“A verdade é a medida eterna das coisas”: a divindade no Tratado

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“A verdade é a medida eterna das coisas”: a divindade no Tratado da Obra
dos Seis Dias, de Teodorico de Chartres (†c. 1155)1
“The truth is the eternal measure of things”: the divinity of the De sex dierum operibus of
Theodoric of Chartres
Ricardo da COSTA2
Figura 1
Deus criador do Universo. Observe que Ele, muito atento, manuseia cuidadosamente um imenso
compasso (representação da Geometria, arte do Quadrivium, e do puro pensamento matemático do
Criador) na circular “massa informe e vazia” para que, como disse Teodorico de Chartres, com
amor e bondade, Deus, que é a Sabedoria, ordenasse a desordem e fosse a causa formal e eficiente
do mundo, e assim as coisas criadas fossem partícipes de Sua felicidade através de Seu amor.
Bíblia moralizante (séc. XIII), cód. 1779, folio 1v (Gênesis), Biblioteca Nacional da Áustria. In:
Las biblias más bellas. Taschen, 2008, p. 215.
1
Trabalho publicado (com as imagens em preto e branco) em ZIERER, Adriana (org.). Uma viagem pela
Idade Média: estudos interdisciplinares. UFMA, 2010, p. 263-282 (ISBN 978-85-86036-64-4). Conferência
proferida na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) no dia 02 de junho de 2011 nas Jornadas de Filosofia
Medieval (Ciclo 2011 - Internacional), evento organizado pelo Principium.
2
Medievalista e Prof. Associado I da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Acadêmico
correspondente da Reial Acadèmia de Bones Lletres de Barcelona. Site: www.ricardocosta.com
1
A Idade Média é uma pérola sempre redescoberta no fundo de um mar revolto. Cada vez
que nos debruçamos sobre suas fontes, descobrimos quanta ignorância há a seu respeito e o
quão injusta é a imagem que os modernos (e pós-modernos) fazem dela. Por exemplo,
quem já não ouviu (ou leu) que os medievais desconheciam o mundo clássico, e que foram
os renascentistas os responsáveis por sua redescoberta?
Nada mais distante da verdade! A educação medieval (e a Filosofia nela incluída), tema a
que já nos dedicamos em mais de uma oportunidade (COSTA, 2002a, 2002b, 2003, 2006,
2007, 2008, 2009), é um terreno fértil para comprovarmos a riqueza de sua produção
textual – tanto filosófica, quanto literária e científica.
Para adentrarmos uma vez mais esse rico universo cultural, neste pequeno trabalho
dedicar-nos-emos a analisar a terceira parte do Tratado da Obra dos Seis Dias (De sex
dierum operibus, c. 1130-1140), texto filosófico sobre o Criador (definido como
substância do ser) escrito por Teodorico (†c. 1155), monge, professor e chanceler da
Escola Catedralícia de Chartres, o mais importante centro de estudo na Europa no século
XII antes do surgimento das universidades.
I. Chartres e sua Educação Clássica
Localizada ao sudoeste da Île-de-France, a Escola de Chartres tem suas raízes no fim do
mundo antigo (século V) (ANTONIO MERINO, 2001, p. 127), seu ensino é conhecido
desde os primeiros anos do século X (PAUL, 2003, p. 246), mas sua fundação oficial é
reconhecidamente atribuída a São Fulberto (c. 960-1028) (SARANYANA, 2003, p. 173),
enviado por volta de 990 pelo papa Silvestre II (c. 950-1003) para ali lecionar. Fulberto,
nomeado bispo de Chartres em 1006 pelo rei Roberto II, o Piedoso, da França (972-1031),
também foi mestre de obras da reconstrução da catedral, que sofreu um grande incêndio
em 1020 (MARCHI, 1991, p. 34), e promoveu o estudo da cultura clássica através do
ensino das artes liberais (COSTA, 2006), além da Teologia, do Direito e da Medicina.
Fulberto teve como discípulo a Berengário de Tours (c. 1000-1088), que, fascinado pelos
conceitos (aristotélicos) de substância e acidente, valeu-se deles para negar a
transubstanciação na Eucaristia: para ele, Cristo só estaria intelectualmente presente em
ato, que, portanto, seria um signo de realidades supra-sensíveis (SARANYANA, op. cit.).
Suas teses, consideradas hoje uma expressão do deslumbre causado pela Dialética no
século XI, foram reiteradamente condenadas (Concílios de Vercelli [1050], Paris [1051],
Tours [1055], Roma [1059], Poitiers [1075], Saint-Maixeut [1076], Roma [1078] e
Bordéus [1080], quando finalmente se retratou e defendeu a transubstanciação, tornada
dogma em 1215, no IV Concílio Lateranense).
De qualquer modo, o ensino em Chartres continuou sendo incentivado sob a tutela de Ivo
(c. 1090-1115), conhecido jurista canônico (PAUL, op. cit.), prosseguiu com Godofredo II
de Lèves (1115-1149), e alcançou seu período de maior prestígio no século XII com
Bernardo e Teodorico (ou Thierry) de Chartres (†1124 e 1155 respectivamente),
Guilherme de Conches (c. 1090-1145), Gilberto de Poitiers (ou Porretano, 1070-1154) e
João de Salisbury (c. 1120-1180), este último, um autor independente, mas muito
influenciado pela Escola (SARANYANA, op. cit.).
A Escola cultivou o humanismo clássico, tanto científico quanto literário, o Trivium e o
Quadrivium (a maior parte de seus representantes se distinguiu pela elegância do latim), e,
2
particularmente, revalorizou a Gramática e a Lógica como instrumentos indispensáveis
para a constituição da Ciência (COSTA, 2009).
Em sua biblioteca, além da Bíblia, naturalmente, os chartrianos contavam com o Fédon de
Platão (c. 427-347 a.C.) e um fragmento do Timeu (traduzido e comentado por Calcídio
[séc. IV]), o Organon completo (conjunto de obras lógicas de Aristóteles compilado por
Andrônico de Rodes [séc. I a.C.]), as Cartas de Sêneca (4 a.C. - 65 d.C.), a Theorica, de
Constantino, o Africano (c. 1020-1087), a Arte medica, de Alexandre, a Isagoge Iohannitii
(de Hunayn ibn Ishaq [809-873, conhecido no Ocidente como Johannitius), os Aforismos
de Hipócrates (460-377 a.C.), o De urinis, de Teófilo, o De pulsibus, de Filaretes (estes
três últimos compunham o Articella, coleção de tratados médicos agrupados num só
volume e utilizados como manual de referência), o Corpus Hermeticum (séc. I-III),
atribuído a Hermes Trismegisto, e os Comentários de Galeno (c. 131-200) (FRAILE,
1960), além de obras de Agostinho (354-430), a Consolação da Filosofia de Boécio
(c.475-524), Macróbio (final do séc. IV) e Apuleio (c. 125-180).
Com essa notável biblioteca, os monges se dedicaram intensamente ao estudo. Graças à
obra Heptateuchon, de Teodorico de Chartres (uma enciclopédia sobre as artes liberais),
sabemos que o programa curricular estava assim constituído:
Trivium
1) Gramática: Ars Grammatica de Aélio Donato (séc. IV) e Institutiones
grammaticae de Prisciano (séc. VI);
2) Retórica: Cícero e o livro V da <uptiis Philologiae et Mercurii, de
Marciano Capela (séc. V);
3) Dialética: a tradução de Boécio das obras de Lógica de Porfírio de Tiro (c.
234-305) e Aristóteles;
Quadrivium
1) Aritmética: De arithmetica, de Boécio, e o livro VII de Marciano Capela;
2) Geometria: Elementa, de Euclides (360-295 a.C.) (uma versão latina feita
por Adelardo de Bath [c. 1080-1152] a partir de uma cópia árabe);
3) Música: De musica, de Boécio;
4) Astronomia: Poeticon astronomicon (atlas estelar atribuído a um tal Higino,
e que descreve quarenta e sete constelações de Ptolomeu), as Tábuas
Astronômicas de al-Khwarizmi (Abū ‘Abdallah Muhammad ibn Musa alKhwarizmi, c. 780-850), também traduzidas por Adelardo de Bath.
Além dessas obras citadas no Heptateuchon, também se sabe (através de outros
manuscritos) que em Chartres se estudava e se comentava em sala de aula o Timeu, de
Platão, o Comentário de Macróbio ao Sonho de Cipião, de Cícero (COSTA, 2010), a
Consolação da Filosofia, de Boécio (BOÉCIO, 1998), poetas clássicos (como Virgílio [7019 a.C.]) e os tratados de medicina citados acima que faziam parte de sua biblioteca
(REINHARDT, 2007, p. 16; PRICE, 1996, p. 314-316).
Todo esse programa de estudos está maravilhosa e plasticamente descrito nas
representações esculturais nos arcos do tímpano direito do Portal Real da Catedral de
Chartres (c. 1142-1150), um esquema ornamental e rigorosamente elaborado,
provavelmente concebido pelo próprio Teodorico (WILLIAMSON, 1998, p. 15).
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Figura 2
O tema do tímpano é a Encarnação e a Maternidade de Maria, que está acompanhada por
dois anjos com incensários (figura 2). Nas duas arquivoltas circundantes, a alegoria das
sete artes liberais e seus respectivos sábios (por exemplo, a Gramática e seu maior
representante, Donato, figuras 3 e 4).
A catedral de Chartres foi milagrosamente salva durante a Revolução Francesa por um
mestre pedreiro que, decidido a se opor à terrível decisão do Comitê Revolucionário de
derrubá-la, salvou-a com a alegação de que os escombros decorrentes da explosão
entupiriam todas as ruas ao redor e levaria anos para limpá-las. Graças a esse ilustre
pedreiro, o mundo agora pode contemplá-la (OZOUF, 1989, ANDRESS, 2007).
Kurt Flasch, apoiando em parte a tese de Richard W. Southern, afirmou que, ao invés de
falar de uma “Escola de Chartres”, é preferível defini-la como uma corrente cultural,
caracterizada por um conjunto bem determinado de teorias, fontes utilizadas e preferências
doutrinais (FLASCH, 2006, p. 226-228). Não entraremos nessa discussão. Seja como for,
como afirma Steven Marrone, embora não esteja mais em voga pensar Chartres como uma
localização física de uma escola, “o fato é que a visão de mundo platônica realmente
moldou a maioria das abordagens da natureza na Europa Ocidental do século XII”
(MARRONE, 2008, p. 45).
Assim, Escola ou Corrente, todos são unânimes em afirmar que pelo menos cinco foram as
suas principais características: 1) o interesse pela Matemática e pelas ciências da Natureza;
2) a combinação de teorias científicas e a poesia clássica; 3) o uso das artes liberais e da
mitologia antiga; 4) a busca de uma concepção racional de Deus e da Natureza e 5) a
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valorização do ser humano e do uso da razão (FLASCH, op. cit.). Passemos, pois, ao
tratado de Teodorico e sua definição aritmética de Deus.
Figuras 3 e 4
II. A Filosofia de Teodorico
Desde que Bernardo de Chartres propôs utilizar a Gramática como uma oportunidade para
filosofar (com temas como o debate sobre a significação do nome, do verbo e a natureza
das proposições), Etienne Gilson designou os filósofos formados em Chartres (ou
simpatizantes de sua forma de filosofia natural) como Quintilianos cristianizados que
absorveram a definição estóica que Sêneca fez das Idéias platônicas em sua Carta 58
(GILSON, 1995, p. 317). Para que possamos fazer uma explanação da divindade no
Tratado da Obra dos Seis Dias, é preciso que nos detenhamos por um momento em
Sêneca, um dos veículos de transmissão do pensamento de Platão aos chartrianos.
Em sua Carta 58, Sêneca queixa-se a Lucílio da pobreza vocabular de seu tempo (“ter
gosto requintado no meio da indigência é insuportável!”): na época dos gregos havia uma
quantidade muito maior de palavras para designar as coisas, e inclusive algumas delas
tinham mais de um significado, especialmente as proferidas pelos filósofos. Uma delas é o
conceito de “ser”. Sêneca afirma que um amigo seu dizia que o “ser” era usado por Platão
em seis sentidos diferentes! É quando, ao explicar um a um, chega ao eidos, em uma
definição que, por sua clareza e beleza, merece ser citada integralmente:
Atenta com cuidado o que seja o eidos, e, se a coisa te parece difícil de entender,
zanga-te com Platão e não comigo. De resto, qualquer pensamento abstrato tem
sempre a sua dificuldade. Utilizei há pouco o exemplo do pintor. Se este quisesse
representar Vergílio numa pintura, olharia para o próprio Vergílio. A “ideia” era o
rosto de Vergílio, o modelo do futuro quadro; a forma que dela o artista extrai e impõe
ao seu trabalho será o eidos. Não entendes qual é a diferença? A ideia é o modelo, o
eidos é a forma deduzida do modelo e imposta ao quadro; a ideia é aquilo que o artista
imita, o eidos, aquilo que ele faz.
Uma escultura tem uma determinada forma: é o seu eidos. O próprio modelo que o
artista, olhando-o, imprime à estátua, tem também uma determinada forma: é a sua
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ideia. Se preferes uma outra explanação, dir-te-ei que o eidos está na própria obra,
enquanto a ideia é exterior à obra, e não apenas exterior, mas ainda pré-existente à
obra, Carta 58, 20-21 (SÉNECA, 2007, p. 204).
Inspirado em Sêneca, Bernardo de Chartres cristianizou Platão, ensinou a criação da
matéria e identificou as Idéias ao pensamento divino. Seu irmão mais jovem, Teodorico,
parece ter acolhido favoravelmente as propostas filosóficas do irmão. Deixou Chartres em
1134, ensinou em Paris – uma antiga tradição pretende que Pedro Abelardo (1079-1142)
tenha sido seu aluno (GILSON, 1995, p. 327) – retornou a Chartres em 1141 e, com a
nomeação de Gilberto de Poitiers para o bispado de Paris, Teodorico foi designado
chanceler (originalmente, aquele designado para firmar documentos ou diplomas)
(FERRATER MORA, 2001, p. 2866).
Teodorico interessou-se pelos problemas cosmogônicos, e, no Tratado da Obra dos Seis
Dias, tentou conciliar o Gênesis com a Física e a Metafísica, particularmente com o
comentário de Calcídio ao Timeu de Platão (recheado pela obra De Genesi ad litteram, de
Agostinho, além de pinceladas de Virgílio, Hermes Trismegisto, Boécio, Ambrósio,
Anselmo [c. 1033-1109], Guilherme de Conches e Abelardo). Essa foi a sua proposta.
O texto, incompleto, divide-se em três partes: 1) As causas do mundo e a ordem dos
tempos (2-17); 2) a exposição do Gênesis (18-29), e 3) um breve tratado sobre Deus (3047), no qual Teodorico se vale das artes do Quadrivium para a sua exposição, como
veremos.
II.1. A Bíblia e Platão
Desde a Antiguidade, os comentadores tentaram conciliar a narração da criação do mundo
da Bíblia com as ciências naturais. Os conhecimentos científicos de Teodorico não eram
muito superiores aos de seus predecessores nessa matéria (tanto o próprio Platão, quanto
Ambrósio [340-397], Agostinho, Macróbio, Calcídio e Beda, o Venerável [c. 672-735])
(FLASCH, op. cit., p. 230). Não obstante, Teodorico desenvolveu sua explicação com base
no Gênesis e na existência (então considerada científica) dos quatro elementos (ar, fogo,
terra e água), o que foi certamente uma grande novidade filosófica. O fio condutor de sua
argumentação é claramente apresentado em seu breve Prefácio: “Eu vou explicar, a partir
do ponto de vista da Física, e de acordo com o sentido literal, a primeira parte do Gênesis,
que trata dos sete dias e da distinção dos seis trabalhos” (Tratado da Obra dos Seis Dias,
1), um explícito abandono da interpretação alegórica tradicional (RAMÓN GUERRERO,
2002, p. 148).
No princípio, Deus criou o céu e a terra (Gn 1, 1). A exposição de Moisés, um filósofo
divino, segundo Teodorico, é racional: ele mostrou as quatro causas da substância
(substantiae) do mundo e a sucessão do tempo (substância no sentido de existência, algo
que permanece, que subsiste). São elas: a causa eficiente (Deus), a formal (a Sabedoria
divina), a final (Sua bondade) e a material (os quatro elementos) (Tratado..., 2, 2).
Teodorico se vale de uma teoria filosófica da causalidade, de base platônica, para
apresentar os elementos de necessidade do mundo – e essa busca das causas deve ser feita,
diz, como Platão, para se alcançar a vida mais feliz que a nossa natureza o permita
(PLATÃO, Timeu, 69a). Ou seja: ao investigar a Deus, Teodorico nada mais faz do que
aplicar a sentença platônica de vida feliz!
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A necessidade de um autor do mundo buscar Deus se explica pelo fato de as coisas serem
mutáveis e caducas, isto é, tudo que existe é criado por algo, pois muda e perece, e a
renovação pressupõe uma constante criação, o que nos faz questionar o porquê da
mudança. Ademais, a criação do mundo foi inteligente, sábia, porque se percebe que tudo
foi disposto de maneira muito racional e de acordo com uma ordem formosíssima
(Tratado, 2, 3), o que nos faz pensar em uma inteligência criadora por trás de tudo. A
ordem harmônica do mundo era vista como a disposição finalista do todo, à maneira da
alma, definida por Platão como “uma espécie de harmonia de natureza divina”, obra de um
artista (Fedão, 86c). O mundo era belo, porque racional e harmônico.
Essa criação inteligente, derivada da reta razão – e compreendida pela nossa reta razão –
foi obra de um Criador que não necessita de nada, a não ser de Si mesmo, pois é o sumo
bem e auto-suficiente. Por isso, é conveniente que Ele tenha criado as coisas que criou por
Sua bondade e amor (benignitate et caritate) para que elas participem de Sua felicidade
mediante o seu amor (Tratado, 2, 3) (ver figura 1).
Portanto, o bem (o Criador), é amoroso e feliz. Teodorico baseia-se no Timeu:
Então, digamos por que razão o que formou o universo e tudo o que devém o formou.
Ele era bom; ora, no que é bom jamais poderá entrar inveja seja no que for (...) esse é
o princípio mais eficiente do devir e da ordem do mundo. Desejando a divindade que
tudo fosse bom e, tanto quanto possível, estreme de defeitos, tornou o conjunto das
coisas visíveis (...) e fê-lo passar da desordem para a ordem, por estar convencido de
que esta em tudo é superior àquela (PLATÃO, Timeu, 29e-30a).
Mas, dada a semelhança entre as duas passagens, é possível que Teodorico também tenha
feito uma alusão a uma das cartas de Sêneca, pois o filósofo estóico afirma, baseado em
Platão, que:
O universo deriva destas causas. Há um agente – a divindade; uma matéria-prima – a
matéria propriamente dita; uma forma, que é a disposição ordenada do mundo tal qual
o contemplamos; um modelo, que é a grandiosidade e beleza do universo tal como a
divindade a concebeu e realizou; uma finalidade – o propósito da criação.
Se queres saber qual é o propósito da divindade, dir-te-ei: a bondade, pois é com
inteira razão que Platão afirma: “O motivo por que a divindade criou o mundo foi a
sua bondade; dada a sua bondade, tudo o que é bom é digno do seu apreço; por isso,
criou o mundo tão bom quanto lhe foi possível”, Carta 65, 9 (SÉNECA, 2007, p. 231).
Teodorico defende o mesmo: toda ordenação se aplica ao que não está ordenado. Por isso,
foi conveniente que a ordenação do universo feita pela Sabedoria tenha sido precedida por
certa desordem. Portanto, caso alguém examine minuciosamente a fabricação do mundo,
reconhecerá que a causa eficiente é Deus, a formal a sabedoria de Deus, a final a Sua
própria benignidade, e a material os quatro elementos que o Criador criou do nada no
princípio (Tratado, 2, 4-5).
II.3. O Uno e a Verdade
Assim, após expor toda a criação com uma explicação cinética (do constante movimento)
dos elementos – e baseado em Platão, e possivelmente em Sêneca – Teodorico decide dizer
algo sobre a divindade (29, 2). Como quatro são as causas da substância do mundo (e
quatro os elementos), também quatro são os tipos de razões que conduzem o homem ao
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conhecimento do Criador: as provas aritméticas, musicais, geométricas e astronômicas
(isto é, as quatro artes do Quadrivium).
A unidade precede a alteridade, pois o “um” precede o “dois”, que é princípio da alteridade
(quando se diz “o outro”, sempre se diz a partir do “um”). Conseqüentemente, a unidade
precede toda alteridade e mutabilidade, pois tudo o que muda e se move, o faz de “um”
para “dois”, e a unidade precede a tudo isso (Tratado, 30, 2).
Todas as criaturas existentes estão submetidas a essa mutabilidade e alteridade. E como
qualquer coisa que existe ou é eterna, ou é criatura – e a unidade precede a toda criatura,
como foi visto – é necessário que a unidade seja eterna (“a gênese do universo é o
resultado da ação combinada da necessidade e da inteligência”, Timeu 48a). É por esse
motivo que Teodorico afirma que as coisas (mutáveis e alteráveis) alcançam o seu ser
graças à divindade: a divindade é a forma do ser (At diuinitas singulis rebus forma essendi
est, 31, 1), pois tudo o que é, o é porque é uno.
É aqui que devemos retornar à carta de Sêneca e sua explicação do eidos platônico, já que
Teodorico se vale do conceito de forma platônico (o eidos vertido para o latim) para definir
o ser. Essa forma – figura interna, latente e invisível, apreensível pela mente – é, como
explicou Sêneca, a forma que o artista extrai de seu modelo ao pintar seu quadro. Nesse
caso, o “encaixe” da filosofia grega na cristã é perfeito: o artista (o responsável pela idéia,
o arquiteto do universo de Platão [Timeu, 28c]) é a divindade, Deus, que, ao idealizar em
sua mente o mundo, deu forma a ele.
Para Teodorico, a alma do mundo do Timeu é o mesmo que o Espírito Santo (SYLLA,
2008, p. 212). Deus é a causa exemplar de todas as coisas (FRAILE, op. cit., p. 450), pois
todas dependem do Criador para a sua subsistência (substância, substantiae):
A presença da divindade em cada criatura consiste o ser total e único, pois inclusive a
matéria tem seu existir graças à presença da divindade, e não a divindade a partir da
matéria ou na matéria (...) e enquanto a coisa participa da unidade, ela permanece. Tão
logo se divide, incorre em sua destruição. Assim, a unidade é a conservação e forma
do ser, e a divisão é a causa de sua destruição (Tratado, 32, 2 e 34, 1-2).
Nessa passagem, Teodorico se vale do capítulo XIII do Monológio de Santo Anselmo, que
afirma que todas as coisas criadas existem pela ação conservadora da essência suprema
(SANTO ANSELMO DE CANTUÁRIA, 1973, p. 30).
A unidade, suma divindade, supera tudo pela excelência de Sua natureza, pois do número
procede o peso, a medida, o lugar, a figura, o tempo e o movimento, e tudo o que existe,
existe segundo a quantidade, qualidade ou relação, já que tudo procede do número. Por
isso, a unidade, que procede toda a alteridade, é eterna, “permanência interminável”
(interminabilis permanentia), fonte e origem de todas as coisas (Tratado, 35, 1-2).
Para explicar a onipotência divina, Teodorico também se vale da Aritmética, e de uma
forma muito simples e engenhosa: como o número é infinito e a unidade o origina, é
necessário que a unidade não tenha limites em sua potência. A unidade é onipotente na
criação dos números, e como a criação dos números é a criação das coisas, a unidade é
onipotente na criação das coisas. Portanto, como a unidade é onipotente, ela é a divindade
necessariamente (Tratado, 36, 1-2).
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Por fim, Teodorico passa à exposição da geração da igualdade a partir da unidade, e
continua a se valer da Aritmética, com passagens analógicas à Geometria. De acordo com a
Aritmética, a geração dos números é múltipla e diversa,
...pois eles geram outros a partir de si mesmos e de sua própria substância, como o
“dois” que, multiplicado por si mesmo gera o “quatro”; o “três” o “nove”, etc. Mas se
multiplicados por números diferentes, geram outros, como o “dois” multiplicado por
“três” gera o “seis”, etc.
A primeira geração proporciona tetrágonos ou cubos, círculos ou esferas, que
garantem a igualdade de suas dimensões. Mas a segunda geração faz figuras com um
lado mais longo ou oblongo, ou figuras caracterizadas pela desigualdade de seus lados
(Tratado, 37, 1-2).
Conseqüentemente, há dois modos de geração das coisas: uma da mesma natureza, outra
de naturezas distintas (na primeira série, o “dois” gera o duplo, o “três” o triplo, e na
segunda, não): a unidade multiplicada por si mesma, portanto, só gera a igualdade!
Essa igualdade da unidade foi chamada pelos filósofos antigos de “mente da divindade”,
“providência”, ou “sabedoria do Criador”. Essa é a verdade, a eterna medida das coisas
(Tratado, 47, 1). Assim, a unidade gera a verdade, pois, já que a unidade primeira é Deus,
sua igualdade perfeita também é Deus. Para Teodorico, os filósofos pagãos pressentiram a
verdade que os cristãos conheceram (GILSON, op. cit., 332).
Conclusão
A teologia matemática de Teodorico de Chartres, para utilizarmos uma definição de Kurt
Flasch (FLASCH, op. cit., p. 234) foi uma tentativa de conciliar a verdade da Revelação
cristã com a verdade científica de seu tempo (isto é, a das sete artes liberais). Para ele, não
havia incompatibilidade entre fé e razão (ciência).
Chartres e Teodorico (que era, nas palavras de João de Salisbury, um “estudiosíssimo
investigador das artes”, magister Theodoricus artium studiosissimus inuestigator,
Metalogicum, I, 5) contribuíram enormemente para o desenvolvimento do estudo do
universo, das ciências naturais (na Idade Média, chamada de filosofia natural), ramo que se
desenvolveu enormemente. Apesar de muitos olharem para trás com desdém. Muito
acertadamente, Albert Zimmermann afirmou que, ao tratar de cosmogonias passadas, o
historiador da filosofia se vê diante de um dilema, pois normalmente elas se nos
apresentam obsoletas. Mas algo muito pior normalmente acontece conosco: aqueles que
criticam (regularmente) o obscurantismo e a falta de cientificismo da Idade Média não se
dão conta de que a ciência moderna afirma que o cosmos tem zonas por princípio (e
sempre) inacessíveis para nós (REINHARDT, 2002, p. 569). E mais, como diremos a
seguir.
Essa constatação do reiterado anacronismo de nossos pares e seu preconceito com tudo o
que é relacionado à Idade Média lembra-me algo que aconteceu em um recente encontro
acadêmico na Ufes (em 2009), pequena anedota ilustrativa com a qual despedir-me-ei
neste trabalho sobre Teodorico de Chartres.
Após apresentar o conceito de ciência na Idade Média no Dia de Darwin (Abertura do
calendário acadêmico do CCHN da Ufes) (COSTA, 2009) e ouvir dois colegas, um físico,
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outro biólogo, apresentarem seus respectivos trabalhos (sobre as modernas teorias
explicativas do universo e a importância de Darwin para a evolução do homem), o biólogo,
coordenador da mesa da qual eu fazia parte, abriu o espaço para perguntas da platéia.
Como ninguém se atrevia e o silêncio imperava, eu questionei o fato de o darwinismo ter
sido apresentado como uma verdade científica. O biólogo respondeu que o darwinismo
deveria ser defendido exatamente por ser uma ciência. Então, perguntei-lhe o que era
ciência. “Ciência é um método”, ele respondeu. Insisti: “Que método?”. Ele disse: “Bem, o
melhor”!
Por sua vez, em sua apresentação, o físico criticara (implicitamente) a Igreja Medieval por
ter defendido o geocentrismo. Ademais, ele dissera que o universo está em expansão. Eu
perguntei: “Expansão para onde?” Ele respondeu: “O próprio movimento de expansão cria
o onde”. Eu então perguntei se a ciência já sabia quais eram os limites do universo. Ele
sorriu e respondeu que isso ainda não era conhecido, quando então retruquei: “Ora, se não
sabemos quais são os limites do universo, não sabemos qual é o centro. Como então
podemos afirmar que a Terra (ou o Sol) não estão no centro?”. A platéia deu uma
gargalhada, o colega ficou surpreso e disse: “Mas nós não podemos voltar aos sistemas
explicativos anteriores”. Eu perguntei: “Por que não, já que simplesmente não sabemos?”.
Ele então disse que atualmente a questão do centro do universo não era mais colocada, e
que o ponto de referência era o observador! Ou seja, mais do que a Terra no centro, hoje o
observador é o centro...
A ciência moderna não deve olhar para o seu passado longínquo com desdém. Aprendemos
que o nosso conhecimento está constantemente a variar, à medida que progride a nossa
investigação da realidade que nos é inacessível. Detenhamo-nos um pouco mais
respeitosamente no nosso passado e nas louváveis tentativas filosófico-cosmogônicas dos
estudiosos de explicar o inefável. Isso se aplica em especial à Idade Média e a Teodorico
de Chartres, naturalmente, pois, como ele mesmo afirmou, a verdade é a medida eterna
das coisas.
Este trabalho é dedicado ao Grupo IX de Pesquisas Medievais da Ufes
(Ana Gláucia Oliveira Motta, Braulino Antônio dos Reis Neto, Christiane
Tomazini, Dionne Miranda Azevedo, Fabricia Giuberti, Felipe Dias de
Souza, Josué Pattuzi, Luciano Duarte e Raphael Teixeira) que, durante as
quintas-feiras de 2009 compartilhou comigo a aventura de estudar a
Metafísica Medieval.
Agradeço sobremaneira a leitura crítica e as sugestões do amigo
Armando Alexandre dos Santos.
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