Cortex Supra-Renal: Anatomia, Embriologia e Fisiologia

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REVISTA PORTUGUESA DE ENDOCRINOLOGIA, DIABETES E METABOLISMO | 2009 | 01
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Cortex Supra-Renal: Anatomia,
Embriologia e Fisiologia
Rui Tiago Cardoso1, Isabel Mangas Palma2
1
2
Aluno do 5º ano Curso de Medicina, Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar
Assistente Hospitalar de Endocrinologia Diabetes e Metabolismo, Serviço de Endocrinologia do Hospital Santo António, Centro Hospitalar
do Porto
Correspondência:
Isabel Mangas Palma › [email protected]
RESUMO
As glândulas supra-renais têm um papel central nos mecanismos adaptativos do ser humano
ao meio ambiente, bem como na regulação de diferentes processos fisiológicos, estando em
estreita inter-relação com os demais órgãos endócrinos e com o sistema nervoso autónomo.
No presente artigo abordamos, a título de revisão, a anatomia e embriologia das glândulas
supra-renais e a fisiologia das hormonas produzidas e secretadas na região cortical.
PALAVRAS-CHAVE
Supra-renal; Cortisol; Aldosterona; Dehidroepiandrosterona.
SUMMARY
The adrenal glands play a very important role in the adaptive mechanisms of humans to the environment and in regulation of different physiologic processes. They are already in near interrelation
with the other endocrine organs and the autonomous nervous system. In this article we focus the
anatomy, embryology of the adrenal glands and the physiology of the hormones produced and
secreted in the cortex.
KEY WORDS
Adrenal; Cortisol; Aldosterone; Dehydroepiandrosterona.
ANATOMIA DAS GLÂNDULAS
SUPRA – RENAIS
As glândulas supra-renais localizam-se
entre a face supero-medial dos rins e o diafragma. São envolvidas pela fáscia renal,
através da qual se fixam ao diafragma,
estando separadas dos rins pelo tecido fibroso da cápsula que as envolve1.
A glândula supra-renal direita tem
forma triangular, situa-se anterior ao dia-
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fragma, contacta com a veia cava inferior
antero – medialmente e com o fígado antero - lateralmente1.
A glândula supra-renal esquerda tem
forma semi-lunar e tem relações anatómicas com o baço, estômago, pâncreas e com
o pilar esquerdo do diafragma1.
Cada glândula apresenta um cortex e
uma medula, anatómica e funcionalmente
distintos.
Pesam cerca de quatro a seis gramas,
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ocupando o cortex 80 a 90% do seu volume2.
O cortex tem uma origem embrionária
semelhante à das gónadas. É constituído
por três zonas histológicas, denominadas de
acordo com a disposição das células secretoras: zona glomerulosa, zona fasciculada e
zona reticular2.
A zona glomerulosa, zona externa do
cortex supra-renal corresponde a aproximadamente 15% do mesmo e as suas células,
agrupadas em “ninhos”, são pequenas,
apresentando núcleos também pequenos
relativamente às outras zonas. É responsável pela secreção de hormonas mineralocorticóides (aldosterona e desoxicorticosterona), principalmente a aldosterona.
A aldosterona é secretada pela zona
glomerulosa sob o controlo de três principais secretagogos, angiotensina II, potássio
e em menor extensão ACTH. A produção
desta hormona é exclusiva da zona glomerulosa uma vez que apenas aí se encontra a
sintetase da aldosterona.
A corticosterona e desoxicorticosterona,
sintetizadas na zona fasciculada e glomerulosa, actuam também como mineralocorticoides.
A actividade da aldosterona é controlada pelo sistema renina-angiotensina, por
sua vez regulado pela mácula densa do
túbulo contornado distal. As baixas concentrações plasmáticas de sódio e elevadas de
potássio também podem estimular directamente a secreção de aldosterona a partir
das células da zona glomerulosa3.
A aldosterona liga-se a receptores intracelulares específicos, encontrados em poucos tecidos alvo (rim e epitélios de transporte do cólon e da bexiga), provocando a
transcrição de DNA que codifica proteínas canais de sódio – e permite a reabsorção
deste catião. É de realçar que a aldosterona
apresenta um mecanismo distinto de acção,
independente da transcrição de genes, que
ocorre por estimulação do trocador iónico
sódio-hidrogenião, através dos receptores
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da aldosterona da membrana. O primeiro
mecanismo designa-se lento e o segundo
rápido3.
A zona fasciculada é a zona média e
mais larga das três zonas do cortex suprarenal e compreende aproximadamente 75%
do cortex, variando em espessura sob diferentes condições fisiológicas2. As suas células
são grandes e formam cordões radiais entre
a rede fibrovascular. É responsável pela
secreção de hormonas glicocorticóides, em
especial o cortisol e também de esteróides
sexuais apesar de em menor quantidade2.
A síntese e secreção de cortisol são reguladas, de acordo com as necessidades, pela
produção de ACTH, secretada pela adenohipófise3.
A secreção de ACTH por sua vez é regulada pelo CRF (secretado no hipotálamo),
pelo nível de glicocorticóides no plasma e
pela ADH (que atinge a hipófise pelos vasos
portais neurohipofisários curtos)3.
A libertação de CRF é inibida pelos
níveis sanguíneos elevados de glicocorticóides, por impulsos oriundos do SNC, por péptidos opióides, factores psicológicos e do
meio ambiente3.
Após penetrarem nas células, os glicocorticóides ligam-se a receptores citosólicos
específicos (GRα e GRβ) encontrados em
praticamente todos os tecidos. Após a ligação, estes receptores sofrem uma alteração
conformacional e migram para o núcleo,
ligando-se ao DNA inibindo ou induzindo a
transcrição de genes específicos3.
A zona reticulada é a região de menor
espessura e mais interna do cortex supra –
renal, apresentando células irregulares com
pequeno conteúdo lipídico. A sua espessura
varia de acordo com diferentes condições
fisiológicas2. É responsável pela secreção de
pequenas quantidades de androgénios e glicocorticóides.
O suprimento sanguíneo das glândulas
supra-renais é da responsabilidade das artérias supra-renais superior (origem na artéria
frénica inferior), média (origem na artéria
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mesentérica superior) e inferior (origem na
artéria renal), que formam um plexo imediatamente abaixo da cápsula da glândula1,2.
Quanto à drenagem venosa, as sinusóides da zona fasciculada convergem para
um plexo profundo na zona reticulada,
antes de drenarem para as pequenas vénulas que terminam na veia central da medula. A veia supra-renal direita converge na
veia cava inferior e a esquerda na veia
renal esquerda1,2.
As glândulas supra-renais possuem um
suprimento nervoso rico, proveniente do
plexo celíaco e dos nervos esplâncnicos torácicos. Os nervos são principalmente fibras
simpáticas pré-gânglionares mielinizadas
que derivam dos cornos lateral da medula
espinal e que são distribuídas para as células cromafins da medula supra-renal1.
EMBRIOLOGIA DAS GLÂNDULAS
SUPRA-RENAIS
O cortex supra - renal deriva do mesotélio celómico situado entre o mesentério dorsal e o esboço gonádico. A primeira proliferação e migração ocorre à quinta semana de
desenvolvimento embrionário, dando origem ao cortex fetal ou primitivo. A segunda
proliferação e migração surge pelo terceiro
mês de vida embrionária, formando-se o cortex permanente ou definitivo. O cortex fetal
involui no período compreendido entre o
nascimento e o segundo ano de vida, desenvolvendo-se então o cortex permanente5.
Durante a gestação, formam-se no cortex
supra-renal, derivados androgénicos sulfatados que são transformados na placenta em
hormonas androgénicas e estrogénicas activas. Estas hormonas entram na circulação
materna, tendo papel activo na regulação do
equilíbrio endócrino durante a gravidez5.
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IMPORTÂNCIA FISIOLÓGICA DAS
HORMONAS DO CORTEX SUPRARENAL
1. GLICOCORTICÓIDES
O cortisol e a corticosterona são os principais representantes deste grupo e designam-se glicocorticóides dado que aumentam a produção hepática de glicose, estimulando o catabolismo lipídico e proteico, de
forma a obter substratos para a gliconeogénese e reduzem a captação periférica da glicose.6 Os glicocorticóides actuam virtualmente em todos os tecidos humanos6.
Na pele e tecido conjuntivo, os glicocorticóides inibem a divisão das células epidérmicas e síntese de DNA, reduzindo também
a síntese e produção de colagénio. No músculo, os glicocorticóides causam atrofia
(mas não necrose), e diminuição da síntese
de proteínas musculares.
Os glicocorticóides inibem a função dos
osteoblastos, o que contribui para a osteopenia e osteoporose que caracteriza o seu
excesso.
A observação de doentes com excesso e
deficiência de glicocorticóides revela que o
cérebro é um importante órgão alvo para
estes, com depressão, euforia, psicose, apatia,
letargia, como manifestações importantes.
Os glicocorticóides têm actividade antiinflamatória por inibição da produção de
prostaglandinas e leucotrienos. Têm actividade imunossupressora por inibição da função linfocitária. Quando em altas quantidades deprimem funções biológicas não
vitais como o crescimento e a função reprodutora (inibem a pulsatilidade de GnRH e
libertação de LH e FSH).
Além do seu papel no metabolismo energético, os glicocorticóides potenciam a acção
vasoconstritora em resposta às catecolaminas, têm um efeito protector relativamente
aos efeitos nocivos do stress, inibem a resposta inflamatória e a resposta imune específica.
Tanto o cortisol como a corticosterona
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são sintetizados a partir do colesterol, por
uma cadeia de reacções químicas, catalizadas por enzimas na sua maioria pertencentes à família do Citocromo P 450.
São secretados na forma livre, mas circulam no plasma ligados a proteínas. A principal proteína transportadora dos glicocorticóides é a transcortina ou CBG, contudo
também podem circular ligados à albumina. A ligação às proteínas tem como função
realizar o transporte e entrega das moléculas
aos órgãos alvo, atrasar a sua clearance
metabólica e impedir grandes oscilações na
sua concentração. A CBG é uma α2-globulina sintetizada no fígado, que aumenta a
sua produção durante a gravidez, contracepção hormonal, hipertiroidismo, diabetes
mellitus, entre outros. O seu aumento origina uma diminuição temporária dos níveis
séricos de cortisol, que condiciona um
aumento da secreção de ACTH e consequentemente dos níveis de cortisol. A produção de
CBG está diminuída nas situações de síndrome nefrótico, cirrose hepática, hipotiroidismo, entre outros6.
Cerca de 96% do cortisol circulante
encontra-se ligado à CBG, enquanto cerca
de 4% circula livre no plasma, sendo a fracção de hormona ligada inactiva e a livre
fisiologicamente activa6.
A concentração matinal normal de cortisol é de 5-20 μg/dl. Como o cortisol se liga
mais às proteínas transportadoras, que a
corticosterona, é de esperar que a sua semivida em circulação seja superior à desta: 60
a 90 minutos versus 50 minutos6.
Os glicocorticóides são metabolizados
no fígado por conjugação com o ácido glicurónico ou pela adição de grupos sulfato,
tornando-se hidrossolúveis e posteriormente
excretados na urina e nas fezes6.
A secreção de glicocorticóides ocorre em
resposta à libertação de ACTH pela adenohipófise. A ACTH é um péptido com 39 aminoácidos e com uma semi-vida de aproximadamente 10 minutos, libertado em resposta ao CRF secretado pelo hipotálamo6.
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O controlo da secreção de ACTH e CRF
ocorre por três mecanismos: secreção episódica e ritmo diurno de ACTH, em resposta
ao stress e por retroacção negativa dos
níveis de cortisol6.
A secreção circadiana de ACTH faz-se de
forma pulsátil, com maior intensidade de
manhã e menor durante a noite. O nível
sérico de cortisol é máximo entre as 6 e as 8
horas da manhã, ainda durante o sono
antes de despertar6.
O ritmo diurno de secreção de ACTH
mantém-se nos indivíduos com insuficiência
supra-renal que se encontram sob terapêutica de substituição, não se verificando contudo, nos indivíduos com síndrome de Cushing
e sendo exagerado nos pós-adrenalectomia6.
O ritmo diurno de secreção de ACTH
pode variar com os seguintes factores:
padrão de sono, padrão de exposição à
luz/escuro, alimentação, stress, trauma,
fome, ansiedade, depressão, doenças neurológicas, doenças hepáticas, insuficiência
renal crónica, alcoolismo, fármacos antiserotoninérgicos, entre outros6.
Através de um mecanismo de retroacção
negativa, níveis elevados de cortisol, condicionam uma diminuição de ACTH e também de CRF, conduzindo a uma diminuição
da secreção de cortisol pelas glândulas
supra-renais6.
Tratamentos prolongados com corticoesteróides também inibem a secreção de
ACTH, sendo esta inibição proporcional à
potência do fármaco utilizado. Quando o
tratamento termina, a glândula supra-renal
encontra-se atrófica e a hipófise pode demorar meses a secretar níveis adequados de
ACTH. Caso não seja feita uma redução gradual do fármaco, o paciente fica em risco de
uma insuficiência supra-renal aguda6.
2. MINERALOCORTICÓIDES
A principal função dos mineralocorticóides é regular a excreção de sódio de forma a
manter um volume vascular adequado6.
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Esta tarefa é realizada conjuntamente
com outros sistemas reguladores, que controlam a filtração e reabsorção tubular renal
e que regulam a osmolaridade plasmática6.
A aldosterona é o principal mineralocorticóide secretado pela glândula supra-renal.
A desoxicorticosterona e a corticosterona
também têm actividade mineralocorticóide6.
A aldosterona tem um padrão de secreção
fisiológico típico; diminuindo ao início da
noite e aumentando numa fase mais avançada da noite, provavelmente devido a uma
variação na actividade da renina plasmática.
A aldosterona liga-se às proteínas plasmáticas (albumina e CBG) em menor extensão que os glicocorticóides. Por dia libertamse cerca de 15 mg de aldosterona, sendo a
sua concentração plasmática total de 0,006
μg/dl e a fracção livre de 30 – 40%.6 A semivida da aldosterona é de 20-30 minutos,
sendo metabolizada no fígado e excretada
na urina, aproximadamente 1% na forma
livre6.
A sua secreção é regulada pelo sistema
renina-angiotensina, pela concentração
sérica de sódio e potássio (aumento de
potássio e/ou diminuição de sódio) e em
menor grau pela ACTH6.
Os estímulos fisiológicos para que o sistema renina-angiotensina aumente a secreção de aldosterona são: diminuição da perfusão renal, diminuição do volume extracelular, restrição dietética de sódio e diminuição da pressão vascular arterial (hemorragia e hipotensão ortostática)6.
A secreção de aldosterona também pode
aumentar em situações patológicas designadas por hiperaldosteronismo secundário,
tais como: insuficiência cardíaca congestiva, síndrome nefrótico e cirrose hepática6.
O mecanismo de acção da aldosterona é
complexo e não é completamente conhecido. A aldosterona liga-se ao receptor citosólico dos mineralocorticóides, que migra
para o núcleo, permitindo a transcrição de
determinadas sequências de DNA que são
expressas em proteínas de membrana, cuja
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função é promover a reabsorção de sódio e
a excreção de potássio6.
Os tecidos que expressam receptores
mineralocorticóides são: rins, cólon, glândulas salivares e fígado (em alguma extensão)7.
3. ANDROGÉNIOS
Os androgénios adrenais representam
mais de 50% dos androgénios circulantes em
mulheres pré menopausicas. Em homens esta
contribuição é menor devido à produção testicular de androgénios. Os principais androgénios secretados pelo cortex supra-renal são
a androstenediona, a dehidroepiandrosterona (DHEA), o sulfato de dehidroepiandrosterona (DHEAS) e a testosterona6.
Por dia são produzidos em média, no
cortex supra-renal, 4 a 14 mg de DHEA e 20
a 25 mg de DHEAS7.
Existe no organismo humano uma contínua interconversão entre DHEA e DHEAS,
mediada pela enzima DHEA sulfotransferase7. Os níveis séricos de DHEA e de DHEAS
estão inversamente relacionados com a
idade. O nível máximo verifica-se pelos trinta anos de vida, que desce para valores próximos dos 20% pelos setenta anos de idade7.
Em geral a secreção dos androgénios
acompanha a secreção de cortisol, sendo a
ACTH o principal factor regulador da sua
produção. São libertados na forma livre e
circulam ligados, através de ligações fracas,
predominantemente à albumina6.
Existem, contudo factores, desconhecidos, que alteram a semi-vida e a variação
destas hormonas em situações de doença7.
São metabolizados quer por degradação, quer por conversão periférica em
androgénios mais potentes como a testosterona e a dehidrotestosterona6.
No homem são responsáveis por 30 a
50% dos androgénios circulantes, verificando-se valor relativo mais elevado na mulher7.
A DHEA tem efeitos masculinizantes e
anabólicos, contudo a sua potência é cerca
de um quinto da potência dos esteróides tes-
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ticulares. Em condições fisilógicas normais,
o seu efeito é escasso. Na mulher, os esteróides de origem supra-renal (e ovárico) têm
efeito na líbido e na actividade sexual6.
A produção excessiva de androgénios
tem efeito reduzido em homens adultos,
sendo causa de hirsutismo em mulheres.
Pode originar puberdade precoce em crianças do sexo masculino e masculinização de
crianças do sexo feminino pré-púberes6.
As glândulas supra-renais desempenham um papel fulcral na adaptação do ser
humano ao stress, na regulação do metabolismo energético na manutenção do equilíbrio hidro-electrolítico, na função sexual,
entre outros.
A correlação anátomo-clínica das diferentes situações semiológicas e imagiológicas é possível graças ao conhecimento da
sua estrutura. O estabelecimento de relações com outros órgãos de locais e funções
distintas só existe tendo em conta a sua
embriologia, isto é, baseia-se numa origem
embrionária comum.
Para finalizar, o conhecimento dos processos subjacentes à produção, secreção,
transporte e mecanismo de acção das diferentes hormonas reveste-se de importância
fundamental na estruturação do raciocínio
clínico.
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BIBLIOGRAFIA
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2.
3.
4.
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Vander et al, HUMAN PHYSIOLOGY, McGRAWHILL, 9ª Edition, 2004.
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disease: recent developments, Expert Opin
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SIGLAS
ACTH – Adrenocorticotrophic Hormone
CRF – Corticotropin Releasing Factor
ADH – Antidiuretic Hormone
SNC – Sistema Nervoso Central
DNA – Desoxyrribonucleic Acid
CBG – Corticosteroid-binding globulin
DHEA – Dehidroepiandrostenediona
DHEAS – Sulfato de Dehidroepiandrostenediona
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Insuficiência do Cortex Supra-Renal:
Fisiopatologia, diagnóstico e tratamento
Rui Tiago Cardoso1, Isabel Mangas Palma2
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Assistente Hospitalar de Endocrinologia Diabetes e Metabolismo, Serviço de Endocrinologia do Hospital Santo António, Centro Hospitalar
do Porto
Correspondência:
Isabel Mangas Palma › tlm. 919551799 › [email protected]
RESUMO
A insuficiência cortical supra-renal caracteriza-se por um défice de hormonas esteróides
supra-renais e sua consequência na homeostasia do meio interno. No presente artigo, abordamos as principais causas e apresentações da insuficiência cortical supra-renal, bem como
as considerações sobre o seu diagnóstico e tratamento, em diferentes contextos clínicos.
PALAVRAS-CHAVE
Insuficiência Supra-renal. Doença de Addison. Cortisol. Aldosterona. Dehidroepiandrosterona
SUMMARY
The adrenal cortex failure is marked by a deficit in adrenal steroid hormones, and its consequence in the internal environment homeostasis. In this article we focus the main causes and
presentations of the adrenal cortex insufficiency, its diagnosis and treatment in different clinical settings.
KEY WORDS
Adrenal insufficiency. Addison’s disease. Cortisol. Aldosterone. Dehydroepiandrosterona.
INTRODUÇÃO
A insuficiência cortical supra-renal é
uma entidade clínica com múltiplas etiologias, cujas repercussões decorrem de uma
produção ou secreção insuficiente de hormonas do cortex supra-renal: glicocorticóides,
androgénios e mineralocorticóides (na insuficiência de etiologia primária). Pode ser
causada por uma doença primária das glândulas supra-renais ou, de forma secundária,
por uma diminuição da estimulação das
glândulas por défice de ACTH1.
Podemos classificar a insuficiência cortical supra-renal em insuficiência primária
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aguda (crise supra renal), insuficiência primária crónica (doença de Addison) e insuficiência secundária1.
A deficiência de mineralocorticóides
acompanha, invariavelmente, a insuficiência supra-renal primária. Na insuficiência
secundária, que ocorre por deficiência de
produção ou secreção de ACTH, a secreção
de mineralocorticóides é preservada devido
à acção do sistema renina-angiotensina-aldosterona.
De seguida, vamos caracterizar as diferentes formas de insuficiência cortical
supra-renal, focando a sua fisiopatologia, o
seu diagnóstico e o seu tratamento.
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INSUFICIÊNCIA PRIMÁRIA AGUDA
DO CORTEX SUPRA-RENAL
CRISE SUPRA-RENAL
A crise supra-renal é uma entidade clínica que pode ocorrer em diversas situações,
das quais se destacam:
Pacientes com insuficiência supra-renal
crónica, sob qualquer forma de stress, em
que haja necessidades acrescidas de cortisol
que a glândula não é capaz de compensar.
Pacientes submetidos a tratamento prolongado com glicocorticóides exógenos,
perante uma súbita retirada desse medicamento ou manutenção da dose em caso de
stress agudo. A precipitação de uma crise
pode ser devida à incapacidade da hipófise
secretar ACTH em quantidade suficiente, ou
das glândulas supra-renais compensarem a
quantidade adicional de cortisol necessária,
por se encontrarem atróficas.
Aquando de uma hemorragia suprarenal maciça que destrua uma grande
quantidade de cortex, poderá ocorrer insuficiência supra-renal, tal como nos recém
nascidos com partos prolongados e traumáticos, nos doentes hipocoagulados e na coagulação intravascular disseminada. Surge
também como complicação de uma infecção bacteriana, o Síndrome de WaterhouseFriederichsen, uma entidade rara, que pode
ocorrer em qualquer idade, especialmente
durante a infância.
Esta entidade clínica ocorre no contexto
de uma infecção bacteriana grave, geralmente associada a sepsis, por Neisseria
meningitidis, Pseudomonas spp, Streptococus
pneumoniae, Haemophilus influenzae ou
Staphylococcus spp. Caracteriza-se por uma
hipotensão rápida e progressiva e um quadro de coagulação intravascular disseminada e púrpura. Neste caso, a insuficiência
supra-renal surge como consequência da
hemorragia secundária à coagulação intravascular, da vasculite induzida pela endotoxina de bactérias Gram negativas ou de
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alguma forma de vasculite causada por
hipersensibilidade, sendo, em qualquer
uma das situações, iniciada a hemorragia
na medula de onde progride em direcção ao
cortex.
O quadro clínico e laboratorial da crise
adrenal pode incluir diferentes aspectos: desidratação, hipotensão ou choque, náuseas,
vómitos, perda de peso, anorexia, dor abdominal aguda, hipoglicemia inexplicável,
febre inexplicável, hiponatrémia, hipercaliémia, azotémia, hipercalcémia, hiperpigmentação ou vitíligo, eosinofilia, sendo também
associado a outras endocrinopatias.
INSUFICIÊNCIA PRIMÁRIA CRÓNICA DO CORTEX SUPRA-RENAL
DOENÇA DE ADDISON
A Doença de Addison, descrita pela primeira vez em 1855 por Thomas Addison, foi
por ele classificada como uma constelação
de sintomas que incluía: “fraqueza e debilidade gerais, uma debilidade acentuada da
função cardíaca e uma alteração peculiar
da coloração da pele” associada a uma
“doença das cápsulas supra-renais”1.
Esta doença, incluída na lista de doenças raras, resulta da destruição progressiva
do cortex supra-renal, apresentando uma
incidência a nível mundial de 0.8 casos por
100,000 e prevalência de 4 a 11 casos por
100,000 habitantes – sem predominância
de sexo ou faixa etária1,2,3.
As suas manifestações são resultado de
uma diminuição ou ausência de produção
de cortisol, aldosterona e androgénios7.
A adrenalite auto-imune, a tuberculose,
os carcinomas metastáticos e a SIDA surgem como causa de aproximadamente 90%
dos casos de doença de Addison (Tab. 1)1:
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TABELA 1. Causas de insuficiência crónica do cortex supra-renal
Auto-imune
Esporádica
Síndrome poliglandular auto-imune tipo I
Síndrome poliglandular auto-imune tipo II
Infecções
Tuberculose
Fungos
Vírus (CMV/HIV)
Metástases tumorais
Doenças infiltrativas
Hemorragia intra supra-renal
Adrenoleucodistrofia
Hipoplasia adrenal congénita
Síndrome de resistência ao ACTH
Adrenalectomia Bilateral
Adaptado de Kronenberg et al, Williams Textbook of ENDOCRINOLOGY, 11th
Edition, Saunders, 2008.
A insuficiência auto-imune, responsável
por 60 a 70% dos casos de insuficiência cortical supra-renal nos países desenvolvidos,
decorre da destruição auto-imune das células produtoras de hormonas esteróides.
Verificou-se a existência de vários tipos
de auto-anticorpos contra enzimas esteroidogénicas, 21-Hidroxilase e 17-Hidroxilase,
em 75% destes pacientes1 sendo também
possível afirmar que 50% dos casos de doença de Addison auto-imune, ocorrem no contexto das síndromes poliglandulares autoimunes tipos I e II17.
A síndrome poliglandular auto-imune
do tipo I (doença de Addison, hipoparatiroidismo, candidíase mucocutânea crónica,
hipoplasia dentária, alopécia, hipogonadismo primário) é uma doença rara, autossómica recessiva, causada por mutação no
gene regulador AIRE localizado em 21q221,11.
A síndrome poliglandular auto-imune
tipo II (doença de Addison, hipotiroidismo
primário, hipogonadismo primário, diabetes mellitus tipo I, anemia perniciosa e vitíligo), afecta predominantemente indivíduos
jovens. É uma entidade poligénica e alguns
estudos sugerem uma associação a polimorfismos do HLA1,11, cujas moléculas demonstraram estar envolvidas com a susceptibilidade e com a protecção genética à doença.
Desde o primeiro trabalho publicado
sobre este assunto em 1975, onde se destacava a associação do antigénio HLA-B8 com a
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susceptibilidade à doença de Addison, foram
realizados diferentes estudos que evidenciam a associação da doença ao antigénio
HLA-DR3 e ao haplótipo DR3/DQ211.
Estudos mais recentes comprovam que a
existência de linkage desiquilibrium, ao nível
da região promotora do CYPB27B1, também está associada à doença de Addison
auto-imune7.
Ainda relativamente à genética da
doença de Addison auto imune, foi possível
demonstrar o valor da enzima 21Hidroxilase na monitorização do processo
auto-imune que, apesar de não estar directamente envolvida na destruição da glândula, constitui o principal auto-antigénio
na insuficiência supra-renal primária9.
A incidência da insuficiência suprarenal de causa tuberculosa tem vindo a
diminuir nos países desenvolvidos devido à
disponibilidade de fármacos anti-tuberculosos. Todavia, o aumento da incidência desta
enfermidade nos países em vias de desenvolvimento, associado aos grandes fluxos
migratórios e à emergência de estirpes multirresistentes, leva a que esta continue a
tomar um papel relevante no diagnóstico
diferencial.
De um modo geral, esta doença ocasiona, no momento inicial, infecções activas
em outros órgãos como os pulmões e o aparelho genito-urinário, sendo, posteriormente e por disseminação hematogénea, atingidas as glândulas supra-renais que se tornam volumosas devido aos extensos granulomas e caseo que então se formam e afectam tanto o cortex como a medula. Em 50%
dos casos, verifica-se que este processo evolui para a fibrose e calcificação1.
Os carcinomas metastáticos do pulmão e
da mama constituem outra causa frequente
de atingimento das glândulas supra-renais
podendo, em alguns casos, levar a uma
insuficiência cortical supra-renal crónica1.
O atingimento destas glândulas por
infecções oportunistas (Citomegalovirus,
Mycobacterium avium, entre outros) ou por
79
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complicações não infecciosas (sarcoma de
Kaposi), torna superior o risco de desenvolver insuficiência supra-renal nos pacientes
com SIDA1.
Os fungos com papel mais relevante no
desenvolvimento de doença de Addison são
o Histoplasma capsulatum e o Coccidioides
immitis, os quais substituem a arquitectura
da glândula por uma reacção inflamatória
granulomatosa1.
A adrenoleucodistrofia, outra forma de
insuficiência cortical supra-renal crónica, é
uma doença genética ligada ao cromossoma X e tem uma prevalência de 1:20000.
Afecta o funcionamento dos peroxissomas,
resultando numa deficiente oxidação dos
ácidos gordos de cadeia muito longa que se
acumulam no cortex das glândulas suprarenais13.
Doenças infiltrativas como a amiloidose, a sarcoidose e a hemocromatose também são potenciais causadoras de insuficiência cortical supra-renal.
A doença de Addison cursa com o
seguinte quadro clínico: início insidioso,
manifestando-se apenas quando cerca de
90% do cortex das duas glândulas estiver
destruído e os níveis circulantes de glicocorticóides e mineralocorticóides se encontrarem significativamente reduzidos1.
As suas manifestações iniciais incluem
fraqueza progressiva, cansaço, perda de
peso e distúrbios gastrointestinais (anorexia, náuseas, vómitos e diarreia). Nos
pacientes com doença supra-renal primária, elevados níveis circulantes de ACTH
estimulam os melanócitos, causando hiperpigmentação da pele, especialmente nas
áreas expostas ao sol e nas zonas de pressão
como o pescoço, joelhos, cotovelos e articulações das mãos, o que não se verifica em
pacientes com insuficiência supra-renal de
causa hipotalâmica ou hipofisária.
A diminuição da actividade mineralocorticóide origina hiponatrémia, hipercaliémia, acidose metabólica, diminuição do
volume circulante e hipotensão. Pode tam-
80
bém ocorrer hipoglicemia por deficiente
actividade glicocorticóide (Tab. 2)1.
TABELA 2. Frequência dos sinais e sintomas de Insuficiência do
Cortex Supra-renal
Sintomas /Sinais/Alterações laboratoriais
Frequência (%)
Sintomas
Fraqueza, cansaço, fadiga
100
Anorexia
100
Sintomas gastrointestinais
92
Náusea
86
Vómitos
75
Obstipação
33
Dor abdominal
31
Diarreia
16
Avidez por sal
16
Tonturas posturais
12
Dor muscular ou articular
6-13
Sinais
Perda de peso
100
Hiperpigmentação
94
Hipotensão(PA sistolica < 110 mmHg)
88-94
Vitíligo
10-20
Calcificação auricular
5
Alterações laboratoriais
Distúrbios electrolíticos
92
Hiponatrémia
88
Hipercaliémia
64
Hipercalcémia
6
Azotémia
55
Anemia
40
Eosinofilia
17
Adaptado de Kronenberg et al, Williams Textbook of ENDOCRINOLOGY, 11th
Edition, Saunders, 2008.
Particular atenção merecem as situações
de stress como infecções, trauma ou cirurgias
que podem desencadear uma crise suprarenal aguda com vómitos incontroláveis, dor
abdominal, hipotensão, coma e colapso vascular. A morte pode ocorrer se não forem
estabelecidas medidas de suporte adequadas
e instituído o tratamento com corticoesteróides1.
Relativamente ao prognóstico da doença de Addison, é possível afirmar que constitui uma condição potencialmente letal:
verifica-se um acréscimo de mortalidade em
casos de insuficiência supra-renal aguda e
situações de stress (como as infecções), tal
como o apontam os estudos mais recentes22.
Por outro lado, observa-se também maior
incidência de morte súbita em pacientes
com diagnóstico realizado em idade jovem9.
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INSUFICIÊNCIA PRIMÁRIA CRÓNICA DO CORTEX SUPRA-RENAL
DOENÇA DE ADDISON NA GRAVIDEZ 25
Com o advento da corticoterapia, um
maior número de mulheres atinge a idade
reprodutiva e tem uma condição clínica
compatível com a gravidez, ultrapassando-se a diminuição da fertilidade.
A doença de Addison afecta uma em
cada doze mil gravidezes, sendo o seu diagnóstico difícil dado que, até ao terceiro trimestre de gravidez, os níveis de cortisol se
mantêm elevados e os de ACTH estáveis.
Alguns sinais que poderão alertar para o
diagnóstico são: hipoglicemias, coma, albuminúria persistente, hiperemese gravídica,
sem outra causa aparente.
Nas gestantes com diagnóstico prévio de
doença de Addison, deve ser feito o ajuste
terapêutico de acordo com o estado clínico.
O seguimento destas grávidas deve obedecer a monitorização clínica e laboratorial
apertada, bem como a corticoterapia
durante toda a gravidez. Ao longo do trabalho de parto, a dose de corticóide deve ser
aumentada e mantida até ao sexto dia pós-parto, altura em que os níveis de cortisol
retornam ao nível pré-gravídico.
INSUFICIÊNCIA PRIMÁRIA CRÓNICA DO CORTEX SUPRA-RENAL
tação clínica inicial ocorre sob a forma de
um coma hiponatrémico.
O tratamento substitutivo com glicocorticóides e, se necessário, com mineralocorticóides deve ser instituído de forma precoce, utilizando-se a menor dose que controle os sintomas e que, simultaneamente, permita um
crescimento e desenvolvimento adequados.
INSUFICIÊNCIA SECUNDÁRIA DO
CORTEX SUPRA-RENAL
A insuficiência secundária do cortex
supra-renal ocorre na sequência de alterações patológicas do hipotálamo e/ou da
hipófise que se traduzam numa diminuição
da produção ou da secreção de ACTH. De
entre as várias alterações destacam-se a
doença metastática, a infecção, o enfarte e
a irradiação1.
A administração exógena de glicocorticóides durante longos períodos também
suprime a secreção de ACTH e a função do
cortex supra-renal1. (Tab. 3)
TABELA 3. Causas secundárias de Insuficiência Cortical Supra-renal
Terapêutica prolongada com glicocorticóides
Hipopituitarismo
Remoção selectiva de adenoma hipofisário secretor de ACTH
Tumores hipofisários e cirurgia de tumores hipofisários, craniofaringiomas
Apoplexia hipofisária
Doença granulomatosa (tuberculose, sarcoidose, granuloma eosinófilo)
Tumores secundários (mama, brônquios)
Síndrome de Sheehan
Irradiação hipofisária
Deficiência isolada de ACTH
DOENÇA DE ADDISON NA INFÂNCIA
Adaptado de Kronenberg et al, Williams Textbook of ENDOCRINOLOGY, 11th
23, 24
Edition, Saunders, 2008.
A insuficiência cortical supra-renal é rara
durante a infância. Pode apresentar-se de
forma insidiosa ou aguda, sendo a sintomatologia sobreponível à observada no adulto.
A história familiar, consanguinidade,
doenças de base e factores desencadeantes
devem ser valorizados para um correcto
diagnóstico diferencial.
Estão descritos casos em que a apresen-
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INSUFICIÊNCIA DO CORTEX
SUPRA-RENAL
DIAGNÓSTICO
Os achados clínicos na insuficiência
cortical supra-renal são inespecíficos, exigindo um elevado nível de suspeita para se
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proceder ao diagnóstico. Dado que é uma
entidade potencialmente fatal, mas com
tratamento, impõe-se sempre o seu diagnóstico diferencial quando houver clínica
compatível18.
Deve suspeitar-se de insuficiência cortical supra-renal em pacientes que apresentam hipotensão, perda de peso, hiponatrémia, hipercaliémia, ou quando há desenvolvimento destes sintomas após situações
de stress como doença, lesão ou cirurgia18.
Nas fases precoces de destruição das glândulas, as alterações laboratoriais são inaparentes ou escassas: a secreção hormonal pode
ser normal, contudo, em situações de stress, a
resposta é subnormal, podendo ser útil uma
prova de estimulação com ACTH2.
Em estadios mais avançados, observa-se
uma diminuição das concentrações séricas
de sódio, cloretos e bicarbonato, elevação
da concentração de potássio e acidose metabólica. Em 6% dos pacientes ocorre hipercalcemia. No perfil analítico, verificam-se
também alterações nas transaminases
hepáticas e nos valores de TSH, que se apresentam moderadamente elevados, sem
doença tiroideia concomitante22.
Pode existir uma anemia microcítica,
linfocitose relativa e eosinofilia moderada2.
O status mineralocorticóide pode ser avaliado pela determinação da actividade da renina plasmática, elevada, e pelo doseamento
da aldosterona, geralmente diminuída ou
no limite inferior do normal5.
A suspeita clínica deve ser confirmada
com testes de diagnóstico. O nível plasmático basal matinal do cortisol e o cortisol livre
urinário estão frequentemente no limite
inferior do normal e não podem ser usados
para excluir este diagnóstico. Contudo, um
cortisol basal superior a 400 nmol/L (14.5
μg/dl) indica que o eixo hipotalamo, hipófise adrenal está intacto.
O doseamento do cortisol apresenta
várias limitações, das quais se destacam a
secreção segundo um padrão pulsátil e circadiano, a existência de um grande interva-
82
lo de referência e também o facto de esta
constituir uma hormona de “stress”18.
O doseamento da ACTH, por sua vez,
tem como desvantagens o facto de esta hormona apresentar uma semi-vida curta e ser
lábil in-vitro18.
Na prática clínica, todos os doentes com
suspeita de insuficiência supra-renal devem
ser submetidos a testes de estimulação com
ACTH, contudo em doentes com suspeita de
crise supra-renal, o tratamento deve ser iniciado imediatamente e os testes de confirmação efectuados mais tarde. Este teste consiste na administração intramuscular ou
endovenosa, de 250 μg de cosyntropin e
determinação do cortisol no tempo 0 e 30
minutos após injecção.
Uma resposta normal é definida por um
pico de cortisol maior que 550nmol/l (20
μg/dL). A resposta não é afectada pela hora
do dia em que o teste é realizado, podendo ser
efectuado em doentes que iniciaram terapêutica substitutiva com corticosteróides; no caso
de esta ser hidrocortisona, deve ser alterada
pois interfere no doseamento do cortisol.
Se a resposta for anormal, pode proceder-se ao diagnóstico diferencial entre insuficiência supra-renal primária e secundária
pela medição da concentração de aldosterona nas mesmas amostras sanguíneas. Na
insuficiência secundária, o aumento normal na concentração de aldosterona corresponde a valores iguais ou superiores a 150
pmol/L. Na insuficiência primária os níveis
de ACTH e péptidos associados encontram-se elevados, enquanto na secundária se
encontram baixos ou “inapropriadamente
normais”2.
Estão também disponíveis radioimunoensaios para a detecção de anticorpos anti-21hidroxilase e outros antigénios em doentes
com insuficiência supra-renal primária5.
Na doença de Addison auto-imune, é
importante avaliar a função de outros
órgãos endócrinos para fazer o diagnóstico
diferencial de síndromes poliglandulares
auto-imunes5.
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A TAC pode revelar alterações estruturais das glândulas supra-renais4.
A radiografia de tórax, a prova tuberculínica e um exame cultural de urina para
pesquisa de Mycobacterium tuberculosis são
exames importantes quando se suspeita de
etiologia tuberculosa5.
A adrenoleucodistrofia pode ser diagnosticada pela determinação da concentração sérica de ácidos gordos de cadeia muito
longa5.
Finalmente, quando se suspeita de insuficiência supra-renal de causa secundária,
impõe-se a realização de RMN da hipófise e
a avaliação da secreção da adenohipófise4.
TRATAMENTO DA
INSUFICIÊNCIA DO CORTEX
SUPRA-RENAL
TRATAMENTO DA CRISE SUPRARENAL
A crise supra-renal é uma situação clínica que exige tratamento de tal modo emergente, que não deve ser atrasado pela realização de provas para obtenção de diagnóstico definitivo. Ao colher sangue para determinação dos electrólitos e glicose, deve também proceder-se à colheita de amostras
para doseamento de ACTH e cortisol, antes
de iniciar a corticoterapia. Se o paciente
não estiver em estado crítico, pode realizarse o teste de estimulação com ACTH5.
O tratamento da insuficiência suprarenal aguda inclui:
Medidas de emergência5:
• Estabelecer um acesso endovenoso
com agulha de grande calibre;
• Colher sangue para as análises previamente citadas, não esperando, como
já foi referido, para intervir;
• Infundir 2 a 3 L de soro fisiológico (ou
glicose 5% em soro fisiológico) o mais
rapidamente possível. Avaliar os
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sinais de sobrecarga de volume pela
medição da pressão venosa central ou
periférica e pela auscultação pulmonar, diminuindo a velocidade de infusão se necessário;
• Injectar 100mg de hidrocortisona endovenosa (EV) de imediato e a cada 6
horas; se não for possível por esta via,
administrar via intramuscular (IM).
• Providenciar outras medidas de suporte de acordo com a condição clínica do
paciente.
Medidas de suporte (após estabilizar o
paciente)5,18:
• Continuar a infusão de soro fisiológico
a menor velocidade por 24 a 48 horas;
• Pesquisar e tratar quaisquer causas
que tenham precipitado a crise;
• Em pacientes sem diagnóstico prévio
de insuficiência cortical supra-renal,
proceder à prova de estimulação com
ACTH e determinar o tipo e causa de
insuficiência;
• Diminuir a dose de glicocorticóides
geralmente após 24h, reduzir a hidrocortisona para 50 mg/IM de 6/6 horas
e, posteriormente, se o doente tolerar a
via oral, passar a hidrocortisona 40mg
de manhã e 20 mg às 18 horas. Logo
que possível, passar para a dose de
substituição padrão.
• Iniciar mineralocorticóide (fludrocortisona 0,1 mg via oral por dia), aquando da suspensão da fluidoterapia
endovenosa na insuficiência primária;
• Avaliar a pressão arterial a cada 4 a 6
horas.
Segundo Clutter 18, se o diagnóstico de
insuficiência supra-renal ainda não estiver
determinado na altura da crise adrenal,
deve ser administrada uma dose única de
10 mg de dexametasona por via EV e iniciada uma infusão rápida de soro fisiológico
acrescido de soro glicosado a 5%. De seguida, é aconselhado realizar-se a prova de
83
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estimulação com o ACTH.
Após o doseamento do cortisol, inicia-se
a administração de hidrocortisona 100 mg
a intervalos fixos de 8 em 8 horas até sabermos o resultado da prova.
TRATAMENTO DA INSUFICIÊNCIA
CRÓNICA DO CORTEX SUPRA-RENAL
O objectivo da terapêutica de substituição
é repor as necessidades de esteróides supra-renais, num padrão de administração que se
assemelhe ao da libertação endógena5.
Recomenda-se a hidrocortisona como o
glicocorticóide de escolha para a terapêutica
substitutiva da insuficiência adrenal, portanto todos os pacientes com insuficiência cortical supra-renal devem repor o cortisol através da administração de hidrocortisona2, 5.
Alguns autores sugerem que a dose de
glicocorticóide deve ser ajustada ao peso do
paciente, mas não existem dados que comprovem a superioridade deste regime em
adultos2, 5, 22.
A produção endógena de cortisol é de 815 mg/dia, como a biodisponibilidade da
hidrocortisona administrada por via oral é de
quase 100%, recomendam-se 15 a 25 mg/dia
de hidrocortisona como dose de substituição,
com uma dose moderadamente mais elevada
para insuficiência primária versus secundária
(20-25 mg vs 15-20 mg)2, 5. A dose de 30 mg ou
mais de hidrocortisona, previamente usada
como dose de substituição, deve ser considerada supra-fisiológica e com elevada probabilidade de efeitos indesejáveis16.
A dose diária de hidrocortisona deve ser
repartida em duas ou três administrações:
dois terços da dose ao acordar e o terço restante pelas 18 horas, ou metade a dois terços da dose ao acordar e doses subsequentes
ao almoço e durante a tarde.
O esquema de duas tomas, com administração da segunda dose às 18h, leva a baixa
dose de glicocorticóides durante a tarde e
consequente aumento do cansaço. Os glico-
84
corticóides não devem ser dados ao deitar
porque podem provocar distúrbios do sono2, 5.
Apesar do esquema terapêutico adoptado ter como objectivo mimetizar as concentrações fisiológicas de glicocorticóides e o
ritmo circadiano fisiológico, tal não acontece uma vez que as preparações de hidrocortisona têm um perfil farmacocinético indesejável, com um aumento da concentração
para valores supra fisiológicos 1 a 2 horas
após a administração, seguido de um rápido declínio com valores indetectáveis nas 57 horas seguintes. As preparações existentes
também não permitem simular o aumento
fisiológico do cortisol matinal.
Com o objectivo de reproduzir de forma
mais fidedigna a variação circadiana do
cortisol, foi realizado um estudo em sete
pacientes com doença de Addison, durante
um período de três meses e utilizando uma
bomba infusora subcutânea de hidrocortisona. Os resultados sugerem que os pacientes seleccionados beneficiariam do restabelecimento do ritmo circadiano de cortisol19.
Recentemente, no sentido de se obterem
concentrações séricas mais fisiológicas de
glicocorticóides, foram desenvolvidos comprimidos de hidrocortisona de libertação
prolongada (Chronocort ® e DuoCort ®),
que já foram testados em estudos de Fase I22.
A dose de glicocorticóides a administrar e
a sua posologia devem ser decididas individualmente e tendo em conta a toma de
outros fármacos, particularmente aqueles
que aumentam ou diminuam a sua clearence.
A rifampicina, fenobarbital, fenitoína,
carbamazepina e o mitotano aumentam a
clearence dos glicocorticóides por indução do
CYP3A4 no fígado, sendo, neste caso, necessário aumentar a dose de hidrocortisona. Já
os contraceptivos orais, estrogénios conjugados, eritromicina, indometacina, cetoconazol e o naproxeno diminuem a clearence
dos glicocorticóides com consequente
aumento das concentrações plasmáticas e
necessidade de diminuir a dose de hidrocortisona21.
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Da mesma forma, o excesso de hormonas tiroideias causado por hipertiroidismo
ou terapêutica com levotiroxina exógena
aumenta o turnover cortisona/cortisol e pode
requerer ajuste da dose. Pela mesma razão,
o início do tratamento com glicocorticóides
em doentes com hipopituitarismo deve preceder o início da substituição com levotiroxina, visto que o inverso pode precipitar
uma crise adrenal.
Glicocorticóides de acção prolongada
também podem ser usados na terapêutica
substitutiva. A equipotência das doses é a
seguinte: 10mg de hidrocortisona equivale
a 2 mg de prednisolona e a 0.25 mg dexametasona.
A hidrocortisona também tem acção
mineralocorticóide. Dos glicocorticóides sintéticos, a prednisolona tem reduzida acção e
a dexametasona não tem acção mineralocorticóide, o que tem considerável importância no tratamento da insuficiência adrenal primária16.
A terapêutica de substituição com glicocorticóides de acção prolongada é menos
desejável, principalmente devido à desfavorável actividade dos glicocorticóides durante
a noite e à sua elevada semi-vida biológica.
Não há marcadores eficazes da acção
dos glicocorticóides, pelo que a monitorização da terapêutica substitutiva com os mesmos é baseada na avaliação clínica de
sinais e sintomas sugestivos de sub ou sobre
substituição: fadiga, náusea, mialgia, falta
de energia e perda de peso ou aumento de
peso, obesidade central, osteoporose, alterações da tolerância à glicose e hipertensão,
respectivamente.
Nos doentes tratados com adequada
dose de glicocorticóides, não é necessária a
monitorização da densidade mineral óssea.
O cortisol sérico e o ACTH não devem ser
utilizados como instrumento de monitorização da substituição dos glicocorticóides, na
insuficiência adrenal primária ou secundária.
Os pacientes com insuficiência primária
devem ainda receber mineralocorticóides:
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fludrocortisona 0,1 mg por dia, via oral,
associada à ingestão livre de cloreto de
sódio. A dose pode variar entre os 0,05 e os
0,25 mg por dia toma única diária ou repartida por duas tomas, uma de manhã e outra
ao início da tarde.
Os objectivos da terapêutica com mineralocorticóides são a manutenção da pressão arterial adequada, em decúbito e em pé,
bem como, a normocaliémia18.
A monitorização do sódio e potássio e
da actividade ou concentração da renina
plasmática deve ser efectuada em intervalos
regulares, com objectivo de a renina plasmática estar no limite superior do normal,
reduzindo-se assim o risco de hipocaliémia,
edema e hipertensão16, 22.
A introdução da substituição com DHEA
representa um avanço na terapêutica substitutiva da insuficiência supra-renal.
A produção de DHEA pela supra-renal é
a maior fonte de androgénios na mulher e a
deficiência desta hormona origina significativa deficiência de androgénios nas mulheres
afectadas. Nas mulheres com insuficiência
do cortex supra-renal, primária ou secundária, os níveis de androgénios também se
encontram baixos, pelo que alguns autores
propõem acrescentar ao esquema terapêutico habitual 25 a 50 mg de DHEA, com o
objectivo de melhorar a qualidade de vida
das pacientes e a densidade mineral óssea.
Esta prática foi recentemente fundamentada por um estudo randomizado em que o
tratamento prolongado com DHEA evidenciou alguns efeitos benéficos em pacientes
com doença de Addison. Contudo, a nível da
fadiga e do desempenho cognitivo, a terapêutica com DHEA não evidenciou benefícios22.
A substituição deve ser monitorizada
através dos níveis plasmáticos de DHEA e,
em mulheres, recorrendo também aos
níveis de androstenediona, testosterona e
SHBG, 24 horas após ingestão da toma
matinal. O tratamento deve obter níveis
dentro dos valores de referência em adultos
saudáveis.
85
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Finalmente, os pacientes devem ser educados relativamente à sua situação clínica,
sintomatologia e ter autonomia no ajuste
terapêutico, sob aconselhamento médico
prévio, nas intercorrências que potencialmente possam desencadear uma necessidade acrescida de esteróides (regras para os
dias de doença). Devem também ser portadores de informação relativa à sua patologia que permita o seu reconhecimento por
terceiros em situações agudas.
TRATAMENTO DA
INSUFICIÊNCIA CRÓNICA DO
CORTEX SUPRA- RENAL
SITUAÇÕES PARTICULARES5
1. DOENÇAS FEBRIS MINOR OU
SITUAÇÕES DE STRESS
Os doentes sob terapêutica substitutiva
com glicocorticóides devem ser educados
para aumentar duas a três vezes a dose do
glicocorticóide, sem alterar a dose do mineralocorticóide, perante uma doença febril
minor ou uma situação de stress psicológico.
Caso o quadro clínico se agrave, persista por mais de três dias ou curse com vómitos, deve proceder-se a avaliação médica.
2. TRAUMA OU SITUAÇÕES DE
STRESS GRAVES
Deve proceder-se à administração de 4
mg de dexametasona, via intramuscular,
seguida de cuidados médicos adequados ao
quadro clínico.
3. SITUAÇÕES DE DOENÇA COM
INTERNAMENTO HOSPITALAR /
CIRURGIA
Em situação de doença moderada, deve
administrar-se 50 mg de hidrocortisona de
12 em 12 horas, por via oral ou endovenosa, passando rapidamente à dose de manutenção à medida que o paciente recupera.
86
Em caso de doença grave, deve administrar-se 100 mg de hidrocortisona, por via
endovenosa de 8 em 8 horas. Diminuir até
à dose de manutenção, 50% a cada dia,
atendendo à evolução clínica.
Em caso de procedimentos minor sob
anestesia local, ou procedimentos radiológicos, geralmente não é necessária suplementação extra. Contudo para procedimentos
como o enema baritado, endoscopia, arteriografia deve administrar-se 100 mg de
hidrocortisona endovenosa, em dose única,
antes de se iniciar o procedimento.
Por fim, em casos de cirurgia major,
administrar 100mg de hidrocortisona, antes
da indução anestésica, repetindo de 8 em 8
horas nas primeiras 24 horas. Reduzindo
rapidamente a dose, 50% por dia, até à dose
de manutenção.
Tendo em conta a informação recolhida
para a elaboração deste trabalho, podemos
afirmar que, apesar de já ser possível a
substituição de todas as linhas afectadas
(glicocorticóides, mineralocorticóides e
DHEA), o tratamento da insuficiência
supra-renal ainda não é fisiológico, pois
não é conseguida a reconstituição do ritmo
circadiano do cortisol.
Novas formulações de hidrocortisona
(libertação prolongada), que permitem
uma libertação sustentada da hidrocortisona e infusões subcutâneas contínuas de
hidrocortisona, libertadas por um dispositivo programável apontam para um futuro
promissor, em que a reprodução do nível
normal fisiológico e circadiano de cortisol
em doentes com insuficiência supra-renal
será uma realidade.
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SHBG- Sex hormone binding globulin
HLA – Human Leucocyte Antigen
SIDA – Síndrome de Imunodeficiência Adquirida
TAC – Tomografia Axial Computorizada
RMN – Ressonância Magnética Nuclear
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89 ... 98
Síndrome de Cushing Subclínica
Léone Duarte1, José Silva Nunes2, Ana Filipa Lopes1, Fernando Malheiro3
1
2
3
Interna do Internato Complementar de Endocrinologia do Serviço de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo do Hospital de Curry Cabral,
Lisboa
Assistente Hospitalar do Serviço de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo do Hospital de Curry Cabral, Lisboa
Director do Serviço de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo do Hospital de Curry Cabral, Lisboa
Correspondência
Léone Duarte › Serviço de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo do Hospital de Curry Cabral › Rua da Beneficiência, nº 8. 1069-166 Lisboa
› Telefone: 217924379 / Fax: 217924377 › e-mail: [email protected]
RESUMO
Os incidentalomas da supra-renal e a síndrome de Cushing subclínica têm sido objecto de estudo crescente nos últimos anos, dado que a descoberta casual de massas supra-renais e de alterações analíticas subtis se tornou muito frequente, pela ampla utilização de técnicas imagiológicas e laboratoriais de elevada sensibilidade. O objectivo deste artigo é fazer uma revisão sucinta
da literatura publicada sobre este tema, nomeadamente em relação à sua definição, história natural, consequências clínicas, diagnóstico, abordagem terapêutica e seguimento.
O adenoma cortical é o tipo mais frequente de incidentaloma da supra-renal. Em 5 a 20%
dos casos, dependendo do protocolo do estudo e dos critérios de diagnóstico, verifica-se uma
secreção autónoma de cortisol por estes adenomas. A secreção autonóma de glucocorticóides na ausência de sintomas e sinais específicos da síndrome de Cushing define a síndrome
de Cushing subclínica. Com uma prevalência estimada de 79 casos por 100.000 pessoas, a
síndrome de Cushing subclínica é muito mais frequente que a síndrome de Cushing clássica
(1 caso por 100.000 pessoas). O diagnóstico, abordagem, impacto clínico e tratamento desta
entidade são ainda muito controversos. No entanto, na síndrome de Cushing subclínica, temse verificado um aumento da incidência de consequências clínicas atribuíveis ao hipercortisolismo, tais como hipertensão arterial, obesidade, diminuição da tolerância à glicose, dislipidémia e síndrome metabólica, associadas a um aumento do risco cardiovascular. Deste modo,
o hipercortisolismo subclínico pode ser nocivo, particularmente em indivíduos com outros
factores de risco, geneticamente determinados ou adquiridos, podendo ter um papel importante na aceleração do processo aterosclerótico. A supra-renalectomia ou a vigilância regular
e cuidada destes doentes, tendo como prioridades a prevenção cardiovascular e o tratamento das comorbilidades, são as opções terapêuticas actualmente válidas. Os doentes referenciados para cirurgia devem fazer terapêutica com corticosteróides no período perioperatório,
dado o risco de insuficiência supra-renal pós-supra-renalectomia.
PALAVRAS-CHAVE
Síndrome Cushing subclínica; Incidentaloma supra-renal; Hipercortisolismo.
ABSTRACT
Adrenal incidentaloma and subclinical Cushing’s syndrome have been increasingly a matter of
study in the last years, since the serendipitous discovery of an adrenal mass and the finding of
laboratory abnormalities have become very frequent owing to the routine use of sensitive radiologic and laboratory techniques. The aim of this article was to review the published literature about
subclinical Cushing’s syndrome, namely its definition, natural history, clinical consequences, diagnosis and management.
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Adrenocortical adenoma is the most frequent type of adrenal incidentaloma. In 5 to 20% of cases,
depending on the study protocols and diagnostic criteria, there is an autonomous secretion of cortisol by these adenomas. Autonomous glucocorticoid production in the absence of specific signs
and symptoms of Cushing’s syndrome defines subclinical Cushing’s syndrome. With an estimated
prevalence of 79 cases per 100.000 persons, subclinical Cushing’s syndrome is much more frequent
than classic Cushing’s syndrome (1 case per 100.000). The diagnosis, management, clinical impact
and treatment of this entity are still very controversial. Nevertheless, an increased incidence of clinical consequences attributable to hypercortisolism, such as hypertension, obesity, impaired glucose tolerance, dislipidemia and metabolic syndrome, all associated with increased cardiovascular risk,
have been detected in these patients. Subclinical hypercortisolism may be harmful, particularly to
individuals with other risk factors, genetically determined or acquired, probably playing an important role in the progression of the atherosclerosis process. Adrenalectomy or regular and careful follow up, emphasizing cardiovascular prevention and comorbidity management, are the present valid
treatment options. Patients undergoing adrenalectomy should receive glucocorticoid therapy perioperatively since the risk of adrenal insufficiency is of concern.
KEYWORDS
Subclinical Cushing’s Syndrome; Adrenal incidentaloma; Hypercortisolism.
INTRODUÇÃO E MÉTODOS
A ampla utilização na prática clínica de
técnicas imagiológicas cada vez mais sofisticadas e sensíveis, como a ecografia, a
tomografia computorizada (TC) e a ressonância nuclear magnética (RNM), tem levado ao diagnóstico cada vez mais frequente
de massas supra-renais. Estas massas suprarenais têm sido designadas de incidentalomas, pelo facto de serem descobertas através de exames radiológicos realizados para
estudo de outras situações clínicas que não
a avaliação de doença supra-renal1.
O adenoma cortical é o tipo mais frequente de incidentaloma da supra-renal.
Em 5 a 20% dos casos, dependendo do protocolo do estudo e dos critérios de diagnóstico, verifica-se uma secreção autonóma de
cortisol por estes adenomas, sem tradução
clínica, dando origem à síndrome de
Cushing subcliníca2.
90
O incidentaloma da supra-renal e a síndrome de Cushing subclínica têm despertado, nos últimos anos, crescente atenção por
parte de clínicos e investigadores. Este facto
deve-se à elevada prevalência destes tumores na população geral, principalmente em
idades mais avançadas, mas também à
importância que se tem vindo a reconhecer
às chamadas “doenças subclínicas”. O diagnóstico precoce da síndrome de Cushing
subclínica pode permitir o reconhecimento
e tratamento de uma patologia e de entidades clínicas a ela associadas potencialmente perigosas3.
O objectivo deste artigo é fazer uma
revisão sucinta da literatura publicada
sobre a síndrome de Cushing subclínica,
nomeadamente em relação à sua definição,
história natural, consequências clínicas,
diagnóstico, abordagem terapêutica e
seguimento. Esta revisão é realizada com
base nos artigos indexados na MEDLINE e
PubMed, publicados entre Janeiro de 1990 e
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Novembro de 2008, com as seguintes palavras-chave: “subclinical Cushing’s syndrome”,
“subclinical hypercortisolism” ou “adrenal incidentaloma”.
DEFINIÇÃO
A síndrome de Cushing subclínica define-se pela existência de secreção de cortisol
de forma autónoma e desregulada, não
completamente suprimida pelo feedback
hipofisário, associada a adenomas da
supra-renal diagnosticados incidentalmente, isto é, clinicamente silenciosos2.
O termo síndrome de Cushing pré-clínico tem sido, por vezes, utilizado na literatura para designar a mesma entidade clínica.
No entanto, esta designação é incorrecta
porque implica o pressuposto que existe
uma evolução para um hipercortisolismo
clinicamente evidente. Tal não parece provável uma vez que a prevalência da síndrome de Cushing causada por um adenoma
da glândula supra-renal é muito inferior à
da síndrome de Cushing subclínica no incidentaloma da supra-renal4.
A definição de síndrome de Cushing
subclínica obedece deste modo a dois pressupostos: a ausência de um fenótipo evidente de Cushing e a presença de uma massa
supra-renal diagnosticada incidentalmente.
Contudo, o primeiro critério depende da
prática e discernimento do clínico. Alguns
sinais de hipercortisolismo, como o fácies
lunar e a obesidade centrípeta, são de observação comum na população geral e podem
facilmente ser ignorados e apenas atribuídos a uma hipersecreção de glucocorticóides
após a descoberta (incidental) de uma
massa supra-renal. O adenoma da suprarenal é a principal causa desta entidade clínica. No entanto, uma ligeira hipersecreção
de glucocorticóides pode ocorrer também
em doentes com massas supra-renais nãoadenomatosas, como o carcinoma suprarenal e o mielolipoma2,3.
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CONSEQUÊNCIAS CLÍNICAS E
HISTÓRIA NATURAL
Vários estudos têm sido realizados e publicados acerca das possíveis consequências clínicas e da história natural da síndrome de
Cushing subclínica nos doentes com incidentalomas da supra-renal. Este tema está,
ainda, envolto em muitas incertezas, nomeadamente relativamente ao seu diagnóstico,
abordagem e impacto clínico. No entanto, é
biologicamente plausível admitir que a exposição crónica a um excesso de cortisol
(mesmo que ligeiro) poderá provocar, pelo
menos em algum grau, algumas das consequências clínicas da síndrome de Cushing,
tais como hipertensão arterial, obesidade,
diminuição da tolerância à glicose e dislipidémia. Estas patologias estão frequentemente associadas, constituindo a síndrome
metabólica, associada a um aumento do
risco cardiovascular. Vários dados de séries de
autópsias e estudos clínicos têm encontrado
associações consistentes entre a síndrome de
Cushing subclínica e manifestações da síndrome metabólica (tabela I)5-10.
TABELA I: Manifestações da síndrome metabólica (as manifestações
observadas em doentes com incidentalomas da supra-renal estão
assinaladas com *).
Hiperinsulinémia / Insulino-resistência *
Obesidade centrípeta *
Hipertensão arterial sistólica e diastólica *
Padrão não dipper da pressão arterial
Alterações do metabolismo glucídico *
Diminuição do colesterol HDL *
Alterações qualitativas do colesterol LDL (partículas LDL pequenas
e densas) *
Elevação dos triglicéridos *
Hiperuricémia
Disfunção endotelial
Hipercoagulabilidade *
Aumento da PCR e de outros marcadores inflamatórios
Elevação do fibrinogénio *
Microalbuminúria
Aceleração do processo aterosclerótico *
(Adaptado de TERZOLO M, BOVIO S, PIA A et al: Subclinical Cushing syndrome.
Arq Bras Endocrinol Metab 2007; 51(8): 1272-9 2)
Tauchmanovà et al. avaliaram 28 doentes com critérios de síndrome de Cushing
subclínica (entre 126 indivíduos com incidentaloma da supra-renal) e verificaram
91
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que a pressão arterial sistólica e diastólica,
os níveis de glicémia em jejum, insulinémia
em jejum, colesterol total, razão colesterol
total/colesterol HDL, colesterol LDL, triglicéridos e fibrinogénio, o grau de insulinoresistência (calculado pelo homeostasis
model assessment of insulin resistance HOMA-IR), a razão cintura/anca e a espessura íntima-média carotídea eram significativamente mais elevados nos doentes com
síndrome de Cushing subclínica que nos
controlos emparelhados. Inversamente, os
níveis de colesterol HDL eram significativamente inferiores nos indivíduos com síndrome de Cushing subclínica. Estes autores
verificaram ainda que, destes 28 indivíduos,
60.7% apresentavam hipertensão arterial,
71.4% alterações lipídicas, 28.6% diminuição da tolerância à glicose (na prova de
tolerância à glicose oral clássica, com 75g
de glicose), 35.7% diabetes tipo 2 e 53.6%
alterações nos parâmetros hemostáticos.
Seis doentes (21.4%) apresentavam evidências clínicas de doença cardiovascular (cardiopatia isquémica ou claudicação intermitente) e onze (39.3%) evidenciavam alterações electrocardiográficas e/ou alterações
ultrassonográficas no ecodoppler carotídeo5.
Noutro estudo retrospectivo multi-cêntrico envolvendo 210 doentes com adenomas
da supra-renal clinicamente inaparentes,
Terzolo et al. observaram uma prevalência de
hipertensão arterial em 53.8%, de obesidade
em 21.4% e de hiperglicémia em 22.4% dos
casos. Os doentes com elevação dos níveis de
cortisol sérico da meia-noite apresentavam
níveis de glicémia em jejum e de pressão
arterial sistólica mais elevados que os indivíduos com cortisol normal. A prevalência de
doentes com pressão arterial controlada era
menor e os níveis de hemoglobina glicada
(HbA1c), nos indivíduos com diabetes, era
significativamente superior nos doentes com
hipercortisolémia6. Os mesmos autores já
previamente tinham demonstrado que indivíduos não obesos e normoglicémicos com
adenomas da supra-renal clinicamente ina-
92
parentes apresentavam uma maior prevalência de diminuição da tolerância à glicose,
de hipertensão arterial sistólica e diastólica e
de diminuição da sensibilidade à insulina,
quando comparados com controlos emparelhados. Estas alterações não eram restritas
aos doentes com síndrome de Cushing subclínica mas eram mais acentuadas nestes que
nos que apresentavam adenomas não funcionantes7. Os autores defendem que a elevação da concentração do cortisol sérico da
meia-noite pode ser considerado um marcador de sensibilidade à insulina e de um perfil
de risco cardiovascular adverso nos doentes
com adenomas da supra-renal clinicamente
inaparentes3,6,7.
Um aumento da concentração de adipocinas envolvidas no desenvolvimento da
insulino-resistência e da aterosclerose (IL-6,
resistina, TNF-α e MCP-1) foi demonstrado
em indivíduos com incidentalomas da
supra-renal, independentemente da presença de obesidade e adiposidade visceral,
reforçando a associação entre os incidentalomas da supra-renal com hipercortisolismo
subclínico e o aumento da incidência da
síndrome de insulino-resistência11.
A osteoporose é outra complicação bem
conhecida do excesso de cortisol endógeno
ou exógeno e, como tal, seria plausível considerar que os doentes com adenomas da
supra-renal e hipercortisolismo subclínico
evidenciassem uma diminuição na densidade mineral óssea. No entanto, os resultados
dos estudos realizados e publicados nos últimos anos são divergentes, provavelmente
devido aos diferentes métodos utilizados
para avaliar a densidade mineral óssea, aos
diferentes critérios de selecção dos doentes e
controlos, bem como ao pequeno número
de doentes estudados. Osella et al., num
estudo realizado com 27 doentes com incidentalomas da supra-renal, não encontraram diferenças estatisticamente significativas na densidade mineral óssea comparativamente aos controlos, mesmo nos 8 doentes com critérios de síndrome de Cushing
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subclínica12. No entanto, vários estudos
recentes documentaram uma diminuição na
densidade mineral óssea em doentes com
hipercortisolismo subclínico, com consequente aumento do risco de osteopénia e
osteoporose, principalmente em mulheres
pós-menopaúsicas13-17. Como tal, a vigilância
periódica da densidade mineral óssea nos
doentes com síndrome de Cushing subclínica
parece justificada pelo potencial aumento do
risco de fracturas osteoporóticas.
O espectro de manifestações da síndrome
de Cushing subclínica varia desde alterações
endócrinas ligeiras isoladas, sem repercussões
clínicas, a uma síndrome de Cushing clínica
clássica. A evolução do hipercortisolismo
silencioso para a síndrome de Cushing clínica parece ocorrer raramente mas não é totalmente negligenciável. Barzon et al. estudaram 130 doentes com incidentalomas da
supra-renal, com um follow-up entre 1 e 15
anos, e calcularam um risco cumulativo estimado de 12.5% após um ano para o desenvolvimento de síndrome de Cushing nos
doentes com hipercortisolismo subclínico.
Nos doentes com adenomas não funcionantes, o risco cumulativo estimado para o
desenvolvimento de hipercortisolismo subclínico foi de 3.8% após um ano e de 6.6% após
cinco anos18. No entanto, em outras séries,
não se observou uma evolução do hipercortisolismo subclínico para uma síndrome de
Cushing clássica, apesar do desenvolvimento
de outras alterações endócrinas minor e, em
alguns casos, do crescimento do adenoma19,20.
O risco de desenvolvimento de hiperfunção é
maior nos adenomas não funcionantes com
dimensão igual ou superior a 3cm e quando
a cintigrafia com [75Se] Methylnorcholesterol
revela uma captação exclusiva pelo adenoma21. Num pequeno número de doentes pode
verificar-se uma regressão espontânea das
alterações no eixo hipotálamo-hipófisesupra-renal, sugerindo um possível padrão
cíclico na hipersecreção de cortisol20.
A interpretação dos resultados destes
estudos deve ser ponderada com cautela. A
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maioria destes estudos foi realizada a partir
de séries reunidas em centros académicos,
com amostras relativamente pequenas e
com tempo e estratégias de follow-up variáveis. Consequentemente, não são estudos
populacionais e, como tal, a generalização
dos resultados não é totalmente correcta.
Nos vários estudos analisados, verificou-se
que os protocolos relativamente aos critérios
de definição da síndrome de Cushing subclínica não eram semelhantes, tornando dificíl a sua interpretação e comparação.
Relativamente à avaliação da sensibilidade
à insulina, em nenhum dos estudos analisados esta foi realizada através da sua técnica-padrão, o clamp euglicémico hiperinsulinémico, embora os modelos utilizados
tenham sido previamente validados para
estudos epidemiológicos. Apesar das limitações referidas, as conclusões encontradas
pelos vários estudos são muito semelhantes
entre si relativamente à associação entre o
hipercortisolismo subclínico e o desenvolvimento de insulino-resistência e dos vários
factores de risco metabólicos e cardiovasculares associados. Tal facto reforça a importância da avaliação, vigilância e tratamento dos doentes com adenomas da suprarenal aparentemente não funcionantes. A
realização de estudos prospectivos populacionais randomizados, de adequado poder
epidemiológico, é fundamental para esclarecer, com maior rigor, as consequências clínicas e a história natural desta síndrome,
nomeadamente em relação a um possível
impacto na morbilidade e mortalidade destes doentes.
DIAGNÓSTICO
O diagnóstico da síndrome de Cushing
subcliníca na prática clínica é extremamente difícil. As provas hormonais usadas no
diagnóstico da síndrome de Cushing não
têm sensibilidade suficiente para detectar
hipersecreções subtis de cortisol. Por outro
93
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supra-renal nos doentes com incidentalomas
da supra-renal. Esta alteração endócrina tem
sido amplamente usada no diagnóstico da
síndrome de Cushing por ser um dos marcadores mais precoces e sensíveis de hipercortisolismo3. Recentemente tem sido investigado
o valor da determinação do cortisol salivar
da meia-noite no diagnóstico da síndrome
de Cushing subclínica, com resultados positivos mas ainda não publicados27.
Os níveis diminuídos de ACTH (adrenocorticotropina hipofisária) representam a
autonomia funcional do adenoma suprarenal, com consequente supressão da síntese hipofisária de ACTH. No entanto, as dificuldades metodológicas laboratoriais na
determinação da concentração de ACTH
nos níveis próximos dos limites da técnica
lado, a ausência de manifestações clínicas
fidedignas torna difícil a interpretação de
resultados positivos de provas e a distinção
entre verdadeiros/positivos e falsos/positivos. Deste modo, a variabilidade biológica
intrínseca à hipersecreção silenciosa de cortisol associa-se às dificuldades metodológicas, impossibilitando a definição uniforme
desta entidade2.
São várias as alterações funcionais do
eixo hipotálamo-hipófise-supra-renal que
têm sido associadas a esta síndrome, dependendo dos protocolos dos estudos realizados,
dos critérios de diagnóstico utilizados e do
número de doentes nas séries reportadas
(tabela II).
A perda do ritmo circadiano do cortisol representa a alteração do padrão diário
TABELA II: Alterações do eixo hipotálamo-hipófise-supra-renal e prevalência da síndrome de Cushing subclínica em doentes com incidentalomas da supra-renal.
nº de
doentes
Cortisol
ACTH
Não supressão do Diminuição da respos- Prevalência SCS
urinário
diminuída cortisol após PSDa ta da ACTH à CRH
%
aumentado %
66
1.5
Kasperlik- Zaluska, 1997
208
5.2
Terzolo, 199820
53
7.5
Rossi, 2000
65
1004
53
4.0
381
0.8
Autor, ano
[ref. nº]
Reincke, 199222
23
8
Mantero, 200024
Grossrubatscher, 2001
25
Bulow, 200226
7.5
12b
7.5
12
34
3.0
17
2.9
9.4
17
NR
6.0
17
23
25
NR
18.4
11
15
10
17
9.2
15
11
NR
5.7
NR
1.0
NR
1.0
c
c
b
PSD: Prova de supressão com dexametasona; NR: não reportado; SCS: síndrome de Cushing subclínica.
a – Prova de supressão nocturna com 1 mg de dexametasona com um limiar de cortisol de 5.0 µg/dl, excepto quando especificado de outra forma
b – PSD com 8mg
c – 17-hidroxicorticosteróides urinários
de secreção de cortisol provocada pelo
hipercortisolismo e é um marcador precoce
desta hipersecreção.
O aumento do cortisol livre na urina
de 24 horas é também frequente mas é
pouco sensível, pois depende da variabilidade diária na excreção de cortisol na urina,
do débito urinário e da dificuldade em obter
amostras completas de urina de 24 horas.
O aumento do cortisol sérico determinado à meia noite é uma das alterações
mais frequentes do eixo hipotálamo-hipófise-
94
não são negligenciáveis e limitam o seu
valor diagnóstico.
A resposta da ACTH e do cortisol à
CRH (hormona de libertação da corticotropina) pode estar diminuída. No entanto, a
prova com CRH não fornece informação
adicional aos níveis basais de ACTH3.
A diminuição dos níveis de dehidroepiandosterona sulfato (DHEAS) é provavelmente a alteração hormonal mais frequente
nos doentes com incidentalomas da suprarenal. Esta alteração resulta da supressão da
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ACTH pela secreção autónoma de cortisol e
consequente diminuição na síntese de
outras hormonas do córtex supra-renal.
Actualmente, há controvérsia em considerar
a diminuição da DHEAS um marcador indirecto da secreção autónoma de cortisol. Tal
facto deve-se, em parte, ao declínio na secreção de DHEAS que se verifica com a idade
que, consequentemente, influencia a interpretação deste dado laboratorial em populações com idade avançada.
A prova de supressão com dexametasona tem sido amplamente utilizada no
diagnóstico do hipercortisolismo endógeno,
inclusivamente na detecção de alterações
subtis na secreção de cortisol em doentes
com incidentalomas da supra-renal. No
entanto, os resultados dos vários estudos
publicados nesta área não podem ser directamente comparados porque utilizaram
diferentes protocolos (prova de supressão de
48 horas ou prova de supressão nocturna),
diferentes doses de dexametasona (1, 2, 3
ou 8 mg) e diferentes cut-offs (5 e 1.8 μg/dl).
Para avaliação da autonomia suprarenal na secreção de cortisol, actualmente
recomenda-se a prova de supressão nocturna com 1mg de dexametasona 1,28,
administrada às 23 horas da véspera e com
colheita para determinação de cortisol sérico às 8 horas do dia seguinte. O valor de
cut-off óptimo continua a ser debatido.
Após a administração de dexametasona, a
maioria dos invivíduos tem concentrações
séricas de cortisol inferiores a 5 μg/dl
(139.75 nmol/l), e este tem sido o valor
standard acima do qual se tem definido a
secreção autónoma de glucocorticóides clinicamente significativa. No entanto,
alguns autores sugerem que este valor é
demasiado elevado para detectar excessos
subtis de cortisol, resultando numa elevada taxa de falsos negativos, e propuseram
uma redução do cut-off para 1.8 μg/dl
(49.7 nmol/l). A utilização de um valor de
cut-off menor aumenta a probabilidade de
diagnóstico do hipercortisolismo subclínico
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mas à custa da diminuição da especificidade da prova, resultando num maior número de resultados falsos positivos 2,28. A
Endocrine Society (Sociedade Americana de
Endocrinologia), nas guidelines recentemente publicadas para o diagnóstico da
síndrome de Cushing, recomenda a utilização da prova de supressão nocturna com
1mg de dexametasona e o cut-off de 1.8
μg/dl, defendendo a utilização de provas
com maior sensibilidade para o rastreio29.
Para ultrapassar o problema dos resultados falsos positivos, tem sido preconizada
para o diagnóstico da síndrome de Cushing
subclínica a demonstração de pelo menos
dois resultados anormais concomitantes
nas provas de avaliação do eixo hipotálamo-hipófise-supra-renal (tabela III)2,3,29.
TABELA III: Diagnóstico de síndrome de Cushing subclínica.
1. Presença de massa supra-renal detectada incidentalmente (por
ecografia, TC, RNM)
2. Ausência de sinais clínicos de hipercortisolismo (obesidade centrípeta, fácies lunar, bossa de búfalo, extremidades finas com
hipotrofia muscular, estrias cutâneas de coloração púrpura)
3. Presença de 2 ou mais resultados anormais concomitantes nas
provas de avaliação do eixo hipotálamo-hipófise-supra-renal:
a. Prova de supressão nocturna com 1mg de dexametasona
⇒ Anormal se ≥ 5 µg/dl (139.75 nmol/l)
⇒ Duvidoso se ≥ 1.8 µg/dl (49.7 nmol/l) e <5 µg/dl ⇒
Ponderar mais testes diagnósticos
⇒ Normal se < 1.8 µg/dl (49.7 nmol/l)
Se anormal ou duvidosa fazer uma ou mais das seguintes
provas:
b. Cortisol (sérico ou salivar) da meia-noite
c. ACTH sérico
d. Cortisol livre na urina de 24 horas
e. Ritmo circadiano do cortisol
f. DHEAS
Contudo, outras sociedades médicas
continuam a recomendar critérios ligeiramente diferentes para o diagnóstico desta
entidade30.
Várias combinações de provas podem
ser realizadas mas, mesmo desta forma, o
diagnóstico de hipersecreção de cortisol verdadeiramente relevante para admitir uma
síndrome de Cushing subclínica é difícil.
Para determinar a melhor abordagem diagnóstica desta entidade clínica seria necessário definir em que ponto a secreção de cortisol em excesso se torna significativa, provo-
95
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cando morbilidade relevante. Actualmente
ainda não existe uma resposta definida
para esta questão, dado que a história natural desta patologia e o seu impacto na
saúde e esperança média de vida ainda são
grandemente desconhecidos.
Na ausência de critérios compatíveis
com síndrome de Cushing subclínica, recomenda-se uma reavaliação anual com a
realização de uma prova de supressão nocturna com 1mg de dexametasona. Esta reavaliação deverá ser realizada mais precocemente se clinicamente se justificar.
O risco de hiperfunção autónoma do
adenoma parece estabilizar após 3 a 4 anos.
No entanto, mais uma vez, estes dados são
baseados em estudos com amostras de reduzidas dimensões e follow-up variável28.
ABORDAGEM TERAPÊUTICA E
SEGUIMENTO
A abordagem terapêutica da síndrome
de Cushing subclínica é, ainda, fundamentalmente empírica. Tal facto deve-se à
ausência de estudos prospectivos randomizados, de adequado poder epidemiológico,
que permitam a elaboração de linhas orientadoras para a abordagem adequada desta
entidade clínica.
A supra-renalectomia é uma opção
terapêutica que deve ser considerada em
doentes com idade inferior a 40 anos e nos
doentes que apresentam alterações que
podem potencialmente ser atribuídas a uma
secreção autónoma de glucocorticóides: a)
hipertensão arterial de início recente ou
recentemente agravada; b) presença de diabetes mellitus, obesidade ou osteoporose,
principalmente se estas alterações forem
resistentes às terapêuticas médicas instituídas ou apresentarem uma rápida descompensação1,2. Os doentes com síndrome de
Cushing subclínica submetidos a supra-renalectomia devem fazer terapêutica com corticosteróides no período perioperatório, dado o
96
risco de insuficiência supra-renal, que pode
resultar numa falência hemodinâmica e
mesmo na morte, se não tratada30. O hipercortisolismo mantido a longo prazo, mesmo
que muito ligeiro, condiciona supressão da
ACTH e consequente atrofia da glândula
supra-renal contralateral, com elevado risco
de desenvolvimento de insuficiência suprarenal após supra-renalectomia unilateral.
No período pós-operatório, o doente deve ser
monitorizado periodicamente para avaliação do restabelecimento funcional do eixo
hipotálamo-hipófise-supra-renal, que pode
eventualmente demorar semanas a meses.
Após recuperação da função hipotálamohipófise-supra-renal endógena, procede-se
ao ajuste e redução gradual das doses da corticoterapia de substituição.
Em estudos reportando pequenas séries
de casos com doentes submetidos a suprarenalectomia, é evidenciada uma melhoria
nas alterações metabólicas e nos factores de
risco cardiovascular, nomeadamente no
controlo da pressão arterial, melhoria do
perfil lipídico, diminuição dos níveis de
fibrinogénio, melhoria do controlo glicémico, perda de peso e normalização dos marcadores de remodelação óssea5,8,10. No entanto, os efeitos do tratamento cirúrgico a
longo prazo e o seu impacto na qualidade
de vida dos doentes são ainda desconhecidos. São necessários estudos epidemiológicos, com maior número de doentes e maior
período de follow-up, comparando a evolução dos doentes submetidos a supra-renalectomia com a evolução dos doentes sob
tratamento conservador, para confirmação
dos benefícios reportados e, deste modo,
orientar a melhor abordagem terapêutica.
Com os dados actualmente disponíveis, não
é possível fazer uma recomendação fundamentada para a terapêutica cirúrgica nos
doentes com síndrome de Cushing subclínica. A decisão deve ser considerada individualmente, com base nas comorbilidades
apresentadas pelo doente, no julgamento
clínico e na vontade do doente2.
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Dada a associação do hipercortisolismo
subclínico com as alterações metabólicas e
factores de risco cardiovascular previamente
discutidos, a intervenção terapêutica desta
entidade clínica tem, inevitavelmente, como
prioridade a prevenção cardiovascular e o
tratamento de comorbilidades associadas.
Deste modo, os doentes não candidatos a
cirurgia devem ser submetidos a uma vigilância regular e cuidada, envolvendo alterações do estilo de vida e terapêuticas farmacológicas apropriadas a cada situação em particular.
9.
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Feocromocitoma: actualizações no
diagnóstico e tratamento
Jacinta Santos1, Isabel Paiva2, Manuela Carvalheiro3
1
2
3
Interna Complementar de Endocrinologia
Assistente Hospitalar Graduada de Endocrinologia
Directora do Serviço de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo dos Hospitais da Universidade de Coimbra, EPE
RESUMO
O feocromocitoma é uma neoplasia rara, com origem nas células cromafins. Pode apresentar
características de benignidade ou malignidade. A principal localização é na medula suprarenal, designando-se por paraganglioma quando tem origem nos gânglios do sistema nervoso simpático ou parassimpático. Em cerca de 25% dos casos aparentemente esporádicos, existem mutações que predispõem ao desenvolvimento de síndromas genéticas específicas
(Neurofibromatose tipo 1, doença de von Hippel-Lindau, Neoplasias Endócrinas Múltiplas tipo
1 e 2 e Paraganglioma Familiar). A principal manifestação clínica é a hipertensão arterial. O
diagnóstico bioquímico baseia-se na determinação das catecolaminas e metanefrinas plasmáticas e urinárias. Os principais exames imagiológicos destinados à localização do tumor são a
TAC, RM, cintigrama com MIBG e PET. A supra-renalectomia é o único tratamento definitivo.
É fundamental proceder à preparação médica pré-operatória através do bloqueio α e β e à
estabilização hemodinâmica do doente. O feocromocitoma maligno tem um prognóstico
variável, indolente ou rapidamente progressivo. Neste caso, as estratégias terapêuticas incluem
a cirurgia citorreductora, o recurso ao MIBG e a quimioterapia, todos com eficácia limitada.
PALAVRAS-CHAVE
Feocromocitoma; Catecolaminas; Mutação; Hipertensão arterial; Rastreio; Suprarrenalectomia;
Metastização.
ABSTRACT
Pheochromocytoma is a rare neoplasm, originated from chromaffin cells. It can present characteristics of benignity or malignity. The main location is on the adrenal medulla, being designated as
a paraganglioma when it’s origin in on the sympathetic or parasympathetic ganglia of the nervous system. In about 25% of apparently sporadic cases, there are mutations that predispose to
the development of specific genetic syndromes (Neurofibromatosis type 1, von Hippel-Lindau
disease, Multiple Endocrine Neoplasia type 1 and 2 and Familiar Paraganglioma). The main clinical manifestation is arterial hypertension. Biochemical diagnosis is based on determination of plasmatic and urinary catecholamines and metanephrines. The most important imaging studies destined to localize the tumour are CT, MRI, MIBG scan and PET. Adrenalectomy is the only definitive treatment. It is highly important to perform medical preoperative preparation through α and β
blockade and patient’s hemodynamic stabilization. Malignant pheochromocytoma has a variable
prognosis, being indolent or rapidly progressive. In this case, therapeutic strategies include surgical debulking, MIBG therapy and chemotherapy, all with limited efficacy.
KEYWORDS
Pheocromocytoma; Catecholamines; Mutation; Arterial hypertension; Screening; Adrenalectomy;
Metastization.
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INTRODUÇÃO
Durante a fase de desenvolvimento
embrionário, a medula supra-renal e os
gânglios do sistema nervoso simpático têm
uma origem comum, a partir da crista neural. As células endócrinas do sistema simpático-adrenal têm a capacidade de sintetizar
e segregar catecolaminas. Estas células têm
a designação de células cromafins, pelo
facto de apresentarem uma reacção histoquímica característica, após contacto com
agentes oxidantes.1
Segundo a classificação da Organização
Mundial de Saúde, publicada em 2004, os
feocromocitomas são tumores raros, com
origem nas células produtoras de catecolaminas da medula supra-renal.1 Por outro
lado, os paragangliomas são feocromocitomas de localização extra-supra-renal, que
se desenvolvem a partir dos gânglios do sistema nervoso simpático.2
O diagnóstico do feocromocitoma é fundamental, pois embora constitua uma
causa rara de hipertensão arterial, a cirurgia
torna possível o seu tratamento definitivo.
Em segundo lugar, cerca de 10 a 15% destes
tumores são malignos, estando o diagnóstico e tratamento precoce associados a um
melhor prognóstico. Paralelamente, o feocromocitoma pode constituir a primeira
manifestação clínica de uma síndroma
genética. Por último, as crises adrenérgicas
características desta patologia estão associadas a elevada morbilidade cardiovascular.3
cada 100.000 adultos. Os dados obtidos do
Registo Oncológico Nacional da Suécia
apontam para uma incidência anual de 2
casos por milhão de pessoas. No entanto,
dados obtidos a partir de autópsias realizadas em indivíduos da população geral sugerem que, na realidade, esta incidência é
superior. Consequentemente, um número
significativo de feocromocitomas não é
diagnosticado em vida, pelo facto de os
doentes serem assintomáticos, ou porque a
hipertensão arterial não foi estudada.2
O tumor ocorre em todas as faixas etárias, embora seja mais frequente na idade
adulta, sobretudo na 3ª e 4ª décadas de
vida. No entanto, nos casos diagnosticados
no decurso do estudo de incidentalomas da
supra-renal, o diagnóstico é realizado em
idades mais avançadas.3 A incidência é
semelhante em ambos os sexos.3,4
CLASSIFICAÇÃO
A maioria dos feocromocitomas são
esporádicos, com origem na medula suprarenal. No entanto, entre 9 e 23% dos casos,
o tumor desenvolve-se a partir de tecido cromafim extra-supra-renal.3,4
Embora a maioria destes tumores apresente características de benignidade, 26 a
35% dos casos são malignos. Na realidade,
cerca de 10% dos doentes apresentam
metastização na altura do diagnóstico.1,5
ETIOLOGIA – ASPECTOS GENÉTICOS
PREVALÊNCIA
A prevalência dos feocromocitomas não
se encontra bem estabelecida, estando no
entanto disponíveis os resultados de alguns
estudos epidemiológicos efectuados em diferentes regiões geográficas. Num estudo
publicado pela Clínica Mayo, em 1983, a
prevalência anual desta patologia, no estado do Minnesota, EUA, é de 1 a 2 casos em
100
O feocromocitoma pode ser esporádico,
ou surgir no contexto de uma síndroma
genética específica. Estima-se que cerca de
25% dos doentes com feocromocitomas
aparentemente esporádicos, sem história
familiar da doença, sejam portadores de
mutações germinativas que predispõem ao
desenvolvimento de uma dessas síndromas.
Nestas circunstâncias, este tumor pode ser
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considerado “a ponta do iceberg”, sugerindo a existência de um quadro clínico subjacente mais vasto, a aguardar investigação
diagnóstica.1
Neste contexto, as síndromas genéticas a
considerar são a Neurofibromatose tipo 1, a
Doença de von Hippel-Lindau, as
Neoplasias Endócrinas Múltiplas (tipo 1 e
tipo 2) e as Síndromas Feocromocitoma /
Paraganglioma.
1. NEUROFIBROMATOSE TIPO 1 OU
DOENÇA DE VON RECKLINGHAUSEN
O diagnóstico da neurofibromatose tipo
1 (NF-1) ocorre habitualmente na infância e
adolescência. Esta é uma patologia de
transmissão autossómica dominante, causada por mutações inactivadoras do gene
NF-1, localizado no braço longo do cromossoma 17. Trata-se de um gene supressor
tumoral, que codifica a neurofibromina,
uma proteína envolvida na inibição do
gene Ras, que controla o crescimento e diferenciação celular.
O diagnóstico clínico requer a presença
de dois dos seguintes critérios:
– Seis ou mais manchas cutâneas tipo
“café com leite”;
– Pelo menos dois neurofibromas cutâneos;
– Um neurofibroma plexiforme;
– Dois ou mais hamartomas benignos
da íris;
– Um glioma do nervo óptico;
– Displasia ou pseudoartrose do osso
esfenóide;
– Familiar do primeiro grau com neurofibromatose.1
Nos portadores desta patologia, o feocromocitoma surge em 0,1 a 5,7% dos casos.2
No entanto, tratando-se de doentes com
neurofibromatose e hipertensão arterial, a
prevalência é bastante superior (20 a 50%).
Relativamente à apresentação clínica,
em 90% dos casos o feocromocitoma é
benigno, em 84% trata-se de um tumor
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único e 6% correspondem a paragangliomas. Estes tumores segregam essencialmente noradrenalina, sendo frequentemente
assintomáticos, o que justifica o facto de
poderem atingir elevadas dimensões.1
2. DOENÇA DE VON HIPPEL-LINDAU
(VHL)
Trata-se de uma patologia rara, de
transmissão autossómica dominante, com
uma incidência de um caso em cada 36.000
recém-nascidos. É condicionada por mutações no gene supressor tumoral VHL, localizado no braço curto do cromossoma 3. Este
gene codifica a proteína VHL, envolvida na
formação dos vasos sanguíneos, através da
regulação do Factor Induzido pela Hipóxia
(HIF-1α).
Os portadores da mutação do gene VHL
têm elevada predisposição para o desenvolvimento de tumores benignos e malignos
em múltiplos órgãos. Os tumores característicos da doença de von Hippel-Lindau são
os seguintes:
– Hemangioblastomas da retina;
– Hemangioblastomas do cerebelo e
espinhal medula;
– Feocromocitoma;
– Carcinoma de células renais;
– Tumores dos ilhéus pancreáticos;
– Quistos e cistadenomas do rim, pâncreas e epidídimo.1
Relativamente ao feocromocitoma, é
diagnosticado em cerca de 20% dos doentes
portadores desta síndroma, sobretudo na
segunda década de vida, podendo constituir
a primeira manifestação clínica da doença.
Habitualmente são benignos, segregando
sobretudo noradrenalina. A localização preferencial é a glândula supra-renal, podendo
ser bilaterais em 50% dos casos.1,2
De acordo com a sua expressão clínica, a
Doença de von Hippel-Lindau pode ser classificada em quatro subtipos, destacando-se o
feocromocitoma como elemento essencial
na determinação desta classificação.
101
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– VHL tipo 1: diagnóstico de hemangioblastomas da retina e do sistema nervoso central e de carcinoma renal,
mas sem risco de feocromocitoma.
– VHL tipo 2A: presença de hemangioblastomas e de feocromocitoma, associado a baixo risco de carcinoma renal.
– VHL tipo 2B: presença de hemangioblastomas e de feocromocitoma, associado a elevado risco de carcinoma
renal.
– VHL tipo 2C: apenas desenvolvem feocromocitoma.1,6
3. NEOPLASIAS ENDÓCRINAS MÚLTIPLAS TIPO 1 (MEN 1)
Esta síndroma é causada por uma
mutação inactivadora do gene MEN-1, localizado no braço longo do cromossoma 11,
que codifica a proteína menina.
Transmite-se de modo autossómico
dominante, caracterizando-se clinicamente
pela presença de: hiperparatiroidismo primário, tumores dos ilhéus pancreáticos e
adenomas hipofisários. Os feocromocitomas surgem raramente, tratando-se nesses
casos de tumores únicos e benignos, produtores sobretudo de noradrenalina.1,8
4. NEOPLASIAS ENDÓCRINAS MÚLTIPLAS TIPO 2 (MEN 2)
Trata-se também de uma síndroma de
transmissão autossómica dominante, causada por uma mutação activadora do protooncogene RET, localizado no braço longo
do cromossoma 11, que codifica um receptor tirosina-cinase, envolvido na regulação
da proliferação celular e apoptose.1,2
De acordo com a expressão clínica,
podemos estar perante uma Neoplasia
Endócrina Múltipla tipo 2A ou tipo 2B. No
primeiro caso, verifica-se a presença de carcinoma medular da tiróide em mais de 95%
dos casos, hiperparatiroidismo em cerca de
35% e feocromocitoma em cerca de 50%.
102
No MEN 2B, para além do carcinoma
medular da tiróide e do feocromocitoma,
verifica-se tendência para o desenvolvimento de ganglioneuromas mucosos.1,2
Relativamente ao feocromocitoma, este
desenvolve-se em cerca de 50% dos portadores da mutação, tratando-se habitualmente
de um tumor benigno localizado na glândula supra-renal.1,8 Cerca de 50% dos doentes desenvolvem feocromocitomas bilaterais, de forma assíncrona, isto é, diferidos
no tempo. Contrariamente ao que acontece
nas outras síndromas genéticas, estes tumores segregam adrenalina em grande quantidade, condicionando manifestações clínicas
mais precocemente.
Por último, há a salientar o facto de as
probabilidades de desenvolvimento de feocromocitoma serem diferentes, consoante a
mutação específica do gene RET. Deste
modo, destacam-se as mutações do codão
634 no MEN 2A e as mutações do codão 918
no MEN 2B, altamente predisponentes.
5. SÍNDROMAS FEOCROMOCITOMA
/ PARAGANGLIOMA
Os paragangliomas são tumores raros.
De acordo com a sua origem, são classificados em dois tipos: simpáticos e parassimpáticos.
Os paragangliomas simpáticos são
tumores derivados da cadeia simpática,
localizados no tórax, abdómen ou pélvis,
frequentemente malignos. O quadro clínico
resulta do padrão de secreção de catecolaminas e das dimensões do tumor, com o
consequente efeito de massa.1
Os paragangliomas parassimpáticos
desenvolvem-se sobretudo nos gânglios
parassimpáticos localizados na cabeça e
pescoço, adjacentes aos grandes vasos sanguíneos. Esta é a localização preferencial,
tratando-se habitualmente de tumores
benignos, silenciosos do ponto de vista bio-
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químico, diagnosticados devido às consequências do efeito de massa, tais como
nódulo cervical palpável ou paralisia de
nervos craneanos.
A nível torácico e abdominal, podem ter
qualquer tipo de localização (peri-aórtica,
peri-cava, peri-renal, mediastínica, intracardíaca, pulmonar, medular, duodenal,
vesical,...). A clínica resulta essencialmente
da secreção de catecolaminas.
Por último, quando a localização é
retroperitoneal são diagnosticados pela presença de dor e massa palpável. São essencialmente malignos, podendo metastizar
para os pulmões, gânglios linfáticos e ossos.
A Síndroma Paraganglioma Familiar
resulta de mutações em genes que codificam subunidades da succinato desidrogenase (SDH) do complexo mitocondrial II,
essencial no ciclo de Krebs e na cadeia respiratória mitocondrial.2 A transmissão processa-se de modo autossómico dominante em
todos os casos. Esta síndroma pode ser classificada em três tipos, de acordo com o gene
que sofreu mutação.
• SDHB: gene localizado no braço curto
do cromossoma 1, cuja mutação condiciona o desenvolvimento de paragangliomas simpáticos, sobretudo
malignos.
• SDHC: gene localizado no braço longo
do cromossoma 1, cuja mutação condiciona o desenvolvimento de paragangliomas parassimpáticos da cabeça e
do pescoço, essencialmente benignos.
• SDHD: gene localizado no braço longo
do cromossoma 11, cuja mutação condiciona o desenvolvimento de paragangliomas parassimpáticos familiares isolados da cabeça e pescoço, raramente
malignos. A sua transmissão apresenta
uma particularidade, o “imprinting
genómico materno”, isto é, apenas os
doentes do sexo masculino transmitem
a patologia aos descendentes.1,9
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Como previamente referido, cerca de
25% dos feocromocitomas e paragangliomas são hereditários, causados por mutações germinativas conhecidas. Actualmente,
encontra-se disponível a pesquisa dos quatro
principais genes envolvidos na sua patogénese: protooncogene RET, gene VHL, NF-1 e
SDH. Deste modo, torna-se necessário estabelecer quais os indivíduos que deverão efectuar estudo genético. Estas indicações
variam, de acordo com os autores, sendo
recomendado pela maioria nas seguintes
situações: diagnóstico do feocromocitoma
em idade precoce; presença de tumores bilaterais; tumores de localização extra-suprarenal; tumores múltiplos; feocromocitomas
malignos; história familiar de síndromas
genéticas predisponentes.1
No quadro seguinte (Quadro 1) apresentam-se, resumidamente as Síndromas genéticas associadas a feocromocitoma.
QUADRO 1
Síndroma
MEN 2A
MEN 2B
VHL
Paraganglioma
familiar
NEF 1
Mutação
RET
RET
VHL
SDHD, SDHB,
SDHC
NF-1
Risco de
feocromocitoma
50%
50%
10 a 30%
20%
1 a 5%
FISIOPATOLOGIA
O feocromocitoma apresenta uma elevada taxa de produção de catecolaminas,
podendo atingir um nível de secreção cerca
de vinte vezes superior ao da glândula
supra-renal normal.1 Esta hipersecreção persistente e autónoma, associa-se à ausência
do mecanismo de inibição da tirosina hidroxilase por retrocontrolo negativo. Assim, as
catecolaminas são produzidas em quantidades que excedem a capacidade de armazenamento pelas vesículas, acumulando-se
no citoplasma, onde são submetidas a um
processo de metabolização intracelular.
Quer as catecolaminas em excesso, quer os
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seus metabolitos sofrem difusão para a circulação sanguínea, atingindo os diferentes
órgãos alvo, onde desencadeiam os seus
efeitos. Há a destacar o predomínio de noradrenalina no interior das células tumorais,
contrariamente ao que acontece nas células
normais da medula supra-renal.
Tradicionalmente, a hipertensão arterial
induzida pelo feocromocitoma era interpretada como resultando apenas da acção das
catecolaminas circulantes sobre os receptores do sistema cardiovascular, estando a
actividade do sistema nervoso simpático
(SNS) normal ou deprimida. Posteriormente,
estudos clínicos e experimentais, mostraram
que a actividade do SNS permanece intacta,
podendo até ser potenciada, o que constitui
um factor de manutenção da hipertensão
arterial. Desta forma, a estimulação do sistema nervoso pelo stress, dor ou anestesia,
poderá induzir uma libertação de catecolaminas nas fendas sinápticas, desencadeando uma crise hipertensiva.1
Os feocromocitomas têm a capacidade
de segregar outros peptídeos, alguns dos
quais podem contribuir para o quadro clínico. Destacam-se a PTHrP (hipercalcémia), a
ACTH (síndroma de Cushing), a eritropoietina (eritrocitose), a IL-6 (febre) e o neuropeptídeo Y. Este último tem acção vasoconstrictora, através do aumento da resistência
vascular periférica e coronária, por actuação em receptores acoplados à proteína G.
A cromogranina A, não produzindo manifestações clínicas, tem sido encarada como
um marcador tumoral potencial. Por último, em situações de feocromocitoma maligno, é frequente a existência de níveis elevados de Enolase Neurónio Específica (NSE).1,2
DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Os feocromocitomas apresentam manifestações clínicas muito variáveis, o que
104
implica considerar um conjunto de patologias ao estabelecer o diagnóstico diferencial. As principais patologias a ter em conta
são: hipertensão arterial essencial, hipertensão renovascular por estenose da artéria
renal, patologia psiquiátrica (nomeadamente ansiedade e distúrbio de pânico),
hipertiroidismo, síndroma carcinóide,
taquicardia paroxística, menopausa, enxaqueca, lesões intracraneanas, epilepsia, préeclampsia e eclampsia, hipoglicemia, ingestão de drogas (cocaína, anfetaminas, efedrina,...), infecções agudas, apneia obstrutiva
do sono e mastocitose.1,2
DIAGNÓSTICO
1. CLÍNICO
O quadro clínico é caracterizado por
manifestações diversas, dependendo da
variação da secreção hormonal, do padrão
de libertação, e das diferenças individuais
na sensibilidade às catecolaminas. Na prática, as manifestações resultam dos efeitos
cardiovasculares, viscerais e metabólicos
das catecolaminas, sendo semelhantes nos
casos esporádicos e familiares. A principal
diferença reside na idade de apresentação,
mais precoce no segundo caso.
A principal manifestação clínica é a
hipertensão arterial, podendo ser paroxística (48%) ou persistente (29%), ligeira ou
severa, frequentemente resistente à terapêutica antihipertensora instituída. Um aspecto
a salientar é a ausência de correlação entre
os níveis de catecolaminas circulantes e o
grau de hipertensão arterial, o que pode ser
justificado pelos seguintes factos:
– diferenças individuais na sensibilidade
dos vasos às catecolaminas;
– mecanismo de “down regulation” (a
libertação constante de catecolaminas
condiciona redução da sensibilidade
dos receptores adrenérgicos);
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– resposta adaptativa com redução da
volémia, secundária à vasoconstrição
mantida;
– secreção de substâncias vasodilatadoras pelo tumor, que modificam a resposta dos vasos às catecolaminas.3
Uma crise hipertensiva típica caracteriza-se pela elevação súbita da tensão arterial, de forma espontânea ou induzida por
uma cirurgia, drogas, palpação abdominal
ou algaliação. Os doentes referem cefaleias
(80%), sudorese (70%) e palpitações (60%).
A duração da crise é variável, desde minutos a horas. A periodicidade é também
extremamente variável, desde vários episódios diários até intervalos de meses sem crises. No entanto, a tendência é para o
aumento progressivo da frequência e da
gravidade das crises.1,2,3
No que diz respeito a outras manifestações clínicas, destacam-se: ansiedade, taquicardia, arritmia, sensação de morte eminente, parestesias, tremor das extremidades, toracalgia, palidez ou rubor facial, tonturas, síncope, náuseas e dor abdominal.
Cerca de 8% dos doentes encontram-se
perfeitamente assintomáticos, habitualmente aqueles que têm formas familiares
da doença, ou grandes tumores quísticos,
no interior dos quais as catecolaminas são
metabolizadas e fracamente libertadas. Os
casos assintomáticos são diagnosticados,
sobretudo, durante o estudo de incidentalomas da supra-renal.1,10 Destes, cerca de 5%
revelam tratar-se de feocromocitomas.
Relativamente aos tumores malignos, a
sua apresentação clínica é semelhante à dos
benignos, com excepção da existência de
sintomas iniciais relacionados com a malignidade: dores ósseas, massas palpáveis,
alterações neurológicas ou dispneia.3
Os episódios agudos cardiovasculares
(arritmias, choque, miocardite, miocardiopatia dilatada, insuficiência cardíaca e edema
agudo do pulmão) e neurológicos (convul-
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sões ou efeitos neurológicos focais) podem ser
o quadro clínico de apresentação e inclusivamente constituir a causa de morte. Deste
modo, estima-se que cerca de um terço dos
feocromocitomas sejam diagnosticados apenas após a morte do doente.1,11
2. BIOQUÍMICO
O objectivo da avaliação laboratorial,
em doentes com clínica sugestiva de feocromocitoma, é demonstrar a produção excessiva de catecolaminas, principalmente
noradrenalina e adrenalina. Na maioria
dos casos, o diagnóstico é possível através
do doseamento destas e dos seus metabolitos no plasma e na urina.3 Dada a heterogeneidade destes tumores, têm diferentes
padrões qualitativos de secreção, assim
como variação temporal na sua actividade.
Apenas a combinação de vários testes permite aumentar a sensibilidade e especificidade.1
Catecolaminas livres urinárias e seus
metabolitos
Para detectar a presença de feocromocitoma, o doseamento da adrenalina, noradrenalina e seus metabolitos (metanefrina,
normetanefrina e ácido vanilmandélico)
são frequentemente necessários. A demonstração de um nível de noradrenalina urinária superior a 170 μg/24 horas, adrenalina
superior a 35 μg/24 horas, metanefrinas
totais superiores a 1,8 mg/24 horas e ácido
vanilmandélico superior a 11 mg/24 horas
tornam o diagnóstico de feocromocitoma
altamente provável.1,4
Um aspecto a destacar é a interferência
de fármacos, nomeadamente antidepressivos tricíclicos, inibidores da MAO, buspirona, descongestionantes nasais, levodopa e
diuréticos nestes doseamentos, pelo que
deverão ser interrompidos pelo menos duas
semanas antes das colheitas. Para além
disso, alguns alimentos, tais como o café,
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chá, chocolate e baunilha podem também
interferir.2,3
Há ainda a referir a possibilidade de
elevação dos níveis de catecolaminas em
situações de stresse e ansiedade, sendo as
metanefrinas muito menos afectadas.1
Catecolaminas plasmáticas
A maioria dos doentes com feocromocitomas hormonalmente activos apresentam
elevação da adrenalina e da noradrenalina,
alguns exclusivamente da noradrenalina e
outros apenas da adrenalina. Estas diferenças reflectem variações na expressão da
enzima responsável pela conversão da
noradrenalina em adrenalina.1
A colheita de sangue deve ser efectuada
em repouso, cerca de 20 minutos após a
colocação do catéter numa veia periférica,
devendo-se proceder à determinação da tensão arterial antes da colheita.3 Ainda assim,
é impossível excluir um feocromocitoma se
a colheita for realizada num período em
que o doente está normotenso e assintomático. Paralelamente, catecolaminas plasmáticas normais num doente hipertenso e sintomático tornam pouco provável o diagnóstico de feocromocitoma.1
Metanefrinas plasmáticas fraccionadas
As metanefrinas plasmáticas são continuamente produzidas e libertadas pelo
tumor, em contraste com as catecolaminas
plasmáticas, que são libertadas de modo
intermitente.
As técnicas recentes de cromatografia
líquida de alta pressão (HPLC) permitem o
doseamento das várias fracções das metanefrinas (metanefrina, normetanefrina e
metoxitiramina, o metabolito da dopamina), separadamente. O valor diagnóstico da
determinação fraccionada destes metabolitos é superior ao das metanefrinas totais,
uma vez que permite uma melhor detecção
de tumores que produzem predominante-
106
mente um dos três metabolitos. Apresenta
elevada sensibilidade, funcionando como
um excelente método de rastreio de feocromocitoma.
Deverão efectuar o rastreio bioquímico
desta patologia todos hipertensos jovens e
os doentes com manifestações clínicas
sugestivas, principalmente: paroxismos de
palpitações, cefaleias e sudorese, hipertensão arterial lábil, história familiar de feocromocitoma, manifestações das síndromas
genéticas associadas ao feocromocitoma,
incidentaloma da supra-renal e crises de
hipertensão ou arritmias desencadeadas
por fármacos, pela anestesia, cirurgia ou
parto. O principal problema destes doseamentos é a sua disponibilidade limitada.
Perante um doseamento de metanefrina
superior a 236 pg/mL ou normetanefrina
superior a 400 pg/mL, a probabilidade de
feocromocitoma é muito elevada, o que
implica a imediata realização de exames
complementares para estabelecer a sua
localização.1,12
Cromogranina A sérica
A cromogranina A tem sido sugerida
como um doseamento alternativo, útil para
o diagnóstico de feocromocitoma, uma vez
que a sua secreção e determinação não são
influenciadas pelos antihipertensores habitualmente utilizados. É considerado um
marcador com elevada sensibilidade,
porém com baixa especificidade. A sua eliminação ocorre por via renal, daí que em
doentes insuficientes renais crónicos, um
valor elevado possa constituir um falso
positivo. Os níveis séricos deste marcador
são directamente proporcionais à massa
tumoral, e particularmente elevados em
caso de malignidade. É sobretudo um marcador tumoral útil no seguimento destes
doentes, uma vez que os seus níveis sofrem
elevação no contexto de uma recidiva ou
metastização.1,3
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Testes farmacológicos
A indicação para realização de testes
farmacológicos tem lugar em doentes que
apresentem valores intermédios nos doseamentos de catecolaminas, habitualmente
entre 500 e 2000pg/mL.
Os testes de estimulação, com administração de histamina ou glucagon, são raramente utilizados. O glucagon estimula a
produção de catecolaminas, sendo o teste
positivo se ocorrer uma elevação três vezes
superior ao valor inicial, ou se as catecolaminas se elevarem acima de 2000 pg/mL.
Este teste apresenta elevada especificidade,
mas baixa sensibilidade, sendo fundamental monitorizar a tensão arterial do doente
durante a sua realização e ter disponível
fentolamina para o tratamento de uma
eventual crise hipertensiva que o teste possa
desencadear.
Os testes supressivos são considerados
mais fisiológicos e seguros do que os de estimulação, sendo o teste da clonidina o mais
utilizado. A clonidina é um agonista dos
receptores α2 adrenérgicos localizados no
cérebro e sistema nervoso simpático, com a
capacidade de bloquear o tónus simpático,
por inibição da libertação da noradrenalina. Através do teste da clonidina, pretendese detectar produção autónoma de catecolaminas. O teste é realizado com o doente em
jejum, em decúbito dorsal, procedendo-se à
determinação das catecolaminas e metanefrinas plasmáticas antes e 3 horas após a
administração da clonidina oral numa dose
de 0,3 mg por cada 70 Kg de peso corporal.
Numa situação de normalidade, observa-se
uma redução das catecolaminas plasmáticas superior a 50% do valor inicial e para
níveis inferiores a 500 pg/mL. No caso da
presença de feocromocitoma, não se verifica
uma redução significativa destes valores,
embora a tensão arterial possa diminuir.1
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3. TOPOGRÁFICO
Somente após a confirmação bioquímica
do feocromocitoma se deve partir para os
exames imagiológicos destinados à sua
localização. Habitualmente, recorre-se à
combinação de dois exames imagiológicos e
funcionais para uma localização precisa.1,3
TAC e RM
A Tomografia Axial Computorizada
(TAC) e a Ressonância Magnética (RM) são
os exames de primeira linha, devendo-se
proceder inicialmente ao estudo abdominal, uma vez que a localização mais frequente destes tumores é na medula suprarenal.
Na TAC, os pequenos feocromocitomas
medindo 1 a 2 cm, apresentam um aspecto
homogéneo, com densidade de tecidos
moles (40 a 50 UH) e captação uniforme do
contraste. Os tumores maiores podem ser
heterogéneos, com àreas de baixa densidade, nomeadamente por presença de zonas
de necrose tumoral ou hemorragia.1,13 Na
RM, os feocromocitomas são isointensos
relativamente ao músculo e fígado em T1 e
hiperintensos em T2.2
No caso de ausência de tumor intraabdominal, procede-se ao estudo das
regiões cervical e torácica.
Embora a TAC apresente uma elevada
sensibilidade, a RM é superior, constituindo
o método de eleição em crianças e grávidas,
pela menor exposição à radiação. As suas
principais desvantagens são o custo e as
contra-indicações gerais da técnica (próteses metálicas, pacemaker, claustrofobia,...).1,3
Um aspecto a destacar é a presença de
massas na supra-renal (incidentalomas) em
5 a 9% da população geral, 90% dos quais
são benignos e 85% não funcionantes. No
entanto, a sua identificação implica a realização de um estudo com o objectivo de
excluir a existência de hipersecreção e de
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malignidade (tumores primitivos ou metastização para a supra-renal).1
Cintigrama com I
-MIBG e I123-MIBG
131
A meta-iodo-benzil-guanidina tem
semelhança estrutural com a noradrenalina, sendo captada e concentrada nos grânulos de secreção. Este composto não é
metabolizado, garantindo uma avaliação
funcional do nódulo suspeito de feocromocitoma, após administração do composto
marcado. Apresenta uma elevada sensibilidade (83 a 100%) e especifidade superior a
95%, o que permite confirmar a presença do
feocromocitoma, detectar tumores pequenos e multifocais, por vezes não diagnosticados pela TAC e RM e pesquisar metástases. Os falsos positivos são raros, mas pode
haver falsos negativos, resultantes da interacção com fármacos, nomeadamente o
haloperidol e o labetalol.2
Tomografia com Emissão de Positrões
(PET)
A PET utiliza como marcador o 18 Ffluordeoxiglicose, um composto absorvido
pelos tecidos metabolicamente activos. Este
método tem menor especificidade que o cintigrama com MIBG, porque se verifica fixação em todos os tecidos com elevada taxa
metabólica, nomeadamente na presença de
infecção ou inflamação. Além disso, tratase de um método dispendioso.2
Cintigrama de pesquisa de receptores
da somatostatina
Cerca de 70% dos feocromocitomas
expressam receptores da somatostatina,
particularmente dos subtipos 2 e 4, daí que
a utilização do octreótido, um análogo da
somatostina, possa permitir a identificação
destes tumores. No entanto, esta técnica
tem uma baixa sensibilidade (25%).2
108
TERAPÊUTICA:
Após a localização precisa do tumor, a
etapa seguinte consiste na sua remoção
cirúrgica, com o objectivo de estabelecer a
cura definitiva nos casos benignos e de evitar a disseminação metastática nos malignos.1
PREPARAÇÃO PRÉ-OPERATÓRIA
A preparação pré-operatória tem como
objectivos controlar a hipertensão arterial,
evitar a ocorrência de paroxismos e corrigir
uma eventual hipovolémia, estabilizando o
doente do ponto de vista hemodinâmico,
antes de qualquer procedimento cirúrgico.
Caso contrário, os doentes correm o risco de
desenvolver hipotensão grave e mesmo choque hipovolémico, após a remoção do
tumor, dado o consequente desaparecimento da vasoconstrição.
1. BLOQUEIO ALFA
Tem como objectivo principal evitar a
libertação súbita de catecolaminas durante
a cirurgia. O fármaco de eleição é a fenoxibenzamina, um bloqueador α1 e α2 adrenérgico, não competitivo e de acção prolongada. A dose diária inicial é 10mg, devendo
ser aumentada progressivamente, em cada
três a cinco dias, até que a tensão arterial
seja inferior a 140/90 mmHg. Os principais
efeitos adversos são habitualmente bem
tolerados, incluindo cefaleias, congestão
nasal e taquicardia reflexa. Este fármaco
deve ser suspenso 48 horas antes da cirurgia, devido à sua longa semi-vida. Durante
a preparação do doente, a tensão arterial e
a frequência cardíaca devem ser avaliadas
diariamente.
Os fármacos alternativos são a prazosina e a doxazosina, bloqueadores α1 específicos, competitivos e com menor duração de
acção. Estes devem ser suspensos apenas 8
horas antes da cirurgia.
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Em alternativa, pode-se recorrer aos bloqueadores dos canais de cálcio, nomeadamente nifedipina, habitualmente bem tolerada.2,3
2. BLOQUEIO BETA
O bloqueio dos receptores β está indicado no caso de se verificar o aparecimento ou
persistência de taquicardia e arritmias.
Deverá ser iniciado somente após o início
do bloqueio β, uma vez que isoladamente
pode desencadear uma crise hipertensiva. O
fármaco de eleição é o propanolol.2,3
Cirurgia
A supra-renalectomia é a única terapêutica definitiva, ao remover todos os focos
de tecido tumoral. A cirurgia pode ser realizada por via aberta ou laparoscópica, esta
última cada vez mais utilizada.
Nas últimas décadas, verificou-se uma
redução progressiva da mortalidade cirúrgica, que actualmente é de cerca de 2,4%.
Para esta melhoria contribuiu o treino e
diferenciação das equipas cirúrgicas, o uso
adequado de hipotensores e o controlo
hemodinâmico rigoroso intra e pós-operatório.1
Durante a cirurgia, é fundamental
manter uma vigilância apertada dos parâmetros vitais, pela possibilidade de ocorrência de eventos potencialmente fatais:
– Crise hipertensiva, como consequência do pneumoperitoneu, na laparoscopia, ou por manipulação directa do
tumor. O tratamento tem de ser imediato, sendo o nitroprussiato de sódio
o fármaco de eleição;
– Hipotensão e choque, por redução
brusca da volémia, previamente compensada pela vasoconstrição extrema;
– Arritmias ventriculares e supra-ventriculares;
– Hipoglicemias, resultantes da libertação súbita de catecolaminas no pós-
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operatório, com aumento da secreção
de insulina.3
Avaliação pós-operatória
Após a remoção da massa tumoral, as
crises adrenérgicas devem cessar de imediato. No entanto, o doente pode manter uma
hipertensão transitória, no pós-operatório
precoce, pelo facto de ocorrer a libertação de
reservas de catecolaminas a partir das terminações adrenérgicas. Se a hipertensão se
mantiver para além desse período, a justificação pode ser a existência de um resíduo
tumoral ou a eventual ocorrência de uma
lesão da artéria renal durante a cirurgia,
com indução de hipertensão renovascular.
A normalização das catecolaminas e
metanefrinas plasmáticas e urinárias apenas deverá ser avaliada, em média, dez dias
após a intervenção cirúrgica. Se permanecerem elevadas, há que ponderar a hipótese
de realização de um cintigrama com MIBG,
para detecção de eventuais metástases.3
Tratamento do feocromocitoma
maligno
O tratamento do feocromocitoma
maligno inclui a cirurgia citorreductora, o
controlo farmacológico da sintomatologia,
a radioterapia e a terapêutica sistémica
antineoplásica.
A cirurgia citorreductora (“debulking”) é
considerada paliativa, mas permite reduzir
a exposição aos elevados níveis de catecolaminas circulantes e pode, eventualmente,
melhorar a resposta a outras terapêuticas.
Os fármacos bloqueadores α adrenérgicos, os bloqueadores dos canais de cálcio e a
α-metiltirosina permitem apenas uma
melhoria clínica, através da redução da síntese de catecolaminas.
A utilização da radioterapia convencional e dos outros métodos de acção local,
nomeadamente a crioablação, tem como
109
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objectivo aliviar as complicações locais,
sobretudo as metástases ósseas, pois o feocromocitoma apresenta elevada resistência
à radioterapia.
Em contraste, a terapêutica com MIBG,
um método introduzido em 1983, induz
reduções tumorais, sobretudo parciais, em
24 a 45% dos casos. Deste modo, pode permitir alcançar a estabilização da doença e
alívio da sintomatologia. Pode ser utilizada
isoladamente ou associada à quimioterapia, apresentando uma ligeira toxicidade,
particularmente trombocitopenia, náuseas
e disfunção tiroideia.
Em 1985, foi proposto um protocolo de
quimioterapia que inclui ciclos de ciclofosfamida, vincristina e dacarbazina. Apesar
da sua toxicidade, sobretudo a nível neurológico e medular, permite uma remissão
parcial ou completa em 57% dos casos. No
entanto, este benefício tem curta duração,
com períodos de remissão inferiores a dois
anos. Existem relatos esporádicos de outros
protocolos, nomeadamente utilizando cisplatina, 5-fluoruracilo e talidomida, com
eficácia limitada.
Por último, os análogos da somatostina
(octreótido e lanreótido) têm sido experimentados, também com eficácia limitada.
Em resumo, não existe uma terapêutica
eficaz para o feocromocitoma maligno,
embora alguns doentes respondam favoravelmente à quimioterapia ou à radioterapia
com MIBG. Uma vez que a história natural
da doença é extremamente variável, nos
casos de doença rapidamente progressiva, a
abordagem de primeira linha deverá ser a
quimioterapia e nos casos lentamente progressivos a terapêutica com MIBG. No caso
de falência desta, poder-se-à então recorrer
à quimioterapia. Os análogos da somatostatina são fármacos de última linha, com
indicação caso falhem as outras terapêuticas.1,14
110
EVOLUÇÃO E PROGNÓSTICO
O feocromocitoma é, em geral, um
tumor benigno. Os factores associados ao
bom prognóstico são o diagnóstico precoce,
a excisão total do tumor primário e a excisão agressiva de tumores recidivantes e de
metástases.
O diagnóstico de doença maligna é estabelecido pela presença de metástases em
locais onde normalmente não existe tecido
cromafim. Os dados da literatura apontam
para que 10 a 15% sejam malignos, sendo
os órgãos preferenciais de metastização os
gânglios linfáticos, fígado, ossos e pulmões.
Os principais factores sugestivos de
malignidade são os seguintes: elevadas
dimensões do tumor (superior a 6 cm), invasão das estruturas locais verificada durante
a cirurgia, localização extra-supra-renal,
aneuploidia ou tetraploidia do DNA das
células, reduzida expressão da subunidade
inibina/activina βB e expressão do neuropepídeo Y.1
Os tumores benignos têm um excelente
prognóstico, com sobrevida de 96% ao 5
anos.2 No que diz respeito aos malignos, a
sobrevida média é bastante inferior, cerca
de 44% aos 5 anos. O doente pode ter intervalos livres de sintomas de duração muito
variável, desde meses a anos. Por outro
lado, pode surgir metastização vários anos
após a remoção cirúrgica de um tumor aparentemente benigno, o que demonstra a
incapacidade de previsão de quais os tumores que evoluem para a malignidade.14
No caso do feocromocitoma maligno, a
evolução da doença também é muito diversa, existindo doentes nos quais a progressão
é extremamente rápida e progressiva, culminando com a morte, enquanto que em
outros doentes é bastante indolente, ocorrendo lentamente ao longo de vários anos. 2,3,14
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SEGUIMENTO
Dada a probabilidade de recorrência do
feocromocitoma, o seguimento é para toda
a vida do doente, particularmente quando
se trata de formas hereditárias, ou de localização extra-supra-renal. O seguimento é
clínico, bioquímico e imagiológico, devendo
ser trimestral no primeiro ano, e anual nos
primeiros cinco a dez anos.1
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Características clínico-laboratoriais e
sobrevida em doentes com tumores
neuroendócrinos do estômago
Ana Candeias1, John Preto2, José Manuel Lopes3
Aluna do 6ºano do Mestrado Integrado em Medicina, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto
Serviço de Cirurgia do Hospital de São João, EPE, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP)
3
Serviço de Anatomia Patológica do Hospital de São João, EPE, Professor Associado da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto
(FMUP), Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto (IPATIMUP)
1
2
Correspondência
Ana Candeias › E-mail: [email protected]
RESUMO
Os tumores neuroendócrinos (NETs) do estômago são neoplasias raras, correspondendo a <1%
das neoplasias gástricas. Na maioria dos casos, os tumores neuroendócrinos do estômago derivam das células neuroendócrinas idênticas às células enterocromafins (Enterochromaffin-like ECL) que estão envolvidas no controlo da secreção ácida no estômago. Os NETs gástricos são
classificados clinicamente em três tipos, de acordo com a patologia gástrica associada: o tipo I,
que ocorre em doentes com gastrite crónica atrófica; o tipo II, que ocorre associado à sindroma de Zollinger-Ellison (ZES); e o tipo III, também designado de NET gástrico esporádico, que
não se associa às patologias gástricas dos outros subtipos.
Os NETs gástricos do tipo I e II ocorrem com hipergastrinemia. Apesar da gastrina poder causar hiperplasia e displasia das ECL não é suficiente para causar desenvolvimento tumoral. Cofactores como mutações, factores de crescimento e alterações nas proteínas do mesênquima
têm vindo a ser propostos na patogenia dos NETs gástricos.
Os NETs gástricos do tipo I são considerados tumores com comportamento benigno, com
risco mínimo de metastização. Os NETs gástricos do tipo II e III cursam mais frequentemente com metastização à distância. A abordagem terapêutica depende do subtipo e do estadiamento dos NETs gástricos. Os tumores do tipo I e II podem ser tratados com remoção endoscópica ou exérese cirúrgica, dependendo da extensão local e considerando a causa da hipergastrinemia. Os NETs do tipo III têm indicação cirúrgica.
Existem várias modalidades disponíveis para a terapêutica da doença metastática incluindo
quimioterapia, radioterapia e radiologia de intervenção.
O prognóstico dos NETs gástricos do tipo I e II é bom, com taxas de sobrevida cumulativa
aos 5 anos de 78-100%. Os NETs gástricos do tipo III têm pior prognóstico, com taxa de
sobrevida cumulativa aos 5 anos <50%.
PALAVRAS-CHAVE
Tumores neuroendócrinos do estômago; célula ECL; hipergastrinemia; gastrite crónica atrófica; síndroma de Zollinger-Ellison.
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ABSTRACT
Gastric neuroendocrine tumors (NETs) are rare, representing less than 1% of all stomach neoplasms. Most gastric NETs derive from enterochromaffin-like (ECL) cells, involved in the control of
gastric acid secretion. Gastric NETs are classified in three types based on the gastric pathology
background: type I, chronic atrophic gastritis; type II, multiple endocrine neoplasia and ZollingerEllison syndrome; and sporadic type III, without any background pathology.
Types I and II are associated with hypergastrinaemia. Despite gastrin can cause ECL hyperplasia
and dysplasia, it is not sufficient for tumor development. Other cofactors for the development of
gastric NETs have been proposed including genetic mutations, growth factors and factors from the
mesenchyme.
Type I tumors behavior is benign, with minimal risk for metastases. Type II and III are frequently
associated with distant metastases. The therapeutic approach depends on tumour subtype and
staging of gastric NETs. Type I and II may be treated with endoscopic excision or surgical resection depending on the local extension and considering the cause of hypergastrinaemia. Type III
has surgical indication.
There are several methods available for the treatment of metastatic disease including chemotherapy, radiotherapy and radiological intervention.
The prognosis of type I and II is good, with 78-100% of 5-year cumulative survival rate. Type III
neuroendocrine tumours have worse prognosis, with <50% of 5-year cumulative survival rate.
KEY WORDS
Gastric neuroendocrine tumors; ECL cell; hypergastrinaemia; chronic atrophic gastritis; ZollingerEllison syndrome.
1. INTRODUÇÂO
Os tumores neuroendócrinos gastrointestinais têm origem em células neuroendócrinas que expressam certas proteínas,
como a sinaptofisina e a cromogranina A,
variando a sua produção hormonal consoante o tipo de célula neuroendócrina e a
localização no tracto gastrointestinal.1
Os tumores neuroendócrinos do estômago são neoplasias raras que têm aumentado
de incidência nos últimos anos.2,3 Têm origem geralmente em células neuroendócrinas idênticas às células enterocromafins
(enterochromaffin-like – ECL), localizadas
no corpo/fundo gástrico.4,5 As alterações
neoplásicas das células ECL ocorrem, na
maioria dos casos, associadas a hipergastrinemia.4 A relação da hipergastrinemia com
o desenvolvimento de tumores neuroendócrinos gástricos tem sido associada com o
uso frequente de inibidores de bomba de
114
protões (IBP) e a consequente hipergastrinemia por inibição da secreção ácida.6
Este trabalho tem como objectivo rever
características clínico-laboratoriais e terapêuticas relevantes para a sobrevida em
doentes com tumores neuroendócrinos do
estômago.
2. EPIDEMIOLOGIA E ETIOLOGIA
2.1 EPIDEMIOLOGIA
Os tumores neuroendócrinos (NETs) do
estômago são neoplasias raras, correspondendo a menos de 1% das neoplasias gástricas.2 A incidência dos NETs gástricos ajustada à idade é de 0,2 por 100,000 habitantes/ano.3 No entanto, uma vez que a maioria destes tumores é assintomática, a incidência pode ser maior.7
Ao longo das últimas cinco décadas,
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verificou-se um aumento da incidência dos
NETs gástricos, correspondendo a cerca de
4,1% de todos os NETs registados durante
esse período, e a 8,7 % dos NETs gastrointestinais de acordo com os dados mais recentes.2,3 Existem, contudo, dúvidas se este
aumento poderá corresponder a um verdadeiro aumento de incidência ou a uma
maior utilização de técnicas de endoscopia,
radiologia e imunohistoquímica.3
A frequência dos NETs gástricos, por
género e raça, indica um predomínio no
género feminino (64,5%), como acontece
com a maioria dos NETs (55,1%), sendo
maior nos indivíduos de raça negra comparativamente aos de raça caucasiana
(1\1,06RR).2
Apesar de não estar esclarecido, verificase que os doentes com NETs gástricos têm
uma média de idade ao diagnóstico inferior
à de outras neoplasias do estômago (63 e 69
anos, respectivamente).2
2.2 ETIOLOGIA
A principal função do estômago é a
digestiva e está dependente da secreção
ácida que é regulada por células neuroendócrinas. A mucosa gástrica humana é
constituída por, pelo menos, 6 tipos de células neuroendócrinas: as células idênticas às
enterocromafins (enterochromaffin-like ECL), as células G, as células enterocromafins (enterochromaffin - EC), as células D, as
células D1/P e as células X.4 As células neuroendócrinas correspondem, no seu total, a
uma minoria da massa celular gástrica,
representando apenas 2% das células da
mucosa.3,8 As células ECL correspondem a
cerca de 35% das células neuroendócrinas
gástricas e são produtoras de histamina,
localizando-se profundamente na mucosa
oxíntica do fundo/corpo gástrico, próximo
das células parietais e principais.8 As células
G, presentes no antro (na zona média da
mucosa) do estômago, são produtoras de
gastrina.4 As células D e as células EC, produtoras de somatostatina e serotonina, respectivamente, estão representadas em toda
a mucosa gástrica.4 As células P /D1 são
mais frequentes na mucosa ácido-péptica
(oxíntica), correspondendo a uma pequena
minoria no antro gástrico.9
Todas estas células neuroendócrinas
podem ser encontradas em lesões tumorais.
No entanto, os NETs do estômago têm, na
sua maioria, origem nas células ECL e, raramente, nas células G ou EC.4,5
Em situações normais, a secreção ácida
é complexa, envolvendo vários tipos celulares nomeadamente as células ECL, as células G e D que estão implicadas no controlo
fisiológico das células parietais responsáveis
pela produção e secreção de ácido clorídrico
(HCl). (Figura 1)9
Numa fase inicial, a gastrina é produzida e secretada pelas células G do antro e do
duodeno, como resposta à distensão gástrica e ao aumento do pH intraluminal resultante da ingestão alimentar e, via circulação sistémica, actua nos receptores colecistocina (CCK2) das faces basolateral e luminal das células ECL.9 Os receptores CCK2
estão associados a uma proteína Gq intracelular.8 A estimulação da proteína Gq activa
a fosfolípase C da membrana celular que
catalisa a formação de trifosfato de inositol
e diacilglicerol a partir da hidrólise dos fos-
FIGURA 1: Representação esquemática da secreção ácida no estômago (adaptado de Rindi et al 20049).
Nervo Vago
Gastrina
+
Célula G
-
+
Célula ECL
Gastrina
+
Célula parietal
Histamina
Célula D
HCI
Somatostatina
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fatidilinositóis.10 O trifosfato de inositol fixase a receptores específicos na membrana do
retículo endoplasmático que contém depósitos intracelulares de cálcio, promovendo o
movimento deste ião do interior do retículo
endoplasmático para o citosol, o que estimula a exocitose da histamina.
A gastrina exerce ainda estimulação da
activação da descarboxilase da histidina
(Histidine Decarboxylase - HDC), que catalisa a descarboxilação da histidina em histamina, estimulando, desta forma, a produção da histamina. A histamina é depois
armazenada em vesículas secretoras, através de um transportador vesicular de
monoaminas tipo 2 (Vesicular Monoamine
Transporter subtype 2 - VMAT 2). Para além
da activação, a gastrina exerce um papel
importante na expressão genética da HDC.
A estimulação da transcrição da HDC é
regulada pela Proteína Cinase C (Protein
Kinase C - PKC), activação indirecta das
proteínas c-fos e c-jun e estimulação da
MAP kinase. As proteínas c-fos e c-jun formam um heterodímero, designado proteína
activadora 1 (Activator Protein 1- AP-1) que
é um factor de transcrição. O passo final da
estimulação da transcrição da HDC depende da activação da proteína Raf, não sendo,
contudo, necessária a activação da Ras.
Paralelamente à estimulação da actividade
da HDC, a gastrina aumenta a transcrição
do gene da proteína cromogranina.10
A histamina actua nos receptores H2,
presentes na membrana das células parietais, e estimula a secreção de HCl (efeito
parácrino). A diminuição do pH gástrico
inibe a secreção de gastrina, ou seja, condiciona uma regulação de inibição retroactiva da secreção gástrica, mediada pela secreção de somatostatina que é produzida nas
células D.9 A somatostatina exerce um efeito directo nas células parietais, através da
ligação a receptores da somatostatina subtipo 2 (SSR2) das células parietais, e indirecto
nas células ECL, inibindo a secreção de histamina.8,9 O nervo vago estimula a secreção
116
de HCl, através da secreção de acetilcolina
que actua em receptores M3, presentes na
membrana das células parietais.8
Os tumores neuroendócrinos do estômago ocorrem na maioria dos casos associados
a hipergastrinemia, em dois contextos patológicos distintos: a gastrite crónica atrófica
do tipo A e a síndroma de Zollinger-Ellison
(Zollinger-Ellison syndrome - ZES). Clinicamente, os NETs gástricos que se desenvolvem no contexto da gastrite crónica atrófica
são classificados de NETs gástricos do tipo I
e os NETs que se desenvolvem no contexto
da ZES são classificados de NETs gástricos do
tipo II.5,6,8,11
A gastrite crónica atrófica do tipo A
resulta da destruição das células parietais
do fundo gástrico, por um processo autoimune.12,13 Como resultado da destruição
das células parietais ocorre diminuição da
produção de HCl no estômago (acloridia)
que tem como consequência a hiperplasia
das células G no antro gástrico, a diminuição das células D e hipergastrinemia.12 A
gastrina exerce um efeito proliferativo nas
células ECL resultando em hiperplasia
difusa linear e micronodular adenomatóide, da qual podem resultar NETs gástricos,
após um período de latência de muitos
anos.14 No entanto, os NETs gástricos do
tipo I ocorrem apenas em alguns doentes
com gastrite crónica atrófica. Esta evidência sugere que outros factores, além da
gastrina, sejam necessários para o desenvolvimento tumoral.6,8,14
Os NETs gástricos do tipo I ocorrem
maioritariamente em mulheres (70-80%
dos casos), com média de idades de 50-60
anos.15 É o tipo mais comum, correspondendo a cerca de 68-83% do total de NETs gástricos.6,8,15,16
Os NETs gástricos do tipo II ocorrem em
doentes com ZES, na maior parte dos casos
no contexto da síndroma de Neoplasia
Endócrina Múltipla tipo I (Multiple
Endocrine Neoplasia type I - MEN-1).6 A
MEN-1 é uma síndroma autossómica domi-
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nante causada por mutações no gene MEN1, localizado no cromossoma 11q13, que
codifica uma proteína (menin) supressora
tumoral.17 Esta síndroma é caracterizada
pelo desenvolvimento de hiperplasia das
paratiróides, tumores neuroendócrinos,
adenomas da hipófise anterior e adenomas
da suprarrenal. Outras manifestações,
menos comuns, incluem: lipomas, colagenomas, angiofibromas e NETs gástricos e
brônquicos.
A ZES ocorre em 21-70% dos casos de
MEN-1 e é causada pela secreção aumentada de HCl no estômago secundária a hipergastrinemia produzida por um gastrinoma.17 A secreção aumentada de ácido clorídrico causa doença ulcerosa péptica, esofagite erosiva e diarreia. A maioria dos gastrinomas localiza-se no duodeno (50-70%),
pâncreas (20-40%) e outras localizações
intra-abdominais: estômago, fígado e gânglios linfáticos.18
A ZES, no contexto da MEN-1, está associado a risco de 13-37% de desenvolvimento
de NETs gástricos do tipo II, comparativamente ao risco de 0-2% nos doentes com ZES esporádico que desenvolvem este tipo de NET.8
Um estudo de ZES esporádicos (sem MEN
1) descreveu que a maioria (52% de 106
doentes com hipergastrinemia de 13-42
anos) apresentava alterações nas células
ECL: hiperplasia linear e/ou alterações mais
avançadas.19 Neste estudo, nenhum doente
desenvolveu NET gástrico do tipo II. Alguns
estudos descrevem alterações mais avançadas na proliferação das células ECL em 46-53
% dos doentes com ZES/MEN 1, que é uma
percentagem superior à observada (10-13%)
em doentes com ZES esporádico.19
A mutação heterozigótica no gene MEN1 e a presença da hipergastrinemia, causada por gastrinomas, estão provavelmente
implicados no desenvolvimento de NETs
gástricos do tipo II.14
Os NETs gástricos do tipo II são menos
comuns, correspondendo <5-8% do total
de NETs gástricos.5,8 Ocorrem com frequên-
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cia semelhante em homens e mulheres,
com média de idades ao diagnóstico de 4550 anos.15
A relação da hipergastrinemia com o
desenvolvimento de NETs em doentes com
gastrite crónica atrófica e em doentes com
ZES tem sugerido que níveis elevados de
gastrina podem estar implicados no desenvolvimento de NETs gástricos.6,8
A hipergastrinemia tem sido implicada
no desenvolvimento de NETs gástricos em
modelos animais. Vários estudos realizados
em animais, utilizando diversos métodos
para a indução da hipergastrinemia (ex:
drogas, cirurgia) demonstraram que a hipergastrinemia pode promover o desenvolvimento de NETs gástricos.8 Em humanos, contudo, estudos referentes à utilização de inibidores de bomba de protões (IBP) descrevem
aumento de densidade das células ECL após
tratamento com omeprazole e aumento significativo (p< 0,005) nas glândulas fúndicas
após tratamento com lanzoprazole.20 No
entanto, nenhum estudo demonstrou a ocorrência de NETs gástricos nestes contextos.21 A
hipergastrinemia associada à vagotomia
também não foi associada ao desenvolvimento de NETs gástricos em humanos.8 Este
facto pode reflectir uma interacção importante, ainda não determinada, de neuropeptídeos e alterações genéticas.
Os NETs gástricos do tipo III não cursam
com níveis aumentados de gastrina (são
habitualmente normais) nem se associam a
qualquer das patologias gástricas dos outros
subtipos.5,6 São, por isso, designados NETs
gástricos esporádicos. A etiologia deste tipo
de NET gástrico é desconhecida.8 Os NETs
gástricos do tipo III correspondem a cerca de
15-23% dos NETs gástricos e são mais
comuns em homens, com idade superior a
50 anos.5
No contexto de transformação neoplásica neuroendócrina no estômago descrevemse casos anedóticos de carcinomas neuroendócrinos de células pequenas (38 casos
publicados desde 1976).22 Os carcinomas
117
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neuroendócrinos de células pequenas
podem ocorrer em qualquer localização,
têm origem em células multipotenciais e
apresentam grande variedade de características histológicas. São clinicamente agressivos e têm mau prognóstico, com sobrevida
média de 6,5-14,9 meses.23,24
do confinados à mucosa são classificados
como micro-NETs.25
FIGURA 2: Aspecto microscópico de NET gástrico que ultrapassa
a muscular da mucosa.
3. PATOLOGIA E GENÉTICA
3.1 CARACTERÍSTICAS ANÁTOMOPATOLÓGICAS
A maioria dos NETs gástricos tem origem nas células ECL e localiza-se frequentemente no fundo/corpo gástrico.6
As lesões precursoras dos NETs gástricos
do tipo I e II são a hiperplasia e a displasia
das células ECL.14
A hiperplasia das células ECL caracteriza-se por aumento do número de células
ECL, com padrões linear, difuso ou micronodular, e menos de 150 μm de dimensão.5 A
forma mais exuberante de hiperplasia das
células ECL é a hiperplasia adenomatóide
que está associada a hiperplasia micronodular acentuada.5,6
As lesões displásicas, com dimensões
entre 150-500 μm, são constituídas por
células moderadamente atípicas, núcleo
aumentado hipercrómático, citoplasma
moderadamente abundante e menor
expressão de marcadores granulares como
a cromogranina A (Chromogranin A- Cg
A). Localizam-se profundamente na mucosa oxíntica e não ultrapassam a muscular
da mucosa.5 As lesões displásicas correspondem à transição entre hiperplasia
benigna e tumores neuroendócrinos e
podem assumir quatro padrões morfológicos: 1) padrão expansivo constituído por
nódulos> 150 μm; 2) micronódulos confluentes; 3) microinfiltração da lâmina própria; 4) nódulos envolvidos por estroma
neoformado. Lesões> 500 μm designam-se
tumores neuroendócrinos (figura 2); quan-
118
Os NETs gástricos do tipo I são bem diferenciados e localizados geralmente na
mucosa e submucosa da parede gástrica.26
Os NETs gástricos do tipo I são constituídos
por células ECL pequenas, homogéneas,
com citoplasma eosinofílico finamente granular e núcleo redondo ou oval. As mitoses
são infrequentes. A mucosa gástrica adjacente apresenta sinais de gastrite crónica,
com infiltrado linfoplasmocitário denso na
lâmina própria do corpo/fundo, poupando
o antro, depleção marcada das células
parietais, e lesões hiperplásicas e displásicas
(cerca de 6% dos casos) de células ECL.25
Localizam-se habitualmente no corpo
ou fundo do estômago e são geralmente
multifocais. São frequentemente lesões
pequenas (<1-2 cm) com baixo potencial de
metastização (<5%)11, 27, 28 (Quadro I).
Os NETs gástricos do tipo II são habitualmente múltiplos, pequenos (<1-2 cm) e
compostos predominantemente por células
ECL, embora alguns possam conter outros
tipos de células neuroendócrinas.8 A morfologia dos NETs gástricos do tipo II e a
hiperplasia das células ECL é idêntica à
observada nos NETs do tipo I, mas a mucosa adjacente tem hipertrofia das glândulas
oxínticas.25
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À semelhança dos NETs do tipo I, os
NETs gástricos do tipo II localizam-se maioritariamente na mucosa oxíntica. Os NETs
gástricos do tipo II apresentam geralmente
invasão limitada à mucosa e submucosa
gástrica, cerca de 30% invasão ganglionar e
10% metástases à distância.8
Os NETs gástricos do tipo III são geralmente tumores únicos e grandes (>2cm).
Ocorrem com níveis de gastrina normais e
sem alterações na mucosa gástrica adjacente.5 Embora sejam constituídos na sua maioria por células ECL, podem conter outras
células neuroendócrinas, produtoras de
serotonina, somatostatina ou gastrina.8
Embora muitos NETs do tipo III sejam bem
diferenciados, outros são menos diferenciados com características atípicas, pleomorfismo nuclear, nucléolos proeminentes, áreas
de necrose e expressão da p53.25
Quando diagnosticados, cerca de 15%
dos tumores são localizados e >50 % dos
doentes com NETs gástricos do tipo III têm
metastização hepática.8
O diagnóstico e a caracterização das
lesões precursoras e dos NETs gástricos
devem basear-se em métodos complementares, para além do exame histológico com
hematoxilina e eosina.25
As células ECL não têm características
específicas que permitam a sua identificação com microscopia óptica mas podem ser
identificadas por métodos de coloração
argêntica, microscopia electrónica e imuno-
histoquímica com anticorpos que identificam histamina, sinaptofisina (marcador de
pequenas vesículas não-densas) e CgA
(marcador de pequenas vesículas densas),
que são marcadores característicos, mas
não específicos, destas células neuroendócrinas.26,29
A identificação imunohistoquímica do
trans-receptor
vesicular
monoamina
(VMAT2) pode também ser usada para
identificar células neuroendócrinas.5 Este
receptor tem sido utilizado como marcador
mais específico dos grânulos das células
neuroendócrinas.6 Existem dois tipos de
trans-receptores vesiculares de monoaminas: VMAT 1 e VMAT2. O VMAT 1 é detectado em células gastrointestinais produtoras
de serotonina (EC) e o VMAT 2 em células
produtoras de histamina (ECL).26
A Ki-67 é um antigénio nuclear estruturalmente associado à cromatina que é
usado para avaliar a actividade proliferativa de células e tumores.30 A maioria dos
NETs diferenciados tem índice proliferativo
baixo (<2% de células tumorais Ki-67 positivas) associado a comportamento biológico
mais benigno. Índices proliferativos mais
elevados determinados com Ki-67 têm sido
associados a comportamento maligno e
pior prognóstico dos doentes com NETs gastrointestinais.30 A avaliação imunohistoquímica com Ki-67 e p53 permitiu, num estudo
com 21 NETs gástricos, diferenciar o prognóstico dos doentes, sendo a maior expres-
QUADRO I: Características dos NETs gástricos (adaptado de Delle Fave et al 20055, Ruszniewski et al 2006
63
e Burkitt et al 20066).
Tipo I
Tipo II
Patologia associada
Gastrite crónica atrófica
ZES/MEN 1
–
Frequência
68-83%
5-8%
15-23%
Macroscopia
Lesões polipóides
únicas/múltiplas (<1-2 cm)
Lesões polipóides, múltiplas
(<1- 2 cm)
Lesões polipóides únicas
Geralmente ulceradas (>2 cm)
Histopatologia
Sem atipia celular
Ki-67 < 2%
Atipia celular ocasional
Possibilidade de invasão e perda de diferenciação
Ki-67 <2%
Invasão frequente
Atipia celular frequente
Ki-67 >2%
Gastrina sérica
↑↑
↑↑
Normal
Metastização
Excepcional
10-30%
50-100%
78-100%
Semelhante ao tipo I; uma minoria pode ter
comportamento mais agressivo
< 50%
Sobrevida aos 5 anos
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Tipo III
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são destes marcadores associada a pior
sobrevida dos doentes.31
Vários factores investigados numa série
com 102 NETs gástricos tornaram possível o
desenvolvimento de um sistema de classificação histopatológica para os NETs gástricos.32 Foram propostos três graus histológicos
(G1-G3): grau 1 (G1), caracterizado por
estrutura monomorfa, microlobular-trabecular, discreta atipia celular e raras mitoses
típicas (1-3/10 campos de grande ampliação
(High Power Field-HPF); grau 2 (G2), caracterizado por agregados sólidos e elevado índice mitótico (>7/10 HFP); grau 3 (G3), carcinomas neuroendócrinos pouco diferenciados, com áreas sólidas, necrose extensa e elevado índice mitótico, com mitoses atípicas.
3.2 CARACTERÍSTICAS GENÉTICAS
(CITOGENÉTICAS E MOLECULARES)
– CARCINOGÉNESE E PROGRESSÃO
DOS TUMORES NEUROENDÓCRINOS
DO ESTÔMAGO
A gastrina parece estar envolvida na proliferação das células parietais e das células
ECL.10,33 As células progenitoras das células
ECL não expressam receptor CCK2 e a resposta proliferativa parece estar relacionada com
a libertação de factores de crescimento, como
o factor de crescimento epidérmico ligando
da heparina (heparin binding epidermal growth
factor) e o factor transformador de crescimento alfa (Transforming Growth Factor-αTGF-α).6,8 A gastrina parece ter um efeito próproliferativo directo nas células ECL no desenvolvimento de NETs gástricos.6
Embora a hipergastrinemia seja essencial para o desenvolvimento de NETs do tipo
I e II, não é suficiente para causar desenvolvimento tumoral.6 Outros co-factores como
mutações genéticas, factores de crescimento
e alterações nas proteínas do mesênquima
têm vindo a ser propostos.5,6
A base molecular da patogénese dos
NETs gástricos é ainda largamente desconhecida.5 O modelo genético mais estudado
120
nos NETs gástricos é a alteração do gene
MEN-1 associado à síndroma de neoplasia
endócrina múltipla (MEN-1).34 A MEN 1 é
uma síndroma com transmissão autossómica dominante de alta penetrância, causada
por mutação germinativa inactivante do
gene MEN 1, localizado no cromossoma
11q13, que codifica uma proteína (menin)
supressora tumoral. A mutação germinativa afecta o gene MEN-1, sendo o portador
da mutação genética um heterozigótico
com predisposição para o desenvolvimento
tumoral.35 A inactivação somática do alelo
não mutado (perda de heterozogotia) resulta no desenvolvimento das lesões associadas à síndroma MEN-1.
Os NETs esporádicos do estômago ou
que ocorrem num contexto hereditário
apresentam frequentemente perda de heterozigotia para o locus da MEN-1. A perda de
heterozigotia foi demonstrada em 75% de
23 casos de NETs gástricos hereditários e em
41% de 46 NETs gástricos esporádicos.36
O papel dos factores de crescimento
envolvidos no desenvolvimento de NETs gástricos foi recentemente centrado na proteína
Reg. A proteína Reg (Regenerating protein)
foi identificada como factor de crescimento
necessário à regeneração pancreática, tendo
sido identificada em localizações extra-pancreáticas de animais e humanos, nomeadamente na mucosa gástrica onde é secretada
pelas células ECL e células principais.37,38 No
estômago, a proteína Reg estimula a proliferação das células parietais, a sua produção é
estimulada pela gastrina e a sua expressão
aumenta nas células ECL que rodeiam as
úlceras da mucosa gástrica. Admite-se que a
Reg é um possível regulador da regeneração
da mucosa gástrica. No entanto, tendo em
conta a acção endócrina da gastrina, o
aumento da expressão da Reg exclusivamente nas células que rodeiam as lesões gástricas
não pode ser explicado considerando apenas
a gastrina, o que pressupõe o envolvimento
de outros factores reguladores da expressão
da Reg.37 Em ratos com mucosa gástrica lesa-
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da descreveu-se a libertação de uma citocina
pró-inflamatória [CINC-β2‚-correspondente
à interleucina 8 (IL 8) humana] que estimula a produção de Reg nas células ECL. Outras
citocinas pró-inflamatórias não estimulam a
secreção da proteína Reg nas células ECL.38
Um estudo recente descreveu o aumento da
proteína Reg em NETs gástricos associados a
hipergastrinemia e a mutação do gene Reg
foi implicada no desenvolvimento de NETs
gástricos de células ECL.37 Demonstrou-se que
outros genes expressos na mucosa gástrica
são regulados pela gastrina, nomeadamente
o inibidor do activador do plasminogénio
(Plasminogen Activator Inhibitor 2 - PAI-2) e
a metaloproteinase 9 da matriz (Matrix
Metalloproteinase 9- MMP-9), sugerindo um
sistema no qual a gastrina exerce efeitos a
longo prazo na remodelação da mucosa gástrica.39
O PAI-2 é um membro do sistema activador do plasminogénio uroquinase. A activação deste sistema é importante para a
invasão celular através da regulação da
migração celular e da degradação selectiva
da matriz extracelular. Existe em quantidades baixas na mucosa gástrica normal, mas
aumenta em condições com hipergastrinemia: gastrite crónica atrófica e ZES.40
A gastrina aumenta a expressão da
metaloproteinase 7 da matriz (Matrix
Metalloproteinase 7 - MMP-7) que estimula
a proliferação de miofibroblastos, aumentando a matriz extracelular envolvente das
células ECL. Esta expressão de MMP-7 foi
descrita em adenocarcinomas gástricos e
associada a mau prognóstico. Os mecanismos são desconhecidos, podendo resultar de
alterações da matriz extracelular que promovem a fibrose, aumento da invasão celular, ou supressão da apoptose.41
Comparativamente às lesões do tipo I e
II, que têm sido mais estudadas, pouco se
sabe sobre a patogenia dos NETs gástricos
do tipo III. Demonstrou-se a presença de
mutações da p53, particularmente nos
tumores pouco diferenciados.42,43
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4. APRESENTAÇÂO CLÍNICA
A apresentação clínica da maioria dos
NETs gástricos é variável e inespecífica.
Geralmente são achados incidentais em
doentes que realizam endoscopia digestiva
alta por dispepsia.44
Os NETs gástricos podem manifestar-se
com sintomas semelhantes aos das úlceras
pépticas, pólipos gástricos hemorrágicos e
adenocarcinomas gástricos.8 Há casos descritos com queixas de dor abdominal,
hemorragia digestiva e anemia.45
Uma minoria (0,5-11%) de doentes com
NETs gástricos pode apresentar características da síndroma carcinóide. A síndroma
carcinóide resulta geralmente da libertação
de histamina, bradicinina e outras substâncias, ainda não identificadas, produzidas
pelo tumor.46 A apresentação clínica da síndrome carcinóide inclui rubor, edema
facial, broncospasmo, diarreia, taquicardia
e disfunção cardíaca direita.8
5. DIAGNÓSTICOS DIFERENCIAIS
Tendo em conta a apresentação clínica
dos NETs gástricos podem ser considerados os
seguintes diagnósticos diferenciais: gastrite,
úlcera péptica, adenocarcinoma gástrico,
refluxo gastro-esofágico, hemorragia digestiva alta (úlcera péptica, varizes esofágicas,
laceração de Mallory-Weiss).18 Devem ainda
ser considerados: asma, anafilaxia, edema
pulmonar, doença cardíaca isquémica, cardiomiopatia dilatada, síndromas de má
absorção, diarreia crónica (osmótica, secretora, inflamatória, factícia ou esteatorreia) dor
abdominal por disfunção neurológica, endócrina, de causa farmacológica ou mecânica,
espasmo ou distensão visceral (obstrução
intestinal, de canais pancreáticos, ureteral) e
síndroma do intestino irritável.
121
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6. DIAGNÓSTICO E ESTADIAMENTO
6.1 DIAGNÓSTICO
Os NETs gástricos são geralmente identificados de forma incidental na endoscopia
digestiva alta. A endoscopia digestiva alta
permite a identificação e biopsia do NET
gástrico, fornecendo informação acerca do
número e tamanho dos tumores. Para além
da identificação tumoral, a endoscopia permite a visualização e biopsia da mucosa
gástrica adjacente, importante na caracterização do subtipo de NET gástrico.47 Os NETs
gástricos ocorrem mais frequentemente
como pólipos múltiplos e pequenos, de
tonalidade amarelada.48 A mucosa adjacente pode ser macroscopicamente normal,
especialmente nos NETs gástricos do tipo III,
pode ter evidência de gastrite atrófica (tipo
I) ou de úlcera péptica (tipo II).49 A maioria
dos tumores localiza-se no corpo/fundo gástrico. No entanto, há casos descritos de NETs
gástricos do tipo II no antro gástrico, sendo
que os NETs do tipo III podem ocorrer em
qualquer localização.49 Adicionalmente, a
endoscopia é importante no tratamento dos
NETs gástricos, permitindo a exérese.50
Os estudos de contraste de bário podem
ser úteis na detecção de irregularidades da
mucosa, nomeadamente na detecção de
lesões polipóides, mas têm baixa sensibilidade para a detecção de lesões da submucosa.51
A determinação da localização e da
extensão dos NETs gástricos são essenciais
para o tratamento adequado. Vários métodos complementares de diagnóstico podem
ser usados, nomeadamente a ecoendoscopia, a Tomografia Computorizada (TC), a
Ressonância Magnética Nuclear (RMN), a
PET (Positron Emission Tomography) e a
cintigrafia com análogos de somatostatina
(Quadro II). 52
122
QUADRO II. Diagnóstico da localização e da extensão de NETs gástricos e de gastrinomas (adaptado de Caplin et al 1998 47, Modlin
et al 2008 52, Burkitt et al 2006 6 Jensen RT 2008 18).
Meio Complementar de Diagnóstico
NET primário
Endoscopia digestiva com biopsia
Ecoendoscopia
Extensão ganglionar Ecoendoscopia
Extensão metastática Cintigrafia com análogos da somatostatina
TAC e/ou RMN
PET
Gastrinomas
Ecoendoscopia
Cintigrafia com análogos da somatostatina
TAC e/ou RMN
Nenhuma destas técnicas é 100% sensível
e múltiplas modalidades podem ser necessárias para a detecção de lesões pequenas.52
A ecoendoscopia é uma técnica particularmente útil para a localização do NET, fornecendo informações acerca da extensão na
parede e da invasão ganglionar.50 A grande
maioria dos NETs gástricos está limitada à
primeira e segunda camada, são pequenos,
superficiais e não metastizam. A ecoendoscopia é também importante na identificação de gastrinomas que ocorrem em associação com NETs gástricos do tipo II.52
A TC e a RMN são os métodos habitualmente usados na identificação de metástases locais e à distância.11
A maioria dos NETs gástricos expressa
receptores da somatostatina tornando a cintigrafia com análogos da somatostatina útil
para a identificação do tumor primário e
das metástases à distância.6 A cintigrafia
com análogos da somatostatina é o método
mais sensível na detecção de metástases
hepáticas (81-96% comparativamente à
angiografia -50-90% ou à RMN -55-70%),
pelo que é a modalidade de imagem inicial
de escolha para caracterizar os NETs primários e metastáticos.52
A cintigrafia com análogos da somatostatina deve ser realizada com TC e/ou RMN
para determinação do tamanho e localização exacta das metástases.18
A PET é uma técnica que permite relacionar a localização anatómica das lesões
com o funcionamento dos NETs. A PET com
11C-5-hidroxitriptofano é útil nos NETs gástricos, apresentando maior sensibilidade do
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que os meios convencionais e cintigrafia
com análogos da somatostatina.18
A definição do tipo de NET gástrico tem
impacto importante no tratamento e no
prognóstico.6 Para além do estudo anátomopatológico do NET gástrico, é importante a
determinação dos níveis séricos de gastrina.
Os níveis de gastrina estão elevados nos
NETs gástricos do tipo I e II.6,8 O teste de estimulação da gastrina pela secretina pode
ajudar a diferenciar os NETs gástricos do
tipo I dos NETs gástricos do tipo II.18 O estudo da secretina é o teste de estimulação de
gastrina mais sensível e específico para o
diagnóstico da ZES. Um aumento de gastrina> 200 pg 15 minutos após a injecção de
secretina, tem sensibilidade e especificidade
de 90% na ZES.18 O teste da estimulação da
gastrina com secretina é negativo nos doentes com gastrite crónica atrófica.
No caso de NETs gástricos do tipo II é
importante a identificação do gastrinoma
associado. (Quadro II) A ecoendoscopia
apresenta sensibilidade elevada para a
detecção de gastrinomas pancreáticos mas
não é muito útil para a detecção de gastrinomas duodenais (sensibilidade de 90-100 % e
45-60%, respectivamente).52 Os gastrinomas
expressam receptor da somatostatina, pelo
que a cintigrafia com análogos da somatostatina pode ser usada, demonstrando taxas
de sensibilidade e de especificidade> 75%.53
À semelhança do que acontece com os NETs
gástricos, os doentes com gastrinomas deverão realizar TC e/ou RMN para despiste das
metástases dos gastrinomas.18
Os NETs gástricos são geralmente não
funcionantes, pelo que não está indicada a
avaliação da secreção de neuropeptídeos.
Em alternativa, surgiram marcadores serológicos.54
Actualmente, estão disponíveis métodos
para avaliar a Cg A intacta e os seus produtos. Os níveis séricos estão aumentados nos
tumores neuroendócrinos gastro-enteropancreáticos (GEP-NETs) e são particularmente úteis para o diagnóstico de tumores
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não funcionantes.55,56 A CgA sérica aumenta
na gastrite crónica atrófica, na hiperplasia/displasia das células ECL e nos NETs gástricos. Níveis aumentados de CgA são também observados na insuficiência renal. 55,56
Foi descrita uma diferença estatisticamente significativa (p<0,001) entre os níveis
séricos de CgA de doentes com gastrite crónica atrófica e a população geral, apresentando os doentes com gastrite crónica atrófica níveis mais elevados.57 No entanto, esta
diferença não era significativa quando se
compararam doentes com NETs gástricos e
doentes com lesões precursoras.
Noutro estudo de 15 doentes com NETs
gástricos descreveram-se níveis séricos de
CgA aumentados em todos os subtipos
tumorais, mais elevados (p<0,001) nos
doentes com NETs gástricos do tipo III do
que nos doentes com NETs gástricos do tipo
I.58 A determinação dos níveis séricos de Cg
A tem-se revelado mais útil para avaliar a
extensão da doença em doentes com NETs
metastizados.6
6.2 ESTADIAMENTO
Recentemente foi proposta uma classificação TNM (Tumor-Node-Metastasis) para
o estadiamento dos GEP-NETs.59 Nesta classificação, T representa a extensão da invasão
tumoral, N o envolvimento ganglionar e M
a presença de metástases à distância.
Nos NETs gástricos, as lesões tumorais
superficiais (< 0,5 mm) são designadas por
in situ (Tis). T1 indica a invasão tumoral da
lâmina própria ou da submucosa, para
lesões tumorais < 1 cm. Lesões maiores (>
1cm), com invasão da muscular própria ou
subserosa são classificados T2, sendo as
lesões com invasão da serosa classificadas
T3. A classificação T4 indica as lesões com
invasão de estruturas adjacentes.
N1 designa metástases ganglionares.
A presença de uma ou mais metástases à
distância em qualquer local anatómico,
incluindo gânglios linfáticos não locais, é clas-
123
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sificada como M1. Recomenda-se a indicação
do local anatómico das metástases à distância
(PUL - Pulmão; HEP- Fígado; OSS- Osso).
QUADRO III: Proposta ENETS (European Neuroendocrine Tumor
Society) de Estadiamento dos NETs gástricos (adaptado de Rindi et
al 2006 59).
Estadiamento
Estádio 0
Tis
N0
M0
Estádio I
T1
N0
M0
Estádio IIa
T2
N0
M0
Estádio IIb
T3
N0
M0
Estádio IIIa
T4
N0
M0
Estádio IIIb
Qualquer T
N1
M0
Estádio IV
Qualquer T
Qualquer N
M1
No estadiamento (Quadro III), as lesões
superficiais <1cm com invasão da lâmina
própria ou da submucosa, sem metástases
ganglionares ou à distância, são designadas
estádio I (T1N0M0); lesões de maiores dimensões, com invasão da muscular própria (T2)
ou serosa (T3), sem metástases ganglionares
nem metástases à distância, são designadas
estádio II (T2 ou T3 N0M0); tumores com
invasão de estruturas adjacentes ou com
metástases ganglionares, sem metástases à
distância, são designadas estádio III
(T4N0M0 ou qualquer T, N1M0). A presença
de metástases à distância define o estádio IV.
Um estudo de 202 doentes, 48 dos quais
com NETs gástricos, revelou que a proposta
de classificação TNM é útil, permitindo uma
estratificação prognóstica dos NETs gastrointestinais.60
7. PROGNÓSTICO
O prognóstico dos NETs gástricos depende do tipo e do estadiamento do tumor.11
Vários parâmetros têm sido usados na
avaliação prognóstica de NETs gástricos, incluindo: estudo anátomo-patológico, grau
histológico (G1-G3), dimensão, índice mitótico, índice Ki67 (indicador da actividade
proliferativa), expressão da p53, invasão
vascular e da parede.
Todos estes parâmetros demonstraram
valor preditivo de malignidade e da sobrevi-
124
vência dos doentes.32 NETs gástricos G2 ou
G3, com índice mitótico ≥ 9 / 10 HPF e > 300
células Ki-67 positivas/10 HFP, têm comportamento mais maligno.32
A sobrevida cumulativa global dos NETs
gástricos aos 5 anos é de 63%.44 A presença
de metástases ganglionares ou à distância
agrava o prognóstico (7,1-21,2% comparativamente aos 64,5-69,1% sem doença mestastizada).44
As lesões do tipo I têm habitualmente
bom prognóstico, com sobrevida aos 5 anos
de 78-100%.44
A sobrevida dos doentes com NETs do
tipo II é semelhante à dos com tipo I.8 O
prognóstico está relacionado com o gastrinoma associado, que tem taxa de sobrevida
aos 5 anos de 60-75 %.8
Os doentes com NETs gástricos do tipo
III têm pior prognóstico, com sobrevida aos
5 anos < 50%.6 Este facto relaciona-se com
60% de metastização ganglionar e >50% de
metastização hepática observadas nos NETs
gástricos do tipo III.61
8. TRATAMENTO
O tratamento dos NETs gástricos deve
ser decidido após a confirmação do diagnóstico do tipo de tumor e do estadiamento
da doença.6
É importante a determinação dos níveis
séricos de gastrina, porque os tumores associados a hipergastrinemia devem ser tratados com procedimentos de redução/eliminação dos níveis de gastrina.6
8.1 TRATAMENTO DO TUMOR
PRIMÁRIO
Os NETs gástricos não metastizados
podem ser removidos endoscopicamente ou
cirurgicamente6 (Quadro IV).
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QUADRO IV: Tratamento de NETs gástricos primários (adaptado de
Akerstrom G et al 2007 62, Ruszniewski et al 2006 63, Jensen RT 2008 18).
Tipo e dimensão de NET gástrico
Tratamento
Tumor do tipo I e II < 1 cm
Ressecção endoscópica/
Vigilância
Tumor do tipo I e II 1-2 cm
Ressecção endoscópica
Ressecção cirúrgica
Tumor do tipo I e II > 2 cm
Ressecção cirúrgica
Antrectomia nos NETs
do tipo I
Tumor do tipo III
Gastrectomia e
linfadenectomia
Os NETs gástricos do tipo I e II <1 cm de
diâmetro são indolentes e com risco mínimo
de invasão, podendo ser tratados com ressecção limitada via endoscópica.62 No
entanto, de acordo com as recomendações
da ENETS, os NETs gástricos do tipo I e II <1
cm de diâmetro podem ser vigiados, estando a ressecção endoscópica indicada em
tumores> 1cm de diâmetro que não ultrapassem a muscular própria e com <6 lesões
tumorais.63 Num trabalho recentemente
publicado sobre o seguimento (média de 54
meses) de 11 doentes com NETs gástricos do
tipo I demonstrou-se que em 9 doentes não
foram detectadas lesões> 1 cm de diâmetro,
nem metástases locais ou à distância,
levantando a possibilidade de seguir estes
doentes
apenas
com
vigilância
64
clínica/endoscópica.
Nos NETs gástricos do tipo I e II > 2 cm de
diâmetro, ou com metastização ganglionar,
alguns autores recomendam gastrectomia
enquanto outros recomendam antrectomia
no tratamento de NETs gástricos do tipo I
para reduzir a hipergastrinemia.18 A antrectomia tem-se revelado eficaz em mais de 80%
dos doentes com NETs gástricos do tipo I.63
Para os NETs gástricos do tipo I e II entre
1 e 2 cm de diâmetro ainda há não consenso,
existindo autores que recomendam a ressecção endoscópica e outros tratamento cirúrgico, especialmente nos casos de NETs gástricos
do tipo I e II múltiplos e com recidiva tumoral detectada durante o seguimento.5,18
Outra opção terapêutica para a prevenção da recidiva tumoral consiste no uso de
análogos da somatostatina.5 As duas for-
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mulações mais eficazes disponíveis actualmente são o lanreótido e o octreótido, considerados eficazes no controlo dos sintomas e
na redução dos níveis dos marcadores séricos tumorais.52 A terapêutica com análogos
da somatostatina não está recomendada
nos NETs gástricos do tipo I e II, excepto nos
casos de tumores funcionantes e no caso dos
NETs gástricos do tipo II, quando associados
a outros tumores neuroendócrinos.63
Nos NETs do tipo II deve ser dada atenção à causa de hipergastrinemia, geralmente um gastrinoma duodenal.65 No caso de
gastrinomas co-existentes há autores que
aconselham a exérese cirúrgica apenas
quando não há metástases, enquanto
outros sugerem abordagens mais agressivas, mesmo na presença de metástases
hepáticas, com remoção de todos os gastrinomas. O valor destas abordagens alternativas não está esclarecido.18 As lesões do tipo
III não metastizadas devem ser removidos
com gastrectomia e linfadenectomia.62
8.2 TRATAMENTO DA DOENÇA
METASTÁTICA
As abordagens terapêuticas da doença
metastática incluem terapêutica médica,
quimioterapia, radioterapia e radiologia de
intervenção.6
Nos casos raros de NETs gástricos sintomáticos, podem ser utilizados análogos da
somatostatina ou antagonistas dos receptores de serotonina, como o ondansetron,
para o alívio da sintomatologia.66,67
O tratamento sistémico dos NETs gástricos inclui o uso de agentes biológicos [análogos da somatostatina e interferão-alfa
(Interferon - INF-α)] e quimioterapia.56
Os análogos da somatostatina de acção
prolongada e o INF-α reduzem raramente o
tamanho do tumor mas exercem efeitos citostáticos em 26-95% dos tumores neuroendócrinos. Ainda não foi estabelecida a duração de
tratamento para estabilização tumoral nem
o efeito na sobrevida com estes tratamentos.18
125
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Os citotóxicos são usados em tumores
pouco diferenciados ou com progressão
rápida.52 Vários fármacos estão actualmente
disponíveis: etoposida, cistaplatina, estreptozocina, 5-fluorouracilo e doxorrubicina.
No entanto, os estudos disponíveis são
retrospectivos, não padronizados e incluem
tumores heterogéneos, não permitindo conclusões seguras sobre a utilidade destes tratamentos.52
A radioterapia com isótopos do octreótido tem-se revelado segura e eficaz, podendo
ser usada no tratamento dos NETs que
expressam densidade adequada de receptores da somatostatina.68,69 Inicialmente, o tratamento foi realizado com altas doses de
[111In]octreótido e mais tarde com análogos
com maior afinidade, como o 90YtriumDOTA-Try-3-octreótido e o 177-LutetiumDOTA-Tyr3-octreotate.69 Este último é um
agonista selectivo dos receptores 2 da somatostatina. Ensaios clínicos em NETs tratados
com 177-Lutetium-DOTA-Tyr3-octreotate
descrevem estabilização (23-40%) e regressão
(38%) tumoral.18 A dose máxima tolerada
está relacionada com os efeitos tóxicos para
o rim e medula óssea.69 Num estudo de 50
doentes com GEP-NETs metastizados (seguidos durante 3 meses) e tratados com 177Lutetium-DOTA-Tyr3-octreotate, verificou-se
melhoria da qualidade de vida, especialmente nos casos com regressão tumoral.70
A presença de metástases hepáticas
associa-se a pior prognóstico e agravamento da qualidade de vida. O tratamento da
metastização hepática pode ser cirúrgico ou
médico. Pode ser realizada a exérese segmentar ou ablação hepática. O tratamento
médico inclui a quimioembolização da artéria hepática.56 Embora a embolização da
artéria hepática ou a exérese cirúrgica das
metástases hepáticas permitam redução dos
sintomas, persistem dúvidas sobre a eficácia
destes tratamentos.71
126
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Síndrome de Insensibilidade aos
Androgénios.
Manifestações clínicas, defeitos moleculares,
alterações hormonais e abordagem terapêutica.
Selma B. Souto1,4, Daniel Carvalho-Braga2,4, José Luís Medina3,4
1
2
3
4
Interna de Formação Específica de Endocrinologia do Serviço de Endocrinologia do Hospital de São João, E.P.E.
Assistente Hospitalar Graduado do Serviço de Endocrinologia do Hospital de São João, E.P.E.
Director do Serviço de Endocrinologia do Hospital de São João, E.P.E.
Faculdade de Medicina da Universidade do Porto
RESUMO
A resistência aos androgénios designada por síndrome de insensibilidade aos androgénios, é
um distúrbio genético ligado ao cromossoma X, causado por mutações no gene do receptor
dos androgénios. Os defeitos neste gene causam uma variedade de fenótipos em indivíduos
com cariótipo 46, XY, que vão desde a infertilidade masculina a indivíduos com genitais externos femininos normais. O seu diagnóstico baseia-se na clínica e na investigação hormonal e
molecular. A apresentação fenotípica complexa deste síndrome dificulta o seu diagnóstico e
o aconselhamento genético das famílias afectadas. Foram identificadas mais de 400 mutações
no gene do receptor dos androgénios. Esta revisão foca os aspectos clínicos, as alterações
hormonais, os defeitos moleculares e a abordagem terapêutica do síndrome de insensibilidade aos androgénios.
PALAVRAS-CHAVE
Síndrome de insensibilidade aos androgénios; SIA; Ambiguidade genital; Gene do receptor
dos androgénios.
SUMMARY
The end-organ resistance to androgens has been designated as androgen insensitivity syndrome
(AIS), an X-linked disorder caused by mutations in the androgen receptor (AR) gene. The defects
in the AR gene causes a variety of phenotypes in 46,XY individuals, ranging from male infertility
to completely normal female external genitalia. Precise diagnosis requires clinical, hormonal and
molecular investigation. The complexity of phenotypic presentation of AIS complicates both the
diagnostic procedure and genetic counselling of the affected families. More than 400 different AR
gene mutations have thus far been reported. This review focuses on the clinical features, molecular pathophysiology and management of AIS.
KEY-WORDS
Androgen insensitivity syndrome; AIS; Ambiguous genitalia; Androgen Receptor Gene.
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INTRODUÇÃO
O síndrome de insensibilidade aos
androgénios (SIA) é um distúrbio genético
ligado ao cromossoma X, caracterizado por
defeitos na virilização de indivíduos com
cariótipo 46,XY1,2. Resulta de mutações com
perda de função no gene do receptor dos
androgénios (RA), causando resistência
periférica aos androgénios1,2.
Foi descrito pela primeira vez em 1953
por John Morris e nessa altura designado
por “síndrome do testículo feminizante”3.
Desde 1953 que os mecanismos responsáveis pelo seu desenvolvimento têm sido
estudados. Em 1989, foi descoberta a localização exacta do gene humano do RA em
Xq11-124.
Os fenótipos clínicos do SIA são divididos em três categorias que reflectem a gravidade da resistência aos androgénios,
nomeadamente a insensibilidade completa
(SICA), parcial (SIPA) e ligeira (SILA) aos
androgénios.
PAPEL DOS ANDROGÉNIOS NO
DESENVOLVIMENTO SEXUAL
MASCULINO
Até à 6ª semana de gestação, independentemente do sexo cromossómico, os
embriões apresentam gónadas primordiais
bipotenciais, com genitais externos indiferenciados e dois ductos genitais internos, os
ductos de Wölff e de Müller5,6. Por volta da 6ª
ou 7ª semana de gestação, inicia-se a diferenciação da gónada embrionária em testículo, por acção do factor determinante testicular, o gene SRY, localizado no braço curto
do cromossoma Y, em conjunto com outros
factores codificados por genes localizados
nos autossomas ou no cromossoma X5.
Entre a 9ª e 13ª semanas de gestação, ocorre a diferenciação dos ductos de Wölff em
epidídimo, canal deferente e vesículas seminais por acção local da testosterona produ-
132
zida pelas células de Leydig fetais, sob a estimulação da gonadotrofina coriônica
humana (hCG). Com a diferenciação dos
ductos de Wölff, ocorre a regressão dos ductos de Müller por acção local da hormona
anti-Mülleriana (AMH), produzida pelas
células de Sertoli5.
A diferenciação masculina dos genitais
externos em pénis, bolsa escrotal e uretra
peniana ocorre entre a 9ª e 13ª semanas de
gestação e exige concentração adequada de
testosterona e a sua conversão em di-hidrotestosterona (DHT), um andrógenio mais
potente, por acção da 5∝-redutase a nível
dos tecidos-alvo5.
Na ausência de concentrações adequadas de testosterona e DHT, ocorre uma falha
na masculinização dos genitais, com desenvolvimento de um fenótipo feminino (com
clitóris, grandes e pequenos lábios e porção
inferior da vagina) ou graus variáveis de
ambiguidade genital5.
A hormona insulin-like factor 3 (INSL3) é
uma hormona produzida pelas células de
Leydig, igualmente importante na diferenciação sexual masculina. Este peptídeo está
envolvido na primeira fase de descida testicular trans-abdominal. A segunda fase, que
ocorre antes do nascimento, é a descida
inguino-escrotal, e é androgénio-dependente7. A acção dos androgénios nos tecidosalvo, requer a presença de receptores de
androgénios funcionais, que após a ligação,
activam a transcrição de genes específicos
nos tecidos-alvo. Desta forma, qualquer
anomalia na produção ou acção dos andrógenios, entre a 9ª e a 13ª semanas de gestação, num feto com cariótipo 46,XY leva à
masculinização incompleta, resultando em
pseudo-hermafroditismo masculino5.
GENE DO RECEPTOR DOS
ANDROGÉNIOS
O RA pertence a uma família de factores
de transcrição nuclear que inclui entre
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outros, os receptores de estrogénios, das hormonas tiroideias, da vitamina D, do ácido
retinóico, de glicocorticóides, de mineralocorticóides, e da progesterona8. Os receptores dos andrógenios, dos glicocorticóides,
dos mineralocorticóides e da progesterona
fazem parte, por sua vez, de uma sub-família dos factores de transcrição nuclear, que
estão agrupados pela sequência homóloga
e pela capacidade de activarem a transcrição de genes-alvo através do mesmo elemento de resposta hormonal8. Após a formação do complexo hormona-receptor, o
RA, interage directamente com os genesalvo para regular a sua transcrição.
Quando ocorre falha do receptor em activar
estes genes resulta em resistência hormonal.
O RA possui diferentes domínios funcionais: o domínio de regulação transcricional
(amino-terminal), o domínio de ligação ao
DNA que contém zinc fingers, a região hinge
e o domínio de ligação ao esteróide (carboxi-terminal) (Figura 1)1,8.
FIGURA 1: Gene humano do receptor de androgénios. Adaptado
de Galani e colaboradores1.
O gene do RA localiza-se no cromossoma X, entre os fragmentos Xq11-12 e possui
cerca de 90 kilobases (kb), contendo 8 exons
separados por introns cujos tamanhos varia
de 0,7 a mais de 26 kb (Figura 1)1,8. O DNA
complementar (DNAc) do RA apresenta
aproximadamente 2760pb. O exon 1 codifica o domínio activador da transcrição ou
aminoterminal, constituído por 555 aminoácidos e possui extensão correspondente
a mais de 50% da proteína do RA. Uma
característica deste domínio é apresentar
repetições de glutaminas (11-31 resíduos) e
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glicinas (16-27 resíduos)9, cuja importância
exacta não está completamente esclarecida,
porém repetições semelhantes são encontradas em vários factores de transcrição. A
expansão da repetição de poliglutaminas
para 40-65 resíduos está associada à atrofia
muscular espinhal/bulbar ou doença de
Kennedy. Esta expansão parece não afectar
a afinidade de ligação aos andrógenios,
mas pode causar diminuição na actividade
transcricional do receptor, talvez como
resultado da redução nos níveis do RNA
mensageiro (RNAm) e da proteína do RA,
identificada em pacientes com este tipo de
expansão10. Foi proposto que a actividade
transcricional do RA é inversamente proporcional à extensão de repetição de glutaminas. Alguns estudos epidemiológicos demonstraram que indivíduos com menor
extensão da repetição de glutaminas têm
maior risco de desenvolvimento de cancro
de próstata e geralmente apresentam doença mais avançada ao diagnóstico11. Os
exons 2 e 3 codificam o domínio de ligação
ao DNA, que possui cerca de 70 aminoácidos. O domínio de ligação ao DNA contém
dois iões zinco, cada um ligado ao enxofre
de 4 cisteínas, produzindo uma estrutura de
hélice-alça-hélice que interage com sequências específicas de DNA, denominadas elementos de resposta hormonal. O primeiro e
o segundo zinc fingers são codificados pelo
exon 2 e 3, respectivamente. O domínio de
ligação ao DNA determina a especificidade
da interacção do RA com o DNA. Três aminoácidos na base do primeiro zinc finger são
conservados entre os receptores de andrógenos, glicocorticóides, mineralocorticóides e
progesterona e ligam-se às sequências de
nucleotídeos amplificadoras da transcrição,
os elementos de resposta hormonal, localizadas em regiões próximas ou na sequência
de genes-alvo. O segundo zinc finger possui
aminoácidos que estabilizam a ligação do
DNA ao receptor, participam na dimerização do RA, e juntamente com a região
hinge, no transporte do citoplasma para o
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núcleo celular10. A região 5’ do exon 4 codifica a região hinge, que contém um sinal de
localização nuclear necessário para a translocação do complexo andrógenio/ receptor
do citoplasma para o seu local de acção
nuclear8,9. A porção 3’ do exon 4 e os exons 5,
6, 7 e 8 codificam o domínio de ligação aos
andrógenios, que contém cerca de 290 aminoácidos e representa 30% da proteína do
RA. Este domínio é responsável pela ligação
aos andrógenios, e participa na activação
transcricional, na dimerização do receptor e
interage com proteínas inibitórias (HSP)10. O
RNAm do RA foi identificado pela técnica de
Northern Blot em inúmeros tecidos humanos,
incluindo testículo, próstata, fibroblastos de
tecido genital, fígado e linhagens celulares
de cancro de próstata e de mama8.
MANIFESTAÇÕES CLíNICAS
O SIA representa provavelmente a
causa mais frequente de pseudo-hermafroditismo masculino12,13. Os indivíduos afectados apresentam cariótipo 46,XY, com testículos não completamente descidos e genitais externos femininos ou parcialmente
masculinizados. Como referido anteriormente, está tradicionalmente dividido em
três categorias de acordo com o fenótipo dos
genitais: síndrome de insensibilidade completa (SICA), parcial (SIPA) e ligeira (SILA)
aos androgénios.
SÍNDROME DE INSENSIBILIDADE
COMPLETA AOS ANDROGÉNIOS
A forma completa do SIA é relativamente rara, tendo uma prevalência estimada de
1 em cada 20 400 recém nascidos do sexo
masculino6. O seu fenótipo é o de um indivíduo do sexo feminino, apesar do cariótipo
46,XY e da formação de testículos normais,
que produzem concentrações adequadas de
testosterona para a idade e normalmente
metabolizada em DHT2.
134
A apresentação típica é a de uma adolescente fenotipicamente do sexo feminino,
sem ambiguidade sexual ao nascimento,
com desenvolvimento mamário normal,
escassez ou ausência de pêlos púbicos e axilares e com amenorreia primária1,2,8. O diagnóstico diferencial nesta idade é efectuado
com disgenesia gonadal completa, ou síndrome de Swey, no qual ocorre menor desenvolvimento mamário e baixa estatura2. A
idade do desenvolvimento mamário nestes
doentes não foi objecto de estudo de muitos
investigadores, porém, alguns autores,
reportam algum atraso, sendo coincidente
com a idade da puberdade nos rapazes 8,14.
Por outro lado, um estudo retrospectivo de 9
indivíduos pos-pubertários com SICA sugere
que a puberdade ocorre em idade semelhante às raparigas normais15.
Os indivíduos com a forma completa do
SAI, têm uma excelente feminização na
puberdade, com mamas normais ou
aumentadas, contornos corporais femininos
e ausência de acne, devido à produção de
estrogénios pelos testículos e pela aromatização periférica da testosterona5,6.
Em alguns casos, a suspeita de SICA
ocorre na infância, na presença de edemas
ou hérnias inguinais bilaterais1. As hérnias
inguinais bilaterais são raras nas meninas,
e em 1 a 2 % dos casos representam SICA2.
Alguns indivíduos têm suspeita de SICA
antes do nascimento, quando a amniocentese
revela um cariótipo 46,XY e a ecografia prénatal mostra genitais externos femininos2.
Os doentes com SICA, podem apresentar
uma vagina em fundo cego, estando habitualmente ausentes as estruturas derivadas
dos ductos de Wolff, tais como epidídimo,
vasos deferentes e vesículas seminais e
ausência de próstata2,16. As estruturas derivadas dos ductos de Müller ocorrem igualmente com pouca frequência em doentes
com SICA17-19. Porém, num estudo de Rutgers
e Scully, os derivados dos ductos de Müller,
tais como pequenas trompas de falópio,
foram detectadas em um terço dos 43 casos
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estudados20. Num outro estudo que incluiu
11 doentes com SICA, apenas um doente
com 14 anos e meio, que apresentava a
mutação p.L881P exibia uma trompa de
Falópio unilateral21.
Em alguns doentes existe história familiar de um familiar do sexo feminino com
hérnia inguinal corrigida na infância, com
cariótipo 46,XY. Porém, um terço dos doentes não tem história familiar e apresentamse com mutações de novo.
SÍNDROME DE INSENSIBILIDADE
PARCIAL AOS ANDROGÉNIOS
Devido à grande variabilidade de manifestações clínicas e à existência de formas
subtis ou atípicas de resistência aos androgénios, tais como a infertilidade masculina,
a prevalência da forma parcial de SIA é desconhecida22.
Os diferentes fenótipos reflectem a gravidade da subvirilização. Os indivíduos com
SIPA com um fenótipo feminino, apresentam clitoriomegalia discreta, com fusão
parcial dos pequenos lábios e pêlos púbicos
na puberdade. Na apresentação com fenótipo masculino os indivíduos apresentam
micropénis, hipospadia perineal e criptorquidia (esta forma é igualmente designada
de síndrome de Reifenstein)1,8,23.
Nos doentes com SIPA, as estruturas
derivadas dos ductos de Wolff podem estar
parcialmente ou completamente desenvolvidas, dependendo do fenótipo bioquímico
do RA e os testículos estão frequentemente
não descidos, localizando-se na região
inguinal ou no escroto/grandes lábios24.
Os indivíduos com SIPA têm habitualmente ginecomastia e testículos com um
número reduzido de células germinativas,
com consequente azoospermia e podem
mais tarde, na puberdade, desenvolver carcinoma in situ24.
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SÍNDROME DE INSENSIBILIDADE
LIGEIRA AOS ANDROGÉNIOS
As formas ligeiras de SIA foram detectadas em estudos de infertilidade masculina,
que sugeriam defeitos na acção dos androgénios2,25. Verificou-se que em alguns homens
com oligospermia, com testosterona normal
e LH elevada existia uma mutação no gene
do RA que conferia resistência aos androgénios. O SILA pode manifestar-se igualmente
por ginecomastia isolada no jovem adulto
provavelmente com história prévia de hipospadias minor corrigidas na infância.
DIAGNÓSTICO
O diagnóstico de SIA deve ser suspeito
em qualquer criança com cariótipo 46,XY
que apresenta ambiguidade genital ou
fenótipo feminino, na qual a resposta da
testosterona e DHT ao teste de estimulação
com hCG é normal para o sexo masculino.
Em alguns casos existe história familiar que
sugere hereditariedade ligada ao cromossoma X. A ecografia pélvica confirma a presença de testículos.
A confirmação do diagnóstico pode ser
efectuada pela demonstração da ligação
anormal dos androgénios ao RA em cultura
de fibroblastos da pele dos genitais ou pela
identificação da mutação inactivadora no
gene do RA6,9.
Classicamente, os indivíduos em idade
pós-pubertária portadores de SIA apresentam níveis séricos elevados de LH e concentrações normais ou elevadas de FSH, estrógenios e testosterona, comparativamente
aos homens normais. Os estudos efectuados
em recém-nascidos e crianças com a forma
completa de SIA revelaram que os níveis
séricos de LH e testosterona não estão acima
do normal nesta faixa etária8. A produção
de estrógenios pelo testículo e pela aromatização periférica da testosterona está elevada em cerca de duas vezes quando compa-
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rada à de homens normais. A relação entre
os níveis sanguíneos de testosterona e DHT
está significativamente elevada, porém não
compatível com os níveis encontrados na
deficiência de 5∝-reductase tipo 28.
ABORDAGEM TERAPÊUTICA
Existem vários aspectos a considerar na
abordagem terapêutica, nomeadamente o
grau de resistência, o risco de desenvolvimento de tumores gonadais, a necessidade
de cirurgia e o aconselhamento genético.
SÍNDROME DE INSENSIBILIDADE
COMPLETA AOS ANDROGÉNIOS
Nos indivíduos com a forma completa,
com genitais externos femininos normais e
que cresceram como mulheres não há qualquer dúvida quanto à atribuição do sexo
feminino1. Uma vez que a feminização destes indivíduos ocorre em parte pela acção
dos androgénios testiculares e em parte pela
conversão periférica de androgénios em
estrogénios, opta-se frequentemente, pela
remoção testicular após a puberdade quando a feminização está completa.
A razão para a gonadectomia póspubertária é o risco de malignização testicular, que é rara antes da puberdade. Goulis e
colaboradores descreveram um caso de
hamartoma testicular bilateral num indivíduo de 18 anos com SICA, portador da
mutação R831X do gene do RA26.
A gonadectomia pré-pubertária está
indicada se testículos inguinais forem fisicamente ou esteticamente desconfortáveis e se
a herniorrafia inguinal for necessária. Neste
caso, está indicada a terapêutica de substituição com estrogénios para iniciar a puberdade e manter a feminização. Em alguns
casos, é necessária a realização de dilatações vaginais para evitar a dispareunia.
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SÍNDROME DE INSENSIBILIDADE
PARCIAL AOS ANDROGÉNIOS
Nas formas de SIPA com fenótipo feminino, a abordagem é semelhante ao SICA,
com excepção de que se preconiza a gonadectomia pré-pubertária para evitar o desconforto do crescimento da clitoromegalia
na puberdade1. Nos casos de ambiguidade
genital ou fenótipo masculino, a escolha do
sexo é um processo complexo que requer a
abordagem de uma equipa multidisciplinar, devendo ser solucionado o mais rapidamente possível. Para além das considerações anatómicas e cirúrgicas, a escolha do
sexo masculino envolve terapêutica com
testosterona.
SÍNDROME DE INSENSIBILIDADE
LIGEIRA AOS ANDROGÉNIOS
Nos indivíduos com infertilidade, o
objectivo terapêutico principal é a promoção da espermatogénese1.
ACONSELHAMENTO GENÉTICO
Cerca de 70% das mutações no gene RA
são hereditárias e de transmissão ligada ao
cromossoma X1. As mutações de novo representam 30% dos casos de mutações RA,
sendo o risco de transmissão muito baixo,
com excepção das mutações germline de
novo da mãe. Nesta circunstância, a presença de mosaicismo germinativo celular
pode ser assumida e o risco de transmissão
é elevado27. Porém, a possibilidade de
mosaicismo germline não pode ser excluída
em nenhum caso de mutação de novo do
gene RA, de modo que é necessária precaução no aconselhamento genético destas
famílias.
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