P.º R. P. 243/2004 DSJ-CT - Doação – Dispensa da colação por escritura posterior à de doação; necessidade ou desnecessidade da declaração de aceitação da dispensa por parte do donatário. 1 – Em 23 de Julho de 2004 foram requisitados na Conservatória do Registo Predial de …, pelas Aps. 1 e 2, respectivamente, os registos de cancelamento da inscrição F-1 e de conversão da inscrição C~1, ambas incidentes sobre o prédio descrito sob o n.º 1605 da freguesia de …. A i n s c r i ç ã o F - 1 d i z r e s p e i t o a u m ó nu s d e r e d u ç ã o d a d o a ç ã o s u j e i t a a colação e o pretendido averbamento de cancelamento foi recusado com o fundamento escritura de da falta dispensa de aceitação de colação, do donatário título que instrutório não do interveio aludido na registo. Invocaram-se, como suporte legal da recusa, os artigos 406.º e 457.º do Código Civil – nos termos dos quais, respectivamente, o contrato deve ser pontualmente cumprido, só podendo modificar-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei, e a promessa unilateral de uma prestação só obriga nos casos previstos na lei –, e os artigos 68.º e 69.º, n.º 2, do Código do Registo Predial. 2 – No recurso hierárquico, admitindo embora que se trata de uma situação controversa, o recorrente alinha com os que defendem que a dispensa de colação pode ser feita unilateralmente pelo doador; invoca, a propósito, a orientação sustentada por Capelo de Sousa, no seu livro de direito das sucessões, e a declaração de voto formulada no parecer do Conselho Técnico, emitido no P.º 4/96 Not. 3, em que se defende não ser necessária a intervenção do donatário na escritura de dispensa de colação. 3 – O Sr. Conservador recorrido manteve o seu despacho, remetendo, em sede de sustentação, para os argumentos que rebatem a tese do recorrente e que foram invocados no aludido parecer P.º 4/96 Not. 3, para concluir que a dispensa da colação separada da doação tem natureza bilateral e daí a necessidade de conhecimento do donatário. 4 – Ouvida sobre a questão, a Sr.ª Notária que lavrou a escritura de dispensa da colação em apreço pronunciou-se no sentido de que a falta de intervenção do donatário não resultou de lapso, mas antes do facto de entender que tal intervenção não é necessária, já que se trata de um 1 negócio jurídico unilateral, apontando nesse sentido o disposto no artigo 2113.º do Código Civil, que prevê a hipótese da dispensa ser efectuado por testamento. Invoca a favor da posição que sustenta a referida declaração de voto e reafirma a ideia, já expressa nestes autos, de que se trata de um assunto bastante controverso, que tem vindo a dividir eminentes juristas. 5 – É, pois, sobre o problema de saber se é ou não necessária a aceitação do donatário na dispensa de colação concedida posteriormente à escritura de doação a que respeita, por acto inter vivos, que o Conselho é chamado a pronunciar-se, sendo que o processo é próprio e válido, o recurso foi interposto em tempo, e não há nulidades, excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito. 6 – A posição deste órgão colegial relativamente à questão em apreço data de Julho de 1996, altura em que, no parecer supra referenciado, se formularam as conclusões seguintes: “I – O contrato de doação só pode ser modificado por mútuo consentimento dos contraente;, II – A lei não admite, genericamente, a declaração unilateral de vontade como fonte de dispensa da colação; III – Por isso, na dispensa da colação concedida por acto entre vivos, em separado da doação, é necessária a aceitação do donatário.”. As razões então invocadas na respectiva fundamentação, bem como os motivos alinhados na declaração de voto emitida a propósito em defesa da posição contrária, consubstanciam as teses que divergentemente têm vindo a ser sustentadas pela doutrina. Vamos, então, proceder à explanação e ao cotejo de umas e outras. 6.1. – Começamos pelas sustentadas no parecer. Independentemente da questão de saber se a dispensa da colação deve ser considerada como parte integrante da doação e acto acessório desta ou configurada antes como um negócio autónomo 1 , entende-se que a desnecessidade ou necessidade de aceitação do donatário dependerá da 1 Conquanto, na parte final do parecer, se refira “… relativamente à dispensa (… apesar de não ser uma nova doação, no acto da sua concessão impera o animus donandi, de tal sorte que por efeito desta o que até então se configurava uma mera antecipação da herança se volve em verdadeira liberalidade)”. 2 existência ou inexistência de preceitos que admitam, ou a modificação do contrato por vontade exclusiva do doador que nele pretenda incluir a cláusula de dispensa, ou, genericamente, a declaração unilateral como fonte de dispensa. Ora, “… a gratuidade da dispensa e o facto dela só resultarem b e n e f í c i o s o u v a n t a g e n s p a r a o d o n a t ár i o n ã o d e m o n s t r a m , s ó p o r s i , q u e a lei prevê ou tipifica o negócio jurídico unilateral inter vivos da dispensa da colação, ou que admite a modificação do contrato a que esta se refira, por vontade exclusiva do doador”. O facto da lei permitir expressamente a dispensa da colação por via testamentária não pode ser entendido como a admissão legal genérica dessa dispensa por declaração unilateral do doador. Não só porque o ordenamento admite o negócio excepcional – jurídico por “… se unilateral ter por entre vivos irrazoável (fora apenas dos com casos carácter especiais previstos na lei) manter alguém irrevogavelmente obrigado perante outrém, c o m b a s e n u m a s i m p l e s d e c l a r a ç ã o u n i l a t e r a l d a v o n t a d e ; … ” –, m a s t a m b é m porque, sendo embora o testamento um negócio jurídico unilateral, destinase a produzir efeitos por morte do seu autor, pelo que não parece adequado estabelecer paralelismo entre este negócio sucessório e o negócio jurídico unilateral entre vivos, atentas as profundas diferenças entre as duas figuras, em especial, a livre revogabilidade do testamento pelo seu autor, em contraponto com a irrevogabilidade da declaração unilateral do doador a autorizar a dispensa. Acresce que o n.º 1 do art.º 2113.º do Código Civil, ao prever a dispensa da colação pelo doador, só terá tido em vista atribuir-lhe o poder de afastar a aplicação da norma naturalmente supletiva que determina a colação (art.º 2104.º, C.Civil), e não proceder à indicação das fontes donde pode nascer a dispensa, já que se outra tivesse sido a sua finalidade, designadamente, “… tipificar o negócio jurídico unilateral inter vivos da dispensa da colação, … a lei tê-la-ia manifestado de forma inequívoca…”. A favor deste entendimento sobre a “ratio” do aludido preceito militariam o facto de também na vigência do Código Civil de 1867 – não obstante a disposição relativa à dispensa da colação aludir apenas à declaração do doador – a opinião dominante ir no sentido da necessidade da dispensa feita em separado da doação, por acto entre vivos, ser aceita pelo donatário, e a circunstância de não decorrer dos trabalhos preparatórios do actual Código Civil a intenção de adoptar soluções diversas das tidas como aceites pela legislação anterior. 3 Além de que e por último não faria sentido exigir a aceitação do donatário na doação feita pelo ascendente ao presuntivo herdeiro legitimário e prescindir dela na dispensa de colação não testamentária posterior à doação, já que, em qualquer dos casos, a consequência é a mesma, ou seja, ao donatário é atribuído um benefício exclusivo ou definitivo, em detrimento dos demais herdeiros legitimários do doador. “Procedem, assim, relativamente à dispensa (…) as razões pelas quais a lei exige na doação a aceitação do donatário, como elemento da validade do negócio, nomeadamente a necessidade de acautelar os interesses tanto do doador, como da sua família, contra os impulsos liberais ou contra as liberalidades precipitadas ou excessivas daquele”. 6.2 – Por seu turno, de acordo com a referenciada declaração de voto e partindo do princípio enunciado como metodologia de trabalho no parecer a q u e n o s r e p o r t a m o s , t r a d u z i d o n a e x p r e s s ã o s e g u i n t e :” … a r e s p o s t a à questão da afirmativa, necessidade se não de houver aceitação preceito do que donatário admita a há-de modificação ser do contrato por vontade exclusiva do doador que nele pretenda incluir a cláusula da dispensa”, tal preceito acha-se contido no n.º 2 do art.º 2113.º do Código Civil, que, na parte respeitante à dispensa da colação, autoriza a modificação do contrato por vontade exclusiva do doador, consubstanciando, desta forma, um dos casos especiais a que se refere o art.º 457.º do mesmo Código (segundo o qual alguém se mantém obrigado perante outrem com base em simples declaração unilateral da vontade), sem prejuízo da possibilidade reconhecida ao donatário de renunciar expressa ou tacitamente a esse benefício, conferindo o valor dos bens na partilha. Parafraseando Capelo de Sousa, sustenta-se que a dispensa de colação, quer como cláusula integrante do contrato de doação, quer, em separado deste, como negócio jurídico bilateral ou unilateral receptício ou não receptício, envolve sempre uma declaração negocial subordinada aos requisitos fixados no art.º 240.º2 e seguintes do Código Civil, e admite-se a possibilidade da dispensa de colação ter lugar por negócio jurídico unilateral entre vivos. “É que, sendo possível tal dispensa por negócio jurídico u n i l a t e r a l m o r t i s c a u s a ( c f r . a r t . º 2 1 1 3 .º , n . º 2 ) , p a r e c e h a v e r i g u a l m e n t e razões materiais para o ser também inter vivos, dada a sua gratuitidade. Tanto mais que a expressão pelo doador e a sua ratio legis inculcam a 2 Cremos que houve lapso na referência ao número do artigo, já que o correcto, em função da matéria versada, será o art.º 217.º. 4 ideia do seu enquadramento no numerus clausus dos negócios unilaterais previsto no artigo 457.º.”.3 Relativamente à diferença entre a dispensa testamentária da colação e a concedida por declaração unilateral fora do testamento, traduzida na livre revogabilidade da primeira e na irrevogabilidade da segunda, entendese4 que não pode servir de argumento a favor da tese sufragada no parecer, porque “… isso resulta de características próprias do acto de que se queira lançar mão. Também a disposição de bens, a título gratuito se pode fazer por doação ou por testamento, mas só no primeiro caso ela é definitiva na data da declaração negocial, importando,… ao disponente, conhecidas as consequências, escolher a via a utilizar.”. Em apoio da sua tese, a declaração de voto em apreço transcreve (a propósito de uma recomendação dos Serviços de Inspecção da D. G. R. N., datada de 1968, nos termos da qual o doador que tenha imposto ao herdeiro legitimário a obrigação de colação e que mais tarde resolva dispensá-lo dessa obrigação, pode, mesmo unilateralmente, fazê-lo, conforme o permite o art.º 2113.º do Código Civil) a seguinte opinião de Albino de Matos sobre o assunto: “Não se estranhe a possibilidade de o 5 doador, unilateralmente, dispensar o donatário da colação, independentemente da aceitação dessa dispensa pelo donatário, assim se alterando unilateralmente um contrato, uma convenção bilateral. Pois é, afinal, a própria lei a autorizar a dispensa em acto unilateral, em testamento (artigo 2113-2). Evidentemente, segundo os princípios gerais, no caso inverso – doação com dispensa da colação, que posteriormente pretende impor-se – a alteração só é possível em acto bilateral, com mútuo consenso das partes, doador e donatário.”. 7 – Expostas que foram as orientações em confronto e referidos os f u n d a m e n t o s e m q u e s e a p o i a m o s d ef e n s o r e s d e c a d a u m a d e l a s , n ã o sobram dúvidas de que, para responder ao problema em foco, há que 3 Autor citado, in “Lições de Direito das Sucessões”, vol. II, 3.ª edição, pág. 179, nota 458. Mais uma vez invocando a seu favor o referido Autor, ob. e pág. cits., nota 459: “Poderá, inversamente, o de cuius submeter à colação bens doados que no momento da doação tenha dispensado? Parece-nos que não, dado o carácter contratual (art.º 940.º, n.º 1) e definitivo (arts. 406.º e 969.º e segs.) das doações e o facto de a doação se perfeccionar na data da troca das declarações negociais (art.º 954.º), que contiveram e pressupuseram a dispensa da colação. Tudo isto, a não ser que o doador tenha reservado no contrato de doação dispensada de colação a faculdade de revogar esta dispensa, o que nos parece possível. E a mesma linha de orientação se aplicará nos casos de dispensa inter vivos de colação, posterior à doação, por negócio bilateral ou unilateral (…), mas já não… na dispensa testamentária da colação.”. 5 No “Dicionário do Notariado”, ficha n.º 241. 4 5 decidir, face às disposições legais em vigor, se é ou não indispensável a intervenção do donatário na declaração não testamentária do doador a dispensar a colação na doação que antes lhe havia efectuado. O que passa, naturalmente, pela revisão e análise dos preceitos relativos à doação e à colação, e a tudo o que, em ordem ao objectivo visado, lhes ande associado. 7.1 – Doação. A doação é concebida pela nossa lei civil como um contrato pelo qual uma pessoa por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício de outro contraente (art.º 940.º, C.Civil). Como decorre da noção legal, são três os requisitos exigidos para que exista uma doação: – espírito de liberalidade: a generosidade ou espontaneidade do doador em beneficiar o donatário, o seu “animus donandi”; o intuito de “ f a z e r b e m ” 6, e n r i q u e c e n d o o p a t r i m ó n i o d o d o n a t á r i o ; – diminuição ou empobrecimento do património do doador; – disposição gratuita de certos bens ou direitos, ou assunção de uma dívida, em benefício do donatário, ou seja, a atribuição patrimonial sem correspectivo. Sendo um contrato, a doação é sempre um negócio jurídico bilateral, que nasce do enlace de duas vontades, a do proponente-doador e a do aceitante-donatário, doador 7 conquanto seja fonte de obrigação apenas para o que, através do vínculo jurídico assim criado, fica adstrito para com o donatário à realização de uma prestação. Trata-se, pois, de um contrato unilateral. O concurso daquelas duas vontades, necessário à caracterização 8 jurídica do contrato , parece todavia não se verificar nas doações puras 6 Por isso os autores antigos lhe chamavam “contrato de beneficência”. Sem prejuízo dos encargos que, por imposição do doador, possam resultar para o donatário, nas chamadas doações modais ou onerosas, sendo que tais encargos hão-de ter valor inferior ao dos bens doados (art.º 963.º, C. Civil). 8 “Se não houver proposta, não há doação; se não houver aceitação, a proposta caduca (art.º 945.º).”. – Baptista Lopes, in “Das Doações”, pág. 10. Vide tb., a propósito, Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Vol. II, 3.ª edição, pág. 257: “Foi a tese tradicional da doação real – transferência de bens – que pôs mesmo em crise, em alguns países a natureza contratual do negócio – a sua bilateralidade. Por se verificar que dela não resultavam obrigações (…), foi qualificada a doação, em algumas legislações, como acto e não como contrato(…). Não se levantou este problema entre nós …, quer por virtude do conceito amplo de contrato que foi adoptado (cfr. art.º 405.º) – atenda-se a que o ciclo negocial só se completa com a adesão do donatário, mediante um acto de aceitação, não existindo 7 6 (sem encargos) feitas a incapazes, já que estas, consoante decorre do previsto no n.º 2 do art.º 951.º, produzem efeitos independentemente de aceitação em tudo o que aproveite aos donatários. Esta, digamos, excepção ao regime geral da doação tem recebido da doutrina explicações diversas, d e s d e o s q u e e n t e n d e m q u e t a i s d o a çõ e s a p r e s e n t a m e s t r u t u r a u n i l a t e r a l 9, a o s q u e a c h a m q u e a l e i p r e s u m e , n e s s e s c a s o s , a a c e i t a ç ã o d o d o n a t á r i o 10. Ressalvado o caso das doações puras feitas a incapazes a que acabámos de nos referir, a aceitação do donatário é necessária à conclusão do processo constitutivo do contrato de doação, uma vez que, antes dela acontecer, não existe o acordo de vontades, elemento essencial da formação de qualquer contrato, mas apenas uma proposta de doação (I n v i t o b e n e f i c i u m n o n d a t u r : i . é . , “ A n i n g u é m p o d e s e r i m p o s t o u m b e n e f í c i o ”) . Proposta que, se não for aceita em vida do doador, caduca; mas como não está sujeita aos prazos de caducidade fixados no n.1.º do art.º 228.º, para as propostas contratuais gerais, a aceitação pode ocorrer enquanto o doador for vivo, desde que seja observada a forma da escritura pública (quando respeite a imóveis) e declarada ao doador; declaração que pode ser feita por qualquer dos meios admitidos para a declaração negocial (arts. 217.º e segs.). É o que decorre das disposições conjugadas dos artigos 945.º, n.º s 1 e 3, 947.º, n.º 1 e 969.º, n.º2, C.C.. “Os direitos e obrigações em gérmen na proposta só nascem no momento em que o contrato se aperfeiçoa – resultando o contrato da fusão de vontades do p r o p o n e n t e e d o a c e i t a n t e , e n ã o a p e n a s d a d e c l a r a ç ã o d o p r i m e i r o . ” . 11 7.2 – Colação. A colação, cuja definição legal resulta do artigo 2104.º do Código Civil, consiste na restituição à massa da herança, pelos descendentes que pretendam entrar na sucessão do ascendente, para efeito de igualação na até esse momento senão uma simples proposta contratual (cfr. art.º 945.º) – quer por causa da própria expansão que se deu à figura da doação.”. 9 Galvão Teles, in “Dos contratos em geral”, 1947, conforme referência feita por Baptista Lopes, in ob. e pág. cits. Também Mário Júlio de Almeida Costa propende para a ideia de que a doação pura feita a incapaz constitui um negócio jurídico unilateral, posição que assume relevo prático quanto à relevância ou irrelevância da oposição do representante legal do incapaz, impondo, como corolário lógico, a segunda – “Direito das Obrigações”, 9.ª edição, pag. 424, nota 1. 10 Vide, por todos, Pires de Lima e Antunes Varela, in ob. cit., pág. 275: “Esta solução é juridicamente anómala, na medida em que permite a celebração de um contrato unilateralmente; mas é perfeitamente compreensível, desde que as doações puras não podem trazer prejuízos para os donatários. Tudo se passa, por conseguinte, como presumindo a lei a aceitação por parte dos representantes legais dos incapazes, visto não haver razões económicas que justifiquem a recusa, nem ser provável a existência de razões de ordem moral que se oponham à aceitação.”. 11 Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 10.ª edição, pág. 439. 7 partilha, dos bens ou valores que lhes foram doados por este; mas, de acordo com o disposto no art.º 2105.º, só os descendentes que eram, à data da doação, presuntivos herdeiros legitimários do doador. Tem, assim, a colação por objectivo estabelecer a igualação na p a r t i l h a d o d e s c e n d e n t e d o n a t á r i o c om o s d e m a i s d e s c e n d e n t e s ( q u a n d o o s haja, obviamente) presunção de distinguir aquele do que, ao autor da h e r an ç a , fazer tal doação, filho, beneficiando-o baseando-se, o pai doador relativamente para não aos isso, na pretendeu outros, mas apenas, tocado pelas suas necessidades pessoais e familiares, fazer-lhe um adiantamento por conta da quota hereditária, que pensa deixar igualmente a todos os filhos. Mas não é por essa razão que as doações feitas àqueles descendentes deixam de ser verdadeiros negócios jurídicos bilaterais que reúnem os requisitos e produzem os efeitos próprios do tipo de contrato em que, nos termos legais, se analisa a doação, designadamente, como contratos reais “quoad effectum”, que são, a transferência, na data da sua celebração, dos direitos reais sobre os imóveis delas objecto. Trata-se, pois, de doações sujeitas à respectiva disciplina jurídica, em relação às quais, todavia, a lei e s t a b e l e c e u a p r e s u n ç ã o 12 d e q u e s ã o f e i t a s c o m o a n t e c i p a ç ã o d a q u o t a hereditária do donatário; presunção que tendo como fonte a vontade do doador, pode ser ilidida pela manifestação, em sentido contrário, dessa mesma vontade. Nisto se traduz a chamada dispensa da colação, de que se ocupa o art.º 2113.º. Com a dispensa, o doador já não tem em vista antecipar bens por conta da legítima do filho, igualá-lo aos demais, mas pô-lo antes em vantagem frente a eles, patenteando, assim, o mesmo interesse jurídico e e c o n ó m i c o q u e e s t á p r e s e n t e n a s d o a ç õ es f e i t a s a e s t r a n h o s , s u j e i t a n d o a respectiva liberalidade à redução por inoficiosidade, desde que isso se mostre necessário para preencher a legítima dos herdeiros da sucessão. 12 Presunção que, aliás, não funciona, independentemente da manifestação em sentido contrário da vontade do doador, quando o donatário herdeiro legitimário repudie a herança, não sendo assim obrigado a trazer os bens à colação. É, como refere Pereira Coelho, no “Direito das Sucessões” o chamado repúdio para escusa de colação. Já Cunha Gonçalves, in “Tratado de Direito Civil”, vol. X, pág. 715, referia, a propósito: “Poderá estranhar-se que, deste modo, o donatário pode opor-se à vontade do doador, quando este não tenha querido excluir a colação. Mas o doador não pode impedir que o donatário prefira a doação à legítima. Se o doador quer obrigar o donatário à colação, será preferível não fazer a doação.”. E Pires de Lima e Antunes Varela, na obra cit., vol VI, pág. 190, em comentário ao art.º 2114.º:”O herdeiro legitimário repudia, porque a lei não quer tolher a liberdade de o fazer, e nem por isso revoga a doação, porque ela foi livremente realizada pelo doador e livremente aceite pelo donatário. Mas imputa-a nesse caso na quota indisponível do doador, para não prejudicar os donatários que, de outro modo, poderiam ser prejudicados com a inoficiosidade da liberalidade que receberam.” 8 Em caso de dispensa, o donatário cumula os dois benefícios, a doação e a herança. “ O herdeiro-donatário alcança uma benefício ainda em vida do doador, pois torna-se proprietário dos bens desde a doação; e pode usá-los e fruí-los (salvo se a doação foi feita com reserva do usufruto) não tendo de conferir à herança os rendimentos produzidos até à morte do doador (art.º 2 1 1 1 . º ) . ” 13 A inserção sistemática do instituto da colação no capítulo respeitante à partilha da herança é reveladora do domínio fundamentalmente se vão produzir os seus efeitos. 14 jurídico em que Daí que, referindo-se embora a um acto entre vivos (a doação feita pelo doador a um dos seus descendentes), a colação não deixa de inspirar-se na vontade presumível do de cuius. E como esta pode sempre modificar-se livremente, enquanto o testador for vivo, o que o citado art.º 2113.º estatui não é mais do que o imediato corolário dessa ideia, ao prescrever, no seu n.º 1, que “ A colação pode ser dispensada pelo doador no acto da doação ou posteriormente.” (sublinhámos). dispensa 15 deve E é o n.º 2 que elucida sobre a forma por que essa ser efectuada, ao dispor:”Se a doação tiver sido a c o m p a n h a d a d e a l g u m a f o r m a l i d a d e e x t e r n a , s ó p e l a m e s m a f o r m a, o u p o r t e s t a m e n t o , p o d e s e r d i s p e n s a d a . ” ( s u b l i n h a d o t a m b é m n o s s o ) . 16 A dispensa da colação, como manifestação que é da vontade do doador, pode, assim, ser feita no próprio acto da doação ou posteriormente, por declaração expressa ou tácita, mas que seja inequívoca, como é 17 jurisprudência corrente , envolvendo sempre uma declaração negocial com o s r e q u i s i t o s p r e v i s t o s n o s a r t i g o s 2 1 7 . º e s e g u i n t e s 18, q u e r f u n c i o n e c o m o 13 Galvão Teles, in “Direito das Sucessões”, Lisboa-1971, pág. 182. Vide Capelo de Sousa in ob. cit., pág. 181, nota 465: “A colação, apesar de ter por objecto liberalidades em vida, só é passível de realização após a abertura da sucessão, aquando da partilha hereditária e uma vez definidos quais os herdeiros descendentes capazes e aceitantes. O que se compreende, para além do mais, pela mutabilidade do património do de cuius e do seu círculo de herdeiros; sendo certo que a vocação, a aceitação e a partilha hereditárias se fazem ou retroagem ao momento da abertura da sucessão.”. 15 Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. VI, pág. 189. 16 Sem prejuízo dos casos em que essa dispensa decorre directamente da lei, como acontece no caso de:: despesas com o casamento, alimentos, estabelecimento e colocação dos descendentes, na medida em que se harmonizem com os usos e a condição social e económica do falecido (art.º 2110.º, n.º 2); frutos da coisa doada percebidos antes da abertura da sucessão (consequência lógica da especificidade própria da doação feita a descendente, considerada, em princípio, como antecipação da quota hereditária); e repúdio da herança pelo herdeiro-donatário que não tenha descendentes que o representem. 17 Baptista Lopes, ob. cit., pág.206. 18 Tenha-se presente o que, a respeito, dispõe este artigo 217.º do Código Civil, sob a epígrafe Declaração expressa e declaração tácita: “ 1 – A declaração negocial pode ser expressa ou tácita: é expressa, quando feita por palavras, escrito ou qualquer outro meio directo de manifestação da vontade, e tácita, quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam. 2 – O carácter formal da 14 9 cláusula integrante do contrato de doação, quer tenha lugar posteriormente, c o m o n e g ó c i o j u r í d i c o b i l a t e r a l o u u n i l a t e r a l n ã o r e c e p t í c i o . 19 Dúvidas não existem quanto à configuração da dispensa efectuada pelo doador no próprio acto da doação, já que a mesma forma um todo com o contrato do qual é cláusula integrante. Quando só em data posterior à da celebração do contrato de doação, o doador resolve dispensá-la da colação, um dos instrumentos que tem à sua disposição é, como vimos, o testamento. O testamento é, como se sabe, um “… acto unilateral e revogável pelo qual uma pessoa dispõe, para depois da morte, de todos os seus bens ou parte deles” (art.º 2179.º, n.º 1, C. Civil). Reveste, assim, a natureza de um negócio jurídico unilateral não receptício, que se caracteriza pela existência de uma única parte, cuja manifestação de vontade vale ou é idónea a produzir os efeitos jurídicos pretendidos, independentemente da sua comunicação a outrem. E é mediante tal acto unilateral que o doador pode expressar a sua vontade no sentido de que a liberalidade concedida ao herdeiro legitimário continue, como tal, após o seu decesso, ficando fora das operações de partilha – como se de uma doação a estranhos se tratasse –, e não como mera antecipação intacta a da respectiva possibilidade de q u o ta alterar hereditária, aquela mantendo, vontade, atenta todavia, a livre revogabilidade, enquanto vivo for, da disposição testamentária. Mas, e como vimos, de acordo com o citado preceito legal, o doador também pode conseguir aquele objectivo, através da mesma forma utilizada para a doação, se esta tiver sido acompanhada de alguma formalidade externa. A explicação deste regime da forma a que a lei sujeita a dita dispensa r e s i d i r á n o f a c t o d e e l a f u n c i o n a r , q u a nd o p o s t e r i o r a o a c t o d a d o a ç ã o , c o m o uma segunda doação (atento o novo benefício que gera para o donatário), uma vez que, a partir da dispensa, a doação anterior que estava condenada a ser restituída à massa da herança, para imputação do valor na quota declaração não impede que ela seja emitida tacitamente, desde que a forma tenha sido observada quanto aos factos de que a declaração se deduz.”; e, quanto à forma, o previsto no art.º 220.º, relativo à inobservância da forma legal: “A declaração negocial que careça da forma legalmente prescrita é nula quando outra não seja a sanção especialmente prevista na lei.”. 19 Ou também, no entendimento de Capelo de Sousa, in ob. cit., pág. 179, nota 458, “ … quer tenha lugar posteriormente, como negócio jurídico… unilateral receptício.”. 10 hereditária, passa a considerar-se como efectuada por conta da quota disponível do doador, alterando-se, assim, a sua fisionomia, por forma r a d i c a l . 20 N e s t a l i n h a d e p e n s a m e n t o , p o d e r í a m o s s e r l e v a d o s a c o n c l u i r q u e seria, então, indispensável, não só o recurso à escritura pública, como a intervenção na mesma do respectivo donatário, já que a sua aceitação é, como vimos, elemento caracterizador do respectivo contrato. A circunstância de a lei submeter a dispensa de colação à mesma forma (escritura pública, “in casu”) a que legalmente está sujeito o contrato de doação não significa, por si só, que essa remissão implique a celebração do mesmo tipo de contrato: uma coisa é a forma; outra é o tipo de contrato cuja eficácia a exige. Certo é que preside à dispensa o mesmo “animus donandi” característico da própria doação, pelo que, incorporada no próprio acto desta, obedece ao princípio do contrato – aceite pelo legislador português –, nos termos do qual só esta figura jurídica pode, em regra, criar obrigações. Admitir a possibilidade da dispensa ser concedida por escritura posterior à doação com a intervenção única do doador – ou seja, mediante a celebração de um negócio jurídico decorrente de uma vontade isolada, no qual a unilateralidade se verifica, não apenas nos efeitos (como sucede no contrato de doação), mas também na respectiva formação –, é postergar aquele princípio. Pelo que este tipo de negócio – em resultado da consagração legal de tal princípio – só poderia produzir os seus efeitos nos casos previstos na lei (art.º 457.º, C.Civil). Por conseguinte, a questão pertinente que se coloca é sobre se o citado n.º 2 do art.º 2113.º autoriza a dispensa de colação por negócio jurídico unilateral entre vivos, já que, como referimos, a admissibilidade é expressa quanto ao negócio jurídico unilateral “mortis causa”. P o d e , p o r é m , p e r f e i t a m e n t e s u s t e n t ar - s e , s e m s u b v e r t e r o s c o n c e i t o s nem forçar a lei, que a escritura pela qual o doador apenas dispensa de colação a doação efectuada por anterior escritura, integra também ela, não uma declaração acessória, mas uma outra e nova doação. De facto, também a esta preside uma intenção de liberalidade, de “bene facere”e nela existe uma atribuição de cariz patrimonial que implica um empobrecimento para o doador e um benefício para o donatário. Pois, como se referiu anteriormente, o herdeiro-donatário obtém um novo benefício que consiste 20 Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. VI, pág. 189, nota 3 ao art.º 2113.º: “Note-se, aliás, que o requisito da forma para dispensa da colação não é apenas o da solenidade exigida por lei para a doação, mas a da formalidade que tenha acompanhado, de facto, a realização da doação.”. 11 em usar e fruir os bens (salva reserva do usufruto), não tendo de conferir à herança os rendimentos produzidos até à morte do doador. Sendo, pois, uma doação e como igualmente ficou esplanado, este negócio jurídico, enquanto doação que é, está sujeito à forma desta e à aceitação pelo donatário, o que constitui uma achega, que se nos afigura decisiva, à essencialidade da intervenção do donatário na escritura primitiva ou noutra que posteriormente tenha de se lavrar. 8 – Tudo quanto dissemos sobre a fisionomia legal da colação e da sua dispensa leva-nos necessariamente à conclusão de que esta última depende efeitos em exclusivo após o seu da vontade falecimento, do doador caso o cuja herdeiro manifestação (donatário, surtirá credor do benefício), se conforme com ela. Não será, de resto, a sua intervenção na escritura, a “aceitar”, que irá modificar os efeitos dessa dispensa, pois ele manterá, em qualquer caso, o direito à renúncia, “… por exemplo, conferindo no inventário o valor dos bens ou descrevendo-os para efeito da sua avaliação…”. Além de que, na circunstância, nem sequer se verificaria um dos inconvenientes motivadores da adopção legal do princípio do contrato; a saber, a criação na esfera jurídica do destinatário da declaração unilateral da vontade de um direito de crédito sem prévia aceitação dele, uma vez que lhe é reconhecida a possibilidade de rejeitar o benefício. A ser assim, não existiria qualquer motivo para a lei distinguir entre a dispensa da colação efectuada através de escritura pública e a realizada por testamento; bastaria então que se tivesse previsto, genericamente, a feitura da mesma por negócio jurídico unilateral. Mas se, relativamente ao negócio jurídico unilateral “mortis causa”, não se suscita unilateral princípio “inter do qualquer objecção, no vivos” procederia a contrato irrevogavelmente declaração que obrigado unilateral de assenta perante vontade 21 , que respeita única no ou explicação facto outrem, seja, ao de com não negócio jurídico convincente do manter alguém numa simples base correr-se-ia o risco de o devedor se obrigar com certa ligeireza, sem se aperceber de todo o alcance do seu acto, pois não existe, como nos contratos, uma fase 22 negociatória . 21 Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 10.ª edição, pág. 440. Almeida Costa, ob. cit., pág. 422. 22 12 De facto, concedida a dispensa, fica reduzida, ou mesmo absorvida, a quota disponível do doador, deixando de ser possível a reposição dos bens ou valores doados, e prejudicada, em consequência, a sua capacidade para efectuar liberalidades, donatário um herdeiros legitimários. enquanto exclusivo e que, definitivo Isto, do mesmo benefício, naturalmente, passo, em é prejuízo porque, atribuído dos tratando-se ao demais de um negócio jurídico entre vivos, o mesmo é irrevogável. Parece-nos, pois, que, ao autorizar a realização da dispensa da c o l a ç ã o s ó p e l a m e s m a f o r m a d a d o a ç ã o, o l e g i s l a d o r t e v e , d e f a c t o , e m vista, não pública, apenas quanto a a observância imóveis –, da mas mesma também forma o externa – cumprimento requisitos, designadamente, a aceitação do donatário. 23 escritura dos seus Até porque se esta aceitação não se verificar na própria escritura através da qual se formalizou a dispensa, o doador pode livremente revogar a sua declaração, enquanto aquela proposta não for aceite pela mesma forma (art.ºs 228.º, n.º 2, e art.º 230.º, C.C.). O que naturalmente inibe a escritura com intervenção singular do doador de produzir, de forma irrevogável, em vida sua, o pretendido efeito da igualação daquela liberalidade às doações feitas a estranhos (libertando-a, deste modo, da obrigação da sua imputação na quota hereditária do donatário-herdeiro) e, em consequência, de se constituir em causa e título para o cancelamento do registo do ónus de colação a que tal doação se mostrava sujeita por força da lei (arts. 2118.º, C. C. e art.º 13.º, C.R.Predial). 9 – Face ao exposto, concluímos que o recurso interposto não merece provimento, e formulamos a seguinte CONCLUSÃO A dispensa da colação pode ser efectuada no próprio acto da doação ou em data posterior; neste caso, o doador tem a faculdade de o fazer por acto unilateral, revogável e “mortis causa” – o testamento – , ou mediante contrato sujeito à mesma forma externa da doação – 23 Vale, a este respeito, tudo o que atrás se disse (ponto 7.1, final) quanto à aceitação da proposta de doação. Pelo que, bem vistas as coisas, nada obsta a que esta aceitação se concretize, não na própria escritura da dispensa de colação (em que interveio apenas o doador), mas em escritura subsequente a esta (em que as razões legais de forma estão preenchidas), ou com observância da forma contemplada no art.º 947.º C.C. (Cfr. tb., os art,ºs 217.º, n.º2 e 220.º do mesmo Código). 13 escritura pública, quando respeite a imóveis, – e com a aceitação do donatário. Este parecer foi homologado por despacho do Director-Geral de 02.08.2005 14