos Positivos (1) A ira humana pode ser justa e, neste caso, nem é loucura, nem é breve. Mesmo sendo pecador e, por isso, imperfeito, o homem pode ter ira sem maldade, como a que ocorre em face de uma grave injustiça feita a outra pessoa, sendo, neste caso, uma ira boa e necessária. 2Sm 12:1-5 (Êx 16:20; 32:19; 1Sm 11:1-6; Ne 5:4-6; Jr 6:11-15). (2) A ira humana pode ser necessária. Assim, quando uma autoridade secular, representando o Estado, pune um criminoso, não o faz em espírito de vingança, mas por vindicação da lei, que representa a estabilidade social (ver Jo 19:11; Tt 3:1; 1Pe 2:13-17), sendo vista como ministro de Deus para castigar (lit. “executar ira”) o que pratica o mal. Rm 13:4. 3. Aspectos Marcantes na Comparação com a Ira de Deus A “ira de Deus” é uma expressão que parece sugerir, à primeira vista, aquelas qualidades negativas que nós associamos com a ira humana e, desse modo, as pessoas confundem a ira divina com os seus próprios sentimentos pecaminosos, o que contribui para perverter a concepção de Deus, criando, por um lado, uma forte objeção e, por outro, uma atitude de desculpar a Deus por Ele mostrar Sua ira, como se isso fosse uma falha de Seu caráter. Todavia, quando se compara a ira de Deus com a ira humana pecaminosa percebe-se que: (1) No homem, a ira é uma paixão maligna que perturba o equilíbrio emocional e o faz arder com o desejo de ferir a outros. Mas não há nenhuma malignidade no coração de Deus. Antes, Sua ira provém de Seu amor e se levanta contra o mal que quer arruinar Suas criaturas. 259 (2) No homem, a ira é uma paixão egoísta, pois desponta em quem se sente de algum modo prejudicado. Mas isso não acorre com Deus, porque ninguém O pode prejudicar. (3) No homem, a ira se volta contra a ofensa, ou o ofensor, ou ambos, e pode resultar em recolhimento e antagonismo. Há algo assim na ira de Deus. O mal moral é repugnante, extremamente desagradável a Sua natureza santa. (4) No homem, a ira retrata uma tendência natural para a vingança pessoal, o que não ocorre com a ira de Deus. Dificilmente um homem irado consentiria em transferir sua ira, canalizando-a para uma pessoa perfeitamente inocente. Contudo, foi isso o que Deus fez. (5) No homem, a ira é, com demasiada frequência, uma paixão maligna, fundada no egoísmo e com conotação de vingança pessoal. A ira de Deus, ao contrário, é sempre uma reação contra uma única ação: o mal. Assim, é inteiramente previsível, coerente, constante e imutável, sempre em harmonia com sua justiça e até o dia final do julgamento temperada com misericórdia. II. A IRA DOS DEUSES A ira dos deuses é o fundamento de todas as religiões pagãs, em todas as épocas e lugares. 1. Aspectos Históricos (1) A ira dos deuses tem sido tão vividamente apresentada à consciência de todos os povos, ao ponto que cada culto pagão pode ser entendido como um esforço para antecipar-se a ou suavizar a ira dos deuses. 260 (2) A ira dos deuses, retratada no próprio nome de alguns deles, como é o caso de Fúrias, mostra que ira é sua natureza. Cícero chegou a afirmar que todas as escolas filosóficas têm em comum o conceito de que a divindade tem liberdade para se enraivecer. (3) A ira dos deuses, segundo a compreensão pagã, era direcionada de modo a atingir a outros deuses ou aos homens e, em ambos os casos, era uma forma de autoafirmação e protesto. (4) A ira dos deuses, segundo o entendimento dos romanos, caía especificamente sobre os ímpios, aqueles que desrespeitam os deuses. (5) A ira dos deuses era vista como diretamente relacionada à situação do governo. A estabilidade do estado e do governo residia essencialmente sobre a religião, de modo que os eventos desastrosos na vida política e histórica, como dissensões internas, lutas de classes, guerra civil e rebelião (além das doenças e dores ao homem particular) eram vistos como relacionados à ira dos deuses, motivada especialmente pela culpa religiosa e a negligência às cerimônias. (6) A ira dos deuses, entretanto, podia ser contrabalançada e, às vezes, removida através de ações cúlticas tais como orações, votos, sacrifícios e ritos de expiação. (7) A ira dos deuses foi descrita na mitologia pagã do Oriente Médio como um tipo de paixão maliciosa e descontrolada, que frequentemente caracterizava uma personalidade implacável. (8) A ira dos deuses é um tema que demonstra ter havido vários deuses, de várias categorias e graus de poder, de temperamento inconstante, cheios de caprichos, que se rivalizavam, e se ofendiam e se irritavam por qualquer motivo contra os homens, dificultando-lhes a existência. Os seres humanos, por sua vez, precisavam, 261 periodicamente, negociar com eles e aplacar-lhes a ira, o que era feito mediante dádivas custosas, incluindo, algumas vezes, o sacrifício humano. (9) A ira dos deuses também é exposta em textos pagãos orientados historicamente (e não mitologicamente), que a retratam como um tipo de pathos (paixão, tristeza), legitimamente ocasionada por ofensas humanas contra a justa vontade daqueles deuses. Nesses textos as transgressões humanas que tendem a provocar uma ira legítima dos deuses são: a. O desdém para com o templo do deus; b. A violação de um juramento solene; c. A transgressão de alguma das exigências fundamentais da vida, da moralidade, ou da lei. (10) A ira dos deuses, nesses casos, não era uma ira cega, pois visava a colocar limites e a restaurar a ordem. 2. Aspectos Marcantes na Comparação com a Ira de Deus: (1) A ira de Deus, como apresentada na Bíblia – assim como a ira dos deuses, conforme o relato da literatura pagã – tem como causa comum o desprezo manifestado para com a divindade e a busca de uma vida independente dela. (2) A ira de Deus, todavia, não é caprichosa nem possui aquelas qualidades antiéticas tão comuns nos relatos da ira dos deuses pagãos. (3) A ira de Deus, segundo as Escrituras, é aplacada por iniciativa do próprio Deus, que realizou a conciliação. Diferentemente, no pensamento pagão, a ira dos deuses, frequentemente manifestada contra os homens, podia ser aplacada e sua boa vontade assegurada por iniciativa do ofensor, que ofertava um sacrifício conciliatório. 262 (4) A ira de Deus contra Israel podia ser temperada com compaixão e amor. Is 54:7-8 (Êx 32:12-14; Os 11:8-9; Mq 7:18). Deus é visto como tendo o desejo de restringir Sua própria ira; enquanto que a ira dos deuses do antigo Oriente Médio precisava ser, com frequência, restringida pela intervenção de outros deuses. CONCLUSÃO 1. A comparação da ira de Deus, tanto com a ira humana quanto com a ira dos deuses da mitologia pagã, demonstrou que a ira divina não inclui muitos dos aspectos negativos tão comuns a estas. Antes, ela é sempre seu desprazer e reação contra o mal. Inteiramente previsível, coerente, constante e imutável, em perfeita harmonia com Sua justiça e santidade, e, até o dia final do julgamento, temperada com misericórdia, a ira de Deus busca, de uma maneira adequada, preservar a ordem e promover a paz. 2. Embora seja um fato que o Deus da Bíblia, por um lado, também se ira contra aqueles que transgridem Suas leis e busca manter a ordem do universo aplicando o devido castigo, por outro, Ele é retratado como mesclando Sua ira com compaixão e amor e mesmo tendo a iniciativa de restringi-la e de promover a reconciliação. 3. Vamos, portanto, com a bênção de Deus, abandonar toda ira egoísta, maligna, irracional e vingativa que queira se instalar em nosso coração e aceitar Seu amor e Sua obra de reconciliação conosco. 263 Esboço 4: Causas da Ira de Deus INTRODUÇÃO 1. As Escrituras estão repletas de informações a respeito da ira divina. 2. No AT, patriarcas, reis e profetas a descreveram. Uma análise de suas narrativas e profecias torna evidente o que a causava. Na maioria dos casos, esta ira é causada por ações humanas que violavam a aliança. Noutras vezes, o motivo é a desumanidade do homem para com os semelhantes. 3. No NT, a causa básica da ira de Deus é o pecado. ARGUMENTAÇÃO I. A QUEBRA DA ALIANÇA 1. Aliança era um procedimento comum nos tempos bíblicos. Documentos na forma de tabletes revelam que no Oriente Médio, nos dias do antigo Israel, eram comuns dois tipos principais de tratados internacionais. (1) Havia aliança entre iguais, com obrigações idênticas de ambas as partes. (2) Havia aliança entre um superior e um inferior, como o que acontecia entre um suserano e um vassalo. a. Os tratados hititas – feitos com uma nação inferior – continham, entre outros itens, um prólogo histórico que relembrava o relacionamento já ocorrido entre as partes, destacando a bondade manifestada pelo superior para com o inferior, e dando assim motivo para este ser grato e obediente aquele. 264 b. Outros tratados, feitos entre um suserano e um vassalo, também continham um procedimento básico que indicava a penalidade que ocorreria se a parte inferior se negasse a cumprir o que fora estipulado pela parte superior. 2. Aliança era um procedimento encontrado pelo mundo antigo para formar relacionamentos mais amplos que garantissem uma maior segurança, e proveu o contexto cultural em que a aliança entre Deus e Israel foi formulada. 3. A aliança feita no Sinai – embora fosse singular, no sentido de que não ocorreu com nenhuma outra nação e colocasse Israel num relacionamento especial com Deus – corresponde ao padrão desse tipo de tratado: entre um superior e um inferior. 4. A aliança feita no Sinai ocorrera por iniciativa divina, como um ato de graça soberana (ver Dt 4:13ss.; 29:13), com um povo que Ele mesmo redimira (Dt 13:5; 21:8) e estipulava, por um lado, que Deus adotara Israel como Seu povo e que por isso o protegeria e abençoaria ricamente e, por outro, que Israel Lhe seria santo (Lv 19:2; 11:44; 20:7, 26) e obediente (ver Êx 20-24). (1) Se os israelitas cumprissem com sua parte, gozariam do favor e das bênçãos de Deus (Dt 7:12-24; 28:1-13). (2) Se os israelitas falhassem receberiam as maldições (Dt 28:15-68) e a ira de Deus (Dt 6:10-19). 6. A aliança de Deus com Israel está intimamente vinculada ao tema da ira de Deus. É teologicamente significativo que, no AT, sempre que um termo para ira é conectado com um nome para a divindade, é empregado Yahweh, o Deus da aliança (Êx 32:1-10; Dt 11:16-17; 2Re 24:2), demonstrando assim a íntima associação entre a ira de Deus e a histórica aliança de fé de Israel (Am 3:2). 265 7. A aliança de Deus com Israel, incluindo sua eleição e guia, apresenta o pano de fundo contra o qual a ira de Deus no AT deve ser compreendida (Am 2:9-11; 3:2; Os 11:3ss.; Is 1:2). Isto implica em algumas verdades: (1) Quando alguém violava a lei dentro da nação, de modo coletivo ou individual (Dt 29:27; Jz 2:20; Js 23:16; Ed 9:14), provocava a ira de Deus (Ez 5:13; Os 5:10; Is 9:8-10). Isso era especialmente verdade quando o povo seguia após outros deuses. Jz 2:13-14 (Êx 32; Nm 25; Dt 2:15; 4:25; 1Re 11:9; etc.). (2) Quando alguma outra nação oprimia Israel, incorria na ira de Deus. Ob 1 e 10 (Is 10:5ss.; Jr 50:11-17). (3) Quando havia falha em cumprir suas obrigações, isso se constituía na mais importante razão para a manifestação da ira de Deus. Dt 29:24-28. (2Re 22:13; 2Cr 34:1; Ez 20:13, 21). Como regra, esta ira era uma reação divina à ingratidão e incredulidade de Israel, que não fora fiel à aliança e, portanto, Deus – que queria manifestar amor ao seu povo (Os 1:9) – aparecia como um Deus irado (Mq 7:9; Ed 8:22). (4) Quando os profetas que viveram antes do exílio proclamaram sua mensagem, a ira de Deus foi seu tema central, embora nem todos usassem o termo ira. a. Os profetas combatiam o falso senso de segurança que o povo tinha contra a ira e o julgamento, com destaque para Jeremias e Ezequiel. b. Os profetas combatiam o culto sincretista (Is 1:10-17; Jr 6:20; Os 6:6; Am 5:2127), a injustiça social (Is 1:15-17; Js 5:28; Am 5:7, 10-12; Mq 3:1), a política que trata de armamentos e alianças (Is 30: 1-5; Jr 2:35-37; Ez 16:26) e a adoração de outros deuses, mas, em tudo isso, a questão fundamental era que o povo tinha 266 abandonado seu Deus, desprezado Seu amor e quebrado Sua aliança, e por isso, merecia a ira divina. 8. A aliança de Deus com Israel, quando quebrada, expõe a mais profunda raiz do conceito de ira, e nesta luz podemos compreender a esmagadora força da mensagem. É o amor ferido de Deus que desperta Sua ira. O Senhor sente-Se enciumado e zeloso por causa da atitude de Israel, Sua esposa, e isto encontra expressão na ira (Dt 32:20; Sl 78:58; 79:5; Ez 16; 23). 9. A aliança de Deus com Israel também implica em Seu zelo por Seu povo. Assim, quando este é ameaçado por outras nações, Ele Se posiciona como um amante esposo para destruir estas nações e salvar Seu povo. Is 42:13; 59:17 (63:15; Zc 1:14 ss; 8:2 ss; Na 1:2). II. A DESUMANIDADE Ainda no AT, vê-se a ira de Deus sobre as nações por outros motivos, que podem ser classificados como desumanidade. 1. A profecia de Amós pronuncia julgamento sobre as nações da Palestina. Enquanto que Israel e Judá seriam castigados por pecarem contra a vontade revelada de Deus, as outras nações seriam punidas pelos pecados cometidos contra uma lei moral, universal, não escrita, mas amplamente admitida e evidenciada na natureza, na consciência e no sentimento natural. Am 1:3-2:3. 2. A profecia de Amós denuncia pecados que são, todos, atos de desumanidade (para com qualquer ser humano e não apenas contra os israelitas), considerados perversos segundo os padrões daqueles dias. Mesmo quando a guerra fosse considerada necessária, ela devia ter seus limites. 267 III. O PECADO 1. O pecado, na abordagem do NT, é a causa básica da ira divina. Rm 1:18. Mas, o que é pecado? É qualquer falta de conformidade com a lei de Deus, mas é mais do que isso, porque a lei pode não incorporar tudo que o caráter de Deus é. 2. Pecado é tudo aquilo que contradiga o caráter de Deus, é uma oposição a Deus, é a quebra do relacionamento pessoal com Deus. (1) O pecado é uma ação. (2) O pecado é, também, um estado da vontade e condição pessoal que se opõe a Deus e à vontade de Deus, de modo que se não houvesse Deus nem a possibilidade de uma relação Ele, não poderia existir pecado. 3. Pecado, no sentido mais fundamental, é asebeia (impiedade) e abrange uma grande diversidade da dinâmica humana de modo que o pecador vive como se Deus não existisse, recusando assim a relacionar-se corretamente com Ele. Ou, como Paulo descreveu, “tudo que não procede da fé é pecado” (Rm 14.23). 4. Pecado é uma realidade que abrange não apenas a relação Deus-ser humano, mas também o relacionamento do homem com o resto da humanidade, o que pode ser visto claramente no Decálogo e na denúncia da injustiça por parte dos profetas. 5. Os pecados, desse modo, podem ser classificados como pecados religiosos ou ofensas morais. (1) Os pecados religiosos, envolvem negligência e rebelião contra Deus (asebeia – impiedade). (2) As ofensas morais abarcam toda espécie de desvio de conduta e são, consequentemente, contra os homens (adikia – injustiça). Os pecados contra os homens derivam dos pecados contra Deus. 268 6. O pecado não é inconsequente, antes tem resultados definidos, que mais cedo ou mais tarde acabam aparecendo. Rm 6:23; 12:19. 7. O pecado, por ser uma violação da ordem moral estabelecida por Deus e repudiar Sua luz, Sua lei e Seu amor, é destrutivo; é como um câncer moral e espiritual que devora pouco a pouco a alma do homem, impedindo-o de se tornar o que Deus planejou que ele fosse. 8. O pecado é o veneno da morte que, sem o adequado tratamento, que apenas o céu pode aplicar, resultará na eterna separação de Deus. 9. O pecado implica em morte. Essa foi a primeira lição que Deus quis ensinar a Seu povo através do sistema sacrifical. Pecado e morte se encontram inseparavelmente unidos. 10. O pecado, por ser o que é e por suas maléficas consequências, não traz nenhum prazer a Deus (Rm 8:3; 1Jo 1:5; 3:5; 3Jo 11), nem pode ser por Ele aprovado, encorajado (Tg 1:13-14), ou tolerado indefinidamente. 11. O pecado sempre provoca a oposição de Deus e desperta Sua ira. Como disse Agostinho, “a ira de Deus não é uma perturbação de seu espírito, senão um juízo pelo qual o castigo é pronunciado sobre o pecado”. É Sua atitude de desprazer frente ao pecado e ao mal e Seu firme ódio contra ele. É Sua declarada determinação de punir o pecado em todas as suas formas. 12. O pecado atrai a ira de Deus, que inclui Seu desprazer, Sua forte resistência e também Seu ataque judicial. Essa reação divina se origina não apenas em Sua escolha, mas em Sua própria natureza e, de acordo com o apóstolo Paulo, é revelada contra todas as deficiências na esfera religiosa e na esfera moral (Rm 1:18). 269 CONCLUSÃO 1. Como vimos, por meio do Estudo das Sagradas Escrituras, é o pecado em suas várias formas – incluindo a quebra da aliança com Deus e a desumanidade do homem para com os seus semelhantes – que atrai a ira de Deus. 2. Entretanto, isso não é tudo sobre a ira divina: (1) Porque ela não vem sobre os homens sem que estes sejam previamente advertidos (Êx 22:23-24; 32:10; Dt 6;13 e ss.). (2) Porque ela pode durar apenas um momento (Sl 30:6; Is 26;20; 54;7-8). (3) Porque algumas vezes, por detrás dela já se percebe um vislumbre de esperança (2Sm 24:16; Is 40:2; 51:22; 54:8-10; Os 14:4) e, se o homem se humilhar e voltar-se para Deus, então a ira terá cumprido sua missão, efetuando a restauração. 3. Vamos, portanto, apegar-nos a Deus, fazendo dEle o centro de nossa vida, buscando conhecê-Lo e amá-Lo mais e mais, procurando viver uma vida que O agrade e odiando o pecado e o mal em todas as sua formas. 270 Esboço 5: O Abandono do Homem é uma Forma da Ira de Deus INTRODUÇÃO Rm 1:18-32. Os últimos versículos do primeiro capítulo de Romanos descrevem a humanidade abandonada por Deus e a cena é terrível. Depois de discorrer sobre a impiedade e perversão dos homens em seu sucessivo afastamento de Deus, e sua recusa de responder positivamente à revelação de Deus, deificando a razão humana e chegando à loucura da mais corrupta forma de práticas idolátricas, o apóstolo por três vezes emprega a expressão “Deus os entregou”. Esta entrega ou abandono é uma forma de ira. Estudemos agora o significado desse abandono e como evitá-lo. ARGUMENTAÇÃO I. DEUS ABANDONA O DESOBEDIENTE CONTUMAZ O abandono de Deus não originou a condição moral dos desobedientes, pois esta condição já existia. Não deslizaram por este caminho porque Deus os abandonou ou os induziu ao pecado, antes Deus os deixou ir sem freio pelo caminho em que já se encontravam. 1. A natureza do abandono. Os eruditos se dividem quanto à natureza deste abandono: (1) O abandono é consequência natural da vida de desobediência: a. Esse abandono, embora destaque o aspecto judicial do processo, significa que a punição do pecado não ocorre por qualquer intervenção direta pela qual Deus disciplina os ofensores, mas é uma consequência que naturalmente acompanha 271 uma vida de desobediência. É o caminho em que as leis de um universo moral operam. b. Esse abandono consiste simplesmente na permissão para que a humanidade siga seu próprio caminho. Portanto, a punição do pecado é o próprio pecado. c. Esse abandono significa que Deus nos entrega a nossos próprios desejos e nos permite controlar nosso próprio destino de modo que liberdade para fazermos o que queremos é a punição de uma rebelião contra Deus. (2) O abandono é judicial e punitivo: a. Não é apenas permissivo, no sentido que Deus permitiu ou retirou Sua graça. b. É uma solene intervenção da justiça de Deus na história da humanidade. c. É o primeiro estágio no exercício de uma atividade punitiva positiva para a ignorância culpada e a perversidade intencional, que resultará finalmente no abandono do homem ao julgamento da morte (Rm 6:23; Jo 3:36), quando Deus empregar atos específicos de juízo, como os que ocorreram no Dilúvio e em Sodoma. 2. O efeito do abandono. (1) O abandono resulta numa disposição mental reprovável, em que as distinções entre o bem e o mal são confusas ou perdidas. Desse modo, pecado gera pecado, e trevas de mente aprofundam as trevas, o que endurece os homens. (2) O abandono resulta no homem descambando para a tolice indescritível da idolatria. (3) O abandono resulta no deplorável amor próprio. Permite que os rebeldes sigam desembaraçadamente pelo seu caminho descendente, sem freio, sem qualquer intervenção divina, até os mais terríveis graus de depravação. 272 (4) O abandono resulta numa sociedade que despreza as pessoas e que destrói a si mesma. (5) O abandono resulta na degradação da imagem de Deus e na perda da dignidade. II. DEUS NÃO ABANDONA SEUS FILHOS. 1. Deus nunca abandona os homens – é o que alguns imaginam, e a razão de pensarem assim é por não compreenderem o significado da santidade, da justiça e do amor de Deus. Na verdade, ele nunca abandona aquele que aceita a Cristo como Seu salvador (2Tm 2:13). 2. Deus é o criador de todos os homens e todos podem escolher ser Seus filhos, mas Ele é pai somente daqueles que nasceram de novo pela fé em Cristo. As desobediências isoladas destes são tratadas de outra maneira, com o castigo e disciplina do amor paterno (Hb 12: 5-13). CONCLUSÃO 1. É digno de nota que se Paulo não tivesse declarado que estas coisas são sinais da ira, nós as interpretaríamos como sinais da graça, porque esta visitação de Sua ira consiste em permitir que a humanidade siga seu próprio caminho (At 7:42; 14:16). 2. Esta ação divina de entregar o homem ao seu próprio pecado não é aqui um abandono eterno, pois, enquanto a vida segue, Deus em sua graça provê oportunidades para a salvação. 3. Escrevendo aos coríntios, depois de apresentar uma lista de pecados semelhantes à de Rm 1:29-31, Paulo menciona que alguns deles haviam vivido daquele modo e, todavia, Deus os transformara. 1Co 6:11. 273 4. Devemos, portanto, pela graça de Cristo, desvencilhar-nos de todo pecado e permanecer unidos a Cristo. 274 Esboço 6: Instrumentos da Ira de Deus INTRODUÇÃO 1. A ira de Deus é manifestada através de justos juízos. 2. A ira de Deus é manifestada através de variados instrumentos, tais como anjos, homens, forças da natureza, pragas, doenças e acidentes. Deus é soberano e tem todo o universo à sua disposição para cumprir sua vontade. ARGUMENTAÇÃO I. OS ANJOS Uma leitura atenta das Escrituras Sagradas revela que Deus emprega como agentes de Sua ira tanto os anjos que Lhe são sempre leais como aqueles que se rebelaram contra Ele. 1. Os anjos da luz (1) Os anjos de Deus trabalham em favor dos homens. Hb 1:14. Eles trazem revelações ou orientações específicas, animam, confortam, cuidam e protegem. (2) Os anjos de Deus exercem um poder destruidor quando Deus ordena. Isso pode ser percebido nos muitos exemplos encontrados nas Escrituras. Relembremos alguns deles: a. Os viajores que visitaram a Abraão (Gn 18) eram anjos e ministros da ira, que se dirigiam a Sodoma com a finalidade de destruí-la (Gn 19). b. Na décima praga contra o Egito, um único anjo destruiu todos os primogênitos dos egípcios. Êx 12:29-30. 275 c. Durante o reinado de Ezequias, por ocasião da invasão dos assírios que comandados por Senaqueribe afrontaram e blasfemaram de Deus, o juízo divino veio por meio de um anjo. 2Re 19:35. d. Nos dias da igreja primitiva, um anjo foi o mensageiro da ira e juízo a Herodes, trazendo sobre ele o castigo do Todo-poderoso. At 12:20-23. e. Nos eventos escatológicos que ocorrerão por ocasião do derramamento das sete últimas pragas, são os anjos de Deus que executarão seus juízos. Ap 15:1; 16:121. 2. Os anjos das trevas (1) Os anjos de Satanás trabalham contra os homens. Ef 6:12; 1Pe 5:8. (2) Os anjos de Satanás podem agir, em algumas situações, como executores dos juízos de Deus. a. Isto não significa que haja uma espécie de parceria entre Deus e Satanás ou que este preste algum tipo de obediência a Deus. b. Isto ocorre, por exemplo, quando o pecador, por sua contumácia no pecado, ultrapassa os limites da misericórdia, de modo que Deus Se afasta dele e não mais interfere em sua vida, deixando-o seguir seu próprio caminho, entregue à sua própria sorte. c. Isto ocorre porque, nesse caso, Satanás, cuja índole é causar aflição a quem puder, tem amplo espaço para agir a seu bel-prazer e, fatalmente, tal indivíduo é mergulhado num mundo de sofrimento e desespero e o que lhe sucede também é considerado como juízo de Deus. d. Isto foi o que ocorreu por ocasião da destruição de Jerusalém, no ano 70 de nossa era, conforme fora predito por Cristo (Mt 24 e Lc 21). Depois de poupar a cidade 276 por quase 40 anos, como persistissem em rejeitar a misericórdia divina, completaram a medida de seus pecados, afastou Deus então deles a proteção, retirando o poder com que restringia Satanás e seus anjos, de maneira que a nação ficou sob o controle do chefe que haviam escolhido. A partir daquele momento, tudo que aconteceu à cidade foi por vontade e ação de Satanás. Como consequência, houve saques, torturas, dissensões internas, combate dos exércitos estrangeiros, fome, peste e muito derramamento de sangue. Assim, como escreveu Ellen White, “as horríveis crueldades executadas na destruição de Jerusalém são uma demonstração do poder vingador de Satanás sobre os que se rendem ao seu controle” [Ellen White, O grande conflito, 35]. Todas essas desgraças são classificadas como juízos de Deus. e. Isso ocorrerá após Cristo completar Sua obra de intercessão pelos homens e sair do santuário celestial. O Espírito de Deus, persistentemente resistido, será, por fim, retirado. Desabrigados da graça divina, os ímpios não terão proteção contra o maligno. Satanás mergulhará então os habitantes da Terra em uma grande angústia final. Isso será o sopro dos “quatro ventos” que representam as forças demoníacas que, em sua fúria, desejam arruinar a humanidade e que hoje são limitados pelos anjos de Deus. Ap 7:1-3. II. OS HOMENS Em diferentes ocasiões, Deus também Se valeu de homens como executores de Seus juízos. Podia ser um indivíduo ou uma coletividade. Alguns deles eram Seus inimigos enquanto que outros eram de Seu povo. Alguns sabiam que estavam cumprindo um juízo divino, enquanto que outros não. Todos, porém, a seu tempo, realizaram o propósito divino. 277 1. Um Indivíduo como Executor da Ira de Deus O sacerdote Finéias executou o juízo divino contra alguns participantes da idolatria e orgia ocorrida em Baal-Peor e, como resultado, foi honrado perante todo o Israel, e o sacerdócio foi confirmado a ele e sua casa para sempre. Nm 25:6-13. 2. Grupos de Indivíduos como Executores da Ira de Deus Dentro do povo de Israel, em diferentes momentos de sua história, houve grupos de indivíduos a quem Deus utilizou como instrumentos de Sua ira contra a rebeldia. (1) Logo após a saída de Israel do Egito, quando o povo se afastou dos caminhos de Deus, no episódio da adoração do bezerro de ouro, os levitas, que não haviam participado da idolatria, destruíram, por ordem divina, aqueles que persistiam em sua rebelião (Êx 32:1-29). (2) Posteriormente, em Baal-Peor, logo após a ação de Finéias, Deus ordenou que os líderes desta apostasia fossem mortos pelos magistrados e esta ordem foi prontamente obedecida (Nm 25:1-5). 3. Israel como Executor da Ira de Deus Nas narrativas bíblicas encontramos diversas situações em que Deus empregou o povo de Israel para executar Sua ira contra as nações. (1) Israel destruiu os midianitas (Nm 31:1-18). (2) Israel destruiu muitas nações que habitavam em Canaã. Dt 7:1-2. (3) Israel deveria destruiu totalmente os amalequitas (1Sm 15:2-3; cf. Dt 25:17-19). 4. As Nações Pagãs como Executoras da Ira de Deus De todos os agentes humanos da ira de Deus no AT, as nações são apresentadas como os mais poderosos. Elas foram empregadas para castigar outras nações pagãs (Is 278 13:1-5, 16-19; 20:1, 4; 23:13-15; 36:18-20; 37:8-13 cf. 37:21-27), mas também, muitas vezes, para punir o próprio povo de Israel por sua infidelidade. (1) A Assíria foi o instrumento de que Deus Se serviu para castigar Israel. Is 10:5; 7:17-20. (2) Babilônia foi o instrumento de que Deus Se serviu para castigar Judá. 2Cr 36:17-21 (Sl 106:40-41; Lm 2). III. A NATUREZA Com muita frequência, Deus tem usado os elementos da natureza e, em alguns casos, até os animais para mostrar Seu desagrado com o pecado. 1. Elementos da Natureza Deus é o criador da natureza e a tem usado para cumprir Seus propósitos, incluindo a punição dos que sistematicamente Se rebelam contra Ele. (1) Deus usou a água para destruir os antediluvianos (Gn 6-7). (2) Deus usou o fogo para destruir Sodoma e as demais cidades do vale de Sidim (Gn 18:16-19:29). (3) Deus usou as pragas para arruinar o Egito. a. Houve a transformação de águas em sangue (Êx 7:20-21). b. Houve uma chuva de pedras misturada com fogo (Êx 9:22-25). c. Houve trevas espessas (Êx 10:21-23). (4) Deus usou a terra que se abriu e tragou Coré, Datã e Abirão, os chefes de uma rebelião (Nm 16:1-35). (5) Deus usou uma grande seca que se abateu sobre Israel durante três anos e meio, nos dias de sua apostasia (1Re 17:1, 7; Tg 5:17). 279 (6) Deus usará os elementos da natureza nas sete últimas pragas que incidirão sobre os ímpios para puni-los. a. Haverá a transformação de águas em sangue. Ap 16:3-4. b. Haverá uma intensidade de calor provocada pelo sol. Ap 16:8-9. c. Haverá trevas. Ap 16:10. d. Haverá um terremoto como nunca houve acompanhado de uma grande saraivada formada por enormes pedras. Ap 16:17-21. 2. Animais Algumas vezes Deus usou os animais para efetuarem o Seu juízo. (1) Em quatro das pragas que vieram sobre o Egito, Ele empregou pequenos seres do reino animal, que, sendo muito numerosos, causaram grande desconforto e graves prejuízos: a. Rãs (Êx 8:5-6). b. Piolhos (Êx 8:16-17). c. Moscas (Êx 8:24). d. Gafanhotos (Êx 10:13-15). (2) Os israelitas, em Sua peregrinação, sofreram um juízo por meio de serpentes abrasadoras, que mordiam o povo; e morreram muitos do povo de Israel. Nm 21:6. (3) Os cananeus foram punidos por meio de vespões. Êx 23:28; Js 24:12. (4) Os estrangeiros trazidos pelo rei da Assíria para que habitassem nas cidades de Samaria, em lugar dos filhos de Israel, foram punidos por meio de leões, os quais mataram a alguns do povo. 2 Rs 17:24-25. (5) Uns rapazinhos que zombaram do profeta Eliseu foram despedaçados por duas ursas (1Re 2:23-24). 280 IV. DOENÇAS E PESTILÊNCIAS A ira de Deus tem-se manifestado também por meio de doenças e pestilências. 1. A sexta praga sobre o Egito consistiu em “úlceras nos homens e nos animais”. Êx 9:10. 2. Na rebelião liderada por Coré, depois da destruição daqueles que haviam liderado a conspiração, os filhos de Israel acusaram Moisés e Arão de terem matado o povo do Senhor (Nm 16:41). Como resultado, sofreram a ira de Deus na forma de uma praga que dizimou a quatorze mil e setecentos deles (vs. 42-50). 3. Posteriormente, porque os israelitas participaram do culto licencioso aos deuses pagãos, junto a Baal-Peor, “acendeu-se a ira de Deus” e uma pestilência terrível irrompeu no arraial, vitimando a dezenas de milhares. Nm 25:1-3, 9. 4. Deus também utilizou algumas vezes as doenças, especialmente a lepra. Embora adquirir a lepra não seja necessariamente uma indicação de que seu portador esteja recebendo um juízo divino, houve pelo menos três personagens bíblicos que ficaram leprosos por essa razão: (1) Miriã, a irmã de Moisés (Nm 12:1-10). (2) Geazi, o servo do profeta Eliseu (2 Rs 5:9-27). (3) Uzias, rei de Judá. 2Cr 26:16-21. Talvez essa fosse a razão de os judeus, nos dias de Cristo, considerarem a lepra como a mais temida das doenças, um juízo sobre o pecado, e a chamassem de “o açoite”, “o dedo de Deus” [Ellen White, O desejado de todas as nações, 262]. 5. A primeira das sete pragas que incidirão sobre os ímpios no final dos tempos será de “úlceras malignas e perniciosas”. Ap 16:1-2. 281 V. ACIDENTES Alguns acidentes podem também ser vistos como juízos de Deus, embora nem sempre haja uma revelação específica que indique se ocorrem por uma ação divina direta ou apenas como um resultado do afastamento por parte de Deus. 1. Nos escritos de bíblicos encontramos o caso do rei Acazias, filho de Acabe. Ele fez o que era mau perante o Senhor, serviu a Baal, e o adorou, e provocou à ira ao Senhor. E caiu Acazias pelas grades de um quarto alto, em Samaria, e adoeceu, vindo em consequência a falecer vítima da ira de Deus contra ele (1Re 22:53–2Re 1:4,17). 2. Nos escritos de Ellen White encontramos a informação de que a ira de Deus igualmente pode ser percebida em alguns acidentes na terra e no mar, nos episódios em que edifícios suntuosos se transformam em cinzas, navios são tragados pelo oceano [Ellen White, Maranata – o Senhor vem!, 173] e nos desastres de estradas de ferro [Ellen White, Mensagens aos jovens, 90]. CONCLUSÃO 1. Por ser o Criador e soberano do universo, Deus tem a sua disposição todos os recursos. 2. Ele os emprega segundo Lhe apraz, para cumprir Seus propósitos. (1) Frequentemente esses recursos são utilizados para abençoar e salvar Suas criaturas. (2) Todavia, conforme vimos em nosso estudo das Escrituras, há ocasiões em Ele Se vale deles para castigar e punir. 3. Não nos rebelemos contra Deus. Isso não é compensador. Antes, sigamos no caminho da obediência a Sua vontade. 282 Esboço 7: O Tempo da Ira de Deus INTRODUÇÃO 1. As Escrituras Sagradas revelam como a ira divina pode estar presente no dia a dia das pessoas e como se manifestará no futuro, quando Deus pôr fim à história do pecado. 2. As Escrituras Sagradas também mostram como podemos ser libertos dessa ira. ARGUMENTAÇÃO I. A IRA DE DEUS NO ANTIGO TESTAMENTO 1. A ira de Deus, nos primórdios de Israel, era concebida como a operação de um ato individual de punição, algo transitório, enquanto que Seu amor e justiça eram tidos como permanentes. Ne 9:16-17. 2. A ira de Deus é endereçada ao pecador cada dia. Sl 7:11. Embora o presente dia seja de paciência e tolerância para com os pecados, cada dia é um dia de ira para os pecadores. 3. A ira de Deus exercia um papel sobre a completa vida humana. Sl 90:2-11. Como consta na literatura sapiencial: “[...] o caminho dos pérfidos é intransitável” (Pv 13:15). E foi Deus quem determinou que fosse assim. 4. A ira de Deus podia se manifestar no que era conhecido como “o dia do Senhor”. (1) A expressão “o dia do Senhor”, como empregada nos profetas, era, em primeiro lugar, uma referência ao presente dia de julgamento na história, quando Deus intervinha para punir o pecado que havia chegado ao seu clímax. (2) A expressão “o dia do Senhor”, entretanto, tinha uma conotação escatológica, apontando também para os eventos finais da história humana, com a vinda do Senhor e o juízo final. 283 5. A ira de Deus podia ser desviada mediante os diferentes rituais para a expiação do pecado e da culpa – onde o sangue dos sacrifícios era interposto entre Deus e o pecador. Nm 18:5. II. A IRA DE DEUS NO NOVO TESTAMENTO 1. A Ira de Deus é Retratada como uma Resposta ao Pecado. (1) A ira de Deus começou com a entrada do pecado no universo e desde então permanece sobre a raça inteira. Quando o homem cometeu o primeiro pecado, a terra foi amaldiçoada por Deus (Rm 8:20-23; cf. Gn 3:17-19). Isto foi parte da ira de Deus, e continua sendo. (2) A ira de Deus começa a se manifestar no próprio instante em que se comete um ato de pecado. O fardo da culpa, a acusação da consciência e o sentimento de remorso são manifestações dessa ira. (3) A ira de Deus se manifesta também mediante os sofrimentos físicos que o pecado causa, bem como o sofrimento mental, a infelicidade, os desajustes na família, a degeneração e o aviltamento do pecador e sua finitude. Cl 3:5-9 (Rm1:18-31; Gl 5:19-21). (4) A ira de Deus já lança suas sombras na experiência presente. Seus juízos ainda não são juízos totais, mas juízos dentro da história. Rm 1:18, 24, 26a, 28. (5) A ira de Deus no presente possui um sentido pedagógico e é aplicada como que com freios acionados, mesclada com uma profusão de paciência e longanimidade (Rm 2:4), realizando o propósito de Deus, preservando o mundo para a revelação da Sua justiça no evangelho (1Tm 2:4; 2Pe 3:9), com a intenção de induzir as pessoas ao arrependimento (Ap 9:20). 284 2. A Ira de Deus é Retratada como uma Revelação. Rm 1:17-18. (1) É uma revelação vinda dos céus. O uso do passivo denota que o próprio Deus está revelando e o verbo é empregado de modo a que se refira a uma revelação presente e constante. (2) É uma revelação “contra toda impiedade e perversão dos homens” e está agora em constante progresso. (3) É uma revelação, por um lado associada com o evangelho, porque está sendo revelada do mesmo modo que a justiça, diante dos nossos olhos. (4) É uma revelação que ocorre, por outro lado, também, independentemente da Palavra, porque em qualquer lugar, mesmo aonde o evangelho ainda não chegou, ela se manifesta sobre as nações. (5) É uma revelação que já ocorre no presente, na experiência daqueles que se distanciam da verdade de Deus. De fato, a ira divina se revela na degradação que resulta do pecado e pela universal convicção da humanidade de que o pecado é inevitavelmente punido por sofrimento, miséria e morte. (6) É uma revelação que prefigura a ira em sua manifestação final. 3. A Ira de Deus é Retratada através do Termo “Dia”. (1) O termo “dia”, é empregado em diversas expressões sinônimas para referir-se à ocasião em que Deus porá termo à história humana. a. “O Dia de Jesus” (2Co 1:14). b. “o Dia da ira” (Rm 2:5; Ap 6:17). c. “O Dia do Juízo” ( Mt 11:22). d. “O último dia” (Jo 6:39). e. “O Dia de Deus” (2Pe 3:12). 285 f. “aquele Dia” (2Tm 1:12, 18; 4:8). g. “o Dia” (1Co 3:13; Hb 10:25). h. “O Dia de nosso Senhor Jesus Cristo” (1Co 1:8). (2) O termo “dia” não é uma referência a 24 horas, mas a um período de tempo indeterminado, suficiente para Deus cumprir o Seu propósito. (3) O termo “dia” é amplo o bastante para abranger todo o período que inclui o fim desta era e a inauguração da próxima. (4) O termo “dia” refere-se a um dia de juízo e ira para os ímpios, mas também de redenção para os justos. 4. A ira de Deus é retratada como podendo ser impedida. (1) A ira de Deus, como apresentada no NT, ainda é uma realidade. Como no AT, seu juízo paira ameaçador sobre os homens (2Co 5:10) e é admissível o escape dela. Mas, agora, há uma nova ênfase, a de que a libertação só é possível em Cristo, pois Ele é “o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo!” Jo 1:29. (2) A ira de Deus foi satisfeita mediante a morte de Cristo. a. Cristo não morreu apenas como um evento na história, nem morreu por causa própria. Ele morreu por nós. Rm 5:8 (1Ts 5:10; Rm 8:32; Ef 5:2; Gl 3:13; Mc 10:45). b. Cristo morreu em nosso lugar e como cumprimento de uma pena, recebendo o castigo da ira que merecíamos de modo a nos libertar desta experiência. c. Cristo nos salva duplamente: a) Salva do pecado – sua culpa e penalidade, seu poder e sua presença. b) Salva da ira de Deus. 286 CONCLUSÃO 1. A ira de Deus é Sua reação e resposta ao pecado. 2. A ira de Deus se manifesta de múltiplas formas a cada dia sobre o pecador, sendo dosada por Deus, de modo a dar tempo para que este se arrependa e volte para Ele. 3. A ira de Deus, todavia, se cumprirá plenamente por ocasião dos eventos finais, no “dia do Senhor”, quando Cristo retornar a este mundo e executar juízo contra aqueles que se mantiveram rebeldes. Mas este dia será também de salvação para o seu povo. 4. A ira de Deus pode ser desviada de nós, o que ocorrerá somente quando aceitarmos a Cristo como nosso substituto e salvador, aquele que já recebeu essa ira em nosso lugar. Portanto, aceitemo-lo como salvador do pecado e salvador da ira divina. 287 Esboço 8: Cristo – o Fiador e Alvo da Ira de Deus INTRODUÇÃO 1. As Escrituras Sagradas apresentam o papel de Cristo em relação à ira de Deus. Isso é o que veremos hoje, em nosso estudo. 2. As Escrituras Sagradas apresentam a Cristo tanto como fiador do homem diante da ira divina, como aquele que a recebeu em nosso lugar. ARGUMENTAÇÃO I. CRISTO – O FIADOR DIANTE DA IRA DE DEUS 1. O problema: quando o homem pecou, Deus não podia abolir nem alterar Sua lei para socorrer o homem em sua condição perdida. 2. A solução encontrada: Cristo, por ser um com Deus o Pai, igual a Ele e criador do homem em associação com o Pai, apresentou-Se como fiador e substituto do homem, para receber, no futuro, a ira divina em nosso lugar. 3. As consequências imediatas: (1) Embora o homem ainda permanecesse sob a condenação, a indignação de Deus seria contida e a execução completa da sentença de morte, postergada. (2) Embora o homem ainda continuasse em estado decaído, havia esperança para ele. O homem passou a ter um novo relacionamento com o Criador. 5. As provisões: os sacrifícios sobre o altar, como figuras, apontavam para a futura vinda do cordeiro de Deus que daria Sua vida em favor do pecador e evitavam que a justa ira de Deus caísse de pronto sobre aqueles que transgrediam sua lei. 288 6. A solução realizada: no devido tempo, segundo a graça e a misericórdia de Deus, Cristo, como homem, substituto e fiador do pecador, tomou sobre Si, na cruz, a ira de Deus, que por justiça deveria cair sobre o homem. Is 53:4-5, 10. II. CRISTO – O ALVO DA IRA DE DEUS 1. O sofrimento de Cristo na morte supera a todos os outros e é a base de toda doutrina correta e o fato central do universo. Há quatro aspectos da dor que Jesus experimentou na cruz: (1) A dor física e morte por crucificação, uma das mais terríveis já inventadas pelo homem, que era bem demorada e levava à sufocação. (2) A dor psicológica de assumir a culpa por nossos pecados, o que Lhe foi uma agonia por ser tão contrário à Sua natureza completamente pura. (3) A dor de ser abandonado por Deus e pelos homens, a quem sempre amara (Mt 27:46; 26:56; Jo 13:1), enfrentando sozinho os pecados colocados sobre Ele. (4) A dor maior, a de sofrer a fúria da ira de Deus que tinha sido armazenada com longanimidade desde o primeiro pecado no Éden. a. A ira de Deus que Cristo suportou na cruz foi a maior demonstração da aversão de Deus contra o pecado. Nenhum dos poderosos atos de juízo de Deus, no passado, no presente ou no futuro oferece uma tão grande demonstração do ódio de Deus contra o pecado como a Sua ira que foi derramada sobre Seu Filho. b. A ira de Deus que Cristo suportou na cruz causou-Lhe grande agonia. Sobre isso lemos nos escritos de Ellen White: a) Na cruz Jesus suportou “nossa punição – a ira de Deus contra a transgressão” [Ellen White, Mensagens escolhidas, 1:132]. 289 b) Ali Lhe sobreveio “um senso de que Seu próprio e amado Pai O havia abandonado” e Sua alma Se encheu de “desespero” [Ellen White, Testemunhos seletos, 1:233]. c) “Tão grande era essa agonia, que Ele mal sentia a dor física” [Ellen White, O desejado de todas as nações, 753]. d) “Não foi o sofrimento físico que pôs tão rápido fim à vida de Cristo na cruz. Foi o peso esmagador dos pecados do mundo, e o senso da ira de Seu Pai” [Ellen White, Testemunhos seletos, 1:228]. e) “Cristo sentiu muito semelhantemente ao que os pecadores hão de sentir quando os cálices da ira de Deus forem derramados sobre eles. Negro desespero, como um manto, adensar-se-á em torno de suas almas culpadas” [ibid., 1:229]. c. A ira de Deus que Cristo suportou na cruz é o coração da doutrina da expiação. Isso fica evidente também pelo uso da expressão “propiciação” (Hb 2:17; 1Jo 2:2; 4:10) que se refere ao sacrifício que afasta a ira de Deus – e dessa forma torna Deus propício (ou favorável) a nós. d. A ira de Deus que Cristo suportou na cruz veio sobre Ele em sua plenitude. a) Ele só pode suportá-la por causa da união, em Sua pessoa, das naturezas divina e humana. O que Ele suportou nenhum ser humano jamais seria capaz de sofrer. b) Ele soube que a havia recebido por completo e então exclamou: “Está consumado” (Jo 19:30). 290 e. A ira de Deus que Cristo suportou na cruz foi o pagamento integral por nossos pecados e, “agora, pois, já nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus” (Rm 8:1). Assim, o cristão não teme nem a condenação, nem o castigo. 2. O sofrimento de Cristo na morte foi uma punição no mais próprio sentido. O texto de Is 53 apresenta claramente a idéia de punição, com expressões pertinentes tanto em relação com a pessoa que pune como com a que é punida. Is 53. (1) Quanto a Deus, que puniu, é dito: “o Senhor fez cair sobre ele a iniquidade de nós todos” (v.6) e “ao senhor, agradou moê-lo, fazendo-o enfermar; quando der ele a sua alma como oferta pelo pecado” (v.10). (2) Quanto a Cristo, que é punido, lemos: “as iniquidades deles levará sobre si” (v.11). Mas qual foi o objetivo da punição de Cristo? a. Não foi para Sua própria correção, porque é dito que Ele “nunca fez injustiça, nem dolo algum se achou em sua boca” (v.9). b. Não foi para Sua própria instrução na vontade de Deus, porque o início da profecia menciona que Ele “procederá com prudência; será exaltado” (52:13). Embora tenha aprendido pelos sofrimentos pelos quais passou (Hb 5:8), Ele já estava preparado, quanto à vontade de Deus, antes das aflições da cruz. c. Não foi para que servisse de exemplo para os outros, para instrução dos outros, porque Ele próprio nunca pecou (Hb 4:15). Ele foi um exemplo em Sua obediência, mas não em Sua punição. d. Nem foi um sofrimento para manter o testemunho e testemunhar a verdade. Não há nenhuma indicação disso na profecia. e. Foi por causa de “nossas transgressões”, “nossas iniquidades” e “o pecado de muitos” (vs. 5, 6 e 12). 291 CONCLUSÃO 1. Cristo, desde o início, quando o homem pecou, apresentou-Se para ser o fiador e substituto do homem, para receber, no futuro, no devido tempo, a ira divina em nosso lugar. 2. Cristo, na cruz, recebeu a completa ira de Deus, a punição que era nossa. Ali ocorreu o pagamento integral por nossos pecados. 3. Cristo, na cruz, livrou-nos de toda condenação, por meio de um sacrifício que afastou a ira de Deus. 4. Cristo quer ser não apenas o salvador de todo mundo, mas o Seu salvador pessoal. Aceite-o como seu substituto e, assim, tudo o que Ele fez não será em vão para você, antes resultará em sua completa salvação. 292 Esboço 9: O livramento da Ira de Deus: a Obra Expiatória de Cristo INTRODUÇÃO 1. O grande destaque da mensagem das Escrituras é a apresentação de Cristo como salvador. Do que Ele nos salva? (1) Por um lado, Ele nos salva do pecado: sua culpa e penalidade, seu poder e sua presença. 1Tm 1:15. (2) Por outro lado, Ele nos liberta da ira de Deus contra o pecador. 1Ts 1:10. 2. Esta libertação centraliza-se na expiação e propiciação realizadas na cruz e em sua obra sacerdotal no santuário celestial. 3. O estudo de hoje é sobre a doutrina da expiação. Ela tem sido considerada como a grande e central doutrina do cristianismo e nela as várias doutrinas são reunidas adequadamente de um modo coesivo. É, de fato, impossível destacar em excesso o papel da expiação realizada por Cristo. ARGUMENTAÇÃO I. A NECESSIDADE DE EXPIAÇÃO 1. A crença na necessidade de expiação pelo pecado é universal. (1) Essa crença é demonstrada com clareza pela história das religiões, tanto as antigas quanto as modernas e está presente entre os pagãos, entre os hebreus e entre os cristãos, e faz parte da consciência natural. (2) Essa crença é demonstrada por todas as religiões ao procurarem tratar do problema da culpa e dos atos expiatórios que, oferecidos à divindade, pretensamente, podem 293 removê-la e alcançar a reconciliação, e incorporarem o conceito de um inocente sofrer pelo culpado como uma das maiores demonstrações do amor abnegado. 2. A crença na necessidade de expiação pelo pecado é percebida na própria religião hebraica, onde as ofertas pelo pecado não eram apenas expressões de adoração ou penitência, ou uma maneira didática de se ensinar algo ao pecador e aos espectadores, nem visavam apenas a reforma do ofensor; eram expiações, nas quais a vítima levava a culpa do pecador e morria em seu lugar e para seu livramento. 3. A crença na necessidade de expiação pelo pecado é percebida no cristianismo, mas de um modo completamente diferente daquela que existe nas demais religiões, excetuando-se a religião hebraica: (1) Nas outras religiões, são os pecadores que tomam a iniciativa e vão à divindade com um dom compensatório buscando conciliá-la. (2) No cristianismo, é Deus quem toma a iniciativa e vem à humanidade em autodoação para eliminar a separação existente entre os homens e Deus e reconciálos. Rm 5:8; 1Jo 4:10 (Gn 3:9; 2Co 5:18). 4. A crença na necessidade de expiação pelo pecado é requerida por causa da lei de Deus. (1) A lei de Deus, por ser uma expressão de sua própria natureza santa, só pode ser o que é. Se esta lei não tivesse relação com seu caráter, Ele a poderia fazer diferente, mas não é este o caso. (2) A lei de Deus foi escrita na consciência do homem. Ao criá-lo, Deus quis fazê-lo como um ser moral com quem pudesse se relacionar pessoalmente, e por isso o fez à sua imagem e semelhança (Gn 1:26-27), com uma consciência moral na qual inscreveu a mesma lei da santidade que é atributo de Sua natureza. Rm 2:11-16. 294 (3) A lei de Deus, se obedecida, indicaria a harmonia do homem com a pessoa de Deus, glorificaria o Criador e resultaria em felicidade e vida eterna, enquanto que sua transgressão desonraria a Deus e teria como efeito a manifestação de Sua ira, na forma de sofrimento e da punição incluída na lei – a morte. Rm 6:23. (4) A lei de Deus não pode ser relaxada de modo a não punir seus transgressores. A punição é parte da sua estrutura e é tão inevitável como inevitável era que a lei fosse expressão da natureza divina. (5) A lei de Deus aponta a morte como a punição decretada por Deus para sua transgressão, por isso o pecado nunca pode ser tratado separado da morte. Por ser justo, Deus não pode, simplesmente, fechar os olhos ao pecado, escusá-lo ou perdoá-lo. a. Deus quer perdoar, quer manifestar misericórdia, mas em caso algum Ele concede Sua misericórdia independente de Sua imutável justiça. b. Deus quer dizer sim ao pecador, mas simultaneamente precisa dizer não ao pecado e demonstrar que conquanto esteja a favor dos homens, está contra o pecado. (6) A lei de Deus é credora da pessoa que pecou e esse débito exige uma expiação.Todavia, porque todos os homens são pecadores (Rm 3:10-12) e nenhum deles é capaz de satisfazer a justiça de Deus e sobreviver, a expiação deve ser vicária. a. A expiação vicária pode ser ilustrada pelas relações humanas. Quando há uma obrigação entre dois homens, a lei permite que um terceiro pague o débito, contanto que não haja nenhuma injustiça. Desse modo, o infrator deve pagar, em 295 sua própria pessoa ou na pessoa de um substituto, um “vigário”, que a justiça mesma aceite. b. A expiação vicária é assim chamada porque o termo “vicário” ou “vigário” se refere a alguém que age em lugar de outro, ou toma o lugar do outro, a fim de remir ou agir como um substituto. No caso da relação do homem com Deus, em razão de que todos pecaram, nenhum ser humano poderia ser o vigário de outro. c. A expiação vicária ocorreu quando “Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras” (1Co 15:3). Ele não morreu apenas como um evento na história, nem morreu por causa própria. Ele morreu por nós. 1Ts 5:10 (Rm 5:8; 8:32; Ef 5:2; Gl 3:13; Mc 10:45). Sua morte foi vicária. d. A expiação vicária de Cristo foi uma substituição penal porque Ele morreu em nosso lugar e como cumprimento de uma pena. Ele assumiu o nosso lugar e nos representou, recebendo o castigo que merecíamos de modo a nos libertar desta experiência. e. A expiação vicária de Cristo implica em que houve uma transferência que Ele recebeu e pela qual sofreu: não a dos pecados humanos, mas, sim, a punição merecida pelos pecadores. a) Quando as Escrituras declaram que os nossos pecados foram imputados a Cristo, não significa que a nossa pecaminosidade foi transferida para Ele – o que seria impossível – mas, sim, que a culpa do nosso pecado Lhe foi imputada e isso só pôde ocorrer porque a culpa não era inerente à pessoa do pecador, mas uma coisa objetiva. b) Quando as Escrituras declaram que a culpa do pecado, entendida como condição passível de punição, foi transferida para Jesus Cristo, afirmam 296 igualmente que a ira de Deus contra o pecado também o foi (Is 53; Jo 3:16; Rm 4:25; 8:32), o que ocorreu no Getsêmani e na cruz. Ele tomou sobre Si todas as consequências da ira de Deus contra o pecado. f. A expiação vicária de Cristo, como nosso substituto, pagou nossa dívida à justiça de Deus. O documento de dívida foi cancelado e encravado por Ele na cruz e assim ficamos isentos. Cl 2:14. g. A expiação vicária é, portanto, de todo modo, vantajosa. Na satisfação vicária, o pagamento se origina com o Salvador, o qual é oferecido em lugar do pecador. Quando o pecador aceita esta substituição ele é salvo. h. A expiação vicária, portanto, é a única maneira de livrar o pecador da consequência inevitável do pecado. Através dela, o ofendido resolveu assumir a culpa do ofensor para livrá-lo da pena. Apenas por este meio poderia Deus preservar a autoridade e validade de Sua lei moral, que demanda a morte do transgressor, e ainda assim excusá-lo de pagar pessoalmente a penalidade da morte. II. O SIGNIFICADO DA EXPIAÇÃO 1. Expiação é uma palavra que inclui as ideias de purgar, limpar, purificar, cancelar, cobrir, ocultar da vista, apagar, espalhar ou perdoar. 2. Expiação é um ritual mediante o qual o pecado é coberto, afastado, ou extinto, de modo a deixar de ser um entrave à comunhão entre o homem e Deus. 3. A expiação ocorria por meio de sacrifícios que eram feitos como uma reparação ou satisfação por uma injúria ou ofensa para que, pelo cumprimento da punição merecida, adviesse a eliminação da culpa e o livramento do castigo ou do mal. 297 4. A expiação tem como propósito, resolução do problema do pecado. A intenção era retirar o pecado do pecador de modo que este fosse perdoado. Por isso, ao colocar a mão sobre a cabeça do animal (Lv 1:4), o pecador indicava que o animal o representava e que a vida deste substituía a sua. Havia uma troca: pelo sacrifício o pecador era feito puro e vivia livre daquele pecado e o animal puro era tornado impuro e sofria a morte por causa do pecado que agora carregava. Gl 3:13 (ver 2Co 5:21; Rm 8:3; Gl 4:4-5). 5. A expiação, segundo os escritores do NT, é uma referência ao sacrifício de Cristo que removeu a culpa do pecado do homem e o limpou do seu demérito (2Co 5:21). Eles falam constantemente sobre o sangue de Cristo (Rm 3:25; 5:9; Ef 1:7; Cl 1:20), e não apenas sobre Sua morte, para mostrar que estão afinados com o pensamento do AT e que os dois testamentos se ajustam e se pertencem um ao outro com perfeição, apresentando o mesmo Deus e a mesma salvação. III. A ORIGEM DA EXPIAÇÃO 1. Deus não tinha necessidade de nos salvar. Contudo, Ele decidiu nos salvar e, para que isso ocorresse, era absolutamente necessária a expiação. Não havia outro modo a não ser enviar Seu Filho para morrer por nós. Mt 26:39 (Lc 24:25-26; Hb 2:17; 9:23). 2. Deus é quem, em Seu amor e justiça, originou a expiação. (1) A justiça de Deus requer a satisfação porque Ele é santo, mas Ele mesmo a satisfaz porque Ele é amor. (2) A justiça, por um lado, exigiu a satisfação das exigências da lei, por outro, o amor encontrou um meio de livramento para o pecador. 298 (3) A justiça e o amor (como graça) foram combinados. Como disse Paulo, o que Deus realizou foi “[...] por sua graça [...] para manifestar sua justiça [...]” (Rm 3:24-25). (4) A justiça e o amor operando em conjunto podem ser ilustrados pela cruz onde Cristo morreu, pois ao ser preparada a partir de duas traves de madeira que são fixas uma à outra de modo a formar uma figura em forma de “T”, a cruz representa a interseção desses dois atributos ou facetas da natureza de Deus, o lugar onde Seu amor e Sua justiça se encontram, sendo, desse modo, um adequado símbolo da expiação. (5) A justiça foi cumprida pela morte de Cristo em lugar do pecador, o que também evidenciou Sua misericórdia que proveu salvação para os culpados. (6) A justiça atendeu ao apelo da misericórdia, aceitando um substituto para os pecadores, e a misericórdia atendeu à injunção da justiça oferecendo o substituto. 3. Deus é quem realizou, do início ao fim, a expiação (Is 53:10; Lc 2:14; Jo 3:16; Gl 1:4; Cl 1:19-20). IV. O COMPLEMENTO DA EXPIAÇÃO 1. A obra sacerdotal de Cristo é ressaltada na epístola aos Hebreus como em nenhum outro lugar do NT. (1) O tema central da epístola aos Hebreus é o sacerdócio de Cristo e o que Ele faz no céu em favor de Seu povo. Nela, a pessoa e a obra de Cristo são comparadas com o sistema levítico do AT. (2) O escritor da epístola aos Hebreus é o único do NT que chama a Jesus de sumo sacerdote. 299 (3) O conteúdo da epístola aos Hebreus é considerado como uma chave para a compreensão de todo o AT e NT. 2. A obra sacerdotal de Cristo tem o seu foco na expiação. 3. A obra sacerdotal de Cristo não é completa sem a intercessão. (1) A obra sacerdotal de Cristo requer Seu sacrifício na terra e Seu serviço no santuário celestial. Ambos são partes complementares da tarefa sacerdotal do salvador. (2) A obra sacerdotal de Cristo é apresentada como uma atividade contínua: Cristo nos salva pelo sacrifício de Si mesmo e sustenta a nossa salvação pela Sua intercessão. (3) A obra sacerdotal de Cristo demonstra que embora Seu sacrifício tenha sido único, de uma vez por todas, Seu sacerdócio é perpétuo. Hb 7:25; Rm 8:34. 3. A obra sacerdotal de Cristo está baseada no fato de que, por não sermos perfeitos, não temos acesso direto a Deus e precisamos de um sacerdote que ofereça sacrifícios a Deus em propiciação por nossos pecados e interceda por nós, e este é Cristo. (1) Cristo não apenas ofereceu na terra o sacrifício que o sumo sacerdote devia oferecer, mas, hoje, serve a Deus como sumo sacerdote celestial. (2) Cristo é a ponte que cobre o vão que há entre Deus e o homem, aquele que ouve a confissão de pecados e intercede continuamente por nós. 4. A obra sacerdotal de Cristo O destaca como mediador. Hb 8:6; 9:15; 12:24. É Ele que torna realidade os propósitos salvadores de Deus para os homens, de modo que todo bem-estar espiritual nos é proporcionado por Seu ofício mediatório. V. O ALCANCE DA EXPIAÇÃO 1. Há nas Escrituras uma aparente contradição quanto à extensão da expiação efetuada por Cristo. 300 (1) De acordo com alguns textos ela foi realizada em prol de toda a humanidade. 1Tm 2:5-6 (1Jo 2:2; 1Tm 5:10; Tt 2:11; Jo 3:16; Rm 5:19). (2) De acordo com outros textos, somente aqueles que se arrependem e crêem são realmente salvos por ela. Jo 17:9, 20 (Ef 1:4; 2Tm 1:9-10). 2. Há nas Escrituras harmonia quanto à extensão da expiação efetuada por Cristo, quando se percebe que: (1)Os textos bíblicos que apresentam a expiação como universal e ilimitada, a consideraram de um ponto de vista objetivo, genérico e coletivo, como uma satisfação dada à justiça divina, que aconteceu num tempo específico da história e foi realizada uma vez por todas, de maneira a não haver mais nada no foro divino contra a humanidade genérica representada por Cristo. (2) Os textos bíblicos que apresentam a expiação como trazendo benefício apenas para um grupo de pessoas, tratam do aspecto subjetivo, individual, e dizem respeito à aceitação da expiação mediante o arrependimento dos pecados e a fé na pessoa e obra do substituto, a fim de que tenha valor para o indivíduo. 3. Há nas Escrituras, portanto, a indicação de que, embora a expiação seja suficientemente ampla para incluir a todos e seja a todos oferecida, encontra limitação no número de pessoas que a aceitam. CONCLUSÃO 1. Como pecadores, somos devedores à lei de Deus e, merecedores da morte. 2. Como pecadores, necessitamos que nossa dívida seja paga, mas de maneira que continuemos a viver. Isso só é possível se ela for paga por outro que a assuma e morra em nosso lugar. 301 3. Como pecadores, necessitamos, portanto de um salvador e Este é Cristo. Mediante Sua morte expiatória na cruz, Ele nos salva do pecado e de suas consequências e também da ira de Deus. 4. Como pecadores, não somos perfeitos, nem temos acesso direto a Deus e, por isso, precisamos de um sacerdote que ofereça sacrifícios a Deus em propiciação por nossos pecados e interceda por nós, e Este é Cristo. É ele que torna realidade os propósitos salvadores de Deus para nós, de modo que Sua obra consumada na Terra e Sua obra em curso no Céu são suficientes e eficazes para tratar de nossos pecados. 5. Como pecadores, vamos aceitar Sua expiação individualmente, a fim de que ela tenha valor para nós; vamos nos arrepender dos pecados e manifestar fé na pessoa e obra de Cristo como nosso substituto e intercessor. 302 Esboço 10: O Livramento da Ira de Deus: a Obra Propiciatória de Cristo INTRODUÇÃO 1. O tema da ira divina está diretamente relacionado com o âmago do cristianismo: a significação da morte de Cristo. 2. Referindo-se ao que ocorreu na cruz do Calvário, o NT assevera, em 1Jo 2:2, que Cristo “é a propiciação pelos nossos pecados”. 3. O termo “propiciação” nos lembra da tampa da arca que continha os dez mandamentos, chamada de propiciatório, a qual recebia o sangue ali aspergido, que simbolizava o sangue de Cristo (Êx 25:10-21). ARGUMENTAÇÃO I. PROPICIAÇÃO E IRA 1. A propiciação implica a existência de uma ofensa. Há quatro elementos essenciais em qualquer propiciação: (1) uma ofensa para ser afastada, (2) uma pessoa ofendida que necessita ser pacificada, (3) uma pessoa culpada de ofensa, e (4) um sacrifício ou algum outro meio para fazer expiação pela ofensa. 2. A propiciação implica a necessidade de apaziguar a ira divina. O Deus da Bíblia é revelado como muito diferente dos deuses pagãos – sendo único, soberano absoluto do universo, imutável, que aborrece o mal em todas as suas formas, e fonte de todo o bem – todavia, a ideia de apaziguar Sua ira por meio de ofertas, pode ser percebida ao longo de todas as Escrituras. 303 (1) A necessidade de apaziguar a ira de Deus pode ser encontrada nos diferentes rituais para a expiação do pecado e da culpa – onde o sangue dos sacrifícios era interposto entre Deus e o pecador de modo a afastar deste a ira de Deus (Jó 42:7-9; 2Sm 24:125; 2Cr 29:1-24). (2) A necessidade de apaziguar a ira de Deus pode ser encontrada em narrativas, como aquela em que Arão, usando de incenso, fez expiação pelo povo de Israel, a fim de deter a praga que Deus havia enviado sobre eles (Lv 4:1-6; 16; Nm 16:41-50). (3) A necessidade de apaziguar a ira de Deus pode ser encontrada no significado da morte de Cristo na cruz. II. PROPICIAÇÃO E EXPIAÇÃO Os conceitos de expiação e propiciação nos ajudam a compreender como a ira de Deus pode ser afastada. Todavia, o conceito de propiciação é distinto do conceito de expiação. 1. Enquanto que expiação denota a cobertura, o afastamento, ou a extinção do pecado de modo que ele não mais se constitui numa barreira a uma comunhão amigável entre o homem e Deus, propiciação significa tudo isso mais o apaziguamento da ira de Deus. 2. Enquanto a expiação trata com o pecado humano, a propiciação trata com a ira, a divina reação ao pecado. A propiciação contempla a parte ofendida, que necessita ser apaziguada, e nossa responsabilidade para com a ira de Deus e é a provisão da graça pelo qual nós podemos ser libertos dessa ira de maneira que Deus Se torne propício ou com disposição favorável a nós. 304 3. Enquanto que a expiação é uma referência ao sacrifício de Cristo que removeu a culpa do pecado do homem, a propiciação é uma alusão indicativa de que através da morte de Cristo a ira de Deus é vitoriosa e sua justiça é demonstrada. 4. Enquanto que a expiação efetuada pelo derramamento do sangue de Cristo foi a revelação direta do amor do Pai para conosco, a propiciação feita pelo mesmo sangue e revelando o mesmo amor, foi também o impedimento direto da ira do Pai contra nós. III. PROPICIAÇÃO E RECONCILIAÇÃO 1. A reconciliação entre Deus e o homem é o propósito da expiação. 2. A reconciliação de Deus com o pecador só acontece após Sua ira ser propiciada. (1) A morte de Cristo na cruz efetuou uma importante mudança na relação de Deus com os pecadores, que eram objetos tanto de Seu amor como de Sua ira judicial. (2) A morte de Cristo na cruz removeu a necessidade do castigo dos pecadores – porque Ele fora castigado em lugar deles. (3) A morte de Cristo na cruz removeu os obstáculos à manifestação de Seu amor redentor, de modo que, agora, Deus, com justiça, podia perdoar e salvar em lugar de enviar seus juízos. (4) A morte de Cristo na cruz resultou na satisfação da justiça de Deus e das exigências de sua lei de modo que a ira divina foi desviada. 3. A reconciliação de Deus com o pecador deve ser seguida pela reconciliação do pecador com Deus. O Deus reconciliado opera de tal modo pelo Espírito Santo no coração do pecador que este, pondo de lado sua alienação, participa dos benefícios da perfeita expiação de Cristo, se reconcilia com Deus e tem paz com Ele. Rm 5:1. 305 4. A reconciliação entre Deus e o homem é uma obra de Deus. Cl 1: 21-22 (2Co 5:19; Rm 5:10; Ef 2:15-16). IV. PROPICIAÇÃO E JUSTIÇA A Justiça de Deus Revelada Através da Propiciação. Rm 3:25-26. 1. Na propiciação Deus mesmo foi o ofertante. (1) Nas religiões pagãs a iniciativa da reconciliação entre Deus e o homem é do homem, ele é o ofertante. A propiciação era uma maneira jeitosa de o indivíduo, por si mesmo, mudar o pensamento de uma divindade, ou seja, influenciá-la para que lhe fosse favorável. (2) Na religião da Bíblia a iniciativa da reconciliação entre Deus e o homem e a oferta para apaziguar Sua ira são obras de Deus (2Co 5:18-19). O sacrifício de Cristo não tinha como objetivo despertar amor no coração de Deus, mas manifestar o amor que lá se encontrava. 2. Na propiciação Cristo foi o sacrifício. Foi o derramamento do Seu sangue que alcançou a propiciação, extinguindo a ira de Deus e nos redimindo da morte, porque ocupou o nosso lugar como substituto e representante. 3. Na propiciação foi demonstrada a justiça de Deus. (1) A propiciação através de Cristo na cruz demonstrou não apenas o perdão de Deus, mas também a justiça como fundamento para esse mesmo perdão. (2) A propiciação através de Cristo na cruz demonstrou que Deus satisfez ou propiciou Sua própria ira, Suas próprias exigências santas, e voltou contra Si mesmo Sua ira justa, a qual era merecida pelo pecador. 306 (3) A propiciação através de Cristo na cruz demonstrou que Deus não mais necessita ser apaziguado antes que possa perdoar, porque isso já foi feito por Cristo em prol de todo pecador. (4) A propiciação através de Cristo na cruz indica que Sua morte não foi um acidente, antes, uma obra de Deus, algo deliberado, com um propósito definido. At 2:23. (5) A propiciação através de Cristo na cruz indica que Sua morte foi um ato público, para ser visto e contemplado. (6) A propiciação através de Cristo na cruz indica que Deus precisava ser visto publicamente como justo e não apenas como justificador. a. Antes da cruz, a justiça de Deus não podia ser vista, porque o mal não era punido como devia. a) Antes da cruz, Deus não tratou a humanidade, má e desobediente, como ela merecia. Antes, continuou fazendo o bem e distribuindo bênçãos a todos. At 14:17. b) Antes da cruz, Deus, em sua paciência, estava apenas adiando o julgamento. c) Antes da cruz, desde que Adão pecou – através dos vários sacrifícios ordenados por Deus, incluindo aqueles pertinentes ao ritual do dia da expiação (Lv 16) – os pecados perdoados não recebiam o tratamento definitivo. Todas as cerimônias que tratavam do pecado eram apenas sombras ou figuras do que Deus faria, em realidade, por meio de Cristo (Hb 10:1-4). Os pecados eram como que postos de lado, enquanto Deus aguardava o momento certo para tratar deles. d) Antes da cruz, Deus agia com justiça baseando-se na futura morte de Cristo. b. Na cruz, a justiça de Deus pode ser vista, porque o mal foi punido como devia. 307 a) Na cruz, no devido tempo, o juízo foi realizado, e os pecados que foram anteriormente cometidos foram punidos, mas na pessoa de Cristo que, como o Cordeiro de Deus, nos substituiu. b) Na cruz, o verdadeiro Cordeiro de Deus foi sacrificado de modo que “já não mais resta sacrifício pelos pecados” (Hb 10:26). c) Na cruz, houve uma consumação justa da antiga ordem o que possibilitou que os pecados fossem tratados adequadamente pelo justo juízo, enquanto que, ao mesmo tempo, foi demonstrado que Deus fora justo em procrastinar Seu juízo sobre aqueles pecados. d) Na cruz, na sexta-feira da paixão, depois de acabada a tolerância divina, Deus atacou radicalmente o pecado. e) Na cruz, foi demonstrado que Deus pode ser, simultaneamente, justo e justificador daquele que crê. CONCLUSÃO 1. A doutrina da propiciação em sua conexão com a expiação, pode ser considerada o coração do evangelho, de modo que os assuntos vitais da Bíblia não podem ser bem compreendidos sem o entendimento deste tema. 2. A doutrina da propiciação, não é de admirar, tem sido atacada por Satanás, o qual tem procurado impedir-nos de conhecer seu real e profundo significado. 3. A doutrina da propiciação exige nossa resposta de fé. Rm 3:25. A propiciação efetuada por Cristo beneficia apenas aqueles que põem sua confiança naquele que apresentou Sua vida como um substituto para a vida do pecador. Vamos, pois, aceitar a tudo o que Deus tem feito em favor de nossa salvação. Vamos colocar nossa inteira confiança em 308 Cristo, aceitando-o como a propiciação pelos nossos pecados e, desse modo, sermos libertos da ira de Deus. 309 Esboço - 11: Cristo – O Executor da Ira de Deus INTRODUÇÃO 1. As Escrituras Sagradas nos mostram que o grande plano da salvação elaborado por Deus centraliza-se na pessoa e obra de Cristo. 2. As Escrituras Sagradas nos mostram que uma das obras de Cristo é a de executor da ira divina. Estudaremos, hoje, três profecias que tratam deste tema, sendo duas no Apocalipse de João e uma na segunda carta de Paulo aos Tessalonicenses. ARGUMENTAÇÃO I. A IRA DO CORDEIRO 1. A ira de Cristo no Apocalipse é identificada como a ira do Cordeiro. Ap 6:16-17. (1) No Apocalipse, a ira de Deus e do Cordeiro é um tema contínuo, descrito sob as figuras das trombetas e das taças. (2) No Apocalipse, ao tratar da ira divina, é possível que João tenha mencionado o Cordeiro, e não o leão (como em Ap 5:5), porque seu principal pensamento era a preservação dos santos de modo que a alusão ao Cordeiro seria uma lembrança dAquele que tanto os amou e Se sacrificou por eles e que, agora, os protegeria. 2. A ira de Cristo – o Cordeiro – é a primeira menção que o Apocalipse faz à ira de Deus. 3. A ira de Cristo é uma realidade porque em Sua soberania Deus fez do homem um ser responsável e ao mesmo tempo estabeleceu que Seu destino eterno estivesse vinculado à pessoa de Cristo. O homem se salva ou se perde em função de sua relação com Cristo. (1) O evangelho apresenta a relação com Cristo como a única base segundo a qual Deus justifica ou condena. Rm 8:31-34. Não há outra opção. 310 (2) O evangelho apresenta a alternativa: ou o sangue do Cordeiro (7:14) ou a ira do Cordeiro (6:17). Para quem rejeitar o amor de Deus e recusar o sangue de Cristo, só restará o julgamento e a ira do Cordeiro. (3) O evangelho apresenta que a vontade do Pai e do filho é uma para a salvação do mundo, mas também no julgamento daqueles que rejeitam a salvação. 4. A ira de Cristo é um aspecto significativo para a compreensão de Sua natureza e de Sua obra. (1) Cristo – se Ele retratasse somente os atributos pacíficos de Deus, Ele não seria a plena revelação de Deus, mas apenas uma revelação parcial. (2) Cristo – como Filho de Deus e Palavra de Deus que é, deve manifestar também a justiça e a indignação de Deus. 5. A ira de Cristo como Cordeiro não é uma interrupção do amor, mas uma fase do amor. Há uma ira que é incompatível com a ausência do amor, a qual não pode existir sem que o amor tenha existido antes dela. É a ira que brota do amor desprezado, rejeitado apesar de todo seu sacrifício e empenho em prol do pecador. II. A IRA DO REI GUERREIRO 1. A visão relatada em Ap 19:11-21 pertence ao ciclo do grande julgamento, iniciado no capítulo 17 e concluído no capítulo 20, onde pode ser visto o triunfo de Cristo sobre o Anticristo e seus aliados – reis e nações que colaboraram com ele – na batalha do Armagedom e, depois, sobre o próprio Satanás. Ap 19:11-21. Desse modo, um dos grandes temas do Apocalipse, o grande conflito entre Deus e Satanás, atinge seu clímax nos últimos capítulos. 311 2. A visão registrada nos vs. 11-15 é uma leitura cristológica da profecia de Is 63:1-6, que se refere a Deus; e a visão dos vs. 17-21 descreve a grande batalha com imagens tiradas de Ez 39:17-20 que, em linguagem simbólica, expõem a destruição total e decisiva dos inimigos de Deus. 3. A visão é retratada de maneira que quase todas as palavras empregadas se referem às profecias do AT ou aos nomes que apontam para a pessoa e a obra do Messias. O propósito é: (1) Demonstrar que Cristo tem o direito de julgar em virtude de Sua divina natureza. (2) Demonstrar que Cristo como rei guerreiro e Palavra eficaz, cumpre as profecias que anunciavam a vitória de Deus. a. Cristo é o instrumento de Deus mediante o qual Ele julga e combate o mal e os maus. b. Cristo é apontado como juiz, aquele que não é indiferente para com o mal, nem se esquece, nem é benigno para com ele, antes o combate. 4. A visão posicionada antes do casamento do Cordeiro (cap. 21) tem bastante afinidade com o Sl 45, onde o noivo está celebrando uma vitória na guerra antes de poder receber a noiva. Cristo não pode unir-Se a Seus seguidores até que o mal tenha sido derrotado e isso ocorre na batalha do Armagedom. 5. A visão inaugural de Cristo, no Apocalipse, ofereceu uma pista para a compreensão deste escrito. Como consequência, as muitas imagens hebraicas que aparecem por todo o livro, incluindo nomes e lugares, devem ser entendidas não como vinculadas à antiga aliança, mas como cumpridas em Cristo e na igreja universal. 6. A visão relatada em Ap 19:11-21 é uma das duas passagens que tratam com clareza do Armagedom. A outra se encontra no capítulo 17. O exame de ambas revela que se trata 312 da contenda final entre as forças combinadas de Satanás de um lado e de Cristo e seus seguidores do outro. (1) A batalha do Armagedom deve ser entendida como tendo o seu protótipo no AT, todavia os intérpretes divergem sobre qual é este protótipo. a. Armagedom, para alguns, tem como modelo a guerra no Vale de Josafá, onde Deus mesmo Se encarregou de destruir os inimigos de seu povo (2Cr 20:1-24 cf. Jl 3:2, 9-14). b. Armagedom, para outros, é um nome simbólico que parece aludir à guerra santa de Israel contra Sísera, o comandante do rei cananita e à vitória próxima às águas de Megido (Jz 5:19) – o que foi declarado, no cântico de Débora, ser uma vitória do Senhor (Jz 5:31). c. Armagedom, de acordo com outra interpretação, é um nome que significa “Monte de Megido”. Megido era uma cidade no Vale de Jezreel, a qual tinha um monte: o Carmelo. Como o arroio Quisom, situado nas proximidades, é chamado de “águas de Megido” (Jz 5:19, 21), parece correto, do mesmo modo, considerar o Monte Carmelo como o Monte de Megido. Assim, a batalha do Armagedom é a batalha do Monte Carmelo. A narrativa do AT mostra que foi no Monte Carmelo, nos dias do profeta Elias, que uma poderosa manifestação do poder de Deus alcançou a vitória sobre o falso sistema de adoração e, na sequência, houve uma terrível vingança contra os lideres religiosos que os haviam enganado por tanto tempo (1Rs 18:20-40). 8. A batalha do Armagedom, a espécie de conflito em que Cristo Se engaja, é, de qualquer modo, mais um enfrentamento espiritual com a execução da justiça, do que um conflito militar. 313 (1) Como rei guerreiro, Cristo Se apresenta com uma única arma – a espada – e ela sai de sua boca. a. A figura deriva de uma profecia de Isaías onde é dito que o Messias “julgará com justiça os pobres e decidirá a favor dos mansos da terra; ferirá a terra com a vara de sua boca e com o sopro dos seus lábios matará o perverso” (Is 11:4). Portanto, enquanto Ele é a favor de alguns, pune a outros. b. A espada é a verdade de Deus, como é em Cristo. Ver Is 49:2; Ef 6:17; Hb 4:12. c. Seus dois fios indicam que ela nunca falha ao cortar. Se ela não corta com o fio da salvação, ela corta com o fio da condenação; porque a palavra de redenção para todo aquele que crê é, ao mesmo tempo, a palavra de destruição, para aqueles que se recusam a crer. Ap 2:16; 19:25; Jo 12:47 ss. d. No fim, a espada que sai da boca de Cristo cortará para a destruição, o que não é antagônico ao quadro de Jesus retratado nos evangelhos, onde ficou evidente o poder de Sua Palavra para reprovar: a) Quando Cristo chorou por Jerusalém, também proclamou um juízo sobre a cidade, o qual era certo e breve. Mt 23:37-38. b) Quando Cristo disse à turba que viera para prendê-lo: “Sou eu”, o resultado foi que “recuaram e caíram por terra” (Jo 18:6). e. Aqui no final do livro do Apocalipse, a espada é a palavra falada de Cristo, a qual, proferida em seu retorno a este mundo, se cumprirá, como ocorreu na criação (Gn 1:3; Jo 1:3; Hb 1:2). f. Como símbolo da autoridade judicial e da sentença condenatória, essa palavra será pronunciada para executar a ira de Deus e vai punir e destruir, de modo que ninguém possa resistir nem escapar. 314 g. Portanto, esta última batalha será vencida por uma palavra, a palavra condenatória de Cristo. (2) Como rei guerreiro, Cristo Se apresenta com as vestes manchadas de sangue. a. Esse sangue não é o sangue do próprio Cristo, vertido na cruz, porque a ênfase não é a da Cristo como Redentor, mas como guerreiro e dominador do mal. b. Esse sangue não é o sangue dos mártires que agora está para ser vingado, porque o tema não é o sofrimento dos justos causado pela opressão, mas o julgamento contra os opressores. c. Esse sangue é dos inimigos de Cristo e de Seu povo. Ao descrever o Cristo vencedor, há o emprego de algumas figuras extraídas de Is 63, onde Deus é retratado como conquistador retornando da punição de Edom, havendo pisado o lagar da ira de Deus e tendo suas vestes manchadas com o sangue de Seus inimigos. A figura do manto tinto de sangue sublinha sua vitória sobre Seus inimigos. (3) Como rei guerreiro, Cristo Se apresenta cavalgando um cavalo branco e seguido pelos exércitos que há no céu montando cavalos brancos e trajando vestiduras brancas (Ap 19:14). a. Os exércitos que há no céu são os anjos que O acompanharão em Sua segunda vinda a esta terra (ver Zc 14:5; Mc 8:38; Lc 9:26; 1Ts 3:13, 2Ts1:7). b. Os cavalos brancos e as vestes brancas são um indicativo da vitória do Messias. (4) Como rei guerreiro, Cristo Se apresenta com olhos como chama de fogo. a. Isso simboliza sua habilidade para julgar com exatidão, seu julgamento perscrutador que vê todas as coisas e que tem poder para consumir como fogo. 315 b. Isso simboliza Sua capacidade, como a chama, de iluminar e brilhar, mas também queimar e destruir. (5) Como rei guerreiro, Cristo Se apresenta com muitos diademas em sua cabeça. a. Os diademas são coroas reais e indicam poder e autoridade reais. b. Os diademas lembram um costume que havia entre os monarcas orientais: quando entravam em alguma batalha, traziam coroas de identificação de sua alta posição. c. Os diademas haviam sido usados pelo dragão (12:3) e pela besta (13:1) em seu clamor por soberania universal em oposição ao verdadeiro rei. d. Os diademas usados por Cristo contrastam com os deles e manifestam seu governo magnificente, poderoso e universal, como Rei dos reis, ao entrar ele em conflito com os poderes do mal. (6) Como rei guerreiro, Cristo Se apresenta com diversos nomes. No Oriente Médio, os nomes indicam o caráter e, segundo uma antiga ideia, o nome expressa a natureza de quem o leva. a. O nome “Fiel e Verdadeiro” (Ap 1:11), indica Sua postura em relação à Sua missão, não apenas como salvador, mas também como juiz, pois, em cumprimento de Suas promessas, Ele julga e combate com justiça contra os inimigos de Deus, pelejando para corrigir os erros, derrotar o mal e trazer a justiça ao mundo. b. O nome de Cristo que ninguém conhece (Ap 1:12) pode ser uma referência à glória eterna do Filho, que somente o Pai conhece ou ao Seu novo e desconhecido papel, o de vingador de Seu povo (ver Is 28:21). c. O nome logos, no original grego, significa um pensamento e, então, a expressão daquele pensamento em palavra. Tem sido traduzido como “verbo” ou “palavra”. 316 a) Cristo é tanto revelador da mente divina como o agente da vontade divina. Do modo como revelamos nossos pensamentos, sentimentos e intenções aos outros por meio de nossas palavras, também o Pai revelou-Se a nós por meio de seu Filho, o Verbo encarnado. b) Cristo é chamado de logos por causa de sua missão. Através dele, Deus fala ao mundo e Se revela. c) Cristo, em Seu primeiro advento, veio para revelar a graça de Deus; agora, no segundo, virá para revelar o juízo de Deus. Ele, que antes condenou, mas perdoou o pecado, virá para condenar e julgar o pecado. Como Verbo de Deus revelará a justiça divina e castigará o mal. d. Os nomes “Rei dos reis” e “Senhor dos senhores” – hebraísmos que indicam superlativos – são empregados aqui como uma referência à soberania total de Cristo (ver 1Co 8:5-6). Os reis e senhores deste mundo têm apenas um domínio limitado: eles governam apenas certo território e certa porção de gente, e são independentes uns dos outros. Mas Cristo governa sobre todos: eles são seus vassalos. III. A IRA DO SENHOR 1. O advento de Cristo o destaca como Senhor e tem como um dos objetivos a destruição de quem se levantou contra Deus. 2Ts 2:8. Cristo é o agente de Deus para a destruição. 2. O advento de Cristo será uma manifestação gloriosa. Embora a expressão epifaneia signifique simplesmente aparecimento e não possua, necessariamente, a idéia de esplendor, era frequentemente empregada na literatura grega para descrever uma gloriosa manifestação dos deuses, e especialmente de seu advento para ajudar. 317 3. O advento de Cristo (1Tm 6:14; 2Tm 1:10; 4:1, 8; Tt 2:13), é apresentado como um flagrante contraste com a aparecimento do homem do pecado. 2Ts 2:9. 4. O advento de Cristo mencionado é uma alusão à profecia de Is 11:4 e denota a facilidade com que o Senhor destruirá quem a Ele se opõe. O efeito do olhar e da voz de Cristo será suficiente para destruir o inimigo. CONCLUSÃO 1. Jesus virá outra vez a este mundo. Não como um bebê indefeso e como um homem de dores, com a missão de conduzir os homens ao arrependimento e ao perdão, mas como o majestoso Rei dos reis, que além de salvar seu povo, vem para destruir todos que se rebelaram contra Deus, rejeitaram sua graça e desprezaram o sangue de Cristo. 2. Jesus virá outra vez a este mundo para mostrar que Ele e seu Pai não são indiferentes para com o mal, nem dele se esquecem, nem são benignos para com ele, antes o combatem. 3. Jesus virá outra vez a este mundo para continuar sua obra. Ele que foi fiel em Sua missão de salvar o será também em sua função como juiz e executor da ira de Deus combatendo os inimigos de Deus, derrotando o mal e trazendo a justiça ao mundo. 4. Jesus virá outra vez a este mundo e você vai se encontrar com Ele. Como será este encontro? Eu o convido a aceitar a graça de Deus para escapar da ira de Deus, a aceitar o sangue do Cordeiro para escapar da ira do Cordeiro. RESUMO, CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES Resumo Na busca da compreensão do significado da ira divina, a investigação constatou que as expressões antropomórficas e da antropopatia, bem como as diversas palavras hebraicas e gregas empregadas pelos escritores bíblicos, revelam que essa ira é sua aversão ao pecado em todas as suas formas, com destaque para a quebra da aliança com Deus e a desumanidade do homem para com seu semelhante. Ela tem sido uma realidade no mundo dos homens desde o surgimento do pecado e permanecerá atuante até a extinção do mal e a restauração de todas as coisas. Todavia, mais do que uma mera emoção, ela é uma atitude racional frente ao pecado. É uma das perfeições divinas, expressão justa e natural tanto de sua santidade e justiça punitiva contra o pecado, como de seu amor desprezado ou abusado. Seus efeitos podem ser percebidos na própria constituição humana, no abandono de Deus quando se teima em seguir os próprios caminhos, e nas punições – tanto as que são consequências naturais dos atos de pecado, como as que são penalidades diretas impostas por Deus como juiz. Com respeito à relação de Cristo com a ira divina, percebe-se que ele foi o fiador do homem diante dela, por ocasião da Queda. Ele também a possuiu, em certa medida, quando aqui viveu, e discorreu sobre ela em seus ensinos. Além disso, em sua missão de libertar o homem dessa mesma ira, cristo a recebeu, em seu lugar, na cruz. Sua morte substitutiva foi tanto uma expiação como uma propiciação pelos pecados – a revelação direta do amor do Pai para o pecador, mas também o impedimento direto da ira do Pai. Essa obra de 318 319 libertação inclui sua intercessão no santuário celestial. Cristo também foi apontado como o executor da ira de Deus, o que ocorrerá por ocasião de seu segundo advento e, posteriormente, quando todos se reunirem diante do grande trono branco e ocorrer o juízo final. Finalmente, levando-se em conta toda esta realidade, considera-se que a pregação cristã deve incluir mais do que a vida abundante que vem de Deus quando é manifesta fé em Cristo. Faz-se necessário pregar sobre a ira divina e a condenação que vem sobre todos aqueles que têm pecado não perdoado, que recusam a misericórdia de Deus. Conclusões Havendo investigado e discorrido amplamente sobre o tema da ira de Deus, propõem-se as seguintes conclusões: 1. A ira de Deus é sempre uma reação ao pecado. Juntamente com os atributos da graça, da misericórdia e da longanimidade de Deus, sua ira não seria conhecida se não houvesse pecado. Esses atributos só ocorrem como manifestação divina frente ao pecado. 2. A ira de Deus é uma emoção, uma forte paixão, todavia, desprovida daqueles elementos maldosos que frequentemente caracterizam a ira humana, contaminada pelo pecado. 3. Não há nenhuma distinção precisa entre a ira como uma emoção divina e sua expressão, seja esta por meio de palavras de maldição ou de ações mais concretas. 4. A ira de Deus é também sua atitude racional frente ao pecado. É inteiramente previsível, coerente, constante e imutável. 5. A ira de Deus é sempre despertada pelo pecado em todas as suas formas, com destaque para a quebra da aliança com Deus e a desumanidade do homem para com seu semelhante. 320 6. A ira de Deus é sua aversão ao pecado. Porque o pecado não é inconsequente, mas destrutivo e, se não tratado adequadamente, resultará na morte eterna; ele sempre aborrece a Deus, desperta sua ira e atrai seu ataque judicial. 7. A ira de Deus é apresentada como uma de suas perfeições, expressão justa e natural de sua santidade contra o pecado. 8. A ira de Deus é, também, a reação do seu amor desprezado ou abusado. 9. O amor de Deus não é simplesmente um sentimento ou emoção, mas uma atitude racional e voluntária que se baseia numa escolha deliberada, onde o componente emocional se encontra subordinado à verdade e santidade. 10. A ira de Deus não é incompatível com seu amor e tais atributos coexistem em sua personalidade. Deus experimenta simultaneamente, para com o pecador, tanto a ira quanto o amor: a ira, porque falta a este santidade, e o amor, em razão de que este, mesmo pecador, se encontra em necessidade. 11. A ira de Deus retrata sua obra de julgamento. 12. A ira de Deus abrange, em seu escopo, a história e a escatologia. Tem sido uma realidade no mundo dos homens desde o surgimento do pecado e permanecerá atuante até a extinção do mal e a restauração de todas as coisas. 13. Apesar de paciência e tolerância de Deus para com os pecados, sua ira é revelada em todo o curso da providência, em todas as épocas, seja por meio da acusação da consciência, do sentimento de culpa e remorso, dos sofrimentos físicos e angústias mentais, da quebra dos relacionamentos e do envilecimento que o pecado causa, seja por meio da justiça aplicada pela lei e a sociedade, seja quando irrompe em terríveis julgamentos. Ela está, agora mesmo, embora parcial, em constante progresso, como uma resposta ao pecado. Esses juízos ainda não são juízos totais, mas juízos dentro da história. Possuem um sentido 321 pedagógico e estão mesclados com a paciência e a longanimidade de Deus, preservando o mundo para que tenha a oportunidade de apreciar a revelação do evangelho de modo que quem quiser se volte para o Senhor. 14. Em seu sentido escatológico a ênfase da ira divina recai sobre o castigo que os ímpios – Satanás, seus anjos e os homens impenitentes – terão ao final da história humana. 15. A manifestação da ira divina resulta em tribulação e angústia. 16. Enquanto houver tempo de graça, a ira de Deus será temperada com misericórdia. 17. Os efeitos da ira de Deus são percebidos primeiramente em nossa própria constituição, porque o pecado se encontra no homem como um princípio inato e o faz ímpio e perverso. Em segundo lugar, no abandono de Deus, que entrega os rebeldes a seus próprios desejos e permite que sigam desembaraçadamente seu caminho descendente, sem freio, sem qualquer intervenção divina, até a plena profundeza da depravação (embora Deus nunca abandone quem aceita a Cristo como seu Salvador e esta ação divina de entregar o homem ao seu próprio pecado não seja necessariamente um abandono eterno, pois enquanto a vida segue Deus em sua graça provê oportunidades para a salvação). E, finalmente, os resultados da ira divina são vistos nas punições, sendo que algumas são consequências naturais dos atos de pecado e outras, penalidades diretas impostas por Deus como juiz. 18. As punições decorrentes da ira de Deus têm uma diversidade de propósitos, que podem variar conforme as circunstâncias: a vindicação da santidade e justiça de Deus, a correção e recuperação do pecador e a dissuasão dos homens para que não enveredem pelo mau caminho nem sofram o prejuízo que o mal costuma causar. 322 19. Alguns dos falsos ensinamentos mais comuns entre os cristãos a respeito dos juízos de Deus e de sua ira são: (1) o tormento eterno como castigo pelo pecado, que retrata a Deus como um ser vingativo, que se alegra com o sofrimento de suas criaturas; (2) a recompensa segue-se imediatamente após a morte – se fosse assim, não haveria necessidade de um juízo futuro; (3) as ameaças de Deus não se cumprirão literalmente, pois seu propósito é meramente amedrontar os homens e levá-los à obediência – o que é contraditado amplamente pelas narrativas das Escrituras; e (4) a morte é um sono eterno – o que desconsidera a abundante revelação pertinente. 20. Deus tem empregado, ao longo da história humana, uma variedade de instrumentos para trazer seus justos juízos sobre os homens. Ele faz uso tanto dos anjos que lhe são leais como daqueles que se rebelaram. De fato, há situações em que Satanás e seus anjos são os executores dos juízos de Deus. Isto não significa que haja sociedade entre Deus e Satanás ou que este ofereça algum tipo de obediência àquele, mas que, ao Deus se afastar do pecador contumaz – aquele que ultrapassou os limites de sua misericórdia – Satanás o domina completamente e o sofrimento e desespero que se sucedem também são considerados como juízo de Deus. Em muitas circunstâncias Deus também se valeu de homens como executores de seus juízos. Podia ser um indivíduo ou uma coletividade. Também, repetidamente, Deus tem aproveitado a natureza para mostrar seu desagrado com o pecado. Isso foi evidenciado no Dilúvio, na destruição de Sodoma, nas pragas que vieram sobre o Egito e em diversas rebeliões de Israel. Acrescentem-se ainda a expressão da ira divina por meio de pestilências, doenças e acidentes. 21. Quando o homem pecou, Cristo ofereceu-se como fiador diante da ira de Deus até que, no devido tempo, na cruz, a tomasse sobre si. 323 22. A ira de Deus era uma característica tanto da vida quanto dos ensinos de Jesus e em todos os casos ela despertou quando sua misericórdia foi desprezada. 23. Cristo não apenas possuiu, em certa medida, essa ira, ele também a sofreu. Na cruz suportou a maior demonstração da aversão de Deus contra o pecado, uma punição – o que é o coração da doutrina da expiação. Nenhum ser humano jamais seria capaz de sofrer toda a ira de Deus, mas Cristo a recebeu em sua plenitude por causa da união, em sua pessoa, das naturezas divina e humana. 24. A morte de Cristo foi uma substituição penal, porque ele morreu em no lugar do pecador e como cumprimento de uma pena. Ele assumiu o lugar e o representou, recebendo o castigo que ele merecia de modo a libertá-lo desta experiência. Essa expiação é do início ao fim uma obra do próprio Deus porque, se por um lado sua justiça exigiu a satisfação das exigências da lei, por outro, seu amor encontrou um meio de livramento para o pecador. 25. A expiação realizada por Cristo é a grande e central doutrina do cristianismo e, embora seja suficientemente ampla para incluir a todos e seja a todos oferecida, encontra limitação no número de pessoas que a aceitam. 26. Cristo é também a propiciação pelos nossos pecados. A ideia de propiciação é distinta de expiação, porque o objeto da propiciação é a ira de Deus e não apenas o pecado dos homens. A propiciação contempla a parte ofendida, que necessita ser apaziguada, e a responsabilidade do pecador para com a ira de Deus e é a provisão da graça pelo qual ele pode ser libertos dessa ira, de maneira que Deus se torne propício ou com disposição favorável a ele. Por conseguinte, embora o derramamento do sangue de Cristo tenha sido a revelação direta do amor do Pai para o pecador, foi também o impedimento direto da ira do Pai contra ele. 324 27. Existem três fatos sobre a propiciação, conforme a Bíblia: (1) Deus mesmo é o ofertante, aquele que realiza a propiciação (Jó 42:7-8; Is 60:10; Os 6:1). Não é o homem, como ocorre em todas as religiões pagãs. Entre os pagãos a propiciação era uma maneira jeitosa de o indivíduo, por si mesmo, mudar o pensamento de uma divindade, ou seja, influenciá-la para que lhe fosse favorável. Todavia, na religião da Bíblia, a iniciativa da reconciliação entre Deus e o homem e a oferta para apaziguar sua ira são obras de Deus (2Co 5:18-19). O sacrifício de Cristo não tinha como objetivo despertar amor no coração de Deus, mas manifestar o amor que lá se encontrava. (2) Cristo foi o sacrifício. Foi o derramamento do seu sangue que alcançou a propiciação, extinguindo a ira de Deus e redimindo da morte, porque ocupou o lugar do pecador como substituto e representante. (3) A propiciação demonstra a justiça de Deus. A propiciação na cruz evidenciou não apenas o perdão de Deus, mas também a justiça como fundamento para esse mesmo perdão. Em Cristo, Deus satisfez suas próprias exigências santas, desviando do pecador a ira justa que ele merecia e voltando-a contra si mesmo. Pelo sacrifício de Cristo, Deus satisfez, ou propiciou sua própria ira. 28. A obra de Cristo como libertador da ira de Deus, compreendida a partir do ensino das Escrituras do AT, inclui, necessariamente, tanto o sacrifício como a intercessão. Sua obra sacrifical na Terra requer o seu serviço no santuário do Céu. Em razão do pecador não ser perfeito, ele não tem acesso direto a Deus e precisa de um sacerdote que ofereça sacrifícios a Deus em propiciação por seus pecados e interceda por ele, e este é Cristo. Como intercessor, ele ouve a confissão de pecados e intercede continuamente, tornando realidade os propósitos salvadores de Deus. 29. Cristo será o executor da ira de Deus. Se ele retratasse somente os atributos pacíficos de Deus, não seria a plena revelação de Deus, mas apenas uma revelação parcial. 325 Em sua soberania Deus estabeleceu que o destino eterno do homem estivesse ligado à pessoa de Cristo. Desse modo, o homem se salva ou se perde em função de sua relação com Cristo. Ou aceita o sangue do Cordeiro ou a ira do Cordeiro. 30. Cristo agirá como executor da ira de Deus no julgamento final, em dois tempos. Primeiramente em seu segundo advento e, posteriormente, quando todos se reunirem diante do grande trono branco e ele pronunciar a sentença condenatória e executar a justiça sobre aqueles que transgrediram sua lei e oprimiram seu povo. Na ocasião, a ira será derramada sem mistura de misericórdia e os ímpios sofrerão castigo, que varia em duração e intensidade, segundo suas obras, até que sua existência termine com a segunda morte. 31. Quando, finalmente, pecado e pecadores não mais existirem, a irá de Deus se aplacará. 32. A pregação cristã deve incluir mais do que a vida abundante que vem de Deus quando manifestamos fé em Cristo. Faz-se necessário pregar e ensinar sobre a ira divina e a condenação que vem sobre todos aqueles que têm pecados não perdoados, que recusam a misericórdia de Deus. 33. Embora seja verdade que é a bondade de Deus que nos leva ao arrependimento (Rm 2:4) e que ninguém se converte, ninguém muda de coração, por causa da mensagem da ira de Deus, esta pregação sacode o pecador e o faz pensar em seu destino eterno. Ela mostra aos homens como Deus os vê: pecaminosos por natureza, separados da vida de Deus e merecedores dessa ira. É por isso que as Escrituras publicam a má notícia antes que a boa. O justo juízo de Deus contra o pecado é proclamado antes do oferecimento da graça divina para o perdão dos pecados, pois não há razão alguma para se buscar a salvação do pecado se não se sabe que está condenado por causa dele. Desse modo, o 326 anúncio de salvação está indissoluvelmente ligado à pregação da ira de Deus sobre os homens e a comissão do pregador é proclamar a mensagem de que todos estão sob a ira de Deus até que eles creiam no Senhor Jesus Cristo. Recomendações Como sugestão para futuras pesquisas sobre o tema da ira de Deus, menciona-se a possibilidade de uma investigação do ponto de vista histórico, que demonstre como esta doutrina bíblica foi entendida pelo povo de Deus nos diversos períodos da era cristã. O mesmo pode ser feito, mais especificamente, tendo-se em conta apenas os adventistas do sétimo dia. Para tanto, poderiam ser analisadas as muitas séries de estudos bíblicos, os sermões disponíveis e a vasta literatura denominacional. Também poderiam ser feitas duas pesquisas de campo: uma para detectar o grau de interesse e compreensão que os adventistas do sétimo dia possuem em relação ao tema e, outra, somente com os pastores, para descobrir seu entendimento sobre o tema e o quanto eles tem pregado a respeito. Os resultados serviriam para mostrar a realidade e poderiam ser úteis para ressaltar ainda mais a necessidade de incluir a ira de Deus como tema de sermões. ANEXOS ANEXO A RESULTADOS DA REJEIÇÃO DA GRAÇA DE DEUS A persistente recusa em atender os oferecimentos da graça de Deus atrai seus juízos. Isso pode ser claramente exemplificado no caso da rebelião encabeçada por Coré, pois esta foi a atitude tanto dos líderes como do povo que simpatizou com sua causa. Comentando o episódio Ellen White declara que Coré não teria seguido o caminho por onde foi, se tivesse sabido que todas as instruções e reprovações comunicadas a Israel eram de Deus. Ele podia, entretanto, ter sabido isto. Deus dera prova esmagadora de que estava guiando Israel. Mas Coré e seus companheiros rejeitaram a luz até se tornarem tão cegos que mesmo as mais notáveis manifestações de Seu poder não bastavam para os convencer; atribuíam-nas todas a operações humanas ou satânicas. A mesma coisa fora feita pelo povo que, no dia seguinte ao da destruição de Coré e seu grupo, veio a Moisés e Arão, dizendo: ‘Vós matastes o povo do Senhor.’ Núm. 16:41. Apesar de terem tido a prova mais convincente do desagrado de Deus pela sua conduta, na destruição dos homens que os haviam enganado, ousaram atribuir Seus juízos a Satanás, declarando que, pelo poder do maligno, Moisés e Arão tinham ocasionado a morte de homens bons e santos. Foi este ato que selou a condenação deles. Haviam cometido o pecado contra o Espírito Santo, pecado este em virtude do qual o coração do homem eficazmente se endurece contra a influência da graça divina. "Se qualquer disser uma palavra contra o Filho do homem", disse Cristo, ‘ser-lhe-á perdoado; mas, se alguém falar contra o Espírito Santo, não lhe será perdoado.’ Mat. 12:32. Estas palavras foram proferidas por nosso Salvador quando as obras cheias de graça que realizara pelo poder de Deus, foram atribuídas pelos judeus a Belzebu. É mediante a operação do Espírito Santo que Deus Se comunica com o homem; e aqueles que deliberadamente rejeitam esta operação como satânica, interceptaram o conduto que estabelece comunicação entre a alma e o Céu. Deus opera pela manifestação de Seu Espírito para reprovar e convencer o pecador; e, se a obra do Espírito é finalmente rejeitada, nada mais há que Deus possa fazer pela alma. O último recurso da misericórdia divina foi empregado. O transgressor desligou-se de Deus; e o pecado não tem remédio para curar a si mesmo. Não há um poder reservado, pelo qual Deus possa operar para convencer e converter o pecador. ‘Deixa-o’ (Osé. 4:17), é a ordem divina. Então, ‘já não resta mais sacrifício pelos pecados, mas uma certa expectação horrível de juízo, e ardor de fogo, que há de devorar os adversários’. Heb. 10:26 e 27.1 1 Ellen White, Patriarcas e profetas, 16ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 404-405. 328 329 Também é por este modo que o coração é endurecido a tal ponto que nada mais pode ser feito em prol da salvação do indivíduo. Em outro de seus escritos, comentando a reação de Faraó face à ação de Deus no Egito, ela afirma que o Senhor nos manda advertência, conselho e reprovação, para que tenhamos oportunidade de corrigir nossos erros antes que eles se tornem segunda natureza. Se, porém, recusamos ser corrigidos, Deus não interfere para impedir as tendências de nosso procedimento. Não opera nenhum milagre para que a semente semeada não brote e dê frutos. [...] Foi assim que o Senhor endureceu o coração de Faraó. [...] Deus não mandou um poder sobrenatural para endurecer o coração do rebelde rei, mas à medida que Faraó resistia à verdade, o Espírito Santo era retirado, e ele entregue às trevas e incredulidade que preferia”.2 2 Idem, “Workers for God”, Review and Herald, June 20, 1882, par. 12. ANEXO B HILASTĒRION Paulo com frequência associa a morte de Cristo com o ritual de sacrifícios do AT e emprega a palavra hilastērion (Rm 3:25), que é uma referência ao cerimonial do dia da expiação (Lv 16). 1 Conforme aparece em Rm 3:25, hilastērion é a chave para a compreensão da obra expiatória de Cristo.2 Os teólogos se dividem quanto ao significado de hilastērion. A maioria adota a posição de que é uma referência ou ao assento da misericórdia ou ao sacrifício propiciatório, havendo aqueles para quem as duas idéias não se excluem, antes se completam, de modo que Cristo é tanto a propiciação como o propiciatório, o sacrifício e o assento da misericórdia.3 Para outros eruditos, hilastērion deve ser traduzida por “propiciador”, para concordar com “quem”.4 (1) Hilastērion como o assento da misericórdia. Cada artefato e rito do santuário era uma revelação da obra de Cristo, especialmente o centro de toda adoração: a arca e sua cobertura. Dentro da arca encontrava-se a lei de Deus e, acima, os querubins. Estas coisas 1 Leslie C. Allen, “Romans”, The International Bible Commentary (Grand Rapids, MI: Marshall Pickering e The Zondervan Publishing House, 1986), 1323; George Eldon Ladd, Teologia do Novo Testamento, 2a. ed., traduzido por Darci Dusilek e Jussara M. P. S. Arias (Rio de Janeiro: JUERP, reimpressão, 1986), 399. 2 Marvin R. Vincent, “The Epistle to the Romans”, Word Studies in the New Testament: The Epistles of Paul (Grand Rapids, MI: William B. Eerdmans Publishing Company, reimpressão 1946), 3:43. 3 William S. Plumer, Commentary on Romans (Grand Rapids, MI: Kregel Publications, 1971), 132- 133. 4 Ibid.; Lewis Sperry Chafer, Teologia sistemática, 8 vols., traduzido por Heber Carlos de Campos (São Paulo: Hagnos, 2003), 3:100. 330 331 332 simbolizavam a habitação do trono de Deus, com seus anjos prontos para executarem a justa ira de Deus contra os transgressores de sua lei. A arca sem cobertura seria um tremendo perigo. Os mandamentos descobertos seriam testemunhas contra todos os homens. Haveria apenas justiça, santidade e ira – o que foi ilustrado no episódio em que 70 homens que estavam no campo de Bete-Semes morreram, quando retiraram a tampa da arca e olharam para dentro dela (1Sm 6:19-20). Entretanto, Deus pôs na arca uma tampa, que protegia de sua ira. Entre a glória, a justiça, a santidade, a ira de Deus e os pecadores havia o hilastērion, o “assento da misericórdia”, a cobertura da arca, o lugar da propiciação (Hb 9:5), onde o sangue era colocado de maneira que a ira de Deus permanecesse aplacada. Esse sangue aspergido tipificava o sacrifício de Cristo na cruz, de modo que Cristo é o antítipo do assento da misericórdia, o mediador, pelo qual o homem tem acesso ao Pai (Ef 2:18), o lugar do encontro de Deus com o homem onde a misericórdia de Deus está disponível por causa do sacrifício do Filho. É este o significado quando aparece na LXX e no único outro texto do NT em que se encontra (Hb 9:5). Mas podemos estar seguros que Rm 3:25 tem a mesma moldura de referência? Em primeiro lugar, a passagem de Hebreus tem um artigo definido, enquanto que a referência em Romanos não tem. Isso não é uma objeção insuperável, pois se a intenção de Paulo era ressaltar que Cristo é antítipo do assento da misericórdia do AT, ele naturalmente omitiria o artigo assim como evitaria identificar Cristo com um objeto material.5 5 Harrison, 10:43. 332 Além disso, quando Paulo escreveu, o templo judaico ainda existia e seus leitores possuíam suas próprias Escrituras e conheciam bem o ritual do Kapporeth.6 Alguns têm sugerido que a tradução “lugar de expiação” representa mais claramente a obra de redenção e reconciliação realizadas na cruz.7 Sempre que esta palavra é usada transmite a idéia de que a morte sacrifical de Jesus encontrou a penalidade do pecado e tornou possível o perdão e a reconciliação de quem tem fé em Cristo.8 (2) Hilastērion como o sacrifício propiciatório. Alguns vêem o vocábulo hilastērion como estando no neutro, possibilitando suprir a palavra “vítima” ou “sacrifício”, depois dele.9 Em Hb 9:5 hilastērion é um adjetivo usado como substantivo, significando “o lugar propiciatório” ou o “assento da misericórdia”. Mas não aqui em Rm 3:25, onde é empregado como adjetivo e significa “uma oferta votiva” ou “um dom propiciatório.” A epístola aos Romanos não trata de nenhum aspecto do cerimonial levítico, de modo que seria estranho introduzir o elemento “assento da misericórdia” sem acrescentar qualquer explicação. Além disso, em nenhum lugar da Bíblia Jesus é figurado como “assento da misericórdia”, 10 enquanto que em várias passagens ele é referido como propiciação ou 6 Lenski, 257-258. 7 “Propitiation”, Seventh-Day Adventist Bible Commentary, ed. Francis D. Nichols (Washington, DC: Review and Herald, 1953-1957), 6:505. 8 Ibid. 9 Plumer, 132-133. 10 Plumer, 132-133; Allen, 1323; D. M. 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Significa apaziguar, aplacar, evitar a ira. O Cristo crucificado é a oferta propiciatória do divino amor para a salvação dos homens. Deus deu seu Filho como meio de propiciação (1Jo 2:2).11 11 Lloyd-Jones, 69-70; Archibald Thomas Robertson, “The Epistles of Paul”, Word Pictures in the New Testament (Grand Rapids, MI: Baker Book House, 1931), 348; John Murray, The Epistle to the Romans, 2 vols., The New International Commentary on the New Testament (Grand Rapids, MI: William B. Eerdmans Publishing Company, reimpressão 1975), 117-118; Joseph A. Fitzmyer, “Carta a los Romanos”, Comentario bíblico San Jerônimo, traducido por Alfonso de la Fuente Adanez e outros (Madrid: Ediciones Cristiandad, reimpressão 1986), 4:115; Charles Hodge, Teologia sistemática, traduzido por Valter Martins (São Paulo: Hagnos, 2001), 863. BIBLIOGRAFIA Achtemeier, Paul J. Romans. Interpretation, a Bible Commentary for Teaching and Preaching, vol. 18. Atlanta: John Knox Press, 1985. 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VITA Nome Emilson dos Reis Nascimento 27 de outubro de 1955, Porto Alegre, RS Esposa Irani Augusta dos Reis Filho Thompson Augusto dos Reis Ensino Médio Instituto Adventista Cruzeiro do Sul, Taquara, RS Títulos 1976 Bacharel em Teologia – Instituto Adventista de Ensino, São Paulo, SP 1981 Mestre em Teologia Pastoral – Instituto Adventista de Ensino, São Paulo, SP Experiência Ministerial 1977-1978 Pastor Distrital em Nova Andradina, MS 1979-1981 Pastor Distrital no Porto, Cuiabá, MT 1982-1985 Professor de Ensino Religioso e Pastor Distrital no IACS, Taquara, RS 1986-1987 Pastor Distrital na Central de Porto Alegre, RS 1988-1990 Professor de Teologia no IAE, São Paulo, SP 1991-1995 Professor de Teologia no Novo IAE, Engenheiro Coelho, SP 1996-1997 Pastor Distrital na Floresta, Porto Alegre, RS 1998-2006 Coordenador Acadêmico e Professor de Teologia no UNASP, 355 356 Campus Engenheiro Coelho, SP 2007-2008 Pastor da Igreja do UNASP, Campus Engenheiro Coelho, SP 2009-____ Diretor da Faculdade de Teologia do UNASP, Campus Engenheiro Coelho, SP