a sarsa ardente - Anna Maria Maiolino

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A SARÇA ARDENTE
Qual o mistério que envolve a obra de Anna Maria Maiolino? Acordei no meio da noite
com esta pergunta na cabeça. Do território do sono, onde os mistérios se tornam aparentes
na forma de sonhos, emergiu essa pergunta me incomodando. O mistério, assim como o
sonho, é a franja da realidade que não nos damos conta, mas que é tão real e importante
quanto ela. É o outro que nos guia, sem muitas vezes sabermos que estamos sendo guiados
por ele. É a camada mais profunda da realidade porque nele é gestado tudo aquilo que
sobra à realidade, enquanto estamos ocupados em sermos reais, e que um dia será
configurado como realidade. O mistério, assim como o inconsciente, que é uma força
insidiosa e vazia que nos conduz a sermos o que somos, é uma estrutura insidiosa e vazia
que faz com que a realidade seja o que é.
Tocar no que “é” é o que Anna Maria Maiolino deseja. Mas o que significa isso? Significa
dizer que a realidade é transparente e o mistério aparente. Significa dizer que o que Anna
Maria busca é despertar, através de sua obra, o mistério como aparência. Talvez a imagem
da primeira aparição de Deus a Moisés possa metaforicamente exemplificar o que estou
buscando expressar. Deus se apresenta na imagem de uma sarça ardente. Um fogo que não
consome o arbusto que está queimando e que quando perguntado por Moisés como deve
apresentá-lo aos outros homens, responde: diga que sou o que é. Em outras palavras, o que
é, é o mistério da essência. Não é imprescindível que a potência se realize – que se
consuma –, mas é fundamental que a potência se revele como essência imanente. A
aparência com que Deus se apresenta não é a do fogo que queima e destroi, mas a da força
capaz de queimar e destruir: sua potência. No episódio da sarça ardente, Deus torna
aparente a sua potência como essência sem intermediações: simplesmente É. Da mesma
maneira, o que Anna Maria Maiolino busca explicitar através de sua obra, a partir dos anos
90 do século XX, são os movimentos internos de como a forma se realiza na arte: sua
potência.
Explicitar na aparência – na forma final como a obra se apresenta aos nossos olhos –, a
essência do processo de formação da imagem é o que distingue esse momento da sua
trajetória plástica. Se observarmos a série de trabalhos Indícios e revelarmos o fato de
terem sido desenhados / bordados com os olhos fechados, perceberemos que o que está
sendo posto em questão é a possibilidade da criação de imagens que não representem outra
coisa senão o seu próprio processo de formação. É como se as imagens se deixassem guiar
por mãos videntes que conduzissem suas inserções no mundo da visibilidade. Essas
imagens não são resultado de um processo retiniano de uma mão adestrada pelo olhar,
tampouco são resultado de uma operação estritamente mental, mas são resultado da
tentativa de criar um processo de geração de imagens que obedeça a uma estrutura orgânica
em que os movimentos do corpo imprimem imediatamente sobre a matéria a sua ação. A
qualidade dessa ação imprimida é resultado de um conjunto de pulsões em que o artista é o
epicentro de linhas de forças que vão desde a sua história pessoal, passando pela história
coletiva e envolvendo a percepção da relação forma, matéria e conteúdo como uma unidade
plástica indissociável.
Querer aproximar-se do núcleo onde a imagem é formada para explicitá-la no próprio
processo criativo é a um só tempo a essência e a potência da obra de Anna Maria Maiolino.
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Poderíamos criar um paralelo entre esse processo e o da escrita automática no sentido de
que ambos buscam reduzir a distância entre o impulso criativo e a sua realização. Isto
porque percebem o processo criativo como uma unidade que não pode dispersar-se nas
intermediações. Em outras palavras, requer uma atenção concentrada e constante - daí a
noção de imediatismo – porque não deve haver desvios que obstruam os canais da
inspiração. Inspiração aqui entendida como o impulso da pulsão em querer realizar-se de
forma que não haja nem falta nem sobras, onde a totalidade do momento criativo (com
todas as suas implicações) é capturada em um único movimento direto, cujo objetivo é reter
o momento expressivo.
Para a maioria dos artistas existe uma distância entre a ideia do trabalho e a sua realização;
como se fossem dois momentos distintos. Para Anna Maria Maiolino, ao contrário, é um
único movimento que envolve além da forma e do conteúdo, a matéria e a ação. Com essa
estratégia suas imagens adquirem fluência e espontaneidade, porque não são nem efeitos ou
consequências, mas processos de geração de imagem. Ela explicita a potência expressiva
como uma energia capaz de criar um sistema de nervuras sensíveis que, partindo do desejoação da artista, atinge a realidade material de maneira a despertar no indeterminado da
matéria sua forma, que passa a ser o conteúdo da obra. É um sistema circular e fechado que
precisa estar muito bem azeitado para ser pontual e preciso, porque qualquer falha ou
deslize, o trabalho perde a integridade que a fluência de sua imagem exige.
Nas séries Ações Matéricas, Codificações Matéricas e Marcas da Gota, por exemplo,
podemos observar que a simplicidade e a espontaneidade desses desenhos (trabalhados à
maneira da pintura) residem no fato de que são engendrados por um complexo balé de
movimentos e ações. Nas Ações e nas Codificações Matéricas a tinta derramada escorre
pela superfície do papel ou da tela atraída pela gravidade e seu movimento é controlado
pela ação da artista que direciona a sua descida. Nas Marcas da Gota, o acaso engendra
uma multiplicidade de formas a partir de um mesmo movimento de lançar uma gota de tinta
sobre a superfície do papel. O desenho final que parece e é simples, é resultado de um
conjunto de ações igualmente simples, mas que necessitam para a sua realização de um
envolvimento e de uma percepção complexa do conjunto das forças envolvidas. A artista
não pode estar fora da cena, precisa estar imersa nesse campo de forças. Necessita estar
direcionada e concentrada em si mesma, para poder exercitar suas escolhas – suas decisões
plásticas –, ao mesmo tempo em que precisa desenvolver um mecanismo de esquecimento
de si para deixar-se envolver pelas forças da matéria e perceber os movimentos que daí
provém, como o acaso e a gravidade. Não há lugar para a dúvida; só há lugar para a
precisão. É um jogo extremamente sutil e delicado que requer muita atenção para que não
se perca o foco, que é fazer emergir uma imagem do “acaso”, no momento de sua
formação. E é este conceito, que permeia a obra de Anna Maria Maiolino a partir dos anos
90, que permite a criação de imagens simples e diretas, que conservam a espontaneidade e
o frescor do que é novo.
Ao introduzir na sua obra o acaso como elemento constituinte, a artista está nos indicando
que o acaso não é aleatório como supomos, mas que, ao contrário, ele é determinado e
determinante. Ao lidar com ele, observamos que o acaso não suporta zonas obscuras ou
escondidas. Para que ele possa acontecer necessita da coincidência e ela só se manifesta
quando todas as forças que compõem a realidade estão em ação; quando tudo está evidente
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na superfície da realidade. Por isso costuma-se dizer que a coincidência não existe. De fato,
para que o acaso possa se manifestar, ele necessita que todos os elementos da realidade
estejam coincidentes. Isto significa dizer que todas as linhas de força que compõem a
realidade não podem estar camufladas. O acaso e a estrutura da coincidência nos oferecem
uma realidade transparente, onde e quando o mistério se faz visível. No acaso e na
coincidência a metafísica pulsa na imanência.
Anna Maria Maiolino é consciente de que as artes plásticas são a arte da imanência. Em
outras palavras, ao lidar com os diferentes materiais que utiliza na sua obra, como tinta,
linha, papel, barro, gesso ou cimento, entre outros, ela trabalha na fronteira entre o limite da
matéria e o limite do sentido que esta matéria contém como metáfora. Isto significa dizer
que o sentido é tão imanente quanto a matéria. Se pegarmos, por exemplo, a série Terra
Modelada, feita de argila, material a partir do qual todo esse processo que estamos
buscando descrever na sua obra iniciou-se, veremos que ela opta trabalhar com um dos
primeiros materiais utilizados pelos homens no início de sua produção material. Essa
escolha não é gratuita ou aleatória: significa que o barro é um elemento primordial e
fundante da aventura humana e que atravessa a massa do tempo histórico, que a sua
plasticidade permite que ele molde tanto os utensílios que nossos antepassados utilizavam
para cozinhar, quanto permite levantar as paredes das casas, ou ainda, que nele é possível
reter as marcas dos gestos de quem o molda e que o gesto é um elemento fundamental das
artes plásticas. Enfim, poderíamos revelar uma série de camadas de sentidos que se
“escondem” por detrás desta escolha, mas o importante é que todas estas camadas são
explicitadas por ela através do gesto no momento em que está trabalhando a argila. O
material transforma-se em pura metáfora: suas características intrínsecas (seus limites
internos), os sentidos a ele atribuído (seus limites externos), as técnicas de sua manipulação
(o gesto da artista) ou o conceito (o todo e a parte; a repetição e a diferença; o singular e o
plural).
Para Anna Maria Maiolino o ato em si do fazer implica totalidade porque o que de fato está
exercitando são experiências de sua natureza e da natureza dos materiais. A artista não se
coloca dividida entre ela e a argila. Ela compreende seu corpo também como matéria e o
abarca nesse movimento material mais amplo, como um vaso comunicante entre a matéria e
o desejo de se permanecer material, que o homem ambiciona através da arte. A precisão,
então, é expressão dessa potência. E a potência é saber conduzir essa precisão em direção à
totalidade. Da mesma forma, ocorre com o fragmento, que é pensado como um contínuo,
como parte de um todo em processo. Por isso, apesar de extremamente elegantes, suas
peças não são estetizantes. Possuem potência própria. Podem ser deslocadas e rearranjadas
infinita e indistintamente, e, a cada nova posição, não perdem suas singularidades. São um,
nenhum, cem mil, como gosta de dizer Anna, ao citar Pirandello. Têm forças sozinhas, têm
força em conjunto, têm força como expressão do vazio. A potência da obra de Anna Maria
Maiolino está no fato de querer dar forma ao vazio que existe entre as coisas, em querer dar
materialidade ao outro da matéria, ao buscar surpreende-la como manifestação imanente da
metafísica.
Da mesma maneira que o vazio da mão é preenchido pela argila, a ideia do vazio como o
outro necessário para a percepção das forças do mundo pode ser surpreendida quando
trabalha com o cimento. Esse material permite que ela molde o negativo da forma e o
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apresente como positivo, como podemos perceber nos trabalhos das séries A Sombra do
Outro, Outros, Um & Outro ou É o que Falta. Os próprios nomes já aludem à operação
mental que a artista se propõe: dar forma ao que é outro. Mais uma vez Anna Maria busca
trazer à superfície da visibilidade uma camada profunda da realidade que ignoramos no
convívio cotidiano: o vazio. Essas séries de obras procuram criar a presença daquilo que
não está presente. É como se buscasse dar forma à ausência. Essa operação só é possível
porque Maiolino tem tamanho domínio sobre o significado de um trabalho visual que
consegue sempre chegar a um ponto tal de irredutibilidade da ação plástica, que acaba por
revelar sempre o mais simples. Neste caso, usar uma forma, como fôrma do que não está
presente. Desta maneira, cria a ideia de uma cadeia infinita de “outros” em que um elo
positivo associa-se a um elo negativo, ou melhor, um elo de presença associa-se a um elo
de não presença que, através da operação plástica, é presentificado. Dessa maneira gera um
paradoxo que é a impossibilidade de se capturar esse momento do outro, já que, cada vez
que há captura, a captura transforma-se em presença positiva também. Anna Maria nos
indica que criar uma estrutura de captura do vazio é impossível, mas que, apesar disso ou
graças a isso, o vazio constitui-se como uma rede subterrânea necessária e sempre presente
que acolhe as formas positivas das coisas do mundo e que tem a função de uma mão secreta
a conduzir o sentido espesso da realidade.
A habilidade de Anna Maria Maiolino é colocar-se na posição de espreita em que faz
emergir a consciência das forças do vazio. Persegue esse momento de várias maneiras em
muitos momentos de sua obra. Os desenhos Vestígios são instaurações requintadas desse
pensamento. Como ela própria diz, para que possam ser realizados requerem um “olhar
distante” ou “trabalho com a memória de um olhar furtivo dado ao trabalho”. Isso significa
dizer que ela necessita se distanciar da imagem, como fazem todos os pintores quando
pintam, que recuperaram a profundidade do olhar através de um ir e vir em direção à tela.
Só que sua atitude é radical. Ela se concentra nessa atitude como maneira de criar uma
situação criativa que lida com os limites das forças que são utilizadas para que a imagem
possa criar sua aparição. Em outras palavras, ela instaura um campo de irredutibilidade
inerente ao próprio exercício do desenho como a distância, o desvio e o olhar furtivo. A
imagem, então, é construída, ou melhor, instaurada a partir dessas limitações. Elas surgem
para os nossos olhos de forma espontânea como se fossem desencadeamentos naturais de si
mesmas.
A espontaneidade que podemos surpreender na obra de Anna Maria Maiolino é um
desdobramento natural da sabedoria da simplicidade que não recusa a complexidade do
mundo. Insisto nesse ponto porque acredito que Maiolino tem uma contribuição única para
história das artes plásticas. Ao concentrar sua obra no que poderíamos chamar de uma
“gestualidade” ela adensa sua poética porque o gesto passa a ter uma função metafísica. Ou
seja, dá corporeidade material e visibilidade ao momento do entre, onde a realidade se dá e
onde a realidade nos escapa; o momento quando a imagem pode se formar ou pode
desaparecer. O sentido de precisão da forma que a sua obra possui e que nos impacta,
emerge do desejo da sua consciência de criar presença plástica para esse momento que não
é um momento de desvelamento metafísico, mas de captura de uma metafísica revelada na
superfície da matéria e desencadeada pela ação da artista sobre os limites dos materiais com
que trabalha. A poética de sua obra está na apreensão dessa imanência metafísica da
matéria e dos materiais como forma de evidenciar a arte como campo irredutivelmente
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metafórico. Ao trabalhar com esses dois territórios irredutíveis, o da matéria e o da
metáfora, Anna Maria inscreve sua obra numa tensão positiva em que uma verdadeira
totalidade se configura na medida em que a matéria passa a pulsar como metáfora e a
metáfora adensa-se com o contato da matéria.
Seus trabalhos mais recentes, os Hilomorfos, palavra que criou a partir de hilemorfismo –
doutrina filosófica baseada no conceito aristotélico de que forma e matéria são dois
princípios indissociáveis –, confirmam radicalizando a ideia de que o acesso à metafísica se
dá na imanência da matéria. Através dos Hilomorfos, Anna Maria Maiolino, propõe fazer
emergir a forma à superfície da visibilidade como se ela fosse um dado tão “concreto”
quanto a matéria. Isto é, a forma não é externa à matéria nem pré-existe à ação do artista.
Para Anna Maria, forma e matéria não se apresentam nem dicotômicas, nem em par, mas
como manifestação única e coesa, cabendo a artista interferir o mínimo possível nesse
processo para que o momento da presentificação da obra seja igual ao momento em que a
substância forma / matéria possa ser percebida como se sempre estivesse ali estado. Dessa
maneira, então, o conceito que guia o processo criativo de Anna Maria Maiolino é de que a
obra de arte é o instrumento capaz de criar as condições de transparência do real ao
relacionar-se diretamente com o mistério do mundo.
O mistério (a metafísica) deixa de ser um dado encoberto pela realidade material das coisas
e passa a manifestar-se de forma transparente, graças à realidade material: assim como o
fogo que não consome a sarça. O sentido brilha naquilo que é. E o que é, é sentido...
Marcio Doctors
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