Revista da Faculdade de Letras CIÊNCIAS E TÉCNICAS DO PATRIMÓNIO Porto, 2002 / Série vo/. I, pp. 129-147 Elementos para a história do Convento da Madre de Deus de Monchique JOAQUIM JAIME FERREIRA-ALVES * Abstract - The Convent of Madre de Deus de Monchique, founded during the first half of the XVIth century by Pedro da Cunha Coutinho and his wife D. Beatriz de Vilhena, has not yet been studied as its historie and artistic importance deserved. Built from the noble houses the Coutinhos had in Monchique, with a church designed by the architect Diogo de Castilho, the Convent of Madre de Deus had several changes along the following centuries, and became one of the most remarkable buildings of Oporto. With this work we are giving notice of the change made in main-chancel in 1699/1700 and an important work in the convent wall. «En los Vltimos fines dei Barrio y arrabalde de Miragaya, Burgo desta nuestra ciudad nobilísima de o Porto, en Ia eminencia de aquella Calçada que sube para Ia Vila de Maçarelos, que dista poço menos de Vn quarto de legua desta ciudad, tiene su sitio y asiento el Conuento de Ia Madre de Dios, de Monchique, de Religiosas Vrbanistas del orden Seraphico dei Patriarca de los Pobres, San Francisco, Monasterio de lindas Vistas, así para Ia ciudad Como sobre Ias agoas dei Caudaloso Duero, que bate en Ias murallas de su clausura. Todos sus Edifícios son de Magnificencia y de Majestad, con mucha abundancia de Agoa, así en sus Claustros como en sus huertas y Iardines, Primorosa Iglesia, grandiosos Claustros y mui perfectos, bellos Dormitorios y Vn Patio admirable, así en los tornos, como en Io espacioso de su Portaria y entrada de Ia Iglesia Monasterial, grande y excellente Cerca de Clausura y, finalmente en todo perfecto y Primoroso en el credito de Excellencia para haser Vna de Ias mejores bellezas de Edificio en adorno desta ciudad». (Manuel Pereira de Novaes - Anacrisis Historial, II. Porto: Biblioteca Pública Municipal do Porto, 1913, p. 98-99) * Professor Associado com Agregação. Departamento de Ciências e Técnicas do Património da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. 1. Introdução Sendo bispo D. Pedro da Costa (1), que esteve à frente da Diocese do Porto de 1507 a 1535, por iniciativa de Pedro da Cunha Coutinho e de sua mulher D. Beatriz de Vilhena (alguns autores designam-na por D. Brites de Vilhena) fundouse um convento da Ordem de São Francisco ( 2 ) no paço que possuíam em Monchique (3)- A autorização para a fundação do convento foi dada por Paulo III (1468-1549), papa de 1534 a 1549 (4), pela Bula Debitum Pastoralis Officii, de 12 de Novembro de 1535. A Bula Papal quando chegou a Portugal encontrou já a residência de Pedro da Cunha Coutinho a ser adaptada em casa conventual, já que, as obras tinham começado em 1533. Em 1538, o essencial deveria estar concluído, porque naquele ano instalaram-se as monjas em Monchique. Os fundadores eram da melhor nobreza. Pedro da Cunha Coutinho (5) era filho de Fernão Coutinho (6), «Cavaleiro da casa de D. Duarte e D. Afonso V», e de D. Maria da Cunha. Pelo lado paterno era neto de Gonçalo Vaz Coutinho (marechal do reino, alcaide-mor de Trancoso e Lamego, copeiro-mor de D. Filipa de Lancastre e senhor de Leomil) e de D. Leonor Gonçalves de Azevedo. Pelo lado materno era neto de Fernão Vaz da Cunha, «senhor das terras de asto e Montelongo» (7), e de D. Branca de Vilhena, filha de D. Henrique Manuel (8), conde de Seia, título (9) concedido, entre 1373 e 1381, por D. Fernando I (1345-1383), seu sobrinho (10). D. Beatriz de Vilhena era filha de Rui de Sousa, senhor de Sagres e Beringel e almotacé-mor de D. João II (1455-1495), e de D. Branca de Vilhena. Foi D. Beatriz de Vilhena, já viúva em 1538, a verdadeira fundadora do novo convento juntamente com algumas religiosas do Mosteiro de Santa Clara de Coimbra. A casa dos Coutinhos de Monchique, que por vontade dos seus últimos proprietários daria origem a uma nova casa franciscana, foi causadora de um conflito entre Fernão Coutinho e a Câmara do Porto, ciosa do privilégio que tinha a cidade (1) Bispo de Leão de 1535 a 1538 ano em que foi transferido para Osma onde faleceu em 20 de Fevereiro de 1563. FERREIRA, José Augusto — Memórias Archeologico-historicas da Cidade do Porto (Fastos Episcopaes e Politicos) Sec. VI-Sec. XX, II. Braga: Cruz & Comp. a , 1924, p. 88. (2) ALMEIDA, Fortunato de - História da Igreja em Portugal, II. Porto-Lisboa: Livraria CivilizaçãoEditora , 1968, p.147 (3) Freguesia de Miragaia. (4) RENDINA, Claudio - I Papi.Storia e segreti. Roma: Newton Compton editori, 1996, p. 629-635. (5) «Pedro da Cunha Coutinho obteve: as terras de Basto, com o seu castelo; os julgados de Borba, Genhores e Vale do Boiro; a terra da Maia e as casas de Monchique, perto de Miragaia, nos arrabaldes do Porto».BAQUERO MORENO, Humberto - A Batalha de Alfarrobeira. Antecedentes e significado histórico. Lourenço Marques: 1973, p. 784. (6) Idem, ibidem, p. 778-784. (7) Idem, ibidem, p.783. ( 8 ) Filho natural de D. João Manuel (1282-1348), Príncipe de Vilhena. Cf. SUÁREZ FERNANDEZ, Luis — Don Juan Manuel, Diccionario de Historia de Espana, 2. Madrid: Ediciones de Occidente, 1968, p.585-586. ( 9 ) Nobreza de Portugal e do Brasil, III. Lisboa: Editorial Enciclopédia, 1961, p.366. ( l 0 ) D. Henrique Manuel era meio-irmão de D. Constança Manuel, casada com o infante D. Pedro (1320-1367), futuro D. Pedro I, e mãe de D. Fernando I. em relação aos fidalgos, que nela não podiam ter casa. O Senado, em sessão 16 de Março de 1443, opôs-se a Fernão Coutinho por este pretender «edificar humas casas» (11) em Monchique. Nessa sessão o procurador Gonçalo Anes informou que, o referido fidalgo, «se uynha ffazer/humas casas em monchique», e como isso era contra «os priujlegios daçidade e liberdades» foi «acordado que fosem Ia os hofeçyaees [...] e que lho disesem da parte da çydade que nom fezese hy casa de morada nem cousa que fose/contra os priuilegios daçydade» (12). Na sessão de 20 de Março tratou-se novamente do assunto. Fernão Coutinho apresentou à Câmara a sua pretensão de mandar «coreger huumas ssuas casas/em monchique» (13) (o que indica que o que se pretendia fazer eram melhoramentos numa estrutura existente) mostrando, na ocasião, uma carta do Regente D. Pedro (1392-1449), na qual o Infante pedia aos «homeens boos» para que «lleixassem fazer as ditas casas» (14). Nessa mesma sessão, os homens da Câmara não estando de acordo com o pedido de Fernão Coutinho e com o conteúdo da carta apresentada, escreveram ao Regente para que fizesse a mercê de não «quebrantar nosos priujlegios» (I5). Em 3 de Maio foram lidas «em rrolaçom» e «muyto poboo», três cartas,«huma carta da Senhora rraynha (16)/E duas do Senhor rregente», nas quais se rogava que fosse permitido que Fernão Coutinho «corregese humas ssuas casas que Estam em momchique para em Elas Estar/quando lhe prouguese» (17). Pedido rejeitado, novamente, pela Câmara, não só porque ia contra os seus privilégios e liberdades mas também porque daria «aazo de/outros quererem rrequerer semelhante». Na mesma reunião decidiram enviar dois «homeens boos (18)» «ao Infante D. Pedro (l9)» no «sentido dos poderes públicos não quebrantarem os seus privilégios» (20). Esta questão conflituosa entre a Câmara do Porto e Fernão Coutinho prolongou-se (21) e só seria solucionada em 1447. Uma carta régia de 14 de Abril daquele ano permitia que o «fidalgo pudesse estancear no Porto três vezes por ano, num ( 1 1 ) BAQUERO MORENO, Humberto - ob. cit., p. 780. (12 ) «Vereaçoens». Anos de 1401-1449. Porto: Câmara Municipal do Porto, 1980, p.254. (13) «o quall atodos pareçya seer contra os priujllegios e/liberdades da cidade». Idem, p.256. (14) Idem, p. 256-257. (15) «e lhe mandase/que se nom trabalhase de fazer taees casas [...] E acordarom que fosem/a fernam coutinho dyego afomso e dyego gonçalluez pasado e que lhe/disesem que sse nom quysese tremeter de quebrantar nosos priujlegios/nem qujsese fazer as ditas casas». Idem, p. 257. ( 16) D. Isabel (1432-1455) (17) «Vereaçoens»..., p. 267. (18) Sessão de 8 de Maio: «E ssendo asy todos Juntos em Relaçom adordaram todos Juntamente/que porquanto Eram enlegidos para hyr a casa dellrrey nosso Senhor/E do Senhor rregente dyego gonçalluez pasado e pêro anes per rrazom/das casas que fernam coutynho quer fazer em monchyque E mo/strarom Razoeens eujdentes perque Ia nom podyam hyr das quaees /lhe conhoçerom todos Estes homeens boos E foj llogo acordado/que mandasem Ia pedro afomso daaueleda E Joham aluarez bar/ba meia E mandaram o procurador que lhes dese os dinheiros/E cousas que lhe fezesem mester para sua hyda». Idem, p. 271. Sobre os dois emissários ver p. 306. (19) Na acta da Câmara ficou decidido: «mandar Ia dous homeens boos que o Refertasem a Elrrey nosso Senhor/E a Senhora Rainha E o ssenhor rregente». Idem, p.267. ( 20 ) BAQUERO MORENO, Humberto - ob. cit., p. 780. (21) «Vereaçoens»...,p. 423, 426 e 441. lapso de tempo nunca superior a quinze dias» mas impedia-lhe «construir novas casas» (22). Se Fernão Coutinho foi impedido de edificar novas casas, o mesmo não aconteceu ao filho, Pedro da Cunha Coutinho, a quem, por carta régia de 7 de Julho de 1503, foi autorizado a continuar com as obras que fazia na sua casa de Monchique. Nesse mesmo ano D. Manuel I (1469-1521), em carta para a Câmara do Porto (21 de Novembro de 1503) permite-lhe viver na cidade dando como razão «o grande gasto que tinha feito nas dittas casas». Os Coutinhos tinham vencido a resistência que os homens «da governança» do Porto lhes tinham feito, estando assim aberto o caminho que permitiu que os últimos senhores de Monchique fundassem um convento na casa que conseguiram impor aos portuenses. 2. A construção da igreja Pedro da Cunha Coutinho e D. Beatriz de Vilhena não esperaram, como referimos, pela autorização papal para dar início às obras necessárias para transformar uma morada nobre num convento. Em 18 de Julho de 1533 em «monchique aRabalde da muy nobre e sempre lyal cydade do porto demtro nas pousadas do senhor pero da cunha coutinho do conselho delRey» (23) compareceu o tabelião Pedro Dias, onde, perante os outorgantes ( os proprietários e o «mestre de pedraria» Diogo de Castilho) e as testemunhas, fez uma escritura de contrato da obra. Diogo de Castilho ( 24 ) estava contratado para executar um «corpo de um mostejro (25)» pegado às «casas da banda de fora da parte de maçarelos» (26), segundo os apontamentos transcritos no contrato notarial. O «mosteiro» (27) teria setenta palmos de comprimento (28), desde a parede do coro até ao arco da capela-mor, e de largura trinta e oito palmos (29). A nave da igreja seria feita em «ordenança de duas capelas de cynquo chaves cada huma com sua cruzaria e tercaretes e Rompantes e formas» (30), colocando-se nas «chaves pryncipaes» as armas do «dycto senhor pero da cunha e da dieta senhora dona bryatys de vylhana H BAQUERO MORENO; Humberto - ob. cit., p. 781. (23) Transcrição segundo a forma como está na obra de: MAGALHÃES BASTO, Artur de — Apontamentos para um dicionário de artistas e artífices que trabalharam no Porto do século XVao século XVIII. Porto: Câmara Municipal do Porto, 1964, p. 122-128. ( 2 4 ) SOUSA VITERBO, Francisco Marques de — Dicionário Histórico Documental dos Arquitectos, Engenheiros e Construtores Portugueses. Vol. I, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1988, p. 170-183 (2 a edição). ( 25 ) Mosteiro = a igreja. ( 2 6 ) «hao lomguo da parede que esta peguada com o chafariz que há de yr destas suas casas ate ho apousentamento dos seus cryados». (27) «mosteiro ou capela». (28) «de vara». (29) «as paredes deste mosteiro e capela seram de três palmos e meio de groso e as do mosteiro fará ate altura de corenta palmos todas aRedonda e as fará de allvenarya de pedra e quall seram feitas Em preto somente sem mais serem guarnecidas». ( 3 0 ) «os quaes seram de pedraria das pedrejras de monte porall». sua molher» (31), e cuja iluminação far-se-ia através de duas frestas de cada lado (32). A portada principal, com onze palmos e meio de largo e de altura «aqujlo que Requerer a largura», seria feita ( 33), segundo o «teeor e ordenamça de hum debuxo (34) e mostra que pêra Jso he feito». Diogo de Castilho também teria de fazer a capela-mor — «a capela prymcjpal do dycto mosteiro» - com vinte palmos em «cadrado» (35) e abóbada de nove chaves com seus «cruzeiros e tercanetes e Rampantes e formas e Represas e Emjergamentos» tudo feito de pedraria assim como a «balsorya». Na capela-mor haveria uma fresta de oito palmos de altura por três palmos de largura. Diogo de Castilho, em relação à capela-mor, obrigava-se ainda a fazer «hum arco de dezasseis palmos de larguo e de vymte e quatro de dalto ho quall sera feito pelo teor he ordenança de huma mostra» (36). O mesmo mestre de pedraria faria, também, as paredes do coro (37). Diogo de Castilho receberia pela construção da igreja do Convento da Madre de Deus de Monchique quinhentos e cinco mil réis (38). Pedro da Cunha Coutinho e sua mulher comprometiam-se: a dar «toda a pedra dalvenarya que for necessarya pera a dieta obra e posta na obra a custa delles senhores e mais toda a madejra e tavoado que for necessarya pera as abobodas e amdajmos da dieta obra» e a desfazerem «toda há Rjba pera de fazer ho dyto mosteiro e capela». Segundo o contrato (39), a obra teria que estar concluída em 24 de Junho de 1534. O projecto da igreja construída por Diogo de Castilho, seria, ainda que o documento não o refira, da sua autoria, já que era na altura uma figura importante na arquitectura portuguesa e com uma actividade notável em Coimbra e no Porto, cidades onde viveu e tinha propriedades, como se pode ver por aquilo que hipote( 3 1 ) «e nas outras se fará algua obra a melhor que a pedra sofrer he a valsorya destas abobadas será de tyjollo guarnecido he apaynelado». As «abobodas do corpo do mosteiro teram dalto do cham ate a chave pryncipall corenta e quatro palmos». (32) «de quatro palmos de larguo e doze de comprydo as quaes seram de pedrarya he hos Emperjamentos e Represas tambem de pedrarya». (33) «e lavrado». (34) «ho quall he asynado per os dytos senhores pêro da cunha e dona bryatys edieguo de castylho e asy he per eles asynado as ordenanças das abobodas do dycto mosteiro». ( 3 5 ) «esta capela tera de alto do cham ate há chave prymcipal trymta palmos». ( 3 6 ) «somente nam fara as Jmajeens que estam debuxadas no dycto arco». ( 3 7 ) «a saber , as trres há que vay descomtra ho Jardym he há da parte de macarelos he outra que vay a mtre h o dicto mo steiro he o c oro h e o mo steiro fara dous arc os hu m n o andar d a Igreja que tenh a de e z palmo s de larguo e qujmze dalto he outro no andar d o coro da mesma altura e as parede s deste coro sa m daltura do dycto mosteiro». (3 8 ) «os paguamentos seram na n«mnejra seguimte, a saber, dyse ele dicto dieguo de castylho que tem Jaa Em sy Re(ce)bydo deles senhores pero da cunha e dona bryatyz de vylhana pera comeco da dycta obra cemto e dezanoue mjll rs. e pera comprymento de dozemtos e cynquoemta que há de ser ho prymejro paguamento lhe dara m Eles sen hores log uo ce mto e try mta e hu m mjll rs. qu e sera m per to do o s dictos d oze m tos e cymquoenta mjl rs. e tamto que a dita obra esteuer na altura das Represas das abobodas lhe daram cem mill rs. e c o mo os sy mb res das abo b odas fore m a se mta dos peêra se fec ha re m as c apelas lhe dara m outros cemmjll rs. e os cynquoenta e cynquo mjll rs. que faltam pera comprjmento de paguo dos dyctos quynhentos e cymquo mjll rs. lhe daram tanto que forem as abobodas fechadas». ( 3 9 ) Foram testemunhas deste contrato: «o doutor mestre simão fysico da dieta cidade» e Pêro Lopes, p e d r e i r o , mo r a d o r e m C o i mb r a . cou (40), juntamente com sua mulher Isabel de Ilharco, para segurança do cumprimento da empreitada. A igreja (Fig. 1-2) era constituída por uma nave, iluminada por quatro janelas, cuja cobertura era feita por uma abóbada (41), dividida em dois tramos, cujos intradorsos eram formados pelo cruzamento de nervuras (ogivas, terceletes e liernes), com cinco boceres, tendo o central, em cada um dos tramos, as armas de Pedro da Cunha Coutinho e de D. Beatriz, de Vilhcna. As ogivas que formavam a abóbada do corpo da igreja podiam ver-se ainda em 1926, altura em que foram fotografadas por Américo Teixeira Lopes para o trabalho de Pedro Virorino (42). O esquema da abóbada do corpo da igreja de Monchique tepete o que foi utilizado por Diogo de Castilho no refeitório do Mosteiro de Santa Cruz em Coimbra, a partir do contrato de 5 de Março de 1528 (43). Os coros, alto e baixo, «no topo fundeiro, abriam para Figs. 1-2- Porto. Fachada da igreja do Convento da Madre de Deus de Monchíque em 1833 (desenho de Joaquim Çardoso Vitória Vilanova e em 2002 / (Fot. do autor) (40) MAGALHÃES BASTO. Artur de -ob. cir.. p. 125 e 127. (41) nhe cila ioda de furma obival partindo de cada ponto em grupo, sendo ao todo quatro por lado, donde vaõ 4 cordo_s de pedra salientes delisando-se para o alto cume da mesma abobeda ate se unirem, aonde lhes foi descripto o fecho no cenrro desta soberbissima fabrica, digno remate- de taõ magestozj archirecrura; cites cordo_s estaõ taõ gradualmente e com tanta igualdade, que em cada htim de seus VJÕS apresenta á vista a prefeita figura de hum j;ontmo c saõ rodos lavradoscom cize! em baixo relevo com tanto gosto, cvmetTÍa e estudo, que se julgaõ cobertos de renda q.do na verdade a matéria dclles he granito escolhido e com polidez tal que bastaria só esta obra para dar nome aos insignes artistas que nclla trabalharão». SOUSA REIS, Henrique Duarte c - Apontamentos para a ivrdadeira história amiga e moderna da Cidade do Peno, IV. Porto: Biblioteca Pública Municipal do Porto, 1999, p. 165. (42) VITORINO, Pedro - Notai de arqueologia portuense. Porto: Publicações da Câmara Municipal do Porto, 1937, p. 222. (43) DIAS, Pedro - A arquitectura de Coimbra na transição de Gótico para a Renascença 1490-1540. Coimbra: KPARTUR, 1982, p. 154-159. a nave por dois arcos sobrepostos» (44). Tinha uma pequena sacristia e um campanário com a forma de uma «torre com ameias» (45). A capela-mor de planta quadrada, com uma abóbada com nove chaves, teria a forma daquela que Diogo de Castilho executou, em Coimbra, para a igreja de São João de Santa Cruz (46). Sabemos que tinha um retábulo de pedra, talvez da autoria de João de Ruão, e estava revestida de azulejos. A FACHADA DA IGREJA DO MOSTEIRO DA MADRE DE DEUS DE MONCHIQUE NO SÉCULO XIX (47) «E na verdade he digno de ver-se o soberbo templo deste Mosteiro da Madre de Deos de Monchique, pois logo na parte externa da (sic) sua (sic) portal principal indica a riqueza e gosto com que foi fundado. He a porta rasgada em arco cavado a meia esquadria ate chegar ás portadas; os dous maineis ou umbreiras na face externa tem cada huma o seu listaõ com frizos nos extremos, e no centro com hum cordaõ, aonde de espaço a espaço apparecem da flagelação de Christo, pequenas medalhas, cabeças de carneiros, aljavas arcos & lavrados em alto relevo, figurando tudo a alguma distancia hum arrendilhado; no feixo do arco aparece o escudo dos fundadores, o qual he esquartejado sem coroa, tendo na primeira parte á esquerda cinco estrellas distinctas dos Coutinhos á direita hum braço armado dos [espaço em branco] e na segunda á esquerda nove cunhas, dos Cunhas, á direita hum Leaõ rompente dos [espaço em branco] .A beleza desta entrada e a perfeiçaõ do cinzel, com que todos estes adornos estaõ feitos, o seu desenho e boa execução saõ mais para se admirar vendo-os, do que para se escreverem, pois he tal a igualdade que há na destribuiçaõ destes diversos altos relevos, que julga se completarem hum bordado sobre tella. Sobre este arco e listões dos maineis, que vaõ findar na linha recta do fecho delle mesmo, corre huma pequena coronigem, a qual apenas he cortada pelo escudo dos fundadores, que nella ahi fica como incherido ultrapassando algum tanto essa linha e se mostra a ella mais alto: ficaõ nos espaços triangulares que distaõ do arco e cada listaõ de cada lado, huma medalha circular com huma elegante cabeça feita em altíssimo relevo saliente á superfície da dita medalha; as feiçoes pronunciadas de cada hum destes bustos ou cabeças saõ com primor trabalhadas, e he para admirar a conservação delias, que ainda nem ao menos gastas estaõ pelo tempo. Assentaõ sobre a mencionada pequena coronigem ou frizo e em cada extremo delle, huma peça de pedra escudada que formaria hum prefeito triangulo se naõ fôra a linha cen- (44 ) GONÇALVES, A. Nogueira — Estudos de História da Arte da Renascença. Aveiro: Livraria Estante Editora, s/d., p. 102. (45) SOUSA REIS, Henrique Duarte e - ob. cit., p. 165. (46) DIAS, Pe dro - o b. cit., p. 166. (47) SOUSA REIS, Henrique Duarte e - ob. cit., p. 160-161. trai de ambas semicircular, e por isso os extremos ficaõ unidos na linha do frizo, o qual parece dar dous de seus ramos para adornarem o angulo externo destas duas peças, que tem igualmente em alto relevo a coroa de espinhos, mostrando a da esquerda no meio os tres cravos que pregaraõ o Crucificado, a da direita o Sol, como indicadores emblemas do sacrificio mundano e do gozo da bem aventurança, que dentro deste Sanctuario se obtinhaõ com a preseverança e a fé. O cemicirculo de que falei, foi de prepozito deixado para dar lugar a huma lapide de forma oval, em cuja orla se lê = Sacrosante Latemnensis Ecclesiae = e no centro desta legenda está a Mitra Pontifícia com as duas chaves, Escudo do Chefe da Igreja Romana, talvez para designar, que esta Caza de Deos foi erecta com a sua suprema permissaõ. No simo de toda esta notável fachada, se assim se lhe pode chamar, quando he certo que todas as portas principaes dos Templos pertencentes aos Conventos de Religiozas ficaõ sendo lateraes, vê-se rasgada huma janella larguíssima porem com padieira marcada igual em tudo a outra, que está mais ao Norte e pertencem ao corpo da Igreja, mas com differenças de terem assentado nesta de sobre a porta duas vidraças á face externa e interna aproveitando o vaõ do peitoril, para sobre elle collocarem a grande imagem de Nossa Senhora da Conceiçaõ feita de marmore branco, e posto que de esculptura antiga de grande grande trabalho; no frontal do indicado peitoril lê se a seguinte legenda = Sentiant omnes turuem juvamen queiqunque celebrant tuam sanctam Maternitatem = A baze da imagem da Senhora diz = 1828 = naturalmente anno da sua exposiçaõ neste como oratório, sem por isso estorvar a luz de que tanto carece esta igreja». Além da descrição da fachada, que transcrevemos, feita por quem a conheceu como era, também o desenho, de 1833, de Joaquim Cardoso Vitória Vilanova permite-nos vê-la antes da degradação/destruição do magnífico templo das franciscanas de Monchique. Do frontispício merece uma referência especial a portada. Se analisarmos a fotografia publicada na obra de Pedro Vitorino, vemos que a portada se encontrava então praticamente intacta. Era constituída por um arco pleno, enquadrado por pilastras compósitas e colunas abalaustradas, e nas enjuntas (48) por medalhões com esculturas. Na chave do arco vêm-se sobrepostas a pedra de armas dos fundadores, que tem a parte superior apoiada na base do frontão triangular interrompido que remata a portada. O tímpano, aberto no centro, é formado por dois segmentos laterais, com a parte interior côncava (o segmento côncavo tem um enrolamento assente na moldura inferior), onde se vêem duas coroas (de espinhos) de cada lado. Na parte central do tímpano, numa carteia elíptica, assente em pequeno pedestal, vêem-se as chaves de São Pedro sobrepujadas pela coroa papal. Duas aletas sobre(48) Enjunta — zona triangular compreendida entre dois arcos, numa arcada, ou entre um arco e o alfiz. Triângulo de canto. Cf. TEIXEIRA, Luís Manuel - Dicionário ilustrado de Belas-Artes. Lisboa: Editorial Presença, 1985, p.92. Fig. 3 - Porto. Convento da Madre de Deus de Monchique. Portada da igreja no seu estado actual (Fot. do autot) pujam os dois segmentos de molduras que formam o frontão triangular interrompido, assim como, duas urnas rematam superiormente os capitéis. Entaipada durante muitos anos e posta recentemente a descoberto, tivemos ocasião de ver o que resta da portada (Fig. 3), devido à gentileza do Senhor Eng. José Clemente Oliveira Menéres. Toda a parte inferior incluindo as pilastras até aos capitéis desapareceram. Permanecem parte do arco, sem as armas; os dois medalhões com esculturas (Figs.4-5) em médio relevo representando uma figura masculina e outra feminina (possivelmente Adão e Eva); os capitéis compósitos incompletos (faltam-lhes as volutas) onde se desenha uma elegante taça entre folhagem (Fig. 6); as urnas que superiormente rematam os capitéis e o frontão (Fig. 7) com os elementos que referimos superiormente. Sousa Reis descreve também o edifício conventual, que, como a igreja, conheceu antes da degradação que já era evidente nos anos sessenta do século XIX (49): «O Convento he immenso na extensaõ, e ainda que na parte externa pelo lado do pateo mostra só dous andares, para a face que olha o Rio Douro tem trez apoiados [...] sobre bem construída arceria de pedra, lanço este que confina tanto ao Nascente como ao Poente por torres guarnecidas ambas com ameias de pedra sendo aquella destinada para o mirante de recreio para as Freiras, esta para a torre dos sinos já descripta» (50). Os dois andares superiores eram destinados para dormitórios e no inferior encontrava-se o refeitório: «he elle de trez naves, formadas por duas alas de colunas inteiriças de pedra escolhida e branca, tendo em cada ala oito, que sustentaõ formozos arcos de cantaria (51)»• O claustro ficava atrás dos dois coros da igreja — «porem no nivel deste taboleiro ou socalco, aonde se firma a arcaria da mencionada cozinha (52)» — ficava o claustro (53) principal «prefeitamente quadrado» tendo «em volta Capellas incheridas nas paredes lateraes»: «Este claustro he todo aberto para o centro ajardinado em arcaria gothica, a qual he sustentada por delicadas columnas de pedra, assente sobre peitoril de granito polido, que forma as guardas do mesmo Claustro, em cujo centro tem o chafariz brotando agoa límpida e pura; as portas das (49) «Resta me agora fazer a resumida discripçaõ do Convento da Madre de Deos de Monchique desta Cidade do Porto, tal e qual existe agora exteriormente, antes que elle seja demolido ou vendido, posto ríelle actualmente estar montado o Trem militar». Idem, ibidem, p. 158-159. ; «Saõ para lastimar as ruinas, que já se vêem por toda a parte neste monumento [...] Aqui e ali desabaõ os telhados [...] (50) Idem, ibidem, p. 165. (51) «escudada e polida, formada de huns para outros e para os lados do mesmo refectorio, a fim de servirem de apoio á solida abobeda, que forma o tecto desta aza, a qual de comprimento tem cento e sessenta e dous palmos, e de largo cincoenta e cinco pouco mais ou menos: nos tempos passados e quando este edifício abrigava as Religiozas Franciscanas estendiaõ se ao longo da nave do centro, as mezas de madeira acentes sobre pegões de pedra, que distintos huns dos outros pouzavaõ sobre o pavimento todo feito de duras lages; correspondem aos nove arcos, que ficaõ entre as columnas, pelo lado do Sul oito janellas e huma porta, e pelo Norte nove postigos algum tanto superiores ao pavimento do pateo geral de fóra, que dá servidaõ ao Convento e Igreja, e estaõ guardados e seguros com grossos varo_s de ferro [...] a quem nelle entra pela sua porta talhada na parede ao Poente [...] Os cintados das paredes saõ de azulejo [...] a cozinha [...] é longa toda coberta de abobeda [...] Pela parte do Poente». (52) Existia também uma «compridíssima cozinha particular de cada Religioza». SOUSA REIS, Henrique Duarte e — ob. cit., p. 167. (53) «que pela architectura antiquíssima mostra ter pertencido ao primitivo Palácio». Figs. 4-5 - Porto. Convento da Madre de Deus de Monchique. Medalhões da portada da igreja (Fot. do autor) Capellinhas saõ recortadas em cemicirculos conjunctos e com tal arte, que no meio as sustenta huma delicada columna, e assim forma duas entradas para cada hum destes oratorios (54) [...] Os pavimentos dos trez angulos do Sul, Poente e Norte saõ lageados, e nelles se fabricaraõ as sepulturas destinadas para as Religiozas Conventuaes (55)». Existia um segundo claustro (56), de pequenas dimensões, edificado «todo como o outro em arcos e columnas de tijolo», considerada por Sousa Reis «obra mesquinha e acanhada», tendo no centro um «antiquíssimo chafariz de pedra». Ao lado deste claustro ficava a «conhecida Capellinha» do Senhor dos Passos, cuja arquitectura «he prefeitamente igual á do claustro principal (57)». 2.1. As obras na capela-mor (1699/1700) A capela-mor quinhentista foi profundamente alterada a partir de 1699, dando origem praticamente a uma nova. A renovação de capelas-mores no Porto, frequente na centúria de seiscentos, iniciou-se na cidade com a nova capela-mor da Sé do Porto, mandada levantar, em substituição da medieval, por D. Fr. Gonçalo de Morais (1543-1617), Bispo do Porto de 1602 a 1617, e atribuída ao arquitecto Valentim Carvalho, provavelmente o arquitecto que, em 1627 (58), foi responsável pela nova capela-mor do Mosteiro de São Bento da Ave Maria. Em 1699, iniciarse-ia a obra da nova capela-mor do Mosteiro de São Bento da Vitória (59) e na centúria seguinte (1729), procedeu-se à transformação da estrutura arquitectónica da capela-mor (60) do Convento de Santa Clara. Em 24 de Setembro de 1669 (61), «em huma das grades do Mosteiro da Madre de Deus de Monchique», foi feito um contrato para a execução de uma obra na (54) «porem note se que hum delles he substituído, por larga e ampla aza térrea, aonde premanecem dous grandes tanques destinados para a lavagem de roupas». (55) Existia um depósito para as ossadas das freiras. SOUSA REIS, Henrique Duarte e - ob. cit., p. 167. (56) «que seguramente pertenceo ao primeiro possuidor deste prédio». (57) «crendo se logo á primeira vista, que o Mestre da obra foi hum só». «Esta Capellinha he quadrada de quinze palmos por face, toda de pedra assente no interior, para as suas paredes ficarem nuas como ainda estaõ, a abobada he também de pedra e construída em ogiva, partindo dos quatro ângulos outros tantos cordo_s que vaõ rematar no centro delia no escudo d'armas dos fundadores do Mosteiro, feito talvez pelas mesmas maõs, que lavrarão o da porta principal da Igreja; tem dentro o respectivo altar e nelle pouzado o grade retábulo de madeira dourada com o painel, no q. se vê de formas gigantescas pintado a óleo e em meio corpo, o Salvador com a cruz às costas. A luz por este Oratório entra-lhe por huma fresta, e as paredes superiormente á linha do telhado saõ coroadas com ameias». (58) FERREIRA-ALVES, Joaquim Jaime B. — Duas nótulas para a História da Arte, Portugalia, nova série, vols. XVII-XVIII. Porto: Instituto de Arqueologia, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1996/1997, p.293-295. H Idem, ibidem, p. 13. (59) FERREIRA-ALVES, Natália Marinho — Nótula para o estudo da actividade do arquitecto António Pereira na cidade do Porto. Porto: Separata da «Revista da Faculdade de Letras», II série, vol. IX: Porto, 1992. (60) Arquivo Distrital do Porto (A.D.P), Secção Notarial, Po-4, n° 102, fls. 99-102. Documento referido por: FERREIRA-ALVES, Joaquim Jaime B. — Aspectos da actividade arquitectónica no Porto na segunda metade do séc. XVII. Porto: Separata da «Revista da Faculdade de Letras-História », II série, vol. II. Porto: 1985, p.14. capela-mor, que teve como outorgantes: a madre abadessa, soror Maria da Encarnação; a madre vigária, soror Bernarda da Esperança; «e as mais relligiozas discretas» (62); o padre confessor Fr. Francisco da Purificação e Manuel Vieira, mestre de pedraria (63). Assinatura do mestre pedreiro Manuel Vieira Os apontamentos transcritos no contrato permitem conhecer o que se exigia para a obra arrematada por Manuel Vieira. Em primeiro lugar, teriam que levantar uma parede «tosqua» de forma a isolar a nave da capela-mor, da qual retiraria o azulejo que a revestia, «com sentido que não quebre e se arumara em parte segura», assim como o retábulo «que he de pedra».Tanto no que se refere ao azulejo (64), ao retábulo de pedra e ao tecto da capela-mor, «que he de pedra ao antiguo», nota-se, por parte das monjas, a preocupação da sua preservação. O retábulo seria tirado «com muito sentido e se arumara dentro com seus numaros» e as pedras que formavam a cobertura quinhentista da capela-mor também seriam numeradas e arrumadas na cerca. Concluídos estes trabalhos preliminares, começariam a demolir as «ilhargas» da capela-mor e sacristia, aproveitando-se a pedra para as alvenarias, até à altura «que a trasa mostra», acrescentando-se apenas «o que hoje he capella mor para tras». O trabalho de cortar a fraga para aumentar, em profundidade, a capela-mor, não era da responsabilidade de Manuel Vieira. Seguidamente seria «derribado» o arco da capela-mor e o frontispício, fazendo-se novamente o arco da largura que a «planta mostra» (65). Com o acrescento que agora se fazia ficava a capela-mor com: vinte e cinco palmos de largo «e de dentro do arquo athe donde prinsipia o retabollo trinta e coatro e daí para tras dezoito e terço e a boqua do arquo vinte palmos tera de alto asima da cornige vinte e nove». Retirada a abóbada quinhentista, já que com estas obras a capela-mor deixou de ser quadrada e passou a ter uma planta rectangular, a nova abóbada foi feita com «hum arquo no meio e meio arquo encostado ao tosquo da entrada posto que este da emtrada tambem há de ser lavrado com seu capitel e frizo e alquitrave e vaza isto por dentro que fiqua sem talha e tem junto ao retabullo outro arquo e meio fiqua (62) Assinaram o contrato, além da abadessa e a «vigaria da caza», as seguintes freiras: soror Mariana Baptista, escrivã; soror Isabel de Santo António, discreta; soror Mariana dos Reis, discreta e soror Ana de São Francisco, discreta. (63) Residente na freguesia de Santo Ildefonso (Porto). (64) «Também tirara o zolejo que esta em hum boquado de teto da igreja junto ao arquo». (65)Vinte palmos de vão. descuberto e outro atras nas costas da tribuna, os arquos que fiquão descubertos sam refendidos com suas molduras e sua roza no meio com seu buraquo nos tres arquos para cordas». Seriam abertas na capela-mor oito frestas, «coatro em baixo e quoatro em sima do frizo», na forma do risco, assim como quatro portais, dois dos quais fingidos, com as mesmas molduras das frestas. Estas indicações e outros pormenores que são referidos nos apontamentos obrigavam Manuel Vieira a executar a obra com todo o rigor. O contrato obrigava o mestre pedreiro a apresentar fiadores (Manuel de Sousa, mestre carpinteiro, residente em Santo Ildefonso e Manuel Fernandes, pedreiro, morador em Vilar, freguesia de Cedofeita) e a trazer na obra vinte oficiais, entre «lavristas e asentadores». Manuel Vieira receberia por toda a obra novecentos e vinte e cinco mil réis. Ao contrário do que acontece com a maior parte dos contratos notariais relacionados com obras de pedraria, este revela o nome do autor do risco. Trata-se do arquitecto João Pereira dos Santos, «e tudo a contento de quem fes a planta sem a isso por duvida que he João Pereira dos Santos», uma das figuras mais importantes da arquitectura portuense entre os finais do século XVII e e primeiro quartel da centúria seguinte. Assinatura do arquitecto João Pereira dos Santos Não seria o mestre pedreiro Manuel Vieira a executar a obra encomendada pelas freiras de Monchique. Devido ao seu falecimento, seria substituído pelos mestres pedreiros João Moreira, seu filho Manuel Moreira e seu sobrinho João Moreira, como nos informa um novo contrato de 18 de Março de 1700 (66). 3. Uma obra de pedraria no muro da cerca (1660) Em 6 de Outubro de 1660 (67), sendo abadessa Luisa da Madre de Deus, foi feito um contrato com o mestre pedreiro Domingos Luís (68), para fazer a obra do muro da cerca do convento «pella banda do rio», já que, quem a estava a fazer não era competente, como o provou a vistoria feita por «mestres officiais desta dita cidade», Domingos Nabais e André Martins, e ainda «pello mestre que faz as obras do Mosteiro da Serra da outra bamda dalem que he da sidade de Lisboa», António (66) A. D. R, Secção Notarial, Po-1, 4 "série, n° 206, fls. 173-179. (67) A. D. P., Secção Notarial, Po-1, 4a série, n° 152, fls. 82v.-84v. (68) Residente «a Porta de Sima de Villa» no Porto. de Sousa. Na vistoria todos estiveram de acordo «hirem as ditas obras herradas». Perante a opinião dos peritos foi posta novamente a obra a lanços (69) e entregue a «quem menos lanço» fez, que foi o «mestre Domingos Luis». Domingos Luís, que arrematara a obra a trinta e cinco mil réis a braça (70), que teria dez palmos de altura e dez palmos de comprimento (71), apresentou no acto da arrematação os apontamentos (72) — «pera a dita obra, trazia elle feito os apontamentos» — pelos quais executaria a empreitada, recebendo por parte das religiosas, além do pagamento estipulado, a cal que fosse necessária, toda a madeira que estava cortada na cerca e a pedra que estava «cortada no monte». Assinatura de Domingos Luís (69) Em 27 de Setembro de 1660, com a presença, além dos peritos: do tabelião António da Silva Malafaia; do reverendo Fr. Sebastião da Encarnação, confessor do Convento da Madre de Deus de Monchique e do reverendo padre capelão Fr. João do Bom Jesus, «por ter hordem do muito Reverendo Padre Vizitador pera hir correndo com as obras». (70) «asquoais braças hamde chegar athe o livel da terra do quintal e pumâr delias religiozas e hamde ser mididas da ponta das estaquas pera sima digo da cabeça das estaquas pêra sima». (71) Ver fl. 84. (72) «Apontamentos das obras que querem mandar fazer a Senhora Madre Abbadessa e mais religiozas do Mosteiro de Monchique que he o seu muro pela banda do rio Douro e a obra he a seguinte. Primeiramente a obra que esta comessada se há de desfazer e se há de de por mais fora obra de seis palmos: que va buscar a obra velha assy de huma parte como da outra: que da maneira que estava comessada tomaria muito do quintal e hira sempre a obra que se agora fizer buscando a obra velha; pellos aliserçes delia, pello milhor modo que ouver, em proveito da obra; que pera a bamda de Massarelíos há de hir a juntar com a obra velha de maneira que não fique a obra velha de fora: senão muito hunida huma com outra. Há de ter esta obra des palmos de largo embaixo ao comessar e em cada des palmos há de ter dous palmos de escarpamento que em vinte palmos de alto; vem a fiquar em seis palmos de grosso que fiqua pouco mais ou menos pella altura do quimtal que se emtende hir esta obra arastamdo; athe a altura da terra do quimtal e na altuta do quimtal aonde se há de comessar a parede estreita ficara ajuntourada toda por sima que fique meo palmo de releixo pera a bamda de fora e esta obra há de ser buscada ao semtro dagoa das mares de augoas vivas muito estaquadas com boas travesque ham de ter a onze e doze palmos de comprido e não caberá entre trave a trave senão hum palmo e emgradada por sima muito bem emgradada e com grande estaquaria o mais que puder ser toda de sobro salvo que emtre alguma de carvalho que o bem e o mal desta obra tudo he da grade ficando bem emgradada e estaquada: logo a obra fiqua toda segura sobre esta grade há de levar padieiras de pedra as mais compridas que puder ser omde emtre de nove o de oito o de sete e de des e todas seram jumtas huas com outras e a obra quoando comesar em sima destas padieiras ficara de releixo perra fora hum bom couto, e esta obra há de ser jumta huma com a outra, muito unida com grandes juntouros e muito bem asemtada e masissa por dentro com muita boa cal. O mestre que tomar esta obra sera obrigado a desentulhar e por pedras e madeiras e tudo o que fizer mingoa na obra e dalla perffeita e acabada na forma destes apontamentos. So as senhoras riligiozas darão a cal que fizer mingoa e o dinheiro em que se comsertarem com o mestre. Porto vinte de Setembro de mil e seissentos e sesemta. Domingos Luis.» (fls. 83-83v.). 4. O interior da igreja do Convento da Madre de Deus de Monchique no século XIX Trezentos anos após a fundação do Convento da Madre de Deus de Monchique as vinte e duas religiosas (73) que nele viviam deixaram-no. Dava-se assim início aquilo que ele é hoje, pouco mais do que uma ruína, e onde com custo podemos recriar o convento que os últimos senhores do Paço de Monchique fundaram, e de cuja memória (74) pouco resta. Onde repousavam os fundadores nascem ervas, e a pedra funerária que cobria os seus restos mortais é peça de museu (75). A igreja do Convento da Madre de Deus de Monchique, ainda que de dimensões reduzidas, foi, pela riqueza do seu interior, mais uma das «caixas de ouro» que existiram no Porto, e como ainda podemos ver nas igrejas dos Conventos de São Francisco e de Santa Clara. Mas se o cofre dourado que era a igreja das franciscanas de Monchique não chegou até nós, podemos imaginá-lo através das descrições de alguns daqueles que o conheceram. Num artigo publicado por Pedro Vitorino (76), em 1927, transcreve-se a informação dada pelo, «notável artista e professor», João Baptista Ribeiro (1790-1868), em resposta a um ofício (77), de 21 de Agosto de 1839, que lhe enviara o conde das Antas (78), sobre a possibilidade de vender-se ou conservar-se «pela sua raridade ou primor d'arte, as guarnições de madeira dourada do exctinto Convento de Monchique». Três dias depois, em resposta ao conde das Antas, João Baptista Ribeiro dá-nos uma visão do interior da igreja: «Mal se pode explicar a summa profusão de riqueza que ostenta esta igreja; toda ella he recamada de lavor em que a paciencia, o genio e o dinheiro se reunirão para fazer prova do que podem. Contém sete altares de hum caracter riquíssimo pelo immenso lavor de talha, ornatos, relevos e figuras que apresenta, sendo quaze tudo dourado e o resto pintado e estofado por modos mui variados. Os ornatos são primorosamente executados e podem (73) FERNANDES, Maria Eugenia Matos — Os últimos dias de Monchique, Revista da Faculdade de Letras, p.263. (74) E m 1 926 e screvia Catão Simões so bre o conv ento: «hoje e m ruinas e a ma nhã esq urcido ». C f. O Tripeiro, 3 a série, n° 21 (141). Porto: 1926, p.333. ( 7 5 ) «A tampa sepulcral da fundadora, grande pedaço de magnifico mármore, foi gentilmente oferecido pelo seu possuidor o ilustre engenheiro snr. Eleutério da Fonseca ao Museu Municipal do Porto, onde em breve dará entrada». VITORINO, Pedro — Monchique. Notabilisava-se sobremaneira pela obra de talha da sua igreja, O Tripeiro, 3 a série, 2 o ano, n° 44 (164). Porto: 1927, p.313. (76 Mo nchiq ue..., p. 312-31 3. ( 7 7 ) «Tendo recebido um officio do Ministério da Guerra, para informar se convém vender-se, ou conservar-se pela sua raridade ou primor d'arte, as guarnições de madeira dourada do extincto Convento de Monchique, assim como uma pia de mármore, e constando-me haver uma comissão de que V. S. he presidente; vou rogar a V. S. para bem do Serviço Nacional, se sirva ter a bondade de ir aquelle Convento co m os mais membros da comissão a examinar aquelles objectos, e dar-me a tal respeito a sua opinião, afim de poder c o m c onhe c imento de ca usa d ar a informaçã o e xigida». VIT OR INO, Pe dro — ob. cit., p. 312-313. (78) Francisco Xavier da Silva Pereira (1793-1852), I o conde das Antas. servir de argumento positivo para mostrar que as Artes eraõ conhecidas vantajosamente naquella epocha. Notaõ-se quatro tribunas do lado poente, tapadas com grades de ferro fingindo renda, que são hum modello de congruencia para aquelle logar». Conclui o pintor, escrevendo que a igreja devia ser preservada «como um primoroso monumento d'Arte» e entregue a uma confraria «que se responsabilise pela sua conservação, ficando obrigada a não alterar o seu caracter e na falta deste supposto tomar conta delia o Conservatorio d'Artes e Officios». Também, anos mais tarde, Henrique Duarte e Sousa Reis (79) leva-nos ao interior da igreja conventual e transmite-nos a impressão que lhe causou o seu interior: «Entrada a porta deste Sanctuario pasma se ao ver a soberbissima entalha, de que saõ todas as paredes cobertas, aonde reluz o preciozo metal, o ouro, em que constantemente reverbera a claridade do dia, e naõ há o mais pequeno espaço nellas, aonde se note a falta da talha ou descuido do dourador; he huma mina sobre a terra desse ambicionado pó, que os humanos tanto querem para os uzos profanos e com elle satisfazerem suas illimitadas paixões, e ao contrario os fundadores deste Cenobio prodigalizaraõ na morada Santa do Filho de Deos aonde as Virgens Seraficas, suas Espozas, lhe entoariaõ canticos de louvor. [...] Alem do altar mór sobre que se apoiava a tribuna igualmente toda fabricada de talha dourada tem mais dous altares do lado do Evangelho no Corpo da Igreja, e hum único do lado da Epistola do mesmo corpo, porque o resto deste lanço fica tomado parte, pelo pulpito que condiz em tudo com as ricas molduras do Templo e junto da baze delle está incherida a pia de agoa benta [...] Logo emmediata a esta pia d'agoa benta fica a porta principal fronteira ao primeiro altar dos dous, que já mencionei, os quaes com mais dous colateraes, que foraõ erectos ao lado do arco cruzeiro e o da Capela mór saõ seis, que tantos pode comportar este Sanctuario. Os Confissionários estaõ embutidos nos intervallos dos altares e do Choro debaixo, porem com tal arte, que fechadas as suas respectivas portas em nada troncaõ a douradura da entalha». Seguindo ainda a descrição de Sousa Reis, também os coros tinham: as «paredes em que se flrmaõ as grades de ferro, igualmente cobertas de molduras de madeira dourada no gosto, forma e disposição de todo o templo (80) [...] Note se porem que esta entalha apenas chega ate ao ponto das paredes, aonde começa a soberba e bem construída abobeda de pedra». O Ob. cit.,p.l54-169. (80) «nas quaes se veeem cabeças de anjos chorobins, arabescos, rafaielas, floro_s e mil fantazias saliente». Ao descrever o interior da igreja, Sousa Reis faz referência à pia de água benta, localizada na base do púlpito — «formada em huma bellissima concha de marmore vermelho» - e também a «hum quadro de marmore negro, aonde salientes em vulto estaõ cruzados o braço nú de Christo com o do Serafico Padre S. Francisco Patriarca deste Mosteiro (81). Segundo a informação fornecida por Pinho Leal (82) a igreja, em 1874, estava a servir de serralharia (83) e da «muita obra de talha» que existia, parte «foi para a nova egreja de S. Mamede de Infesta, para a de S. Pedro de Miragaya, e ainda em 1874 um magnifico altar foi cedido para o novo hospital de D. Pedro V» (84). O destino da igreja e do restante edifício foi ao longo do século XIX caminharem para a degradação e alteração que hoje apresenta, mas a importância que no panorama artístico teve na cidade o Convento da Madre de Deus de Monchique obriga que seja lembrado como uma, entre muitas outras, grandes perdas patrimoniais que a cidade sofreu. (81) «O mimozo das formas humanas representadas nestes braços fabricados com inteiriços pedaços de mármores próprios na côr aos mesmos braços, estando o do Santo com a manga do habito Religiozo, o do Crucificado despido; he esta peça em tudo obra de muitíssimo merecimento e talvez a única neste género taõ prefeita, que haja em Portugal». (82) PINHO LEAL, Augusto Soares de Azevedo Barbosa - Portugal Antigo e Moderno, vol. 5. Lisboa: Livraria Editora de Mattos Moreira & Companhia, 1875, p.298-300. (83) Idem, ibidem, p. 298. (84) Idem, ibidem, p. 299.