XXV CONGRESSO LATINOAMERICANO DE PSICANÁLISE FEDERAÇÃO PSICANALÍTICA DA AMÉRICA LATINA “O MUNDO OBJETAL ANORÉXICO E A VIOLÊNCIA BULÍMICA EM MENINAS ADOLESCENTES” EIXO III – PSICANÁLISE DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES MARINA RAMALHO MIRANDA SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE SÃO PAULO BRASIL - 2004 1 INTRODUÇÃO Manifestações de um sofrimento psíquico, anorexia e bulimia são por mim entendidas como perturbações paradoxais da alimentação, que se revezam morbidamente no psiquismo, especialmente de jovens do sexo feminino, foco deste estudo, revelando tensões entre o ato de comer e o não-comer, pois o alimento recusado, temido e expurgado constitui-se como o objeto da paixão dessas meninas, formando-se, então, uma relação apaixonada entre elas e o alimento. Alimento, corpo e fertilidade, elementos fundantes da feminilidade, são personagens centrais de uma guerra travada no interior de mentes de mães e filhas assustadas e perplexas diante do inominável que eclode de emoções impactantes e antagônicas, que permeiam esses quadros o tempo todo. Mãe e filha dependentes e paradoxalmente sentindo um horror a esta dependência que nutre a relação, aprisionadas num corpo-cárcere, ambas buscando eternamente uma completude para um vazio que sentem nunca ser eficientemente preenchido, tomadas por uma sensação de constante débito, uma tristeza sem nome, uma vida que beira a morte. Patologias dos contrários, dos paradoxos, construções psíquicas fundadas ao mesmo tempo nos excessos e nas faltas, antagonismos e incoerências que ocupam o lugar central dessas perturbações. Anorexia e bulimia constituem-se como o protótipo da configuração ilógica do inconsciente, expressões ilustrativas da dinâmica profunda da mente perturbada por culpas e penitências. 2 A CLÍNICA É SOBERANA Uma menina de doze anos, franzina, semi-esquelética, pálida, trêmula, com ar assustado entra em meu consultório. Chama-se Eliana1. Traz consigo uma atmosfera grave, pouco colorida, uma avalanche de angústias, difusas e esparsas, as quais ela pouco consegue definir. Mas sabe que não está bem. Porque sofre e porque se sente saturada, sem vontade, sem anseios, sem sonhos, sem fome. Vazia de recursos e de pensamentos, mas cheia de ansiedade, com pouca disponibilidade para pensar, transbordando dor, comunicando penitência. Uma boca que pouco come, um psiquismo que pouco elabora. Esta é Eliana. Espaços internos ocupados, não há mais lugar, nem no estômago, nem na mente. (Será que haverá lugar para a análise?) Com um mundo de coisas que gostaria que eu soubesse, mas sem palavras para transmiti-las a mim ou a qualquer outro. Percebe-se carente, mas não sabe de quê. Magra, de carne, de idéias, boca fechada para a comida, mente fechada a reflexões. Corpo que mostra os ossos, que desnuda a dor, que expõe o que não é para ser visto: o sinistro. Assim ela se apresenta a mim. Ela está ali, bem na minha frente. Penetrou pela minha porta adentro, portanto me refaço otimista, procuro achar desse modo, notícias de vida, de movimento, de ação. Mas o fundo continua branco e preto, uma sombra depressiva em suas primeiras falas: 1 Nomes das pacientes e histórias misturados com a ficção, para resguardar o sigilo da sala de análise. 3 “Não posso comer...não consigo comer...se eu não comer, vão me internar...” “Sinto-me como um balão estufado, mas vazio, sem nada, que se for solto, não conseguirá subir.” Medo, angústia de morte, incerteza, um sombreado negro, uma sensação frustrada de desencontro, de busca errada, de constantes enganos. Um mundo sem palavras, sem sustento, sem sentido. O corpo franzino, o cabelo ralo, a pele seca, a brancura, o roxeado de seus lábios revelam-me a violência do auto-ataque, o poder destrutivo desta menina aparentemente tão inofensiva. “Não me gosto, sou feia, detesto tudo o que faço”. Sente-se atormentada, assombrada pela gordura, acusada pela magreza, rodeada de fantasmas que ela não vê, não identifica, similares a inimigos invisíveis. “Estou sempre gelada, tenho a impressão de ser como a neve, aliás, eu adoro o branco...” Ela “adora” este estado, branco, que tem a ver com o puro, limpo e, portanto, bom. Causa-me intenso impacto a força do olhar de Eliana, a sensação de que estou diante de dualidades de emoções, que me perturbam ao mesmo tempo em que me fascinam. Um olhar de menina carente, porém transmitindo a presença de uma mulher que de nada precisa; gestos de pedido de ajuda, implorando cumplicidade, ao mesmo tempo em que vejo desdém e desprezo em suas falas. 4 Alguém vazio, e ao mesmo tempo alguém tão cheio, atormentado por fantasmas que a consomem e a conduzem a uma sepultura em vida. Lembro-me de antigos rituais religiosos, nos quais evitar a ingestão de alimentos, como o jejum, carrega em si a conotação de busca de um estado puro e também de pagamento de uma dívida que sempre está se renovando (anorexias sagradas, santas) Um terreno perigoso, onde apenas fragmentos são apresentados, pois o todo da experiência é por demais violento. Percebo que estou transitando em áreas de vida e de morte, e que o que pude intuir deste encontro é quase nada diante do que esta menina está vivendo. Foi apenas um vislumbre da tragédia que a acometeu. “Todos dizem para eu comer. Minha mãe diz o dia todo: coma, coma, coma, ninguém percebe que eu vou entrar em estado de coma!” Um jogo de palavras que expressa pré – morte... A mãe de Eliana, rendida à confusão psíquica instaurada e sentida por meio das angústias da filha, sentiu o medo de perdê-la e percebeu as suas próprias fragilidades misturadas na relação e aceitou a proposta de iniciar sua própria análise. A anorexia e a bulimia têm ocupado um lugar de destaque em nossos dias devido, principalmente, à alta demanda de meninas púberes e adultos jovens em nossos consultórios e serviços públicos de saúde mental. Muitas mulheres sofrem dessas perturbações2 e necessitam ser ajudadas, preferencialmente por um “time” 2 As pesquisas mais recentes apontam para o fato de que 90% das pessoas acometidas pela anorexia são jovens mulheres, o mesmo ocorrendo com a bulimia. Dados extraídos do Current 5 que delas cuide, formado por uma equipe multidisciplinar, pois devido à complexidade envolvida nesses quadros, um profissional isolado não deveria ter o patrimônio do atendimento, postura esta que já de antemão irá servir de modelo contra o pensamento onipotente que permeia o funcionamento mental anoréxico-bulímico o tempo todo. Refiro-me à anorexia da paciente bulímica e à bulimia da paciente anoréxica, desta maneira reproduzindo espontaneamente o cruzamento e o revezamento das características paradoxais de ambas as perturbações. Leslie Sohn3, psicanalista inglês de inspiração bion-kleiniana, ensina-nos que a anoréxica esconde demandas bulímicas na falta de apetite e na falta de interesse, pois no interior de seus objetos reside uma impossibilidade de satisfação dos desejos. A mente bulímica, por sua vez, apresenta as mesmas qualidades da mente anoréxica, uma falta de apetite dirigida às possibilidades e buscas específicas, não encontrando uma real satisfação em coisa alguma. Compartilho sobremaneira da compreensão de Sohn4: “Neste artigo pretendo discutir a anorexia do paciente bulímico e a bulimia do paciente anoréxico – e sua inter-relação, tal como é manifesta na transferência.” (tradução livre) A CONTRIBUIÇÃO DA PSICANÁLISE Medical Diagnosis & Treatment, ed. Lawrence Thierney, Stephen McPhee, Maxine Papadakis. Stamford: Appleton & Lange, 1999. 3 Sohn, Leslie Anorexic and bulimic states of mind in the psycho-analytic treatment of anorexic/bulimic patients and psychotic patients em Psychoanalytic Psychoterapy, vol. I, 2, pp. 4956. 4 Idem, ibidem. 6 DEFINIÇÃO DOS TERMOS: Anorexia: palavra que vem do grego orexis, que significa desejo em geral e não apenas desejo de comer, precedida do prefixo a de negação, anorexia quer dizer negação do desejo. Podemos constatar desde aqui que esta perturbação está originalmente implicada com conflitos na área do desejo e com suas mais bizarras formas de expressão. Vontade e contra-vontade, os pares de opostos, as duplas antagonistas ou as idéias antitéticas5 de que nos falava Freud localizam-se na base destas perturbações. Bulimia: termo que também deriva do grego, significando fome de boi, bulimia refere-se a uma vontade incontrolável de comer, de forma indiscriminada, gulosamente, em pouco espaço de tempo com comprometimento do senso crítico em relação à quantidade, qualidade ou combinação dos alimentos. Fome de boi sugere apetite animalesco, que extrapola o humano e migra para o reino animal, onde sabemos, o pensamento simbólico não tem lugar. Segue-se a esses episódios, (que geralmente ocorrem às escondidas e com maneiras pouco elegantes) um intenso sentimento de culpa e medo de engordar, o que leva à indução de vômitos e/ou uso de laxantes e diuréticos como meios de evitar o ganho de peso. A expressão binge eating é freqüentemente encontrada na literatura sobre o tema para fazer referência ao rápido e indiscriminado consumo de grande quantidade de comida num tempo curto, típico dos episódios bulímicos 5 Freud, Sigmund (1892-3) Um caso de cura pelo hipnotismo, ESB, 1ª. Ed., vol. I, p. 171. 7 anteriormente referidos, levando a pessoa a um desconforto físico e psíquico, sono e vontade de vomitar, gerando, na seqüência, um humor depressivo. O MAL-ESTAR DA CONTEMPORANEIDADE Questões de identidade, falhas no processo identificatório, áreas do desenvolvimento mental que ficaram sem representação e portanto impedidas de desdobramentos, mentes que burlam a possibilidade de pensar a dor: sinais dos nossos tempos, eis aqui o “lado mau” da chamada “era contemporânea”, que dá a luz a aparelhos psíquicos que não conseguem abrigar áreas de representabilidade do afeto. Daí anorexia e bulimia (assim como a chamada “síndrome do pânico, alcoolismo, drogadicções) serem consideradas hoje como perturbações pertinentes à era contemporânea, pela concretude de suas expressões, pelo vazio de significações, pelos sucessivos actings, pelos constantes splittings e pela impulsividade das ações violentas em detrimento da ponderação elaborada do pensamento. Meninas anoréxicas/bulímicas que assustadas e que relatam uma sensação se mostram sombrias, pálidas, frustrada de desencontros, de constantes buscas erradas, de incertezas e indefinições. Sentem-se imersas num mundo sem palavras, sem sustento e sem sentido. Deparam-se com a falta, sentem-se devendo. Não sabem o quê, nem a quem. Vivemos hoje em contato direto com a violência explícita, gratuita, invasões de toda ordem que me reportam à violência bulímica e à destrutividade anoréxica, onde a presença de um objeto intrusivo outorga ao mundo interno dessas meninas 8 uma sensação constante de estarem sendo agredidas e arrombadas. Relatos constantes de “vazio interior”, sensação de “oco por dentro” ou ainda vivências de “balão estufado que se for solto se perderá no espaço”6 mostram tentativas de representações simbólicas que se confundem com a concretude que impera no modo de funcionar anoréxico e bulímico, possíveis seqüelas das falhas no processo identificatório, onde self e objeto muitas vezes se fundem sem alternativas de singularidade. Vivemos uma época em que o indivíduo expressa muito de sua maneira de pensar e expõe seu perfil através da forma como lida com seu corpo e com sua alimentação. Portanto, reconheço a necessidade de estarmos preparados com nossas teorias para nos defrontarmos com os fenômenos psíquicos que surgem no cenário cultural da Pós- Modernidade onde o corpo, a conservação da juventude e a aparência física dominam o discurso da mulher e do homem, de modo especial no nosso país. Concordo que o chamado cenário pós-moderno é transformador e gerador de novos valores éticos e estéticos podendo levar a um impacto sobre a subjetividade contemporânea, assim como criar novas facetas na cultura pósmoderna. Porém, neste artigo, estarei focando minha atenção nas questões inconscientes, esperando contribuir com uma compreensão do psiquismo na anorexia e na bulimia, que se movimenta de dentro para fora, afinada com as vivências da interioridade e na singularidade específica de cada ser humano. 6 Expressões extraídas de relatos de jovens pacientes em análise. 9 Penso que a psicanálise contribui expandindo esta visão ao tomar a anorexia e a bulimia como sintomas orais que ao mesmo tempo em que escondem, mostram angústias primitivas ligadas a momentos iniciais do desenvolvimento da vida psíquica, especialmente no que concerne a rupturas precoces na relação com a figura materna internalizada. A anoréxica e a bulímica usam o corpo como tela projetiva ou como um diário, nele inscrevendo sua história plena de paixões despropositadas; o artista usa a tela também como forma de registro de afetos impactantes, que tingem o branco com a história emocional do pintor. A anoréxica, com seu corpo magro, sem formas, despista a emergência de fantasias edipianas, desfaz-se da concretização do incesto, do contato com a realidade psíquica e com as fantasias ligadas à voracidade e inveja. Áreas concretas, de corpo, de carne, de tecidos, de vômitos ou de gorduras, repetindo e copiando si mesmo, sem alternativas de criatividade ou fertilizações. Corpos anoréxicos e bulímicos que exibem as marcas da passagem da angústia, corpos sacralizados e notados, que atraem e repelem, reproduzindo e estampando o sofrimento e a dor daquelas mulheres que não conseguiram manter no reino do simbólico os seus desencontros. A TEORIA ALICERÇANDO A CLÍNICA DOS DISTÚRBIOS DA ALIMENTAÇÃO Freud já falava... A investigação de Freud, no início da construção da teoria psicanalítica, é preciosa para este estudo, não só à guisa de fundamentação teórica, mas para 10 destacar que as questões psicopatológicas envolvidas na anorexia e na bulimia já aconteciam e por ele eram percebidas e pesquisadas em 1893. Freud descreve os “casos clínicos,”7 nos quais a anorexia figura e é referida como um sintoma de quadros clínicos denominados por ele como “histerias”, “neurose infantil” ou ainda, usando a expressão de Charcot “histerique d´occasion”.8 Em 1895, Freud já usava o termo atual quando se reportava à “anorexia nervosa em moças jovens” 9 e ao descrever os sintomas anoréxicos observados em suas primeiras pacientes, mulheres, diagnosticadas por ele e por Breuer como histéricas. Seus achados clínicos levantam questões sobre a sexualidade e feminilidade equivalentes às encontradas na dinâmica psíquica das jovens anoréxicas e bulímicas por mim atendidas. DA NEUROSE NUTRICIONAL À ANOREXIA NERVOSA Existe uma carta a Fliess, que, segundo os editores da Standard Edition, não tinha data; guiados pelo carimbo do correio no envelope que julgam pertencer a ela, os primeiros editores situaram-na como sendo de 7 de janeiro de 1895, o que corresponde e faz sentido com as idéias que Freud vinha desenvolvendo sobre histeria e melancolia: é o Rascunho G, documento precioso no qual ele diz ter observado anorexia nervosa em moças jovens, estabelecendo uma intensa ligação com conteúdos melancólicos. 7 Freud, Sigmund (1893-1895) Estudos sobre a Histeria – II Casos Clínicos: (1) Fraülen Anna O., (2) Frau Emmy Von N., e (3) Fraülen Elizabeth Von R., ESB, 1ª. ed., vol. II, p. 63. 8 Freud, Sigmund (1892-3) Um caso de cura pelo hipnotismo, Op. cit., p. 171. 9 Freud, Sigmund (1895) Rascunho G, Op. cit., pp. 275-6. 11 Vejamos: “(a) O afeto correspondente à melancolia é o do luto – ou seja, o desejo de recuperar algo que foi perdido. Assim, na melancolia, deve tratar-se de uma perda – uma perda na área da vida instintual. (b) A neurose nutricional paralela à melancolia é a anorexia. A famosa anorexia nervosa de moças jovens, segundo me parece (depois de cuidadosa observação) é uma melancolia em que a sexualidade não se desenvolveu. A paciente afirmava que não tinha se alimentado simplesmente porque não tinha nenhum apetite, não havia qualquer outro motivo. Perda do apetite – em termos sexuais, perda da libido. Portanto, não seria muito errado partir da idéia de que a melancolia consiste em luto por perda da libido. Restaria saber se essa fórmula explica a ocorrência e as características dos pacientes melancólicos”. Em outro momento (1924)10, Freud reflete que foi a partir dos estudos com as jovens histéricas, nas quais um desejo sexual reprimido transformou-se num sintoma penoso, que a psicanálise começou a mostrar que ela era capaz de lançar luz sobre outras atividades que não a atividade mental patológica, a saber, sobre qualquer questão investigativa do mundo interno. Assinalo esta reflexão de Freud porque ela conduz, a meu ver, a um ponto de intersecção fundamental nessas três patologias: as meninas anoréxicas, as histéricas e as melancólicas, a quem Freud se refere, apresentam um imenso componente de culpa e destrituvidade e tiveram sua investigação viabilizada por 10 Freud, Sigmund (1924 [1923]) Uma breve descrição da psicanálise, Op. cit., p. 247. 12 conta do estudo de Emmy, Anna Ó e Elizabeth Von R., a quem devemos a compreensão atual do uso do corpo como fetiche (na anorexia e na bulimia), encobrindo e renegando qualquer falta e, historicamente, serviram de ponto de partida para as posteriores descobertas em psicanálise. Penso que as meninas anoréxicas e bulímicas de hoje expressam sintomas organizados em antigas patologias, ou seja, seus corpos revelam, de modo original, singular e contemporâneo, enredos históricos de vidas comprometidas com vínculos de intensa paixão, transmitidos transgeracionalmente. Por que transgeracionalmente? Porque nesses conflitos de mulheres, a relação fusional mãe-filha e suas ascendências e heranças afetivas serão evocadas o tempo todo, constituindo-se, a meu ver, no núcleo principal dos distúrbios alimentares. Nesse sentido, o crescente interesse contemporâneo acerca dos transtornos alimentares adquire utilidade de pesquisa, por provocar a abertura de caminhos para novas descobertas sobre épocas arcaicas do psiquismo e, por conseqüência, expandindo a compreensão das histórias mais primitivas de relações de objeto. O ASPECTO NUCLEAR DA ANOREXIA E DA BULIMIA: A COMPLEXIDADE DA RELAÇÃO MÃE-FILHA 13 “Minha mãe não me larga, me chama o tempo todo...estou enjoada dela. Não quero ser como ela. Ela pensa que é eu; eu já falei a ela: Mãe, seja você mesma, você não é eu, eu não sou você!”11 “Escuto o dia todo: coma!coma!coma! parece que minha mãe quer que eu entre em estado de coma!”12 Deparo-me com o clima de ameaça à vida, pois recebo a comunicação de que trabalharemos em clima de U.T.I.13 A contradição entre o comer e o não-comer revela-se nos distúrbios de metabolização do alimento: a hostilidade e o oposicionismo se denunciam na recusa em ser alimentada e nos vômitos do veneno que alucina conter em si, o deteriorado da experiência inominável, aquilo que ela, paciente, não pôde metabolizar ou nomear. Emagrece, “tentando fazer a mãe sumir de dentro dela.” A figura da mãe parece ser a personagem central de suas vidas, de seus sonhos, de suas histórias, e, finalmente, de suas paixões. O relacionamento das filhas anoréxicas com suas mães, ambas sofridas e assustadas, precisa de cuidados e de toda a nossa atenção e interesse, pois se mostra revelador dos caminhos que conduzirão à compreensão da trama instaurada entre elas. Nesse momento, recorro a Melanie Klein que destaca a interação entre o alimento e a mãe, o alimento e o bebê, enfim a interdependência poderosa desta 11 Fala explosiva de uma jovem bulímica de 14 anos, em análise. Fala de Eliana, menina anoréxica de 12 anos, referida na Introdução. 13 Unidade de Terapia Intensiva de um hospital, para onde são encaminhados pacientes graves. 12 14 tríade que irá constituir o cenário tranqüilo ou turbulento da constituição do psiquismo. Diz ela: “As relações do bebê com seu primeiro objeto, a mãe, e com o alimento estão inseparavelmente ligadas desde o início(...) A atitude inicial em relação ao alimento vai desde uma aparente ausência de voracidade até uma grande avidez(...) a voracidade surge quando, na interação entre impulsos libidinais e agressivos, esses últimos são reforçados. A voracidade pode ser desde o início incrementada pela ansiedade persecutória. Por outro lado, como assinalei, as primeiras inibições alimentares do bebê também podem ser atribuídas à ansiedade persecutória. Isso significa que a ansiedade persecutória em alguns casos aumenta a voracidade e em outros a inibe. Como a voracidade é inerente aos primeiros desejos dirigidos ao seio, ela influencia vitalmente a relação com a mãe e as relações de objeto em geral,”14 A análise visaria a restituição da capacidade do ego para a incorporação do objeto bom (na anorexia, redundaria na volta da alimentação). O ego, movido pelos sentimentos amorosos que mitigariam o ódio, ganharia força e coesão. A clivagem entre os objetos idealizados e persecutórios diminui. A fantasia de que o objeto amoroso pode ser preservado com segurança dentro do corpo aumenta as possibilidades dos mecanismos de introjeção, pois o interior do psiquismo fica mais aliviado da fantasia de ser percebido como um lugar perigoso e venenoso; o ego se fortalece no momento em que é capaz de proteger e preservar os bons 14 Klein, Melanie (1952) Sobre a observação do comportamento dos bebês in Inveja e Gratidão e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1985, p.121. 15 objetos internalizados, das pulsões do id e dos objetos perseguidores maus. Os aspectos fantasiosos dos objetos tomam o seu devido lugar. Klein enfatiza a fundamental importância da capacidade de integração, para que a saúde mental – termo usado por ela - se instale.15 Essa necessidade de integração se origina do sentimento de que partes do self são desconhecidas e, portanto, há uma sensação de empobrecimento ou de vazio. Como o ódio necessita ser mitigado pelo amor, esta mitigação não poderá se dar se estiverem separados ou em total oposição, como acontece nos distúrbios alimentares, onde as relações de objeto estão em permanente regime de objeto parcial. Além disso, como a integração implica em dor, há, novamente, uma tendência à expulsão dessas partes ameaçadoras e perturbadoras dos impulsos. Em relação à violência bulímica, Melanie Klein contribui indiretamente para esse tema, quando em sua obra faz alusão ao ataque derivado dos impulsos anais e uretrais que implica em expelir substâncias perigosas (excrementos) para fora do self e para dentro da mãe. Segundo ela: “Juntamente com esses excrementos danosos, expelidos com ódio, as partes excindidas do ego são também, projetadas para dentro da mãe. Esses excrementos e partes más do self destinam-se não só a ferir, mas também a controlar e tomar posse do objeto.”16 15 16 Klein, Melanie (1960) Sobre a saúde mental, op. cit., p. 312. Klein, Melanie (1946) Notas sobre alguns mecanismos esquizóides, op. cit., p. 27. 16 A mãe, assim identificada com as partes más do self já não é mais ela mesma, e sim o self mau. Aqui encontro respaldo para o entendimento que fiz a respeito das vivências de fusão e de confusão de identidades da menina anoréxica e/ou bulímica e suas mães e o conseqüente sentimento de rejeição da filha pela mãe, que é vista como má, sádica, que a obriga a fazer o que menos quer e o que mais teme: comer. Um grande ódio é direcionado para a mãe que leva, segundo Klein, no mesmo artigo, a uma forma peculiar de identificação, que estabelece o modelo de uma relação de objeto agressiva. Este é mais um aspecto do mecanismo que Klein chamou de identificação projetiva. Marilyn Lawrence, psicanalista do grupo britânico, afinada com a leitura kleiniana dos distúrbios alimentares, diz em recente artigo: “Algumas pacientes anoréxicas, mais do que outras, estão preparadas para passar fome a ponto de morrer. Penso que o grau de homicidade em direção ao self e ao corpo reflete a extensão do propósito assassino com relação aos pais internos e suas relações.”17 A partir da constatação de que há 10 mulheres anoréxicas para 1 homem, Marilyn Lawrence continua em artigo posterior18 a apresentar suas considerações sobre a feminilidade e a relaciona à hipótese de que as mulheres que 17 Lawrence. Marilyn (2001) Morrer de amor : a anoréxica e seus objetos in International Journal of Psychoanalysis, 32,London: Hogarth Press, 2001, p.11. 18 Lawrence, Marilyn (2001) Body, Mother, Mind – Anorexia, femininity and the intrusive object. International Journal of Psychoanalysis ,83, 2002, pp. 837-850. 17 desenvolveram anorexia foram, quando crianças, receptáculos de invasões ou vítimas de violências físicas ou psíquicas. A dinâmica do mundo interno que é observada denuncia a presença de um objeto intrusivo instalado na mente dessas mulheres, que não tiveram, necessariamente, antecedentes de experiências externas de intrusão. A intensidade das fantasias de que algo perigoso e ameaçador se instalou dentro de seu próprio corpo é diretamente proporcional às fantasias de ataque ao corpo da mãe e quanto mais a menina nega a relação entre os pais, maior será a intrusividade do objeto. A menina usa a mãe como escudo protetor dessas fantasias, ao invés de senti-la como continente e capaz de metabolizar seus medos e fantasias agressivas. As conseqüências psíquicas da falha da menina em internalizar o casal parental conduzem a uma fusão da menina com a mãe. Identificada com as partes faltantes da mãe fragilizada, a menina desenvolverá um vazio que tentará a todo custo preencher em busca da completude ou de um engajamento e carecerá de um desenvolvimento simbólico adequado. Em Farrell19 (1995) e Linda Miller (1997)20, também psicanalistas do grupo britânico, dão especial atenção à complexidade da relação mãe-filha na anorexia e 19 Farrell, Em (1995) Lost for words – The Psychoanalysis of anorexia and bulimia. London: Other Press, 1995. 20 Miller, Linda (1997) Mother – daughter and absent father: Oedipal issues in the therapy of an 11year-old girl with an eating disorder, Journal of Child Psychotherapy, vol. 23, 1. London, 1997, pp. 81-102. 18 na bulimia reforçando a idéia de que a falha na internalização do triângulo edípico resulta na falha em integrar a observação à experiência, o que dificulta a separação da identidade da menina e da mãe. Miller vê também as perturbações alimentares como defesas contra essa fusão e uma tentativa de alcance da individuação, uma vez que outras defesas fracassaram e manifesta a importância da inclusão da mãe num trabalho analítico. FANTASMAS SEM LUGAR Estamos num cenário penitencial, pleno de sentimentos de culpa e frente a perturbações que se caracterizam pelo trânsito em áreas de fronteiras, como se o fio de ligação entre o mundo neurótico e o psicótico ameaçasse constantemente se romper. Os investimentos narcísicos da mãe e da filha impedem a troca afetiva e bloqueiam o reconhecimento do outro. Há no funcionamento anoréxico- bulímico uma perversão do querer, um horror ao reconhecer a dependência do objeto e, simultaneamente, um descaso a ele, ou, mais do que isto, um verdadeiro triunfo sobre a comida, que beira a imortalidade. Uma aura de morte é expressa nesses sintomas orais, que parecem almejar um renascimento como fantasia. Mas não é o sofrimento ou o desprazer 19 que é almejado e sim não ser mais nada, atingir a pureza própria das santas21, pois o corpo que não tem mais órgãos ou o eu que não tem mais corpo torna-se imortal. Sidonie, a paciente anoréxica de 17 anos, atendida por Maud Mannoni22, apresenta grave risco de vida pelos danos físicos que o emagrecimento lhe causou, chegando a ter os rins em colapso pela ingestão exagerada de vinagre, limão e aspirinas, além do abuso de soníferos. É várias vezes internada, oscilando entre o hospital geral e o hospital psiquiátrico. Diagnosticada como histérica e também como psicótica, nem os médicos, nem seus pais acreditam em sua recuperação. É vista como uma pessoa delirante e sem esperanças de “cura”. Diz Sidonie a Mannoni em sessão de análise: - Os alimentos...não é preciso que eu saiba como são, acarreta-me remorso. Uma força me diz: “Tu não deves comer, uma desgraça te acontecerá.” A obesidade é um crime que considero mortal. Minha mãe dizia: “Tu não deves comer, se tu tocas em alguma coisa, será infeliz por toda a vida. Tu serás mostrada nos parques de diversões. Tenho vozes que me habitam, desejo provar ao mundo que posso agüentar até o extremo limite do início da morte. É preciso que me deixem chegar até lá, fazer o que me der na telha. Nunca me deixaram fazer esta experiência e tudo deve recomeçar em cada vez. Tenho de me livrar das minhas vozes. É a primeira vez que falo a alguém do meu segredo.” 21 Pesquisando a vida das santas da Igreja Católica, encontrei sinais bastante indicativos de anorexias e bulimias, como em Santa Maria Egipcíaca, Santa Tereza D´Avila, Santa Catarina de Sienna, entre outras. 22 Mannoni, Maud Instituição Psiquiátrica e Psicanálise – II - Um caso de anorexia mental. In O psiquiatra, seu louco e a psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1971, p. 147. 20 Sidonie assim como tantas meninas anoréxicas e bulímicas que entram em risco de vida, tem o desejo de morrer no seu corpo, a fim de que o seu ser escape à morte. É exatamente desta compreensão que participo, quando evidencio o fato de que o psiquismo destas meninas experimentou um grande engano ao escolher um caminho de morte, para cumprir um objetivo que não é de morte, mas de vida, de busca de vida, de renascimento de um ser que genuinamente seja seu, nem que seja na fantasia ou na imortalidade delirante; daí ter destacado, no início deste artigo, o tema da identidade, de busca do eu, feminino e integrado, diferenciado das figuras parentais. Se essas idéias estiverem presentes na mente do futuro analista, com certeza as pacientes perceberão que ele não participa do conluio tácito de condenação e desânimo que muitas vezes reina no clima familiar. Concordo com Mannoni, quando ela assim interpreta os sintomas anoréxicos: “A anorexia, nesse contexto, não é uma doença, mas a única maneira de o sujeito chegar a nascer como um sujeito desejoso, fora do desejo da mãe.”23 É como se a paciente se perguntasse: Para que viver, se viver representa condenar seus desejos à morte? CONSIDERAÇÕES FINAIS O corpo, o alimento, o aparelho ou somente o tubo digestivo passam a ser a mente, que ocupa o lugar do corpo. 23 Mannoni, Maud Op. cit., p. 163. 21 A anorexia e a bulimia são formas de defesa que viram do avesso o ser que as habita e são potentes e eficazes como mecanismos de subversão da ordem natural de muitos órgãos do corpo, tanto dos sentidos como funcionais: a boca que não mais come, os olhos que passam a comer, o corpo que não mais consome os alimentos, mas que é consumido por ele próprio; a vagina que não mais pode expelir o sangue menstrual, as fezes retidas e as fantasias de engravidar pela boca, onde alimento e sêmen são misturados e confundidos na fantasia. A menina, afastada de sua própria subjetividade, delira e alucina inventando padrões surreais de vida que mais parecem de morte. Repete os padrões por ela criados e fica copiando a si mesma, numa roda viva sem perspectivas de saída, como uma adicta, drogada de si, pois o fechamento à penetração do outro impede a evolução e garante a eterna repetição compulsiva de auto-cópia daquilo que já existe nela. Perpetua-se no vácuo, sua mente trabalha no vazio, no nada, no etéreo da sua fantasiosa experiência. Talvez o encontro com uma mente - continente capaz de abrigar suas contradições e duplicidades, suportando a presença da morte em vida... ao invés de frustradas tentativas narcísicas de “cura” consiga buscá-la em suas fendas glaciais, assim que ela for avistada emergindo de seu mundo subterrâneo. Acompanhá-la no fio que a separa do abismo psicótico, trazendo-a de volta para a luz do dia, do conhecimento de si, aquecida pelo calor de um acolhimento pensante, sintonizado com suas necessidades afetivas, poderá restituir-lhe os sentidos e os significados perdidos. 22 No reencontro do casal parental haverá o encontro de si mesma; quem sabe achará as palavras...e as comidas. Que os seus monstros e fantasmas transformem-se em personagenscuradores internos, a partir de uma compreensão amorosa da vitalidade escondida atrás de suas sombras... REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BION, W.R. Aprendiendo de la Experiencia. México:Paidós Mexicana, 1991. FARRELL, E. Lost for Words – The Psychoanalysis of Anorexia and Bulimia. Process Press: London, 1995. FREUD, S. 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Palavras-chave: anorexia, bulimia, alimentação, relação mãe-filha . 24 ABSTRACT In this paper I intend to show some thoughts about psychoanalysis of anorexic and bulimic teenager girls and their objectal world, fined with the bionkleinian point of view, which intents to understand these nourishment disturbs as manifestations having origin in psychological suffering, oral symptoms of anxiety bound to primitive stages of the mind development, specially as early ruptures with an internalized maternal image. Key-words: anorexia, bulimia, nourishment, mother-daughter relationship. Marina Ramalho Miranda é Mestre e Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Psicanalista do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e membro do Comitê de Adolescência da Associação Paulista de Medicina de São Paulo (APM). 25