A barbárie: antítese ou elemento da civilização? Do

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A barbárie: antítese ou elemento da civilização? Do Facundo de Sarmiento a Os Sertões de
Euclides da Cunha.
Berthold Zilly
Facundo, modelo de Os Sertões?
Sob muitos aspectos, o Facundo de Sarmiento e os Os Sertões de Euclides da Cunha
apresentam semelhanças e diferenças elucidativas, sobretudo em relação à dicotomia
tematizada que, por ser crucial em ambos os livros, principalmente no primeiro onde já
aparece no título, pode servir, de um modo geral, como chave interpretativa [1]. Ambos
discutem, a partir dos problemas de uma região atrasada e de uma guerra civil, os destinos
da Nação, da qual se tornam interpretações até hoje influentes e mesmo constitutivas.
Embora a questão da influência do primeiro livro sobre o segundo não careça de interesse,
vou me limitar a poucas observações a este respeito, não só porque os dois autores
parcialmente beberam nas mesmas fontes, o que dificulta, com relação a muitas imagens e
idéias, o estabelecimento de uma filiação direta, mas também porque mais significativas do
que esta me parecem as próprias afinidades e divergências formais, temáticas, ideológicas
entre as duas obras que se explicam e se interpretam mutuamente e, mesmo que Euclides
nunca tivesse ouvido falar de Sarmiento, a comparação entre os dois autores sempre seria
interessante [2].
Euclides conhecia bem o Facundo. Em seu ensaio “Viação Sul-Americana”, publicado em
Á Margem da História, fala das “páginas admiráveis de um dos maiores livros sulamericanos, ressoantes ao tropear das cavallarias disparadas dos Quirogas e dos Chachos”.
Analisando a relação entre estrada de ferro, progresso econômico e liberdade política,
aplaude o raciocínio de Sarmiento na obra que cita como Civilización y barbarie [3]. No
“Discurso de recepção” proferido na Academia Brasileira de Letras, o novo acadêmico
aponta o autor argentino como historiador-escritor modelar, junto com Thierry, Macaulay,
Alexandre Herculano, pois todos eles trabalhariam no “dominio commum da fantasia e da
razão”, ao passo que no Brasil faria falta um autor “que nos abreviasse a distancia do
passado e, num evocar surprehendente, trouxesse aos nossos dias os nossos maiores com os
seus caracteres dominantes, fazendo-nos compartir um pouco as suas existencias immortaes
(...)” [4]. Esse “evocar surpreendente” será realmente um dos principais recursos
compositórios da historiografia euclidiana.
Em Os Sertões, ainda que falte qualquer alusão direta a Sarmiento, a presença do Facundo
é manifesta à primeira vista, a começar pela seqüência dos tópicos: o meio físico, a
população e a cultura, a guerra. Ambos os textos transitam livremente entre os gêneros
literários e modos de discurso, entre diversos tipos de pesquisa e representação da
realidade, combinando geografia, antropologia e história em um texto que é crônica, ensaio
e ficção ao mesmo tempo. Ambos coincidem na relevância dada ao contraste entre campo e
cidade, o alheio e o próprio, o desconhecido e o conhecido, o sul-americano e o europeu,
barbárie e civilização, numa visão dualista da sociedade que esboça uma teoria implícita
das duas Argentinas e dos dois Brasis [5].
Quem conhece Facundo e começa a ler Os Sertões volta e meia tem a impressão do déjàvu. Não só o plano geral mas também numerosos detalhes temáticos e lexicais, alusões,
metáforas, nomes são indícios de que para Euclides o famoso livro argentino foi, senão
modelo, pelo menos incentivo para conceber o seu ensaio sobre a campanha de Canudos e
dar-lhe a feição que tem. O personagem central de Sarmiento, o gaucho, também aparece
em Euclides, em sua forma brasileira de “gaúcho”, como termo de comparação do
sertanejo. Palavras-chaves como desierto, ruina, tapera, cuchillo, deguella, rudeza,
civilizado, bárbaro, só para dar uns poucos exemplos, reaparecem em forma portuguesa no
livro euclidiano. Os dois autores associam a crueldade das populações do interior com a dos
Ashanty [6], comparam os movimentos rebeldes na América Latina com a revolta dos
Chouans durante a Revolução Francesa [7], relacionam algumas serras do interior com
fortalezas e castelos arruinados [8].
Já nos seus títulos os livros fazem uma referência ou pelo menos alusão a uma temática
dupla ou tripla, vinculada a três espaços geográficos e culturais: a região, a nação, a história
universal, sendo esta marcada pela civilização, centrada na Europa, mas conquistando o
mundo. Começam por uma temática genérica, depois, no subtítulo, indicam o caso
específico analisado, ou melhor, narrado [9]. Nota-se logo que, apesar desse paralelismo,
tanto o título como o subtítulo são bem mais abrangentes em Sarmiento do que em Euclides
onde a dicotomia sarmientina está presente mas de modo implícito. Pois Os Sertões, no
plural, designação dos espaços secos, inóspitos e “incivilizados” do Norte, hoje chamado de
Nordeste e, por antonomásia, de todas as regiões pouco habitadas, atrasadas e bárbaras do
Brasil, senão do mundo, pressupõem a sua contrapartida, ou seja as regiões cultas,
produtivas, modernas, civilizadas do litoral brasileiro e da Europa, sendo o conflito entre
essas duas áreas e culturas antagônicas causa principal da guerra e fio condutor do livro. A
diversidade dos títulos assinala uma diferença menos na temática geral do que no seu modo
de representação: o livro sarmientino promete discutir e provar uma hipótese genérica,
universal, exemplificada no caso escpecífico de uma biografia e de uma região, quase um
roman à thèse. As numerosas alterações do título nas diversas edições preparadas por
Sarmiento ou por editores de sua confiança mostram porém que não havia para ele uma
clara prioridade entre o abstracionismo das antíteses históricas e a concretude das
paisagens, personagens e eventos representados, de modo que variou de edição para edição
o grau de literariedade do livro. O título de Euclides no entanto, evocando uma paisagem ou
diversas paisagens, é específico, concreto, e ao mesmo tempo genérico, simbólico,
polissêmico, sugestivo, ao passo que o subtítulo se refere a um determinado evento, “a
campanha de Canudos”, denominada porém na “Nota preliminar” “variante de assunto
geral”, ou seja do avanço da civilização no interior que implicaria no “esmagamento das
raças fracas pelas raças fortes” [10]. Felizmente o autor não mantém sistematicamente essa
desconcretização durante o seu relato da guerra.
Terras
Os dois livros começam por extensa pesquisa mesológica, histórica e sociológica,
inspirando-se o primeiro na Ilustração e no Romantismo, e o segundo, embora de forma
crítica, no Positivismo e no Evolucionismo, sem tampouco renegar uma boa dose de
Romantismo.
Os Sertões, livro um tanto disforme em muitos sentidos, como também o seu homólogo
argentino, mais do que este se estrutura no plano espacial, além do cronológico, como é
natural em toda obra histórica. Se na visão dos letrados do litoral as antíteses Norte-Sul,
sertão-litoral, aridez-umidade, esterilidade-fertilidade estão correlacionadas com a
dicotomia barbárie-civilização, na visão dos sertanejos elas se identificam, inversamente,
com as antíteses terra da fé-terra do Anticristo, terra da promissão-terra da condenação. O
próprio sertão tem uma estrutura concêntrica, de modo que, para quem se aproxima de
Canudos, centro do sertão, aumenta o seu caráter inculto, inóspito e ao mesmo tempo
místico, sagrado. Um dos perímetros mais próximos do teatro de guerra é a elipse com
eixos de poucos quilômetros, “cercadura de montanhas” de que fazem parte o Cambaio e a
Canabrava, cujo topo estrategicamente mais significativo e mais chegado a Canudos é o
morro da Favela, a 1.800 metros das duas igrejas [11]. Estas marcam o bairro central e mais
bem defendido da aldeia sagrada que, com sua mágica força centrípeta, atrai os fiéis para
salvarem a alma e os soldados para perderem a vida, repelindo com força centrífuga os
atacantes feridos. Esta comunidade está vinculada diretamente a Deus, fora do alcance das
autoridades seculares, quase um Estado teocrático dentro da jovem República laicista.
Em Facundo, a organização do espaço é menos clara, menos transparente, é cambiante e
excêntrica ou policêntrica, pois não há nenhum lugar fixo ou central, de convergência ou de
irradiação que dominasse os outros, capaz de atrair e de repelir grandes contingentes de
atacantes. O palco das andanças do anti-herói sarmientino é muito mais extenso e menos
uniforme do que o do Conselheiro durante a guerra, pois na hinterlândia argentina não há
centro rebelde, não há um núcleo aglutinador das forças bárbaras, contrapartida selvagem
da metrópole civilizada. Temporariamente, devido à derrota dos unitarios, o país inteiro
está nas mãos da anticivilização, toda a Argentina é por assim dizer uma imensa Canudos,
uma barbárie não de roupagem religiosa, mas não menos fanática e irracional, do ponto de
vista esclarecido e civilizado.
Há porém uma região nuclear que procria e gera de certa forma o protagonista, onde este
está em casa, e que tem algumas semelhanças com a terra do Conselheiro, pois se trata de
um ermo, espaço árido, curiosamente chamado de travesía no castelhano argentino, lugar
de passagem, deserto onde nenhum forasteiro gosta de parar por muito tempo, nisto
parecido com a vila sagrada, ainda que ali o termo “travessia” tenha um sentido
predominantemente religioso, sendo ao mesmo tempo metonímia do mundo: “Canudos era
o cosmos. E este mesmo transitório e breve: um ponto de passagem, uma escala terminal,
de onde decampariam sem demora; o último pouso na travessia de um deserto - a Terra”,
visão apocalíptica assumida pelo narrador através do estilo indireto livre [12]. A travesía
em Facundo todavia não é um determinado lugar, e muito menos o mundo, podendo ser
qualquer deserto que fique longe de um povoado, lugar abandonado e inóspito, o típico
berço tanto dos profetas como dos bandidos [13]. O pampa, como região correspondente ao
sertão euclidiano, diferentemente deste, não tem centro nem antítese claramente demarcada.
Além de Buenos Aires, há vários outros centros irradiadores do comércio e da cultura,
viveiros da civilização, entre os quais merece destaque a vila de San Juan, terra de
Sarmiento, descaracterizada porém, no tempo da redação do livro, também pela ação de
Facundo Quiroga, à espera de seu verdadeiro dono que é o autor [14]. Por outro lado, a
Argentina civilizada, exceto alguns elementos esparsos no país inteiro, está naquele
momento, em 1845, no exterior, na emigração, na memória e na projeção; já foi realidade
parcial e será realidade plena. E, como dá a entender o autor, há um lugar simbólico para
essa memória e projeção, antítese da Argentina barbarizada: o livro que está escrevendo ele
mesmo, o mais importante antagonista de Rosas, e é assim que Euclides entende o papel
histórico do escritor argentino [15].
Homens
Ambos os livros apresentam visão ambivalente da “plebe rural” semi-selvagem que é
tendencialmente mão-de-obra supérflua, entre submissa, vadia e revoltada, atribuindo-lhe
propensão para a criminalidade e violência, mas também, diante do onipresente perigo de
morte, estoicismo e até heroísmo, com façanhas lendárias e quase sobrenaturais [16]. Os
dois negligenciam os aspectos socioeconômicos da condição do homem do campo e da sua
inserção no clientelismo dominado pelo latifúndio, propagando ao contrário uma imagem
festiva do gaucho e do gaúcho, “um vitorioso jovial e forte” para quem o rodeio é “uma
festa diária” [17], um “fuerte, altivo, enérgico” [18]. Em ambos se encontra a idéia ao
mesmo tempo romântica e pequeno-burguesa de que os guardadores de rebanhos no fundo
não trabalhariam, pois dariam, diferentemente de suas mulheres, na maior parte do tempo,
passeios a cavalo e se divertiriam em festas, o que vale principalmente para o gaucho [19],
mas também, em grau menor, para “o vaqueiro preguiçoso” que “quase transforma o
campião que cavalga na rede amolecedora em que atravessa dous terços da existência” [20].
No entanto há também, na visão euclidiana, profundas diferenças entre os dois tipos de
moradores do campo, como se pode depreender do cotejo de duas cenas que narram o
confronto do homem bárbaro com as forças mais bárbaras ainda da natureza:
(...) Algunos minutos después, el bramido se oyó más distinto y más cercano; el tigre venía
ya sobre el rastro, y sólo a una larga distancia se divisaba un pequeño algarrobo. Era preciso
apretar el paso, correr, en fin, porque los bramidos se sucedían con más frecuencia, y el
último era más distinto, más vibrante que el que le precedía.
Al fin, arrojando la montura a un lado del camino, dirigióse el gaucho al árbol que había
divisado, y no obstante la debilidad de su tronco, felizmente bastante elevado, pudo trepar a
su copa y mantenerse en una continua oscilación, medio oculto entre el ramaje. Desde allí
pudo observar la escena que tenía lugar en el camino: el tigre marchaba a paso precipitado,
oliendo el suelo y bramando con más frecuencia, a medida que sentía la proximidad de su
presa. (...) En efecto, sus amigos habían visto el rastro del tigre y corrían sin esperanza de
salvarlo. El desparramo de la montura les reveló el lugar de la escena, y volar a él,
desenrollar sus lazos, echarlos sobre el tigre, empacado y ciego de furor, fue la obra de un
segundo. La fiera, estirada a dos lazos, no pudo escapar a las puñaladas repetidas con que,
en venganza de su prolongada agonía, le traspasó el que iba a ser su víctima. ‘Entonces
supe lo que era tener miedo’ - decía el general don Juan Facundo Quiroga, contando a un
grupo de oficiales este sucesso [21].
À noite, a suçuarana traiçoeira e ladra, que lhe [ao sertanejo] rouba os bezerros e os
novilhos, vem beirar a sua rancharia pobre. É mais um inimigo a suplantar. Afugenta-a e
espanta-a, precipitando-se com um tição aceso no terreiro deserto. E se ela não recua,
assalta-a. Mas não a tiro por que sabe que desviada a mira, ou pouco eficaz o chumbo, a
onça, ‘vindo em cima da fumaça’ é invencível. O pugilato é mais comovente. O atleta
enfraquecido, tendo à mão esquerda a forquilha e à direita a faca, irrita e desafia a fera,
provoca-lhe o bote e apara-a no ar, trespassando-a de um golpe [22].
O sertanejo, diferentemente do gaucho, não foge da “suçuarana”, que corresponde ao tigre
argentino, não se esconde medroso numa árvore, como faz o herói dos pampas, ele, pelo
contrário, procura, desafia e esfaqueia a fera, para proteger o lar e o gado. Difícil saber se o
autor brasileiro concebeu esta cena como réplica direta à cena-chave de Facundo, da qual
citamos dois trechos, episódio seminal que introduz a biografia do personagem principal,
narrando o seu nascimento a partir do medo. De qualquer forma, essa façanha, apresentada
como ato quase costumeiro na vida do sertanejo, unterstatement hiperbólico do escritor
brasileiro, se insere na estratégia discursiva do autor de comparar dois tipos de guardadores
de gado, representantes da civilização do couro, concedendo certa superioridade ao
vaqueiro do sertão. A contrapartida do caudilho argentino não é determinado líder
canudense e muito menos o próprio Conselheiro, cuja valentia é sublimada e transfigurada
em fé e abnegação, mas o simples caboclo, quase um anti-herói, o sertanejo como tipo,
porém mais brabo, mais corajoso, mais lutador do que o mais valente, o mais perigoso, o
mais temível dos gauchos, que é o próprio protagonista sarmientino.
O gaúcho aparece duplamente como antípoda do canudense: primeiramente como termo de
comparação; em segundo lugar como inimigo, uma vez que grande parte do exército
brasileiro era composto de rio-grandenses que sempre tiveram participação desproporcional
na vida militar do país, até hoje em dia [23]. A freqüente caracterização do sertanejo
conselheirista, na imprensa da época, como “jagunço”, ou seja, bandido, pistoleiro,
capanga, aproximando-o ao significado de gaucho malo, no fundo é uma calúnia inventada
por latifundiários e jornalistas, que Euclides parece não ter nenhuma hesitação em adotar,
pelo menos no início da campanha.
Do gaúcho Euclides tem uma imagem ambígua. Por um lado, apresenta-o como menos
bárbaro, mais refinado, mais ostensivamente heróico, mais próximo da civilização do que o
sertanejo visto quase como o seu primo bruto, selvagem, primitivo, inferior na escala
barbárie-civilidade. A natureza do sertão, mais selvagem, mais dura e impiedosa do que a
do pampa, no entanto tem vantagens, pois obriga o homem a ser exímio lutador: “O
jagunço é menos teatralmente heróico; é mais tenaz; é mais resistente; é mais perigoso; é
mais forte; é mais duro” [24]. Por outro lado, o gaúcho se caracteriza por um modo de
matar pessoas que, copiado no abate do gado, bestializa tanto o matador como a sua vítima:
a degola, fio condutor da trama nos dois livros aqui contemplados. Ele pode ser mais
civilizado do que o sertanejo, no entanto ou talvez por isso mesmo é mais cruel e ajuda a
barbarizar ainda mais o sertão. Diferentemente das guerras civis na Argentina porém, na
guerra de Canudos esse método pré-moderno de homicídio é praticado em nome da
civilização, contra prisioneiros intimados cinicamente, antes de serem trucidados, a gritar
um “viva à República” [25].
Facundo e Conselheiro, importantes líderes de massas rurais, têm pouco em comum. O
primeiro é ambicioso, ganancioso, lúbrico, brutal, colérico, viciado em jogos de azar, porém
um líder militar genial, capaz de gestos generosos, ótimo conhecedor do povo, que o teme e
o admira, um Napoleão desgarrado nos llanos e nos pampas. Em outras condições, num
país civilizado, poderia ter sido um estimado estrategista ou estadista, embora, pelo menos
na apresentação polêmica de Sarmiento, não tivesse projeto político, faltando-lhe educação
e controle social por parte de instituições que possam regulamentar o seu poder.
O Conselheiro, na imagem euclidiana, é o seu antípoda em quase tudo, sendo menos herói e
dominador do que representante, quase encarnação da comunidade de Canudos, da
população do sertão todo, e emissário do poder divino. Se Antônio Mendes Maciel se
extingue através da desgraça amorosa, “fulminado pela vergonha” do incidente “algo
ridículo” [26], ele depois renasce como Antônio Conselheiro, pregador e líder popular. A
sua ascendência sobre o povo é de caráter religioso e moral, mas também socioeconômico,
pois atua como redistribuidor de renda para os moradores mais necessitados de Canudos,
aspecto negligenciado por Euclides. Se o Conselheiro tem pouca visibilidade para o leitor e
até para os soldados que podem contemplá-lo de perto só como morto, isso também vale
para o autor, mas nem sempre para o narrador que se permite alguns olhares diretos para o
chefe de Canudos e líder do sertão. Este exerce o seu poder de modo quase imóvel e
silencioso, fugidio, e embora seja ele o personagem mais importante do livro, não é
propriamente o seu protagonista como Facundo no livro que leva o seu nome no título. O
Conselheiro afigura-se-nos menos como agente e herói do que como sofredor e
renunciador, na definição de Roberto da Matta, encarnação da fé, abnegação e
perseverança, homem de transição para um mundo melhor [27].
A motivação de Facundo não tem nada de religioso, ele parece uma força natural, sendo o
seu atraso de certa forma anterior à fase religiosa da humanidade que já seria um certo
progresso ético e civilizatório [28]. Se o tipo ideal, no sentido weberiano, que está por trás
de Antônio Conselheiro é exatamente o conselheiro, forma superior do beato, leigo
particularmente devoto e orientador do povo, aquele que está por trás de Facundo é o
gaucho malo. Facundo não conhece nenhuma solidariedade, não funda nem família, nem
associação, nem comunidade, nem cidade. Não cria, só destrói. Quanto ao controle dos
afetos e instintos, tanto o Conselheiro quanto Rosas são bem mais civilizados do que o líder
dos pampas, na acepção de Norbert Elias [29]. Rosas, sim, tem um projeto sociopolítico, é
sedentário, tem uma capital, vive por uma comunidade, a nação, e por uma causa, o
federalismo e o nacionalismo, embora de modo deturpado e cruel, na visão do autor.
Os dois autores porém se assemelham no intuito não só memorialístico mas civilizador dos
seus livros, em que se afirmam como explicadores e preceptores de suas nações, como
“conselheiros” de sua gente.
Lutas
Os dois enredos são basicamente constituídos pela história de uma guerra civil entre as
forças do atraso e as do progresso, imbricada com a biografia de importante líder de massas
rurais, abominado pelos adeptos da civilização, com a vitória final destes últimos, a que
pertencem os narradores, e com a morte do mau herói a que é concedida nesse momento, no
entanto, uma quase apoteose, principalmente no livro euclidiano, contrariando as anteriores
condenações.
Só que, se em Os Sertões a morte do Conselheiro e o fim da campanha de Canudos de 1897
praticamente coincidem, o livro saindo cinco anos depois, em Facundo há uma diferença de
17 anos entre a morte do protagonista, em 1835, e o término do regime de Rosas em 1852,
sendo a narração do meio, de 1845. O autor argentino, quanto à construção do enredo,
portanto hesita entre dois desenlaces, um que termina com o assassinato de Facundo no
passado, dez anos antes da redação do relato, e outro que narra sucintamente a historia
posterior, prolongando-a em considerações políticas até o futuro, até a almejada e
pressagiada queda de Rosas: “Por la puerta que deja abierta al asesinato de Barranca-Yaco,
entrará el lector, conmigo, en un teatro donde todavía no se ha terminado el drama
sangriento” [30]. A magnanimidade para com o inimigo sendo mais fácil depois da vitória,
Euclides, principalmente como narrador, menos como autor político, pode enaltecê-lo mais
do que Sarmiento, para quem o Facundo morto continua perigoso no Rosas vivo.
Nos dois livros a história é encenada, mas no caso de Canudos a própria realidade vem ao
encontro de sua literarização e, principalmente, de sua representação como espetáculo. Pois
fica evidente que a guerra de Canudos preenche, aproximativamente, vários requisitos do
drama clássico, as unidades do lugar, do tempo, do enredo. A unidade do tempo talvez seja
menos patente no caso da guerra de Canudos, já que esta durou bem mais de um dia,
exatamente onze meses, tendo porém início, meio, fim, diferentemente das intermináveis
guerras civis da Argentina, algo informes e intransparentes, sem claros contornos
cronológicos. Essa mesmice, demarcação e nitidez do lugar e do tempo ajudam a memória
coletiva, ajudam a imaginação, ajudam tanto a narrativa organizadora e reflexiva do
historiador assim como a narrativa evocadora do escritor. Não é exagero dizer que o livro
euclidiano é, não obstante os seus fortes traços épicos, construído como um drama em cinco
atos [31].
A intenção de aproximar o Facundo da tradição épica fica assinalada logo no início pela
típica invocação, desta vez porém não de uma musa, de algum deus ou herói, como reza a
tradição, mas de um defunto que conhece por dentro a paisagem e o povo dos pampas:
¡Sombra terrible de Facundo, voy a evocarte, para que, sacudiendo el ensangrentado polvo
que cubre tus cenizas, te levantes a explicarnos la vida secreta y las convulsiones internas
que desgarran las entrañas de un noble pueblo! Tú posees el secreto: ¡revélanoslo! [32]
O autor esconjura um demônio, o seu arquiinimigo que curiosamente se torna um aliado na
busca da verdade histórica e como fonte de inspiração narrativa. O autor o obriga a servi-lo
na obra de evocação e interpretação da alma do povo argentino, das guerras civis e da
política nacional, dando-lhe em troco aquilo que o povo já lhe concedeu: a imortalidade
[33]. Trata o antagonista vencido como este tratou o tigre apunhalado, apoderando-se de
suas forças, como também se apodera da tradição oral popular. O autor aparece, aqui já,
como líder, pois dialoga com Facundo morto em nome da sua platéia, da Argentina
antirosista, congregada no pronome da primeira pessoa do plural. Escusado dizer que
Euclides, apesar de toda a pretensão literária, começa o seu livro, à primeira vista pelo
menos, como autor puramente científico e historiográfico, sem apóstrofes e invocações,
sem dialogar diretamente com vivos e muito menos com mortos.
As duas quase-epopéias nacionais se complementam de modo singular, pois pertencem, ao
nível do enredo e dos deslocamentos no espaço, a modelos diferentes, arquetípicos, ambos
prefigurados em Homero. Pois Facundo, construído no seu núcleo narrativo como um
romance de aventuras, tem alguma analogia com a trama da Odisséia, sendo o seu herói ao
mesmo tempo um Ulisses, astuto e forte, embora também covarde e sanguinolento, que
vagueia pelos pampas, e pretendente ilegítimo de uma Penélope coletiva, ou seja da Nação
argentina. O verdadeiro Ulisses entretanto, o próprio Sarmiento, banido da pátria, com
algumas interrupções, durante mais de duas décadas, parecido ao herói homérico, erra pelo
mundo, lutando para sobreviver e para reconquistar sua pátria-esposa mais ou menos fiel,
lutando principalmente mediante o livro que estamos analisando. Depois de muitas
aventuras e percalços, narrados também em outros livros - por exemplo em Viajes, de 1849,
e Campaña del Ejército Grande, de 1852 - ele consegue voltar. Facundo é um episódio da
odisséia do autor que começou com o seu primeiro exílio no Chile, em 1831, e que só
terminará em 1852, com a queda de Rosas, e de certa forma em 1855, quando o autor se
instala em Buenos Aires, no seio da Nação com a qual renova e consuma o himeneu. Essa
união com a pátria se manifesta numa carreira política brilhante, em que vai galgando os
mais altos cargos, chegando em 1868 à presidência, impensável sem o Facundo e o
caudilho homônimo ao qual por outro lado confere imortalidade, quase uma relação de
troca de favores entre personagem e autor.
Os Sertões pelo contrário segue a certa distância o esquema da Ilíada, os conselheiristas
desempenhando o papel dos troianos e os soldados o dos gregos, uma guerra de sítio de
meses, mas com antecedentes de décadas, entre os quais o rapto de uma Helena sertaneja, a
esposa do Conselheiro, seduzida por um soldado, ato ilegítimo que desencadeou, ao nível
da narrativa, as peregrinações de Antônio Mendes Maciel e sua transfiguração em Antônio
Conselheiro, líder espiritual da população sertaneja. O adultério é importante mola do
enredo, constituindo um dos principais pressupostos da guerra que se trava entre a
comunidade fundada pelo marido traído e os “colegas” do sedutor, só que, diferentemente
da epopéia grega, a posse da raptada não é motivo da guerra, já que são os raptores que
atacam a comunidade chefiada pelo ex-marido da raptada, juntando um segundo crime ao
primeiro. Os raptores ganham a guerra e nunca devolvem a raptada cujo destino fica
desconhecido, não interessando mais aos dois partidos beligerantes. Se a violação dos
direitos por agentes do aparelho do Estado levou os vitimados a sua auto-organização, nem
essa saída é permitida [34].
Não falta a intervenção de poderes olímpicos, em Os Sertões quase só do lado do exército:
grupos e partidos políticos, a imprensa nacional e internacional, os intelectuais, a indústria
bélica européia, os bancos ingleses, ainda que estes últimos não apareçam no livro. A
“Tróia de taipa”, como a chama o próprio Euclides, só tem Deus como aliado de fora, e
alguns deuses pré-olímpicos, principalmente a Terra e as serras ciclópicas, o que pelo visto
não é suficiente. Em Facundo, a Civilização, como instância superior, está teoricamente do
lado de Sarmiento e dos unitários, mas na prática as potências européias fazem uma espécie
de Realpolitik, colaborando com Rosas, o que o autor explica como falta de informação da
parte daquelas.
Estilos e públicos
Já vimos que os estilos dos dois livros têm muito em comum: a presentificação sensorial,
com ênfase na descrição de painéis e narração de cenas que se gravam facilmente na
memória do leitor, a referência à história européia como padrão comparativo, expressão da
tendência de explicar a realidade incógnita da América Latina através de comparações e
analogias com a história e literatura do Velho Mundo que fornece os parâmetros
interpretativos, por exemplo, através de metáforas como “Tebas del Plata” ou “Tróia de
taipa” [35]. No uso da erudição e dos recursos poéticos porém Sarmiento é menos radical,
menos transgressivo e exacerbado, mais contido, sóbrio e moderado do que o escritor
brasileiro, o que se explica em parte pela diferença do momento literário, bem antes dos
exageros do cientificismo e do parnasianismo, como também pela finalidade mais
pragmática do seu texto. Euclides às vezes pouco se preocupa com a inteligibilidade dos
seus relatos, observações e reflexões, porque a função estética nele ganha autonomia bem
maior do que no autor argentino, embora a crescente distância da posteridade em relação
aos fatos relatados tenda a relativizar esses diferentes graus de literariedade entre as duas
obras.
Para evidenciar diferenças estilísticas e compositórias, nada melhor do que exemplificá-las
em trechos comparáveis:
Al sur, y a larga distancia, limitan esta llanura arenisca los Colorados, montes de greda
petrificada, cuyos cortes regulares asumen las formas más pintorescas y fantásticas: a veces
es una muralla lisa con bastiones avanzados, a veces, créese ver torreones y castillos
almenados en ruinas [36].
A Serra do Cambaio é um desses monumentos rudes. Certo ninguém lhe pode enxergar
geométricas linhas de cortinas ou parapeitos bojando em redentes circuitados de fossos.
Eram piores aqueles redutos bárbaros. Erigiam-se à têmpera dos que os guarneciam. E a
distância, indistintos os ressaltos das pedras e desfeitos os vincos das quebradas, o conjunto
da serra incute, de fato, no observador, a impressão de topar, de súbito, fraldejando-a,
subindo por elas, em patamares sucessivos e estendidas pelas vertentes, as barbacãs de
velhíssimos castelos, onde houvessem embatido, outrora, assaltos sobre assaltos que os
desmantelaram e aluíram, reduzindo-os a montões de silhares em desordem, mal
aglomerados em enormes hemiciclos, sucedendo-se em renques de plintos, e torres, e
pilastras truncadas, avultando mais ao longe no aspecto pinturesco de grandes colunatas
derruídas... [37]
Comparando as duas descrições de serras ao sul de importantes vilas do interior, La Rioja e
Canudos, ambas associadas com Jerusalém, revelam-se afinidades e diversidades entre os
estilos: a frase euclidiana pode ser lida como ampliação, gradação, intensificação e
dramatização barroquizante da frase correspondente do predecessor argentino.
Nos dois livros, a função informativa e referencial portanto é complementada e às vezes
sobrepujada pelas funções expressiva, poética e apelativa, sendo as conotações talvez mais
importantes do que as denotações. Facundo é mais panfletário, mais apelativo, mais
diretamente voltado para a política, ao passo que Os Sertões lança mão, num grau muito
maior do que o “modelo” argentino, do discurso erudito, acadêmico, principalmente do das
ciências exatas ao qual Sarmiento, o autodidata do interior, tinha pouco acesso e para o qual
esse homem impetuoso talvez nem tivesse a necessária paciência e meticulosidade, embora
em princípio o apreciasse muito. O seu estilo é menos metódico, mais descontraído, embora
altamente artístico, cheio de apóstrofes, interjeições, perguntas retóricas. O autor coqueteia,
como Euclides também, com o caráter rude do livro, “obra tan informe” [38], conseqüência
do clima de combate em que foi escrito e dos temas de que trata. Assemelha-se a um grande
diálogo com um público imaginado, o que demonstram os freqüentes apelos ao leitor, que
Sarmiento, sem muitos rodeios, pretende captar, agitar e empolgar, valendo-se menos da
erudição acadêmica do que da cultura geral, da retórica romântica de tipo hugoano,
amalgamada com a fala cotidiana de intelectuais e populares, citadinos e gauchos, pondo
em segundo plano a factualidade histórica.39 Beira o perigo, sem incorrê-lo realmente, de
aborrecer o leitor com a repetitividade de sua argumentação e sua falta de humor, ou de cair
até no ridículo com seu hiperbolismo, seu ergotismo, sua vaidade desenfreada.
Euclides da Cunha, no seu requisitório, seu discurso de defesa e acusação, necessariamente
persuasório, lança mão de uma retórica mais sofisticada, embora também de aparência rude,
motivo de certa coqueteria do próprio autor que chama o seu estilo de “algo bárbaro” [40].
A ênfase dada à função poética, mesmo nos trechos científicos da primeira parte, intitulada
“A Terra”, tende a fazer dos meios retóricos uma finalidade em si e compromete volta e
meia a sua comunicabilidade, ao pôr no segundo plano as funções referenciais e apelativas
[41]. A pompa estilística e “opulência retórica” [42] contrastam curiosamente com a secura
do meio descrito, muito diferente, por exemplo, de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, em
que a aridez da terra e do povo sertanejo corresponde ao caráter árido e lapidar do estilo.
Tudo isso aumenta, naturalmente, as tensões entre a vertente referencial e a vertente poética
dentro de Os Sertões, que portanto se apresenta, em comparação com seu homólogo
argentino, mais metódico e ao mesmo tempo mais fantasioso, mais controlado e mais
apaixonado, mais científico e porém mais marcado esteticamente. Seu livro está sob alta
tensão, podendo fracassar a todo momento, ser pulverizado pela comicidade involuntária do
pathos, pela aspiração à grandiosidade, ao sublime, pelos exageros desmedidos, pelo
pedantismo acadêmico, pelas incoerências compositórias e ideológicas, pela
grandiloqüência, pelas citações ou alusões erradas, ou simplesmente pela sua
incompreensibilidade. Tensão que se traduz por inúmeras metáforas e antonomásias
arrojadas [43], tomadas não raras vezes das ciências exatas, uma enxurrada de oxímoros e
antíteses, de repetições e sinônimos. Como o seu “colega” argentino, também Euclides
soube, excetuando-se poucas frases mal-sucedidas, contornar aqueles perigos. Cabe para
eles uma frase de Theodor W. Adorno: “Grandes obras são aquelas que têm sorte em seus
pontos mais duvidosos” [44]. Monumentalizando o sertão e o sertanejo num memorável
conjunto de painéis dramáticos o próprio texto euclidiano vira monumento, imponente,
heróico e intocável, como constatou Gilberto Freyre [45].
Esses dois textos fundamentais e fundacionais, visando o autodescobrimento nacional,
híbridos, violentos, opõem-se a uma classificação fácil, transgredindo os limites entre
gêneros literários e áreas do saber, podendo ser provisoriamente considerados ensaios
geográficos, antropológicos e sobretudo historiográficos parcialmente romanceados,
dramatizados, poetizados e sobretudo altamente retóricos [46]. Há elementos de discursos
solenes e teatrais de rememoração e acusação em ambos os livros que pedem não só para
ser lidos mas para ser ouvidos, ou pelo menos para ser imaginados acusticamente com toda
a sua faustosa eloqüência e sonoridade, oralidade em que ecoa a retórica clássica e barroca,
bastante presente no ensino e na vida pública do século XIX [47]. Dirigem-se não apenas ao
público letrado de seus países, no caso de Sarmiento inclusive aos leitores dos países
vizinhos de fala espanhola, nomeadamente aos argentinos exilados e aos chilenos, mas
também à comunidade de homens ilustrados do mundo civilizado em geral. Talvez os dois
textos aqui contemplados estejam entre os primeiros livros latinoamericanos concebidos
para entrarem na literatura universal [48]. Se os escritos dos viajantes estrangeiros foram
estudados avidamente como modelos de pesquisa e de representação, os autores das terras
americanas escreviam também com a esperança, secreta ou não, de ajudar a Europa a
entender melhor o novo mundo, sendo portanto a sua interpretação tarefa comum de
letrados autóctones e europeus. Além disso, para todos os países jovens ou atrasados, a
Europa, principalmente Paris, era o juiz estético e intelectual, quem era reconhecido lá, era
reconhecido em toda parte, o que fazia da capital francesa um trampolim para carreiras nas
Américas [49].
A poesia do espaço “incivilizado”
Aproxima os dois autores também a romântica ênfase no caráter quase literário e poético da
própria realidade selvagem, da natureza, da sociedade rural, atrasada, patriarcal, dramática,
multicolor, violenta, o seu folclore, a singularidade e heroicidade de alguns dos seus
representantes. Esse mundo bárbaro, que naquela época estava aos poucos entrando em
extinção, por si só já seria poético, teatral, trágico, até musical; ou pelo menos se prestava
para a representação artística, exige-a de certa forma, convida e quase obriga os autores a
descobrirem a sua poeticidade, a descrevê-la e a enaltecê-la. Pois ambos recorrem à velha
metáfora do mundo como livro, como escrita a ser lida ou decifrada pelos escritores [50]. A
História é um livro científico, principalmente para Euclides e, mais ainda, um livro poético,
exigindo dupla leitura portanto. Por outro lado, essa realidade não é apenas poesia, ela
também produz poesia, através dos seus cantadores populares que a tematizam e
interpretam, sendo ela duplamente poética, como sujeito e como objeto.
Existe, pues, un fondo de poesía que nace de los accidentes naturales del país y de las
costumbres excepcionales que engendra. La poesía, para despertarse, (...) necesita el
espectáculo de lo bello, del poder terrible, de la inmensidad, de la extensión, de lo vago, de
lo incomprensible (...).
A selvageria é uma das suas condições:
La soledad, el peligro, el salvaje, la muerte! He aquí ya la poesía (...). De aquí resulta que el
pueblo argentino es poeta por carácter, por naturaleza” [51].
Se todo argentino é poeta, é porque todo argentino é gaucho, poderia ter dito Sarmiento, do
mesmo modo que Euclides declarava todo sertanejo vaqueiro e dava a entender que o
sertanejo era, no fundo, o brasileiro por excelência [52]. Esses tipos étnicos e sociais a
serem superados, transformados ou até eliminados na realidade social, foram estilizados
como protótipos de suas nações no plano simbólico. Euclides concordaria, embora menos
enfaticamente, no que se refere à idoneidade do sertanejo para entrar na literatura. Cita
longamente a poesia dos cantadores do sertão, assim como as lendas sugeridas pela própria
conformação do terreno, por exemplo quando descreve as “cidades encantadas” que teriam
impressionado “frios observadores do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro”. Atribui
ao assalto do filho de Macambira à matadeira “delineamentos épicos” [53]. E depois de
narrar aquele episódio, o autor o apresenta como adaptação de uma narração oral do povo,
dentro e fora de Canudos, incluindo o próprio exército:
Estes e outros casos - exagerado romancear dos mais triviais sucessos - dando à campanha
um tom impressionante e lendário, abalavam a opinião pública da velha capital e por fim a
de todo o país [54].
Os dois escritores cultos registram, comentam e continuam portanto a produção dos seus
“colegas” rústicos, os poetas e cantadores populares, condenados ao desaparecimento junto
com a cultura a que pertencem. Não houvesse os autores eruditos da cidade, a bronca
cultura rural seria esquecida, de modo que tanto Sarmiento como Euclides, entoando-lhe
um canto de cisne, asseguram-lhe a sobrevivência no imaginário nacional. Pois se o
progresso com a comercialização e a burocratização da sociedade promovem a urbanização,
a educação, o bem-estar, a segurança, a moda, se acabam com dureza das condições de vida
e a rudeza do trato, com a dependência do homem em relação aos poderes naturais e ao seu
culto cheio de superstições, também acabam com a poeticidade do mundo, acabam com o
seu mistério e o seu encanto. O fim da violência como praxe “normal” nas relações sociais
é uma faca de dois gumes, pois o estado de guerra faz parte da poeticidade dos espaços
“incivilizados” e, nos últimos cem anos também, da sua filmicidade. É sobretudo na guerra,
elo entre a civilização e a barbárie, que esta subsiste dentro da civilização, já que um
exército sem traços bárbaros seria condenado à derrota, e até a guerra mais civilizada nunca
deixa de ser profundamente bárbara, não havendo guerra sem crime de guerra. Para Hegel,
a guerra é o evento por excelência que mobiliza intelectual e emocionalmente uma nação,
sendo portanto matéria bruta e força motriz da criação de epopéias, gênero privilegiado em
que se articulam as aspirações de uma coletividade, idéia que nos parece estranha hoje em
dia, depois de um século cruento e eivado de guerras [55].
Os nossos autores enquanto pensadores sociais e políticos naturalmente encaram essa
ausência prática da lei, da ordem e do bem-estar - essa enxurrada de desmandos dos
poderosos, rebeliões, repressões, crimes, guerras civis, massacres, catástrofes naturais como males a serem superados, provas do atraso, motivos de vergonha. Mas enquanto
escritores épicos pensam ou, antes, sentem de modo diferente, pois adivinham ou
consideram que as deficiências na dominação da natureza, na administração e no
policiamento de regiões selvagens ou campestres, verdadeiros “homizios” [56], evitam a
rotina, a regularidade, a monotonia do cotidiano. A falta de justiça e segurança dá ampla
margem de manobra aos chamados homens fortes, aos caudilhos e tiranos, mas também aos
heróis e profetas, uma fauna de heróis inviáveis e supérfluos em áreas civilizadas: prato
feito para os literatos. Assim como a agricultura com suas plantas cultivadas precisa da
biodiversidade de áreas selvagens, parece que a cultura letrada também precisa da
reciclagem com sociedades e manifestações culturais pré-modernas, “incivilizadas”. O
Estado de direito com seu monopólio da violência e a sociedade do bem-estar dispensam o
heroísmo, cujo desaparecimento assinala geralmente um progresso civilizatório. Ai daquela
sociedade que precisa de heróis, dizia Bertolt Brecht. Onde há policiamento e segurança,
não há grandes homens, onde há bombeiros, serviço de saúde, seguro social, lanternas nas
ruas, correio, sistema de transporte, hospitais, escolas e centros de lazer, paz interna e
externa, onde as necessidades básicas são satisfeitas, onde tudo é previsto e onde se
remedeia logo o imprevisto, os heróis são dispensáveis, os santos e profetas também, e os
poetas épicos, preocupados com o grandioso, o memorável e o sublime, se não
desaparecem, só podem falar de culturas passadas ou “primitivas”.
Uma das mais elucidativas reflexões sobre a relação entre a história social e gêneros épicos
se encontra em Hegel, num trecho da Estética em que distingue as épocas heróicas ou pelo
menos aristocráticas, o contexto social e cultural das epopéias, da “atual situação prosaica”,
referindo-se assim à sociedade civil burguesa do seu tempo que se oporia a uma
representação ou transfiguração poética em tom elevado, épico ou sublime. Na moderna
sociedade organizada pelo Estado e outras instituições, cada indivíduo, mesmo um príncipe,
está preso por uma correlação de forças, está submisso a uma ordem econômica e política,
cujas instituições limitam a sua liberdade de ação. “A acidentalidade da existência exterior
se transformou numa ordem firme e segura da sociedade civil e do Estado, de modo que
agora a polícia, os tribunais, o exército, o governo do Estado assumem o lugar das metas
quiméricas que se propunha o cavaleiro”. A epopéia tornando-se inviável, surge o romance
moderno a que faltaria “a situação originalmente poética do mundo da qual surge a
autêntica epopéia” [57]. Como a epopéia e, ainda que em grau menor, a tragédia entram em
declínio na modernidade, que não abre espaço para heróis, a prosa de ficção, ou seja o
romance, passa a ser a expressão mais adequada da emergente sociedade burguesa, embora,
conforme os cânones vigentes até quase meados do século XIX, ele seja considerado,
oficialmente, quase gênero menor [58].
Nas margens do mundo civilizado porém ainda existem elementos tanto dos períodos
heróicos da Antigüidade como da Idade Média, principalmente em tempos de guerra,
quando se abrem espaços para o surgimento de indivíduos fortes, com ampla margem de
ação, que conseguem marcar e moldar a realidade ainda não inteiramente prosaica,
organizada de modo que os seus protagonistas, desbravadores, guerreiros, pregadores
possam reassumir algumas atitudes dos antigos heróis, cavaleiros e santos. Nessas áreas
distantes em relação à civilidade urbana os nossos dois autores acreditam poder satisfazer a
sua romântica saudade pelo antigo e pelo autêntico, pelas origens, pelo primordial, pelo
não-moderno, pelo singelo, pelo idílico, pelo maravilhoso, pelo patriarcal. O fascínio
europeu pela América Latina se deve também à imagem de desmesura, grandiosidade,
hiperbolismo, incomensurabilidade e sublime que ela desperta nos forasteiros desde os
descobrimentos. O homem civilizado às vezes se cansa de sê-lo, de ter que domar os seus
instintos, de ter que aceitar toda uma complicada aparelhagem de regras e normas objetivas,
de se comportar de modo sensato e racional, jugos para as paixões, para a subjetividade e a
espontaneidade, para os egoísmos e a solidariedade, para os afetos de um modo geral. Essa
insatisfação, fortalecida por leituras rousseauianas e românticas, talvez seja expressão da
desconfiança, nos dois autores, de que nesses valores pré-burgueses e pré-modernos existe
algo cuja perda iminente será lamentada e que vale a pena preservar na memória coletiva.
Parecem sentir ou pressentir o mal-estar na civilização de que fala Freud, e a decepção com
o desencantamento com a fria objetividade do mundo moderno de que fala Max Weber,
mal-estar esse que é mais implícito no autor argentino, mais explícito no brasileiro.
O choque entre dois mundos e dois graus de civilização, um legitimado pela razão
tendencialmente determinista e o outro pela emoção meio romântica do autor e dos seus
leitores, gera uma visão trágica da história nos dois autores aqui contemplados, tragicidade
implícita em Sarmiento, manifesta e nítida em Euclides, visto que ele é bem mais cético em
relação ao progresso e à civilização. Uma colisão trágica só é possível quando entre os
campos opostos há certa igualdade de legitimação e dignidade moral [59]. Conceder
tragicidade às personificações da barbárie equivale a elevar, dignificar, transfigurar os
heróis vencidos, condenados pelo discurso ilustrado dos mesmos autores, e constitui uma
crítica implícita à civilização.
O cronista Machado de Assis assinalou claramente, no seu tom semi-irônico, a idoneidade
do movimento de Canudos como assunto literário:
Jornais e telegramas dizem dos clavinoteiros e dos sequazes do Conselheiro que são
criminosos; nem outra palavra pode sair de cérebros alinhados, registrados, qualificados,
cérebros eleitorais e contribuintes. Para nós, artistas, é a renascença, é um raio de sol que,
através da chuva miúda e aborrecida, vem dourar-nos a janela e a alma. É a poesia que nos
levanta do meio da prosa chilra e dura deste fim de século [60].
E mais adiante caracteriza a modernidade, a sociedade baseada no lucro e na troca, como
antipoética, já que os escritores são os aliados naturais dos inconformados com a sociedade
administrada e compartimentada:
Os direitos da imaginação e da poesia hão de sempre achar inimiga uma sociedade
industrial e burguesa. Em nome deles protesto contra a perseguição que se está fazendo à
gente de Antônio Conselheiro. Este homem fundou uma seita a que se não sabe o nome
nem a doutrina. Já este mistério é poesia [61].
Construção do Estado nacional
Nota-se em ambas as obras um projeto historiográfico ambicioso, visando a um retrato
abrangente, cientificamente fundamentado, da natureza e da sociedade de uma região
periférica e, a partir dela, de todo um país em formação. Em ambos os casos esse remoto
espaço rural e semi-selvagem estava ou parecia em descompasso com a missão civilizatória
do país, rebelando-se contra ela. Os dois livros tendem a ser uma espécie de súmula,
enciclopédia e quintessência dos traços característicos de seus países, seus problemas e
possíveis soluções, na sua aspiração por se tornarem nações civilizadas, homogêneas,
abastadas, desenvolvendo amplamente o seu potencial econômico e humano. Nas duas
obras, o grande tema subjacente é, portanto, a construção de um Estado nacional moderno,
impossível sem a incorporação dos incultos espaços interioranos, tão típicos quanto
problemáticos para a definição daquilo que é nacional. Pois, o interior pode ser incivilizado,
mas ele é típico e autêntico, mais nacional do que as cidades e o litoral, que são civilizadas,
porém demasiado internacionalizadas. Se as duas obras aqui contempladas são livros
fundadores, isso se deve em parte a essa incorporação do desconhecido e inculto interior e,
por outro lado ao fato de satisfazerem a “demanda” de nações em formação por uma
epopéia que possam reconhecer como a sua “bíblia” cultural e política [62]. A
transformação do passado da nação em memória esteticamente elaborada é fundamental
para evitar a sua descaracterização e, não é de se espantar que ambos os livros se tenham
tornado lugares de memória de suas respectivas nações [63].
Os dois autores apostaram alto e ganharam. A publicação de suas “epopéias nacionais”
celebrizou-os imediatamente [64]. Embora oriundos da baixa classe média do interior,
longe dos setores urbanos letrados do litoral, foram logo saudados não apenas como
grandes literatos, mas como porta-vozes e intérpretes máximos de uma região e da própria
nação, como preceptores da pátria [65]. Se a glória de Euclides paira acima das lutas
partidárias, se todas as tendências ideológicas se reportam a ele, da extrema direita até a
extrema esquerda, Sarmiento, autor mais diretamente engajado e posteriormente político
atuante, é mais controvertido; sendo tendencialmente identificado com o ideário da
burguesia liberal que volta e meia mudou suas posições e alianças, de maneira que a sua
recepção sempre dependeu até certo ponto das vicissitudes da política nacional [66]. Seja
como for, os dois livros em questão entraram nos cânones literários das suas nações, como
também da América Latina e do mundo inteiro.
Há toda uma linhagem de escritores preocupados com a construção da nacionalidade, de
José de Alencar e José Hernández a Guimarães Rosa e Antonio Callado, que tenderam a
mediar essa oposição ao conceber a sua pátria basicamente a partir do interior, valorizando
as populações mestiças, suas formas de convívio e organização social, procurando nelas
suas inspirações literárias e combinando-as com a vertente humanista da civilização. Tanto
Euclides como Sarmiento se integram nessas tradições e de certa forma as constituem ou
pelo menos as enriquecem; eles sentem e adivinham que o rude conterrâneo interiorano é
um tipo condenado à extinção, destino que lamentam, por mais necessário ou, no caso de
Sarmiento, até desejável que seja. Vale a pena fixar essa cultura bárbara, porém autóctone,
importante para a construção da nacionalidade, erguer-lhe um monumento, antes que
desapareça. Algo dela deve ser preservado, tanto é que o título do livro sarmientino usa a
conjunção “y” (na grafia sarmientina “i”), em vez de uma possível “o” entre os dois
conceitos-chave; ou seja que não se trata de substituir simplesmente a barbárie pela
civilização mas de valorizar e fundir as duas, pelo menos no plano simbólico, criando uma
cultura e, eventualmente, uma sociedade nova, nem exclusivamente civilizada no sentido
europeu, nem americanamente selvagem como foi o Novo Mundo antes da vinda dos
europeus e, até certo ponto, nos tempos coloniais que perduram em caudilhos como
Facundo.
A diferença entre os dois autores, a este respeito, é gradual, pois Euclides gostaria, numa
futura civilização nacional, de manter mais traços sertanejos do que Sarmiento em relação
aos traços gauchos. Ao povo mestiço do campo, não-aculturado se nega o direito de existir,
o que prefigura a futura política de extermínio promovida pelo próprio Sarmiento como
homem político; porém o sertanejo de Euclides, embora condenado à extinção pela luta das
raças, da qual faz parte a guerra de Canudos, paradoxalmente tem uma grande vocação
virtual, pois ele seria a “rocha viva” sobre a qual se poderia construir a nação, sendo ele
quase um salvador da Pátria que porém o mata tragicamente. Em Sarmiento ideólogo a
salvação vem basicamente do exterior, em Euclides ideólogo ela vem do exterior mas
também do interior, isto é, poderia ou deveria vir de lá. Todavia, nos dois, enquanto
escritores, o homem simples do interior é personagem fascinante e indispensável, portador
da especificidade nacional.
Cabe ao sertanejo, na formação étnica e civilizatória do Brasil, papel importante, pois
prefigura uma raça mestiça, possível base da nação nascente, autêntica, autóctone e
civilizada ao mesmo tempo. É que um Brasil puramente branco e europeu não só é
impossível, é até impensável. Ou se concebe um Brasil mestiço ou não se concebe o Brasil,
como já viu Martius, nos anos quarenta do século XIX. Na Argentina, porém, a idéia de
país branco, não mestiço, basicamente europeu sempre foi e continua sendo miragem
difundida e influente, devido à clara predominância da população de origem européia.
Sarmiento, diferentemente do seu admirador brasileiro, não considera a mestiçagem um
grande problema, e muito menos a solução da formação nacional.
Dialética da civilização
Qual é o rumo da História? Como representá-la? Como explicar a barbárie? A principal
característica da história é a marcha inexorável da civilização na sua luta contra o seu
contrário. A barbárie, por mais fecunda que seja poeticamente e, por mais necessária que
seja militarmente [67], não deixa de ser preocupante, podendo ser, quando não controlada,
um empecilho para o progresso. Euclides assume, à primeira vista pelo menos, a atitude
isenta e objetiva do cientista à procura da verdade, pesquisando a essência por trás das
aparências, as causas profundas por baixo das causas imediatas, as leis naturais e sociais por
trás dos fenômenos, para organizar e classificar as suas inúmeras e meio caóticas
impressões. Em última análise, assume a atitude de um historiador, “um narrador sincero”
que escreve para aquela divindade secularizada que é a História, prefigurando o juízo da
posteridade, representada por futuros historiadores, de maneira que escreve quase sub
specie aeternitatis. O leitor vai percebendo que as ciências exatas e a historiografia não se
contradizem, mas que estão intimamente ligadas, não apenas devido à doutrina da
influência do meio sobre a sociedade e do condicionamento da evolução cultural pela
evolução genética, da história humana pela história natural. As duas vinculam-se por
analogia e correspondência, graças à poetização da linguagem, servindo a natureza como
prefiguração da história, entremeada de catástrofes, e sendo a vida social caracterizada por
metáforas naturalistas, de modo que não é de maneira nenhuma supérflua a primeira parte
do livro intitulada “A Terra”.
Por outro lado, como cronista e historiador, Euclides é, dir-se-ia algumas décadas depois
nas ciências sociais, uma espécie de “observador participante”, de caráter
predominantemente empírico no meio dos soldados e oficiais, seus companheiros desde a
Escola Militar, e de modo antes imaginário entre os sertanejos que quase só conheceu
indiretamente, através de textos ou relatos orais de outras testemunhas, ou observando-os de
longe, entrevistando-os como prisioneiros condenados à morte, vendo-os mortos. Essa
empatia não é apenas uma questão de temperamento, mas também programa, porque
aparece no mote, tomado em Hippolyte Taine no fim da “Nota Preliminar” de Os Sertões, o
que modifica de certa forma sua atitude olímpica de autor que escreve para futuros
historiadores e para o juízo da posteridade [68]. Euclides sofre e se alegra e se irrita com
seus personagens, menos ostensivamente e menos unilateralmente do que o seu predecessor
do Rio da Prata cuja estética da empatia também se apóia em autoridade francesa, com
posição mais romântica, mas não diferente na substância. Esse envolvimento emocional
com os personagens permeia, relativiza e até domina o discurso lógico-histórico, a começar
pela nota prelinimar, até o fim do livro; ele não impede a busca da verdade mas a favorece.
A crítica à civilização como progresso instrumental que homogeneiza o mundo, atropelando
todas as alteridades, se esbarra volta e meia na afirmação da necessidade dessa mesma
civilização do ponto de vista científico sem que haja qualquer mediação ou ponderação
entre as dicotomias do dilema. Manter as peculiaridades regionais e nacionais significaria
dificultar ou impedir a adoção da civilização: “Velar pela originalidade ainda vacillante de
um povo (...) equivale quase a impropriar-nos ao rythmo acelerado da civilização geral”
[69]. Note-se, por outro lado, que a crítica euclidiana à civilização como progresso
instrumental não invalida ou denuncia a civilização tout court, ela se baseia ao contrário na
civilização entendida como progresso humanitário, na vaga esperança de que os sacrifícios
exigidos pela primeira beneficiem algum dia a segunda. Assim ele pode legitimar por
exemplo o colonialismo francês na África, visto como modelo para missão civilizadora que
o Brasil litorâneo exerce no sertão, à qual esta comparação confere um estatuto colonial
[70].
Sarmiento, por sua vez, concentra todo o mal, ou seja, a barbárie em uma pessoa, Facundo,
o caudilho do interior, e no tipo humano representado por ele, o gaucho; porém, como deixa
claro na introdução, ele visa no fundo outra pessoa, o ditador Rosas, que ainda detém o
poder na hora em que o livro está sendo escrito. Por isso o autor argentino não vê motivos
para criticar a ferocidade da luta contra o líder do atraso, o inimigo da civilização. O bem e
o mal estão claramente delimitados e distribuídos, pois o exilado argentino no Chile tem
uma boa consciência na sua campanha jornalística e literária contra os gauchos, dos quais
ele se considera vítima, e sabemos que as vítimas sempre têm razão. Em 1845, Sarmiento
não pode ter certeza ainda de que pertencerá aos vencedores da História, embora Facundo já
tenha morrido, por traição, por culpa de Rosas, como sugere o autor, num trecho altamente
dramático que é quase uma crônica de uma morte anunciada, no capítulo XIII, o último do
livro em algumas edições, de qualquer forma o ponto alto do ponto de vista épico:
“¡¡¡Barranca-Yaco!!!” Esse desenlace, talvez o único lance verdadeiramente heróico do
protagonista, o transfigura num ser imortal, demonizado e glorificado pelo relato do autor
inimigo, de modo que o leitor, em vez de execrar esse facínora, finalmente passa a se
preocupar com a sua vida e a temer a sua morte, desejando que escape à tocaia armada. A
heroicidade do inimigo derrotado é velho lugar comum de toda literatura de guerra, pois a
admiração pelo vencido enaltece também o vencedor ao passo que o triunfo sobre um
inimigo fraco e covarde ou o menosprezo pelo inimigo morto acarretariam pouca honra. Já
em Homero, os Troianos, depois de vencidos, são apresentados quase como vencedores
morais e, os principais artífices da vitória grega, Agamenon e Ulisses, têm que pagar caro
por ela, Aquiles já tendo morrido antes.
A situação de Euclides é moralmente mais incômoda e intrigante do que a de Sarmiento no
seu exílio. O autor brasileiro, mais de meio século depois, como oficial reformado e
membro da comitiva do ministro da guerra, esteve do lado dos poderosos, dos vencedores,
dos autores de um crime não justificável com os alegados crimes anteriormente cometidos
pelas vítimas. Embora, ainda vários anos depois da luta, tome repetidas vezes o partido da
civilização [71], por outro lado denuncia o exército como “multidão criminosa e paga para
matar”, cujas atrocidades não sabe explicar satisfatoriamente [72]. Se lhe parecia viável
interpretar os crimes dos sertanejos através do darwinismo social e do evolucionismo da
época, os crimes da oficialidade branca, do governo vencedor, da civilização européia que
mandou os seus canhões Whitworth, Canet e Krupp e da qual os soldados brasileiros foram
“mercenários inconscientes”, não podiam ser imputados à mestiçagem, mas à própria
Civilização. Esta, já no começo do livro, na “Nota preliminar”, aparece como sujeito
histórico, impelido, por sua vez, pela luta de raças, aquela “força motriz da História” [73],
nas palavras do sociólogo polonês-austríaco Ludwig Gumplowicz, decifrável como
expressão mistificada da concorrência capitalista em escala mundial. A “animalidade
primitiva” [74], na cada vez mais pessimista visão euclidiana, é atributo do gênero humano
e não apenas do homem pré-moderno, não-europeu ou mestiço; o homem faz parte da
natureza vista numa perspectiva darwinista, ele é feroz seja troglodita, seja moderno. O
caráter desumano do gênero humano instrumentaliza a civilização e é instrumentalizado por
ela no combate ao suposto não-civilizado, expulso da nação. A idéia do progresso tende a
inverter-se, pois em Canudos os bárbaros se verificam menos bárbaros do que os civilizados
com sua barbaridade apoiada pela tecnologia moderna. O centro da barbárie parece
identificar-se cada vez mais com a capital do país:
A rua do Ouvidor valia por um desvio das caatingas (...). E a guerra de Canudos era, por
bem dizer, sintomática apenas. O mal era maior. Não se confinara num recanto da Bahia.
Alastrara-se. Rompia nas capitais do litoral. O homem do sertão, encourado e bruto, tinha
parceiros porventura mais perigosos [75].
Pode-se vislumbrar nos dois autores uma implícita dialética da civilização, como geradora
dos seus próprios opostos, muito embrionária em Sarmiento em que se desenrola ao nível
literário, no sentido de um desencanto, bastante nítida em Euclides que a vê também ao
nível social e político, pois para ele a civilização engendra a sua própria antítese: uma
barbárie moderna, mais perigosa e desumana do que a barbárie pré-moderna, e que só pode
ser superada por meio da própria civilização que deve incorporar elementos das combatidas
culturas tradicionais. Por outro lado, estas românticas contrapartidas só têm valor, só podem
sobreviver como parte da própria civilização, pois para esta não existe alternativa, dela não
se escapa, tampouco como da “armação de ferro” de Max Weber à qual no fundo é idêntica
[76]. Só é possível, eventualmente, humanizá-la, através dos seus próprios elementos
humanistas que prometem justiça, Estado de direito e bem-estar e através de elementos das
culturas subjugadas do interior da América Latina. Mas mesmo em Euclides, essa almejada
conciliação entre Civilização e Barbárie no sertão é mais ficção do que realidade, pois a
oposição não se resolve ao nível da realidade, a tese e a antítese não levam a nenhuma
síntese, a não ser ao nível da representação estética. A conciliação acontece no livro, ela é o
livro [77].
A indignação e o protesto de Euclides permanecem ateóricos, acientíficos, inoperantes, são
puramente éticos e poéticos. Nutrem-se da intuição de que toda essa visão determinista da
história não é a última verdade, pelo que protesta com ironia sarcástica contra a nação que
procura levar o sertanejo “para os deslumbramentos da nossa idade dentro de um quadrado
de baionetas, mostrando-lhe o brilho da civilização através do clarão de descargas” [78]. O
que objetivamente vale é a eficiência na matança, a “produtividade” do material bélico, ou
seja, a sua destrutividade. O progresso técnico-militar é um retrocesso humano, porque a
carabina, a metralhadora e o canhão são facas potenciadas, cujo efeito atroz às vezes não se
vê de perto, principalmente no caso da artilharia, quando a distância entre os campos
beligerantes e a assimetria do armamento geram a possibilidade de os atiradores assistirem
à batalha como a um drama, um espetáculo ficcional, esteticamente desfrutável, livre de
detalhes cruentos e desagradáveis, numa guerra limpa, ilusão evocada criticamente em Os
Sertões. O engenheiro, personagem emblemático da Civilização industrial, se torna
espectador que contempla a partir do quartel-general a eficácia mortal da sua
engenhosidade. Se a faca representa um estágio artesanal de matança, os canhões marcam o
seu estágio industrial, numa guerra em que a barbárie pré-histórica se funde com a barbárie
moderna. Se nem aos mortos se concede dignidade, sendo até o Conselheiro morto
degolado, uma profanação de sepulcro, embora com fins científicos, isto é, para estudos de
cranologia, é lógico o teatro da guerra ser caracterizado como “matadouro” [79], metáfora
mas também metonímia que lembra a famosa frase de Hegel sobre a História como
matadouro e sobre a escassez de felicidade nela existente [80].
Se Euclides parece mais velho do que o seu colega argentino, embora os dois tivessem a
mesma idade ao escreverem os livros aqui confrontados, é porque reflete experiências de
mais de meio século que se desenrolou depois do aparecimento do livro argentino. A
civilização já teve tempo de revelar alguns dos seus reversos, principalmente na sua
periferia, o que permitiu ao autor brasileiro vislumbrar elementos de uma “dialética do
iluminismo”, na acepção de Adorno e Horkheimer. Em Sarmiento, o interior dominado por
Facundo também é caracterizado pelo terror cruento, do qual é emblemática a degola que
tem seu domínio generalizado na capital e no país inteiro pela ditadura de Rosas,
permeando o livro todo [81]. Mas o autor argentino não problematiza realmente a gênese da
violência, simplificando-a como conseqüência do atraso, falta de educação, falta de
comunicação, falta de progresso. Em momento nenhum ele considera a própria civilização
como geradora de violência e selvageria, pois ignora, de propósito ou não, as
monstruosidades cometidas em seu nome. De certa forma a sua fé no progresso é tão
ingênua quanto a de Candide no conto de Voltaire que acredita viver no melhor dos mundos
possíveis [82]. Se Sarmiento também pressente traços bárbaros dentro da civilização, as
atribui à predominância do interior atrasado, do campo bárbaro, de formas de organização
primitivas sobre a sociedade urbana.
O que fustiga, porém, no regime de Rosas são, sem que tenha consciência disso, aspectos,
embora embrionários, do Estado ditatorial moderno, com terror sistematizado e culto da
personalidade, fenômenos bem conhecidos do século XX. Ele denuncia Rosas, o antigo
estancieiro e caudilho rural, como bárbaro, para não ser obrigado a criticar a própria
civilização, sobre a qual alimenta muitas ilusões. Considera o ditador homem do campo,
para não ter que criticar o Estado autoritário, centralizado, racional, assim como a
problemática hegemonia da capital sobre o país inteiro, prolongação da dependência do país
em relação à economia mundial dominada pela Inglaterra. Não viu o caráter classista do
Estado, nem o caráter limitado, racista e dependente do seu projeto republicano. Se o
Estado nacional civilizado é por vezes incivilizado e até anticivilizatório, esse defeito não é
extrínseco, como pensava Sarmiento, é intrínseco como intuía Euclides.
No fundo, Rosas, o ditador, era homem da cidade, da modernidade, da civilização, e
poderia ter dado ao escritor argentino a oportunidade de vislumbrar a barbárie dentro da
própria civilização. O que lhe turvou a perspicácia foi a falta de informações e sobretudo a
teimosia em equiparar o político urbano ao caudilho campestre, sob o signo comum da
barbárie gauchesca. Por outro lado, Rosas como personagem principal teria sido bem menos
romântico e épico do que Facundo. Borges tinha toda razão em acentuar a distância entre os
dois líderes do Federalismo, só aparentemente da mesma estirpe, ao desruralizar Rosas,
apresentando-o como homem da cidade e da civilização. Também imaginou, com igual
razão, que o bárbaro Facundo teria apreciado muito o seu retrato no livro que leva seu nome
e que se tornou o seu monumento, ainda que escrito por seu inimigo político e ideológico.
Em "Diálogo de muertos", uma miniatura em prosa, o caudilho dos pampas diz
postumamente ao seu aliado e rival:
Rosas, usted no me entendió nunca. (...) A usted le tocó mandar en una ciudad, que mira a
Europa y que será de las más famosas del mundo; a mí, guerrear por las soledades de
América, en una tierra pobre, de gauchos pobres. (...) A usted le debo este regalo de una
muerte bizarra, que no supe apreciar en aquella hora, pero que las siguientes generaciones
no han querido olvidar. No le serán desconocidas a usted unas litografías muy primoroas y
la obra interesante que ha redactado un sanjuanino de valía [83].
_______________
Berthold Zilly é professor do Instituto América Latina da Universidade Livre de Berlim.
Originalmente publicado em De sertões, desertos e espaços incivilizados (Rio de Janeiro, Faperj,
Ed. Mauad, 2001), este ensaio está aqui reproduzido por expressa autorização do autor
__________
Notas
[1] Usei as seguintes edições: Domingo F. Sarmiento, Facundo: Civilización y barbarie.
Barcelona, Biblioteca Ayacucho, 1985 (1a ed. Santiago de Chile, 1845); Euclides da
Cunha, Os Sertões (Edição crítica de Walnice Nogueira Galvão). São Paulo, Brasiliense
1985 (1a ed. Rio de Janeiro, 1902). Sarmiento viveu de 1811 a 1888, Euclides da Cunha de
1866 a 1909. Sobre a história e a função ideológica dos conceitos de “civilização” e
“barbárie” ver Roberto Fernández Retamar, “Algunos usos de civilización y barbarie”, Casa
de las Américas, año XVII, nº 102, 1977; Norbert Elias, Über den Prozess der Zivilisation:
Soziogenetische und psychogenetische Untersuchungen, 2 v. Frankfurt am Main,
Suhrkamp, 1997 (Ed. bras. O processo civilizador - Uma história dos costumes. Rio de
Janeiro, Jorge Zahar, 1990); e especificamente sobre “barbárie” na história colonial Ronald
Raminelli, Imagens da colonização: a representação do índio de Caminha a Vieira. Rio de
Janeiro/São Paulo, Jorge Zahar/Edusp, 1996.
[2] Há quem negue que Euclides se tenha inspirado em Facundo, como Adelino Brandão
que explica as numerosas semelhanças entre os dois livros com leituras e preocupações
idênticas ou afins, o que em princípio é plausível, embora em certos detalhes talvez
exagerado (A Sociologia d’Os Sertões. Rio de Janeiro, Artium, 1996, p. 167); por exemplo,
o romance 1793, de Victor Hugo, não pode ter inspirado Sarmiento, visto que só foi
publicado em 1874. Sobre a leitura desse romance por Euclides ver Leopoldo M. Bernucci
(A imitação dos sentidos: prógonos, contemporâneos e epígonos de Euclides da Cunha.
São Paulo, Edusp, 1995, p. 25-38) que também faz um confronto entre Euclides e
Sarmiento, atendo-se a semelhanças estruturais e ideológicas (ibid., p. 39-50).
[3] Euclydes da Cunha, Á Margem da História. Porto, Chardron, 1909, p. 168 (a grafia,
inclusive dos nomes próprios, desta e das outras citações, é a das edições consultadas).
[4] Euclydes da Cunha, “Academia Brasileira de Letras: Discurso de recepção”, in:
Contrastes e Confrontos. Porto, Emprêsa litteraria e typographica, 1907, p. 347-8. Em Á
Margem da História, no ensaio “Martin Garcia”, nome de uma ilha no Rio da Prata, em que
Sarmiento localizou sua utopia, Argirópolis, Euclides também menciona Facundo,
elogiando o “espirito glorioso do pensador de Civilización y barbarie”, ainda que vislumbre
nele uma certa tendência hegemônica para com os países vizinhos, semelhante até “ao
imperialismo raso de Manuel Rozas”. Isso não o impede de dedicar ao escritor argentino
frases de grande admiração: “Nos ultimos tempos da ditadura de Rozas todos os alentos da
nacionalidade desangrada pela Mashorca parecia concentrarem-se na fortaleza moral de um
homem. Domingos Sarmiento sobresaía nas crizes da sua terra despedindo os clarões de
suas grandes esperanças, presagos de um proximo amanhecer depois de uma noite nacional
de vinte anos” (E. da Cunha, op. cit., 1909, p. 214-5). Ver também o capítulo “Entre utopias
e pesadelos: Argirópolis, Canudos e as favelas”, Miriam Viviana Gárate, “Leituras
cruzadas: entre Sarmiento e Euclides da Cunha”, Tese de Doutorado, Campinas, Unicamp,
1995.
[5] A idéia é antiga, mas a fórmula dos “dois Brasis” é dos anos 50 (ver Jacques Lambert,
Os dois Brasis. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1976).
[6] Sarmiento, op. cit., 1985, p. 68; e Cunha, op. cit., 1985, p. 201, onde esse nome aparece
com a grafia “Achanti”.
[7] Tanto Sarmiento como Euclides mencionam Charette de la Contrie (1763-1796), um
líder aristocrático e monarquista da Vendéia (Vendée), sublevação contra-revolucionária
que os dois autores confundem com a dos Chouans, numa região vizinha, na Bretanha,
como termo de comparação para caracterizar rebeldes latinoamericanos antieuropeus;
porém, ao passo que Sarmiento pretende caracterizar com essa comparação Bolívar, pondo
este militarmente acima de Charette (ibid., p. 17), Euclides a usa de modo semi-irônico e
auto-irônico, para caracterizar a imagem dos conselheiristas na imprensa brasileira da
época, que via neles um bando de aliados do partido monarquista. O autor brasileiro se
serve ambiguamente da metáfora da Vendéia como designação do movimento de Canudos,
adotando-a e rejeitando-a ao mesmo tempo (ver ibid., p. 461, 249, 282). Mas Sarmiento
também está cheio de ambigüidades ao equiparar implicitamente Bolívar e Facundo, por
intermédio da comparação de ambos com Charette, como chefes militares e como
expressões das terras americanas. Se o elemento autóctone e mestiço, base de uma guerrilha
eficiente, é tão positivo em Bolívar, evidentemente por ser anti-espanhol, não pode ser tão
negativo em Facundo, só por ser antiunitário, antiliberal, antieuropeu. Por outro lado, essa
contradição é atenuada um pouco pela hipótese de que o antiespanholismo de Bolívar é
visto como atitude esclarecida, civilizada, moderna, pois a Espanha da época passava por
clerical, monarquista e reacionária.
[8] Sarmiento, op. cit., 1985, p. 91. O interesse pelas ruínas se deve em parte ao escritor
francês Constantin de Volney (1757-1820), viajante pelo oriente próximo, arabista,
historiador meio romântico, meio iluminista e quase materialista, político ligado aos
girondinos na Revolução Francesa, autor de Les ruines ou méditations sur les révolutions
des empires (1791), muito lido na América Latina na primeira metade do século XIX, sob o
título Las ruinas de Palmira, livro citado também por Sarmiento (ver ibid., p. 26). A idéia,
já existente no autor argentino, de que o interior bárbaro é ao mesmo tempo velho e
novíssimo, caduco e embrionário, vetusto e jovem, ruína e início permeia mais
acentuamente ainda todo o livro de Euclides, sem que ele cite Volney expressamente. Sobre
a presença deste na obra euclidiana ver Francisco Foot Hardman, “Brutalidade antiga: sobre
história e ruína em Euclides”, Estudos Avançados, São Paulo, USP, janeiro/abril 1996, v.
10, n° 26, p. 293-310.
[9] Estou me referindo às duas primeiras edições de Facundo, de 1845 e de 1851,
publicadas em Santiago de Chile. O título da primeira é: Civilización i barbarie. Vida de
Juan Facundo Quiroga i aspecto físico, costumbres i ábitos de la República Arjentina,
Santiago de Chile, 1845, sendo o da segunda edição quase idêntico. Sabe-se que Sarmiento
pretendeu americanizar, argentinizar e popularizar o castelhano também através de uma
reforma ortográfica que aplicou nos seus primeiros livros, mas que não vingou. O livro
euclidiano, nas três edições que saíram durante a vida do autor, em 1902, 1903, 1905,
sempre manteve o mesmo título: Os Sertões (Campanha de Canudos) , embora alguns raros
editores tenham posteriormente omitido o subtítulo.
[10] E. da Cunha, op. cit., 1985, p. 86.
[11] Depois de voltarem ao Rio, alguns soldados se estabeleceram num morro com o nome
sugestivo da Providência, ao lado da estação ferroviária Central do Brasil, denominando-o
Morro da Favela, de onde o nome se espalhou virando termo genérico, de modo que aquela
favela específica readotou mais tarde o antigo nome de Morro da Providência.
[12] E. da Cunha, op. cit., 1985, p. 237.
[13] Se há uma cidade no Facundo comparável, pelo menos minimamente, com Canudos e
talvez ainda mais com Monte Santo, é La Rioja, situada no deserto, ou na sua margem,
comparada pelo autor com Jerusalém, igual Canudos: “Más hacia el oriente, se extiende una
llanura arenisca, desierta y agostada por los ardores del sol, en cuya extremidad norte, y a
las inmediaciones de una montaña cubierta hasta su cima de lozana y alta vegetación, yace
el esqueleto de La Rioja, ciudad solitaria, sin arrabales y marchita como Jerusalén, al pie
del Monte de los Olivos” (Sarmiento, op. cit., 1985, p. 91). Essas llanuras lembram a
Palestina mas também o sertão de Canudos: “El aspecto del país es, por lo general,
desolado; el clima, abrasador; la tierra, seca y sin aguas corrientes. El campesino hace
represas para recoger el agua de las lluvias y dar de beber a sus ganados” (ibid., p. 91). E,
como no sertão, há nos arredores uma alternância de terras áridas e terras férteis,
principalmente no plano espacial, menos no plano temporal das estações do ano: “Hay una
extraña combinación de montañas y llanuras, de fertilidad y aridez, de montes adustos y
erizados, y colinas verdinegras tapizadas de vegetación como los cedros del Líbano” (ibid.,
p. 92). Sobre o caráter mítico e metafísico do sertão ver Fernando Cristóvão, “A
transfiguração da realidade sertaneja e a sua passagem a mito (A Divina Comédia do
Sertão)”, Revista da USP, nº 20, dez./jan./fev. 1993-1994.
[14] Em muitos países de colonização espanhola, devido à predominância da mineração
como principal fonte da riqueza e da exportação, os centros irradiadores da civilização se
estabeleceram no interior: Cidade do México, Bogotá, Quito, Cuzco, Santiago de Chile,
Córdoba, o que ocorreu no Brasil tardia e reduzidamente em Minas Gerais a partir do
século XVIII, e no século XX em Brasília. Por isso, na América hispânica, a dicotomia
civilização-barbárie não corresponde necessariamente àquela entre litoral-interior.
[15] Ver acima a citação do ensaio “Martín García”, in: E. da Cunha, op. cit., 1909, p. 221.
Quanto às cidades em Facundo, especialmente a relação entre a iluminista Buenos Aires e a
clerical Córdoba, ver Maria Ligia Coelho Prado, “Prefácio à edição brasileira”, em
Domingo F. Sarmiento, Facundo: civilização e barbárie (Trad. de Jaime A. Clasen).
Petrópolis, Vozes, 1997, p. 32-3.
[16] Ver Walnice Nogueira Galvão, As formas do falso: Um estudo sobre a ambigüidade
no “Grande Sertão: Veredas”, (São Paulo, Perspectiva, 1986), sobretudo a 1ª parte: “A
condição jagunça”.
[17] E. da Cunha, op. cit., 1985, p. 182 e 185.
[18] Sarmiento, op. cit., 1985, p. 34.
[19] Ibid., p. 34 e 57.
[20] E. da Cunha, op. cit., 1985, p. 180.
[21] Sarmiento, op. cit., 1985, p. 80.
[22] E. da Cunha, op. cit., 1985, p. 196.
[23] Lembremo-nos de que o termo brasileiro “gaúcho” pode designar não apenas o
guardador de gado, montado a cavalo, nos pampas, mas também o habitante do Rio Grande
do Sul. Entre os dois significados, Euclides não faz uma clara distinção, dando a entender
que, em Canudos, todos os soldados provenientes daquele Estado eram cavaleiros cuidando
do gado, “monarcas das coxilhas” (ibid., p. 408), o que provavelmente corresponde tão
pouco à realidade histórica quanto a apresentação genérica do sertanejo como vaqueiro,
também montado a cavalo. São pelo menos exageros, estilizações enobrecedoras da plebe
rural semibárbara, para aproximá-la à figura do escudeiro medieval. Na verdade, em
Canudos havia poucos cavalos e poucas vacas, visto que a economia da população pobre do
sertão se baseava e se baseia até hoje principalmente na cabra, genericamente chamada de
“bode”.
[24] Ibid., p. 184.
[25] Ibid., p. 535.
[26] Ibid., p. 215.
[27] “Malandros e caxias prometem carnavais e paradas. O renunciador promete um
mundo novo, um universo social alternativo, como o fez Antônio Conselheiro e, em escala
menor, todos os nossos cangaceiros ou bandidos sociais, como foi o caso de Lampião e
outros. Ousaria, então, dizer que tudo indica ser o renunciador o verdadeiro revolucionário
num universo social hierarquizante, como é o caso do sistema brasileiro” (Roberto da
Matta, Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de
Janeiro, Zahar, 1979, p. 206).
[28] Se falta religiosidade explícita em Sarmiento, não falta certa predisposição para tal no
meio social e no próprio autor, o que mostram as numerosas alusões a paisagens bíblicas,
ou a antonomásia surpreendente segundo a qual o “caudillo argentino es un Mahoma, que
pudiera, a su antojo, cambiar la religión dominante y forjar una nueva”, graças ao seu poder
discricionário (Sarmiento, op. cit., 1985, p. 60), e que o protagonista, depois de morto, é
esperado de volta pelo povo como se fosse um ser sobrenatural, quase como um messias
(ibid., p. 8). Mais tarde, viajando pelo norte da África, o autor até ficará surpreso com “la
semejanza de fisionomía del gaucho argentino y del árabe, y mi ‘chauss’ me lisonjeaba
diciéndo-me que, al verme, todos me tomarían por un creyente”, e até gosta da idéia de ser
“presunto deudo de Mahoma” (Domingo F. Sarmiento, Recuerdos de Provincia. Caracas,
Biblioteca Ayacucho, 1991, p. 36). Em terras estrangeiras, Sarmiento curiosamente se
identifica com o conterrâneo semibárbaro, associado a outro semibárbaro, o árabe
muçulmano. A primeira educação do autor foi toda religiosa; seus primeiros e quase seus
únicos professores foram sacerdotes, com os quais certamente também aprendeu a
predileção pela oratória (ver principalmente o capítulo “Mi educación”, in: ibid., p. 172 s.).
[29] Ver N. Elias, op. cit., especialmente no v. II, p. 323 s.
[30] Sarmiento, op. cit., 1985, p. 203. O autor argentino, depois do fim do mau herói,
depois do fim da parte descritiva e narrativa que constitui a essência do livro, acrescenta
dois capítulos (XIV e XV), em que tece, à diferença de Euclides da Cunha que termina o
livro com o fim do inimigo principal, considerações políticas, apresentando mais uma
caracterização do ditador Rosas, um balanço do presente e um projeto para o futuro. Futuro
do país e, nas entrelinhas, futuro do autor que, sem modéstia nenhuma, vê o seu destino
intimamente ligado ao destino da nação. Esses últimos dois capítulos, literariamente talvez
os menos bem sucedidos, pouco narrativos, pouco dramáticos e pouco poéticos, destoam do
livro como um todo, sendo-lhe esteticamente alheios. Assim, as opinões e intenções
políticas do autor constituem uma espécie de epílogo ou até apêndice, impressão fortalecida
pelo fato de não constarem na primeira versão publicada em forma de folhetim no
Progreso, jornal editado pelo autor no Chile, nem na segunda e terceira edição do livro (ver
ibid., p. LVIII; e Elizabeth Garrels, “El ‘Facundo’ como folletín”, Revista Iberoamericana,
nº 143, 1988).
[31] Ver a relação das dramatis personae, em Euclides da Cunha, Obra Completa (org.
Afrânio Coutinho). Rio de Janeiro, Aguilar, 1966, v. II, p. 77-87. A questão da literariedade
foi discutida, entre outros, por Luiz Costa Lima (Terra ignota: a construção de ‘Os
Sertões’. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1997) que no entanto, à procura de uma
definição clara, distinta, racionalista de um livro extremamente multidimensional e de alta
carga emocional, contesta, em última análise, o caráter literário de Os Sertões, ou o reduz
aos aspectos ornamentais. Sobre a teatralidade de Os Sertões ver Berthold Zilly, “A guerra
como painel e espetáculo: a história encenada em ”Os Sertões”, História, Ciências, Saúde Manguinhos, Rio de Janeiro, Fiocruz, v. V, suplemento, jul. 1998.
[32] Sarmiento, op. cit., 1985, p. 7.
[33] Ibid., p. 8. Sobre a invocação das musas na literatura ocidental ver Ernst Robert
Curtius, Literatura Européia e Idade Média Latina (Trad. Paulo Rónai e Teodoro Cabral).
São Paulo, Edusp/Hucitec, 1996, p. 291-311. Em Curtius não há nenhum exemplo de
invocação de um ser negativo, inimigo, nefasto, seja imaginário, seja real. Ver também a
interpretação em Jens Andermann, Mapas de poder: una arqueología literaria del espacio
argentino. Rosario, Beatriz Viterbo Editora, 2000, p. 85-6.
[34] Tanto Os Sertões como Facundo são livros sem amor e quase sem mulheres, a não ser
como personagens coletivas ou como vítimas. Se há um amor nos dois livros, é o dos
autores pela pátria. Sobre as mulheres em Os Sertões, ver José Calasans, “As Mulheres de
‘Os Sertões’ ”, in: José Calasans, No tempo de Antônio Conselheiro: figuras e fatos da
Campanha de Canudos. Salvador, Aguiar & Souza/Progresso, s.d. [1959], p. 7-23.
[35] Sarmiento, op. cit., 1985, p. 9; e E. da Cunha, op. cit., 1985, p. 169 e 231.
[36] Sarmiento, op. cit., 1985, p. 91.
[37] E. da Cunha, op. cit., 1985, p. 300.
[38] Sarmiento, op. cit., 1985, p. 19.
[39] Ver as “Notas de Valentín Alsina al libro”, in: Sarmiento, op. cit., 1985, p. 255-304,
especialmente nota 2.
[40] Walnice Nogueira Galvão e Oswaldo Galotti (orgs.), Correspondência de Euclides da
Cunha. São Paulo, Edusp, 1997, p. 119.
[41] As presentes reflexões sobre as diversas funções do texto literário e de qualquer ato
comunicativo devem muito a Roman Jakobson, “Lingüística e poética”, in: R. Jakobson,
Lingüística e comunicação. São Paulo, Cultrix, 1969, p. 118-62.
[42] Walnice Nogueira Galvão, “Uma ausência“, in: Roberto Schwarz (org.), Os pobres na
literatura brasileira. São Paulo, Brasiliense, 1983, p. 51.
[43] Um exemplo famoso é “centauro apeado”, no sentido de “centauro bípede”, para
caracterizar a impetuosidade da infantaria do Sul, ou seja, de gaúchos que lutam sem
cavalos na caatinga (E. da Cunha, op. cit., 1985, p. 417). Vale a pena citar a frase toda:
“Mas nos encontros a arma branca aqueles centauros apeados arremetem com os contrários,
como se copiassem a carreira dos ginetes ensofregados das pampas”. Aliás, quanto ao
gênero gramatical da paisagem gaúcha, Euclides vacila entre o pampa e a pampa, talvez
por influência do espanhol (ver ibid., p. 417 e 685). A imagem do gaúcho como centauro
era corriqueira no tempo do Facundo, de modo que Alberdi, correligionário e rival de
Sarmiento, a usou para sugerir a afinidade temperamental deste último com os cavaleiros do
pampa: “Lo presenta como como un caso típico de inadaptación al orden posterior a la
caída de Rosas. A fuerza de pelear contra la tiranía, no sabe hacer otra cosa. Es un caudillo
de la pluma, ‘producto natural de la América despoblada’ (...). Libre como el centauro de
nuestros campos, embiste a la Academia española con tanto denuedo como a las primeras
autoridades de la República” (Alberto Palcos, “Sarmiento”, in: Sarmiento, op. cit., 1985, p.
342).
[44] Citado por Roberto Schwarz, “Sobre o amanuense Belmiro”, in: R. Schwarz, O Pai de
família e outros estudos. São Paulo, Paz e Terra, 1992, p. 11.
[45] Gilberto Freyre, Perfil de Euclides e outros perfis. Rio de Janeiro, Record, 1987, p. 234.
[46] Sobre o conceito de livro fundacional ver Doris Sommer (Foundational Fictions: The
National Romances of Latin America. Berkeley/Los Angeles, Oxford/University of
California Press, 1994), que inclui na sua pesquisa o Facundo, porém não Os Sertões.
[47] Ver Roberto de Oliveira Brandão, “Presença da oratória no Brasil do século XIX”, in:
Leyla Perrone Moisés, O Ateneu: Retórica e Paixão. São Paulo, Brasiliense/Edusp, 1988.
Sarmiento, que diferentemente de Euclides nunca teve a chance de concluir uma formação
formal, escolar ou superior, pode ter conhecido essa retórica não só através da leitura de
modelos literários latinoamericanos e europeus mas também através da oratória eclesiástica
(Sarmiento, op. cit., 1985, p. 318 e 320; e Sarmiento, op. cit., 1991, p. 187 s.).
[48] Os dois autores se empenharam por terem seus livros traduzidos, Sarmiento com êxito
rápido, pois dentro de poucos anos saíram traduções do Facundo em francês, inglês e
italiano (Sarmiento, op. cit., 1985, p. LIV), ao passo que o livro de Euclides só foi
publicado em outra língua depois de sua morte, pela primeira vez na Argentina, em 1938
(Marcia Japor de Oliveira Garcia e Vera Maria Fürstenau (coords.), O Acervo de Euclydes
da Cunha na Biblioteca Nacional. Campinas/Rio de Janeiro, Editora da Unicamp/Fundação
Biblioteca Nacional, 1995, p. 17-8). Hoje em dia, a situação parece invertida, sendo o livro
de Euclides mundialmente mais lido do que o de Sarmiento, cujas traduções estão em
grande parte esgotadas. É de 1923 a primeira tradução para o português (ver M. L. C.
Prado, op. cit., p. 19). Sobre a rápida recepção de Facundo nas Américas e na Europa ver
também Sarmiento, op. cit., 1991, p. 256 e 260-1. O próprio Sarmiento considerava a
tradução uma atividade central na transferência e apropriação da civilização, de modo que a
praticava ele mesmo, embora de modo bastante subjetivo (ver ibid., p. 264-5; e Florian
Nelle, Atlantische Passagen: Paris am Schnittpunkt südamerikanischer Lebensläufe
zwischen Unabhängikeit und kubanischer Revolution (Travessias atlânticas: Paris no
cruzamento de biografias entre a Independência e a Revolução Cubana). Berlin, Tranvía,
1996, p. 156-66).
[49] Sarmiento reivindica um livro sobre a Argentina escrito por um autor científico do
porte de Tocqueville, mas dá a entender que ele mesmo tem muito a dizer sobre o seu país e
a América do Sul aos europeus. “A la América del Sur en general, y a la República
Argentina sobre todo, le ha hecho falta un Tocqueville, que, premunido del conocimiento
de las teorías sociales, como el viajero científico de barómetros, octantes y brújulas, viniera
a penetrar en el interior de nuestra vida política, como en un mapa vastísimo y aún no
explorado ni descrito por la ciencia, y revelase a la Europa, a la Francia, tan ávida de fases
nuevas en la vida de las diversas porciones de la humanidad, este nuevo modo de ser, que
no tiene antecedentes bien marcados y conocidos” (Sarmiento, op. cit., 1985, p. 9), sendo
interessante a reivindicação de uma ciência social tão metódica quanto as ciências naturais;
ver também as páginas subseqüentes. Euclides cumpre de certa forma a reivindicação de
um estudo científico do país, pois não só lança mão das teorias sociais vigentes na Europa,
aparentemente com o rigor das ciências naturais, mas também se serve destas mesmas,
como viajante e como autor científico, fundindo-as com a representação poética e retórica
do tipo ensaiado pelo próprio Sarmiento naquelas páginas. Mas além disso, Euclides
também afirma a necessidade de algum sábio europeu um dia explicar eventos como a
guerra de Canudos, no plano psicossocial, dando a entender que, quem sabe, ele mesmo,
Euclides, já cumpriu parte dessa tarefa, só que em vez da ciência política ele invoca a
psiquiatria social: “É que ainda não existe um Maudsley para as loucuras e os crimes das
nacionalidades...” são as últimas palavras de Os Sertões (E. da Cunha, op. cit., 1985, p.
573). Sobre a importância da literatura de viagem para a constituição da ficção brasileira
ver Flora Süssekind, O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem. São Paulo,
Companhia das Letras, 1990.
[50] “Sejamos simples copistas”, diz Euclides, o que pode ser entendido de maneira
tríplice: primeiramente “decifrar” e “transcrever” o “livro” da História; em segundo lugar
registrar situações e acontecimentos como uma espécie de escrevente, secretário, cronista
do real; em terceiro lugar reproduzir, ou seja desenhar, pintar, esculpir verbalmente quadros
e cenas que a própria realidade oferece ao observador e espectador. De qualquer forma a
atividade do autor “copista” está oposta à teorização e à especulação, já que as teorias da
época se verificaram pouco idôneas para captar e analisar os processos sociais no sertão
(ver E. da Cunha, op. cit., 1985, p. 178). Sobre a metáfora da natureza ou da história como
livro que o teólogo, o sábio ou o poeta teriam que decifrar, ver Ernst Robert Curtius,
Europäische Literatur und lateinisches Mittelalter (1ª ed. 1948). Bern und München,
Francke, 1969, p. 306-52; e E. R. Curtius, op. cit., 1996, p. 375-429. No Renascimento e no
Barroco estava muito em voga essa metáfora.
[51] Sarmiento, op. cit., 1985, p. 40-1.
[52] Ver Berthold Zilly, “Sertão e nacionalidade: formação étnica e civilizatória do Brasil
segundo Euclides da Cunha”, Estudos - Sociedade e Agricultura, nº 12, abril 1999, Rio de
Janeiro, UFRRJ/CPDA.
[53] E. da Cunha, op. cit., 1985, p. 299 e 476.
[54] Ibid., p. 477.
[55] Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Ästhetik (org. Friedrich Bassenge). Berlin und
Weimar, Aufbau, 1965, v. II, p. 420 s.; e G. W. F. Hegel, Curso de estética: O sistema das
artes (trad. Álvaro Ribeiro). São Paulo, Martins Fontes, 1997, p. 458 s. A violência e
principalmente a guerra como fonte de inspiração poética e de sonhos de salvação numa
civilização supostamente decadente é um dos fios condutores no livro de Schneider, por
exemplo, no capítulo sobre Nietzsche (Manfred Schneider, Der Barbar: Endzeitstimmung
und Kulturrecycling (O bárbaro: ambiente de fim de época e reciclagem cultural).
München, Hanser, 1997, p. 201 s.). É principalmente nos espaços “incivilizados” que a
fantasia dos civilizados acredita poder livrar-se das peias da moral civilizada, sendo esses
espaços de suma importância para a produção poética européia.
[56] “O sertão é o homizio. Quem lhe rompe as trilhas, ao divisar à beira da estrada a cruz
sobre a cova do assassinado, não indaga do crime. Tira o chapéu, e passa” (ibid., p. 538).
Sobre massacres como método de “resolver” conflitos sociais, ver Roberto Pompeu de
Toledo, “A teimosa mania de cortar cabeças”, Veja, 8/5/1996, p. 154. Sobre a violência na
literatura latino-americana ver Ariel Dorfman, Imaginación y violencia en América.
Barcelona, Anagrama, 1972.
[57] Ibid., p. 567 e 452.
[58] “O romance no sentido moderno pressupõe uma realidade ordenada prosaicamente, e
baseando-se nela - tanto com respeito à vivacidade dos acontecimentos quanto em relação
aos indivíduos e ao seu destino - ele recupera, na medida em que isto é possível nessas
condições, para a poesia o seu direito de existência perdido. Uma das colisões mais comuns
e mais apropriadas ao romance é por isso o conflito entre a poesia do coração e a prosa
adversa das circunstâncias assim como entre aquela e as contingências acidentais” (Hegel,
op. cit., 1965, v. II, p. 452. A tradução das citações é minha).
[59] Ibid., p. 549.
[60] Machado de Assis, A Semana, crônica de 22/7/1894. Rio de Janeiro/São Paulo/Porto
Alegre, Jackson, 1937, v. II, p. 134.
[61] Machado de Assis, A Semana (org. John Gledson), crônica de 31/1/97. São Paulo,
Hucitec, 1992, p. 401.
[62] É um chavão chamar Os Sertões de “bíblia da nação”, o que coincide com a definição
da epopéia por Hegel: “Enquanto tal totalidade original, a obra épica é a lenda [Sage], o
livro, a bíblia de um povo, e toda grande e importante nação tem livros assim
absolutamente primordiais, nos quais lhe é enunciado aquilo que é o seu espírito original”
(Hegel, op. cit., 1965, v. II, p. 407).
[63] Ver Pierre Nora, “Entre mémoire et histoire”, in: P. Nora (org.), Les Lieux de
Mémoire, v. I, La République. Paris, Gallimard, 1984; e Regina Abreu, O Enigma de ‘Os
Sertões’. Rio de Janeiro, Funarte/Rocco, 1998.
[64] Ver por exemplo Afrânio Coutinho, “Os Sertões, obra de ficção”, in: Euclides da
Cunha, op. cit., 1966.
[65] Esta representatividade nacional se reflete, por exemplo, no título do livro de Tulio
Halperín Donghi e outros (orgs.), Sarmiento: Author of a Nation. (Berkeley/Los
Angeles/London, University of California Press, 1994). Ver também Ezequiel Martínez
Estrada, Radiografía de la pampa (ed. crítica de Leo Pollmann). Paris/São Paulo, ALLCA
XX-Ediciones Unesco/Edusp, 1996, p. 253-6.
[66] Sobre a recepção e funcionalização de Sarmiento pelas correntes ideológicas na
história argentina ver Dieter Reichardt, “Sarmiento’s Essay ‘Facundo - Civilización y
barbarie’ in der politischen Auseinandersetzung Argentiniens” (O ensaio de Sarmiento
‘Facundo - Civilización y barbarie’ nas lutas políticas da Argentina), in: Rolf Klöpfer e
outros (orgs.), Bildung und Ausbildung in der Romania, v. III. München, Fink, 1979.
[67] A história de algumas palavras derivadas do étimo latino e grego de “bárbaro“ elucida
as ambivalências que sempre acompanharam a atitude dos civilizados em relação à
barbárie: pertencem a elas, entre muitas outras, as palavras bravio e brabo, o que não pode
surpreender, mas também bravo e bravura, prova de que pelo menos no plano militar a
barbaridade é indispensável (ver Antônio Geraldo da Cunha, Dicionário Etimológico Nova
Fronteira da língua portuguesa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999, verbete “bravo”).
[68] “Estimem o historiador que trate a história como ela o merece, isto é, como ciência
(...). Pois ele só aprecia o verdadeiro absoluto, ele se irrita contra as semi-verdades que são
semi-falsidades, contra os autores que guardam o desenho dos acontecimentos e modificam
a sua cor, que copiam os fatos e desfiguram a sua alma: ele quer se sentir como bárbaro
entre os bárbaros, e entre os antigos como antigo”. (H. Taine, Essai sur Tite-Live. Paris,
Hachette, 1888, p. 30; a tradução é minha). É significativo a citação de Euclides só começar
com as palavras “il s’irrite”, ficando portanto fora a reivindicação de que história seja uma
“science” e uma busca do “vrai absolu”. Em vez disso, Euclides acentua a necessidade da
empatia que em Taine está mais bem ao serviço da neutralidade, da proximidade sempre
igual do historiador com todos os seus protagonistas e portanto da imparcialidade. Não
surpreende Sarmiento começar o seu livro, na introdução, com um mote que vai na direção
euclidiana, encontrado em outro autor francês, Abel François Villemain, historiador da
literatura, pouco conhecido hoje em dia: “Peço ao historiador o amor pela humanidade ou
pela liberdade; a sua justiça imparcial não deve ser impassível. É preciso, pelo contrário,
que ele espere, que sofra, ou que esteja feliz com aquilo que narra” (Sarmiento, op.
cit.,1985, p. 7; a tradução é minha). A empatia, uma certa pluriparcialidade é programática
nos dois autores, mas em Sarmiento ela fica, principalmente em relação ao povo e aos
inimigos, bastante subliminar, devido ao seu temperamento egocêntrico, partidário,
pragmático. Em Euclides ela é mais generalizada, justa, equitativa, menos partidária, pois a
sua compaixão é suprapartidária, estendendo-se a homens de todas as condições, plantas,
animais, pedras, a todos os seres sofridos e martirizados.
[69] E. da Cunha, op. cit., 1907, p. 297.
[70] E. da Cunha, op. cit., 1985, p. 135.
[71] E. da Cunha, op. cit., 1907, p. 141-68. A “cruzada” é a da civilização contra a barbárie.
A última frase reza: “(...) o unico significado verdadeiramente civilizador do movimento
expansionista das raças vigorosas sobre a terra, está todo em affeiçoar os novos scenarios
naturaes a uma vida maior e mais alta - compensando-se o duro esmagamento das raças
incompetentes com a redempção maravilhosa dos territorios...” Sarmiento não pensaria
diferentemente, só que teria menos problemas morais com esse “esmagamento”. Não é a
primeira nem a última vez que se veicula a idéia do desenvolvimento de um território
aceitando-se a eliminação da sua população primitiva, considerada empecilho.
[72] E. da Cunha, op. cit., 1985, p. 538.
[73] Ibid., p. 86.
[74] E. da Cunha, op. cit., 1985, p. 538.
[75] Ibid., p. 373.
[76] No original alemão a famosa fórmula reza: “stahlhartes Gehäuse”, que significa
literalmente “armação, cápsula, carcaça dura como aço”, um invólucro, portanto, em que o
homem está inexoravelmente preso, metáfora da coerção que a economia capitalista exerce
sobre os indivíduos, independentemente de sua aceitação ou não (M. Weber, Die
protestantische Ethik. München/Hamburg, Siebenstern, 1969, v. I, p. 188).
[77] B. Zilly, op. cit., 1999, p. 37-40.
[78] E. da Cunha, op. cit., 1985, p. 374.
[79] Ibid., p. 538.
[80] Esteban Echeverría, amigo de Sarmiento e unitário como ele, usa esse símbolo para
caracterizar o regime de Rosas, no seu conto-novela El matadero, provavelmente escrito em
1839, publicado só em 1871, onde “se ilumina la figura del joven vejado (...) por los
esbirros del tirano, como la proyección simbólica en que avanza el cuadro de costumbres
nacionales, diseñando una interpretación de la lucha entre civilización y barbarie” (Juan
Carlos Ghiano, “ ‘El Matadero’ de Echeverría”, in: Esteban Echeverría, El Matadero.
Buenos Aires/Barcelona, Emecé, 1967, p. 13). Há quem estabeleça uma filiação entre El
Matadero e o Facundo (ver Roberto González Echeverría, “Redescubrimiento del mundo
perdido: El Facundo de Sarmiento”, Revista Iberoamericana, nº 143, 1988, p. 385-406).
[81] Sarmiento, op. cit., 1985, p. 27 e outros trechos.
[82] É curioso essa ingenuidade também se encontrar em Martínez Estrada, em pleno
século XX, que atribui a barbárie debaixo dos fraques ao caráter americano (E. Martínez
Estrada, op. cit., p. 253).
[83] Jorge Luis Borges, “Diálogo de muertos”, in: El Hacedor, in: Obras Completas: 19231972. Buenos Aires, Emecé, 1989, v. 1, p. 791. O “sanjuanino”, naturalmente, é Sarmiento.
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