Direitos humanos e globalização

Anuncio
DIREITOS HUMANOS E GLOBALIZAÇÃO
FUNDAMENTOS E POSSIBILIDADES DESDE A TEORIA CRÍTICA
Anuário Ibero-americano de Direitos Humanos (2003/2004)
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Chanceler:
Dom Dadeus Grings
Reitor:
Joaquim Clotet
Vice-Reitor:
Evilázio Teixeira
Conselho Editorial:
Antônio Carlos Hohlfeldt
Elaine Turk Faria
Gilberto Keller de Andrade
Helenita Rosa Franco
Jaderson Costa da Costa
Jane Rita Caetano da Silveira
Jerônimo Carlos Santos Braga
Jorge Campos da Costa
Jorge Luis Nicolas Audy (Presidente)
José Antônio Poli de Figueiredo
Jussara Maria Rosa Mendes
Lauro Kopper Filho
Maria Eunice Moreira
Maria Lúcia Tiellet Nunes
Marília Costa Morosini
Ney Laert Vilar Calazans
René Ernaini Gertz
Ricardo Timm de Souza
Ruth Maria Chittó Gauer
EDIPUCRS:
Jerônimo Carlos Santos Braga – Diretor
Jorge Campos da Costa – Editor-chefe
David Sánchez Rúbio
Joaquín Herrera Flores
Salo de Carvalho
(Organizadores)
DIREITOS HUMANOS E GLOBALIZAÇÃO
FUNDAMENTOS E POSSIBILIDADES DESDE A TEORIA CRÍTICA
Anuário Ibero-americano de Direitos Humanos (2003/2004)
2ª edição em Homenagem a Joaquín Herrera Flores (in memoriam)
Porto Alegre
2010
© EDIPUCRS, 2010
1ª edição: 2004 (Lumen Juris)
Capa: Deborah Cattani
Preparação de originais: Rafael Saraiva
Revisão: dos Autores
Diagramação: Deborah Cattani e Gabriela Viale Pereira
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
D598 Direitos humanos e globalização [recurso eletrônico] :
fundamentos e possibilidades desde a teoria crítica / org.
David Sánchez Rúbio, Joaquín Herrera Flores, Salo de
Carvalho. – 2. ed. – Dados eletrônicos. – Porto Alegre :
EDIPUCRS, 2010.
578 p.
Modo de Acesso: World Wide Web:
<http://www.pucrs.br/orgaos/edipucrs/>
A obra corresponde ao Anuário Ibero-Americano de
Direitos Humanos 2003-2004).
Homenagem a Joaquín Herrera Flores (in memoriam).
ISBN 978-85-7430-946-0
1. Direitos Humanos. 2. Direitos Humanos – Anuários.
3. Globalização. I. Sánchez Rúbio, David. II. Herrera Flores,
Joaquín. III. Carvalho, Salo de.
CDD 341.27
Ficha Catalográfica elaborada pelo
Setor de Tratamento da Informação da BC-PUCRS
Av. Ipiranga, 6681 - Prédio 33
Caixa Postal 1429
90619-900 Porto Alegre, RS - BRASIL
Fone/Fax: (51) 3320-3711
E-mail: [email protected]
http://www.edipucrs.com.br
AUTORES
Antonio Carlos Wolkmer – Professor Titular de História das Instituições Jurídicas
dos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito da UFSC. Doutor em
Direito e membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (RJ).
Norman José Solórzano Alfaro – Doutor em Derechos Humanos y Desarrollo
(UPO/ESP) e professor na Universidad de Costa Rica e na Universidad Nacional,
também na Costa Rica.
Helio Gallardo – Professor de Filosofia Social e Política na Universidad de Costa
Rica.
Joaquín Herrera Flores – Professor de Filosofia do Direito e Teoria da Cultura e
coordenador do Programa de Doutorado em Derechos Humanos y Desarrollo da
Universidad Pablo de Olavide/ESP. Presidente da Fundación Iberoamericana de
Derechos Humanos (FIDH).
Agostinho Ramalho Marques Neto – Psicanalista. Professor universitário, nas
áreas de Filosofia do Direito e Filosofia Política. Vice-Diretor Geral da Faculdade
São Luís.
José Luis Bolzan de Morais – Procurador do Estado do Rio Grande do Sul;
Mestre e Doutor em Direito do Estado; Professor e Coordenador Adjunto do
Programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS/RS e Professor da
UNISC/RS.
José María Seco Martínez – Professor de Filosofía del Derecho, na Universidad
Pablo de Olavide.
Alejandro Medici – Professor de Direito Político na Universidad Nacional de La
Plata. Doutor em Derechos Humanos y Desarrollo (UPO/ESP). Mestre em Teorías
Críticas del Derecho y la Democracia (UPO/ESP).
David Sánchez Rubio – Professor de Filosofia do Direito na Universidad de
Sevilla/ESP. Codiretor do Programa de Doutorado em Derechos Humanos y
Desarrollo da UPO/ESP.
Asier Martínez de Bringas – Doutor em Direito. Pesquisador no Instituto de
Direitos Humanos da Universidad de Deusto/ESP.
Ielbo Marcus Lobo de Souza – PhD na University of London. Professor de
Direito Internacional na UNISINOS.
Luís Roberto Barroso – Professor Titular de Direito Constitucional da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestre em Direito pela Yale University.
Lenio Luiz Streck – Procurador de Justiça-RS; Pós-Doutor em Direito
Constitucional e Hermenêutica (Universidade de Lisboa); Doutor em Direito do
Estado (UFSC); Coordenador Adjunto do Programa de Pós-Graduação em Direito
(Mestrado e Doutorado) da Unisinos/RS.
Luciano Oliveira – Doutor em Sociologia pela Escola de Altos Estudos em
Ciências Sociais (Paris); Professor do Mestrado em Ciência Política e da PósGraduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco (Brasil).
Luis Prieto Sanchís – Professor de Filosofoa do Direito na Universidad de
Castilla-La Mancha.
Antonio Manuel Peña Freire – Professor de Filosofia do Direito na Universidad
de Granada.
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho – Professor de Direito Processual Penal
na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Especialista em
Filosofia do Direito (PUCPR), Mestre (UFPR), Doutor (Università degli Studi di
Roma “La Sapienza”). Coordenador eleito do Programa de Pós-Graduação em
Direito da UFPR.
Rodrigo Stumpf González – Professor da UNISINOS e UNILASALLE. Doutor em
Ciência Política pela UFRGS.
Gilberto Bercovici – Professor Doutor da Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo.
Luís Fernando Massonetto – Doutorando em Direito Econômico pela Faculdade
de Direito da Universidade de São Paulo.
Jesús Antonio de la Torre Rangel – Advogado. Mestre em Direito pela
Universidad Iberoamericana. Professor/pesquisador do Departamento de Direito
da Universidad Autónoma de Aguascaliente. Professor convidado na Universidad
Internacional de Andalucía/ESP.
Vera Regina Pereira de Andrade – Doutora em Direito pelo Curso de PósGraduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. Professora nos
cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado em Direito da Universidade Federal
de Santa Catarina.
Salo de Carvalho – Advogado. Mestre (UFSC) e Doutor (UFPR) em Direito.
Professor do Programa de Pós-Graduação da PUCRS.
SUMÁRIO
Homenagem a Joaquín Herrera Flores (In Memoriam) ..................................... 9
I. TEORIA CRÍTICA DOS DIREITOS HUMANOS E GLOBALIZAÇÃO
Novos Pressupostos para a Temática dos Direitos Humanos ........................13
Antonio Carlos Wolkmer
Derecho Moderno e Inversión Ideológica: Una mirada desde los Derechos
Humanos ..............................................................................................................30
Norman José Solórzano Alfaro
Derechos Discriminados y Olvidados ...............................................................55
Helio Gallardo
Los Derechos Humanos en el Contexto de la Globalización: Tres Precisiones
Conceptuales .......................................................................................................72
Joaquín Herrera Flores
Neoliberalismo: O Declínio do Direito .............................................................110
Agostinho Ramalho Marques Neto
Direitos Humanos, Estado e Globalização ......................................................125
José Luis Bolzan de Morais
Globalización: El Nirvana del Viejo Orden Burgués .......................................150
José María Seco Martínez
La Globalización como Trama Jerárquica: ¿“Gobernancia” sin Gobierno o
Hegemonía? El Nuevo Contexto de los Derechos Humanos ........................168
Alejandro Medici
II. DIREITOS HUMANOS E INTERVENÇÕES HUMANITÁRIAS
Reflexiones E (Im)Precisiones en Torno a la Intervención Humanitaria y los
Derechos Humanos ...........................................................................................209
David Sánchez Rubio
Los Derechos Humanos como Núcleo Fundante de la Acción
Humanitaria........................................................................................................257
Asier Martínez de Bringas
A Intervenção Armada por Razões Humanitárias e a Questão de Kosovo:
Lições e Paradigmas .........................................................................................280
Ielbo Marcus Lobo de Souza
III. DIREITOS HUMANOS, INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO E
GARANTISMO
O Começo da História: A Nova Interpretação Constitucional e o Papel dos
Princípios no Direito Brasileiro ........................................................................298
Luís Roberto Barroso
A Jurisdição Constitucional e as Possibilidades Hermenêuticas de
Efetivação da Constituição: Breve Balanço Crítico nos quinze anos da
Constituição Brasileira .....................................................................................341
Lenio Luiz Streck
Pluralismo Jurídico e Direito Alternativo no Brasil. Notas para um
Balanço ..............................................................................................................374
Luciano Oliveira
Neoconstitucionalismo y Ponderación Judicial .............................................400
Luis Prieto Sanchís
Constitucionalismo Garantista y Democracia ................................................436
Antonio Manuel Peña Freire
Segurança Pública e o Direito das Vítimas .....................................................479
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho
IV. PERSPECTIVA HISTÓRICA DOS DIREITOS HUMANOS
Direitos Humanos na América Latina: Transições Inconclusas e a Herança
das Novas Gerações .........................................................................................494
Rodrigo Stumpf González
Os Direitos Sociais e as Constituições Democráticas Brasileiras: Breve
Ensaio Histórico ................................................................................................510
Gilberto Bercovici e Luís Fernando Massonetto
Algunas Expresiones Normativas de la Tradición Hispanoamericana de los
Derechos Humanos ...........................................................................................529
Jesús Antonio de la Torre Rangel
V. MEMÓRIA
Fragmentos de uma Grandiosa Narrativa: Homenagem ao Peregrino do
Humanismo, Alessandro Baratta .....................................................................555
Vera Regina Pereira de Andrade
Homenagem a Joaquín Herrera Flores (In Memoriam)
Há muito tempo ouvia falar dos teóricos de Sevilha, de Joaquín Herrera
Flores e de David Sanchez Rúbio, pelo Amilton (Bueno de Carvalho), meu pai.
Em alguns momentos a impressão que eu tinha era de que constituíam uma só
pessoa, pois sempre o nome de um vinha associado ao do outro.
A imagem dos pensadores da Andaluzia, do Master em Teorias Críticas do
Direito em La Rábida, e a amizade de Joaquín e David com o pai, foram
constantes na minha vida afetiva e acadêmica. Nas aulas do mestrado, na UFSC,
na redação da dissertação e na elaboração da tese, na UFPR, os escritos de
Joaquín e David, sobretudo aqueles sobre Direito Alternativo, estiveram
presentes, sempre disponibilizados pelos meus queridos professores Antônio
Carlos Wolkmer, Edmundo Lima de Arruda Júnior, Jacinto Nelson de Miranda
Coutinho e, logicamente, pelo pai.
O velho Amilton, durante o biênio letivo de 1994 e 1995 – enquanto eu
cursava o mestrado em Florianópolis –, esteve em La Rábida, Huelva, fazendo o
Master com Joaquín e David. E o material trazido foi distribuído e vorazmente
estudado por estudantes e professores de pós-graduação alinhados ao
Movimento do Direito Alternativo.
Somente conheci pessoalmente Joaquín em Curitiba, em novembro de
2000, no II Congresso de Direito e Psicanálise – A Lei e a lei. Havia defendido
minha tese de doutorado naquele ano, na UFPR. Joaquín, ao saber do recente
doutoramento, fez o convite para que eu apresentasse seminário sobre
Garantismo e Direitos Humanos, na primeira edição do curso de Doutorado em
Direitos Humanos e Desenvolvimento, na Universidade Pablo de Olavide (UPO),
em Sevilha. Curiosamente, esse curso era fruto da semente plantada em La
Rábida. O convite foi imediatamente aceito.
Após a primeira experiência docente em janeiro de 2001 – quando conheci
pessoalmente David –, fui convidado para lecionar nas edições posteriores do
Curso. Assim, pude desfrutar do convívio com Joaquín, com os professores e com
a série de alunos que vinham de inúmeras partes do mundo aprender. Com o
Curso, Sevilha havia se tornado referência na Teoria Crítica dos Direitos
Humanos.
A partir dessa primeira experiência conquistei novos amigos, novos irmãos
de caminhada. E projetos foram imaginados e colocados em marcha.
Juntos – eu, Joaquín e David – organizamos a série Anuários
Iberoamericanos de Direitos Humanos, publicação coletiva fruto das pesquisas
realizadas no Doutorado em Direitos Humanos e Desenvolvimento da
Universidade Pablo de Olavide, no Doutorado em Direito da Universidade de
Sevilha e do Doutorado em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul. Ao todo foram publicados três volumes, dois pela Editora
Lumen Juris, do Rio de Janeiro, e o último, de 2008, pela EDIPUCRS.
Nossa vontade, porém, desde há tempos, era que o material fosse
disponibilizado gratuitamente, para todos os pesquisadores que se interessam
pelo tema dos Direitos Humanos e pelas Teorias Críticas.
Assim, iniciamos tratativa com as editoras para que a EDIPUCRS
reeditasse os volumes 1 e 2, esgotados, e disponibilizasse o terceiro, todos em ebook, com acesso livre pela web.
Durante a preparação da publicação desta segunda edição do segundo
volume do Anuário, intitulado Direitos Humanos e Globalização: fundamentos e
possibilidades desde a teoria crítica, recebemos a notícia da morte de Joaquín.
Não tenho (não temos) palavras para dimensionar a perda.
Resta-nos apenas a certeza de que seus escritos seguem sendo
estudados, que seus livros habitam as prateleiras das livrarias e das bibliotecas,
que sua risada ecoa pelos corredores das Universidades e pelas ruas de Sevilla,
o que faz com que siga vivo e muito presente em nós.
Recentemente a editora Lumen Juris publicou a tradução de sua obra
Teoria Crítica dos Direitos Humanos: os Direitos Humanos como produtos
culturais. Das últimas páginas retiro pequeno fragmento que representa a luta
cotidiana de Joaquín que segue viva nesta publicação:
Dizia Celaya [Gabriel Celaya, poeta espanhol]: 'Maldigo la poesía
concebida como un lujo/ cultural pero neutral/ que, lavándose las
manos se desentienden y evaden. Maldigo la poesía de quien no
toma partido hasta marcharse’.
Substituamos poesia por teoria e nos aproximaremos do princípio
de dignidade que está latente nas páginas deste livro.
Substituamos poesia por teoria e compreenderemos a
profundidade dos versos de Celaya: versos escritos a partir da
10
Salo de Carvalho
indignação e da vontade de encontros de todos os que resistem a
assumir o mundo como dado de uma vez por todas. Substituamos
poesia por teoria e teremos um argumento a mais para a luta
social contra a injustiça e a opressão. (...)
Afirmemos a potência de nossa inteligência e de nossa
capacidade de criar sentidos novos ao mundo. Enfim, redobremos
a potência do constituinte, do ser humano, de tudo aquilo que o
coloca em tensão em direção a um novo acontecimento, em
direção a um tipo de ação, em direção a um mundo possível e
melhor.
Joaquín morreu. [silêncio]
Viva Joaquín! [aplausos]
Salo de Carvalho, outubro de 2009.
Homenagem a Joaquín Herrera Flores (In Memoriam)
11
I. TEORIA CRÍTICA DOS
DIREITOS HUMANOS E GLOBALIZAÇÃO
Novos Pressupostos para a Temática
dos Direitos Humanos*
Antonio Carlos Wolkmer
Sumário: Introdução. 1. Dimensão dos Direitos Civis e Políticos. 2.
Dimensão dos Direitos Sociais e Econômicos. 3. Dimensão dos Direitos
Coletivos e Difusos. 4. Dimensão de Direitos da Bioética. 5. Dimensão de
Direitos Virtuais. 6. Fundamentos dos Direitos Humanos Emergentes.
Conclusão. Referências Bibliográficas.
Introdução
O processo de reconhecimento e afirmação dos chamados direitos
humanos constituiu uma verdadeira conquista da sociedade moderna ocidental.
Esse processo do nascimento de direitos como expressão da natureza humana,
ainda que favorecido pelos ideais da cultura liberal-burguesa e pela doutrina do
jusracionalismo, deve-se em grande parte, como assinala Norberto Bobbio, à
estreita
conexão
com
as
transformações
da
sociedade 1.
Assim,
o
desenvolvimento e a mudança social estão diretamente vinculados com o
nascimento,
a ampliação e universalização dos ‘novos’ direitos. Essa
multiplicação histórica dos ‘novos’ direitos processou-se, no dizer
de Bobbio, por três razões: a) aumentou a ‘quantidade de bens
considerados merecedores de tutela’; b) estendeu-se ‘a
titularidade de alguns direitos típicos a sujeitos diversos do
homem’; c) o homem não é mais concebido como ser genérico,
abstrato, ‘(...) mas é visto na especificidade ou na concreticidade
de suas diversas maneiras de ser em sociedade, como criança,
velho, doente etc. 2
Por certo que, nos marcos de um cenário globalizado, os direitos humanos
em emergência materializam exigências reais da própria sociedade diante das
condições emergentes da vida e das crescentes prioridades determinadas
socialmente.
*
Uma primeira versão deste texto foi publicada na Revista Direito em Debate. Ijuí, nos 16/17,
jan./jun. 2002.
1
Cf. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 73.
2
BOBBIO, Norberto. Op. cit., p. 68.
Em face da mundialização e da ampliação dos chamados “novos” direitos
de natureza humana, objetivando precisar seu conteúdo, titularidade, efetivação e
sistematização, os doutrinadores têm consagrado uma evolução linear e
acumulativa de “gerações” sucessivas de direitos. Tal reflexão compreende várias
tipologias (três, quatro ou cinco “gerações” de direitos), desde a clássica de T. H.
Marshall até alcançar as formulações de Norberto Bobbio, C. B. Macpherson,
Maria de Lourdes M. Covre, Celso Lafer, Paulo Bonavides, Gilmar A. Bedin, Ingo
W. Sarlet, José Alcebíades de Oliveira Jr. e outros3. Possivelmente, a
classificação dos direitos civis, políticos e sociais feita por T. H. Marshall, em sua
obra Cidadania, Classe Social e Status, tornou-se referencial paradigmático
enquanto processo evolutivo de fases históricas dos direitos no Ocidente. Essa
periodização foi e tem sido utilizada por muitos outros autores, seja reproduzindo
integralmente, seja atualizando e ampliando as gerações de direitos. Desse
modo, segundo T. H. Marshall, o cenário europeu (particularmente o inglês) do
século XVIII favoreceu o surgimento dos direitos civis, enquanto o século XIX
consagrou os direitos políticos, e a primeira metade do século XX consolidou as
reivindicações de direitos sociais e econômicos.
Cabe mencionar os questionamentos que vêm sendo feitos por autores
nacionais (Paulo Bonavides, Ingo Sarlet e Paulo de T. Brandão) 4 com relação ao
uso técnico da expressão “gerações” de direitos, que induz o equívoco de um
processo substitutivo, compartimentado e estanque. Com efeito, assinala
Bonavides que
força é dirimir, a esta altura, um eventual equívoco de linguagem:
o vocábulo ‘dimensão’ substitui, com vantagem lógica e
qualitativa, o termo ‘geração’, caso este último venha a induzir
3
Cf. MARSHAL, T. H. Cidadania, Classe Social e Status. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976. p.
57-114; BOBBIO, Norberto. Op. cit., p. 6, 67-83; MACPHERSON, C. B. Ascensão e queda da
Justiça Econômica e outros ensaios. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. p. 37-52; COVRE, Maria
de Lourdes M. O que é Cidadania. São Paulo: Brasiliense, 1991. p. 11-15; LAFER, Celso. A
Reconstrução dos Direitos Humanos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 125-133;
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7ª. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 514528; BEDIN, Gilmar A. Os Direitos do Homem e o Neoliberalismo. 2ª. ed. Ijuí: UNIJUÍ, 1998. p. 3978; SARLET, Ingo W. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria dos Advogados,
1998. p. 46-58; OLIVEIRA JÚNIOR, José A. de. Teoria Jurídica e Novos Direitos. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2000. p. 83-96.
4
Cf. BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 525; SARLET, Ingo. Op. cit., p. 47; BRANDÃO, Paulo de T. A
Tutela Judicial dos “novos” Direitos: em busca de uma efetividade para os direitos típicos da
cidadania. Florianópolis: CPGD, 2000. p. 121-122. [Tese de Doutorado em Direito].
14
Antonio Carlos Wolkmer
apenas sucessão cronológica e, portanto, suposta caducidade dos
direitos das gerações antecedentes, o que não é verdade 5.
Tendo em vista a compreensão atual do fenômeno dos “novos” direitos, farse-á uma digressão histórica dos direitos humanos (também cunhados de direitos
do homem ou fundamentais) no que se refere ao seu conteúdo, contextualização
de época, importância e fontes legais institucionalizadas. Compartilhando as
interpretações de Bonavides e de Sarlet, substituem-se os termos “gerações”,
“eras” ou “fases” por “dimensões”, porquanto esses direitos não são substituídos
ou alterados de tempo em tempo, mas resultam num processo de fazer-se e de
complementaridade permanente 6. Isso claro e levando em conta as tipologias de
Marshall, Bobbio, Sarlet e principalmente a de Oliveira Jr. (a mais completa até o
presente momento) 7, propõe-se, na esteira do último autor, a ordenação histórica
dos direitos de natureza humana em cinco grandes “dimensões”.
1. Dimensão dos Direitos Civis e Políticos
Os direitos civis e políticos referem-se aos direitos individuais vinculados à
liberdade, à igualdade, à propriedade, à segurança e à resistência às diversas
formas de opressão. Direitos inerentes à individualidade, tidos como atributos
naturais, inalienáveis e imprescritíveis, que, por serem de defesa e serem
estabelecidos contra o Estado, têm especificidade de direitos “negativos”.
Esses direitos de “primeira dimensão”, fundamentais para a tradição das
instituições político-jurídicas da modernidade ocidental, apareceram ao longo dos
séculos XVIII e XIX como expressão de um cenário histórico marcado pelo ideário
do jusnaturalismo secularizado,
do racionalismo iluminista, do contratualismo societário, do
liberalismo individualista e do capitalismo concorrencial.
Socialmente o período consolida a hegemonia da classe
burguesa, que alcança o poder através das chamadas revoluções
norte-americana (1776) e francesa (1789). Esses direitos
5
BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 525.
Cf. SARLET, Ingo W. Op. cit., p. 47.
7
Em seu livro Teoria Jurídica e Novos Direitos (p. 85-86, 99-100), influenciado pelas “fases
evolutivas” do Direito moderno de N. Bobbio, o professor José Alcebíades de Oliveira Jr. avança e
acrescenta mais duas etapas, ou seja, trabalha com uma tipologia de cinco grandes “gerações” de
direitos. Sobre a classificação de Norberto Bobbio, examinar obra já citada desse autor: p. 06.
6
Novos Pressupostos para a Temática dos Direitos Humanos
15
individuais, civis e políticos, surgem no contexto da formação do
constitucionalismo político clássico que sintetiza as teses do
Estado democrático de Direito, da teoria da tripartição dos
poderes, do princípio da soberania popular e da doutrina da
universalidade dos direitos e garantias fundamentais 8.
Quanto às fontes legais institucionalizadas, os direitos civis clássicos de
“primeira dimensão” surgiram e foram proclamados nas célebres declarações de
direitos de Virgínia (1776) e da França (1789). Da mesma forma, tais direitos e
garantias são positivados, incorporados e consagrados pela Constituição
Americana de 1787 e pelas Constituições Francesas de 1791 e 1793. Por fim,
recorda-se que o mais importante código privado dessa época – fiel tradução do
espírito liberal-individual – foi o Código Napoleônico de 1804.
2. Dimensão dos Direitos Sociais e Econômicos
Os direitos sociais, econômicos e culturais são direitos fundados nos
princípios da igualdade e com alcance positivo, pois não são contra o Estado,
mas ensejam a garantia e a concessão a todos os indivíduos por parte do poder
público. Esses direitos são, como assevera Celso Lafer,
direitos de crédito do indivíduo em relação à coletividade. Tais
direitos – como o direito ao trabalho, à saúde, à educação – têm
como sujeito passivo o Estado, porque (...) foi a coletividade que
assumiu a responsabilidade de atendê-los. O titular desse direito,
no entanto, continua sendo, como nos direitos de primeira
geração, o homem na sua individualidade 9.
Na contextualização histórica dos direitos de “segunda dimensão”, estão
mais do que nunca presentes o surto do processo de industrialização e os graves
impasses socioeconômicos que varreram a sociedade ocidental entre a segunda
metade do século XIX e as primeiras décadas do século XX.
O capitalismo concorrencial evolui para a dinâmica financeira e
monopolista, e a crise do modelo liberal de Estado possibilita o nascimento do
Estado do Bem-Estar Social, que passa a arbitrar as relações entre o capital e o
8
Consultar, a propósito: SARLET, Ingo W. Op. cit., p. 48-49; BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 516518; LAFER, Celso. Op. cit., p. 126-127; BEDIN, Gilmar A. Op. cit., p. 43-61.
9
LAFER, Celso. Op. cit., p. 127.
16
Antonio Carlos Wolkmer
trabalho. O período ainda registra o desenvolvimento das correntes socialistas,
anarquistas e reformistas. Não menos importantes para os avanços sociais são: a
posição da Igreja Católica com sua doutrina social (a Encíclica Rerum Novarum,
de Leão XIII, 1891); os efeitos políticos das Revoluções Mexicana (1911) e Russa
(1917); os impactos econômicos do keynesianismo e o intervencionismo estatal
do New Deal. Cria-se a Organização Internacional do Trabalho (1919); o
movimento sindical ganha força internacional; a socialização alcança a política e o
Direito (nascem o Direito do Trabalho e o Direito Sindical) 10.
As principais fontes legais institucionalizadas estão positivadas na
Constituição Mexicana de 1917, na Constituição Alemã de Weimar de 1919, na
Constituição Espanhola de 1931 e no Texto Constitucional de 1934 do Brasil.
3. Dimensão dos Direitos Coletivos e Difusos
Os direitos coletivos e difusos se referem aos direitos metaindividuais,
direitos de solidariedade. A nota caracterizadora desses direitos “novos” é a de
que seu titular não é mais o homem individual (tampouco regulam as relações
entre os indivíduos e o Estado), mas agora dizem respeito à proteção de
categorias ou grupos de pessoas (família, povo, nação), não se enquadrando nem
no público nem no privado.
Ao reconhecer os direitos de terceira dimensão, é possível perceber duas
posições entre os doutrinadores nacionais: a) Interpretação abrangente acerca
dos direitos de solidariedade ou fraternidade (Lafer, Bonavides, Bedin, Sarlet)11:
incluem-se aqui os direitos relacionados ao desenvolvimento, à paz, à
autodeterminação dos povos, ao meio ambiente sadio, à qualidade de vida, o
direito de comunicação etc.; b) Interpretação específica acerca de direitos
transindividuais (Oliveira Jr.) 12: aglutinam-se os direitos de titularidade coletiva e
difusa, adquirindo crescente importância o Direito ambiental e o Direito do
consumidor.
10
Observar: BEDIN, Gilmar A. Op. cit., p. 61-72; WOLKMER, Antonio Carlos. Constitucionalismo e
Direitos Sociais no Brasil. São Paulo: Acadêmica, 1989.
11
Ver: LAFER, Celso. Op. cit., p. 131-133; BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 522-524; BEDIN,
Gilmar A. Op. cit., p. 73-78; SARLET, Ingo W. Op. cit., p. 50-52.
12
Ver: OLIVEIRA JR., José A. Op. cit., p. 86 e 100.
Novos Pressupostos para a Temática dos Direitos Humanos
17
Avançando na perspectiva da segunda interpretação, ensinam Sauwen e
Hryniewicz que:
Os direitos meta-individuais, sob o ponto de vista subjetivo (ou
seja, quanto a sua titularidade), se caracterizam pela
indeterminação dos titulares dos interesses, indeterminação (um
grupo mais ou menos indeterminado de indivíduos). Do ponto de
vista objetivo, tais direitos se caracterizam pela sua
indivisibilidade, ou seja, a satisfação ou lesão do interesse não se
pode dar de modo fracionado para um ou para alguns dos
interessados e não para outros (...) 13.
Aspecto nuclear dos direitos metaindividuais, a distinção entre direitos
difusos e coletivos nem sempre fica muito clara, podendo-se dizer que o critério
subjetivo diferencia-os (maior ou menor indeterminação dos titulares do Direito).
Os direitos difusos centram-se em realidades fáticas, “genéricas e contingentes,
acidentais e mutáveis” que engendram satisfação comum a todos (pessoas
anônimas envolvidas, mas que gastam produtos similares, moram na mesma
localidade, etc.), enquanto os direitos coletivos envolvem interesses comuns no
interior de organizações sociais, de sindicatos, de associações profissionais etc. 14
Na particularização desses “novos” direitos transindividuais, importa
lembrar que os chamados direitos relacionados à proteção do meio ambiente e do
consumidor começaram a ganhar impulso no período pós-segunda Guerra
Mundial. A explosão das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, a mutilação
e o extermínio de vidas humanas, a destruição ambiental e os danos causados à
natureza pelo desenvolvimento tecnológico desencadearam a criação de
instrumentos normativos no âmbito internacional. Igualmente, uma política
governamental em defesa dos consumidores foi sendo estabelecida nas décadas
de 70 e 80 nos Estados Unidos e na Europa 15. Como recorda o Prof. José
Rubens M. Leite, os primeiros estudos no Brasil sobre a necessidade de
instrumentos
jurisdicionais
para
regulamentar
interesses
metaindividuais
aparecem no final dos anos 70 (os trabalhos de José Carlos Barbosa Moreira e
Ada Pellegrini Grinover). O coroamento de toda discussão foi a aprovação a Lei
13
SAUWEN, Regina F.; HRYNIEWICZ, Severo. O Direito “in Vitro”. Da Bioética ao Biodireito. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 1997. p. 53-54.
14
Cf. SAUWEN, Regina F.; HRYNIEWICZ, Severo. Op. cit., p. 54.
15
Consultar: CÁCERES, Eliana. “Os Direitos básicos do Consumidor – uma contribuição”. In:
Revista Direito do Consumidor. São Paulo, nº 10, abr./jun. 1994.
18
Antonio Carlos Wolkmer
da Ação Civil Pública (n° 7.347/85), que disciplina e protege o meio ambiente, o
consumidor, os bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e
paisagístico 16.
Transformações sociais ocorridas nas últimas décadas, a amplitude dos
sujeitos coletivos, as formas novas e específicas de subjetividades e a
diversidade na maneira de ser em sociedade têm projetado e intensificado outros
direitos que podem ser inseridos na “terceira dimensão”, como os direitos de
gênero (dignidade da mulher, subjetividade feminina) 17, direitos da criança 18,
direitos do idoso (Terceira Idade)19, os direitos dos deficientes físicos e mentais,
os direitos das minorias (étnicas, religiosas, sexuais) 20 e novos direitos da
personalidade (à intimidade, à honra, à imagem).
Por fim, interessa apontar as fontes na legislação nacional em que são
contemplados, direta ou indiretamente, alguns dos principais direitos “novos” de
“terceira dimensão.” A fundamentação é encontrada na Lei da Ação Civil Pública
(n° 7.347/85), na Constituição Brasileira de 1988 (direitos não expressos ou
atípicos, art. 5°, § 2°), no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8.069/90) e
no Código de Proteção e Defesa do Consumidor (Lei n° 8.078, de 11/09/1990).
4. Dimensão de Direitos da Bioética
Os direitos da Bioética tratam dos direitos referentes à biotecnologia, à
bioética e à regulação da engenharia genética. Trata dos direitos que têm
vinculação direta com a vida humana, como a reprodução humana assistida
(inseminação artificial), aborto, eutanásia, cirurgias intrauterinas, transplantes de
órgãos, engenharia genética (“clonagem”), contracepção e outros.
Tais direitos de natureza polêmica, complexa e interdisciplinar vêm
16
Cf. LEITE, José Rubens M. “Interesses Meta-individuais: conceitos – fundamentações e
possibilidade de tutela”. In: OLIVEIRA JR., José de A. de; LEITE, José R. M. (Orgs.). Cidadania
Coletiva. Florianópolis: CPGD/Paralelo 27, 1996. p. 30-31.
17
Consultar: BRUSCHINI, Cristina; HOLLANDA, Heloisa B. de (Orgs.) Horizontes Plurais. Novos
estudos de gênero no Brasil. São Paulo: Editora 34/Fundação Carlos Chagas, 1998.
18
Ver: VERONESE, Josiane Rose P. Interesses Difusos e Direitos da Criança e do Adolescente.
Belo Horizonte: Del Rey, 1996.
19
Examinar: HADDAD, Eneida G. de Macedo. O Direito à Velhice. São Paulo: Cortez, 1993.
20
O reconhecimento e a problematização dos direitos das minorias (coletividades étnicas, raciais,
religiosas, sexuais e outras) veja-se em: KYMLICKA, Will. Ciudadanía Multicultural: una teoría
liberal de los derechos de las minorías. Barcelona: Paidós, 1996.
Novos Pressupostos para a Temática dos Direitos Humanos
19
merecendo a atenção de médicos, juristas, biólogos, filósofos, teólogos,
psicólogos, sociólogos e de uma gama de humanistas e profissionais da saúde.
Reconhece Norberto Bobbio serem direitos de “quarta geração”, espelhando os
“efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica, que permitirá
manipulações do patrimônio genético de cada indivíduo” 21. Portanto, esses
direitos emergiram no final do século XX e projetam grandes e desafiadoras
discussões nos primórdios do novo milênio. Tal fato explica o descompasso e os
limites da Ciência Jurídica convencional para regulamentar e proteger com
efetividade esses procedimentos. Daí a prioridade de se redefinirem as regras, os
limites e as formas de controle que conduzam a uma prática normativa objetivada
para o bem-estar e não a ameaça ao ser humano. Essas questões preocupantes
para toda a humanidade reforçam a necessidade imperativa de uma legislação
internacional. Nesse sentido, comenta Regina Sauwen,
os conflitos advindos (...) da sofisticação das técnicas de
procriação assistida, do tráfico de embriões e de órgãos, da
produção de armas bioquímicas, da prática de controle da
natalidade, da clonagem e de outros ‘possíveis’ à Engenharia
Genética só poderão ser adequadamente resolvidos por meio de
acordos internacionais 22.
Cumpre esclarecer que o progresso das ciências biomédicas e as
verdadeiras revoluções tecnológicas no campo da saúde humana projetaram
preocupações sobre a regulamentação ética, envolvendo as relações entre a
biologia, medicina e a vida humana. Daí o surgimento, nos anos 70, da reflexão
bioética, que, tendo sido até então uma mera reflexão deontológica no âmbito da
ética médica, vem lançando-se “a propósitos muito mais amplos”23. Naturalmente,
a bioética ganha importância por revelar-se instrumental interdisciplinar de base
ética que visa a pesquisar, na esfera da saúde, os meios necessários para
gerenciar, com responsabilidade, a vida humana em geral. Pela necessária
normalização das novas exigências valorativas e pela normatização das formas
de controle, incorpora-se a Bioética, o que se pode designar de Biodireito.
21
BOBBIO, Norberto. Op. cit., p. 06.
SAUWEN, Regina F.; HRYNIEWICZ, Severo. Op. cit., p. 57.
23
SILVA, Reinaldo Pereira e. Análise Bioética das Técnicas de Procriação Assistida. In: Ética &
Bioética. Novo Direito e ciências médicas. Florianópolis: Terceiro Milênio, 1998. p. 119-120.
22
20
Antonio Carlos Wolkmer
Ainda que o termo bioética tenha surgido em 1971 nos Estados Unidos
(Universidade de Wisconsin) com Van Rensselaer Potter, a breve história da
Bioética (do grego: “bíos” = vida + “éthiké” – ética) está associada a alguns fatos
relevantes: a) as experiências dos médicos nazistas na II Guerra Mundial
(Mengele) geram a primeira declaração de “regras bioéticas” em 1947, com o
Código de Nuremberg (revisto posteriormente com a Declaração de Helsinque,
em 1964); b) as pesquisas e o desenvolvimento das tecnologias no campo
biomédico, principalmente com a procriação assistida (congelamento de esperma
ou de embriões, “mães de aluguel”) ao longo dos anos 70 e 80; c) as conquistas
da engenharia genética através da “clonagem” (cópia genética idêntica) da ovelha
Dolly, em fevereiro de 1997, na Escócia 24.
Resta observar que esses direitos reconhecidos como “novos”, advindos da
biotecnologia e da engenharia genética, necessitam prontamente de uma
legislação regulamentadora e de uma teoria jurídica (quer no que tange à
aceitação de novas fontes, quer no que se refere às novas interpretações e às
novas práticas processuais) capaz de captar as novidades e assegurar a proteção
à vida humana.
Por fim, alguns subsídios legais que podem viabilizar fundamentos para os
“novos” direitos da bioética: Código de Nuremberg (1947), Declaração de
Helsinque (1964), Lei Brasileira da Biossegurança (n° 8.974), de 05/01/1995, e Lei
de Doação de Órgãos (n° 9.434), de 04/02/1997. Existem vários projetos de lei
tramitando no Congresso Nacional sobre clonagem, reprodução humana assistida
e eutanásia 25.
5. Dimensão de Direitos Virtuais
Os direitos virtuais são os direitos advindos das tecnologias de informação
(Internet), do ciberespaço e da realidade virtual em geral.
24
Cf. SAUWEN, R. F.; HRYNIEWICZ, S. Op. cit., p. 11, 89 e 141; LEITE, Eduardo de O. Da
Bioética ao Biodireito: reflexões sobre a necessidade e emergência de uma legislação. In: SILVA,
Reinaldo Pereira e (Org.). Direitos Humanos como Educação para a Justiça. São Paulo: LTr, 1998.
p. 107-109.
25
Consultar: SAUWEN, R. F; HRYNIEWICZ, S. Op. cit., p. 141-211. Para aprofundamento nas
questões da bioética, examinar: PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de.
Problemas Atuais de Bioética. 4ª. ed. São Paulo: Loyola, 1998. Sobre a questão do biodireito, ver:
DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. São Paulo: Saraiva, 2001.
Novos Pressupostos para a Temática dos Direitos Humanos
21
A passagem do século XX para o novo milênio reflete uma transição
paradigmática da sociedade industrial para a sociedade da era virtual. É
extraordinário o impacto do desenvolvimento da cibernética, das redes de
computadores, do comércio eletrônico, das possibilidades da inteligência artificial
e da vertiginosa difusão da internet sobre o campo do Direito, sobre a sociedade
mundial e sobre os bens culturais do potencial massificador do espaço digital.
Observa Luiz Carlos C. Olivo que as mudanças substantivas confirmam que
estamos na Era Digital, um novo período histórico não mais
(...) baseado em bits, mas em átomos ou em coisas corpóreas.
Esta é, então, a época do computador, do celular, do
conhecimento, da informação, da realidade virtual, do
ciberespaço, do silício, dos chips e microchips, da inteligência
artificial, das conexões via cabo, satélite ou rádio, da Internet e da
intranet, enfim, da arquitetura em rede 26.
Frente à contínua e progressiva evolução da tecnologia de informação,
essencialmente da utilização da Internet, torna-se fundamental definir uma
legislação que venha regulamentar, controlar e proteger os provedores e os
usuários dos meios de comunicação eletrônica de massa. O debate sobre a
informatização do universo jurídico divide os “internautas” entre os que se opõem
à incidência do Direito na realidade virtual e os que proclamam a aplicação da lei
e da jurisprudência no âmbito do ciberespaço.
Este universo em expansão constituído de redes de computadores e meios
de transmissão abre a perspectiva para o surgimento de “novos” direitos
concentrados, como escreve Daniela Beppler, em
um Direito Civil da Informática e um Direito Penal da Informática.
O primeiro englobaria relações privadas e que envolvem a
utilização da informática, como por exemplo, programas, sistemas,
direitos autorais, transações comerciais, entre outros. O segundo,
o Direito Penal da Informática (...) diz respeito às formas
preventivas e repressivas, destinadas ao bom e regular uso da
informática no cotidiano 27.
26
OLIVO, Luís Carlos Cancellier de. Aspectos Jurídicos do Comércio Eletrônico. In: ROVER, Aires
José (Org.). Direito, Sociedade e Informática. Limites e perspectivas da vida digital. Florianópolis:
Fundação Boiteaux, 2000. p. 60.
27
BEPPLER, Daniela. Internet e Informatização: implicações no universo jurídico. In: ROVER,
Aires J. (Org.). Op. cit., p. 121. A mesma preocupação é tratada em: OLIVO, Luís Carlos C. Direito
e Internet. A regulamentação do ciberespaço. Florianópolis: UFSC/CIASC, 1998. p. 43-56.
22
Antonio Carlos Wolkmer
Urge, pois, que o Direito se apresse a regulamentar a ciência da
informática, o direito à privacidade e à informação e o controle dos crimes via
rede, ou seja, a incitação de crimes, uso de droga, racismo, abuso e exploração
de menores, pirataria, roubo de direitos autorais, ameaça e calúnia de pessoas, e
tantos outros 28.
Em síntese, o debate sobre as fronteiras do Direito e o controle jurisdicional
do espaço virtual da informática é extremamente atual, pois, como lembra Luís
Carlos C. Olivo, enquanto o termo “ciberespaço”, utilizado por Willian Gibson
(1984), enunciava o universo “dos computadores e a sociedade que os rodeia”, a
expressão internet difundiu-se nos anos 89/90, a partir da criação da WWW,
desenvolvida pelo pesquisador Tim Berners – Lee, do Centro Europeu de
Pesquisas Nucleares, em Londres 29.
As fontes legislativas sobre o tema são escassas, destacando-se a
existência de inúmeros projetos de leis que estão tramitando no Congresso
Nacional, principalmente sobre a punição à pornografia e à violência através de
mensagens eletrônicas e da internet 30.
6. Fundamentos dos Direitos Humanos Emergentes
Preliminarmente, importa questionar a natureza dos “novos” direitos
humanos enquanto necessidades básicas: são produtos de “gerações”, de uma
evolução histórica (sucessão linear, gradual e cumulativa) ou são resultantes de
um processo de permanente gestação, provocados por reivindicações e conflitos?
A problematização da questão permite flexibilizar a concepção de que em cada
época há direitos absolutos e específicos, impondo-se a ideia de direitos relativos
e que nascem em qualquer momento enquanto necessidades ou exigências
valorativas. É preciso ter claro que a realidade contemporânea tem viabilizado
constantemente direitos humanos de natureza individual, social e metaindividuais.
Até certo ponto, pode-se concordar com Norberto Bobbio de que
28
Observar neste sentido: OLIVO, Luís Carlos C. Direito e Internet. Op. cit., p. 43-70.
OLIVO, Ibidem. p. 01.
30
Para o exame mais pormenorizado do Direito com a internet, o ciberespaço e o mundo virtual,
pesquisar em: LUCCA, Newton de; SIMÃO FILHO, Adalberto (Coords.). Direito & Internet –
Aspectos Jurídicos Relevantes. Bauru: EDIPRO, 2000.
29
Novos Pressupostos para a Temática dos Direitos Humanos
23
os direitos do homem (...) são direitos históricos, ou seja, nascidos
em certas circunstâncias, caracterizados por lutas em defesa de
novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo
gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas. (...).
Nascem quando devem ou podem nascer 31.
Ora, se o esquema evolutivo da passagem dos direitos de liberdade para
os direitos sociais até a metade do século XX é aceito como correto, a mesma
compartimentação, na advertência do Prof. Paulo de T. Brandão, não pode ser
aplicada aos “novos” direitos de terceira, quarta e quinta dimensões. Os direitos
civis, políticos e sociais que se constituem presentemente não possuem o mesmo
conteúdo ou significado histórico de quando foram reconhecidos e positivados nos
séculos XVIII, XIX e nas primeiras décadas do século XX 32.
A
propósito
e
de
forma
esclarecedora,
veja-se
como
leciona
apropriadamente Paulo de T. Brandão:
(...) as gerações de direitos terminam por induzir o errôneo
entendimento de que a evolução se dá sempre no sentido da
coletivização do exercício dos direitos, o que não corresponde à
realidade, (...), o espaço dos direitos de cunho individual continua
a existir plenamente, evoluem e até se ampliam, como ocorreu
com a tutela da intimidade (...) 33.
Em sua tese do doutorado, o autor entende que o enquadramento dos
“novos” direitos em “eras” ou “períodos” não contribui para maior clareza na
enunciação dos direitos de quarta e quinta gerações, uma vez que
estes contemplam direitos que se inserem entre os direitos
tipicamente individuais, sociais e transindividuais. Os direitos
decorrentes da biotecnologia e da bioengenharia geram direitos
sociais, que podem dizer respeito ao consumidor quando se trata
de alimentos modificados (...) 34.
E podem fazer alusão ao meio ambiente, quando determinadas
experiências geram desequilíbrio ao ecossistema ou mesmo daqueles direitos
que não deixam de ser, sob certo aspecto, de natureza individual, como a
eutanásia, o transplante de órgãos ou a conservação artificial da vida 35. Também
outro não é o entendimento de Brandão com referência aos “novos” direitos
31
BOBBIO, Norberto. Op. cit.
Cf. BRANDÃO, Paulo de Tarso. Op. cit., p. 123-124.
33
BRANDÃO, Paulo de T. Op. cit., p. 126.
34
Idem.
35
Ibidem, p. 126-127.
32
24
Antonio Carlos Wolkmer
provenientes da realidade virtual, pois a ação danosa da inserção de vírus no
computador de alguém “pode gerar um interesse de cunho meramente individual
(...); ou um interesse de ordem coletiva e até mesmo transnacional” 36.
Posta a problematização, passa-se, agora, para algumas asserções sobre
a fundamentação desses “novos” direitos de natureza humana nos marcos de um
cenário globalizado. A tradição linear e evolutiva da afirmação e conquista de
direitos não tem deixado de realçar o valor atribuído às “necessidades” essenciais
de cada época. Assim se explica a razão da priorização de “necessidades” por
liberdade individual, na Europa Ocidental do século XVIII; de “necessidades” por
participação política no século XIX; e por maior igualdade econômica e qualidade
de vida no século XX. A proposição nuclear aqui é considerar os “novos” direitos
como afirmação de necessidades históricas na relatividade e na pluralidade dos
agentes sociais que hegemonizam uma dada formação societária. Nesse sentido,
como já foi descrito em outro contexto 37, importa assinalar que mesmo inserindo
as chamadas necessidades em grande parte nas condições de qualidade de vida,
bem-estar e materialidade social, não se pode desconsiderar as determinantes
individuais, políticas, religiosas, psicológicas, biológicas e culturais. A estrutura
das necessidades humanas que permeia o indivíduo e a coletividade refere-se
tanto a um processo de subjetividade, modos de vida, desejos e valores, quanto à
constante “ausência” ou “vazio” de algo almejado e nem sempre realizável. Por
serem inesgotáveis e ilimitadas no tempo e no espaço, as necessidades humanas
estão em permanente redefinição e criação 38. Por consequência, a situação de
necessidades e carências constitui a razão motivadora e a condição de
possibilidade do aparecimento de “novos” direitos.
As mudanças e o desenvolvimento no modo de viver, produzir, consumir e
relacionar-se, de indivíduos, grupos e classes podem perfeitamente determinar
anseios, desejos e interesses que transcendem os limites e as possibilidades do
sistema globalizado, propiciando situações de necessidade, carência e exclusão.
Uma projeção para espaços periféricos como o brasileiro demonstra que as
36
BRANDÃO, Ibidem, p. 127.
Cf. WOLKMER, Antonio Carlos. Sobre a Teoria das Necessidades: a condição dos ‘novos’
direitos. In: Alter Ágora. Revista do Curso de Direito da UFSC. Florianópolis, no 01, p. 42-47.
Maio/94.
38
Cf. WOLKMER, Antonio C. Op. cit., p. 43.
37
Novos Pressupostos para a Temática dos Direitos Humanos
25
reivindicações e as demandas, legitimadas por sujeitos sociais emergentes,
incidem, prioritariamente, em direitos à vida, ou seja, direitos básicos de
existência e de vivência com dignidade 39.
Claro está, portanto, que o surgimento e a existência de direitos humanos
recentes são exigências contínuas da própria coletividade frente às novas
condições de vida e às crescentes prioridades impostas socialmente.
Enfim, o processo histórico de criação ininterrupta dos “novos” direitos
fundamenta-se na afirmação permanente das necessidades humanas e na
legitimidade de ação de novos atores sociais.
Conclusão
O clássico modelo jurídico liberal-individualista tem sido pouco eficaz para
recepcionar e instrumentalizar as novas demandas sociais, portadoras de direitos
humanos referentes a dimensões individuais, coletivas, metaindividuais, bioéticas
e virtuais. Tal situação estimula e determina o esforço de propor novos
instrumentos jurídicos mais flexíveis e mais abrangentes, capazes de regular
situações complexas e fenômenos novos.
É necessário, portanto, transpor o modelo jurídico individualista, formal e
dogmático, adequando conceitos, institutos e instrumentos processuais no sentido
de contemplar, garantir e materializar os “novos” direitos de natureza humana.
Por essa razão, começaram a surgir no ordenamento jurídico nacional
novas figuras e novos instrumentos objetivando defender a coletividade,
instaurando a tutela de interesses metaindividuais específicos, como são os casos
da Lei n° 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública), Lei n° 7.853/89 (Proteção às
Pessoas Portadoras de Deficiência), Lei n° 8.069/90 (Estatuto da Criança e do
Adolescente), Lei n° 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) e novos
dispositivos sobre os direitos da personalidade introduzidos pela Constituição
Brasileira de 1988 (Título II, capítulo I, art. 5°, incisos 5, 9, 10, 14, 25, 27 e 28)40.
Certamente, cabe explorar as possibilidades do Direito positivo nacional
que, inovadoramente, em sua dogmática constitucional, enuncia e propõe que,
39
WOLKMER, Ibidem, p. 46.
Ver: BITTAR, Carlos Alberto. Os Direitos da Personalidade. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1999. p. 56-57.
40
26
Antonio Carlos Wolkmer
além dos direitos e garantias fundamentais claramente expressos no texto (art. 5°,
§ 2°), não se excluem outros direitos decorrentes do regime e dos princípios por
ela adotados ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do
Brasil seja parte. Tal reconhecimento do legislador permite compreender a
relevância da existência de uma múltipla gama de direitos emergenciais.
Em síntese, além das diretrizes abertas pela ordem constitucional (art. 5°, §
2°), cabe buscar não só instrumentos flexíveis advindos de um “novo” direito
processual de ação e de uma nova postura dos operadores jurídicos, mas
também direcionar a cultura jurídica para as práticas extrajudiciais de resolução
dos conflitos e para a pluralidade de produção legal comunitário participativa.
Referências Bibliográficas
ALDUNATE, José (Coord.). Direitos Humanos, Direitos dos Pobres. São Paulo:
Vozes, 1991. p. 191.
BEDIN, Gilmar A. Os Direitos do Homem e o Neoliberalismo. 2ª. ed. Ijuí: UNIJUÍ,
1998. p. 3978.
BITTAR, Carlos Alberto. Os Direitos da Personalidade. 3ª. ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1999.
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 73.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7ª. ed. São Paulo:
Malheiros, 1997. p. 514-528.
BRANDÃO, Paulo de T. Ação Civil Pública. Florianópolis: Obra Jurídica, 1996. p.
105.
______. A Tutela Judicial dos “Novos” Direitos: em busca de uma efetividade para
os direitos típicos da cidadania. Florianópolis: CPGD, 2000. p. 121-122. [Tese de
Doutorado em Direito].
BRUSCHINI, Cristina; HOLLANDA, Heloisa B. de (Orgs.) Horizontes Plurais.
Novos estudos de gênero no Brasil. São Paulo: Editora 34/Fundação Carlos
Chagas, 1998.
CÁCERES, Eliana. Os Direitos básicos do Consumidor – uma contribuição. In:
Revista Direito do Consumidor. São Paulo, n. 10, abr./jun. 1994.
Novos Pressupostos para a Temática dos Direitos Humanos
27
CARLIN, Volnei I. (Org.). Ética & Bioética. Novo Direito e Ciências Médicas.
Florianópolis: Terceiro Milênio, 1998.
COVRE, Maria de Lourdes M. O que é Cidadania. São Paulo: Brasiliense, 1991.
p. 11-15.
DEMO, Pedro. Participação é Conquista. São Paulo: Cortez, 1988. p. 61.
DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. São Paulo: Saraiva, 2001.
GOUVEIA, Jorge Bacelar. Os Direitos Fundamentais Atípicos. Lisboa:
Aequitas/Editorial Noticias, 1995.
HADDAD, Eneida G. de Macedo. O Direito à Velhice. São Paulo: Cortez, 1993.
KYMLICKA, Will. Ciudadanía Multicultural: una teoría liberal de los derechos de
las minorías. Barcelona: Paidós, 1996.
LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos. São Paulo: Companhia
das Letras, 1998. p. 125-133.
LEITE, Eduardo de O. Da Bioética ao Biodireito: reflexões sobre a necessidade e
emergência de uma legislação. In: SILVA, Reinaldo Pereira e (Org.). Direitos
Humanos como Educação para a Justiça. São Paulo: LTr, 1998. p. 107-109.
LEITE, José Rubens M. Interesses Meta-individuais: conceitos – fundamentações
e possibilidade de tutela. In: OLIVEIRA JÚNIOR, José de A. de; LEITE, José R.
M. (Orgs.). Cidadania Coletiva. Florianópolis: CPGD/Paralelo 27, 1996. p. 30-31.
LÉVY, Pierre. O que é o Virtual? São Paulo: Editora 34, 1996.
LUCCA, Newton de; SIMÃO FILHO, Adalberto (Coords.). Direito & Internet –
Aspectos Jurídicos Relevantes. Bauru: EDIPRO, 2000.
MACPHERSON, C. B. Ascensão e queda da Justiça Econômica e outros ensaios.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. p. 37-52.
MARSHAL, T. H. Cidadania, Classe Social e Status. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1976. p. 57-114.
OLIVEIRA JÚNIOR, José A. de. Teoria Jurídica e Novos Direitos. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2000. p. 83-96.
OLIVO, Luís Carlos Cancellier de. Direito e Internet. A regulamentação do
ciberespaço. Florianópolis: UFSC/CIASC, 1998. p. 43-56.
28
Antonio Carlos Wolkmer
______. Aspectos Jurídicos do Comércio Eletrônico. In: ROVER, Aires José
(Org.). Direito, Sociedade e Informática. Limites e perspectivas da vida digital.
Florianópolis: Fundação Boiteaux, 2000.
PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas Atuais de
Bioética. 4ª. ed. São Paulo: Loyola, 1998.
SARLET, Ingo W. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria
dos Advogados, 1998. p. 46-58.
SAUWEN, Regina F.; HRYNIEWICZ, Severo. O Direito “in Vitro”. Da Bioética ao
Biodireito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1997. p. 53-54.
SILVA, Reinaldo Pereira e. Análise Bioética das Técnicas de Procriação Assistida.
CARLIN, Volneir I. (Org.). In: Ética & Bioética. Novo Direito e ciências médicas.
Florianópolis: Terceiro Milênio, 1998. p. 119-120.
VARELLA, Marcelo D.; BORGES, Roxana C. (Orgs.). O Novo em Direito
Ambiental. Belo Horizonte: Del Rey, 1998.
VERONESE, Josiane Rose P. Interesses Difusos e Direitos da Criança e do
Adolescente. Belo Horizonte: Del Rey, 1996.
WOLKMER, Antonio Carlos. Constitucionalismo e Direitos Sociais no Brasil. São
Paulo: Acadêmica, 1989.
______. Sobre a Teoria das Necessidades: a condição dos ‘novos’ direitos. In:
Alter Ágora. Revista do Curso de Direito da UFSC. Florianópolis, n; 01, p. 42-47.
Maio/94.
______. Pluralismo Jurídico: novo marco emancipatório na historicidade latinoamericana. In: Revista do SAJU. Porto Alegre: UFRGS, n. 01, dez./1998.
______. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. 3ª. ed. São Paulo: Saraiva,
2001.
______. Pluralismo Jurídico – Fundamentos de uma nova cultura no Direito. 3ª.
ed. São Paulo: Alfa-Omega, 2001.
Novos Pressupostos para a Temática dos Direitos Humanos
29
Derecho Moderno e Inversión Ideológica:
Una mirada desde los Derechos Humanos *
Norman José Solórzano Alfaro
Sumario: Advertencia Previa. I. Algunos Acercamientos Preliminares a la
Inversión Ideológica. II. De la Formación del Discurso en la Modernidad.
III. De lo que Ocurre en Sede Axiológica Cuando se Establecen unas
Tablas de Valores: el Principio de Jerarquización. IV. De Porqué es
Relevante Elucidar la Inversión ideológica de los Derechos Humanos.
La inversión es reducida aquí a la más concisa de todas las
fórmulas y engarzada en la imagen de la carne. Yo lo como a él: a
mí él. La segunda parte, la consecuencia de aquello que yo he
hecho, es entonces precisamente la palabra que designa la carne.
El animal que uno ha comido recuerda quién lo comió. La muerte
no acabó con este animal. Su alma sigue viviendo y en el más allá
se hace hombre. Éste espera paciente la muerte de su devorador.
Apenas este último muere y llega al más allá, la situación primitiva
se invierte en su contraria. La víctima encuentra a su devorador, lo
atrapa, lo corta y se lo come.
(Elías CANETI, Masa y poder)
Advertencia Previa
El intento por ex-poner a la mirada plural las siguientes reflexiones se hace
cargo de su estado fragmentario, parcial y solo provisional, pues la pretensión es
tan solo mostrar algunos núcleos problemáticos en el proceso de constitución (de
los discursos) del derecho moderno -en el presente texto, visto sobre todo en su
momento actual y desde una perspectiva filosófica-. Por eso mismo, los vacíos
que quedan evidenciados también son un terreno propicio y una invitación sincera
para el diálogo y la convergencia.
*
Síntesis: En el marco de la formación del derecho moderno como discurso, se revisa la lógica de
articulación del discurso de los derechos humanos, para localizar en ese proceso la inversión
ideológica de la cual son objeto y que atraviesa todo el diseño jurídico moderno.
I. Algunos Acercamientos Preliminares a la Inversión Ideológica
La inversión ideológica 1 no es un concepto o noción dogmática, no se
desprende del mero análisis de la legislación, según un método de exégesis
positiva y sincrónica. Tampoco es una categoría en el sentido aristotélico, pues no
alude a ninguna cualidad del ser, por más que el objetivismo de que hacen gala
los/las juristas tienda a reificar los conceptos y tratarlos como cosas, como
objetos. Tampoco es una categoría en sentido kantiano, pues no se trata de
ninguna de las formas del pensamiento o del acto cognoscitivo. En cambio, en
términos epistemológicos, adquiere un perfil más preciso 2 en la medida que la
vemos referida a una condición de la categorización misma, por cuya virtud ésta
última aparece interrumpida o distorsionada; en esa línea, su ocultamiento y los
efectos que produce son un real “obstáculo epistemológico” en el sentido de
Bachelard 3. También, podemos verla instalada dentro de la teoría de la verdad
como una distorsión del “reflejo” (teoría especular modificada 4) entre pensamiento
y realidad. Ergo, podemos apostar (en el sentido de Pascal 5) que se trata de una
forma adecuada de explicar la dinámica de los procesos sociales en el tiempo
(por eso diacrónica), pues hasta el momento es la forma que mejor explica cómo
se van asentando, anquilosando, en el proceso de normalización las instituciones,
valores, normas, etc.
Pero, ¿no viene a explicar lo mismo que, por ejemplo, la noción de
“institucionalización”? Consideramos que con la noción de “inversión ideológica”
se dice algo más que con la de “institucionalización”, ya que esta última sólo da
1
Esta es la noción que Franz J. HINKELAMMERT ha utilizado para abordar el problema de la
realización frustrada o de la perversión que se esconde en los discursos y las prácticas
hegemónicos; asimismo, es la visión que pretendemos introducir en la reflexión jurídica. Por otra
parte, Hinkelammert elabora esta perspectiva a partir de sus análisis de la teoría económica, los
diálogos economía – teología, y la reflexión filosófica en la más genuina línea de la razón crítica, y
con ella ha puesto en evidencia la inversión ideológica operada al interior del discurso de los
derechos humanos.
2
Siempre es sinuosa, huidiza como su padre discurso y su madre ideología.
3
Al respecto véanse BACHELARD, Gastón (1972), La formación del espíritu científico (título
original La formation de l´esprit scientifique, traducción de José Babini), Siglo XXI, Buenos Aires;
(1973), Epistemología (título original Epistémologie, textos escogidos por Dominique Lecourt y
trad. de Elena Posa), Anagrama, Barcelona.
4
Al respecto véase SCHAFF, Adam (1995), Historia y verdad, Grijalbo, México.
5
Al respecto véase Agnes HELLER (1999), Una Filosofía de la historia en fragmentos (título
original A Philosophy of History in Fragments, Blackwell Publishers, Oxford, trad. de Marcelo
Mendoza Hurtado), Gedisa, Barcelona, p. 27 ss.
Derecho Moderno e Inversión Ideológica
31
cuenta, o bien del hecho sincrónico, de la permanencia de una mediación o
concreción histórica, o bien del camino que lleva a la sedimentación o
normalización, pero, de alguna forma, abandona o suspende el análisis y no sigue
a esa mediación o concreción histórica normalizada en su proceso de
absolutización y de proscripción de otras alternativas posibles. De otra manera:
con institucionalización sólo captamos el proceso que lleva hasta la normalización
(la historia previa a), y no contiene un elemento crítico (re-visión) que provea a su
evaluación permanente (particularmente que se haga cargo de la historia posterior
a). En cambio, con la noción de “inversión ideológica” (y la exigencia de su
elucidación) captamos ambos momentos, o, lo que es lo mismo, se capta el
momento de normalización y se activa el elemento crítico (autopolémica Bachelard) frente a su absolutización.
Por otra parte, otros antes que nosotros han captado la inversión ideológica
en el derecho 6, pero no ha sido ampliamente desarrollada. En la medida que esta
noción de inversión ideológica es parte del instrumental teórico complejo, diverso
y amplio de un pensamiento alternativo (el pensamiento de liberación), y habida
cuenta de que no puede haber ciencia del derecho sin historia (ambas forman
parte de una y la misma cosa), intentamos o ensayamos hacer una traducción de
la noción “inversión ideológica” (en cuanto idea del pensamiento de liberación y
vinculada a la historicidad de las producciones humanas) al campo jurídico, como
forma de (aporte o insumo para) superar la crisis del derecho y de la razón
jurídica 7. Asimismo, porque no nos satisfacen los modelos sistémicos,
autopoiéticos, funcionalistas y afines, para dar cuenta de nuestro objeto y función
en cuanto juristas 8; en fin, porque en el caso particular de nuestra adscripción a
los postulados del pensamiento garantista, consideramos que un enraizamiento
(exclusivamente) analítico y aspiración sistemática de dicha perspectiva puede
6
Por ejemplo, Riccardo ORESTANO (1997, Introducción al estudio del derecho romano -trad. y
notas de Manuel Abellán Velasco-, Universidad Carlos III de Madrid-BOE, Madrid, p. 350)
refiriéndose a “una “inversión” de la relación entre “derecho subjetivo” y “derecho objetivo”” como
parte de una “gran transformación de fondo entre 1800 y 1900”; o el mismo Kelsen, aunque sin
verla. No obstante esos antecedentes, la lectura que hacemos aquí es más amplia y su
procedencia es desde los márgenes.
7
Sobre esta cuestión de la “crisis de la razón jurídica”, véase Luigi FERRAJOLI (1999), Derechos
y garantías. La ley del más débil, Trotta, Madrid.
8
No es sólo cuestión de preferencia, teórica en este caso, sino de pertinencia. No obstante, esto
no nos inhibe de utilizar, en algunos casos, elementos de los modelos criticados, pero siempre
bajo sospecha y de manera provisional.
32
Norman José Solórzano Alfaro
operar como una camisa de fuerza, por lo cual es oportuno establecer una vigilia
teórica permanente. 9
De esta forma, elucidar la inversión ideológica resalta como:
1) elemento hermenéutico: hay que cerrar la cisura entre teoría y práctica.
Este esfuerzo tiene antecedentes en la tradición jurídica occidental, como la que
discurre por la vía de los antiguos romanos, que con el término ars, con el cual
calificaban el derecho (ius), traducían los términos griegos tecné y theoría;
2) factor crítico: en tanto las exigencias para la superación de la crisis del
derecho y de la razón jurídica pasan por la superación (superación no significa
abandono o desecho, sino reutilización, reubicación a partir de...) de los métodos
positivistas (exegéticos y dogmáticos).
3) Además, se puede llegar a una mejor comprensión de los problemas
reales o la condición misma del derecho, que es su “reversibilidad” (Gallardo) o
condición paradojal. De forma que el momento de elucidar la inversión ideológica
debería ser incorporado, en términos estrictamente teóricos, en el mismo acto de
categorización de la “experiencia jurídica” (Capograssi, Orestano), en cuanto que
es el material base de toda la reflexión jurídica.
Para las consideraciones que aquí se hacen, el ocultamiento o
invisibilización de la inversión ideológica resulta un “obstáculo epistemológico”
(Bachelard), pues es cerrarse a la “paradoja de la contingencia” (Heller), siendo la
contingencia la condición moderna, por ende, la condición del derecho y su
ciencia. Por eso insistimos en la incorporación de este momento de elucidación o
discernimiento, como dispositivo crítico-evaluativo, ya no sólo como mirada
externa, sino como re-visión al interior del derecho mismo. En fin, si
categorizamos los derechos humanos (todo derecho) como experiencia jurídica, la
inversión ideológica aparece cuando se articula un espacio o “campo” 10 de
9
Mantener activa dicha vigilia teórica en ningún caso es garantía de que no se incurrirá en los
defectos criticados, pero al menos es una muestra de honestidad y humildad intelectual, que
permite reconocer la propia contingencia del pensar y de lo pensado.
10
La noción de “campo” es debida a Pierre BOURDIEU, para quién “... el campo es la sede de un
régimen de racionalidad instituido en forma de disposiciones racionales que, objetivadas y
manifestadas en una estructura determinada del intercambio social, suscitan la complicidad
inmediata de las disposiciones que los investigadores han adquirido, en gran parte, gracias a la
experiencia de las disciplinas de la comunidad científica. Estas disposiciones los sitúan en estado
de construir el espacio de los posibles específicos implícitos en el campo (la problemática) en
forma de un estado de la discusión, de la cuestión, del saber, encarnado a su vez por agentes e
instituciones, figuras destacadas, conceptos terminados en –ismo, etcétera. Estas disposiciones
Derecho Moderno e Inversión Ideológica
33
intereses y luchas, que recién cuando se normalizan tienden a absolutizarse
sobre la base de la exclusión de cualquier otra alternativa posible; por tanto,
supuesto el carácter democrático de la experiencia jurídica y en virtud del principio
de secularización, ésta debe ser permanentemente interpelada y en ella elucidada
su potencial inversión ideológica con lo cual, a la vez, se logra abrir el campo a la
pluralidad de alternativas posibles 11.
Nuestra propuesta
Si categorizamos
experiencia jurídica,
los derechos
la inversión ideológica
humanos como
un espacio
O campo de
intereses y luchas
que recién normalizadas tienden a
absolutizarse, por eso conforme
al carácter democrático
de dicha experiencia jurídica y en virtud
del principio de secularización,
tiene que ser permanentemente
interpelada
Los referentes teóricos
Capograssi; Orestano
Hinkelammert
aparece recién
cuando se articula
Bourdieu
Milton Santos, Herrera Flores
Nuestra denuncia de la absolutización de
la contingencia normalizada
Capella; Barcellona
Ferrajoli
Crítica de la ley sobre la base de una
subjetividad libre, de Hinkelammert
Esquema I
II. De la Formación del Discurso en la Modernidad
Continuando con esta esquemática revisión de la idea de inversión
ideológica, surgen más preguntas: ¿cómo opera esa inversión ideológica? ¿cómo
la podemos reconocer? ¿dónde aparece? Para intentar responder debemos
revisar la forma en la cual se articulan los discursos en esta modernidad
occidental capitalista. En la perspectiva de M. Foucault 12, la modernidad ha
instaurado una serie de procedimientos de control y delimitación del discurso,
algunos externos (como la exclusión) y otros internos (como las reglas).
les permiten hacer que funcione el sistema simbólico propuesto por el campo de conformidad con
las reglas que lo definen, las cuales se les imponen con toda la fuerza de una imposición a la vez
lógica y social” (cfr. (1999), Meditaciones pascalianas (título original Méditations pascaliennes,
Éditions du Seuil, París, 1997, trad. de Thomas Kauf), Anagrama, Barcelona, p. 150-151 –las
cursivas son del original).
11
Al respecto véase GARCIA INDA, Andrés (1997), La violencia de las formas jurídicas. La
sociología del poder y el derecho de Pierre Bourdieu, Cedecs, Barcelona, p.151.
12
Al respecto véase de FOUCAULT, Michel (1999), El orden del discurso, Tusquets, Barcelona;
asimismo véanse (1984), La verdad y las formas jurídicas, Gedisa, México; (1988), Un diálogo
sobre el poder y otras conversaciones, Madrid, Alianza; (1996), Las palabras y las cosas. Una
arqueología de las ciencias humanas, (título original Les mots et les choses, une archéologie des
sciences humaines, Gallimard, 1966, trad. de Elsa Cecilia Frost), Siglo XXI Editores, México.
34
Norman José Solórzano Alfaro
Aparecen, entonces, “lo prohibido” (ej., la veda de la sexualidad y de la palabra en
la política; el poder decir no es sólo la narración de las luchas o los sistemas de
dominación, sino el medio y la finalidad de esa lucha), “lo separado” (ej., la
diferencia y oposición entre la razón y la locura, con el consiguiente rechazo de
esta última) y “lo opuesto” (ej., entre lo verdadero y lo falso; se establece una
nueva voluntad de saber en cuanto voluntad de verdad, que trasciende el ejercicio
del poder y deviene discurso científico), entre los primeros. De esta forma, no hay
una gratuidad en el carácter oposicional y posicional de los discursos de la
modernidad. Más adelante, Foucault discierne las “nociones reguladoras” de la
formación del discurso: “el acontecimiento”, “la serie”, “la regularidad” y “la
condición de posibilidad”. Basten, por ahora, estas breves referencias.
Por otra parte, Franz J. HINKELAMMERT 13 ha señalado como el poder, a
través de la recuperación funcional del discurso de los derechos humanos, que en
principio son postulados y reclamados por los movimientos de emancipación
(siglos XIX-XX), ha desplegado un potencial de muerte nunca antes alcanzado.
Diciendo vida, democracia, libertad, etc., el poder (hoy de carácter imperial)
produce muerte, exclusión y dominación. Esta inversión ideológica se hace a
través de la “abstracción trascendental” de las demandas de los sujetos concretos
que las postulan y reclaman, y la absolutización de las concreciones históricas en
que encarnan esos reclamos.
Ahora bien, teóricamente hablando, en la medida que la inversión
ideológica es una condición de los hechos del poder, esta debe ser explicada 14.
Siguiendo una metáfora cibernética, ella es la trama que une unos dispositivos
discursivos o claves de lectura (hermenéutica), que están instalados en el
imaginario y se activan, particularmente, en contextos de absolutización
ideológica. En la línea de Foucault (en compañía de Bourdieu), podríamos decir
que se trata de la textura del “campo” (contextualidad) donde se despliegan unas
“nociones reguladoras” del discurso, por ende, de las prácticas que promueven
13
Al respecto véanse del mismo autor, entre otros, las siguientes obras: (I-1990), Crítica a la razón
utópica, DEI, San José, 275 págs. (de esta obra hay una reciente edición para el público español:
(2002), Crítica de la razón utópica, Desclée de Brouwer, Bilbao, ed. rev. y ampl., 404 págs.; pero
aquí utilizamos la edición original); (II-1990), Democracia y totalitarismo, DEI, San José, 2ª ed.,
273 págs.; (1991), La fe de Abraham y el edipo occidental, DEI, San José, 2ª ed., 120 págs.;
(1995), Cultura de la esperanza y sociedad sin exclusión, DEI, San José, 387 págs.
14
Con el sintagma “inversión ideológica” también describimos los efectos de una forma de
ejercicio del poder.
Derecho Moderno e Inversión Ideológica
35
esos discursos que, a la vez, lo sostienen. En el “campo” donde se despliega el
discurso jurídico podemos encontrar operantes u operativas esas “nociones
reguladoras”; así:
Noción reguladora
el acontecimiento
Discurso jurídico
El “hecho jurídico” producto de un “efecto”; el
“acto administrativo”; la “sentencia”.
La enunciación secuenciada de los “hechos fuentes” o
“fuentes
normativas”:
constitución,
tratados
internacionales,
leyes
ordinarias,
costumbre,
jurisprudencia, doctrina y principios generales;
también la serie en la construcción dogmática: término
→ noción o concepto → instituto → principio general.
Típicamente la norma jurídica.
Validez – vigencia; legitimidad – eficacia.
la serie
la regularidad
la condición de posibilidad
Esquema II
Nótese, por ejemplo, la conformación binaria de las nociones reguladoras
del discurso jurídico; ello responde a la racionalidad dominante en la modernidad
capitalista que, particularmente a partir de la instauración del mecanicismo y la
visión causalista respecto de la naturaleza (causa – efecto), y ya en el siglo XIX
con el instrumentalismo del cientificismo en auge, tendió a reducir la realidad y la
complejidad de la acción a términos de medio – fin, cuyo remate será dado por la
epistemología
de
M.
Weber.
Asimismo,
es
el
lenguaje
que
asumen,
finisecularmente (siglo XX), las tecnologías cibernéticas (ej., informática,
inteligencia artificial, algunas versiones del análisis sistémico, etc.) y las
propuestas sobre la realidad virtual.
Ahora bien, en contextos de absolutización ideológica, en virtud de la
inversión ideológica se activan unos dispositivos 15 (del imaginario pre-moderno)
que a nivel de la teoría general se pueden percibir ya en el predominio cuasi
absoluto del normativismo formalista.
He dicho absolutización ideológica, y considero que esta es una
constatación que obtenemos con sólo dar una mirada alrededor y
escuchar como se repite que “ya no estamos en tiempos de los
grandes relatos”, pues se ha decretado “el final de las ideologías”,
15
Lo más importante es que estos dispositivos corresponden a una visión mítica o mitologizada
pre-moderna, por ende, no secularizados. Hay que distinguir entre el mito como mistificación
absolutizadora (no secularizado) y el mito como pasaje de traducción para la diversidad de
experiencias posibles. La secularización reubica y encuentra la utilidad del mito, cuya potencia se
puede verificar, entre otros asuntos, en el diálogo intercultural.
36
Norman José Solórzano Alfaro
etc. Pero es lo cierto que, frente a esa contestación de las
ideologías (en realidad sólo de algunas ideologías), se pretende
imponer un discurso aún más avasallador, a saber, que ya no hay
ideologías, lo cual es una ideología única que niega su carácter
como tal, y esto sólo ocurre cuando se pierde el horizonte histórico
y la noción de contexto que llevan a un estadio de absolutización
(la Historia es rica en ejemplos al respecto). Cuando el poder vive
la ilusión de su absolutización es cuando, paradójicamente, se
vuelve más realista, pues ya no tiene que ocultar su carácter
opresivo-agresor. Es sólo en ese momento cuando recién puede
decir lo que realmente hace; así, puede dejar su tono utópico
(estamos construyendo el único mundo posible...) y adquiere un
talante antiutópico (quien pretende construir el cielo en la tierra,
construye infiernos...). Mas también es cierto que el antiutopismo
es un utopismo no reflexivo, incapaz de asumir su respectividad,
de hacerse cargo de sí -en el sentido de Ellacuría-. Por eso hace
su aparición el discurso cínico 16, que al no ser un discurso
tradicionalmente ideológico, también resiste la crítica ideológica
tradicional y ante el cual sólo cabe enfrentarlo (Hinkelammert), no
sólo denunciando su destructividad, sino postulando un principio
distinto a aquel que defiende (por ejemplo, frente al principio de
eficiencia empresarial postular los principios de solidaridad, de
vida digna...).
Volviendo a las relaciones de nuestro Esquema II, nos encontramos con
que si establecemos las correspondencias de las nociones reguladoras en el
discurso jurídico con sus formas invertidas ideológicamente, nos topamos con la
situación siguiente:
Noción
reguladora
el acontecimiento
Discurso jurídico
el hecho jurídico
la sentencia
el acto administrativo
la sentencia
Inversión ideológica en
el discurso jurídico
Fixismo (ej. la crítica de
17
Fachin a la construcción
del hecho jurídico en el
derecho privado)
El acto supremo, la
burocratización
¿La
incuestionabilidad
absoluta de la cosa
juzgada?
16
Por ejemplo, discurso cínico es el que dice “los derechos humanos son un postulado del Estado
de derecho que, a su vez, no los puede realizar; entonces, bastaría con que no los postule para
que no incurra en su incumplimiento”, o también cuando se afirma que “la economía es, en
realidad, un campo de batalla, y no hay batallas en las que algunos no mueran”.
17
Cfr. FACHIN, Luiz Edson (1988), “O “aggiornamento” do Direito Civil Brasileiro e a confiança
negocial” en FACHIN, Luiz Edson coord. (1998), Repensando fundamentos do direito civil
brasileiro contemporaneo, Renovar, Rio de Janeiro, p. 115-149; (2000), Teoria crítica do Direito
Civil, Renovar, Rio de Janeiro, 355 págs.
Derecho Moderno e Inversión Ideológica
37
Noción
reguladora
la serie
Discurso jurídico
Inversión ideológica en
el discurso jurídico
la enunciación secuenciada La “mesa patas arriba”
de las “fuentes normativas” (Fix Zamudio) o el estado
decretal (Zaffaroni)
la serie en la construcción Conceptualismo
dogmática:
término
– dogmático o normativismo
noción o concepto –
instituto - principio
la regularidad
típicamente
la
norma Aquí
se
instalan
jurídica (hecho – efecto)
secuencias tales como:
crimen – castigo (que
interfiere
en
la
interpretación
de
las
normas
particulares,
principalmente
en
el
derecho penal, pero no
sólo en este); amigo –
enemigo (clave de lectura
de los derechos humanos
por parte de los poderes
que enuncian derechos);
vida – muerte (ambos
extremos son sacados del
círculo natural de la vida, y
se
reprocha
como
fatalidad de la dinámica de
las emancipaciones)
la condición de Validez
Formalismo logicista
posibilidad
Límite de lo que se puede
(principio de legalidad
paleopositivista)
Estatal
Vigencia
Legitimidad
Eficacia
Eficientismo (el reclamo
del
análisis
econométrico/cuantitativo
del derecho)
Esquema III
Evidentemente, sin obviar lo que hemos sostenido sobre la necesidad de
estar atentos/as permanentemente a las condiciones históricas en las que la
imaginación jurídica elabora sus constructos teóricos (ej., “norma”, “hecho
jurídico”, “fuente normativa”, etc.), lo que aquí se quiere enfatizar es que, si
además de olvidar esa condición nos ubicamos en contextos de absolutización
ideológica (como el que vivimos en este final de siglo XX y principio de siglo XXI),
nos encontraremos esos constructos en su forma invertida (generalmente
identificadas como –ismos diría BOURDIEU– cfr. (1999), p. 150-151). De esta
manera, no solo resultan estériles respecto de su utilidad y función práctica
(recordemos, con Orestano, que las elaboraciones jurídicas son para operar);
38
Norman José Solórzano Alfaro
luego, tampoco pueden dar cuenta de las innovaciones del/en el mundo, sino por
el contrario, tienden a imponerse como formas cuasi-sacralizadas e irrecusables
(naturalismo), que pesan como loza sobre cualquier pretensión de satisfacción de
necesidades concretas (peor si éstas se entienden como contrarias al status quo)
y operan como obstáculo al cambio societal.
III. De lo que Ocurre en Sede Axiológica Cuando se Establecen unas Tablas
de Valores: El Principio de Jerarquización.
Dadas las obvias limitaciones de espacio y oportunidad, y admitiendo la
diversidad de planos que podemos distinguir analíticamente en el discurso jurídico
(o bien, los distintos discursos sobre lo jurídico), en lo que sigue nos centraremos
en el plano axiológico 18. En este registro, es menester revisar, aunque sea
rápidamente, un aspecto en el cual convergen las diversas corrientes doctrinales
sobre el fenómeno axiológico, y es que todas (o casi todas) se plantean el asunto
de las escalas o tablas en que aparece dispuesto el conjunto de los valores
(orden jerárquico).
Ese conjunto de valores “[h]abitualmente, están unidos en “tablas”
o “escalas” de valores y existen situaciones en que los valores
concretos pueden ser los mismos, idénticos, pero dispuestos de
manera diferente –gradualmente- en cada “tabla”, por lo que
sucede que, desde su posición relativa, unos adquieren relieve
respecto a otros” (ORESTANO, p. 458 –los entrecomillados son
del origina). Esto puede ser recibido sin mayor problema; pero se
complica cuando, con una visión exclusivamente oposicional (que
oculte su contraparte posicional) y desde la perspectiva de una
racionalidad instrumental, se considera la relación entre los
valores exclusivamente según el esquema medio – fin. También
aparece oscurecida la cuestión cuando se habla de una supuesta
contradicción entre valores, en virtud de la cual un valor
(considerado absoluto) debe ceder excluyentemente frente a otro
(igualmente considerado absoluto). Sin embargo, para todos los
efectos: (1) que orden jerárquico de los valores y contradicción de
valores sean cuestiones análogas tiene un efecto eminentemente
ideológico (en sentido de falsificador y oscurecedor), pues la
contradicción entre valores se da, si y solo si, se los toma en ese
presunto “carácter absoluto”, y, (2) siempre que bordeamos el
terreno de lo “absoluto” (ej., “valor absoluto”; “igualdad absoluta”;
18
“[S]e sabe muy bien, pero muchos siguen sin oír por este oído- ha prevalecido la tendencia a
considerar (o hacer ademán de considerar) la cuestión de los valores como extraña al interés del
jurista, de aquel que quiera ser “verdadero” jurista, en una concepción cada vez más inhibida e
inhibidora de sus tareas” ORESTANO, p. 458 –el entrecomillado es del original).
Derecho Moderno e Inversión Ideológica
39
“paz absoluta”; “libertad absoluta”; “justicia absoluta”, etc.), y lo
vemos o asumimos como aspiración a realizar, estamos en el
ámbito del idealismo, aunque ello no se quiera reconocer y se
pretenda ocultarlo de mil formas. De ahí que, por nuestra parte,
desde una perspectiva de la realidad histórica, no nos ocupamos
de esas cuestiones.
La cuestión radica en la disposición (jerarquía) de los valores en el universo
axiológico. En todo caso, si se lo quiere ver desde la óptica de la relación medio –
fin, si un valor deviene medio para alcanzar otro valor, éste último se constituye
como fin y, por tanto, en valor superior respecto del primero; pero ambos valores
ocuparán siempre un lugar en esa disposición jerárquica. Además, sucesivamente
se podrá establecer unas cadenas medio – fin más o menos largas, más o menos
complejas, en las cuales unas veces un valor aparecerá como medio y otras como
fin y, por ende, como superior respecto de aquel que le sirve de medio, todo de
conformidad con cada corriente doctrinal. Esto es así aún cuando cada corriente
doctrinal, a su vez, considere superior uno u otro valor.
Esta relación de mutua dependencia y alternancia entre unos
valores y otros está dada por la insuprimible respectividad de cada
valor y de todos entre sí, de modo que aún desde la perspectiva
medio – fin, para que haya un valor superior debe haber un valor
subordinado y a la inversa; por eso mismo, en términos de escala
jerárquica, no puede haber valores excluidos (podrán ser
desplazados, postergados, minusvalorados, etc., pero no
eliminados: exclusión hoy día, cuando ya no hay un afuera del
sistema, significa eliminación), sino que todos deben tener una
posición, de lo contrario el sistema deviene absurdo: un valor
exclusivo, único, que haga caso omiso de su respectividad (lo que
de todos modos es irrelevante para que sea igualmente en
respectividad), no es valor sino prepotencia.
De esta forma, si nos atenemos a las opiniones doctrinarias mayoritarias,
se establece siempre una jerarquización (tablas de valor) entre los diversos
valores en juego; jerarquización que –esto no es menos importante- siempre es
convencional y funcional al contexto en que se inscribe la doctrina o tendencia en
cuestión 19, y cuyo principio ordenador (juicio normativo: conforme al cual...) se
establece a partir de una decisión 20 sobre cuál es el valor fundamental. Luego,
19
Esto es cierto inclusive para las tendencias objetivistas, dentro de las cuales unas priman unos
valores frente a otros, y todas alegando que son valores en sí, ontológicamente consistentes, pero
cada una con su propia tabla de valores.
20
No se trata de un decisionismo cognitivo-individualista, por el cual los individuos conocen y
deciden; se trata más de un accionar moral (universal) en tanto que dato incorporado en los
sujetos por el contexto socio-cultural histórico.
40
Norman José Solórzano Alfaro
éste valor fundamental es el que opera como principio de jerarquización 21; a partir
y en función de éste principio de jerarquización todos los demás valores,
subordinados y en distinto grado de cercanía a él, adquieren validez. En el ámbito
pragmático, la misma vigencia de los valores individualizados o específicos (ej.,
igualdad, belleza, libertad, honestidad, solidaridad, eficiencia, etc.) estará dada
por la coherencia y funcionalidad respecto a la manutención del valor fundamental
cualquiera que éste sea.
Así,
por
ejemplo,
respecto
a
la
argumentación
kelseniana 22,
específicamente vista, podemos arriesgar la consideración de que, por una
pretensión (no menos válida por excesiva) analítica y antimetafísica, no sólo
asume los valores en su aspecto semántico y meramente conceptual, sino que
desplaza la discusión axiológica del punto de mira teórico, obviando el contexto
de producción de la misma teoría, por tanto, obvia el problema del fundamento de
los valores, del derecho objetivo o positivo, de los derechos humanos, etc. De
esta forma, la teoría deviene infundada, pero no por faltarle un fundamento
teológico, metafísico o racional (un prius, como era la pretensión de los
iusnaturalismos escolástico, metafísico o racionalista), sino porque tiene los pies
de barro; es decir, porque se construye en abstracto (que es distinto a construir
abstractamente a partir de), con aparente 23 prescindencia de una praxis, que es
su punto de partida (como realidad que le trasciende), su camino y su punto de
llegada (como empiría en cuanto realidad trascendente a que se accede mediante
21
La intuición de este principio de jerarquización rompe con las tesis sustancialistas u
ontologicistas, pues evidencia que cada orden jerárquico, cada tabla de valores, no es
ontológicamente fija, inmutable, sino que también proceden de una acción humana, uma
convención (como convención es el lenguaje que se utiliza para referirse a ella y para expresarla).
22
Es llamativo el hecho de que, por ejemplo, Kelsen aplica dos raseros distintos para los valores.
Respecto de los valores de justicia admite que hay una contradicción entre unos y otros; pero
respecto de los denominados por él valores objetivos o juicios de valor jurídico, aquellos que
expresan la relación entre una conducta y una norma general, aún cuando sostiene su
jerarquización, no detecta ninguna contradicción. “Los juicios de valor jurídicos presentan una
estratificación que corresponde a la de las normas jurídicas. Dado que cualquier juicio de valor
jurídico expresa una relación entre una conducta humana y una norma jurídica, estos juicios
forman un sistema que presenta la misma estructura que el sistema de normas jurídicas” (cfr.
KELSEN, Hans (1991), ¿Qué es justicia? (título original What is Justice? Justice, Law, and Politics
in the mirror of Science, University of California Press, Berkeley, 1971, trad. de Albert Calsamiglia),
Ariel, Barcelona p. 141). Lo cierto es que aun cuando él ve una jerarquización, se ciega al principio
que la opera y la ve como un automatismo reflejo; eso sí, a cuenta de no admitir la absolutización
de los valores jurídicos, pero sí los de justicia, cosa que no termina por explicar adecuadamente.
23
Decimos aparente, porque ni aún cuando ingenuamente se pretenda hacerlo así, opera de esa
forma, por lo cual su pureza y asepsia valorativa deviene en ideología, en ocultamiento de la
realidad y falseamiento de la teoría misma.
Derecho Moderno e Inversión Ideológica
41
conceptos universales, para actuar). Consiguientemente, procediendo de esa
forma:
1. se llega a despojar a los derechos humanos de su condición de
modos de vida (dimensión práctica en la que adquieren pertinencia
los valores) y se los reduce a meras cuestiones valóricas;
2. se transforman las diferencias entre un valor y otro en oposiciones
irreductibles 24 según el esquematismo bien – mal 25,
3. que se traduce en la secuencia amigo – enemigo como estrategia de
la inversión ideológica de los derechos humanos.
***
Volviendo a un registro más amplio, ubicarnos en esta dimensión
axiológica, como lugar privilegiado (pero no exclusivo ni suficiente), para afrontar
el problema de los derechos humanos, resulta útil no sólo porque facilita la
comprensión de derechos humanos como horizonte utópico, lo cual apunta al
corazón del derecho como valor, sino porque nos revela el mecanismo que activa
su inversión ideológica.
En ese sentido, si trasladamos el esquema que traza el principio de
jerarquización en el conjunto de los valores al campo de los (discursos sobre)
derechos humanos tenemos que las opiniones más consolidadas sostienen que
las normas conforme a modelos [valores: NJSA] de Justicia varían entre los
individuos y a menudo son mutuamente irreconciliables (KELSEN (1991), p. 149),
o bien, que los “derechos del hombre” en la medida que encarnan valores
antinómicos no pueden realizarse todos a la misma vez, sino que [p]ara
realizarlos se necesitan concesiones entre las partes (BOBBIO (1991), p.56).
Asimismo, el hecho de que coexistan valores distintos y contrapuestos,
hace que aparezcan los sistemas de valores.
24
El mismo Norberto BOBBIO lo confirma: “Los valores últimos, además, son antinómicos, no
pueden realizarse todos a la vez” (cfr. (1991), El tiempo de los derechos, Sistema, Madrid, p. 56).
25
Podemos decir que esta inversión ya la veía BOBBIO cuando afirmaba: “El fundamento último
no es ulteriormente discutible, así como el poder último debe ser obedecido sin discusión. Quienes
resisten al primero se colocan fuera de la comunidad de las personas racionales, y los que se
rebelan frente al segundo se colocan fuera de la comunidad de las personas justas o buenas”
((1991), p. 54); pero lo cierto es que tampoco llevó ese argumento a su misma reflexión y, de
alguna manera, terminó deslizándose por el antiutopismo irreflexivo.
42
Norman José Solórzano Alfaro
Cualquier sistema de valores, especialmente un sistema de
valores morales y la idea central de Justicia que lo caracteriza, es
un fenómeno social que resulta de una sociedad y, por tanto,
difiere según la naturaleza de la sociedad en que se presenta
(KELSEN (1991), p. 42).
Por consiguiente, todo sistema de valores tiene una “idea central (...) que lo
caracteriza”; un valor supremo que le da sentido y orden; este es su principio de
jerarquización que, tratándose de derechos ‘conforme a modelos de Justicia’”
(Kelsen), se constituye entonces en el derecho fundamental a partir del cual se
establecen todos los demás derechos 26. En esa medida, como cada derecho
humano específicamente considerado adquiere validez y significación según su
posición respecto del derecho fundamental, su propia realización está
determinada por su funcionalidad respecto a la realización y preservación de ese
derecho fundamental. Luego, es posible que la realización de (acciones conforme
a) unos derechos humanos se vean postergados frente a otros, inclusive la
realización de todos ellos frente al derecho fundamental, toda vez que la
realización de aquellos derechos humanos contraríe o ponga en peligro (en
realidad, que cuestione) el derecho fundamental establecido. Por ejemplo, si
admitiéramos que el valor fundamental en una determinada sociedad es el orden
y la paz sociales (lo cual sólo ocurre en los modelos abstractos, como suelen ser
los jurídicos), entonces, frente a una situación de inestabilidad política y desorden
social, se privilegiarán los valores de seguridad frente a – digamos- los de
libertad.
En este punto, donde se puede postergar unos derechos humanos frente a
otros y todos frente al derecho fundamental, que es su principio de jerarquización,
es donde se instala y opera la inversión ideológica de los derechos humanos: en
tanto que hay unos derechos humanos que pueden ser relegados, hasta su
negación, si su realización atenta contra el derecho fundamental que, en última
26
Adviértase que la expresión “derecho fundamental” no está calcada del uso común en el campo
jurídico, como aquel valor positivamente plasmado en un texto formal (legislativo, constitucional,
internacional); tampoco es directamente equiparable al sentido que le da Ferrajoli a ese término
(cfr. FERRAJOLI (1999) y et al. (2001), Los fundamentos de los derechos fundamentales, Trotta,
Madrid). Mas bien, “derecho fundamental” aquí aparece referido al valor-interés que prima sobre
todos los otros, les da consistencia y opera como su principio de jerarquización; en la medida que
esta primacía no es natural, sino histórica, aparece la exigencia de elucidar constantemente cuál
sea el valor-interés fundamental en cada formación socio-cultural conforme a derecho.
Derecho Moderno e Inversión Ideológica
43
instancia, es el que les da sentido y validez 27.
Llevemos eso al plano pragmático. Así, tenemos que cualquier decisión
sobre cuál ha de ser el derecho fundamental siempre aparece circunscrita y
vinculada a un determinado contexto social, político, económico, cultural, en fin,
histórico. Aún más, esa decisión-elección no sólo está vinculada a un determinado
modo de organización de la vida social, es decir, a un determinado orden de
relaciones de producción y reproducción sociales, sino que las condiciones de
factibilidad para la realización de los derechos humanos están dadas por la
medida del producto social, por la riqueza social real generada por/en ese orden
de relaciones de producción. Por consiguiente, la contingencia de esa decisión
(referida tanto a la elección del derecho fundamental, cuanto al modo de
satisfacción-realización de éste) afecta igualmente a todos los derechos humanos
que dependen de aquel derecho fundamental. Asimismo, el derecho fundamental
que en definitiva habrá que proteger, inclusive como garantía de validez y
realización de todos los demás derechos humanos, será aquello que garantice la
realización de (acciones conforme a) derechos humanos. En el modelo abstracto
–insisto en este carácter de abstracto– del ejemplo anterior, sería el orden y la
paz sociales como posibilidad y garantía de las libertades individuales y sociales;
en el plano real, más bien se trata del orden de relaciones de producción y
reproducción que generan aquel producto social.
Por
consiguiente,
en
la
medida
que
las
llamadas
“democracias
occidentales” están vinculadas a un sistema económico específico 28, entonces
podemos ver cual es el valor-interés fundamental que pretende 29 garantizar todos
los derechos humanos: las relaciones capitalistas de producción y, en último
término, el mercado capitalista. Esto lo dice tanto la teoría económica cuanto la
teoría jurídica que con su construcción de la idea del “sujeto de derecho” o
27
Definitivamente, es una forma diferente y novedosa de intentar responder a la pregunta de por
qué no se ha configurado un sistema de garantías efectivas para la realización de los derechos
sociales o colectivos, como sí se ha hecho respecto de los derechos individuales.
28
Finisecularmente se trata del capitalismo financiero y de consumo de masas.
29
Debemos tener en cuenta que esta pretensión no es sólo la de arrogarse la condición de
garantía de los derechos humanos, sino que alcanza a la propia definición y elección de lo que se
considera derechos humanos. Luego, también podemos entender como, en la arrogancia de las
ilusiones del poder neoimperialista, por ejemplo, son derechos humanos los intereses de las
compañías petroleras afines a ese poder neoimperial implicadas en las zonas del Golfo Pérsico y
del Mar Caspio, no así las personas humanas que puedan ser masacradas con tal de asegurar la
libertad (de acción) de tales empresas en esas regiones.
44
Norman José Solórzano Alfaro
“persona jurídica” ha hecho un desplazamiento del cuerpo humano viviente y con
necesidades, hacia la idea de un sujeto abstracto, con abstracta igualdad, es
decir, sin necesidades por satisfacer. Esta subjetividad (sin sujeto) plasma
adecuadamente, para la teoría económica imperante o neoliberal, en la idea del
individuo consumidor, y para la teoría jurídica en el cuerpo de la empresa
(capitalista) moderna.
***
Por otra parte, hay una tendencia muy humana de pretender fijar de una
vez y para siempre las diversas concreciones históricas (normas, instituciones,
costumbres, formas de organización, etc.). En lo que llevamos visto, esa
tendencia trataría de fijar de forma permanente los particulares órdenes de las
relaciones sociales de producción y reproducción de la vida, aún a cuenta de
descontextualizarlas; esto deriva en la pretensión de absolutizar los resultados de
la acción (humana), que es siempre coyuntural, contextual. Por consiguiente, la
inversión ideológica aparece como producto de la contingencia histórica, o bien,
de una manera más radical, la inversión es la forma que adquiere la contingencia
histórica cuando una de las concreciones o realizaciones de la acción humana se
ha estabilizado o institucionalizado y tiende a absolutizarse frente a otras posibles
concreciones a las cuales declara inválidas o, más radicalmente, imposibles (cfr.
HINKELAMMERT (I-1990), p. 27).
No obstante, esto no significa que esa inversión sea necesaria, pues esto
ya supondría una apuesta, una toma de posición, en fin, una valoración. Es decir,
la inversión ideológica aparece, si y solo si, se pretende absolutizar una
concreción histórica específica de la acción humana (también específicamente
orientada). Por eso, en la medida que se puedan interpelar, revisar, criticar,
denunciar, y, en definitiva, superar las concreciones históricas, del tipo que sean
(instituciones, normas, etc.), es que recién podemos enfrentar esa inversión
ideológica. Esto es, actuar conforme a los principios de secularización
(contingencia) y democrático (la duda). Todavía más, en el intersticio que abre
esta posibilidad se instala un espacio para la libertad 30.
30
En un sentido similar, cfr. BOURDIEU (1999), p. 309-312.
Derecho Moderno e Inversión Ideológica
45
IV. De Porqué es Relevante Elucidar la Inversión Ideológica de los Derechos
Humanos.
Antes de continuar debo hacer dos advertencias: la primera es que
“derechos humanos”, en cuanto núcleo axiológico que atienda a la producción,
reproducción y desarrollo de la vida (dignificación), puede ser rastreado en
múltiples tradiciones culturales, incluso aquellas que no hayan adoptado o
producido la forma jurídica (derecho), cosa de gran relevancia a ser tenida en
cuenta en el diálogo intercultural. Sin embargo, aquí dirigimos la mirada hacia las
tradiciones jurídicas que han venido a darle una forma jurídica a dicho núcleo
axiológico, y que actualmente comprendemos de manera amplia con el sintagma
“derechos humanos”; así, en los siglos XVII-XVIII adquiría la forma de derechos
naturales; posterior a las revoluciones burguesas fueron teorizados jurídicamente
como derechos individuales inalienables e imprescriptibles, y actualmente se
presentan objetiva o positivamente como derechos fundamentales universales e
indisponibles.
La segunda advertencia trata de nuestra separación de la mayoría
de las consideraciones contemporáneas predominantes sobre la
democracia, que son fundamentalmente de corte instrumental o
procedimental. Esas teorías contemporáneas ven la democracia
casi exclusivamente como “... un método de decisión (...) basado
en la representación y el sufragio universal” 31.
Por nuestra parte, nos inclinamos por una consideración de la democracia
con contenido o material, del tipo de las teorías clásicas (Locke; Rousseau; MarxLenin), todas las cuales
... tienen en común el hecho de que no discuten acerca de
mecanismos electorales, aunque todas suponen su existencia.
Ninguna declara la decisión mayoritaria, ni siquiera la decisión
unánime, como legítima de por sí. Todas se dedican más bien a la
elaboración de criterios que permitan juzgar las decisiones
democráticas en cuanto a sus resultados, estableciendo, por
tanto, elementos de juicio para determinar hasta qué grado las
decisiones mayoritarias son efectivamente decisiones válidas o
descartables (HINKELAMMERT (II-1990), p. 134).
31
PINTORE, Ana (2001), “Derechos insaciables” en supra citado FERRAJOLI et al. (2001), Los
fundamentos de los derechos fundamentales, Trotta, Madrid, p. 247; en adelante sólo se hará la
referencia de la autora.
46
Norman José Solórzano Alfaro
Por otra parte, posiciones como la que adopta Ana PINTORE en la
polémica con Ferrajoli, no sólo admiten sino que enfatizan ese sentido
instrumental, sobre el reclamo de que
... el significado léxico de la expresión “democracia” (...),
históricamente, siempre ha incorporado una referencia al “quién” y
al “cómo” decidir, por encima del “qué” decidir. En definitiva, más a
la idea del self-government que al contenido del government (p.
248 –las cursivas y los entrecomillados son del original).
Asimismo, la discusión sobre
... la tensión entre los dos elementos que coexisten en nuestras
democracias constitucionales: de un lado la presencia de un
núcleo de contenidos “indisponibles”, formulado en términos de
derechos fundamentales, y, de otro, la adopción de un método de
decisión (en lo que se refiere a las decisiones políticas generales)
basado en la representación y el sufragio universal (PINTORE, p.
247),
no es un producto original del estadio actual de esas “democracias
constitucionales”, sino que es el retorno de lo reprimido en la consideración de la
democracia dominante en el siglo XX, que desde Schumpeter (Capitalism,
Socialism and Democracy, 1943) la ha visto sólo, o preponderantemente, como
método de decisión, escamoteando de su genealogía y proceso de construcción
el elemento material o sustancial que le daba sentido (cfr. HINKELAMMERT (II1990), p. 134, en particular la nota 1).
Advertido lo anterior, en perspectiva filosófico-política y ético-política, según
esas teorías clásicas de la democracia (Hinkelammert), derechos humanos, en
cuanto horizonte utópico 32 de los procesos de lucha por la emancipación, que
plasman en medios (discursivos, expresivos, normativos) 33, son el núcleo
32
Lo que puede ser pensado o imaginado (utopía), siempre deseado nunca realizado, y que
atraviesa transversalmente las realizaciones o concreciones históricas específicas. Por eso mismo
es, epistemológica y práxicamente hablando, principio de imposibilidad de la acción humana, que
en la elucidación de sus límites (lo que no puede ser hecho o realizado) descubre sus
posibilidades (lo que si puede ser hecho).
33
Para J. Herrera Flores “los derechos humanos deben ser definidos (...) como sistemas de
objetos (valores, normas instituciones) y sistema de acciones (prácticas sociales) que posibilitan la
apertura y la consolidación de espacios de lucha por la dignidad humana. Es decir, marcos de
relación que posibilitan alternativas y tienden a garantizar posibilidades de acción amplias en el
tiempo y en el espacio en aras de la consecución de los valores de la vida, de la libertad y de la
igualdad” (p. 52-53 –las cursivas son del original). Y más adelante concluye: “Los derechos
Derecho Moderno e Inversión Ideológica
47
axiológico básico del pacto democrático. No obstante, en las “democracias
avanzadas” (Ferrajoli) de la modernidad occidental capitalista, estos derechos
humanos han derivado en discurso de legitimación 34; en esa medida legitiman
unas determinadas relaciones sociales de producción y el orden socio-político
que, derivado de ellas, se auto-constituye en el garante de tales derechos
humanos (Hinkelammert).
Eso ocurre cuando se pasa de la consideración de derechos humanos
como medios a derechos humanos como fines, y estos como “fines absolutos”;
por esa vía siempre se llega a la ilusión de que se están protegiendo o realizando
tales fines. Es ilusión porque “fines absolutos” no se pueden realizar, pero si se
actúa con la creencia de que se está realizando “fines absolutos” ello bien puede
suponer o admitir que se desvirtúen y abuse de tales medios, en cuyo caso
estaríamos ante la violación hasta el aniquilamiento de los sujetos vivos respecto
de los cuales los derechos humanos son medios; pero llegados a este punto se
habrán convertido en fines que desplazan al (a los) sujeto(s) vivo(s). Por eso
sostenemos que tanto los derechos humanos como (los procedimientos formales
que constituyen) el orden socio-político que legitiman, están sometidos a la
contingencia histórica. En esa medida, derechos humanos siguen la suerte de la
conditio humana, por ende, no deben absolutizarse, pues si hubiera algo absoluto
lo sería, en todo caso, su necesidad de satisfacción 35, pero el modo de realizarlos
humanos son los medios discursivos, expresivos y normativos que pugnan por reinsertar a los
seres humanos en el circuito de [producción –NJSA] reproducción y mantenimiento de la vida,
permitiéndonos abrir espacios de lucha y de reivindicación” (HERRERA FLORES (2000), “Hacia
una visión compleja de los derechos humanos” en HERRERA FLORES, Joaquín ed., El vuelo de
Anteo. Derechos humanos y crítica de la razón liberal, Desclée de Brouwer, Bilbao, p. 78).
34
Sobre la ideología de aceptación, véase CAPELLA, Juan Ramón (1999), Fruta prohibida, Trotta,
Madrid, p. 46-47. Me apresuro a advertir que no por el hecho de que los poderes instituidos hayan
forzado hacia esta deriva legitimista –por llamarla de algún modo- vamos a desconocer el otro
hecho de que fuera del espacio colonizado por esos poderes, inclusive respecto de ellos mismos,
los derechos humanos son una fuerza reivindicativa y emancipadora, que guía muchas luchas y,
en general, al menos en estas democracias occidentales –que son las que conozco- marcan un
avance significativo en términos de dignificación de la vida, participación democrática, limitación de
la arbitrariedad, etc. Por eso, por cuenta y no a pesar de este lado emancipador, es que hay que
denunciar su inversión ideológica.
35
Esta necesidad de satisfacción está vinculada constitutivamente a la condición humana, que es
siempre una finitud que descubre su infinitud. Por eso, necesidad vinculada a la condición humana
no declara necesidades específicas, menos medios de satisfacción, sino que abre el espacio de la
vida y la acción a la contingencia, a su incompletitud que enfrenta imposibilidades, y recién a partir
de éstas puede descubrir y construir sus posibilidades infinitas. Es evidente que esta perspectiva
se aparta de las concepciones tradicionales, fragmentarias casi todas, que declaran necesidades y
establecen un catálogo: así, por ejemplo, hablan de necesidades básicas o primarias referidas a
las de tipo más estrictamente biologicista (las que mantienen la vida de los sujetos para que sigan
48
Norman José Solórzano Alfaro
es siempre contingente.
En ese sentido, derechos humanos son siempre horizonte utópico, por
ende, no debemos derivar (a) la ilusión de creer que realizamos derechos
humanos 36. Derechos humanos guían la acción humana, pero lo que realmente
hacemos son acciones concretas, específicas y múltiples, las cuales deben ser
juzgadas conforme a derechos humanos, pues ellas en sí no son derechos
humanos. Actuar bajo la ilusión de que nuestras acciones son o realizan derechos
humanos es coartar o inhibir la potencia re-flexiva o crítica que tienen los
derechos humanos; este es el pasaje para su absolutización, presto a ser
convertido vanamente por el poder en discurso de su propia legitimación. En
dicho pasaje está la inversión ideológica de los derechos humanos.
La acción humana en tanto que guiada por (realizada 37 conforme a)
derechos humanos se enfrenta a su principio de imposibilidad (la finitud de la
conditio humana), recién en ese momento es que tiene que atender a sus
condiciones de posibilidad (tecnológica) y de factibilidad (material, económica)38.
En consecuencia, se establece una relación transversal entre ese horizonte
utópico y la realización histórica de la acción. Esta es la conditio a que está
sometida la acción, y, si se quiere, también es su fuente de dinamicidad. No
obstante, esta relación transversal aparece negada, por ejemplo, por esa especie
de naturalismo que subyace en lo que FERRAJOLI ha denominado “falacia
siendo productivos) y necesidades secundarias (aquellas que elevan la condición de vida,
dignificándola, pero que se asumen, desde la perspectiva capitalista, como superfluas). Este tipo
tradicional de abordaje de las necesidades está muy presente en la discusión contemporánea por
derechos humanos, pero es algo que hay que superar so pena de tener siempre la visión muy
enturbiada y, en definitiva, opera como un obstáculo epistemológico para la imaginación de
alternativas.
36
Si aceptáramos que con unas determinadas acciones realizamos (unos) derechos humanos,
tendríamos que admitir que tales derechos humanos están acabados, son parte del pasado pues
ya están realizados y, cuando mucho, sólo cabría tratar de preservar las particulares formas o
concreciones producidas en ese realizar. En tal caso, por la primera parte, tendríamos que admitir
una inconsistencia en la postulación y reclamo constante por derechos humanos, pues éstos
aparecerían como ya realizados; esta es la puerta para la intolerancia y la agresividad que se
genera en nombre de los derechos humanos por parte de los poderes constituidos. Por la segunda
parte, sólo nos quedaría tomar el camino del formalismo abstractizante que entiende y se
conforma con la plasmación en un texto positivo de lo que en un particular momento histórico,
según unas condiciones y de acuerdo a una correlación de fuerzas, se determina que es derechos
humanos.
37
La insistencia parece necia por obvia, pero véase que lo que se realiza son acciones y no
derechos humanos.
38
Al respecto véanse HINKELAMMERT (I-1990), p. 231 ss.; DUSSEL,Enrique (1998), Ética de la
liberación en la edad de la globalización y la exclusión, Trotta, Madrid, p. 258-280.
Derecho Moderno e Inversión Ideológica
49
garantista” (cfr. (1995), p. 940-942), y que antes fuera puesta en evidencia por
Bobbio como ilusión iusnaturalista, cuando señalaba el postulado del racionalismo
ético conforme al cual “la demostrada racionalidad de un valor es condición no
sólo necesaria sino suficiente de su realización” (cfr. BOBBIO (I-1991), p. 60). Por
otro lado, se oculta por el uso ideológico de los derechos humanos, como ocurre
entre los poderes instituidos de las llamadas democracias occidentales. En ese
caso la relación transversal (conditio) resulta instrumentalizada o funcionalizada a
los fines de la legitimación de los poderes instituidos. Este proceso es análogo,
más bien, es parte del proceso de instrumentalización del ser humano por parte
del capitalismo, toda vez que la pretendida lógica (irracional) del capital
desconoce la conditio humana.
De esta forma, hemos señalado el lugar (locus) donde se establece la
inversión ideológica; nos corresponde ahora señalar el tiempo (tempus) en que
ella aparece.
***
Una vez que los poderes instituidos 39 han conformado un orden sociopolítico, que pretende preservar unas determinadas relaciones de producción,
tienden a absolutizarse y tienen la pretensión de clausurar cualquier vía para la
emergencia de nuevos poderes. Es la secuencia del poder absoluto e irresistible
de Hobbes; o del Espíritu Absoluto e incontestable de Hegel, o de cualquier otro
tipo de absolutismo. Pero, no obstante su ansia de absoluto, la contingencia los
acecha y les impone su impronta. Veamos.
En el contexto de las democracias occidentales capitalistas, el poder
instituido funda su legitimidad en la pretensión de realizar derechos humanos; sea
39
Hoy poderes instituidos que ayer, no más, fueron luchas por emancipaciones específicas. Toda
lucha emancipadora es específica aunque su fundamento sea universal; esto es algo que no se
debiera olvidar, pero es lo que más prontamente parecen olvidar los/las “creyentes”, “guerreros/as”
y “luchadores/as” por la libertad, la igualdad, la justicia, la tolerancia, etc., al punto que la
desmemoria y el olvido se llegan a utilizar como herramienta de control y desactivación de las
(otras) luchas (que no sean las suyas). Así, una vez logrado el propósito específico (que aquella
lucha plasmara en reconocimiento), se tiende a cerrar el paso, cual Moisés ordenando cerrar el
paso por el mar, para que nadie más use ese camino, en definitiva, para no compartir el espacio
socio-histórico. ¿Paradoja de la historia, inevitabilidad de la inversión si...? Quizá, pero nunca
necesidad.
50
Norman José Solórzano Alfaro
como fuere, eso es lo que les da el grado de legitimidad a sus decisiones
mayoritarias (cfr. HINKELAMMERT (II-1990), p. 133 ss.). Mas hemos señalado
que derechos humanos no se pueden realizar (por su carácter utópico), lo cual
tiene un valor cognitivo y práctico, pues recién a partir de ahí se sabe lo que sí se
puede realizar o se valora lo que efectivamente se realiza. Eso hace que los
derechos humanos denuncien o sean un parámetro para determinar el grado de
ilegitimidad de los poderes instituidos, ya que evidencian la incapacidad de
éstos 40 para satisfacer condiciones para la realización de acciones conforme a
derechos humanos. De ahí que cualquier exigencia de cumplimiento de derechos
humanos, en tanto que exigencia de realizar acciones conforme a derechos
humanos, es mostrar o denunciar esa incapacidad de los poderes instituidos, por
ende, constituye una crítica de su (i)legitimidad 41.
Pero, en la medida que con el reclamo por acciones conforme a derechos
humanos se está denunciando la ilegitimidad de los poderes instituidos, y éstos
fundan su legitimidad en la pretensión de realizar derechos humanos; entonces,
recién en ese momento se pone 42 el argumento de que el sujeto (particular o
colectivo) que demande esas acciones está en contra de la “garantía” 43 de
realización de los derechos humanos. Aparece así el crimen ideológico como
crimen objetivo, que se vincula con la imagen de opositor como enemigo (cfr.
HINKELAMMERT (II-1990), p. 141).
Por consiguiente, esos poderes se vuelven contra el sujeto que reclama
derechos humanos y, en razón de la relación amigo – enemigo, lo sataniza como
40
De sus instituciones y, en general, de sus mediaciones (discursivas, expresivas, normativas,
etc.), siempre históricas, contingentes, pero que por obra de la esclerotización burocrática se
presentan como cuasi-naturales.
41
En este punto, buscando la convergencia con Ferrajoli, podemos instalar la crítica de las
lagunas, como denuncia de la ilegitimidad del poder estatal que incumple acciones a las que está
obligado (deberes).
42
Ni siquiera se ex-pone, sino que es una puesta en escena, es un acto positivo con pretensión de
inapelabilidad (¡como la ley!), pues traduce y pone en acción todo el poder sacralizante que
reclaman los poderes instituidos.
43
Los poderes instituidos se auto-proclaman como la garantía de cumplimiento de todos los
deseos y aspiraciones de los sujetos que les están sometidos; por ese motivo los sujetos ya no
tienen deseos y aspiraciones propias, sino que las “suyas” son las del poder (el “amor de la
censura” –cfr. LEGENDRE, Pierre (1979), El amor del censor. Ensayo sobre el orden dogmático
(título original L´amour du censeur. Essai sur l´ordre dogmatique, Editions du Seuil, Paris, 1974,
trad. de Marta Giacomino), Anagrama, Barcelona) y esto facilita la “muerte de todo deseo de vida”
(cfr. IBÁÑEZ, Jesús (1986), Más allá de la Sociología. El grupo de discusión: técnica y crítica,
Siglo XIX, Madrid, 2° ed.). Por esta vía se da la colonización de los cuerpos, proyecto y estrategia
de un poder incorpóreo que quiere dejar su marca e imponer su imperio.
Derecho Moderno e Inversión Ideológica
51
enemigo de los derechos humanos y de las instituciones y medios que pretenden
garantizar la realización de derechos humanos. En definitiva, en nombre de los
derechos humanos, es decir, por su inversión ideológica, los poderes instituidos
se pretenden legitimados para contrarrestar cualquier acción que los deslegitime
(crítica), aunque ello signifique desconocer todos los derechos humanos del
sujeto (particular o colectivo) que demande la realización de acciones conforme a
derechos humanos.
Esta secuencia de la inversión ideológica se puede entender
mejor si nos ubicamos en el contexto del mero “Estado de
derecho” tradicional, en el que el derecho se reduce a derecho
estatal; “orden legítimo” se identifica exclusivamente con estado, y
se confunden estado y derecho. Así, una crítica por “falta de
derecho” (laguna), por una falacia de composición (se toma la
parte por el todo) se traduce como crítica al estado, por ende,
como ataque contra el estado que se autolegitima para declarar
una guerra (cualquier guerra). Por eso, si el estado es el único que
puede garantizar el “cumplimiento” y “realización” de los derechos,
el sujeto crítico no puede pretender obtener satisfacción a sus
demandas si se convierte en enemigo del estado; más bien, éste
último podrá volverse contra aquél con toda su fuerza, hasta su
eliminación física (y metafísica: más allá de la muerte, el olvido).
Por otra parte, en tiempos de euforia neoliberal (tiempos y
contextos de globalización) vemos como el estado vuelve a ser
“estado gendarme”, peor aún, “estado castrense”, cuidador de los
intereses de las empresas y la libertad de los mercados; en cuanto
defensor de las burocracias privadas (ej., empresas
transnacionales), el estado deviene “neutral”, sin intereses
propios, se clausura la agenda política y se estatuye una agenda
económica según las exigencias de esas burocracias privadas.
Esto da una idea de como la promesa de la emancipación por la razón se
ha ido diluyendo y en un proceso de inversión ideológica, que surge a la par y
correlativo a la institucionalización de las concreciones históricas de la misma
emancipación, puede terminar por crear una nueva dominación 44. Las
emancipaciones y todo esfuerzo a ellas dirigidas resultan culpables de atentar
contra alguna emancipación anterior ya institucionalizada (poder), por eso deben
ser reprimidas o castigadas, inclusive hasta el límite de su aniquilación total. Esta
44
Sobre la legitimación y los tribunales o instancias que controlan el poder definitorio, véase
BOURDIEU (2000); para el caso particular de las ciencias, que son la otra cara del proceso
descrito, también de Michel SERRES (1991), el exquisito “Prefacio que invita al lector a no
descuidar su lectura para penetrar en la intención de los autores y comprender la disposición de
este libro” en SERRES et. al. (1991), Historia de las ciencias, Cátedra, Madrid, particularmente p.
18.
52
Norman José Solórzano Alfaro
anti-dinámica parece que opera un dispositivo de cierre o clausura de la historia,
casi de manera circular; por eso hay que ver los márgenes y desde los márgenes
(históricos), pues éstos son los que posibilitan tanto el no-cierre de la historia,
como los ensayos para enfrentar la destructividad de los efectos indirectos de la
acción directa (de los poderes instituidos principalmente, pero también de los
emergentes), que por virtud de los procesos de inversión ideológica han quedado
desplazados en las concepciones imperantes (eje., económica, politológica, etc.)
como efectos colaterales, o, simplemente ocultados al invisibilizarlos en una
fragmentaria relación medio – fin.
***
Para hacer una parada provisional. Hasta aquí hemos afirmado la
relevancia teórica de la elucidación de la inversión ideológica, en el sentido de
que tal inversión y su ocultamiento resulta un obstáculo epistemológico para
imaginar soluciones alternativas posibles, lo cual ocurre toda vez que los
conceptos tienden, o más propiamente, nuestro imaginario jurídico tiende a
considerar sus conceptos como cosas naturales, objetivos, deshistorizados y
descontextualizados. Pero también tiene una notable relevancia práctica
(pertinencia), pues sabemos que mantener oculta esa inversión resulta un
obstáculo para realizar la hermenéutica (que se) precisa de la norma particular en
el contexto del ordenamiento jurídico (y más allá: de la realidad jurídica).
Esto podría dar la impresión de que, de esta forma, terminamos recayendo
en uno de los vicios criticados, la reducción, en último caso, del derecho a la
esfera estatal (habida cuenta de que la jurisdicción está monopolizada en el
Estado de derecho). Sin embargo, ni es lo cierto que toda jurisdicción está
monopolizada por el estado, habida cuenta de la internacionalización de la justicia
(tercera tesis de Ferrajoli), por un lado, sobre todo para las cuestiones relativas a
los derechos humanos, y por otro lado, dada la creciente descentralización y
desgajamiento de funciones jurisdiccionales en órganos, algunos estatales y otros
no estatales (ejemplo, las estrategias de “resolución alternativa de conflictos”
pueden estar en manos de unos y otros). Inclusive el argumento de que, en
definitiva, esos órganos alternativos, la misma justicia internacional, está
Derecho Moderno e Inversión Ideológica
53
supeditada a una decisión estatal legislativa que los apruebe o instituya un marco
de acción (ej., la aceptación de la jurisdicción internacional), con lo cual el recurso
al argumento constitucional terminaría enclavado en la visión estatalista, podría
ser contra-argumentado diciendo que igualar el acto legislativo al acto
constitucional (siendo este último sólo un tipo especial o calificado de aquel) es
desconocer una diferencia (formal y sustancial) dada, sobre todo, por la
adscripción o vinculación estructural del constitucionalismo a la democracia
(segunda y tercera tesis de Ferrajoli). En todo caso, aceptar ese argumento sería
como suponer que, por ejemplo, por el mero hecho de que la constitución o la
misma legislación ordinaria puedan hacen referencia a “la realidad nacional” toda
la realidad quedaría, por ese motivo, juridificada.
54
Norman José Solórzano Alfaro
Derechos Discriminados y Olvidados *
Helio Gallardo
Sumario: Presentación. 1. Referentes Sociohistóricos de Derechos
Humanos. 2. Integralidad de los Derechos. 3. Derechos Humanos como
Propuesta Política y Moral. 4. Derechos Humanos y Sociohistoria.
Referências Bibliográficas.
Presentación
Cuando se habla de derechos humanos resulta siempre oportuno recordar
la perspectiva desde la que se los enfoca. Existe un exceso de complejo ruido
académico, diplomático y político sobre ellos como para imaginar que la
expresión, por sí misma tampoco unívoca, “derechos humanos”, tiene valor y
significado universales indisputables. Para el caso que nos ocupa, consideramos
que el desafío más grande e intenso en el campo de derechos humanos es la
distancia que existe, que hemos socialmente producido, y que algunos consideran
abismo, entre el discurso que los afirma, la norma jurídica que los reconoce y su
cumplimiento efectivo. Esta brecha se ve reforzada por la distancia que también
existe entre la voluntad de sentirnos individualmente cada uno de nosotros dotado
de derechos y capacidades, y la indiferencia, cuando no hostilidad, por el
compromiso y la responsabilidad que cada de uno de nosotros, cada cual, tiene
en la configuración, consolidación y continuidad de un ethos o sensibilidad
sociocultural que haga de derechos humanos un reclamo persistente y un
componente o factor fundamental de las políticas públicas y de los
comportamientos privados... ¡En el año 2002 no somos todavía, y quizás ni
siquiera nos encaminamos, a ser luchadores firmes, irreversibles, por una cultura
de derechos humanos, nacional e internacional! Las pugnas, tropiezos y reservas
acerca del establecimiento de una Corte Penal Internacional de Derechos
Humanos, con alcance fragmentario circunscrito a derechos básicos, o sea para
sancionar a los que se considera ‘tradicionalmente’ delitos de “lesa humanidad”,
con jurisdicción y competencia muy limitadas, constituyen un signo dramático de
*
Discusión presentada en el Primer Encuentro de Procuradores y Presidentes de Consejos
Estatales de Derechos Humanos, Región Oeste, México, Guanajuato, septiembre del 2002.
estas brechas e indiferencia relativas. Y también resalta una circunstancia que
quizás nos sirva de advertencia. Son las economías y Estados más poderosos,
los líderes de los países más poderosos quienes desconfían de las instituciones
que permitirían avanzar hacia una cultura, o sea hacia un moral, planetaria,
aunque sin imperialismos, de derechos humanos. Son estos dirigentes quienes no
desean, o tal vez no pueden, ejercer un liderazgo que forma parte de su
responsabilidad política. Y nosotros carecemos también de vigor organizado para
exigírsela.
El signo que señalo dice: quizás la manera como constituimos hoy el poder,
la capacidad de su ejercicio, no favorece una cultura de derechos humanos, que
es
una
cultura
de
reconocimiento
y
acompañamiento
humanos,
de
empoderamiento de capacidades humanas, de libertades humanas, o sea de
autónoma producción de contextos humanos de opción. Y también este signo dice
que es posible advertir una indiferencia social hacia la necesidad de producir
estos contextos. Para mucha gente todavía ‘derechos humanos’ es un reclamo
individual o, socialmente, en especial para los más empobrecidos socioeconómica
y culturalmente, un difuso horizonte de esperanza, pero no una lucha política
permanente.
Abismo entre lo que se dice y lo que se practica. Distancia entre
compromiso social y reclamo de derechos. Cinismo e impunidad entre la
constitución de poderes y sus ejercicios y el reconocimiento y cumplimiento de las
libertades y capacidades asociadas de cada cual y de cada pueblo. Insuficiente y
magro compromiso político con una cultura de derechos humanos. Ausencia de
un movimiento social de derechos humanos. Estos son los criterios básicos, todos
ellos ofrecidos a la discusión, desde los que quiero realizar algunas
observaciones sobre derechos discriminados y relegados, derechos olvidados,
derechos económicos, sociales y culturales. Y les agradezco me permitan hacerlo
entre ustedes, muchos de los cuales están hoy en funciones de ejercicio, a veces
asediado, del poder.
También deseo aprovechar esta oportunidad privilegiada que nos reúne en
León, Guanajuato, para indicar que el reciente retiro de México del Tratado
Interamericano de Asistencia Recíproca (TIAR) y la voluntad de su política
exterior para construir paz social y humana mediante compromisos y medidas de
56
Helio Gallardo
promoción económica, cultural y política, que buscan que la gente se torne cada
vez más deseosa de autoestima legítima y más responsable por su existencia y
por su capacidad de incidencia pública, sin recurrir, o al menos sin privilegiar, la
fuerza de las armas militares, de la violencia abierta, es un paso simbólico y
también efectivo hacia una eventual cultura de derechos humanos en América
Latina. Ojalá más países y gobiernos lo imiten. Un reconocimiento, pues, con
independencia de banderías, al Gobierno y al pueblo de México.
¡Y cuánta distancia cultural y política entre este signo y la voluntad actual
de algunos dirigentes para llevar a cabo una escalada de exterminio en Colombia
cobijándola con los mantos de derechos humanos y de la guerra contra el
terrorismo y el narcoterrorismo!
1. Referentes Sociohistóricos de Derechos Humanos
Es evidente que si existen derechos humanos bautizados como
económicos, sociales y culturales, es porque existen otros derechos humanos. Y
efectivamente, los hay.
Estos
‘otros’
derechos
son
los
derechos
fundamentales
de
los
individuos/personas, o de los individuos/ciudadanos, según sea la doctrina jurídica
que los afirma, y los políticos, determinados por sus capacidades cívicas.
También están los derechos de los pueblos, como el reconocimiento de la
capacidad de éstos para la autodeterminación, y para su independencia
económica y política. Y, desde luego, para construir su identidad nacional. Estos
derechos son los que se llaman de primera y tercera generación. Entre ellos, los
de segunda generación, los económicos, sociales y culturales. Más recientemente
se habla, para denunciarlos como aberraciones o para afirmarlos, de los derechos
de las generaciones futuras en una doble dimensión: bioética, que hace referencia
principalmente al impacto de la manipulación genética que permiten hoy las
tecnologías de punta en los futuros seres humanos y sus hábitats, y a los desafíos
ambientales, es decir a la necesidad de establecer modelos económicos y
sociales sustentables, que nutran a la humanidad y al planeta y que no los
Derechos Discriminados y Olvidados
57
envilezcan o destruyan 1. Decía, entre estos derechos/reclamos de primera,
tercera, cuarta y quinta generación, los de segunda generación: los económicos,
sociales y culturales2.
La expresión “generación” puede entenderse en al menos dos sentidos. En
uno, indicativo y descriptivo, señala un lugar o estadio en una secuencia temporal.
En otro, más dinámico, designa un proceso de gestación, un origen, un
despliegue y, eventualmente, una consolidación (institucional en este caso) o
consumación. El primer alcance de la noción de ‘generación’ aparece así
determinado por el segundo. No es posible ocupar un lugar apropiado en una
nomenclatura determinada sin haber recorrido el camino completo indicado por la
gestación del proceso. En un sentido profundo, la fórmula “generación de
derechos humanos” es ambigua. Reclama ideológicamente una existencia falsa:
una primera generación de derechos humanos sería una realidad política y
cultural, por ejemplo. Pero también indica el carácter sociohistórico, no
meramente histórico, de derechos humanos: su carácter de reclamo por
transferencias de poder y por la institucionalización de estas transferencias en el
mismo movimiento que enuncia ideológicamente su imposible definitiva
institucionalización 3. Si esto es cierto, derechos humanos no son caracteres de
los individuos, sino decantaciones sociohistóricas cuya gestación sociopolítica las
torna
siempre
reversibles.
El
reclamo
por
derechos
humanos,
y
su
institucionalización, se constituye siempre en el campo de las luchas sociales,
políticas y geopolíticas de sectores de la población en las formaciones sociales
modernas constituidas desde diversos principios y lógicas de dominación.
1
Con sarcasmo, que su magro talento no justifica, el catedrático argentino C.I. Massini distingue
cinco generaciones de derechos humanos. Los derechos-libertades, en el sentido de libertad
negativa, los derechos sociales, que consistirían en demandas para paliar las carencias más
urgentes de la población, los derechos ‘difusos’, en los que entrarían el desarrollo, la paz, la
sustentabilidad del medio natural, los de género, los ‘eróticos’ que se ocuparían de la libertad
sexual, homosexualidad, aborto, contraconcepción subsidiada estatalmente, e ‘infrahumanos’
entre los que enumera los de los animales, de los ríos y montañas y de los mares. Aunque su
taxonomía es arbitraria y falta de rigor, expresa el carácter sociohistórico del ‘reclamo’ por
derechos humano al que aquí hacemos referencia (Cf. Massini: El derecho, los derechos humanos
y el valor del derecho).
2
Formalmente fueron propuestos por la Asamblea General de la ONU en diciembre de 1966, pero
algunos de sus reclamos figuraban ya en la Declaración Universal de 1948. Su antecedente
sociohistórico está en las luchas sociales de los siglos XIX y XX.
3
O sea su cumplimiento real para siempre. Por tratarse de concreciones sociohistóricas los
derechos humanos están siempre en tensión cultural y pueden ser siempre revertidos. Ninguno de
estos derechos existe sin una actitud política positiva hacia ellos, actitud que debe trascenderse en
un ethos sociocultural.
58
Helio Gallardo
Si los derechos humanos se siguen siempre de pugnas sociales por
transferencias de poder, sus expresiones éticas y jurídicas (la letra que los
reclama o sanciona) resultan también siempre socialmente ambiguas, reversibles
y manipulables. No es necesario abundar en ejemplos de esta situación. Sí, en
cambio, encontrar aquí una fuente del abismo entre lo que se dice y se hace en el
campo de derechos humanos. Las luchas sociales que gestan objetiva y
subjetivamente derechos humanos, por tanto, no pueden conformarse con
proclamaciones éticas o normas jurídicas. Éstas deben descansar en la
configuración de un ethos sociocultural que opere como matriz institucional para
su eficacia o cumplimiento. Las luchas sociales por derechos humanos deben
resolverse no mediante una conciliación política, sino por una transformación
efectiva (y muchas veces radical) de la sociedad. Esta transformación puede ser
básicamente descrita como una conversión subjetiva y objetiva hacia la
humanidad. No existen derechos humanos efectivos sin una conversión radical
hacia el reconocimiento y acompañamiento solidario entre individuos, grupos y
culturas humanas. Es este proceso de acompañamiento entre diversos (tarea no
siempre intentada, siempre inacabada) el que sostiene las propuestas éticas y las
instituciones jurídicas que promocionan y sancionan derechos humanos. La
universalidad e integralidad de derechos humanos es una proclama vacía si no
está sostenida por estos reconocimiento y acompañamiento.
La expresión “generación de derechos”, entonces, hace parcialmente
referencia a su carácter de estadio sociohistórico. Por ello, algunos estiman que
se les puede asignar, para comprenderlos en su alcance cultural, un énfasis o
valor sociopolítico axial o determinado 4. Los derechos y libertades fundamentales,
como la igualdad de mujeres y varones, expresión del reconocimiento de la
dignidad de toda persona humana, o el que nadie pueda ser sometido a la
esclavitud o torturado, harían referencia a la vida 5. A la dignidad universal de la
experiencia humana individual cuando ella testimonia una voluntad autónoma de
crecimiento en libertad. Los derechos económicos, sociales y culturales, en
4
Cf. J. B Barba: Educación para los derechos humanos, p. 31. También en las páginas
antecedentes.
5
El punto es discutible. Los derechos que suelen llamarse fundamentales podrían perfectamente
acuñarse bajo la referencia a la libertad negativa liberal (I. Berlin), o sea a los fueros individuales
entendidos como escudos contra la acción del Estado o poder político.
Derechos Discriminados y Olvidados
59
cambio, podrían ser referidos al trabajo y con él a la calidad de la existencia
humana en sociedad, es decir a la relacionalidad inherente al carácter social de
su libertad.
Calidad, o sea relacionalidad liberadora, de su vida familiar. Calidad de su
vida sexual. Calidad de la educación estatal y privada que se le ofrece y que él
desea recibir. Preservación de la calidad de la existencia en momentos que
pueden ser difíciles como la maternidad, el desempleo, la migración forzosa, el
empleo, es decir la relación salarial, la disolución de la familia, la escasa
receptividad social, o incluso hostilidad, para su cultura, como ocurre con los
pueblos profundos u originarios de América, en la caracterización que de ellos
hace el mexicano Guillermo Bonfill Batalla: los pueblos y naciones indígenas.
Derechos fundamentales centrados en el reconocimiento a la vida digna y
libre de cada cual y de todos. Derechos económicos y sociales centrados en la
calidad de la existencia que el trabajo (esfuerzo) debería ofrecer a todos, pero en
especial a los jóvenes, a las mujeres, a los indígenas, a los niños, a los migrantes,
a los desplazados, a los enfermos o a quienes padecen alguna discapacidad.
Quizás convenga interponer aquí un brevísimo excursus. El trabajo no es el
empleo. La noción de trabajo hace referencia a la autorrealización particular de
cada individuo social y también a la autorrealización, entendida como proceso
abierto, de humanidad. Si los derechos reconocidos como fundamentales parecen
remitir a una existencia abstracta que puede ser asumida como un fuero sin
contenidos6, los derechos económicos, sociales y culturales resultan también
fundamentales o básicos porque apuntan hacia la realización efectiva de los seres
humanos particulares y de su humanidad en una sociohistoria centrada en su
trabajo o autoproducción, ambos indisputables aunque enajenables. 7 Estos
derechos, entendidos como reclamo y propuesta ética, denuncian que las tramas
6
Históricamente los contenidos propuestos para este fuero son los del individuo racional, libre,
propietario y productivo.
7
Sobre el punto señala D. Sánchez Rubio: “Mediante la sustitución del derecho al trabajo por las
prestaciones que el estado y las empresas pueden realizar, se convence a los más desfavorecidos
que no tienen posibilidad alguna de autorrealizarse. Sus posibilidades humanas quedan
subordinadas al son que marca el sistema” (Proyección jurídica de la filosofía latinoamericana de
la liberación, p. 539, citado por Silva Filho: O Direito Social e Suas Significaçoes). Ahora, el
sistema es de la relación salarial que desplaza el trabajo por el empleo y al ser humano por el
asalariado o empresario consumidor gestando, en el mismo movimiento, a los explotados,
pauperizados, desempleados y excluidos.
60
Helio Gallardo
sociales complejamente instituidas desde el eje del trabajo social, ni los contienen
ni los posibilitan. Denuncian una ausencia política de humanidad en la economía,
en el empleo, en la familia, en el ethos sociocultural, en la existencia cotidiana,
una ausencia de cuidado por el ser humano, una ausencia, que podría ser
incapacidad radical, es decir sociohistórica, de sujeto moral.
¿Qué gritan y exigen los derechos económicos y sociales, los derechos
culturales?
Que nadie sea empobrecido por las instituciones y lógicas sociales. Que
nadie resulta empobrecido ni explotado ni excluido, por ejemplo, por la economía
local, nacional o global o, sólo en apariencia paradójicamente, por el salario,
incluso abundante. Que nadie sufra de empobrecimiento en la familia, en
particular niños, ancianos y mujeres. Que nadie pauperice a nadie en la relación
de pareja. Que el consumo necesario no empodere la agresividad y la voluntad de
muerte. Que la escuela, en su sentido amplio de educación formal, sea un
espacio de crecimiento humano compartido, para estudiantes, docentes,
administrativos o funcionarios, y también para los padres y la comunidad. Ese es
el sentido intenso y tensional a la vez del primer inciso del artículo 13 del Pacto
Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales adoptado por la
Organización de Naciones Unidas en 1966:
Los Estados Partes en el presente Pacto reconocen el derecho de toda
persona a la educación. Convienen en que la educación debe orientarse hacia el
pleno desarrollo de la personalidad humana y del sentido de su dignidad, y debe
fortalecer el respeto por los derechos humanos y las libertades fundamentales.
Convienen asimismo en que la educación debe capacitar a todas las personas
para participar efectivamente en una sociedad libre, favorecer la comprensión, la
tolerancia y la amistad entre todas las naciones y entre todos los grupos raciales,
étnicos o religiosos... 8
Los derechos económicos, sociales y culturales exigen que nadie nunca
sea material y espiritualmente empobrecido, es decir se le niegue socialmente su
condición de sujeto con autonomía y autoestima. Autonomía y autoestima
8
Este artículo del Pacto concreta el artículo 26 de la propuesta de la Declaración Universal de
Derechos Humanos de Naciones Unidas (1948). Cito ambos documentos desde los anexos del
trabajo ya citado de J. B. Barba.
Derechos Discriminados y Olvidados
61
mediante el trabajo. Autonomía y autoestima en la vida de pareja. Autonomía y
autoestima en la vinculación padres/hijos. Autonomía y autoestima en la
ancianidad. Autonomía y autoestima en la experiencia comunitaria de barrio, de
iglesia, de empresa, de país, de planeta. Autonomía y autoestima como factores
constitutivos y empoderadores de la existencia cotidiana.
Un ejemplo desde la existencia latinoamericana. La prensa mexicana de
ayer 9 destacó que 12 millones de mexicanos no tienen acceso al agua potable y
que sólo el 2.6% de las aguas residuales es tratada en plantas potabilizadoras y
que ante éste y otros problemas ligados con una sensibilidad hacia los recursos
naturales, el Secretario de Medio Ambiente y Recursos Naturales, Víctor
Lichtinger, declaró: si no nos hacemos responsables “por el uso del agua, tarde o
temprano lo pagaremos mediante la escasez, enfermedades, deterioro del
paisaje, pérdida de oportunidades económicas y de calidad de vida”. Y agregó:
Mal manejado el recurso natural puede constituir una fuente de conflictos locales,
regionales, nacionales e internacionales; también puede frenar el desarrollo
económico y social, y ser un vector de enfermedades de amplia distribución en la
población. “No pocos analistas consideran que este siglo puede quedar marcado
por un colapso de los recursos naturales, y por el tránsito de las guerras por
petróleo a guerras por el agua”.
Responsabilidad y autoestima, y producción de humanidad y paz, en el
acceso y manejo del agua. Responsabilidad y autoestima, y producción de
humanidad, en la relación de pareja. Responsabilidad y autoestima, y producción
de humanidad, en el proceso de trabajo y también en el ejercicio de la huelga.
Responsabilidad y autoestima y trascendencia, en el obligatorio trato de la
existencia cotidiana. Y si no hacemos esto, es decir si no nos hacemos
responsables y no buscamos crecer en humanidad (con todos) en el manejo del
agua, de la economía, de la familia, de la existencia diaria..., permítanme
dramatizar ¡¡el futuro (quizás hoy) es la guerra!!
De esto, de la violencia o de la paz, de la edificación de humanidad o de la
guerra, tratan los derechos humanos económicos, sociales y culturales. Los
derechos discriminados.
9
La Jornada, miércoles 18 de septiembre del 2002: Plantea Fox cambios para proteger el agua.
62
Helio Gallardo
Estos derechos, entendidos como reclamos, exigen que la economía no
produzca opulentos y miserables. Demandan que en la autopista, en la colonia o
barrio, en el estadio o en las relaciones internacionales no nos tratemos con
indiferencia, desprecio, u odio. Expresan el deseo por una televisión o escuela, en
su sentido lato, que no precipiten frivolidad, consumismo, pereza o codicia.
Los derechos económicos, sociales y culturales dicen: que ninguna
institución o lógica social, incluido el Gobierno, tenga como efecto deseado o no
deseado, la ausencia de sujeto humano (Humanidad) y de sujetos en cada una de
sus particularidades sociohistóricas.
2. Integralidad de los Derechos
Quisiera todavía retornar un momento, para recuperar un énfasis, a las
declaraciones del Secretario de Medio Ambiente y Recursos Naturales, el señor
Lichtinger. Él decía: “Si no nos comportamos económica y socialmente”, es decir
humanamente, porque los comportamientos humanos están fundados siempre en
un trabajo que debe ofrecer condiciones para ser trascendido como proceso de
construcción de humanidad, “si no nos comportamos económica y socialmente
hacia el agua”, es decir hacia los recursos naturales, “tendremos o conseguiremos
conflicto y guerra” 10.
Nosotros hemos indicado que este resultado, el conflicto y la guerra,
resultan de relacionalidades previas, estructurales y situacionales, en las que
imperan la violencia y la discriminación resueltas mediante lógicas de
dominación 11. El conflicto y la guerra, la destrucción, resultan como consumación
de un determinado y asimétrico ejercicio del poder, de una institucionalización de
la violencia como constitutiva de toda relacionalidad. Es decir, de la efectiva
inexistencia de derechos para todos o derechos universales. Sin embargo, no es
éste el punto que deseo enfatizar. Sintetizo: un comportamiento, de fuente
compleja es cierto, sin autonomía y autoestima (moral) individual y social, el
comportamiento que el Secretario Lichtinger creía advertir en relación con el
agua, un comportamiento sin sensibilidad (o, mejor, dotado de una sensibilidad no
10
En realidad, el sentido que el señor Lichtinger quería darle a su sentencia fue: si no hacemos del
agua algo privado, de modo de hacer conciencia de su escasez, entonces habrá guerra.
11
Económico/sociales, de género, generacionales, políticas, étnicas y geopolíticas.
Derechos Discriminados y Olvidados
63
universalizable, o de dominación) por los derechos de segunda generación,
compromete a los de cuarta y quinta generación (ambiente social y natural) y,
asimismo, a los de primera y tercera generación (libertad y seguridad de las
existencias individuales y nacionales amenazadas por la guerra).
He realizado este énfasis porque derechos humanos, su cumplimiento,
reclaman no sólo su universalidad, o sea que comprendan a todos los seres
humanos, sino también su integralidad: todos los seres humanos, todo el ser
humano, todo el tiempo. La propuesta es que todas las relaciones entre seres
humanos o reconocidos como tales potencien y promuevan humanidad todo el
tiempo. Una sociedad local, nacional, hemisférica, global, cuyas instituciones y
lógicas empoderen a los seres humanos para lograr su estatura de sujetos
humanos todo el tiempo.
Abusando de su paciencia quisiera todavía extraer un corolario de la tesis
de integralidad: como tendencia: todos los derechos, todo el tiempo. Derechos
fundamentales y políticos, económicos y sociales, de los pueblos, de las
generaciones, futuras, bioéticos. Esto quiere decir, derecho a la vida y a no ser
esclavo y, al mismo tiempo, todo el tiempo, posibilidad cierta de una educación de
calidad y reconocimiento cierto del carácter plenamente humano de todas las
culturas y de los géneros y de las diversas generaciones.
Reclamo de una misma inclinación moral y de un mismo respaldo e
institucionalización jurídicos y de una misma implacable sanción estatal y no
estatal tanto para el derecho a la vida como para la educación de calidad y para el
reconocimiento de la cultura propia.
¿Es esto lo que ocurre? No. Lo que ocurre, es decir lo que nosotros
hacemos que ocurra, es que además del abismo inicial entre lo que se dice y se
hace, en un contexto de indiferencia relativa u oportunista, se establece, incluso
académicamente, también una separación entre derechos humanos absolutos y
derechos humanos relativos. Los absolutos, como lo dice su calificativo, lo son por
su fundamento en Dios o en el Individuo, y valdrían siempre. Los relativos, en el
mejor de los casos, tendrían valor sólo si las condiciones socioeconómicas y
culturales los permiten. Esto quiere decir, en sociedades con lógicas de
dominación, nunca. En el peor de los casos, lo que aquí he llamado derechos
relativos, serían pretensiones falsas y abusivas sin carácter de derechos. Escribe,
64
Helio Gallardo
por ejemplo, el profesor argentino C. I. Massini:
... si en un país de muy escasos recursos naturales y en épocas
de crisis económica se reclama irrestrictamente el derecho
proclamado por las Naciones Unidas a “un nivel de vida suficiente
para asegurar la salud, el bienestar y el de la familia”, lo más
probable es que se lleva a esa nación al caos sin que se mejoren
las condiciones de vida; y si en algunas de las naciones tribales
de Africa se pretende reclamar el derecho a “la educación técnica
generalizada y al igual acceso a los estudios superiores” o a
“participar libremente de la vida cultural de la comunidad, gozar de
las artes y participar del progreso científico”, puede lograrse
generalizar el descontento, pero jamás el hacer posible la vigencia
de esos “derechos”. En otras palabras, desvinculados de las
condiciones reales de la vida social, el reclamo de los derechos
humanos puede conducir a peores males que los realmente
existentes. 12
–Ya se ve: buena salud...., si hay dinero y condiciones políticas.
–Educación..., si hay dinero y condiciones políticas.
–Empleo de calidad y pago justo..., si hay dinero.
–Reconocimiento cultural..., si hay dinero (?) y ‘otras condiciones’.
¿Desaparición del etnocentrismo y el racismo, quizás?
Por supuesto, para estos derechos y debido al ‘orden de las cosas’, nunca
habrá dinero ni condiciones favorables. Ni en Africa ni en América Latina.
Ni siquiera se trata, para el juicio del profesor Massini, de derechos
‘imposibles’, sino prohibidos. Esto quiere decir que los sistemas de ejercicio del
poder hoy promueven como tentativamente posibles derechos fundamentales,
algunos de los de primera generación (y la controversia sobre la Corte Penal
Internacional es una prueba de esta promoción tentativa) y postergan o prohiben
derechos de segunda y tercera generación. Y este ethos sociocultural
discriminador y fragmentador no despierta una irritación generalizada que se
materialice en un comportamiento político.
El texto citado del profesor argentino, un ‘especialista’ en derechos
humanos, tiene la ventaja de su transparencia. En él se ubica el problema de la
reivindicación de derechos ‘falsos’ en Africa, allá lejos, donde residen los ‘negros’
animistas y primitivos, bárbaros, tribales, es decir allí donde la humanidad no se
ha hecho presente y en cuya realidad carecemos de toda responsabilidad. Como
12
C.I. Massini: El Derecho, los derechos humanos y el valor del derecho, p. 148. En parecido
sentido escriben M. Villey (“inflación de los derechos del hombre”) o G. Robles (los derechos del
hombre son “papel mojado”), o B. Montejano (“fanatismo principista” sobre derechos humanos) y
muchos otros autores que se adscriben a las distintas corrientes del derecho natural.
Derechos Discriminados y Olvidados
65
se advierte, la escandalosa negación dogmática de derechos de segunda
generación descansa y promueve la no universalidad de todo derecho positivo
económico, social y cultural sobre la base de la universalidad de derechos
fundamentales naturales o propios de la dignidad del ser humano y de la
discriminación consciente de las vidas de aquellos por quienes no nos hacemos
responsables. La afirmación de derechos naturales, no sociohistóricos, sirve para
rehusar derechos positivos a grupos y culturas a los que no se reconoce
suficiente humanidad ni capacidad para construirla desde sí mismos. ¡Y se
supone que en esta discriminación carecemos de toda responsabilidad! Son ellos
allá, los negros, quienes se han hecho a sí mismos humanoides, homúnculos o
cuasihumanos de segunda, tercera o cuarta categoría.
Podemos trasladar esta temática a América Latina. La gente merece tanta
salud como pueda pagar, tanta educación como pueda pagar, tanta seguridad
como pueda pagar. Y si no pueden pagar, entonces no merecen ni educación, ni
salud, ni seguridad 13. Son culpables por su suerte. Nosotros, los que podemos
pagar, no somos responsables por su pobreza. Son ellos quienes la han
producido. Existe una frase en nuestras sociedades que condensa bien esta
sensibilidad ‘cultural’ hacia derechos humanos: “Cuando veo un pobre, cambio de
acera”.
Derechos humanos implica una exigencia para que cambiemos las
condiciones que producen pobres y discriminados y para que, por ello, no
tengamos que cambiar de acera. Universalidad de derechos humanos quiere
decir una sola acera. Un mismo camino que puede recorrerse de diversas
maneras, pero un solo camino. El de nuestra responsabilidad en la producción de
condiciones para producir humanidad todo el tiempo y para todos.
En América Latina nunca tenemos recursos, ni la voluntad moral y política
para buscarlos y producirlos, para esta segunda generación de derechos
humanos que pasan a ser así no sólo relativos sino también de segunda o
ninguna categoría. Esta degradación constituye un signo de descomposición
política y moral.
13
Ni agua, como sugiere Lichtinger.
66
Helio Gallardo
3. Derechos Humanos como Propuesta Política y Moral
Quisiera hacer aquí una reflexión directa.
Un aspecto o factor de derechos humanos es que ellos se configuran como
una propuesta o invitación moral. Cuando la Declaración Universal de Derechos
Humanos de Naciones Unidas dice en su artículo primero que
Todos los seres humanos nacen libres e iguales” no está
describiendo algo que realmente ocurra, sino que está diciendo
que “todos los seres humanos deberían ser tratados sin
discriminación y potenciados para ejercer su autonomia.
Se trata de una propuesta y un deseo moral que supone un trabajo político
integral
para
que
pueda
ser
jurídicamente
normado
y
culturalmente
institucionalizado. Este deseo exige la adopción de una tendencia ética que sólo
se puede seguir de una transformación de las condiciones de existencia (en la
economía, en la pareja, etc.) de la gente, es decir de los seres humanos. Una
tendencia ética, un trabajo o responsabilidad políticos, un deseo moral: “Deberían
ser tratados sin discriminación”. Repárese en el escándalo que para este deseo
moral contiene la frase: “Cuando veo un pobre, cambio de acera”.
Políticamente esto significa: la economía no debería contener lógicas de
discriminación, entre ellas la de explotación, para que pueda producir, al mismo
tiempo que valores económicos, sujetos humanos y, con ellos, derechos humanos
efectivos. La administración social de la libido, economía libidinal, no debería
expresarse mediante lógicas de discriminación que permitan inferiorizar a
mujeres, niños y jóvenes o ancianos. La política, como capacidad para discutir,
orientar y administrar el camino colectivo y las responsabilidades que cada cual
tiene en él no debería realizarse mediante lógicas de discriminación que escinden,
por ejemplo, a la clase política de la ciudadanía y a ésta de sus necesidades
humanas. La producción cultural tampoco debería configurarse mediante lógicas
de discriminación (racistas, tecnológicas, de género, religiosas, étnicas, sociales,
etc.) que produzcan y reproduzcan un monopolio que invisibilice, postergue o
mediatice la pluralidad de sentidos que en cada comunidad de diversos alcanza la
experiencia humana. ¡Y en este sueño o deseo deberíamos esforzarnos todo el
tiempo!
Derechos Discriminados y Olvidados
67
Pero nosotros decimos: no hay dinero. No se dan las condiciones.
Para los seres humanos las condiciones nunca se dan. Se producen. Las
producimos.
Somos
responsables
por
ellas.
O
deberíamos
hacernos
responsables.
Para decirlo esquemáticamente, debería resultarnos imperativo hacer que
ese ‘dinero’ (potencial humano o financiero) aparezca. ¡Hay que hacer surgir ese
‘dinero’, hay que potenciar las capacidades humanas para que los derechos de
segunda generación no se transformen en derechos de segunda o ninguna
categoría, o en derechos ‘relativos’! Hemos mostrado que si no se tienen estos
derechos relativos, tampoco existen los derechos ‘absolutos’ que entonces serían
de primera generación exclusivamente por su momento de proclamación política y
jurídica en el siglo XVIII, no por su función y alcance en un proyecto de
humanización universal e integral.
Entonces, ¡deberíamos hacer surgir ese ‘dinero’! Y esta es obviamente una
tarea política con sus componentes ‘privados’ y ‘públicos’. Privados porque la
tarea compromete a lo que el imaginario moderno llama sociedad civil y que aquí
es entendida como una matriz desde la que surgen movimientos sociales que
aspiran a transferencias de poder que les permitan producir y constituir su
identidad y autoestima (condición de sujetos sociales y de individuos que asumen
su particularidad con voluntad de trascendencia). Públicos porque hace referencia
a la necesaria transformación del dispositivo estatal14 que condensa e impone
intereses de particulares como si fueran universales, codicias de minorías como si
fuesen el deseo de todos, agresividad de oligarquías como si fuese la voluntad
autodestructiva del mayor número.
Entonces, necesitamos primariamente movimientos sociales que reclamen
radicalmente su necesidad de ser sujetos en todas las instancias de su existencia
social particular. Y necesitamos un aparato estatal en sentido amplio y un estilo
gubernamental que potencie la voluntad de ser sujeto en todos y en cada uno. Y
que también sancione, unitaria o pluralmente, en el sentido de castigar, el
irrespeto al derecho de cada individuo a ser sujeto en la relación de pareja, en la
familia, en la economía, en la dinámica política y en los encuentros y
14
Estado y aparatos ideológicos, que pueden ser privados, del Estado, como los medios masivos
y la educación ‘religiosa’.
68
Helio Gallardo
desencuentros culturales. Si así fuera, nos acercaríamos a una cultura de
derechos humanos y ella condensaría y expresaría una tendencia a la ausencia
de coerción y coacción. Estaríamos construyendo una cultura de paz. Y
reconstituyendo con el aporte de todos la espiritualidad y materialidad universal,
aunque diferenciada, de los seres humanos y de sus asociaciones o
comunidades, aspiración sociohistórica en que se funda toda propuesta sobre sus
derechos.
4. Derechos Humanos y Sociohistoria
Termino con una referencia sencilla: los derechos humanos que se
consideran de primera, segunda, tercera, cuarta y quinta generación, es decir la
historia sociopolítica de derechos humanos, surge en contextos relativamente
precisos aunque su medio de origen y las fechas de su reconocimiento mediante
proclamaciones y pactos no coincidan de inmediato: los primeros, como
protección individual y sectorial ante el orden social de señores y curas y sus
monopolios y privilegios a los que se confería origen divino. Esto ocurre en los
siglos XVII y XVIII. Los segundos, en relación con la consternación moral y las
luchas reivindicativas de los obreros y trabajadores durante el siglo XIX y la
presión de las revoluciones socialistas y de los Estados que se constituyen tras
sus triunfos en el siglo XX. Los terceros, los de los pueblos, como efecto de los
movimientos de descolonización o de liberación nacional del siglo XX y por la
independencia e identidad que esta liberación reclamaba. La cuarta y quinta
generación de derechos ante los desafíos del triángulo configurado por el modelo
económico que ha permitido transitar desde un capitalismo extensivo a uno
intensivo, la polarización social y humana que este modelo provoca, y los desafíos
que la misma polarización destructiva genera en los hábitats natural y social. Todo
ello en el marco de un crecimiento demográfico que los países centrales
consideran amenazante para su estilo de existencia y del impacto de las
tecnologías de punta, en particular la informática y la ingeniería genética, para el
futuro cercano de la existencia humana. Estos fenómenos se expresan, en la
transición entre siglos, en el seno de una agresiva geopolítica unipolar sustentada
Derechos Discriminados y Olvidados
69
por una pronunciada y anunciada crisis moral. 15
Del anterior enunciado esquemático quiero destacar que las distintas
generaciones de derechos humanos tienen en común ser el resultado de luchas
sociales y políticas y de transformaciones culturales y morales mejor o peor
extendidas y asumidas que han acompañado esas luchas y se han reforzado con
sus logros. Esto quiere decir que nunca habrá dinero ni disposición cultural
favorable para una educación de calidad para todos, ni para agua potable, ni para
empleo digno, sin una lucha que implique una conversión moral hacia el ser
humano por parte de dirigentes y dirigidos, de organizaciones políticas y de
sectores sociales. Se trata, una vez más, de una lucha que debería comprometer
a todos porque expresa el lado solidario y luminoso de la modernidad. Habría que
preguntarse si nuestra organización del mundo la permite. O, quiénes y qué la
prohiben.
A esta lucha posible y a esta conversión moral en un período de crisis
radical, a este testimonio organizado es que llama la proclamación y el reclamo de
derechos económicos, sociales y culturales como hábitat imprescindible y propio
de la realización de un proceso de humanidad desde cada individuo/sujeto y para
todos nosotros.
Cuando se menciona a los derechos de segunda generación, los derechos
económicos, sociales y culturales, como discriminados y olvidados, lo que se dice
es que se ha renunciado, muchos han renunciado y, sobre todo, cada uno de
nosotros ha renunciado, a la responsabilidad moral y jurídica de construir el sujeto
humano plural que crece desde su autonomía y autoestima. Si olvidamos estos
derechos es porque hemos renunciado a crecer y a proyectarnos en humanidad
desde nosotros mismos.
15
En el momento de redactar estas líneas se produce una catástrofe política y humana en Rusia.
La captura de unos 700 rehenes en un teatro por parte de militantes de la independencia
chechena fue ‘resuelta’ por el gobierno ruso introduciendo un gas tóxico paralizante que asesinó
inicialmente al menos a 115 rehenes. Un militar participante en el asalto declaró que “exageramos
un poco la dosis para estar completamente seguros”. Esta clara demostración de terror de Estado
por parte del gobierno ruso se realizó en nombre de derechos humanos. Y no será sancionada por
ningún tribunal. Este trabajo es parte de un texto más amplio, realizado por Joaquín Herrera Flores
y Alejandro M. Médici, y titulado Derechos Humanos y Orden Global: tres desafíos teóricopolíticos, de próxima aparición en Desclée de Brouwer.
70
Helio Gallardo
Referências Bibliográficas
Barba, José Bonifacio: Educación para los derechos humanos, Fondo de Cultura
Económica, México 1997.
Gurvitch, George: L’Idée de Droit Sociale, Historie Doctrinale depuis de XVII
Siècle jusque la fin de XIX Siècle, Librairie Recueil Sirey, Paris, France, 1931.
La Jornada (diario): “Plantea Fox cambios para proteger el agua”, 18 de
septiembre del 2002, México.
Massini, Carlos Ignacio: El derecho, los derechos humanos y el valor del derecho,
Abeledo/Perrot, Buenos Aires, Argentina, 1994.
Ricoeur, Paul (coordinador): Los fundamentos filosóficos de los derechos
humanos, Serbal/UNESCO, Barcelona, España, 1985.
Sánchez Rubio, David: Proyección jurídica de la filosofía latinoamericana de la
liberación. Aproximación concreta a la obra de Leopoldo Zea y Enrique Dussel,
Tesis de Doctorado, Universidad de Sevilla, España, 1994.
Silva Filho, José Carlos Moreira da: “O Direito Social e suas significaçoes: O
Principio de Alteridade”, en Anuario Ibero/Americano de Direitos Humanos
(2001/2002), Lumen/Juris, Rio de Janeiro, Brasil, 2002.
Derechos Discriminados y Olvidados
71
Los Derechos Humanos en el Contexto de la
Globalización: Tres Precisiones Conceptuales
Joaquín Herrera Flores
Sumario: 1. Las Tres Precisiones. 1.A. La Precisión Filosófica. 1.B. La
Precisión Teórico-Política: los Cuatro Planos de la Lucha por los Derechos
y los Cuatro Malestares Culturales. 1.B.1. El Plano de la Integralidad de
los Derechos: el Malestar de la Dualidad. 1.B.2. El Plano Jurídico-Cultural:
el Malestar de la Emancipación. 1.B.3. El Plano Social: el Malestar del
Desarrollo. 1.B.4. El Plano Político: el Malestar del Individualismo
Abstracto. 1.C. La Precisión Filosófico-Jurídica: la Crítica a la Utopía de la
Validez Formal. 2. El Concepto de Derechos Humanos: los Derechos
Humanos como Procesos. 3. Conclusiones.
El ser humano sólo es alguien (o se expresa como alguien) como
condensación de tramas de relaciones. (Helio Gallardo, Política y
transformación social. Discusión sobre Derechos Humanos, 2000)
1. Las Tres Precisiones
1.A. La Precisión Filosófica
En la tradición de derechos humanos que ha venido imponiéndose durante
la época de la Guerra Fría, la fundamentación filosófica de los mismos se ha
plasmado en dos tendencias: la universalidad de los derechos y su pertenencia
innata a la persona humana. Nada ni nadie puede ir contra dicha “esencia”, ya
que al hacerlo pareciera que atentamos contra las propias características de la
“naturaleza” y la dignidad humanas universales.
Los desmanes y atrocidades que se han cometido durante el siglo XX y la
memoria del horror que tenemos acerca de fenómenos tales como la esclavitud,
los genocidios imperialistas o, por poner un ejemplo más cercano, la
irracionalidad, el terror y la indiferencia hacia cualquier normativa internacional
que se desprende del campo de concentración de Guantánamo, nos induce a
pensar que tal fundamentación es la adecuada, que hay esencias humanas
abstractas que no pueden ser contrariadas ni siquiera por los propios seres
humanos, que hay, en fin, como una especie de reserva espiritual intocable que
nos preserva del mal desplegado en la historia. Presentándose como la
fundamentación “humanista”, las fundamentaciones abstractas de los derechos
humanos lo que en realidad defienden es un antihumanismo que postula que los
derechos humanos son entidades que están –o deben estar– al margen de
nuestras acciones, al margen de lo humano y deben entenderse como si
dependieran de una entidad trascendente a nuestras debilidades humanas que
nos va a proteger en última instancia del horror y de las violaciones. Los derechos
supondrían, pues, una esfera “objetiva” de límites a la propia acción del hombre,
sobre todo cuando éste ostenta el poder sobre la vida y muerte de sus
congéneres.
Aunque los beneficios “inmediatos” de esa fundamentación filosófica sean
importantes para movilizar las conciencias y denunciar el horror de la tortura, de la
discriminación, de la indiferencia ante el hambre o ante la destrucción ecológica,
bajo una mirada más atenta vemos que los problemas que acarrea son mayores
que los beneficios que aporta.
Intentar colocar los derechos en un más allá liberado de cualquier tipo de
impurezas contextuales, puede servirnos, como decimos, para concienciar de un
modo ingenuo e inmediato a los que no tienen más equipaje que el de la
esperanza por un mundo mejor y sin injusticias: de ahí la enorme legitimación que
han conseguido las propuestas de la teología de la liberación en el campo de los
derechos humanos. Ahora bien, ¿basta levantar la esperanza para solucionar los
problemas concretos y reales?. ¿es suficiente para nosotros confiar en una
instancia trascendente benevolente para fundamentar prácticas sociales de
articulación de movimientos de lucha por los derechos? Aún más, ¿hay que luchar
por los derechos si ya los tenemos garantizados metafísica, ideal o
religiosamente?. ¿de qué sirve reclamar una esencia metafísica que nos dicen
que nos pertenece por el mero hecho de ser seres humanos, ante las prácticas
depredadoras de las grandes corporaciones transnacionales?. ¿qué se ha
conseguido en los más de cincuenta años de la firma de la Declaración Universal
a la hora de resolver los problemas de condiciones de vida de más de las cuatro
quintas partes de la humanidad? ¿No estaremos universalizando un solo punto de
vista: el judeo-cristiano-occidental y lo presentamos como la esencia inmutable de
algo que tiene necesariamente que contar con otras formas de plantear y resolver
los problemas que subyacen a los particulares conceptos de dignidad? ¿Cómo
garantizar el acceso a la justicia a aquellas y aquellos que defienden y practican
Los Derechos Humanos en el Contexto de la Globalización
73
un concepto diferente de dignidad humana, o que jerarquizan los valores de un
modo distinto?...
Como afirma Nietzsche, cuando hablamos de conocimiento o de realidad
debemos negar la existencia en sí, es decir, separada de sus condiciones de
existencia, de términos tales como espíritu, razón, conciencia, alma o
pensamientos “verdaderos”. “El concepto de verdad es un contrasentido...todo el
reino de lo verdadero y de lo falso se refiere tan sólo a relaciones entre seres, no
a lo en sí...no hay ningún ser en sí como tampoco puede darse un conocimiento
en sí” 1; ambos, conocimiento y ser se constituyen en el conjunto de relaciones en
que se integran. En ese sentido, cualquier producto cultural –en nuestro caso, los
derechos humanos–, hay que integrarlo en lo que denominamos:
Circuito
cultural
Productos
culturales
Con nosotros mismos
Realidad
Trama de
Relaciones
Con los otros
Con la
naturaleza
Todo producto cultural surge en una determinada realidad, es decir, en un
específico e histórico marco de relaciones sociales, morales y naturales. No hay
productos culturales al margen del sistema de relaciones que constituye sus
condiciones de existencia. No hay productos culturales en sí mismos. Todos
surgen como respuestas simbólicas a determinados contextos de relaciones.
Ahora bien, los productos culturales no sólo están determinados por dicho
contexto, sino que, a su vez, condicionan la realidad en la que se insertan. Este
es el circuito cultural. No hay, pues, nada que pueda ser considerado en sí
mismo, al margen del contexto específico en que surge y sobre el que actúa.
El ejemplo filosófico por excelencia es Platón. ¿Se hubiera escrito La
República si Platón no hubiera sido impulsado a escribir contra la democracia de
su tiempo? ¿Acaso no ha influido Platón en los desarrollos reaccionarios
posteriores? Hablamos de un productor de productos culturales que reaccionaba
ante un determinado complejo de relaciones humanas y que se planteó como
objetivo de todo su pensamiento alejar lo más posible a los seres humanos
1
F. Nietzsche, Nihilismo. Escritos póstumos, Península, Barcelona, 1998 (14-122)
74
Joaquín Herrera Flores
concretos del conocimiento y la política “verdaderos”. Con argumentos,
denominados por la tradición como “dialécticos”, pero que en realidad no eran
más que reducciones al absurdo, Platón va despreciando todo lo que suene a
pacto entre seres humanos y todo lo que se base en el fluir continuo de los
acontecimientos. Las cosas no tienen relación ni dependencia –afirma Platón- con
nosotros; sino que son en sí por su propia naturaleza 2; y, además, no pueden
cambiar, son estáticas, ajenas a los flujos naturales e históricos3, ya que si no
fuera así el conocimiento sería imposible. Habría que añadir, el conocimiento
puro, el conocimiento de esencias inmutables, el conocimiento no humano.
Nada, ni la justicia, ni la dignidad, y mucho menos los derechos humanos,
proceden de esencias inmutables o metafísicas que se sitúen más allá de la
acción humana por construir espacios donde desarrollar las luchas por la dignidad
humana. Por mucho que se hable de derechos que las personas tienen por el
mero hecho de ser seres humanos, es decir, de esencias “anteriores” o “previas”
a las prácticas sociales de construcción de relaciones sociales, políticas o
jurídicas, inevitablemente tendremos que descifrar el contexto de relaciones –la
trama densa de relaciones que definen al sujeto– que les da origen y sentido,
sobre todo si queremos huir de la tentación de “imputar” a toda la humanidad lo
que no es más que producto de una forma cultural de ver y estar en el mundo.
1.B. La Precisión Teórico-Política: Los Cuatro Planos de la Lucha por los
Derechos y los Cuatro Malestares Culturales
El hombre es un animal suspendido en redes que él mismo ha
tejido. (C.Geertz, La interpretación de las culturas, 1998)
1.B.1. El Plano de la Integralidad de los Derechos: El Malestar de la Dualidad
Desde 1948 hasta la actualidad, nos hemos ido acostumbrando a
denominar como “derechos humanos” a los diferentes procesos sociales, políticos
y culturales que han tendido a positivar institucionalmente tanto las exigencias de
2
Platón, Crátilo, 386 e.
Platón, Crátilo 411 c, 437c, 439 d. Como ampliación de lo que tratamos, ver Rodolfo Mondolfo,
La comprensión del Sujeto en la Cultura Antigua, Buenos Aires, 1968.
3
Los Derechos Humanos en el Contexto de la Globalización
75
protección ciudadana contra la hegemonía del Estado sobre nuestras vidas
cotidianas, como las demandas políticas de intervención del mismo Estado, con el
objetivo de obstaculizar el despliegue irrestricto del mercado en las relaciones
sociales y sus consecuencias, sean éstas intencionales o no.
Esa doble actitud ante el Estado conduce a lo que podemos denominar el
malestar de la dualidad. Aunque esta tendencia supone, por un lado, un fuerte
componente de ambigüedad, dado que por un lado nos pone ante la
reivindicación de una esfera autónoma libre de interferencias, y, por otro, ante la
exigencia de interferencia con el objetivo de obstaculizar el despliegue sin
restricciones de las consecuencias perversas del mercado capitalista: destrucción
del medio ambiente, desempleo, privatización del patrimonio histórico artístico,
indefensión ante las enfermedades... Por otro, nos pone ante la riqueza del
concepto que “convencionalmente” hemos ido denominando a lo largo de la
segunda mitad del siglo XX, como derechos humanos. Cuando utilizamos la
“convención” –terminológica, pero, asimismo, ideológica– de “derechos humanos”
no nos referimos a procesos unilineales o abstractos en los que sólo se ve una
parte del problema: las injerencias del Estado en la autonomía individual, sino
que, al mismo tiempo, se exige la adaptación a los niveles de complejidad de una
realidad humana sometida a procesos económicos, sociales y culturales en los
que priman las distribuciones injustas de bienes y la reducción de los objetivos
políticos a las necesidades de protección jurídica de la esfera económica.
Convencionalmente, hemos denominado, pues, como derechos humanos a los
procesos que aseguran nuestra esfera de actuación autónoma; pero también a los
procesos que se enfrentan a las consecuencias perversas de esa autonomía,
sobre todo cuando ésta es entendida como la posibilidad de actuar irrestricta y
corporativamente con el objetivo de profundizar en los diferentes modos de
acumulación y apropiación del capital.
Este “malestar de la dualidad” puede ser planteado desde otra perspectiva.
Como defiende Jürgen Habermas si hablamos de derechos humanos nos
estamos remitiendo a meras instancias ideales y morales de justificación y
legitimación de las acciones individuales y de las políticas públicas, lo cual es
absolutamente rechazable para el filósofo de Frankfurt; pero si lo hacemos de
derechos humanos –opción admitida por Habermas-, nos estamos refiriendo al
76
Joaquín Herrera Flores
conjunto de normas constitucionales, válidas positivamente, que controlan las
hipotéticas desviaciones despóticas del poder, mientras que, al mismo tiempo,
aseguran una obediencia basada en la ley y no en meras instancias morales o
metafísicas. Dejando de lado el fundamento filosófico de esa distinción
terminológica –no puede haber un consenso racional discursivo basado en
cuestiones morales o de bien común, sino únicamente en derechos formales– la
causa eficiente de la distinción reside en el repudio que la teoría jurídica liberal ha
mantenido contra la estrecha relación que existe entre derechos y deberes. Para
Habermas, los derechos humanos no obligan a nada, sino que nos ofrecen un
marco de autonomía para nuestra acción pública: por eso pueden ser justificados
por el mero procedimiento de su positivación. Pero los derechos humanos, al
basarse en cuestiones morales, establecen una simetría absoluta entre derechos
y deberes, lo cual excede del procedimiento y nos conduce a preguntarnos si los
actores públicos y privados han cumplido o no con las responsabilidades que les
compete como criterio de justificación de sus acciones. Como afirma el propio
Habermas 4, tratar un problema social desde el punto de vista jurídico requiere,
entre otras condiciones, reconocer que el derecho es algo formal –lo que no está
prohibido, está permitido–, individualista –no existen derechos colectivos, dado
que el sujeto jurídico es el individuo y no las comunidades–, y justificable
únicamente desde criterios racionales de procedimiento discursivo – no desde las
responsabilidades y los deberes. ¿Qué esfera de los derechos está defendiendo
Habermas? ¿la de interferencia social, económica y cultural que controle las
consecuencias perversas del mercado o la puramente individual abstracta que
exige la no intervención y no responsabilización de los ámbitos públicos e
institucionales en las vidas cotidianas de los seres humanos? Si el derecho tiene
como única función establecer y garantizar marcos de acción sin referencia a
deberes y responsabilidades ¿cómo obligar a las instituciones a intervenir contra
los horrores que produce el proceso de acumulación, hoy global, del capital?
¿cómo exigir a las grandes corporaciones privadas a que renuncien a su actitud
depredadora del conocimiento tradicional de las comunidades populares?. ¿cómo
garantizar la reproducción del ecosistema y la diversidad socio-biológica de la
4
Jürgen Habermas, La inclusión del otro. Estudios sobre Teoría Política, Piados, Barcelona, 1999,
p. 204
Los Derechos Humanos en el Contexto de la Globalización
77
humanidad?
El problema reside en que al rechazar los fundamentos morales de los
derechos y aceptar únicamente los derechos positivados constitucionalmente,
Habermas –como Bobbio cuando defendía que lo importante para los derechos
no era su justificación, sino su mera aplicación– están aceptando implícitamente
una fundamentación moral que no llevan al debate, sino que se invisibiliza al ser
aceptada como algo natural e inmodificable. Y esa fundamentación moral es la del
liberalismo, ideología dualista que separa los derechos humanos en dos esferas
irreconciliables
y
defiende
la
imposibilidad
de
garantizar
jurídica
e
institucionalmente los derechos sociales, económicos y culturales.
Si estamos únicamente ante derechos formales que permiten lo que no
está expresamente prohibido, ¿cómo resistirnos ante innovaciones técnicas que
van mucho más deprisa que las reformas jurídicas y que al no encontrar
prohibiciones expresas tienen el campo libre para provocar consecuencias que
pueden ser gravosas para la humanidad? ¿cómo controlar las astucias con las
que funcionan las grandes corporaciones para evitar las pocas regulaciones
jurídicas que el nuevo orden global ha dejado indemnes? ¿no sería mejor ante
estos hechos cambiar el adagio jurídico mencionado e institucionalizar que lo que
no está expresamente permitido, está prohibido?
Ahí reside la verdadera razón del malestar de la dualidad. No hablemos de
derechos humanos, ni de derechos humanos, sino de derechos humanos. Éstos
son algo más que las normas que los reconocen a nivel nacional o internacional, y
algo menos que las propuestas idealistas que repiten la existencia de una esfera
moral externa a los seres humanos. Pero –aparte de otras consideraciones que
expondremos más abajo–, hablar de derechos humanos, supone enfrentarse
directamente con ese dualismo castrante que divide ideológicamente donde la
propia realidad no puede distinguir.
Desde nuestro punto de vista el problema tiene otros tres planos: el
jurídico-cultural, el social y el político. Los cuatro planos están estrechamente
imbricados en un bucle de tal complejidad que la falta de uno de ellos supone la
tergiversación del debate 5.
5
Cfr. Fraisse, G., “Entre égalité et liberté”, La Place des Femmes, La Decouverte, 1995
78
Joaquín Herrera Flores
1.B.2. El Plano Jurídico-Cultural: El Malestar de la Emancipación
En el plano jurídico-cultural, hablamos de las tensas relaciones entre las
categorías de identidad y diferencia. Ya desde los debates de la Asamblea
revolucionaria en la Francia post-1789 se viene hablando de la necesidad de un
mínimo de homogeneidad ciudadana como base para la construcción de un
Estado democrático. Los ciudadanos deben compartir una serie de rasgos
comunes que les permitan autoentenderse como partícipes de la voluntad
general. Esos rasgos comunes hacen posible hablar de la igualdad ante la ley y
presentarla como si de un “hecho” se tratara: todos somos iguales ante la ley. Por
tanto, cualquier diferencia “real” entre las personas o grupos sólo entra en el
debate jurídico siempre y cuando no provoque algún tipo de discriminación ante la
ley. Tomar partido “únicamente” por este aspecto jurídico-cultural que superpone
la identidad a la diferencia, ha conducido a la preponderancia de las teorías
formales o procedimentales de la justicia. Teorías, para las que las diferencias –
sean las representadas por las reivindicaciones igualitaristas de Babeuf, sean las
propuestas feministas de Olimpe de Gouges– eran y siguen siendo consideradas
como obstáculos, distorsiones, o, como meras proposiciones de deber ser –
anulables del discurso ante el riesgo de caer en la “humeana” falacia naturalista.
Las diferencias parecen interferir en dicho proceso de construcción jurídica y
política, el cual requiere la homogeneidad como base imprescindible 6. Gran parte
del debate teórico de clase (Marx), de etnia (Fanon) o de género (Librería de
Mujeres de Milán), se ha centrado en la denuncia de lo que podemos llamar “el
malestar de la emancipación”: la conquista de la igualdad de derechos no parece
haberse apoyado ni parece haber impulsado el reconocimiento de, y el respeto
por, las diferencias. El afán homogeneizador ha primado sobre el de la pluralidad
y diversidad.
La problemática hunde sus raíces en la figura clásica del “contrato” como
fundamento de la relación social. Paradójicamente, la idea de contrato, que
parece tener una clara raíz económica o mercantil (y, de hecho, es traída a la
6
Birulés, F., “El sueño de la absoluta autonomía: Reflexiones en torno a la igualdad y la diferencia”
en Gómez Rodríguez, A., y Tally, J., La construcción cultural de lo femenino, op. cit., p. 19-29. Cfr.
asimismo, Honig, B., Political Theory and the Displacement of Politics, Cornell University Press,
New York, 1993, p. 76-125
Los Derechos Humanos en el Contexto de la Globalización
79
filosofía política desde la economía), se sitúa en la separación, fundamental para
el liberalismo político, entre política y economía. Como afirman Rosanvallon y
Fitoussi, a pesar de esa proclamación ideológica de esferas separadas, es el
mercado el que impone las líneas de transformación social que la política tiene
que acatar7. ¿Qué mejor representación del orden político, pues, que la
proporcionada por un modelo explicativo que “a la vez que se articula sobre la
organización capitalista de las relaciones sociales, elude toda referencia a la
economía?”8. Por consiguiente, y a pesar de sus connotaciones concretas, la
figura del contrato se basa en un conjunto de abstracciones que, al separarse
ideológica y ficticiamente de los contextos donde se dan las situaciones concretas
entre los individuos y los grupos 9, normalizan, legitiman y legalizan posiciones
previas de desigualdad con el objetivo de reproducirse infinítamente. En este
proceso se va instaurando una segunda separación muy importante para nuestro
tema: aparece un espacio ideal/universal –el espacio público– donde se moverían
idealmente sujetos idealizados e idénticos que gozan de la igualdad formal ante la
ley. En términos de Sheila Benhabib, se instaura la idea de un sujeto
“generalizado” tan alejado de los contextos en los que vive, que las situaciones
conflictivas desaparecen ante el consenso que supone la igualdad formal y las
situaciones de desigualdad se esfuman ante la apariencia de justicia en que
consisten los procedimientos. Mientras que junto a este espacio público ideal,
surge la conciencia de un espacio material/particular –el espacio de lo privado–
donde se dan cita no sólo los intereses económicos de los sujetos “concretos”,
sus inserciones en los ámbitos productivos y reproductivos, sino también los
7
Fitoussi, J.P.,Rosanvallon, P., La nueva era de las desigualdades, Manantial, Buenos Aires, 1997
“La expulsión de las relaciones sociales, la exclusión de las determinaciones efectivas de los
sujetos reales, posibilita una representación del orden político como un asunto de racionalidad,
consenso, legalidad...la escisión entre economía y política convierte a los teóricos del contrato en
liberales ilustrados, seguramente bien intencionados y progresistas, pero cada vez más
impotentes para articular la teoría a los procesos efectivos, cada vez más impotentes para detener
la avanzada de la nueva derecha, ese enemigo que no ha dejado de vencer”, Alejandra Ciriza,
“Democracia y ciudadanía de mujeres: encrucijadas teóricas y políticas” en Atilio Borón (comp.),
Teoría y Filosofía Política. La tradición clásica y las nuevas fronteras, CLACSO- Eudeba, Buenos
Aires, 1999, p. 237
9
“El capitalismo alcanza su mayoría de edad cuando automatiza lo que en el periodo de la
acumulación originaria era simple expropiación arbitraria, desposesión salvaje...La normalidad
sucede a la anomalía, la legitimidad a la ley de la jungla, la plusvalía al robo. Todo es conforme a
la ley, conforme al valor, y el ciclo de la reproducción se basta por sí solo, con muda constricción,
para garantizar su continuidad ampliada”, Antonio Negri, Fin de Siglo, Piados, Barcelona, 1989, p.
21
8
80
Joaquín Herrera Flores
nudos de relaciones que los ligan a otros sujetos en el espacio doméstico, las
creencias particulares y las identidades sexuales y raciales 10.
El contractualismo supone, pues, la construcción de una percepción social
basada en la identidad que se da en el espacio público garantizado por el derecho
y en la expulsión de las diferencias al ámbito desestructurado, e invisible para lo
institucional, de lo privado. De ahí las dificultades que la teoría política liberal
encuentra a la hora de reconocer institucionalmente la proliferación de
reivindicaciones de género, raciales o étnicas. Para el liberalismo político, la
diferencia hay que entenderla como “diversidad”, como mera desemejanza que,
en el mejor de los casos, hay que tolerar estableciendo medidas que permitan
acercar al diferente al patrón universal que nos hace idénticos a todos 11 y no
como un recurso público a fomentar y a garantizar. El argumento ideológico que
se usa una y otra vez es que no se debe “contaminar” el debate filosófico jurídico
con cuestiones como las sexuales, étnicas o raciales. Todas estas cuestiones
están embebidas en el principio universal de igualdad formal que constituye el
sujeto “generalizado”. Cualquier argumentación que parta de las características
concretas y de las inserciones contextuales específicas de los sujetos “concretos”
es rápidamente tildada de comunitarismo, obviando el engarce que dicho
categoría o esquema tiene con la realidad norteamericana para la cual fue
creada 12. La cuestión no reside en introducir el sexo, la raza o la etnia en lo
jurídico y en lo político, difuminando el debate con preguntas tales como ¿tienen
sexo las normas? Precisamente, la reclusión de las diferencias en un ámbito
10
“Lo privado incluye no sólo los intereses económicos de los sujetos, su forma de inserción en el
proceso de producción y reproducción de la vida misma, sino además el conjunto de relaciones
que los ligan a otros sujetos en el espacio doméstico, las creencias particulares, las prácticas e
identidades sexuales y raciales”, Alejandra Ciriza, “Democracia y ciudadanía de mujeres:
encrucijadas teóricas y políticas”, en Atilio Borón (comp..), op. cit. p. 239
11
Desde una perspectiva liberal, la tolerancia hacia los diferentes se reduce a la mera
contemplación de la diversidad. En ese sentido “la diversidad es débilmente democrática:
reconoce la mera desemejanza. Se podría decir que su padrino intelectual es John Locke en su
Letter on Toleration. Enfrentado a la diversidad de visiones de los grupos religiosos adoptó una
táctica que reducía el poder a religión organizada...la religión era ante una cuestión de creencias
individuales y no de representaciones colectivas”, Sheldon Wolin, “Democracia, diferencia y
reconocimiento” en La Política, 1, 1996, p. 154
12
Cuando los conceptos aplicables a un contexto que goza de hegemonía se “exportan” sin mayor
reflexión a otros contextos hegemonizados, se llega a la conclusión de que dichos conceptos no
son particulares, sino de aplicación universal. Ver Bourdieu, P., y Wacquant, L., “Los artificios de la
razón imperialista” en Voces y Culturas. Revista de comunicación, 15, 2000, p. 110 y 113. Sobre el
contexto de la polémica liberales-comunitaristas, ver “Universalism ‘v’ Comunitarianism:
Contemporary Debates in Ethics”, en Philosophy & Social Criticism, n°. 3-4, V. 14, 1998
Los Derechos Humanos en el Contexto de la Globalización
81
separado de lo público, hace que la raza, el sexo y la etnia adquieran importancia
para el derecho y la política. Si en un Parlamento la ratio hombre-mujer es del 80
y el 20%, en esa institución el sexo tiene mucha importancia: es un criterio
configurador de la pertenencia a la institución. Si en un código civil o en una teoría
de la justicia se sigue utilizando el término “padre de familia”, el sexo del que firma
los contratos o del que puede decirse que es una persona representativa tiene
mucha importancia: es un criterio discriminador en beneficio de una sola de las
partes. Ahora bien, en una configuración institucional donde la diferencia, en este
caso sexual, se reconoce como un recurso público a garantizar y en donde el
porcentaje se acerca al 50%, la característica sexual deja de ser algo relevante al
tener todas las partes su cuota de participación y visibilidad: estamos ante la
plasmación real, no sólo formal/ideal del principio de no discriminación.
Reconocer pública y jurídicamente las diferencias tiene el objetivo de erradicar lo
sexual, lo étnico o lo racial del debate político, ya que todos tendrían la posibilidad
de plantear sus expectativas e intereses sin tener en cuenta, ahora sí, sus
diferencias. No estaríamos ante una política de discriminación inversa, con toda la
connotación adversa que tiene la palabra discriminación; sino ante políticas de
inversión de la discriminación y los privilegios tradicionalmente ostentados por los
grupos que han dominado la construcción social de la realidad que vivimos.
1.B.3. El Plano Social: El Malestar del Desarrollo
El plano social de la problemática nos hace dar un paso adelante. Ya no se
trata de analizar las tendencias homogeneizadoras que pretenden aparentemente
evitar las discriminaciones, con el efecto perverso de reducir a ceniza las
diferencias e imponer una sola visión del mundo como la universal. Se trata ahora
de contraponer los conceptos de igualdad y desigualdad. En este nivel
abandonamos el terreno del “sameness”, del esfuerzo tendente a potenciar la
igual identidad de todos ante el derecho, para adentrarnos en la problemática de
la igualdad, la cual conceptualmente no se opone a “diferencia”, sino a
desigualdad. En esta sede ya no hablamos de no discriminación de las
ciudadanas y ciudadanos ante la ley, sino de las diferentes condiciones sociales,
económicas y culturales que hacen que unos tengan menos capacidades para
82
Joaquín Herrera Flores
actuar que otros: sea por razones de etnia (Amílcar Cabral), de género (Simone
de Beauvoir), de clase (Mariátegui), de poder cultural (Gramsci), de situación
geográfica (Samir Amin) o, por poner un punto final, de “mala suerte” (Ronald
Dworkin). En este nivel se constata lo que podemos denominar “el malestar del
desarrollo”: el progreso en las técnicas y la abundancia para unos, no sólo no ha
redundado en beneficio de las inmensas mayorías populares que pueblan nuestro
mundo, sino que precisamente parecen alimentarse de la explotación y
empobrecimiento de las cuatro quintas partes de la humanidad.
Danilo Zolo intentó dar salida a este malestar afirmando que mientras la
ciudadanía provocaba desigualdades, pero al mismo tiempo libertad; el mercado,
provocando asimismo desigualdades, creaba riqueza 13. El problema de esta
ecuación reside en analizar qué tipo de condiciones posibilitan la riqueza y la
libertad,
pero
sin
provocar
o
aumentar
las
desigualdades
existentes.
Quedándonos, por el momento, en el aspecto jurídico del problema podríamos
afirmar que se da una proporción inversa entre la cantidad de recursos que se
maneje y la relación que se tenga con los derechos (en este caso, sociales,
económicos y culturales): a mayor cantidad de recursos disponibles, menor
referencia a estos derechos, y a menor cantidad de recursos, mayor referencia a
los mismos. Pero, por el contrario, se da una proporción directa entre la cantidad
de recursos a que tengamos acceso y la relación que se tenga con los derechos
(individuales: civiles y políticos): a mayor cantidad de recursos disponible, mayor
importancia concedida a estos derechos, y a menor cantidad de recursos, mayor
indiferencia y desdén hacia los mismos (entendiendo por recursos no sólo los
económicos, sino también los sociales y culturales con los que enfrentarse a lo
que más adelante llamaremos las diferentes caras de la opresión). Está claro que
el común denominador que distingue las diferentes posiciones ante los derechos
es el acceso a los recursos. Lo que nos lleva a una reflexión sobre la igualdad y la
necesidad de abstracción que toda tarea jurídica requiere. El derecho no
13
D. Zolo, “La ciudadanía en una era post-comunista” en Agora, 7, 1997, p. 111. “La aceptación
plena de las premisas liberales e individualistas en relación a la ciudadanía conducen, mal que le
pese a Zolo, a predicar, sin saberlo y probablemente sin desearlo, un retorno a la barbarie.
Efectivamente, una de las tensiones de la ciudadanía es precisamente la de requerir de un mínimo
de inserción con vista al goce de los derechos. De ahí la importancia de tener en cuenta la tensión,
y no la mutua exclusión, entre economía y política. La consideración puramente política de los
derechos deriva en su configuración como privilegios”. A. Ciriza, op, cit., p. 245 (cursiva nuestra).
Los Derechos Humanos en el Contexto de la Globalización
83
reconoce necesidades, sino formas de satisfacción de esas necesidades en
función del conjunto de valores que predominen en la sociedad de que se trate. Al
no formalizar necesidades sino formas de satisfacción de las necesidades, el
derecho ostenta un fuerte carácter de abstracción. El problema no reside en esto:
formalizar implica necesariamente abstraer. El problema reside en qué es lo que
se abstrae para poder llevar adelante la tarea de formalización sin profundizar en,
o crear nuevas, desigualdades. Si abstraemos las normas de la diferente situación
a la hora de acceder a los recursos disponibles, los derechos, sobre todo los
individuales, serán vistos como privilegios de los ciudadanos que tienen acceso a
las condiciones materiales que permiten gozar de los mismos, y a un consiguiente
desprecio por los derechos sociales, económicos y culturales como meros
indicadores de tendencia. En este sentido, el derecho privilegiaría a los miembros
de una clase, de un sexo, de una raza o de una etnia en perjuicio de los que no
pertenecen al sesgo privilegiado, manteniendo o profundizando la distancia entre
la proclamación formal de la igualdad y las condiciones que permiten su goce.
¿Es éste el objetivo de la democracia y del estado de derecho? Ahora bien, si al
formalizar una forma de satisfacer alguna necesidad no abstraemos las diferentes
posiciones sociales a la hora de acceder a los recursos que permiten poner en
práctica los derechos, estaremos, primero, denunciando los privilegios gozados
por los pocos; segundo, estableciendo cauces para ir cerrando el abismo entre lo
formal y lo material; y, tercero, poniendo en funcionamiento el principio de no
discriminación por razones económicas, sexuales, raciales o étnicas, ya que lo
importante para el derecho será esa función o tendencia de igualación en el
acceso a los recursos y no defender y garantizar los privilegios de los miembros
de una clase, sexo, raza o etnia. En este sentido, tanto una política de
redistribución de las posibilidades en el acceso a los recursos, como una política
de reconocimiento de la diferencia como un recurso público a garantizar
conducirían a una revitalización y a una democratización de lo jurídico, siempre y
cuando queda superada la tradicional escisión entre las esferas de la economía y
de la política y, a partir de ahí, tengamos el marco adecuado, no para seguir
gozando de privilegios formales, sino para crear las condiciones que permitan
gozar de mayores cotas de libertad y riqueza sin la contrapartida de la
desigualdad.
84
Joaquín Herrera Flores
1.B.4. El Plano Político: El Malestar del Individualismo Abstracto
Por esta razón, debemos añadir un cuarto plano a los dos anteriores: el
plano político. En este nivel se trata de comprender las relaciones entre los
conceptos de igualdad y de libertad. La lucha por la igualdad –o, lo que es lo
mismo, la socialización de los recursos– es una condición de la libertad –vista, por
ahora, como socialización de la política. La lucha por la igualdad no agota la lucha
contra la discriminación ni contra las desigualdades 14. Hay que introducir en el
debate la lucha por la libertad que, basándose en las condiciones de no
discriminación y de igualdad de recursos, siempre irá “más allá de la igualdad”.
Dependiendo de lo que entendamos por libertad, así interpretaremos esta
reivindicación.
De la libertad existen, por lo menos, dos interpretaciones: la primera, y más
extendida dada la fuerza expansiva de la ideología “liberal”, entiende la libertad
como autonomía, como independencia radical de cualquier nexo con las
“situaciones”, los contextos o las relaciones. La libertad, desde esta interpretación,
supone un gesto de rechazo a toda relación de dependencia o de
contextualización, dado que tiende a la garantía de un espacio moral y autónomo
de despliegue individual considerado como “lo universal”. En ese espacio moral
individual todos somos semejantes y todos nos vemos envueltos en un solo tipo
de relación, la de individuos morales y racionales, sin cuerpo, sin comunidad, sin
contexto. Este espacio de la semejanza garantiza que los individuos morales y
racionales puedan dialogar “idealmente” en la pura abstracción del lenguaje,
relegando al terreno de lo irracional toda reivindicación de desemejanza, de
diversidad, de pluralidad o de diferencia. Esta interpretación de la libertad
conduce a lo que denominaríamos “el malestar del individualismo abstracto”: la
propuesta de independencia del contexto supone un tipo de sujeto inmóvil o
pasivo frente a los diferentes y cambiantes embates que proceden del contexto
social “irracional” en que necesariamente dichos individuos “racionales” se
debaten. Para evitar –mejor dicho, para ocultar– la entrada de ese contexto
irracional en la acción individual, hay que garantizar política y jurídicamente un
14
Grupo DIOTIMA, Oltre l’ugluaglianze. Le radici femminili dell’autoritá, Liguori Editore, Milano,
1995
Los Derechos Humanos en el Contexto de la Globalización
85
espacio moral-racional ideal –definido por los derechos civiles y políticos y la
“mano invisible del mercado”– que permita la acción aislada y apolítica de
individuos dirigidos por sus propios e intocables intereses. La paradoja está
servida: individuos que se definen como “no situados”, dependiendo de la
“situación” en la que viven. Rechazo de la política –como construcción de
condiciones sociales, económicas y culturales– y dependencia de ella –como
garantía del espacio moral individual. ¿Cómo si no proteger la libertad como
autonomía?
Esta última pregunta nos conduce inevitablemente a la segunda
interpretación
del
concepto
de
libertad.
Más
que
de
autonomías
e
independencias, hablar de libertad supone hacerlo de política, o, lo que es lo
mismo, de construcción de espacios sociales en los que los individuos y los
grupos puedan llevar adelante sus luchas por su propia concepción de la dignidad
humana. Ejercer la libertad supone, pues, ir más allá de la lucha por la igualdad.
Como afirma Amartya Sen, la libertad, entendida desde esta segunda
interpretación, tiene, a su vez, dos facetas: una “constitutiva”, en la que prima la
construcción “política” de condiciones que permitan a la ciudadanía ejercer su
lucha por la dignidad humana, o, en palabras de Sen, de “abordar el mundo con
coraje y libertad”: evitar privaciones como la inanición, la desnutrición, la
morbilidad evitable o prematura; y otra “instrumental”, en la que la libertad, en este
caso las libertades políticas, puedan servir como instrumento de progreso e
igualación económicos. La faceta constitutiva de la libertad nunca debe quedar
eclipsada por la instrumental, dado que desde aquella se posibilita que “...los
individuos (se vean) como seres que participan activamente –si se les da la
oportunidad– en la configuración de su propio destino, no como meros receptores
pasivos de los frutos de ingeniosos programas de desarrollo” 15.
La lucha por los derechos humanos exige la imbricación de los cuatro
niveles que hemos mencionado. Evitar los malestares de la dualidad, de la
emancipación, del desarrollo y del individualismo sólo será posible a medida que
vayamos construyendo un espacio social ampliado en el que la lucha contra la
discriminación tenga en cuenta, por un lado, la progresiva eliminación de las
15
Sen, A., Desarrollo y Libertad, Planeta, Barcelona, 2000, p. 54 y 75
86
Joaquín Herrera Flores
situaciones de desigualdad y, por otro, convierta las diferencias en un recurso
público a proteger. Se trata, por tanto, de tomarse en serio el pluralismo, no como
mera “superposición” de consensos, sino como la práctica democrática que
refuerza la diferencia de las posiciones en conflicto y se sustenta en la
singularidad de sus interpretaciones y perspectivas acerca de la realidad.
1.C. La Precisión Filosófico-Jurídica. La Crítica a la Utopía de la Validez Formal
Hemos repetido más arriba que el término derechos humanos es una
convención adoptada en 1948 en los comienzos de la época de la Guerra Fría,
convirtiéndose en el discurso ideológico hegemónico del nuevo proceso de
acumulación de los capitales simbólicos, sociales y culturales de la fase
keynesiana del modo de producción capitalista. Si antes de la Declaración
Universal de los Derechos Humanos no podía hablarse de derechos humanos
“propiamente dichos”, sino de derechos de la nueva clase emergente que va
conquistando a lo largo de los siglos XVI al XX todas y cada una de las esferas
del poder16, tras la “gran victoria” frente al nacionalsocialismo e, indirectamente,
frente al comunismo soviético y la sustitución del imperialismo europeo por el de
matriz estadounidense, la ideología liberal –con sus componentes individualistas,
abstractos y formalistas– se consolida como la visión “natural” y “universal” que se
expresa diáfana y con matices universalistas en las “normas” y textos que van
surgiendo del orden institucional global de Naciones Unidas. Este orden, que se
mantiene intacto hasta la crisis del keynesianismo a principios de los setenta y
que se desmorona a finales de los ochenta con el “triunfo” del capitalismo
anglosajón y sus justificaciones englobadas bajo el rótulo del “fin de la historia” y
del “Consenso de Washington”, está siendo sustituido por otro conjunto de
procesos que están ampliando la idea liberal de derechos humanos a otras
esferas antaño consideradas “malditas” al “pertenecer” a los supuestos básicos
del marxismo y del socialismo real17. Lo que nos interesa, por el momento, es
16
Ver las obras de Richard TUCK, Natural Rights Theories, Cambridge University Press, 1981;
Philosophy and government: 1572-1651, Cambridge University Press, 1993; y, sobre todo, The
rights of war and peace: political thought and the international order from Grotius to Kant, Oxford
University Press, 1999
17
Negri, A., Hardt, M., Imperio, Paidós, Barcelona, 2002.
Los Derechos Humanos en el Contexto de la Globalización
87
resaltar la visión liberal individualista de los derechos humanos que, a partir de
ese afán universalizador y garantista de la ideología liberal, ha primado en el
periodo de la Guerra Fría y que aún sigue funcionando como presupuesto
ideológico en el campo de la producción jurídica. Por un lado, el término
“humanos” ha servido para la imposición de una concepción, como decimos,
liberal-individualista de la idea de humanidad, la cual sobrevolaría por encima de
la división del mundo en los dos bloques antagónicos, y que funciona “como si”
expresara la esencia abstracta de la persona. Por otro, el término “derecho” ha
servido para presentar los derechos humanos “como si” pudieran ser garantizados
por sí mismos sin la necesidad de otras instancias. Esto ha llevado a polémicas
falaces y desenfocadas que han discutido si era mejor hablar de derechos
fundamentales o de derechos humanos (o como en el caso de Habermas de
“derechos” formales versus derechos “humanos”). El hecho de la existencia de un
derecho nacional de los derechos humanos (los derechos fundamentales), y un
derecho internacional de los derechos humanos, nos aclara lo que venimos
defendiendo: cuando hablamos de derechos humanos, lo hacemos de una
convención, de un acuerdo ideológico, que apunta a algo que tiene más contenido
que el puramente formal y que, asimismo, nos aleja de las visiones esencialistas
de la Declaración de 1948. Y, sin embargo, como vimos con Habermas –visión
ratificada por el escepticismo que profesa la teoría jurídica en relación al concepto
de derechos humanos– predomina la concepción formalista de los mismos.
Esta concepción, además de mantener una concepción restringida de
cultura jurídica como algo separado del conjunto de relaciones sociales, políticas,
jurídicas y económicas, parte también de una visión muy estrecha de las prácticas
jurídicas. El derecho no es únicamente un reflejo de las relaciones sociales y
culturales dominantes; también puede actuar, o, mejor dicho, puede ser usado, y
así
ha
sido
históricamente
tanto
por
tendencias
conservadoras
como
revolucionarias, para transformar tradiciones, costumbres e inercias axiológicas.
No es que estemos ante una herramienta neutral: en primer lugar, el derecho es
una
técnica
de
dominio
social
particular 18
que
aborda
los
conflictos
neutralizándolos desde la perspectiva del orden dominante. Y, en segundo lugar,
18
Capella, J.R., Elementos de análisis jurídico. Op. cit. pg. 150
88
Joaquín Herrera Flores
es una técnica especializada que determina a priori quién es el legitimado para
producirla y cuáles son los parámetros desde donde enjuiciarla. De ahí la inmensa
fuerza del que controla –en otras palabras, del que está dotado de autoridad para
la– tarea de “decir” el derecho a la hora de conformar actitudes y regular
relaciones sociales en un sentido ideológica y políticamente determinado, que en
la actualidad sigue siendo fuertemente sexista. Por tanto, ni desprecio de la lucha
jurídica, ni confianza en que sólo a través de ella se va a llegar a un tipo de
sociedad justa en la que quepan todas las expectativas, no sólo las hegemónicas.
Toda “lectura” de la realidad se hace desde dos posiciones: en primer
lugar, “leemos” el mundo desde las claves que el presente nos ofrece, es decir,
desde los parámetros dominantes que conforman la hegemonía en un espacio y
en un tiempo determinados: estamos ante la posición ideológica. Mientras que, en
segundo lugar, “leemos” el mundo desde la situación que ocupamos en el interior
de los conflictos sociales; o, lo que es lo mismo, desde las claves que la acción
social, opositora o legitimadora frente al status quo, nos ofrece: posición política.
Pues bien, la cultura jurídica –entendida como el conjunto de presupuestos
teóricos, conceptuales y simbólicos a través de los cuales se interviene en, se
explican y, en su caso, se interpretan las relaciones sociales desde el derecho–,
despliega, por decirlo en términos de Juan Ramón Capella, un conjunto de
“selectores doxológicos” 19 que inducen a un determinado tipo de “lectura” del
fenómeno jurídico.
En primer lugar, es una lectura “no ideológica”, la cual tiene una versión
fuerte, que es la que niega la influencia de las ideologías en la producción,
interpretación y aplicación del derecho; y una versión débil, que afirma que el
derecho es susceptible de ser usado por cualquier ideología: aún reconociendo
que las normas jurídicas son producto de una lectura determinada de las
relaciones sociales, al entrar a formar parte del ordenamiento jurídico positivo,
adquieren el carácter de universalidad y generalidad. Y, en segundo lugar, una
lectura “no política”, cuya versión fuerte se afirma en los dogmas de
autosuficiencia (validez formal) y completud (mecanismos de ajustes puramente
internos); y su versión débil, la que, aún reconociendo el apego del derecho a los
19
Capella, J.R., Elementos de análisis jurídico, Op. cit. pg. 138
Los Derechos Humanos en el Contexto de la Globalización
89
conflictos, primero, “olvida” cuál de dichos conflictos estuvo en el origen de las
normas y, a continuación, supone que desde ellas se puede resolver
“técnicamente” cualquier otro conflicto que se presente de una manera neutral y
aséptica.
Tanto desde su versión fuerte como débil, esta lectura del derecho
“selecciona”, jerarquiza y separa los diferentes componentes que constituyen el
fenómeno jurídico en su globalidad y complejidad, invisibilizando o difuminando,
como veremos, las posiciones ideológicas y políticas del mismo sustentadas en la
visión patriarcal, vale decir, sexista de la realidad social.
La costarricense Alda Facio 20, defiende que para llegar a un derecho y a un
análisis jurídico apropiados para entender la categoría de derechos humanos de
todas y todos, es preciso adoptar, en primer lugar, un concepto amplio de derecho
que
contemple
tanto
el
componente
formal/normativo,
como
el
institucional/estructural y el político/cultural; concepto que conduzca a la
consiguiente ampliación de los conceptos de validez formal, aplicación e
interpretación y eficacia de las normas; de lo que se deduce, en segundo lugar, la
exigencia de una visión relacional, no fragmentaria o idealizada, de dichos
componentes, dado que no se habla de tres esferas o perspectivas, sino de tres
componentes de una misma realidad, sólo separables a un nivel pedagógico.
Hablar del componente formal/normativo, es hacerlo no sólo del conjunto
de normas positivas que configuran lo que se denomina “ordenamiento jurídico”,
aunque éste sea su contenido fundamental; sino también, del conjunto de reglas
que institucionalizan determinados comportamientos relegando otros a lo
perseguido o perseguible por las instituciones dotadas de autoridad. Estas reglas
no agotan su funcionalidad en sí mismas, sino que van marcando el ritmo de la
actividad interpretativa, creando, al mismo tiempo, formas de pensar que
establecen lo que en un deteminado momento espacio-temporal se denomina
sentido común. Estamos pues ante la “ordenación” y regulación de quien ostenta
poder, de quien interpreta las decisiones de ese poder, conformando, paralela y
simultáneamente, las conciencias de los sometidos a la autoridad. Por lo que los
20
Facio, A., Cuando el género suena cambios trae, ILANUD, San José de Costa Rica, 1999;
Facio, A., y Fries, L., “Feminismo, Género y Patriarcado”, y Facio, A., “Hacia otra teoría crítica del
derecho”, ambos trabajos recogidos en Facio, A., y Fries, L., (edit.), Género y Derecho, LOM
Ediciones/La Morada, 1999, p. 21-60, y 201-229 respectivamente.
90
Joaquín Herrera Flores
componentes estructural/institucional y el político/ cultural influyen, y son influidos,
por
el
componente
formal.
Asimismo,
hablar
del
componente
estructural/institucional no consiste únicamente en describir las instituciones que
crean las normas, las aplican y las tutelan. También hay que hablar del
“contenido” que dichas instituciones les dan a las normas formalmente
promulgadas al combinarlas, seleccionarlas, aplicarlas e interpretarlas, creando,
como afirma Facio, otras leyes no escritas –como la que impone la tendencia a
otorgar los hijos a las madres en los procesos de separación y divorcio–, pero de
tanta o mayor importancia a la hora de entender el fenómeno jurídico en su
globalidad. Desde esta perspectiva, no se puede entender la interpretación y
aplicación del derecho (sea por parte de la administración pública o la de justicia)
únicamente desde la actividad del órgano dotado de jurisdicción (es decir, desde
las operaciones intelectuales realizadas por las entidades jurisdiccionales a la
hora de interpretar y aplicar la norma); sino también desde los resultados a los
que conducen dichas actividades, o lo que es lo mismo, desde la atribución de
significados a los hechos y a las normas en función de la cultura jurídica que
predomine y los objetivos y valores dominantes. La interpretación y aplicación que
de una ley se realice de forma reiterativa, o la ausencia de ambas –por ejemplo,
por su lejanía de la realidad social o por una imposibilidad material de aplicación–
va dotando de significados a dicha ley otorgándole una determinada vigencia o
falta de efectividad al margen de la pura actividad formal. El hermeneuta, tal como
lo concibe Juan Ramón Capella, está ligado a dos tipos de exigencias: unas,
internas a la actividad de decidir; otras, ligadas a la estructura institucional en la
que está inserto. Por lo que el juez o el administrador no sólo están sujetos a
normas preexistentes y a reglas institucionales, sino también a valores, ideales,
representaciones intelectuales, pasiones, intereses concretos y condiciones de
factibilidad de su actuación jurisdiccional que no tenemos otro remedio que
considerar como parte del contenido de la ley, si es que no queremos, como
veremos más adelante, caer en una metafísica jurídica de claros tintes
conservadores. De igual modo, el componente político/cultural no se reduce al
mero conocimiento que la ciudadanía tenga de las leyes. Está claro que si no
conocemos nuestros derechos, éstos no se exigirán. Pero en esta tarea
ciudadana de “exigencia” y reconocimiento de derechos, estos se rellenarán de un
Los Derechos Humanos en el Contexto de la Globalización
91
contenido ausente de la pura redacción formal. Como afirma Alda Facio, del
contenido que cada comunidad le dé a los principios y valores tales como libertad,
igualdad, solidaridad, honestidad... dependerá mucho de lo que se entienda por
“igualdad de salario”, “igualdad conyugal”, “igual cualificación” o “libertad de
trabajo”, todos ellos conceptos relevantes de diferentes campos jurídicos
concretos. Una ley o una norma por muy válida que sea, en el sentido formal del
término, no podrá ser interpretada o aplicada por las autoridades jurisdiccionales
si no es auspiciada, impulsada o exigida por la ciudadanía, y, asimismo, una
norma será o no considerada conforme a la constitución, no por sí misma, sino
hasta que un tribunal así lo decida, bien –en nuestro ordenamiento constitucional–
por duda razonable, bien, por el recurso planteado por los sectores “sociales”
legitimados para ello. Por tanto los tres componentes del fenómeno jurídico hay
que entenderlos en estrecha interrelación.
Sin embargo, hay que insistir sobre el nivel formal de lo jurídico, ya que es
ahí donde más se han cebado las interpretaciones metafísicas al imputarle una
característica más propia de los elementos que componen el topos uranos
platónico
que
los
específicos
de
una
sociedad
democrática:
la
autofundamentación. A pesar de la imposibilidad de un sistema cerrado y
completo en sí mismo denunciada por Gödel y las mismas dudas del mismo
Kelsen en relación al carácter de mero supuesto, de hipótesis o de ficción de la
Grundnorm, la idea “utópica” de validez formal (la validez o invalidez de una
norma puede deducirse desde sí misma y únicamente en relación con otras
normas, por lo que el proceso jurídico se percibe como un mecanismo automático
que sigue las pautas de alguna entidad 21) sigue funcionando, no sólo como
selector, sino, de un modo más relevante, como “inductor” doxológico para los
operadores jurídicos. El trato con las normas jurídicas como si estas formaran
parte de una máquina autosuficiente hace pensar al que legisla, aplica o interpreta
–misión básica y tradicional de los años de aprendizaje y de los ritos de entrada
en la práctica jurídica legítima–, que el derecho se sustenta a sí mismo y no está
sometido a alguna previa “lectura” de la realidad. Una norma es válida si y sólo si
existe otra norma que corrobora el enunciado, sin apenas reflexionar acerca del
21
Hinkelammert, F.J., Crítica de la razón utópica (edición a cargo de J.A. Senent de Frutos),
Desclée de Brouwer, 2002
92
Joaquín Herrera Flores
“misterio” que subyace a la autoridad que otorgó legitimidad a la “Grundnorm”
originaria, cuya “voluntad” es diaria y cotidianamente puesta en circulación desde
los diferentes campos de actividad del derecho. Más que “conocer el derecho”, el
juez debe saber situarse en los límites de esa “norma básica” que se finge aceptar
como la dadora originaria de validez y que permite separar los tres componentes
de todo fenómeno jurídico, otorgándole a cada uno una esfera independiente de
actuación con respecto a un mero texto concebido, por obra y gracia de esa
norma fundamental, como una cosa o un objeto situado al margen de las
diferentes subjetividades.
La utopía de la validez formal presupone, pues, la “ficción” de un legislador
y un intérprete omnisciente que es capaz de conocer los límites y fundamentos
del derecho sin tener que recurrir a alguna entidad externa a él; y, asimismo, se
basa en la “creencia” –o, asimismo, en la ficción– de que el ordenamiento jurídico
es una máquina autosuficiente que camina por sí sola al otorgarse a sí misma los
criterios que la convierten en válida para todos los que van a regularse por ella. La
omnisciencia del legislador, del intérprete/aplicador y del intérprete/descubridor de
lógicas inmanentes, o la referencia a la autorregulación y autofundamentación de
la maquinaria jurídica, son ambos presupuestos metafísicos que no pueden
someterse
a
las
condiciones
de
factibilidad
(lecturas
condicionadas
y
contextualizadas de las relaciones sociales y ausencia de todo automatismo de
los sistemas) de toda anticipación racional que no pretenda convertirse en utopía
absolutista y cosificada. Sin embargo, por muy metafísicos y utópicos que sean,
dichos presupuestos son necesarios para evitar reconocer la presencia de las
ideologías y de las relaciones fácticas de poder, y pasar a entender las normas
como enunciados normativos neutrales y universales. “Porque si no se “finge” la
existencia de la Grundnorm, nos quedaríamos únicamente con la descripción de
hechos o de relaciones fácticas de poder” 22, con lo que ni se describe ni se
conoce el derecho positivo,
...sino que se acaba construyendo un discurso político o una
ideología acerca de cómo debe ser concebido el Derecho, esto es,
una concepción apriorística del mismo... un sistema jurídico22
Fariñas Dulce, M.J., “La ‘ficción’ en la teoría jurídica de Kelsen” en Crítica Jurídica. Revista
Latinoamericana de Política, Filosofía y Derecho, 18, 2001, p. 106
Los Derechos Humanos en el Contexto de la Globalización
93
estatal unificado, jerarquizado, pleno y coherente de normas
jurídicas y autoridades normativas, dotado de validez objetiva y
obligatoriedad intrínseca... 23,
del cual han sido amputados los hechos y las mismas relaciones de poder. Lo
dice muy bien Antonio Tabucchi en La cabeza perdida de Damasceno Monteiro,
utilizando para ello la “ficción” literaria:
es una proposición normativa –dice el abogado al periodista–, está
en el vértice de la pirámide de lo que llamamos Derecho. Pero es
el fruto de la imaginación del estudioso, una pura hipótesis... Si
usted quiere es una hipótesis metafísica, absolutamente
metafísica. Y si usted quiere, se trata de un asunto auténticamente
kafkiano, es la norma que nos enreda a todos y de la cual, aunque
le pueda parecer incongruente, se deriva la prepotencia de un
señorito que se cree con derecho a azotar a una puta. Las vías de
la Grundnorm –concluye el abogado– son infinitas 24.
No se quiere decir que, por ejemplo, una constitución democrática induzca
o proteja al torturador, al violento o al que maltrata a una mujer (aunque las
nuevas tendencias legislativas antiterroristas, surgidas en los USA –tras el 11 de
Septiembre– y rápidamente adoptadas, más o menos a regañadientes, por sus
satélites,
contradigan
la
afirmación
anterior,
dada
su
pretendida
constitucionalidad), sino que la ficción cultural que está en la base de las normas,
sobre todo de aquella que “nos enreda a todos”(legisladores, aplicadores,
intérpretes y ciudadanas/os), conduce a la legitimación, ahora sí, normativa de
actos de violencia, de explotación o de marginación difícilmente controlables por
el resto de normas jurídicas enredadas en aquella hipótesis o ficción.
Como afirma Robert Cover, habitamos un nomos, un universo normativo a
partir del cual distinguimos entre el bien y el mal, lo legal y lo ilegal, lo válido y lo
inválido.
Las reglas y principios de justicia, las instituciones formales del
derecho y las convenciones del orden social son, por supuesto,
importantes para ese mundo (normativo); y, sin embargo, sólo son
una pequeña parte del universo normativo que debería llamar
23
24
Fariñas Dulce, M.J., op. cit. p. 105-106.
Tabucchi, A., La cabeza perdida de Damasceno Monteiro, Anagrama, Barcelona, 1997, p. 86-87
94
Joaquín Herrera Flores
25
nuestra atención .
Quedarnos en el aspecto puramente formal nos hace olvidar, o nos oculta
ideológicamente, que actuamos en el marco de un conjunto de narraciones que
sitúan las normas y les otorgan significado cultural. Toda constitución –afirma
Cover– tiene una épica, como todo decálogo tiene una Escritura.
Cuando se lo entiende en el contexto de las narraciones que le
dan sentido, el derecho deja de ser un mero sistema de reglas a
ser observadas, y se transforma en un mundo en el que vivimos.
Los derechos humanos funcionan como ese contexto de narraciones al
establecer “procesualmente” las relaciones entre el mundo normativo y el mundo
material, entre los límites y obstáculos de la realidad y las demandas éticoculturales de la comunidad. El que ese contexto de narraciones nos conduzca a
un paradigma de pasividad y de resignación o a otro de contradicción y
resistencia dependerá de nuestros “compromisos interpretativos” en relación con
el estado de cosas dominante. Si reducimos los derechos a su componente
jurídico-formal perderemos eso que George Steiner denomina la “alternidad” del
“nomos”, es decir, la facultad de construir “lo distinto a lo que es”, es decir,
...las proposiciones, imágenes, formas del deseo y de la evasión
contrafácticas con las cuales alimentamos nuestra vida mental y a
través de las cuales construimos el medio cambiante y en gran
medida ficticio de nuestra existencia somática y social 26.
Si analizamos las normas (o, lo que es muy importante, las consecuencias
de su aplicación a colectivos tradicionalmente marginados de las ventajas que
25
Robert Cover, Derecho, narración y violencia. Poder constructivo y poder destructivo en la
interpretación judicial, (edición a cargo de Ch. Courtis), Gedisa (Biblioteca Yale de Estudios
Jurídicos), Barcelona, 2002, p. 16
26
G. Steiner, Después de Babel, Fondo de Cultura Económica, México D.F.-Madrid, 1980 (ver R.
Cover, op cit., p. 23. “El alcance del significado que se puede asignar a toda norma –la
interpretabilidad de la norma- se define, entonces, tanto por un texto legal, que objetiva la
exigencia, como por una multiplicidad de compromisos implícitos y explícitos que lo acompañan.
Algunas interpretaciones están escritas con sangre, y permiten apelar a la sangre como parte de
su fuerza de legitimación. Otras interpretaciones suponen límites más convencionales acerca de
cuánto debe arriesgarse en su defensa. Las narraciones que cada grupo particular asocia con la
ley revelan el alcance de los compromisos del grupo. Esas narraciones también ofrecen recursos
de justificación, condena y debate a los actores del grupo que deben luchar para vivir su ley”, p77)
Los Derechos Humanos en el Contexto de la Globalización
95
supone la adopción de aquella ficción y de ese “nomos”) y las teorías o
reflexiones sobre las mismas, percibiremos las dificultades existentes a nivel
jurídico e institucional para incluir las expectativas y los valores de grandes capas
de la población: el patriarcalismo, el individualismo posesivo y el formalismo están
en la base de dicha norma fundamental, de dicha hipótesis, ficción o, mejor aún,
de dicha cultura jurídica dominante. Ahora bien, al toparnos con universos
discursivos y no con esencias absolutas o metafísicas, podremos defender que, si
la burguesía tuvo éxito al construir un procedimiento que le permitió elevar sus
valores y expectativas a la categoría de “Grundnorm”, hoy en día se debe
generalizar dicha posibilidad y posibilitando una transformación del procedimiento
jurídico para que otros colectivos puedan constituir –parafraseando a Ignacio
Ellacuría–, otra “Grundnorm”: es decir, otro conjunto de ficciones y supuestos,
favorables ahora, no sólo a una clase social, la que triunfa con las revoluciones
burguesas, sino a los colectivos tradicionalmente marginados de la ficción
hegemónica: indígenas, inmigrantes, mujeres...
Por muy importante que sea defender el principio de seguridad jurídica que
certifica la validez interna de las normas y otorga certeza en la aplicación del
derecho, y por muy relevante que sea identificar las normas que promuevan
desigualdades o discriminaciones –tanto en su redacción formal como en los
resultados que produzcan–, cuando hablamos desde la convención de los
derechos humanos es mucho más necesario desvelar y enjuiciar críticamente los
rasgos patriarcales de la cultura jurídica; es decir, los supuestos, hipótesis y
ficciones que imponen un único punto de vista, una lectura particular y parcial de
la realidad como si fuera la única y la universal. Y para ello se necesita una
concepción del derecho que interrelacione sus tres componentes.
2. El Concepto de Derechos Humanos: Los Derechos Humanos como
Procesos
...la libertad es lo más apreciado y lo más dulce... esta libertad no
sólo se puede conceder sin perjuicio para la paz piedad y la paz
del Estado, sino que, además, sólo se la puede suprimir,
suprimiendo con ella la misma paz del Estado y la piedad
(Spinoza, Tratado teológico-político, Prefacio 20-30)
La capacidad de disfrutar es condición para disfrutar, y es, por lo
96
Joaquín Herrera Flores
tanto, su primer instrumento; esta capacidad equivale al desarrollo
de un talento individual, de la fuerza productiva.
(A. Negri, Marx oltre Marx, cap.8)
Los derechos humanos, en su integralidad y desde el universo normativo
de resistencia que defendemos en estas páginas, constituyen algo más que el
conjunto de normas formales que los reconocen y los garantizan a un nivel
nacional o internacional, formando parte de la tendencia humana ancestral por
construir y asegurar las condiciones sociales, políticas, económicas y culturales
que permiten a los seres humanos perseverar en la lucha por la dignidad, o lo que
es lo mismo, el impulso vital que, en términos spinozianos, les posibilita
mantenerse en la lucha por seguir siendo lo que son: seres dotados de capacidad
y potencia para actuar por sí mismos. Los valores –libertad, igualdad, solidaridad–
que en esas luchas se han ido formulando han sido producto de lo que Spinoza
denominó el conatus 27, es decir, la creación inmanente de potencia política de la
multitud para perseverar en la existencia y ampliar el poder del conocimiento y de
la acción humana 28. Este conatus constituye el fundamento inmanente de los
derechos humanos. Cada formación socio-política que se ha dado en la historia
no ha tenido su causa en alguna voluntad trascendente que dadivosamente le
otorga su posibilidad de existencia; la causa es siempre inmanente, y se identifica
con ese conatus que nos impulsa a la autoconservación y cuya fuerza e
intensidad no está en relación con esencias metafísicas sino con el conjunto de
relaciones que mantenemos con otras fuerzas, sean naturales o sociales. El
“conatus”, la potencia de la multitud es la causa inmanente de nuestra humana
tendencia a actuar en aras de la perseveración en el ser y de la transformación de
todo aquello que intente reducir su fuerza y su dinamismo. Si nuestro universo
normativo se sustenta en el miedo, en la superstición y en la muerte, estamos
27
Término latino que significa esfuerzo de, o esfuerzo para; en la filosofía del siglo XVII, es usado
a partir de la nueva física que, al presentar el principio de inercia (un cuerpo permanece en
movimiento o en reposo si ningún otro cuerpo actúa sobre él modificando su estado), hace posible
la idea de que todos los seres del universo poseen la tendencia natural y espontánea a la
autoconservación y se esfuerzan para permanecer en la existencia. Ver Marilena Chauí, Espinosa,
uma filosofia da liberdade, Editora Moderna, Sao Paulo, 1995, p. 106.
28
Los valores no constituyen una esfera separada u objetiva que oriente la acción humana desde
fuera de sí misma. Por ejemplo, la libertad, para Spinoza, no se identifica con el libre arbitrio de la
voluntad a la hora de elegir entre varias opciones que se le presentan heterónomamente. De
acuerdo con Spinoza, la libertad no es un acto de elección voluntaria, sino la capacidad para
convertirnos en agentes o sujetos autónomos de nuestras ideas, sentimientos y acciones, de
acuerdo con la causalidad interna de nuestro “conatus”. Ver Marilena Chauí, op. cit. P. 107.
Los Derechos Humanos en el Contexto de la Globalización
97
ante la aniquilación de lo humano, entendido no como el resultado de la
manifestación de alguna esencia trascendente a nuestra condición humana, sino
como el despliegue de nuestras potencialidades inmanentes. Sólo desde la
alegría, la felicidad y el deseo de vida que sólo se despliegan cuando lo social, lo
jurídico, lo económico o lo político se dedican a fortalecer nuestra potencia
ciudadana, es como podemos plantear una definición de derechos humanos que
supere los intentos de reducirlos a una de sus facetas: la jurídica-formal, o de
insertarlos en una trascendencia metafísica alejada de las pasiones, las
necesidades y las determinaciones de nuestra existencia 29.
Los derechos humanos, pues, deben ser vistos como la convención
terminológica y político-jurídica a partir de la cual se materializa el “conatus” que
nos induce a construir tramas de relaciones –sociales, políticas, económicas y
culturales– que aumenten las potencialidades humanas. Por eso debemos
resistirnos al esencialismo de la “convención” –la narración, el horizonte
normativo– que ha instituido el discurso occidental sobre tales “derechos”. Si,
convencionalmente se les ha asignado el calificativo de “humanos” para
universalizar una idea de humanidad (la liberal-individualista) y el sustantivo de
“derechos” para presentarlos como algo conseguido de una vez por todas,
nosotros nos situamos en otra narración, en otro nomos, en otra grundnorm, en
un discurso normativo de “alternidad”, de alternativa, de resistencia a los
esencialismos y formalismos liberal-occidentales que, hoy en día, son
completamente funcionales a los desarrollos genocidas e injustos de la
globalización neoliberal.
Bajo estas premisas, los derechos humanos, en su integralidad (derechos
humanos) y en su inmanencia (trama de relaciones) pueden definirse como
el conjunto de procesos sociales, económicos, normativos,
políticos y culturales que abren y consolidan –desde el
“reconocimiento”, la “transferencia de poder” y la “mediación
29
Sobre el conatus spinoziano, entendido como fundamento inmanente de los derechos humanos,
puede consultarse la Parte III de la Ética (RBA, Barcelona, 2002) y el Tratado Político, Alianza,
Madrid, 1986. Asimismo, consultar Lucía Lermond Leiden, The form of man: human essence in
Spinoza’s “Ethic”, E.J. Brill, 1988; G. Deleuze, Spinoza: filosofía práctica, Tusquets, Barcelona,
2001; A. Negri, La Anomalía Salvaje: ensayos sobre poder y potencia en Baruch Spinoza,
Anthropos, Barcelona/UAM Iztapalapa, 1993; y la magna obra de la filósofa brasileña Marilena
Chauí, A nervura do real. Imanência e Liberdade en Espinosa, Vol. 1 Imanência, Companhia Das
Letras, 1999.
98
Joaquín Herrera Flores
jurídica”– espacios de lucha por la particular concepción de la
dignidad humana 30.
Para los objetivos de este trabajo, nos interesa resaltar la idea según la
cual los derechos humanos no son algo dado y construido de una vez por todas
en 1789 o en 1948, sino que se trata de procesos. Es decir, de dinámicas y luchas
históricas resultado de resistencias contra la violencia que las diferentes
manifestaciones del poder, tanto de las burocracias públicas como privadas, han
ejercido contra los individuos y los colectivos. Ahora bien, no hablamos de
procesos “abstractos” dirigidos por alguna filosofía o dialéctica histórica con
pretensiones de objetividad y absolutismo; ni, asimismo, lo hacemos de un poder
mistificado en alguna instancia trascendente, a partir de la cual la realidad social
va
emanando
milagrosamente.
“convencionalmente” hemos
ido
Los
procesos
denominando
de
como
lucha,
a
los
que
derechos humanos,
comenzaron a surgir históricamente con la aparición y consolidación paulatina de
una nueva forma de producir y de distribuir bienes, que fue dando como resultado
nuevas formas de relación social: el modo de producción capitalista y su dogma
de los mercados autorreguladores.
Como afirma Bourdieu, a estas nuevas relaciones de producción que
conforman las diferentes formas de capital –económico, social, cultural– que se
han ido dando históricamente, le corresponden diferentes formas de poder –
político, regulador, simbólico– que aseguran su producción y su reproducción
social.
El capital es una fuerza inscrita en la objetividad de las cosas que
determina que no todo sea igualmente posible e imposible (...) la
estructura de distribución de los diferentes tipos y subtipos de
capital, dada en un momento determinado del tiempo,
corresponde a la estructura inmanente del mundo social, esto es,
a la totalidad de fuerzas que le son inherentes y mediante las
cuales se determina el funcionamiento duradero de la realidad
social y se deciden las oportunidades de éxito de las prácticas 31.
30
Joaquín Herrera Flores “Hacia una visión compleja de los derechos humanos” en Joaquín
Herrera Flores (ed.), El Vuelo de Anteo. Derechos Humanos y Crítica de la Razón Liberal, Desclée
de Brouwer, Bilbao, 2001.
31
Pierre Bourdieu, Poder, Derecho y Clases Sociales, Desclée de Brouwer, Bilbao, 2ª edición,
2001, p. 132-133 (cursivas nuestras).
Los Derechos Humanos en el Contexto de la Globalización
99
En primer lugar, el capital es una fuerza inscrita, un tipo de relación
construida y no una fase histórica objetiva que contiene un pasado y un futuro
ineluctables; en segundo lugar, es una fuerza que construye la estructura
inmanente del mundo social, es decir, el marco institucional y la propia naturaleza
de las prácticas sociales; para, en tercer lugar, condicionar dichas prácticas al tipo
de acción (¿racional?) desmovilizadora y despolitizadora que las reduce a una
inercia política conservadora que
...mantiene a los agentes dominados en una situación de grupo
meramente práctica, de tal modo que sólo entren en contacto
unos con otros mediante la orquestación de disposiciones,
resultando condenados, además, a funcionar como un agregado y
a limitarse a unas prácticas aisladas y aditivas siempre idénticas
(como las decisiones electorales o de consumo) 32.
A medida que ese tipo de
estructura inmanente del mundo social” se va generalizando
históricamente y va consolidando estructuras de poder adecuadas
a su afán voraz de acumulación y dominación, van surgiendo los
procesos que, en la actualidad, denominamos “derechos
humanos.
Estos constituyen, por un lado, dinámicas sociales de diferente tipo que
han impulsado a la acción frente a la extensión y generalización de las relaciones
sociales, políticas, económicas y culturales que se iban construyendo en la
interacción entre las diferentes formas de capital y sus consecuentes formas de
poder. Y, asimismo, han funcionado como marcos o esquemas de acción y
pensamiento que han permitido generalizar socialmente valores alternativos a la
forma de relación social dominante. Así, la burguesía en ascenso durante los
siglos XVII y XVIII utilizó los “derechos del ciudadano” –en esta fase histórica no
se puede hablar aún de “derechos humanos”– para resistirse al esquema de
relaciones que primaba bajo las monarquías absolutistas. El proceso de
“acumulación originaria” exigía, primero, la conformación de espacios autónomos
de acción en los que las burocracias feudales o monárquicas no pudieran
32
P. Bourdieu, op. cit.: nota 1, p. 132 y, del mismo autor, Esquisse d’une théorie de la pratique
precede de trois études d’ethnologie kabyle, Droz, Genève, 1972
100
Joaquín Herrera Flores
interferir, y, segundo, un tipo de fundamento esencialista “humanista” que
propiciara una consideración de las relaciones sociales como producto del
despliegue de una naturaleza humana “individualista” y “posesiva” ancestral, que,
vayamos a saber por qué milagrosa razón, coincidía con los intereses de la clase
en ascenso. Las “filosofías de la historia” cumplieron su papel al afirmar que el
presente no era más que la consecuencia necesaria de un pasado que, al mismo
tiempo, incluía en él las mismas claves del futuro. La garantía filosófica, ética y
política de la nueva configuración social, económica, política y cultural y su propia
reproducción escatológica quedaba asegurada. Sin embargo, en el mismo seno
de esta nueva estructuración de las relaciones entre capital y formas de poder
que se sustenta en la categoría de derechos del “hombre” y del ciudadano, ya
iban surgiendo quiebras impulsadas por los colectivos que quedaban marginados
de las ventajas del sistema y que proponían nuevas rearticulaciones económicas,
filosóficas y políticas: Olimpe de Gouges y sus reivindicaciones de género; Babeuf
y su lucha por la sustitución de la igualdad formal ante la ley por una igualdad real
de todos; Toussaint L’ Ouverture y sus prácticas antiesclavistas y antirracistas;
Marx y su análisis “científico” del funcionamiento del capitalismo como base de
prácticas antisistémicas... Todos ellos construyendo las posibilidades de otro
proceso en el que esos derechos de los ciudadanos no funcionaran como
obstáculos para prácticas sociales diferentes. ¿Qué decir de los movimientos
feministas de los años 70 y 80 a favor de la aceptación de la diferencia de
género? ¿Dónde contextualizar los esfuerzos de los colectivos negros, latinos,
indígenas sino en la construcción de nuevos procesos y nuevos espacios de lucha
por su particular concepción de la dignidad humana?
Estamos, pues, ante procesos y dinámicas históricas que han ido tomando
forma en textos y declaraciones, y que desde el siglo XVIII hasta la actualidad han
venido conformando el marco de adaptación o reacción frente a las
consecuencias de la extensión social, económica, política y cultural del modo de
producción capitalista.
Como decimos, estos textos y declaraciones son, por un lado, producto de
la reacción social frente a las diferentes fases por las que ha atravesado la
construcción de dicha estructura inmanente del mundo social; pero, por otro, han
querido ser vistos ideológicamente –idios logos: discurso privado y particular que
Los Derechos Humanos en el Contexto de la Globalización
101
se presenta como universal– como producto del despliegue de una naturaleza
humana esencial y abstracta. Si nosotros hablamos de derechos humanos como
procesos de lucha –el conatus como fundamento inmanente de los derechos
humanos–, debemos negar estas fundamentaciones idealistas y ver los derechos
humanos en sus contextos y en sus relaciones de adaptación o crítica ante la
estructura inmanente del mundo social que impone el capitalismo.
Así, como hemos visto, con el primer conjunto de textos (siglo XVIII) nos
encontramos con la formulación de los derechos del ciudadano, bajo los cuales se
pretendió asegurar el ámbito autónomo –individual y esencialista– de libertad
necesario para la acción ¿racional? del individuo en el nuevo marco de relaciones
sociales capitalistas que se estaba diseñando: Declaración del Buen Pueblo de
Virginia y Declaración del Hombre y del Ciudadano 33, textos perfectamente
funcionales, primero, para enfrentarse a las estructuras del Ancien Regime, y,
segundo, para la extensión colonial e imperialista de las potencias occidentales.
Sin embargo, tras las dos grandes guerras que asolaron el continente europeo
durante el siglo XX y que implicaron, por primera vez, a la potencia
norteamericana como “socio” en la rapiña colonial y neocolonial que se avecinaba
para la segunda mitad del siglo, surge el concepto de derechos humanos: un
concepto que pretendía extenderse a toda la humanidad, al no circunscribirse
únicamente a los derechos del hombre burgués, blanco y capitalista, y que
“parecía” gozar de la garantía jurídica que ofrece el sustantivo de “derechos”
(Cortes regionales e internacionales de justicia).
Sin embargo, debemos tener en cuenta tres cuestiones: 1a) la inserción de
dicho concepto (Declaración Universal de Derechos Humanos) en el marco sociopolítico de la Guerra Fría entre los países capitalistas y los comunistas –lo cual lo
redujo de nuevo a la defensa y garantía de los derechos individuales del sujeto
capitalista, frente a los derechos sociales, económicos y culturales de los
colectivos de ideología socialista; 2a) el reconocimiento positivo de los derechos
se dio en el marco geo-estratégico de la descolonización “controlada” de las
33
Sin embargo, no debemos tener una visión unilineal de la historia; al lado de estas
“declaraciones” liberales, fueron surgiendo alternativas que intentaban superarlas desde diferentes
ámbitos: la incorporación de la mujer (O. de Gouges), los derechos de las masas populares
(jacobinos), las ansias de libertad y justicia de los esclavos (Haití). Alternativas que fueron
inmediatamente desmanteladas por un poder burgués que iba asumiendo hegemonía y que no
aceptaba ir más allá de lo que sus ideólogos ilustrados habían concebido.
102
Joaquín Herrera Flores
antiguas colonias –lo cual redujo el papel liberador de los llamados derechos de
autodeterminación–, y supuso la consolidación de un sistema jurídico y político
internacional basado en la supremacía de la voluntad de los Estados y 3a) la
continuidad de la definición “humanista”, es decir, esencialista y abstracta de los
derechos, que pretendía verlos como la plasmación histórica del despliegue de
una naturaleza humana ahistórica, producto de alguna instancia trascendental
ajena a los procesos de lucha sociales y separada de la extensión del capitalismo
como base ideológica, económica y política de la reconstrucción mundial tras la
segunda gran guerra. Estos tres elementos supusieron una reducción del
concepto a sus márgenes individualistas, etnocéntricos, estatalistas y formalistas,
perfectamente funcionales ante la nueva fase de acumulación del capital que se
dio en la segunda mitad del XX y sus correspondientes formas de poder social,
económico y cultural.
En la actualidad, estamos asistiendo a una nueva fase histórica que está
exigiendo una nueva perspectiva teórica y política en lo que concierne a los
derechos humanos. Desde finales de los años ochenta y principios de los noventa
del siglo pasado, y a consecuencia de fenómenos tales como la caída estrepitosa
del socialismo real y la consiguiente expansión global del modo de producción y
de relaciones sociales capitalistas, se han iniciado nuevos procesos que están
poniendo en cuestión la naturaleza individualista, esencialista, estatalista y
formalista de los derechos que primó desde 1948 hasta casi la última década del
siglo XX.
La nueva fase de la globalización, la denominada “neoliberal”, puede
caracterizarse en términos generales bajo cuatro características articuladas : a) la
proliferación de centros de poder (el poder político nacional se ve obligado a
compartir “soberanía” con corporaciones privadas y organismos globales
multilaterales), b) la inextricable red de interconexiones financieras (que hacen
depender las políticas públicas y la “constitución económica” nacional de
fluctuaciones económicas imprevisibles para el “tiempo” con el que juega la praxis
democrática en los Estados Nación), c) la dependencia de una información que
vuela en tiempo real y es “cazada” por las grandes corporaciones privadas con
mucha mayor facilidad que por las estructuras institucionales de los Estados de
Derecho), y d) el ataque frontal a los derechos sociales y laborales (que está
Los Derechos Humanos en el Contexto de la Globalización
103
provocando que la pobreza y la tiranía se conviertan en “ventajas comparativas”
para atraer inversiones y capitales) 34.
Estas características propias de la nueva fase de apropiación del capital,
están provocando un cambio importante en la consideración de los derechos
humanos: primero, a un nivel jurídico, estos “hechos” han inducido, en primer
lugar, a la crisis del derecho nacional de los derechos humanos, ya que las
constituciones –sobre todo, las que surgieron en América Latina y en la Europa
Latina tras las dictaduras del último tercio del siglo XX, y en las que se vertió la
última esperanza del Estado democrático de derecho– están perdiendo su
carácter normativo y se están acercando peligrosamente a lo que Loewestein
denominaba constituciones nominales y semánticas; y, en segundo lugar, están
suponiendo la reconfiguración del derecho internacional de matriz “particularista” y
“soberanista” que primó tras la proclamación de la Declaración Universal. La
instauración paulatina de un orden global desigual e injusto que está minando las
propuestas de justicia social, están llevando a la teoría jurídica internacionalista
más progresista a una “relectura constituyente” que base el derecho internacional,
más que en el individualismo y el etnocentrismo, en la planetarización de las
necesidades y exigencias de individuos y grupos, en la búsqueda material de
justicia y de solidaridad y en la instauración de una relación circular entre el
Estado y la comunidad internacional35.
Y, a otro nivel, la conciencia de las injusticias y los desequilibrios a los que
conduce la globalización, está provocando, en primer lugar, el surgimiento de
procesos
de
reacción
social
multitudinarios
de
repulsa
(movimientos
antiglobalización) que llevan años poniendo en jaque las antaño tranquilas y
legitimadas reuniones de los poderosos del planeta; en segundo lugar, el inicio de
búsquedas de nuevas rearticulaciones de redes sociales amplias (los tres foros
sociales mundiales celebrados en Porto Alegre), que están formando un
movimiento de movimientos a nivel planetario que no se conforma con las
tradicionales formas de participación y articulación sociales, sino que están
creando una nueva visión de lo que significa la democracia; y, a nivel
34
José Eduardo Faria, El derecho en la economía globalizada, Op.cit.. VV.AA., “El derecho en una
democracia cosmopolita”, monográfico de Anales de la Cátedra Francisco Suárez, n°. 36, 2002.
35
Juan A. Carrillo Salcedo, “Prólogo” a J.M. Pureza, El Patrimonio Común de la Humanidad.
¿Hacia un derecho internacional de solidaridad? Trotta, Madrid, 2002, p. 20.
104
Joaquín Herrera Flores
internacional, están dando origen a toda una amalgama de textos, declaraciones y
propuestas que superan con creces el carácter individualista y esencialista de la
Declaración Universal 36. ¿Es posible negar que estamos ante un nuevo proceso,
ante una nueva dinámica histórica que se enfrenta a las nuevas circunstancias
por las que atraviesa el mundo a inicios del nuevo milenio? ¿Son los derechos
humanos algo dado y construido de una vez por todas o procesos en permanente
construcción y reconstrucción? ¿No estaremos asistiendo a la instauración de un
nuevo proceso de derechos humanos enfrentado de lleno contra la globalización
neoliberal?
3. Conclusiones
El acto de voluntad que da origen al mundo es un acto de nuestra
propia voluntad.
(Shopenhauer, Obras, T. II, p. 720)
Siguiendo la revolución óptica de Huygens, a partir de la cual era el ojo
humano el que iluminaba los objetos y no éstos los que enviaban su luz al ojo,
Spinoza pudo concebir la naturaleza inmanente del fundamento de lo humano en
36
Consúltese el cambio de tono y de fondo que surge, entre otros textos, en la “Convención marco
sobre cambio climático” (Rio de Janeiro, 1992), la “Convención de la UNESCO sobre la protección
del patrimonio mundial cultural y natural (de 1972); La “Earth Charter Initiative” en la que los
derechos humanos se condicionan a una visión concreta de la dignidad humana (Parte I), a la
protección ambiental -con especial atención a las relaciones sociales de producción, distribución y
consumo- (Parte II), a la justicia social y económica (Parte III) y a la construcción de relaciones
políticas democráticas y no violentas, como precondiciones para la construcción de un “Espacio
Público Compartido” (Parte IV); el “Manifiesto 2000 para una cultura de paz y no violencia”, en el
que la situación violenta se ve como consecuencia de la falta de aplicación de los derechos
sociales, económicos y culturales; la “Declaración del Milenio”, que comienza con el objetivo de
eliminación de la pobreza y la creación de desarrollo; la importante “Declaración de
Responsabilidades y Deberes Humanos” adoptada por la UNESCO y organizada por ADC
Millénaire y la Fundación Valencia Tercer Milenio, y en la que desde el principio se apuesta por la
imputación de responsabilidad tanto a los organismos públicos como privados de las
consecuencias que provoca el orden político, social y cultural que surge de la extensión global de
la globalización: véase el capítulo 3 sobre “seguridad humana y orden internacional equitativo”
(artículos 10-15) y el capítulo 10 sobre “Trabajo, calidad de vida y nivel de vida” (sobre todo,
articulo 36, en cuyo apartado 11 se consolida el derecho a la seguridad social y a las medidas de
promoción de los derechos humanos). Este mismo tono y estas mismas cuestiones de fondo,
indicadoras, como decimos, del surgimiento de un nuevo proceso de derechos humanos, se
encuentra en las declaraciones de derechos indígenas redactadas en la década de los noventa del
siglo XX: la “Declaración de Kari-Oca y Carta de la Tierra de los Pueblos Indígenas. Conferencia
Mundial de los Pueblos Indígenas sobre Territorio, Ambiente y Desarrollo” (1992); la “Declaración
de Mataatua de los Derechos Intelectuales y Culturales de los Pueblos Indígenas” (1993); la
“Declaración de los Pueblos Indígenas del hemisferio occidental en relación con el Proyecto de
Diversidad del Genoma Humano” (1995).
Los Derechos Humanos en el Contexto de la Globalización
105
el conatus, es decir, en la potencia humana de autopreservación en la existencia.
Ese “dinamismo” de lo humano, opuesto a cualquier tentativa trascendente de
pasividad y sometimiento a “necesidades” externas, supuso reconcebir la libertad,
no como la libre decisión de una voluntad autónoma, sino como la expresión de
una necesidad interna de existir y de actuar. Rechazando el individualismo del
“contrato social hobbesiano” –a partir del cual, los seres humanos renunciaban a
su potencia a favor del Estado–, Spinoza reivindicó el “conatus” como fundamento
del “contrato político” –cuyo presupuesto es la igualdad de condiciones entre las
partes–, que no obliga a renunciar a nada, sino que tiende a empoderar a los
sujetos que participan en él. Sólo habrá libertad, para Spinoza, cuando se
fortalezca el “conatus colectivo”, es decir, la trama de relaciones de
empoderamiento en que debe consistir la política democrática, y el sujeto humano
no quede debilitado por el miedo, la superstición o las promesas de recompensas
que se presentan en las diferentes formas y manifestaciones teológicas de la vida
celestial. Sin esa precondición, la acción política y social no será más que la
manifestación de un simulacro: se vive en un tipo de régimen, pero se actúa
“como si” si estuviera en otro. A través del “conatus”, la acción política y social
tenderá a la construcción de una cultura de poder en la que se manifiesten clara y
tajantemente las diferencias, la pluralidad y la potencialidad humana de
transformación social.
La “ingenuidad” en política es, en palabras de Slavoj Zizek, la
presuposición de que la realidad es algo dado de una vez por todas, algo
ontológicamente autosuficiente, siendo nuestra libertad el espacio de autonomía
que nos permite la existencia en el marco de lo que se considera objetivamente
puro y alejado de las impurezas de la subjetividad. La “madurez” en política, pues,
supone afirmar la incompletud ontológica de la “propia” realidad: “hay realidad
sólo en la medida en que hay un hiato ontológico, una grieta, en su mismo
centro”, siendo la libertad, pues, la asunción de nuestra capacidad y nuestra
potencialidad para aprovechar las grietas y los intersticios de lo que se considera
objetivo y crear nuevas formas de organización y de lucha. Antígona no sólo niega
la ley pública, sino que, como manifestación de su potencia como ser humano, la
trasciende y lucha por transformarla en otra.
La nueva fase del proceso de construcción social, política, económica y
106
Joaquín Herrera Flores
cultural de una nueva forma de estar en el mundo desde la categoría
convencional e inmanente de los derechos humanos, implica necesariamente
proyectar luz sobre el conjunto de relaciones que el neoliberalismo globalizado
nos viene imponiendo como si de una realidad trascendental e intocable se
tratara. Pero esa “necesidad de contexto” no se queda ahí. Reconocer la
dependencia de las categorías sociales, como, por ejemplo, los derechos
humanos, de sus condiciones sociales de existencia no es lo único que nos
interesa; hay que dar un paso más y afirmar la presencia de la subjetividad
revolucionaria y antagonista como motor móvil del proceso de lucha por la
dignidad humana. Las fases históricas no están determinadas “objetivamente”, tal
y como el actual determinismo del mercado, o el viejo determinismo comunista,
nos querían hacer pensar. El paso de una época a otra es producto de
subjetividades que configuran el proceso de transición y establecen las bases de
la nueva configuración social. No es la transición objetiva la que se materializa en
las luchas; más bien, son las luchas las que se materializan bajo la forma de la
transición, del cambio, de la transformación, desde el despliegue del “conatus”
colectivo spinoziano.
Pues bien, lo que constituye el punto de vista decisivo en todo este
proceso, no son ya las determinaciones objetivas del mismo, sino la creación de
subjetividad antagonista capaz de presentar alternativas al orden dominante: en
nuestros términos, los derechos humanos como procesos de lucha. Contra la
pasividad de los humanismos que defienden el despliegue natural y orgánico de la
naturaleza humana abstraída de sus contextos, debemos reinvidicar el dinamismo
de las fundamentaciones inmanentes y materialistas que tienden, como defiende
Negri, no a nuevos determinismos, sino a la constitución material de la
subjetividad revolucionaria y antagonista.
El acto ético y político por excelencia, defienden Jacques Ranciére, Alain
Badiou y Slavoj Zizek, no es el que va más allá del principio de realidad. El propio
Freud lo decía en El porvenir de una ilusión: la ilusión tiene futuro no porque la
dura realidad no se pueda aceptar nunca y se necesiten falsos sueños, sino
porque las “ilusiones”, interpreta Zizek, “están sostenidas por la insistencia
incondicional de una pulsión que es más real que la realidad misma”. El acto ético
y político por excelencia es aquel, pues, que empodera a los sujetos para que
Los Derechos Humanos en el Contexto de la Globalización
107
puedan cambiar las propias coordenadas de lo que se percibe como posible. No
supone situarse “más allá del bien y del mal”, sino traduciendo literalmente la
famosa obra de Nietzsche, implica posicionarnos “más allá de bien y mal”, es
decir, más allá de los dualismos que nos impiden construir otras consideraciones
del “bien” y otras formas distintas, no sólo de oponermos, sino, incluso, de definir
el mal.
Para nosotros, el mal está reglado en lo que denominamos la “nueva
constitución jurídica de la globalización”, la cual se materializa en los diferentes
“acuerdos” que surgen de la Organización Mundial del Comercio y cuyas
consecuencias Susan George ha definido con toda claridad: –debilitar o destruir
los servicios públicos; –arruinar a los pequeños agricultores; –poner en tela de
juicio los logros sociales; –burlar el derecho internacional más consolidado; –
perjudicar todavía más a los países ya desfavorecidos; –homogeneizar la cultura;
–devastar el medio ambiente; –recortar los salarios reales y la normativa laboral; –
reducir drásticamente la capacidad de los gobiernos para proteger a sus
ciudadanos y la capacidad de los ciudadanos para exigir garantías a sus
gobiernos.
La cultura –afirma George–, la sanidad y los servicios sociales, la
educación, los servicios públicos, la propiedad intelectual, la
seguridad alimentaria: todo ello se ve amenazado, entre otras
muchas cosas más. Para esta (“constitución jurídica del
neoliberalismo globalizado”), el mundo es, efectivamente, una
mercancía.
Los derechos humanos deben ser entendidos como los procesos sociales,
económicos, políticos y culturales que, por un lado, configuren materialmente –a
través de procesos de reconocimiento y de mediación jurídica– ese acto ético y
político maduro y radical de creación de un orden nuevo; y, por otro, la matriz para
la constitución de nuevas prácticas sociales, de nuevas subjetividades
antagonistas, revolucionarias y subversivas de ese orden global opuesto
absolutamente al conjunto inmanente de valores –libertad, igualdad, solidaridad–
que tantas luchas y sacrificios han necesitado para su generalización. Por esa
razón, el último y gran desafío que citamos en estas páginas y que deberá
constituir el foco que ilumine nuestras prácticas, es el afirmar que lo que
108
Joaquín Herrera Flores
convencionalmente denominamos derechos humanos, no son meramente normas
jurídicas nacionales o internacionales, ni meras declaraciones idealistas o
abstractas, sino procesos de lucha que se dirijan abiertamente contra el orden
genocida y antidemocrático del neoliberalismo globalizado. El sujeto antagonista
se constituye en ese proceso y se reproduce en la riqueza de sus prácticas
sucesivas. No hay más objetividad que la “fuerza de la multitud que –como
defendía Deleuze– convierte en común la lucha y dota de realidad a la utopía”.
Los Derechos Humanos en el Contexto de la Globalización
109
Neoliberalismo: O Declínio do Direito
*
Agostinho Ramalho Marques Neto
Devo iniciar prestando um esclarecimento acerca do conteúdo e dos
enfoques teóricos cuja articulação fará a tessitura do presente trabalho. Decidi
aproveitar o tema dessa mesa-redonda, “Direito na Infância”, para, promovendo
um deslocamento de sentido nessa expressão, tecer algumas considerações
sobre certas limitações restritivas que o avanço da onda neoliberal vem
progressivamente impondo à esfera jurídica de alguns anos para cá.
Não vou tratar aqui, especificamente, de questões relativas ao conceito
jurídico, ou ao conceito psicanalítico, de infância, nem me deterei na apreciação
dos
princípios
internacionais
e
e
infraconstitucional,
normas
consagrados
incorporados
que
à
conferem
nossa
em
declarações
ordem
jurídica
tratamento especial às
e
convenções
constitucional
crianças,
e
para
assegurar-lhes condições adequadas a seu desenvolvimento socioeconômicoeducacional e para protegê-las contra várias espécies de abusos, incluída aí a
exploração de seu trabalho. Num Congresso das dimensões do presente, que
reúne especialistas de diversas áreas, em nível nacional e internacional, não
faltarão trabalhos de qualidade que aprofundem a questão da infância sob os
enfoques acima mencionados.
O que me interessa aqui, como já disse, é examinar algumas
consequências do impacto do modelo neoliberal sobre a instância do Direito,
considerado, sobretudo, no sentido de uma linguagem de enunciação de direitos,
articulando-a a outras instâncias sociais que com ela se relacionam intimamente,
sobretudo, as instâncias ética, política e econômica. Para tal empreendimento, e
tendo em vista as considerações apresentadas no parágrafo anterior, faço agora
um giro no sentido do significante infância, referindo-o ao contexto do Direito
enquanto tal. Tomo, então, o significante infância num sentido metafórico, dentro
* Versão ligeiramente modificada de trabalho apresentado na mesa-redonda Direito na Infância,
por ocasião do Congresso Internacional de Psicanálise e suas Conexões, sob o tema geral “Tratase uma Criança”, promovido pela Escola Lacaniana de Psicanálise do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro, 20 de agosto de 1998. Publicado, sob o título “Neoliberalismo: o Direito na ‘Infância’”, em:
Congresso Internacional de Psicanálise e suas Conexões: Trata-se uma Criança. Rio de Janeiro:
Companhia de Freud, 1999, t. II, p. 225-238.
do qual posso falar, para os fins desse trabalho, de uma “infância” do Direito como
correspondente a todo o longo período anterior à formalização e à positivação dos
sistemas, institutos e normas jurídicas, que constituem um traço marcante da
Modernidade, e das quais as declarações de direitos são uma importante
expressão.
Com efeito, duas das características essenciais do direito moderno são, por
um lado, a formalização lógica e sistemática dos princípios, regras e institutos
jurídicos, a qual deslocou a motivação da obediência, de critérios baseados na
teologia e na tradição, para uma justificativa de ordem legal-racional fundada na
crença na validade de normas gerais e impessoais, e não no arbítrio dos
detentores do poder; e, por outro lado, a positivação do Direito, no duplo sentido
da busca da certeza jurídica mediante a sistematização escrita da ordem
normativa, e também do fato de as normas jurídicas, sobretudo a partir da
Constituição Norte-Americana e da Revolução Francesa na segunda metade do
século XVIII, terem passado a declarar direitos, isto é, a proclamá-los
positivamente e não apenas subentendê-los nos casos em que a norma é omissa
ou não proíbe expressamente, vinculando ao mesmo tempo o Estado, jurídica e
politicamente, a garantir a efetividade dos direitos declarados. Tem-se aqui uma
importantíssima novidade. Até então, as leis quase nunca declaravam direitos,
limitando-se a estatuir deveres. As ordens jurídicas, por assim dizer, não tinham
voz para atribuir direitos subjetivos, mas apenas para prescrever obrigações e
estabelecer as sanções aplicáveis nos casos de transgressão. É nessa
perspectiva que falo aqui de uma “infância” do Direito, referindo esse significante
a suas raízes etimológicas, isto é, ao latim infantia, ae, palavra proveniente de
infans, antis, que quer dizer: que não fala, ou, mais radicalmente, sem voz.
Pois bem, entendo que o assim denominado modelo neoliberal, que se
vem impondo avassaladoramente em escala mundial, tende a um esvaziamento
dos direitos que gradativamente se foram incorporando ao patrimônio jurídico dos
sujeitos, considerados tanto sob o prisma individual quanto coletivo; e, nesse
sentido, se movimenta em sentido contrário à tendência de acumulação de
direitos e de ampliação dos espaços de reivindicação e de exercício da cidadania,
que caracterizou estes dois últimos séculos no Ocidente. Na perspectiva aqui
adotada, esse movimento representa uma tendência de “retrocesso” àquele
Neoliberalismo
111
período anterior ao da proclamação de direitos, que metaforicamente designei
acima como a “infância” do Direito. O objetivo do presente trabalho é examinar
alguns aspectos que podem ser considerados como pertencentes à lógica interna
desse movimento de retrocesso, enfocando-os no eixo das filosofias jurídica, ética
e política e concluindo com uma breve articulação a partir da teoria psicanalítica.
Aquelas duas características essenciais do direito moderno, isto é, a
formalização lógica e a positivação, nos sentidos que acima indiquei, devem ser
consideradas em sua inserção histórica. Com o advento da Modernidade, a
submissão física, tanto na forma da escravidão antiga quanto na da servidão
medieval, vai pouco a pouco cedendo lugar à submissão contratual. É mesmo
uma concepção contratualista, isto é, eminentemente jurídica, que tece toda a
teoria do Estado moderno. Essa “passagem” supõe que a submissão não pode
fundar-se senão em critérios racionais, gerais e impessoais, isto é, válidos para
todos, inclusive os ocupantes dos lugares de poder. Não há aí, apenas, o
reconhecimento do princípio da autonomia da vontade, tão caro aos juristas, mas,
antes dele, o reconhecimento do outro como pessoa, como diferença, como
sujeito e, nessa condição, assujeitado à Lei. Esse conjunto de condições é
imprescindível para o surgimento e desenvolvimento de certos conceitos cruciais
da Modernidade, como os de democracia, cidadania, Estado Democrático de
Direito e sujeitos de direito, entre outros. Tais conceitos se relacionam tão
intimamente, que trabalhar qualquer deles supõe referi-lo aos demais.
A burguesia ascendente, que se movia em direção à tomada do poder, que
não tardaria a conquistar por meios revolucionários ou não, teve um papel
determinante nesse processo. Ao discurso particularizador da aristocracia, que
estabelecia expressamente nas normas jurídicas privilégios e discriminações, que
reservava para a classe dominante, direitos que não eram estendidos nem
mesmo nominalmente às outras camadas sociais, a burguesia contrapôs um
discurso universalizador, que a todos incluía em princípio como sujeitos jurídicos
e políticos. Uma vez no poder a burguesia, as declarações de direitos,
enunciadas pela nova classe dominante sob a forma universal “todos os homens
têm direito a...”, passam a constituir a expressão jurídica privilegiada da
necessidade de afirmar os novos princípios, sobretudo o do império das leis em
substituição ao império do monarca, e o da submissão do poder ao Direito, que é
112
Agostinho Ramalho Marques Neto
um pressuposto necessário da noção de Estado Democrático de Direito. Uma
função essencial do Direito, a partir daí, é precisamente a de enunciar direitos,
mesmo quando as condições sociais, políticas e econômicas sejam insuficientes
para que a eficácia desses direitos seja plenamente assegurada. NORBERTO
BOBBIO sintetiza esse processo na expressão a era dos direitos.
Ora, essas mudanças de perspectiva do que podemos chamar de função
enunciadora do Direito não podem deixar de ter profundas consequências. A
burguesia não poderia afirmar tão universalmente os direitos e a cidadania sem
implicar-se nas consequências dessa afirmação, ou seja, sem vincular-se pelo
menos formalmente a essas consequências. Por exemplo, o liberalismo político
moderno, que deita suas raízes no século XVII, floresce no século seguinte e
estende-se, com modificações decorrentes do embate com outras correntes de
pensamento, sobretudo o marxismo, por todo o século XIX, indo até à Primeira
Guerra Mundial, tem um compromisso com a democracia, ainda que no sentido
de democracia formal e representativa e ainda que esse significante “democracia”
também sirva, nesse contexto, para ocultar a dominação de classe, compromisso
esse que não pode ser apenas retórico, mas deve ser também admitido como
histórico, político, ético e lógico. Com efeito, sem uma valorização da democracia
como regime político, não teria sido possível à burguesia legitimar seu discurso
universalizador. Na base deste está o binômio sobre o qual assenta o edifício
liberal: a liberdade (de contratar) dinamicamente articulada à igualdade (jurídicoformal, isto é, a igualdade perante a lei) e a esta se sobrepondo na maioria dos
casos em que entre elas haja conflito. A função do Estado nesse contexto é antes
de tudo a de garantir as condições da liberdade contratual, intervindo nas
relações entre os agentes econômicos, empregados e empregadores, supostos
em pé de igualdade jurídica, apenas para assegurar essas condições, ou seja, o
status quo de dominação. Essa função, que essencialmente consiste em absterse, ficou conhecida pela expressão “laisser faire, laisser passer”.
Creio já ter indicado suficientemente que a constituição histórica de noções
como as de cidadão e sujeito de direitos, além de indissociáveis entre si,
pressupõem outras noções com as quais formam como que constelações
conceituais. A noção de Estado Democrático de Direito ocupa um lugar
fundamental aqui, como a “ambiência” político-jurídica na qual aquelas noções de
Neoliberalismo
113
cidadão e de sujeito jurídico podem aspirar a uma possível realização histórica.
Mas há também fundamentos que não são apenas de natureza histórica, lógica
ou teórica. Há fundamentos éticos que se entrelaçam com os outros nessa
tessitura que vou tentando esboçar.
O princípio da dignidade da pessoa humana, que a nossa Constituição
Federal abraça logo em seu art. 1°, inciso III, é um princípio ético fundamental de
tudo o que venho expondo até aqui. Ele está na base da cidadania, da noção de
sujeito jurídico, da valoração ética e política da democracia e daí por diante.
Talvez ninguém tenha sintetizado melhor esse princípio do que KANT, ao referi-lo
ao reconhecimento do homem como um fim em si mesmo, reconhecimento esse
que introduz a importante dimensão do respeito nas relações entre os homens.
Esse reconhecimento, no sentido kantiano, implica, a meu ver, o reconhecimento
do outro em sua concretude, ou seja, em sua diferença, sem o que noções como
as de cidadão e sujeito de direitos como que perdem seu suporte.
A ocasião é propícia para que eu intercale a observação de que,
simbolicamente, a democracia é antes de tudo um espaço político onde é possível
a convivência dialética das diferenças, onde há lugar para a alteridade. Digo
diferenças, e não desigualdades, entendidas estas como diferenças a serviço da
dominação, da opressão. Numa linguagem psicanalítica, diria que a democracia
supõe a Bejahung da castração, da falta, da alteridade do outro e do Outro, o
assujeitamento à Lei, enfim. Foi nessa articulação que escutei certa vez o Prof.
LUIS ALBERTO WARAT sustentar que “o grande inimigo do capitalismo não é o
socialismo, mas a democracia”. Quando se fala de alteridade, fala-se também de
inconsciente, de descentramento, de clivagem subjetiva, desse outro que me
habita e que, no belo dizer de CAETANO VELOSO, “em mim é de mim tão
desigual”.
Pois bem, é o princípio da dignidade da pessoa humana que está na base
da enunciação dos chamados direitos humanos. A primeira geração destes,
correspondente às primeiras declarações de direitos, é constituída pelos direitos
individuais de liberdade, oponíveis ao Estado e supondo a abstenção deste na
esfera negocial, no qual somente interviria para garantir as regras do jogo. É a
dimensão individual do homem que está protegida aqui, não como mero indivíduo
empírico, mas revestido de valor jurídico e, antes deste, de valor ético.
114
Agostinho Ramalho Marques Neto
As consequências perversas de miséria e exclusão, decorrentes da política
do “laisser faire, laisser passer”, e a influência do pensamento socialista,
sobretudo o marxismo, forçaram, principalmente após a I Guerra Mundial, o
capitalismo liberal a reciclar-se, a “perder alguns anéis para poder conservar os
dedos”, o que resultou no estabelecimento e na ampliação de direitos sociais
coletivos, como, por exemplo, os direitos trabalhistas e previdenciários. Esses
direitos constituem a segunda geração dos direitos humanos, que são direitos
coletivos de igualdade de condições, que supõem uma ação do Estado, isto é,
uma prestação positiva deste. A chamada social-democracia, hoje o alvo principal
do neoliberalismo, é a expressão histórica, nos países desenvolvidos, da
consagração dos direitos humanos de segunda geração.
Hoje, acrescenta-se ainda uma terceira geração desses direitos, que são
direitos difusos de cidadania, como o direito ao sossego, ao desenvolvimento, a
um meio ambiente saudável etc. Aqui, cabe à sociedade um papel ativo no
sentido de que esses direitos ganhem eficácia. E muitos já falam de uma quarta
geração de direitos humanos, relativa a questões como a clonagem e outras que
a pesquisa científica e o desenvolvimento tecnológico impõem.
Reafirmo aqui um princípio, já por outros enunciado, de que os direitos
humanos, em suas quatro gerações, constituem um limite último na defesa da
cidadania e da democracia, e uma barreira oponível à exclusão sempre implicada
numa prática neoliberal. Daí a necessidade de afirmá-los como conquistas
históricas irreversíveis 1. Não pode mais ser aceitável como prática legítima, por
exemplo, reintroduzir a tortura como meio de obter confissão dos acusados.
***
Vou agora examinar sucintamente o progressivo deslocamento dos
princípios, conceitos e direitos até aqui mencionados, dos eixos da política, da
ética e do direito para o eixo da economia, como consequência do triunfo do
modelo neoliberal no mundo contemporâneo.
1
Conforme LUIGI FERRAJOLI, um Estado de Direito é caracterizado, no plano formal, pelo
princípio da legalidade, em virtude do qual todo poder público está subordinado a leis gerais e
abstratas; e, no plano substancial, pela subordinação dos poderes do Estado aos conteúdos dos
direitos fundamentais dos cidadãos, que podem ser defendidos através das garantias
constitucionais. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón. Trad. espanhola. Madri: Trotta.
Neoliberalismo
115
Mas debrucemo-nos antes, por um momento, sobre a própria palavra
neoliberalismo. Há nela, ao mesmo tempo, uma ideia de continuidade e uma
ideia de ruptura. Trata-se, afinal, de liberalismo, de algo que permanece, ou de
algo ao qual se volta? Por outro lado, esse liberalismo é “neo”, é novo, com o que
se diz implicitamente que algo do liberalismo não mais subsiste nele. O que se
mantém? E, principalmente, o que foi abandonado? O que não pode mais ser
mantido sob pena de prejudicar o princípio de utilidade, tão central no ideário
neoliberal? Veremos que a principal novidade do neoliberalismo consiste
precisamente no abandono, em favor da eficiência econômica, de princípios
éticos fundamentais, dos quais resultam relevantes consequências políticas e
jurídicas.
No terreno político, princípios e conceitos cruciais, como os de
democracia, Estado, Nação, soberania e cidadania, fundados no princípio ético da
dignidade da pessoa humana, vão se transfigurando e mesmo, num sentido limite,
se dissolvendo.
A soberania, por exemplo, desloca-se cada vez mais do âmbito do Estado
(ou do povo, ou da nação) para o domínio do mercado. O Mercado, esse ser
metafísico, inatingível e indestrutível enquanto tal é o verdadeiro soberano no
mundo da economia globalizada. Destituído do lugar de soberania para o de
simples garantidor do livre funcionamento do mercado, ou seja, da competição, o
Estado contemporâneo vai sofrendo sua afânise: apequena-se, minimiza-se. Com
isso, a noção de espaço público se contrai e vai diluindo-se rapidamente na
medida em que é implicitamente reduzida ao espaço de garantia das relações
negociais. A linguagem corrente nos veículos de comunicação de massa dá-nos
um eloquente testemunho desse deslocamento: já quase não se fala mais, por
exemplo, de “países em desenvolvimento”, como até há pouco tempo atrás, mas
de “mercados emergentes”. O que decai, aí, é a própria noção de país, de nação.
E o que “emerge” dessa linguagem é a subsunção do político no econômico.
A cidadania, por seu turno, vai pouco a pouco perdendo seus sentidos:
político (de participação ativa na gestão da sociedade política) e jurídico (a
cidadania enquanto direito a ter direitos), para identificar-se ao acesso ao
consumo. Cidadão, no mundo neoliberal, nada mais é do que aquele que pode
consumir. De fato, não é mais o ser humano enquanto tal, na medida em que
116
Agostinho Ramalho Marques Neto
pertence a uma sociedade política, que recebe o atributo da cidadania. Do súdito
dos monarcas do Antigo Regime, passando pelo cidadão liberal-burguês e pelo
trabalhador na perspectiva marxista, chegou-se, por fim, ao consumidor
neoliberal! Diferentemente do liberalismo, o neoliberalismo não parte de
indivíduos, mas de agentes econômicos.
Ainda no plano político, a democracia não é mais uma necessidade
pertencente à lógica interna do sistema, como no liberalismo, mas algo que se
acrescenta, secundariamente. Pode até ser desejável, mas também se pode
passar sem ela, sem que por isso a ordem econômica perca sua eficiência. Como
afirmava FRIEDRICH HAYEK, o primeiro ideólogo do neoliberalismo, em seu
texto O Caminho da Servidão, escrito em 1944, “a democracia em si mesma
jamais havia sido um valor central no neoliberalismo” (como o é, por exemplo, a
competição).
A liberdade e a democracia, explicava Hayek, podiam facilmente
tornar-se incompatíveis, se a maioria democrática decidisse
interferir com os direitos incondicionais de cada agente econômico
de dispor de sua renda e de sua propriedade como quisesse 2.
Essa depreciação da democracia como valor político é tão imanente ao
neoliberalismo, que um jusfilósofo como Bobbio a inclui na definição mesma que
dá dessa corrente:
Por neoliberal se entende, hoje, principalmente, uma doutrina
econômica conseqüente, da qual o liberalismo político é apenas
um modo de realização, nem sempre secundário, ou em outros
termos: uma defesa intransigente da liberdade econômica, da qual
a liberdade política é apenas o corolário 3.
Pode-se perguntar aqui, com ironia, se afinal de contas MARX não tinha
razão quando dizia que o econômico determina mesmo, em última instância. Só
que, agora, essa determinação parece ocorrer em todas as instâncias.
Essa subordinação da democracia à esfera do econômico transparece,
2
Apud ANDERSON, Perry. Balanço do Neoliberalismo. In: SADER, Emir & GENTILI, Pablo [org.].
Pós-Neoliberalismo: as Políticas Sociais e o Estado Democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1995, p. 19-20.
3
BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia, p. 87 [Grifos meus].
Neoliberalismo
117
para quem sabe escutar, como um pressuposto implícito do discurso oficial,
como, por exemplo, quando o presidente Fernando Henrique Cardoso identificou,
reiteradas vezes, no início de seu governo, o fracasso do plano real ao fracasso
da democracia. Não haveria uma ameaça velada de golpe nessa identificação?
Como ilustração disso, atente-se para a declaração que o Ex-Ministro do
Planejamento, José Serra, fez pela televisão (Brasília, 04/06/1996), ao afastar-se
do cargo para concorrer à Prefeitura de São Paulo: “A estabilidade da moeda é
uma necessidade anterior e superior às outras”. Inclusive, também, à
democracia? Como observa Perry Anderson, com a “superação histórica” da
eficácia das ditaduras militares no que tange à imposição de políticas neoliberais,
a questão que se coloca é a de “como induzir democrática e não coercitivamente
um povo a aceitar políticas neoliberais mais drásticas”4. O mesmo autor
prossegue afirmando que o combate à inflação é uma das vias principais, nesse
sentido. Para ele, no Brasil foi necessária a hiperinflação para que a população
aceitasse sem maiores traumas o modelo neoliberal. A hiperinflação teria
exercido, nesse contexto, papel semelhante ao da ditadura militar e, nas
circunstâncias, mais eficiente. No nosso caso, esse combate à inflação aparece
como o limite último, para cuja consecução qualquer preço social que se pague
nunca é demasiado alto. O combate à inflação, embora o reconheçamos como
indispensável, nem por isso deixa de ocupar, na escala da legitimação do modelo
neoliberal, um lugar de última instância, ultrapassado o qual adviria como
consequência o próprio caos. Esse lugar é análogo àquele que GEORGE
ORWELL atribui, em sua A Revolução dos Bichos, à volta de Mr. Jones ao
comando da Granja: nenhum sacrifício é suficientemente grande, se contribui
para evitar que isso aconteça!
Vimos anteriormente que o liberalismo formula suas proposições
fundamentado no binômio liberdade contratual/igualdade jurídico-formal. Já no
ideário neoliberal, o binômio fundamental é desigualdade/competição. Vejo na
competição não somente algo fundante e ineliminável no ser humano, como
também necessário ao desenvolvimento social e pessoal. O problema está em
deixar que tudo seja resolvido por essa via. A competição pode ser saudável, se
4
ANDERSON, Perry. Balanço do Neoliberalismo. Op. cit., p. 21.
118
Agostinho Ramalho Marques Neto
sujeita à Lei. Mas é perversa se substitui a Lei, isto é, se a competição se torna a
própria Lei. O primeiro e mais perverso efeito da competição no lugar da Lei é a
exclusão social, que mais adiante abordarei em breves pinceladas.
Antes disso, entretanto, vejamos, de um modo apenas esquemático, pois a
limitação de tempo dessa exposição não me permite uma apreciação mais
detalhada, algumas das consequências da escalada neoliberal no terreno do
Direito, que vão minando pouco a pouco a instância jurídica enquanto instância
de garantia de direitos:
1) Há uma crescente internacionalização das normas jurídicas, sobretudo
as de caráter negocial, que vigem, de fato, acima das ordens jurídicas estatais e
às quais os Estados, cada vez mais, limitam-se a aderir, incorporando seus
preceitos ao direito interno. Ora, incorporar normas implica incorporar também as
consequências jurídicas, políticas e lógicas delas, bem como seus pressupostos
tanto éticos quanto utilitaristas. Esse fenômeno repercute sobre o Poder
Judiciário, cuja atuação tende a limitar-se a questões “menores”, ou seja, não
diretamente ligadas à esfera negocial. O tempo dos negócios, sua velocidade
vertiginosa, vai tornando-se incompatível com o tempo da democracia, que supõe
a solução estatal e judicial dos conflitos. O recorrente tema da extinção da Justiça
do Trabalho no Brasil quer venha ou não tal extinção a ocorrer de fato, é um
eloquente exemplo do que estou afirmando.
2) Assiste-se, também, a uma drástica redução dos direitos, sobretudo
sociais, trabalhistas e previdenciários, ou seja, direitos coletivos de igualdade, de
segunda geração. A desconstitucionalização e a desregulamentação desses
direitos, assim como da própria relação entre empregados e empregadores, é o
caminho usado para essa redução. A argumentação de que, abrindo-se mão de
direitos trabalhistas, garantem-se empregos em maior quantidade (a “política da
solidariedade”, como a batizou o presidente Fernando Henrique Cardoso 5), é
falaciosa e impõe, para o futuro, renúncias cada vez maiores. A propósito,
ninguém se lembra de dizer ou de perguntar, a cada direito retirado em nome de
“garantir mais empregos”, se e quando esses direitos serão restituídos!
5
Em 10/04/1997, o Presidente Fernando Henrique Cardoso avisou os líderes sindicais de que não
esperassem normas gerais para os trabalhadores. “A palavra agora”, disse ele, “é flexibilização. A
própria noção de emprego não é mais a mesma”, acrescentou, sem, no entanto, especificar qual
seria a nova noção.
Neoliberalismo
119
3) Assiste-se, ainda, à realização do que Hayek preconizava já na década
de 40: um direito que não implicasse necessariamente garantias para o futuro.
Com isso, vão dissolvendo-se aos poucos a eficácia e o próprio conceito de
direitos adquiridos (transformados subrepticiamente, na linguagem do poder, em
“privilégios” adquiridos), de atos jurídicos perfeitos e de coisa julgada. Nesse
processo, as garantias jurídicas vão sendo substituídas pelas garantias de
mercado: em última instância, é o interesse do empresário que garante o
consumidor! Ora, se o Direito não pode garantir que o consumado ao império da
lei atual valha para o futuro, não pode, a rigor, garantir mais nada! A garantia de
direitos para o futuro é um pressuposto necessário do Estado Democrático de
Direito.
4) Dentro do contexto antes delineado, os princípios, categorias, institutos,
conceitos fundamentais e a própria estrutura da lógica jurídica vão sendo
gradativamente redimensionados e substituídos por princípios utilitários de
conteúdo econômico. A manipulação da linguagem, por sua vez, como na
“passagem” de direitos a privilégios adquiridos, provoca efeitos de eficácia
simbólica e identificação imaginária, que dificultam qualquer posicionamento
crítico com relação à “nova ordem mundial”. Essa manipulação da linguagem
evidencia-se, também, no caráter de “naturalidade” de que o neoliberalismo vai
revestindo-se enquanto ideologia única. O neoliberalismo se dá como justificado
de fato e por isso não se sente na necessidade de procurar justificativas éticas ou
filosóficas, como o liberalismo precisou fazer. Apresenta-se como sem
alternativas, como algo perante o qual não resta a ninguém, quer indivíduos, quer
Estados, outra saída senão a de aderir. E aí, na negação de alternativas,
transparece o totalitarismo simbólico neoliberal. Daí o fato de alguns terem
identificado o modelo neoliberal com o “fim da História”. Com efeito, o que seria o
fim da História, senão a ausência de alternativas?
De todo esse quadro que acabo de traçar, resulta que a exclusão social é
endêmica ao modelo neoliberal, pertence à sua lógica interna, por assim dizer. As
políticas sociais são, aí, meramente paliativas, embora frequentemente louváveis:
a estrutura de exclusão permanece intacta. Como disse o Ex-Presidente norteamericano George Bush, em setembro de 1992, “o tempo de caridade acabou!”.
Demitir para competireis o âmago da lógica neoliberal. Há nisso um evidente
120
Agostinho Ramalho Marques Neto
darwinismo social, e não nos esqueçamos de que em tal referência o mais forte é
sempre o mais bem adaptado. A velha oposição marxiana entre opressores e
oprimidos tende hoje a ser uma subclasse da oposição mais ampla entre incluídos
e excluídos. Afinal, ser oprimido não deixa de ser uma forma de inclusão! Nessa
perspectiva, os atuais excluídos da cidadania e de tudo o que a ordem social
pode apresentar como proteção estão numa situação ainda pior que a dos
escravos. Essas são as condições necessárias de uma ordem escravista. E essa
necessidade os inclui. Como escravos, é verdade, mas ainda assim os inclui.
Quanto aos excluídos, que necessidade há deles no novo estado das coisas?
Ninguém precisa deles, nem mesmo para oprimi-los! Os incluídos, por sua vez,
são cada vez mais obrigados a tolerar: o camelô na porta de sua loja, o vigia de
carro que impõe sua prestação de serviço, e assim por diante... E, em face da
inércia do poder público, são compelidos a tomar pessoalmente as medidas
necessárias à proteção de seus direitos. No limite dessa tendência, não estará o
estado de natureza hobbesiano, de guerra de todos contra todos?
***
Mas será que não haverá mesmo alternativas ao neoliberalismo? Que
fazer? O século XX se abre e se fecha com essa pergunta. Será que aquela
“coisa fora da nova ordem mundial”, de que fala CAETANO VELOSO (que
contudo não diz, porque não sabe que coisa é essa, a qual acrescento só pode
“estar” na medida em que venha a ser construída), não deve ter para nós,
psicanalistas e juristas, um sentido ético? Um sentido de ética de alteridade a ser
contraposto ao utilitarismo neoliberal? A alteridade é a contraface do sujeito. Sem
o outro, sem diferença, não pode haver sujeito. Assim, como os antigos gregos
vincularam a ética à política, a Arte Mestra, e assim como os modernos
pretenderam organizar arquitetonicamente os princípios de uma política racional,
sem qualquer sustentação ética ou teológica, não caberá a nós, nos dias que
correm, reivindicar uma política e um direito vinculados à ética, a valores éticos
que sejam sua condição de possibilidade? Não seria a partir dessa vinculação
que o sistema jurídico poderia fundamentar sua pretensão de autonomia,
construindo para si mesmo o espaço de sua “maioridade” e escapando ao
infantilismo a que o modelo neoliberal parece querer condená-lo? A aposta na via
Neoliberalismo
121
ética, quer dizer, no desejo, é uma reafirmação da pulsão de vida: “A ética é o
triunfo de Eros, a máxima expressão de Eros”, disse o jusfilósofo italiano
DOMENICO CORRADINI, numa mesa-redonda de um congresso de Filosofia do
Direito, da qual também participei na Universidad Nacional Autónoma de México,
na cidade do México, em março de 1996.
Nessa contraposição de uma ética do desejo ao utilitarismo neoliberal, a
Psicanálise também pode ter algo a dizer. Existe, por exemplo, uma íntima
articulação entre o sujeito do Direito e o sujeito da Psicanálise. Como indiquei no
início deste trabalho, o surgimento e o desenvolvimento de certos conceitos
cruciais da Modernidade, como os de democracia representativa, de cidadania, de
Estado de Direito e de sujeitos de direito, indissoluvelmente relacionados a ponto
de não se poder falar de qualquer deles sem referi-lo aos restantes, supõem todo
um conjunto de condições. Dentre estas, destaquei a fundamentação da
submissão a critérios gerais, racionais e impessoais, válidos inclusive para os
ocupantes do poder; assim como o reconhecimento do outro como pessoa, como
sujeito, como diferença, como alteridade.
Pois bem, é no âmbito de tais condições, embora ultrapassando-as em
certo sentido, visto que aqui o foco está voltado para uma Outra cena que supõe
a referência do desejo ao inconsciente e uma clivagem constitutiva do sujeito
enquanto sujeito do inconsciente, radicalmente outro em relação ao eu
consciente, volitivo e racional, o que representa uma ruptura decisiva em relação
à concepção de indivíduo constituída nos séculos XVII e XVIII  é no âmbito de tais
condições, repito, inseridas na tradição ocidental das formas modernas de
democracia, que a Psicanálise, desde o fim do século XIX, vem constituindo-se
como saber e forjando o conceito de sujeito do desejo. Esse conceito não deve
ser pensado como algo dissociado das condições históricas que tornaram
possível sua emergência no plano da teoria. Como diz BIRMAN,
a constituição do sujeito do desejo teve como condição histórica
de possibilidade a constituição do sujeito do direito [...], categoria
que fundamenta a Declaração dos Direitos do Homem, marca da
modernidade 6.
6
BIRMAN, Joel. Barbárie, Cidadania e Desejo. In: FRANÇA, Maria Inês [org.]. Desejo, Barbárie e
Cidadania. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 165.
122
Agostinho Ramalho Marques Neto
Desse modo, acrescenta aquele autor, o conceito psicanalítico de sujeito
do desejo só pôde estabelecer-se historicamente na medida em que a cidadania,
mediante a existência conceitual do sujeito do direito, instituiu-se para a
individualidade, e as modernas formas de democracia se foram consolidando.
Nessa
perspectiva,
esses
conceitos
se
intercomplementam,
num
todo
indissociável.
Com base em tais articulações, tenho sustentado que ninguém é
propriamente cidadão sem investir-se subjetivamente na cidadania, investimento
esse para o qual a via é o desejo. Não há cidadão sem desejo de cidadania. Na
perspectiva da Psicanálise, a via é o desejo, não uma utopia. Politicamente, a
Psicanálise não se fundamenta em nem se dirige a qualquer utopia. Essa sempre
é uma cristalização imaginária, que visa a tamponar a falta. Os discursos utópicos
alcançam, nesse tamponamento da falta, nessa recusa da incompletude, sua
dimensão totalitária. Quando digo que a via é o desejo, não estou apontando, por
isso mesmo, nenhum caminho a seguir. Nada mais errante que o movimento do
desejo. Nada mais incerto que o seu rumo. Mas também nada mais digno, sob a
ótica psicanalítica, a ponto de a Psicanálise fundar nele sua ética. A afirmação
dessa dignidade já está em FREUD, e desde muito cedo. No capítulo VII da
Interpretação dos Sonhos, por exemplo, publicado em 1900, ele já enuncia, como
uma espécie de lei geral, que só um desejo pode colocar em movimento o
aparelho psíquico. E LACAN fala da ética da Psicanálise como sendo uma ética
trágica do desejo, desejo esse, diz ele, que “não é um bem em nenhum sentido
do termo”. LACAN situa a ética da Psicanálise para além de toda economia dos
bens. Não é o bem do sujeito, mas seus impasses nas trilhas de seu desejo,
aquilo que vai sendo perlaborado no trabalho analítico. Afinal,
o desejo é o único ponto a partir do qual se pode explicar que haja
homens. Não homens enquanto rebanho, porém homens que
falam, com esta fala que introduz no mundo algo que pesa tanto
quanto o real todo 7.
Para quem considera, à luz da cidadania e da democracia, o ocaso do
7
LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 2: O Eu na Teoria de Freud e na Técnica da Psicanálise
[1954-5]. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Trad. de Marie Christine Laznik Penot. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 282-3.
Neoliberalismo
123
direito, da política e da ética no mundo da globalização neoliberal, parece-me
essencial manter sempre aberta a instância da interrogação. E, para isso, eventos
como esse Congresso podem constituir espaços preciosos. O foco dessa
interrogação precisa ser dirigido à explicitação dos fundamentos e da lógica
interna do modelo neoliberal, enfatizando sua impotência, mesmo quando em
meio a “boas intenções”, no sentido de conter o processo de exclusão social
crescente, que é uma de suas consequências necessárias. E aqui, creio que não
se poderá prescindir da utopia. Que esta, entretanto, não seja tomada como um
modelo a concretizar a qualquer custo, mas como um fora-de-lugar, condizente
com o u-topos de sua etimologia, como algo que tendencialmente se coloca no
horizonte e que se vai transformando, no processo mesmo de sua “aproximação”,
instigando a ação e inspirando a reflexão.
124
Agostinho Ramalho Marques Neto
Direitos Humanos, Estado e Globalização
José Luis Bolzan de Morais
Sumário: I. Considerações Iniciais. II. Direitos Humanos, Estado
Democrático de Direito e Globalização. 2.1. Direitos Humanos: ponto de
vista tradicional. 2.2. Estado Democrático de Direito: o caráter novo do
Estado. 2.3. Globalização: um caminho múltiplo. III. As crises
(des)constitutivas do Estado Democrático de Direito. 3.1. As crises: uma
retomada rápida. 3.2. O Estado Nacional como “locus” de realização dos
direitos fundamentais. 3.3. A desterritorialização dos espaços. IV.
Interrogações prospectivas (nada contra M. Weber). 4.1. O deslocamento.
4.2. Uma estratégia globalizada para os direitos humanos. Referências
Bibliográficas.
...Bebida é água.
Comida é pasto.
Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?
A gente não quer só comer,
A gente quer comer e quer fazer amor.
A gente não quer só comer,
A gente quer prazer para aliviar a dor.
A gente não quer só dinheiro,
A gente quer dinheiro e felicidade.
A gente não quer só dinheiro.
A gente quer inteiro e não pela metade.
(Comida, Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sergio Brito)
I. Considerações Iniciais
Talvez, como José Saramago, devêssemos iniciar – e o fazemos
efetivamente – essa incitação dizendo que o mais grave desafio que temos hoje,
todos e globalmente, é o de pormos um prato de comida na frente de todas as
pessoas, sem nos preocuparmos, a princípio, se elas irão simplesmente devorá-lo
insensivelmente ou, ao contrário, irão saboreá-lo, tirando todos os sabores
possíveis do ato de comer. Digo isso porque comer, para uma grande parte dos
seres humanos, ainda hoje, tem o sentido apenas de manter as forças físicas
suficientes para “estar de pé”, não havendo espaço para interrogar-se acerca das
artes e prazeres da culinária.
Por outro lado, para aqueles poucos que comem, esse ato está se
tornando mais uma prática globalizada, homogeneizada e descaracterizada como
ato simbólico e apaixonado de vida. A macdonaldização do ato de comer levou a
uma pasteurização dos sabores e do próprio ato de comer muito adequada aos
padrões uniformes pretendidos pelos modelos globais de vida em conformidade
com um padrão único de ser-estar no mundo. É o fast food que “permite” ao
homem acompanhar, com o estômago, a lógica de uma sociedade cuja referência
é a domesticação selvagem do ser humano. Todavia, em muitos lugares, de novo
dentre aqueles poucos que comem, tem-se constituído uma contracorrente que
pretende manter ou recuperar uma relação lúdica com a comida, no qual o ato de
comer não seja uma aventura incerta e sequer apenas um ato pasteurizado de
ingestão de rações diárias de sabor duvidoso. São os movimentos do slow food.
Mas, e o que tem isso a ver com a temática dos direitos fundamentais
sociais frente à(s) globalização(ões)? Tudo me parece. E é o que pretendo
propor-lhes ao longo dessa conversa.
Em primeiro lugar, por tratarmos de um tema que expressa de maneira
fulcral o conteúdo dos chamados direitos fundamentais sociais contidos no
pressuposto básico da dignidade da pessoa humana, princípio fundante do
nominado Estado Democrático de Direito.
Em segundo lugar, porque nos permite o mote para refletirmos essa
temática a partir de um pressuposto que pretendemos apresentar a seguir, qual
seja o de que não há apenas uma globalização e sequer, de outra banda, há o
que alguns pretendem, o fim da história, das ideologias, instaurando-se em
definitivo um modelo homogêneo de ser/estar no mundo. Ou seja, ao lado dos
aspectos perversos e, eventualmente, hegemônicos de um determinado projeto
global,
vemos
instaurar-se
espaços
de
autonomização
que
permitem
reapropriações de sentidos autônomos e diferentes de vida.
Todavia, continua impaga nossa primeira dívida: dar comida a todos.
Talvez esta seja, enfim, a maior causa global.
É, assim, com esse pano de fundo e com essa ilustração que pretendo
propor, nas linhas que seguem, não uma liturgia missionária, mas uma reflexão
acadêmica comprometida com uma intenção concretizadora dos direitos humanos
– todos eles – como um projeto – ou uma dívida – global/universal que se
expressa em todos os lugares ao mesmo tempo.
Portanto, pensar as possibilidades práticas para os direitos humanos, em
especial no que se refere aos sociais, coloca-nos, no contexto de uma sociedade
126
José Luis Bolzan de Morais
globalizada, questões que se impõem como inafastáveis, bem como implicam que
as tratemos como inseridas em um rol de possibilidades que vai muito além
daquele de pretendermos um apego tradicional às estratégias, fórmulas e
instituições com as quais operamos, bem como implica certo desapego a uma
leitura que se apresenta tal qual a do projeto econômico-capitalista global,
reticente/alheia/xenófaba às potencialidades que se abrem a partir de um
contexto de universalização das pretensões e estratégias.
Dentre as tantas questões que se apresentam, tencionamos apontar – não
mais do que isso – algumas daquelas que cremos ser das mais significativas para
os operadores do Direito, sem negar a ocorrência de tantas outras.
Optamos, assim, por refletir, ao longo do texto, alguns tópicos que digam
com as condições de torná-los usufruíveis. Não há, por óbvio, como se esquivar
da análise de uma tentativa de implementação dos direitos humanos tendo como
cenário o espectro da globalização do universo das relações socioeconômicas e
seus corolários, sobretudo quando visamos instrumentalizar para isso as práticas
jurídicas.
Adotamos como estratégia operacional a de discorrer topicamente sobre os
diversos aspectos que tocam essa temática, sem que isso implique rupturas ao
longo do texto, mas, apenas, um mecanismo metodológico que viabilize a
compreensão das posições adotadas. Em especial vamos tentar sustentar, ao
final, uma leitura que dialogue com a ideia de que, tendo como pressuposto o
déficit original no que diz com os direitos sociais – e não só com eles –, entenda o
atual contexto histórico como uma potencialidade comprometida com a
concretização dos direitos fundamentais e que temos uma multiplicidade de
lugares onde se mostram práticas que apontam para isso, sem descurarmos
também dos limites e restrições que um modelo hegemônico de globalização
impõe a essa pretensão.
Ou
seja,
há
um
“embate”
dialético
entre
inclusão/exclusão,
negação/afirmação, concretização/desconstrução, confirmação/desconfirmação
etc.
Enfim, a partida não está terminada, muito embora nos sintamos, muitas
vezes – e com razão –, perdendo já com boa parte do tempo de jogo decorrido.
Entretanto, esses são os limites a que nos propomos, refletindo uma leitura
Direitos Humanos, Estado e Globalização
127
possível, ao que nos parece, estruturada em três momentos.
O primeiro que retoma e ordena os conceitos centrais desse debate –
direitos humanos, Estado Democrático de Direito e globalização –, pretendendo
apenas apontar uma caracterização instrumental para esse momento.
O segundo apropria uma discussão que temos feito insistentemente quanto
às crises que afetam o Estado enquanto instituição da modernidade e desde o
seu (re)desenho contemporâneo.
Por fim, pretendemos sugerir algumas reflexões, fazendo incidir a coimplicação entre o primeiro e o segundo momentos, apontando para as
possibilidades de ruptura e reconstrução dos espaços e práticas humanitárias.
II. Direitos Humanos, Estado Democrático de Direito e Globalização
2.1 Direitos Humanos: Ponto de Vista Tradicional
A preocupação com o tema dos direitos humanos está presente desde
muito tempo nos trabalhos jurídicos daqueles que somos preocupados com a
qualificação da vida quotidiana dos indivíduos, dos grupos sociais, da
humanidade e de todos os seres que habitam o planeta.
De notar que, na modernidade, pelo menos, a história dos direitos
humanos está intrinsecamente conectada com aquela do Estado e de suas
apresentações, sobretudo desde a passagem da fórmula absolutista para a liberal
clássica, nos idos dos anos 1700/1800 1.
Como diz José Antonio López García,
“(...) una buena manera de estudiar los Derechos humanos, al
menos desde el siglo XIX hasta nuestros días, consiste en verlos
en conexión com la historia del Estado Moderno” 2, e,
agregaríamos, hoje, com suas crises.
1
Não queremos dizer com isso que a história dos direitos humanos, e a luta por sua
concretização, tenha se iniciado nesse período. Há um longo caminho percorrido até esse
momento. Todavia, para fins deste trabalho, essa “pré-história” não afeta a sua formatação e
argumentação, apesar da importância central que tem para a compreensão mesma deste tema.
2
Ver: GARCÍA, José Antonio López. Los Derechos: entre la ética, el poder y el derecho. In:
GARCÍA, José Antonio López e REAL, J. Alberto del( eds.). Los Derechos: entre la ética, el poder
y el derecho. P. 26.
128
José Luis Bolzan de Morais
Dessa forma é que inúmeros juristas, como também sociólogos,
politólogos, filósofos etc., além daqueles que buscamos construir uma visão
transdisciplinar da temática que nos move, bem como agentes sociais engajados
na luta por sua efetivação, consolidação e ampliação, vêm desenvolvendo
pesquisas e projetos, tentando, a todo o momento, constituir um saber e práticas
mais apuradas, além de um discurso garantidor da eficácia e efetividade dos
conteúdos próprios – tradicionais ou inovadores – aos direitos humanos, ao lado
de uma busca incessante por práticas concretizadoras, além da tentativa
permanente de tornar o compromisso com os direitos humanos um “valor
universal”, como pretendemos apontar adiante.
Deve-se ter presente que tais questionamentos devem acompanhar não
apenas as transformações que se operam nos conteúdos tidos como próprios dos
direitos humanos – e aqui observamos que, como adverte Norberto Bobbio em
seu A Era dos Direitos, assim como o nosso anfitrião Ingo Sarlet, em seu A
Eficácia dos Direitos Fundamentais, os direitos humanos não nascem todos de
uma vez, eles são históricos e se formulam quando e como as circunstâncias
sócio-histórico-políticas
são
propícias
ou
referem
a
inexorabilidade
do
reconhecimento de novos conteúdos – como também a necessidade que temos
de dar-lhes efetividade prática, podendo-se agregar, ainda, com José Eduardo
Faria 3, a ideia de que às diversas gerações pode-se atrelar o maior
compromisso de uma das funções do Estado – à cidadania civil e política (1a
geração) atrelava-se, de regra, a ação legislativa, pois bastaria o seu
reconhecimento legal para a sua concreção por tratarem-se de liberdades
negativas cuja intenção privilegia o caráter de não impedimento das ações por
parte do Estado; à cidadania social e econômica (2a geração), a ação
executiva através de prestações públicas, implicando necessárias ações
políticas promocionais; à cidadania pós-material (3a geração), a ação
jurisdicional em sentido amplo, garantindo a efetividade de seus conteúdos,
através de uma atitude hermenêutica positiva e concretizante dos conteúdos
3
José Eduardo Faria. Direitos Humanos e Globalização Econômica. Notas para uma discussão.
Tal postura não pode significar que as demais funções do Estado não tenham nenhum tipo de
comprometimento na medida em que, e.g., o desrespeito a qualquer deles enseja a utilização de
remédios procedimentais construídos para dar conta dessas situações, tais como o Habeas
Corpus, Mandado de Segurança, Mandado de Injunção. Ação Civil Pública, Ação Popular etc.
Direitos Humanos, Estado e Globalização
129
constitucionalizados. 4
Há, ainda, quem os identifique por intermédio do valor privilegiado em seus
conteúdos. Assim, teríamos os direitos de liberdade, os de igualdade e os de
solidariedade/fraternidade, acompanhando as diversas gerações como antes
explicitadas.
Ao final, pode-se dizer que os direitos humanos são universais e cada vez
mais projetam-se no sentido de seu alargamento objetivo e subjetivo,
mantendo seu caráter de temporalidade. São históricos, não definitivos, exigindo
a todo o instante não apenas o reconhecimento de situações novas, como
também a moldagem de novos instrumentos de resguardo e efetivação de
situações já consolidadas. Preferimos dizer que se generalizam – ou difundem –
na medida em que sob as gerações atuais observamos, muitas vezes, um
aprofundamento subjetivo, a transformação ou a renovação (e.g. função social)
dos conteúdos albergados sob o manto dos direitos fundamentais de gerações
anteriores, além da especificação de novas dimensões5. Ou seja, da 1ª geração
com interesses de perfil individual passamos a, na(s) última(s), transcender o
indivíduo como sujeito dos interesses reconhecidos, sem desconsiderá-lo,
obviamente 6 – coletivos e difusos.
O que se percebe nessa seara é que muito dos conteúdos básicos em
muitos lugares sequer foi implementado ou muitos são sonegados e ao mesmo
tempo precisamos dar conta de situações novas cada vez mais complexas,
impondo-se ao jurista uma formação qualificada que lhe permita enfrentar
4
É de ver que não há, também neste aspecto, uma uniformidade conceitual, podendo-se referir
autores que multiplicam as gerações de direitos humanos, a partir de concepções primárias
díspares, bem como da emergência de novas circunstâncias que dizem respeito à existência dos
seres no planeta.
5
No âmbito deste trabalho é suficiente adotarmos uma distinção simplificada para entendermos os
direitos fundamentais como sendo o catálogo positivado dos direitos humanos em certa ordem
jurídica, o que, ao mesmo tempo em que os identifica, pode diferenciá-los em razão da extensão
quantitativa de uns e de outros. Ver adiante a questão da dialética entre internacionalização dos
direitos humanos e constitucionalização do direito internacional.
6
Assim é que se pode falar, nos dias que passam, de uma multiplicação de gerações em razão de
novos conteúdos próprios ao universo dos direitos humanos, tais como aquelas relacionadas com
as questões ambientais, a paz, o desenvolvimento e, mais recentemente, aquelas ligadas à
pesquisa genética – que dá origem a um novo ramo do direito, reconhecido como o biodireito – e à
cibernética, o que só confirma a hipótese bobbiana da historicidade destas matérias, bem como
certa independência de umas em relação a outras na medida em que o aparecimento de uma
nova geração não implica o desaparecimento de alguma das precedentes, embora possa redefinila, como já expresso. A este respeito ver nosso Do Direito Social aos Interesses Transindividuais.
O Estado e o Direito na ordem contemporânea.
130
José Luis Bolzan de Morais
competentemente os conflitos surgidos nesse meio, sem esquecer o fundamental
que são as estratégias próprias ao Estado de Direito como Estado Democrático
de Direito 7 – ver, abaixo, o item 2.2. –, assim como os enfrentamentos a que
estamos sujeitos em tempos de globalização neoliberal (capitalista) e seus
reflexos de reforma do Estado, flexibilização etc., como veremos na sequência
deste trabalho.
Pode-se dizer, então, que:
Los Derechos humanos expresan así aquello que es natural,
común o universal a todos los individuos. Constituyen una
construcción teórica (principalmente teórico-jurídica) basada en un
modelo de sujeto (de Derecho) que se abstrae de las
particularidades jurídicamente irrelevantes de cada cual para
señalar las similitudes relevantes de todos. 8
Resumidamente poderíamos dizer, então, que os direitos humanos, como
conjunto de valores históricos básicos e fundamentais, que dizem respeito à
vida digna jurídico-político-psíquico-físico-econômica e afetiva dos seres
humanos e de seu habitat, tanto daqueles do presente quanto daqueles do
porvir, surgem sempre como condição fundante da vida, impondo aos
agentes político-jurídico-econômico-sociais a tarefa de agirem no sentido de
permitir e viabilizar que a todos seja consignada a possibilidade de usufruílos em benefício próprio e comum ao mesmo tempo.
Assim, como os direitos humanos dirigem-se a todos, o compromisso com
sua concretização caracteriza tarefa de todos, em um comprometimento comum
com a dignidade comum.
2.2 Estado Democrático de Direito: O Caráter Novo do Estado
O Estado Democrático de Direito tem um conteúdo transformador da
realidade, não se restringindo, como o Estado Social de Direito, a uma adaptação
7
o
Ver art. 1 da CFB/88. Sobre o conceito de Estado Democrático de Direito, ver: BOLZAN DE
MORAIS, Do Direito Social aos Interesses Transindividuais, em especial capítulo I. Da mesma
forma ver: BOLZAN DE MORAIS, José, Luis e STRECK, Lenio Luiz. Ciência Política e Teoria
Geral do Estado.
8
Ver: GARCÍA, José Antonio López. Los Derechos: entre la ética, el poder y el derecho. In:
GARCÍA, op. cit., p. 22.
Direitos Humanos, Estado e Globalização
131
melhorada das condições sociais de existência. Assim, o seu conteúdo ultrapassa
o aspecto material de concretização de uma vida digna ao homem e passa a agir
simbolicamente como fomentador da participação pública quando o democrático
qualifica o Estado, o que irradia os valores da democracia sobre todos os seus
elementos constitutivos e, pois, também sobre a ordem jurídica. E mais, a ideia de
democracia contém e implica, necessariamente, a questão da solução do
problema das condições materiais de existência.
Com efeito, são princípios do Estado Democrático de Direito: A –
Constitucionalidade: vinculação do Estado Democrático de Direito a uma
Constituição como instrumento básico de garantia jurídica; B – Organização
Democrática da Sociedade; C – Sistema de direitos fundamentais individuais e
coletivos, seja como Estado de distância, porque os direitos fundamentais
asseguram ao homem uma autonomia perante os poderes públicos, seja como
um Estado antropologicamente amigo, pois respeita a dignidade da pessoa
humana e empenha-se na defesa e garantia da liberdade, da justiça e da
solidariedade; D – Justiça Social como mecanismos corretivos das desigualdades;
E – Igualdade não apenas como possibilidade formal, mas, também, como
articulação de uma sociedade justa; F – Divisão de Poderes ou de Funções; G –
Legalidade que aparece como medida do direito, isto é, através de um meio de
ordenação
racional,
vinculativamente
prescritivo,
de
regras,
formas
e
procedimentos que excluem o arbítrio e a prepotência; H – Segurança e Certeza
Jurídicas.
Assim, o Estado Democrático de Direito teria a característica de ultrapassar
não só a formulação do Estado Liberal de Direito, como também a do Estado
Social de Direito – vinculado ao welfare state neocapitalista –, impondo à ordem
jurídica e à atividade estatal um conteúdo utópico de transformação da realidade.
Dito de outro modo, o Estado Democrático é plus normativo em relação às
formulações anteriores. Vê-se que a novidade que apresenta o Estado
Democrático de Direito é muito mais em um sentido teleológico de sua
normatividade do que nos intrumentos utilizados ou mesmo na maioria de seus
conteúdos, os quais vêm sendo construídos de alguma data.
Como sustentamos, o Estado Democrático de Direito carrega em si um
caráter transgressor que implica agregar o feitio incerto da Democracia ao Direito,
132
José Luis Bolzan de Morais
impondo um caráter reestruturador à sociedade e revelando uma contradição
fundamental com a juridicidade liberal, a partir da reconstrução de seus primados
básicos de certeza e segurança jurídicas, para adaptá-los a uma ordenação
jurídica voltada para a garantia/implementação do futuro, e não para a
conservação do passado. Nesse sentido, pode-se dizer que, no Estado
Democrático de Direito, há um sensível deslocamento da esfera de tensão do
Poder Executivo e do Poder Legislativo para o Poder Judiciário 9.
Nesse sentido, é preciso ter presente que o Estado Democrático de Direito
deve romper, e o faz efetivamente, com a tensão entre autonomização e
amoldamento que caracterizou/za muitas experiências do Estado Social – tomado
esse conceito, aqui, em sentido amplo, para abranger todas as experiências tidas
ao longo, em particular, do século XX. Ou seja, o Estado Democrático de Direito
não pode se fazer à custa do amoldamento da subjetividade individual, através de
estruturas compensatórias de promoção clientelística do consumo, por intermédio
de um efeito duplo de proteção e normalização de condutas. Ou seja: o Estado
Democrático de Direito deve romper com aquilo que poderíamos nominar, com J.
Habermas “colonização do mundo da vida” 10.
2.3 Globalização: Um Caminho Múltiplo
Para entendermos o fenômeno da globalização, talvez fosse necessário,
em primeiro lugar, caracterizarmos a sua identidade singular ou plural. De fato,
temos uma ou várias globalizações ou temos uma globalização que se espraia
por diversos (todos) os setores da vida (?).
Nessa esteira poderíamos tentar, em um primeiro aporte, entendê-la como
algo que expressa um contexto de maximização das interconexões, as quais se
estabelecem não mais no interior de espaços ou temas restritos, mas, ao
contrário, projetam-se ao infinito.
Todavia, diante da complexidade do tema, podemos adotar aqui uma
9
a
Nesse sentido, ver nosso, com Lenio Streck, Ciência Política e Teoria Geral do Estado, 2 ed., p.
98. Também ver: STRECK, Lenio. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Uma nova crítica do
Direito.
10
Ver, sobre o tema, o nosso A Subjetividade do Tempo, em particular o capítulo terceiro, sem,
contudo não deixar de considerar a dinâmica sofrida pelos conteúdos ali expressos. De Habermas,
ver o seu Teoría de la Acción Comunicativa.
Direitos Humanos, Estado e Globalização
133
“ideia” apenas, no sentido de que
a globalização muda, assim, nossa relação com o espaço – que
se amplia – e com o tempo – que se acelera, o que deve conduzir
a que evitemos vê-la sob o ângulo exclusivo de um processo de
homogeinização
ou
reter
dela
somente
fatores
de
heterogeneidade ou, ainda, tentar compreendê-la a partir da
dialética da globalização e da fragmentação recorrendo a fórmulas
de efeito, fundadas, por exemplo, na oposição McWorld versus
Jihad 11.
Talvez, e é o que pretendemos apontar, devamos perceber o fenômeno
globalização como não restrito às estratégias do capitalismo financeiro, mas,
desde a perspectiva de que, não é um estado e sim um processo radicalmente
incerto e ambivalente que se projeta por sobre os mais variados aspectos da vida
e que, ao mesmo tempo em que rompe com os lugares tradicionais da economia,
da política, das relações e práticas sociais, implica uma imbricação entre os
diversos lugares em que tais ocorrem, multiplicando
de maneira simultânea e superposta fenômenos de
homogeneização, localismo, desterritorialização, renacionalização
e fragmentação das identidades coletivas, o que as torna
multifacetadas, fluidas, ambíguas e em profundo processo de
transformação (Gómes, p. 67).
Assim, nesse espectro, segundo Gómes (2009):
a globalização não deve ser equacionada exclusivamente como
um fenômeno econômico ou como um processo único, mas como
uma mistura complexa de processos frequentemente
contraditórios, produtores de conflitos e de novas formas de
estratificação e poder, que interpela fortemente subjetividades e
tradições, exigindo maior reflexividade na ação diante do
incremento da complexidade e da incerteza, e que diz respeito
não apenas à criação de sistemas em grande escala, mas
também às mudanças nos contextos locais e até mesmo pessoais
de experiência social. (Gómes p. 59)
11
Ver: Laïdi, Z. La Mondialisation ou la Radicalisation de l’Incertitude, apud Gómes, José María,
op. cit., p. 55-56.
134
José Luis Bolzan de Morais
III. As Crises (Des)Constitutivas do Estado Democrático de Direito 12
3.1. As Crises: Uma Retomada Rápida
Há algum tempo vimos sustentando que o Estado Nacional, com suas
características da modernidade, em especial sua sustentabilidade em um poder
supremo e incontrastável – como soberania –, sua organização sob a lógica da
especialização de funções exclusivas(excludentes), sua conformação sob uma
ordem jurídica consolidada constitucionalmente – Estado Constitucional – e sua
projeção como o sustentáculo de padrões mínimos de sobrevivência e agente
superior de regulação e formatação social, tem perdido, para dizer o menos, sua
centralidade como instância de referência.
São esses aspectos aquilo que chamamos: crise conceitual, crise
funcional, crise institucional(constitucional), crise estrutural, respectivamente, sem
pretender desconsiderar os vínculos que as unificam.
Isso reflete o que alguns apontam como neofeudalismo, outros sustentam a
necessidade de praticar-se uma reforma que vise a adequação da instituição
Estado a um novo contexto de relações econômico-políticas e outros, ainda, que
sugerem a necessidade de se retomar as bases de sustentação da ideia mesma
de Estado para produzir-se uma refundação que permita recuperar suas
referências legitimantes perdidas.
Desde tempos vimos percebendo, pelos mais variados fatores, a corrosão
da instituição estatal como tal e vendo surgir algo que poderíamos nominar
provisoriamente como um espaço concorrencial de ação, no qual, de variados
lugares, vemos partir estratégias decisórias que se confrontam na busca de
supremacia.
3.2 O Estado Nacional como “Locus” de/para Realização dos Direitos
Fundamentais
Diante disso, é preciso que reflitamos acerca das possibilidades dos
12
Para uma revisão mais ampla desse tema, ver o nosso Revisitando o Estado! Da crise
conceitual à crise institucional(constitucional), in Anuário do Programa de Pós-Graduação em
Direito da UNISINOS, 2000, p. 69 e ss.
Direitos Humanos, Estado e Globalização
135
direitos humanos dados, como se disse anteriormente, seus vínculos intrínsecos
com o Estado.
Se retomarmos os vínculos, sugeridos por José Eduardo Faria, das
diversas gerações de direitos humanos com uma das funções do Estado,
percebemos o quão é importante, diante do quadro de esfacelamento da
autoridade pública, a figura do Estado como instância de referência para a
produção, salvaguarda e concretização dos direitos humanos
Assim, sob o prisma da concretização pelo/através do Estado, é preciso
verificar-se o papel do ente público estatal para que se obtenha o máximo de
efetividade, assim como o máximo de adequação dos conteúdos que lhe são
próprios.
Por evidente que a ação pública estatal deverá incluir não apenas o
reconhecimento em nível legislativo expresso ou implícito – através de uma
cláusula constitucional aberta – (vide art. 5º da CFB/88) – que, como visto, tem
serventia fundamental no âmbito das liberdades negativas, mas é insuficiente, já
na seara dos direitos sociais, econômicos e culturais, como uma produção
legislativa ordinária de caráter implementante da norma superior.
Quando tratamos das liberdades positivas, a essa ação do legislador – pela
regulação da previsão constitucional – é imprescindível que se agregue uma
atuação promotora dos mesmos, a qual se funda em geral na ação executiva do
Estado, colocando em prática conteúdos reconhecidos pelo direito positivo. Esse
caráter prestacional vincula-se inexoravelmente à implementação dos direitos
sociais, econômicos e culturais através da ação política – políticas públicas –
estatal. 13
Temos, portanto, um problema ampliado. Um problema de teoria jurídica
constitucional que se inicia com a compreensão da mesma, do perfil das normas
que introjetam tais conteúdos e que são apresentados, muitas vezes, apenas
como embelezamentos estratégicos e legitimadores da ordem normativa estatal,
sem refletirem-se no cotidiano prático do cidadão, impondo-se que reflitamos
13
A respeito, do autor, ver As Crises do Estado Contemporâneo, in América Latina: cidadania,
desenvolvimento e Estado. Portanto, quanto à implementação dos conteúdos dessa geração de
direitos humanos, é inafastável a necessária compreensão dos contornos próprios às crises do
Estado Contemporâneo, nos seus aspectos conceituais (em particular o problema da soberania) e
estruturais (no que diz com os problemas financeiros, ideológicos e fillosóficos do Welfare state).
136
José Luis Bolzan de Morais
acerca das ditas normas programáticas e de sua concretização sustentada na
ideia de ótima concretização da norma, assentada em princípios, tais como o da
unidade constitucional, concordância prática, exatidão funcional, efeito integrador
e força normativa da Constituição (máxima efetividade), como explicita Konrad
Hesse 14. Portanto, a implementação dos conteúdos de direitos humanos, em
particular os positivos, implicam a necessária compreensão da ação jurídica
fundamentada em uma prática comprometida e assente em uma teoria engajada,
cuja Constituição não seja percebida exclusivamente como uma folha de papel15.
Do outro lado, é preciso, ainda, que se pense na concretização dos direitos
humanos a partir do prisma da jurisdição, atribuindo-lhe expressão fundamental
quando estejamos frente aos direitos de terceira geração, o que não a afasta da
problemática ora enfrentada. 16
Essa refere, ainda, a necessidade de que, para além da compreensão do
tema, façamos uma utilização dos instrumentos procedimentais para fazer valer
os seus conteúdos, apropriando-nos do que o próprio texto constitucional coloca à
disposição do cidadão. Assim, em situações individuais, temos o habeas corpus,
o habeas data e o mandado de segurança; para situações coletivas, temos o
mandado de segurança coletivo; para as situações que envolvem interesses
difusos, temos a ação popular, a ação civil pública, além de devermos considerar
as possibilidades postas pelo mandado de injunção e a ação direta de
inconstitucionalidade por omissão.
Por óbvio que não se trata de tarefa fácil, em quaisquer dos aspectos antes
expressos, particularmente quando tomamos como pano de fundo o Estado
Contemporâneo e sua conformação e o caráter da formação jurídica dos atores
envolvidos. Ou seja: o cenário que dispomos nos conduz a circunstâncias
complicadoras das já difíceis tarefas que temos.
É preciso que saibamos que a Constituição, como documento jurídico-
14
Ver o seu (livro?) A Força Normativa da Constituição. Para o trato da questão hermenêutica, ver
Hermenêutica Jurídica (em)Crise, de Lenio Luis Streck.
15
Ver Ferdinand Lassale, Que é uma Constituição, passim.
16
Se pensarmos, nos limites desse trabalho, a função da jurisdição em uma perspectiva ampliada,
que inclua não apenas a ação do agente público encarregado das atribuições afetas à função
pública estatal, mas incorporando algo que poderíamos denominar como uma prática jurídica
comprometida que congregue todos os operadores jurídicos, poderíamos refletir, aqui, acerca da
necessidade de, com o alargamento e aprofundamento dos catálogos de direitos humanos,
enfrentarmos o problema de como tornar tais conteúdos usufruíveis pelos cidadãos.
Direitos Humanos, Estado e Globalização
137
político, está imersa nesse jogo de tensões e de poderes, mas é indispensável
que tenhamos presente, os que militamos no direito constitucional e nos direitos
humanos, também, que a Constituição não é programa de governo, ao contrário,
são os programas de governo que precisam se constitucionalizar. 17
Mas como nos restringirmos ao debate acerca da concretização dos
direitos humanos, em particular os sociais, através do Estado, se aceitarmos a
referência anterior quando refere o papel apenas contingente do Estado nos dias
atuais?
É preciso, assim, que reflitamos acerca desse processo, o que podemos
tentar sistematizar como um processo de desterritorialização dos espaços.
3.3 A Desterritorialização dos Espaços
Para avançarmos, portanto, é necessário que tentemos atribuir um sentido
ao conteúdo contido por esta locução: desterritorialização.
O que pretendemos sugerir aqui é que de alguma forma a modernidade
político-institucional sustentou-se, ao longo de sua história, sobre uma base
geográfica territorial que permitiu, ao mesmo tempo, estabelecer identidades
locais e diferenças. Ou seja, o território serviu para, através de seus limites,
constituir características, direitos e acessibilidades ao mesmo tempo em que,
conjugado com a ideia de soberania, impermeabilizava o interno diante do externo
(estrangeiro).
Todavia, essa noção parece indicada ao desaparecimento ou a uma
necessária reconstrução, em especial se considerarmos o impacto estrondoso
da(s) globalização(ções) que desestabiliza (...) as fundações políticas da ordem
de Vestfália e mina (...) a correspondência histórica e analítica entre a democracia
política e o Estado-nação soberano, como diz José María Gómes18.
O que se tem aqui é que
as questões e categorias centrais da teoria e prática da
17
Tal debate envolveria, ainda, um discurso competente acerca da mutação constitucional e do
controle de constitucionalidade, os quais afetam indelevelmente o problema da concretização dos
direitos humanos. Ver: BOLZAN DE MORAIS, José Luis. Constituição ou Barbárie. Perspectivas
constitucionais. In SARLET, Ingo. A Constituição Concretizada.
18
Ver, do autor, Política e Democracia em tempos de globalização, p. 62-63.
138
José Luis Bolzan de Morais
democracia contemporânea resultam indissociáveis da figura do
Estado-nação: o consenso e a legitimidade do poder político; a
base político-territorial do processo político; a responsabilidade
das decisões políticas; a forma e o alcance da participação
política; e até o próprio papel do Estado-nação como garantia
institucional dos direitos e deveres dos cidadãos e os processos
em curso de globalização estão desafiando as fundações e
princípios políticos do Estado-nação e da ordem de Vestfállia e,
por extensão, da própria democracia e cidadania 19
Diante disso, como é possível enfrentar o desafio de “dar conta” dos
direitos humanos?
IV. Interrogações prospectivas (nada contra Max Weber)
Assim, a importância do debate acerca dos Direitos Humanos, parece-nos,
deve ser percebida, no âmbito do Direito, pelo necessário reconhecimento e
proteção através de garantias suficientes e eficientes; no âmbito da Política, pelo
seu acatamento, respeito e promoção; e, no âmbito da Sociedade Civil, pelo
apego aos seus conteúdos já consolidados e pela busca de salvaguardas aos
novos desafios, além da moldagem de estratégias sociais de proteção e
promoção independentes daquelas postas à disposição pelo Direito Positivo. Tal
se apresenta não apenas em razão de sua constante ampliação do frequente
desrespeito de que são objeto.
Portanto, de que adianta retomar o tema dos Direitos Humanos e sua
implementação, a partir de uma estratégia constitucional e de hermenêutica de
suas disposições, para consolidarmos e ampliarmos o seu catálogo, os
mecanismos procedimentais e as instâncias de proteção dos mesmos se, diante
do atual quadro de crise das instituições públicas – crise do espaço público, da
democracia, do Estado enquanto tal etc. – as instâncias de regulação social –
como é o caso do Direito, estão se enfraquecendo ou, pior, desaparecendo, como
espaços públicos de apelo, em especial frente a estruturas e estratégias paraestatais e mercadológicas?
Não basta, nesse espectro, que nos restrinjamos ao debate jurídicopositivo acerca do tema enfrentado, se não tivermos presente que o seu
19
Id. Ibid., p. 52-53
Direitos Humanos, Estado e Globalização
139
“sucesso” – efetividade – não depende unicamente de seu reforço por
mecanismos jurídicos, posto que estes, muitas vezes, se esfacelam perante o
estabelecimento de um espaço “público” privatizado ou paralelo.
Deve-se, por outro lado, observar uma inevitável correspondência entre os
Direitos Humanos e a Democracia, posto que, se essa se enfraquece são aqueles
os primeiros e principais prejudicados, na qual em muitas situações, explicita-se a
incapacidade de as instituições democráticas enfrentarem a força não repercute
únicamente no âmbito dos Direitos Humanos civis e políticos, mas a todas as
suas gerações, fazendo supor, como aponta Renato Janine Ribeiro, de que
somente é legítimo, na política, o regime democrático... 20
Nesse momento é, ainda, relevante que tenhamos presente a inevitável e
incontornável co-implicação que têm os direitos humanos em suas diversas
gerações, o que impõe a percepção de que a dualidade “liberdades
positivas/liberdades negativas” tem apenas um valor didático, posto que não
podemos percebê-las como instâncias independentes.
4.1 O Deslocamento
De outra banda seria preciso pensar a questão da concretização dos
direitos humanos a partir de uma perspectiva social, para o quê apenas
faremos menção.
Ou seja: de que estratégias deveriam lançar mão, além daquelas já
apontadas, os atores sociais para verem materializadas as políticas humanitárias
erigidas ou não – uma vez que poderiam agir com o objetivo de verem satisfeitas
pretensões novas emergentes de novos contextos e conflitos – como direitos
fundamentais.
Por óbvio que as possibilidades de verem satisfeitas tais pretensões
podem, nos dias de hoje, ser pensadas a partir de uma dupla via.
Na primeira, através de pretensões dirigidas à autoridade pública estatal,
buscando fazê-los valer desde alguma estratégia positivo/prestacional ou negativa
20
Ver do autor: Primazias da Democracia, in Folha de S.Paulo, Caderno Mais, p. 5-13, 13.07.97.
Para ele: Este valor ético da democracia faz com que os direitos que a constituem tenham
primazia sobre todos os outros direitos possíveis do homem. Aliás, nosso tempo mostra que tais
direitos somente são assegurados quando há o núcleo duro dos direitos democráticos.
140
José Luis Bolzan de Morais
– na dependência do conteúdo da pretensão – por parte do Estado, de suas
funções, de suas agências ou agentes.
Na segunda, poder-se-ia supor um processo de autonomização social – o
que não significa adoção de uma matriz (neo)liberal/capitalista – que conduzisse a
uma apropriação coletiva das incumbências necessárias à efetivação de tais
conteúdos. Tal efetivação dar-se-ia, então, a partir de um comprometimento
coletivo pelo bem-estar comum, desde a assunção de tarefas sociais no próprio
âmbito da sociedade e pelos atores sociais os mais diversos, independizando-se
de amarras, muitas vezes, intransponíveis, próprias às características estruturais
do Estado Contemporâneo, como Estado do Bem-Estar Social em suas diversas
experimentações práticas.
Aqui e dessa forma poder-se-ia incluir diversas experiências que vão desde
uma flexibilização participativa da democracia representativa até a implementação
mesma de políticas públicas autônomas que “rompem” ideologicamente com o
caráter transferencial adrede ao modelo representativo.
4.2 Uma Estratégia Globalizada para os Direitos Humanos
Ao final, e estrategicamente, é preciso que saibamos, mesmo imersos
nesse contexto crítico, tirar o proveito possível dos conteúdos e procedimentos
constitucionais positivados.
Nesse quadro de ideias, não podemos furtar-nos ao enfrentamento desse
tema se quisermos dar vazão, com certo grau de eficácia, à necessária
constitucionalização do cotidiano, tendo como pressuposto que, como diz Paulo
Bonavides, fora da Constituição não há instrumento nem meio que afiance a
sobrevivência democrática das instituições. 21
Partindo desse pressuposto, quisemos sugerir uma leitura que projete um
ponto de vista que parte da contradição entre dois projetos distintos para aquilo
que pretendemos nominar – em outro momento – de um projeto mundial com
exequibilidade local. Assim, desde logo poderíamos adiantar que, se fôssemos
titulares de uma resposta à interrogação suscitada pelo tema enfrentado,
21
Ver: BONAVIDES, Paulo. Do País Constitucional ao País Neocolonial, p. 13.
Direitos Humanos, Estado e Globalização
141
seríamos tentados a dizer que a globalização em seu sentido estrito, como
projeto
econômico
hegemônico,
unilateral
e,
por
consequência,
uniformisante, aparece como uma perversa farsa que impõe um padrão único
e totalizante – para sermos eufemísticos – de condutas.
Por outro lado, se pensarmos a globalização – em uma perspectiva de
universalização diferenciada – não enquanto tal, mas como um projeto
civilizatório 22 que conjuga uma perspectiva universal que se constrói em escala
mundial e se concretiza no plano local a partir de padrões compartilhados do
justo, seríamos conduzidos a dizer que estaríamos, então, diante de uma
inevitabilidade se quisermos construir uma sociedade justa e solidária, sob a paz
perpétua kantiana necessária à medida que se apresenta o que Habermas
nomina de globalização dos riscos 23.
Quem sabe poder-se-ia falar, a partir da lógica humanitária, em um
pensamento universal democrático que ne tend pas à la diffusion d’un modèle
unique, à partir d’un point unique, mais plutôt à l’émergence en divers points d’une
même volonté de reconaître des droits communs à tous les êtres humains 24,
harmonizando e não unificando posições, permitindo-se certa perenidade da
experiência constitucional como projeto de cultura comprometido com o presente
e o futuro. 25
Ou seja, é necessário que percebamos que o espaço da democracia, em
razão de um processo conjunto de desterritorialização e reterritorialização
consectário da complexidade das relações contemporâneas, multiplica-se, não
ficando mais restrito aos limites geográficos do Estado Nação, mas
incluindo o espaço internacional, comunitário, além das experiências locais
– como, e.g., no caso dos projetos de democracia participativa.
Isso faz com que a própria noção de cidadania seja revisitada, não apenas
em seus conteúdos, mas, e particularmente, em seus espaços de expressão,
embora hoje prevaleça, ainda,
22
Ver: HÄBERLE, Peter. Libertad, Igualdad, Fraternidad. 1789 como historia, actualidad y futuro
del Estado Constitucional. Madrid: Trotta. 1998.
23
Ver: HABERMAS, Jürgen. La Paix Perpétuelle, le bicentenaire d’une Idée Kantienne, p. 74
24
Ver: DELMAS-MARTY, Mireille. Op. cit., p. 25.
25
No es la Constitución sólo un texto jurídico o un entramado de reglas normativas sino también
expresión de una situación cultural dinámica, medio de la autrepresentación cultural de un pueblo,
espejo de su legado cultural y fundamento de sus esperanzas. In: HÄBERLE, Peter. Libertad,
Igualdad, Fraternidae, p. 46.
142
José Luis Bolzan de Morais
uma noção de cidadania identificada com um elenco conhecido de
liberdades civis e políticas, assim como de instituições e
comportamentos
políticos
altamente
padronizados,
que
possibilitam a participação formal dos membros de uma
comunidade política nacional, especialmente na escolha de
autoridades que ocupam os mais elevados cargos e funções de
governo 26,
estando, também ela, indissociável da ideia moderna de território.
Tais premissas demonstram a incompatibilidade das noções clássicas de
democracia e de cidadania com a desterritorialização provocada pela
globalização, o que coloca a necessidade de repensarmos o conteúdo e a
extensão de tais noções e práticas.
Quanto ao conteúdo, é necessário que tenhamos presente que a questão
da democracia e da cidadania há muito ultrapassou o seu viés político e
ingressou em outros setores, tais como o social – na perspectiva do Estado do
Bem-Estar Social – o gênero, o trabalho, a escola, o consumo, os afetos, as
relações jurídicas e jurisdicionais – muito embora neste último talvez ocorra a
maior defasagem.
Poderíamos, também, falar de uma cidadania atrelada às gerações de
direitos humanos, na qual teríamos uma cidadania da liberdade, vinculada às
liberdades negativas, uma cidadania da igualdade, atrelada às liberdades
positivas
e
às
prestações
fraternidade/solidariedade,
adrede
públicas
aos
e
novos
uma
cidadania
conteúdos
da
humanitários
ambientais, de desenvolvimento sustentável, de paz etc.
Quanto à extensão, é preciso saber conjugar e materializar as práticas e
conteúdos da cidadania e da democracia no tradicional espaço nacional da
modernidade e do Estado Nação, com o espaço regional/comunitário, produto
das aproximações integracionistas/comunitárias, além de expandi-las para o
espaço supranacional, seja identificando-o com espaço das relações privadas,
seja com o espaço das relações interestatais, bem como compartilhar do esforço
de forjar um espaço local/participativo, no qual haja uma transformação radical
nas fórmulas das práticas cidadãs e democráticas aproximando e autonomizando
autor e sujeito das decisões.
Observa-se, assim, o estabelecimento de uma democracia e de uma
26
Como diz: GÓMEZ, Jose Maria. Política e Democracia em Tempos de Globalização. p. 90.
Direitos Humanos, Estado e Globalização
143
cidadania multifacetadas e multipolarizadas.
Para, além disso, diante desse contexto de complexidade e de busca de
concretização
para
os
direitos
humanos,
parece-nos,
acompanhando
o
pensamento de José Maria Gómez, importante pensarmos uma cidadania
cosmopolita que vá além da simples extensão do conjunto de direitos civis,
políticos e sociais e suas respectivas garantias para a seara internacional, mas
que se constitua em deveres éticos para com os outros além das fronteiras
geográficas, ideológicas, raciais, culturais etc. 27
Em suma, para tanto é preciso:
(...) promover novas formas de comunidade política e novas
concepções de cidadania que vinculem autoridades e lealdades
subestatais, estatais e transnacionais, em um ordenamento
mundial alternativo àquele hoje existente. Isto é: de articular um
duplo processo de democratização, de fortalecimento mútuo,
capaz de aprofundar a democracia no plano doméstico
(abrangendo o Estado e as sociedade civil, política e econômica)
e, ao mesmo tempo, de impulsionar a ampliação radical de formas
e processos democráticos nos âmbitos regional e global. 28 (grifos
nossos)
Como diz Gómez:
É preciso construir um projeto de democracia cosmopolita,
sustentado tanto nas garantias institucionais e normativas que
assegurem representação e participação de caráter regional e
global, quanto em ações deliberativas e em rede que expandam e
adensem uma esfera pública sobre as mais variadas questões
relevantes (direitos humanos, paz, justiça distributiva, gênero,
biosfera, saúde etc.) 29
Ou seja: não basta mais sermos cidadãos da própria comunidade política.
Há cidadanias múltiplas e diversas que se exercem em locais, sob formas e
conteúdos variados. 30
Como se vê, pôr um prato de comida nas mãos de cada um não parece ser
tarefa fácil, embora inevitável e imediata, sem que enfrentemos a tensão
permanente e intransponível entre uma estratégia econômica excludente e as
tarefas includentes de uma política democrática, alicerçada nos direitos humanos
27
Id. Ibid., p. 71.
Ibidem, p. 135.
29
Gómez, op. cit., p. 138.
30
Id. Ibid., p. 134.
28
144
José Luis Bolzan de Morais
e expressa em um pacto estruturante da sociedade – nacional, regional, local,
mundial(?).
Referências Bibliográficas
ABENDROTH, Wolfgang. El Estado de Derecho Democrático y Social como
proyecto político. In: VV.AA. El Estado Social. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales. 1986.
ACCIOLY, Hildebrando. Manual de Direito Internacional Público. 11a ed. São
Paulo: Saraiva. 1976.
ALVARENGA, Lucia B. F. Direitos Humanos, Dignidade e Erradicação da
Pobreza. Brasília: Brasília Jurídica. 1998.
BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais? Coimbra: Atlântida Ed.
1977.
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Eficácia das Normas Constitucionais
Sobre Justiça Social. Revista de Direito Público, nº 57/58, p. 233-256, jan/jun
1991.
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus. 1992.
______. Teoria do Ordenamento Jurídico. São Paulo: Pólis. 1987.
______. O Futuro da Democracia. Uma defesa das regras do jogo. São Paulo:
Paz e Terra, 1996.
______. Teoria do Ordenamento Jurídico. São Paulo: Pólis. 1987.
BOLZAN DE MORAIS, Jose Luis. Do Direito Social aos Interesses
Transindividuais. O Estado e o Direito na ordem contemporânea. Porto Alegre:
Livraria do Advogado. 1996.
______. A Subjetividade do Tempo. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 1998.
______. As Crises do Estado Contemporâneo. In América Latina: cidadania,
desenvolvimento e Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 1996.
______. Constituição ou Barbárie. In SARLET, Ingo W.(Org.). A Constituição
Concretizada. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2000. p. 11-24.
______. Soberania, Direitos Humanos e Ingerência. Problemas Fundamentais da
Direitos Humanos, Estado e Globalização
145
Ordem Contemporânea. In O MERCOSUL em Movimento. Porto Alegre: Livraria
do Advogado. 1995. P130-150.
______. Direitos Humanos “globais (universais)! De todos, em todos os lugares. In
PIOVESAN, Flavia. Direitos Humanos, Globalização Econômica e Integração
Regional. São Paulo: Malheiros. 2002.
______. As Crises do Estado e da Constituição e a Transformação Espacial dos
Direitos Humanos. In Col. Estado e Constituição. N. 1. Porto Alegre: Livraria do
Advogado. 2002.
BOLZAN DE MORAIS, JL e MORAIS, Eliane Pinheiro de. Direitos Humanos e
Saúde. Revista O Mundo da Saúde. V. 22, n. 2. Centro Universitário São Camilo.
1998, p. 81-85.
BOLZAN DE MORAIS, JL e STRECK, Lenio. Ciência Política e Teoria Geral do
Estado. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2001.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros. 1995.
______. Do País Constitucional ao País Neocolonial. São Paulo: Malheiros. 1999.
BURDEAU, Georges. HAMON, Francis. TROPER, Michel. Droit Constitutionnel.
23a ed. Paris: LGDJ. 1993.
CANÇADO TRINDADE, Antonio Augusto. A Proteção Internacional dos Direitos
Humanos: fundamentos jurídicos e instrumentos básicos. São Paulo: Saraiva.
1991.
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina. 1996.
______. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. Coimbra: Coimbra Ed.
1994.
CAPPELLETTI, Mauro. Formações Sociais e Interesses Coletivos diante da
Justiça Civil. Revista de Processo. São Paulo, n. 5, p. 128-159, 1977.
CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva. Elementos da
Filosofia Constitucional Contemporânea. 2a ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris.
2000.
DALLARI, Dalmo de. A Constituição e Constituinte. São Paulo: Saraiva. 1982.
DANTAS, Ivo. O Valor da Constituição. Rio de Janeiro: Renovar. 1996.
DELMAS-MARTY. Mireille. Trois Défis pour un Droit Mondial. Paris: Seuil. 1998.
146
José Luis Bolzan de Morais
DINIZ, Maria Helena. Norma Constitucional e seus Efeitos. São Paulo: Saraiva.
1989.
FARIA, Jose Eduardo C. O. Direitos Humanos e Globalização Econômica. In
Revista O Mundo da Saúde, v.22, n. 2, Centro Universitário São Camilo, 1998, p.
73-80.
______. O Direito na Economia Globalizada. São Paulo: Malheiros. 1999.
FERRAJOLI, Luigi. Diritto e Raggione. Teoria del garantismo penale. Roma-Bari:
Laterza. 1989.
______. O Direito como Sistema de Garantias. In O Novo em Direito e Política.
Porto Alegre: Livraria do Advogado. 1997.
FLORES, Joaquín Herrera e PRIETO, Rafael. Hacia la Nueva Ciudadanía:
consecuencias del uso de una metodología relacional en la reflexión sobre la
democracia. In Revista Critica Jurídica, n. 17. 2000. p. 301-328.
GARCÍA, José Antonio López e REAL, J. Alberto del. Los Derechos: entre la ética,
el poder y el derecho. Madrid: Dykinson. 2000.
GARCIA-PELAYO, Las Transformaciones del Estado Contemporáneo. 3ª ed.
Madrid: Alianza. 1982.
GOMES, Luiz Flavio. A Questão da Obrigatoriedade dos Tratados e Convenções
no Brasil: particular enfoque da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
Revista dos Tribunais, n. 710, p. 21-31, dez. 1994.
GÓMEZ, Jose Maria. Política e Democracia em Tempos de Globalização.
Petrópolis: Vozes; Buenos Aires: CLACSO; Rio de Janeiro: LPP. 2000.
GORDILLO, Jose Luis. Crítica do Estado homogêneo universal. In Revista Crítica
Jurídica, n. 17. 2000. P. 115-126.
HÄBERLE, Peter. Libertad, Igualdad, Fraternidad. 1789 como historia, actualidad
y futuro del Estado Constitucional. Madrid: Trotta. 1998.
HABERMAS, Jürgen. La Paix Perpétuelle, le bicentenaire d’une idée kantienne.
Paris: Ed. Du Cerf. 1996.
HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: SAFE. 1991.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes. 1985.
Direitos Humanos, Estado e Globalização
147
LASSALE, Ferdinand. Que é uma Constituição. Porto Alegre: Vila Martha Ltda.
1980.
LAVIÉ, Humberto Quiroga. Derecho Constitucional Latinoamericano. México:
UNAM. 1991.
LEAL, Rogério Gesta. Os Direitos Humanos no Brasil: desafios à democracia.
Porto Alegre: Livraria do Advogado. 1997.
______. Teoria do Estado, cidadania e poder político na modernidade. Porto
Alegre: Livraria do Advogado. 1997.
MATTEUCCI, Nicola. Organización del poder y libertad. Historia del
constitucionalismo moderno. Madrid: Trotta. 1998.
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Direitos Humanos provenientes de Tratados:
exegese dos §§ 1o e 2o do art. 5o da Constituição de 1988. Revista Jurídica. N.
278, dez/2000. P. 39-61.
MEDEIROS, Antonio Paulo Cachapuz de. O Poder de Celebrar Tratados. Porto
Alegre: SAFE. 1995.
MELLO, Celso D. Albuquerque. Direito Constitucional Internacional. Rio de
Janeiro: Renovar. 1994.
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Coimbra: Coimbra Ed. 1996.
OLIVEIRA JR., Jose Alcebíades de (Org.). O Novo em Direito e Política. Porto
Alegre: Livraria do Advogado. 1997.
PIOVESAN, Flavia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São
Paulo: Max Limonad. 1996.
REMOND-GOUILLOUD, Martine, Du Droit de Détruire: essai sur le droit de
l’environnement. Paris: PUF, 1989.
RIBEIRO, Renato Janine. Primazias da Democracia. Folha de São Paulo, Mais,
13.07.97.
______. Um Adeus à Democracia. Folha de São Paulo, Mais, p. 5-3, 15/10/95.
ROIG, Rafael de Asis. Deberes y Obligaciones en la Constitucion. Madrid: Centro
de Estudios Constitucionales. 1991.
ROSANVALON, La Crise de l’Etat Providence. Paris: Seuil. 1981.
148
José Luis Bolzan de Morais
______. La Nouvelle Question Sociale. Paris: Seuil. 1995.
SANCHEZ, Jose Acosta. Transformaciones de la Constitución en el Siglo XX.
Revista de Estudios Politicos(Nueva Época). n. 100, abril-junho-1988. P. 57-100.
SANTOS, Boaventura Sousa. A Crítica da Razão Indolente. Contra o desperdício
da experiência. 2a ed. São Paulo: Cortez. 2000.
SARLET, Ingo W. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do
Advogado. 1998.
SARLET, Ingo W.(Org.). O Direito Público em Tempos de Crise. Estudos em
homenagem a Ruy Ruben Ruschel Porto Alegre: Livraria do Advogado. 1999.
SARTORI, Giovanni. Engenharia Constitucional. Como mudam as constituições.
Brasília: UnB. 1996.
______. Elementos de Teoría Política. Col. Ensayos. Madrid: Alianza. 1999.
SILVA, Jose Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo:
Malheiros. 1999.
SINGER, André. O Contra-Império Ataca. Folha de São Paulo, Caderno Mais.
24.09.2000. p. 11.
STRECK, Lenio. Hermenêutica Jurídica e(m)Crise. Porto Alegre: Livraria do
Advogado. 1999.
______. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Porto Alegre: Livraria do
Advogado. 2002.
SUNDFELD, Carlos Ari e VIEIRA, Oscar Vilhena. Direito Global. São Paulo: Max
Limonad.1999.
TSU, Victor Aiello. A Nova Soberania. Folha de São Paulo, Caderno Mais,
24.09.2000, p. 6.
VERDÚ, Pablo Lucas. Teoría de la Constitución como Ciencia Cultural. 2a ed.
Madrid: Dykinson. 1998.
WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito. A Epistemologia Jurídica da
Modernidade. Porto Alegre: SAFE Editor. 1995.
ZAGREBELSKY, Gustavo. El Derecho Dúctil. 3a ed. Madrid: Trotta. 1999.
Direitos Humanos, Estado e Globalização
149
Globalización: El Nirvana del Viejo Orden Burgués
José María Seco Martínez
Conciencia de crisis. Crisis suele ser el juicio recurrente en el diagnóstico
con que la literatura científico-jurídica y política más pujante, enfrenta desde no
pocos sectores el declinar creciente de los planteamientos, pese a su pretendida
impecabilidad teorética, de la vigencia tradicional acerca del Estado y su
transfiguración contemporánea, el derecho y el sistema democrático e
institucional.
Desde que en la década de los setenta se abriera paso una nueva
conciencia de crisis generalizada de legitimación política del Estado liberaldemocrático
(o
Estado
constitucional
de
derecho
como
acuñara
el
constitucionalismo más reciente 1), el concepto de crisis se ha ido instalando
definitivamente no ya en la ciencia política o en la sociología, sino en
prácticamente todos los órdenes disciplinares del imaginario cultural y científico
de nuestros días (cultura, ciencias experimentales, ciencias sociales, filosofía,
religión,...), y como no en la filosofía jurídica.
No es preciso, por tanto, esforzase demasiado para arribar, de la mano de
HEINO KAACK, al entendimiento consistente en considerar la existencia de un
proceso notable de inflación del concepto de crisis 2. Es más, se ha utilizado tanto
y en ocasiones de manera tan bizantina y fútil, que la propia experiencia diaria de
los hechos se ha encargado de desdibujar su contenido mediante la tácita
1
Que alentaran OFFE C. y HABERMAS, J., así como otros autores que fueron adhiriéndose
seguidamente tales como BELL y GUGGENBERGER o los decididamente marxistas O’CONNOR
y GOUGH.
2
V. PASTOR, M., “Las ideologías políticas”, en Fundamentos de ciencia política, Ed. McGraw-Hill,
Madrid, 1997, p.66. Empero, esta conciencia de crisis generalizada del mundo
occidental/capitalista pulula por doquier y con antelación incluso a la conmoción del Crack
repentino del 29. Entre los años 1919 y 1922 OSWALD SPENGLER publica su obra más famosa
La decadencia de Occidente, que se situaría a la cabeza de una larga serie de obras y ensayos
que tenían por objeto de conocimiento el estudio de la crisis. Este es el caso de obras tan
significativas como Una nueva Edad Media, a cargo de N. BERDIAEFF; El fin de nuestro tiempo,
de R. GUARDINI; La crisis de nuestra civilización, de H. BELLOC,...etc, y que formado parte de lo
que se ha dado en llamar “literatura de la crisis”. Para una visión más amplia, cfr. con MOSSE
G.L., La cultura dell`Europa occidentale, Milano, Mondadori, 1986; con HUGHES, H.S., Coscienza
e societá - Storia delle idee in Europa dal 1890 al 1930, Torino, Einaudi, 1967 -muy interesante
desde la óptica estricta de la historia de la cultura-; y con BRACHER, K.D., Il Novecento secolo
delle ideologie, Bari, Laterza, 1984.
devaluación de su verdadera carga significacional.
Pero, lo cierto es que desde que este se consolidara hace apenas treinta
años el punto de referencia ha sido sólo uno. Y al se sigue recurriendo
constantemente: la crisis. Hoy se manifiesta o conoce de manera casi ininterrumpida cuando oímos hablar insistentemente de crisis institucional (en
sociedades
democráticamente
cada
vez
más
depauperadas),
de
crisis
internacional (por la desvigorización de los equilibrios de posguerra que
aseguraron a buena parte del mundo períodos relativos de paz, como por el
quehacer disoluto y quedo de los organismos internacionales fruto de aquellos),
de crisis económica, ecológica, cultural o simplemente política.
En verdad, vivimos años muy convulsos y en franca transición, destrucción
y creación 3 de una crisis de la hegemonía del viejo paradigma sobre el mundo. Es
este el tiempo en que la modernidad y sus expectativas performativas de la
realidad 4 en orden a la consecución de grados superiores de inteligibilidad
propiciatorios de un nuevo orden social de relaciones, reino sin igual de la
abundancia, la armonía y la paz universales 5, se vienen definitivamente abajo.
3
V. LEFEBVRE, H., “Du culte de l’ Esprit au matérialisme dialectique”, en Nouvelle Revue
française, Diciembre de 1932.
4
Que ya llevaban poniéndose en entredicho hace media centuria por la profusión de las filosofías
de la persona, los existencialismos o el irracionalismo de post-guerra, mediante la impugnación de
las bases mismas de la modernidad occidental/capitalista: racionalismo, individualismo,
materialismo e inversión ideológica de valores.
5
En verdad, los vigores del optimismo ilimitado moderno o quizás, su ingenuidad, han extendido la
idea de que todos los procesos dimanantes de la modernidad – democratización de la sociedad,
secularización de la realidad, etc.- llevan a pensar que la naturaleza y la humanidad disponen en
todos los sentidos de recursos infinitos y desconocidos. El mito occidental del paraíso perdido
(v.gr., el reino del preste Juan) alimentado ahora por la metafísica de la armonía oficial de corte
racionalista recobra su situación en el centro de lo temporal, olvidando a Dios y apelando a la
perfección de las leyes de la naturaleza. En un primer momento pudiera pensarse que la
metafísica ya secularizada, como el utopismo ya temporalizado, que se prodigaban en la época y
el rigor de los patrones tanto de científicos (GALILEO y NEWTON), como de filósofos (HUME y
LOCKE), pudieran ser opuestos. Sin embargo, ni los autores sociales utópicos (CONDORCET,
BUFFON, FOURIER) prescindieron de la ciencia para sostener la validez de sus planteamientos,
ni la Ciencia se desvinculaba, al abrigo de la ilusión trascendental, de la idea de progreso
entendida como perfección. Una actitud displicente para con las repercusiones de la ciencia
ciertamente no era posible en un momento histórico (s.XVIII) en que la práctica científica constituía
el hilo por el que se enhebraba el conocimiento. Esta nueva forma de divinizar a fuego lento del
brazo de la ciencia y la razón, que ya se percibiera en el s. XVII incluso en autores utilitaristas
tales como BACON, F., en su obra La Nueva Atlantis de 1627, y CAMPANELLA, T., en La Ciudad
del Sol de 1632, en las que se privilegiaban la contribución del conocimiento científico en la
construcción de un orden social perfecto, se recoge de manera magistral en un pequeño excurso
que REBOLLEDO F., atribuye de manera figurada a BUFFON, filósofo francés del siglo XVIII
amante civilizado como muchos de su tiempo del saber científico: “El ingenio humano es
inagotable. Podemos hacer cualquier cosa que queramos. Sí, amigos, lo que queramos. Basta con
estudiar la naturaleza, comprender sus leyes, respetar sus principios, y el mundo estará a nuestros
Globalización
151
Con la caída del muro de Berlín se abre paso, sin más resguardo que la
savia sintética de su propio discurso profético, el individualismo liberal. Un
discurso excluyente y totalitario 6 que, habiéndose quedado solo y concibiéndose a
sí mismo como el único dotado de racionalidad, cree haber convencido a sus
adversarios de que su fracaso era inevitable, que formaba parte del orden
indeleble de las cosas. Quizás sea ésta la trampa más elaborada del
neoliberalismo económico más taimado: convencer a sus detractores de que la
globalización de la economía constituye un hecho irreversible y, por ende,
incuestionable. Nada, absolutamente nada, puede detener el avance rayano en lo
mágico de un fenómeno estentóreo que, a la manera de una nueva revolución,
pretende cambiar la configuración del viejo orden social. En fin, un discurso por
cuya boca sólo correrá un rezo: el triunfo incontestable del capital.
Cree habernos convencido a todos de que únicamente él es justo, legítimo
y moral. Qué sólo él es capaz de ahormar y dirigir la acción política en orden a la
felicidad. Con más sobranza de afeite y provocación que humanismo, se alimenta
de promesas vacías de futuro con las que despeja el camino de su propia consubstanciación 7. Habiendo enfrentado todas nuestras carencias, confía en haber
cubierto todas nuestras necesidades. Y lo que es peor, pretende haber vencido
sin violencia, sin más recurso que el de sus propias declamaciones utópicas, su
pies, inagotable y generoso. Sacaremos de él alimentos, salud, riquezas, lo que queramos. Por
eso yo me burlo de quienes se burlan de mi obra, de mi lucha por defender el saber, la filosofía y
la ciencia (....), porque hermoso es nuestro futuro, porque nuestra inteligencia está adornada con
dones divinos. Somos unas criaturas perfectas. Nuestra capacidad para saber es inagotable.
Nuestro futuro es sublime. Estamos llamados a rehacer, con nuestras manos, con nuestra
inteligencia, el paraíso para volver, de igual a igual, algún día no muy lejano, a los brazos de
nuestro Hacedor -Buffon Abril de 1761-”. REBOLLEDO, F., El sueño de la razón, Ediciones B,
S.A., Barcelona, 1995, p. 123 (El subrayado es mío).
6
Un discurso cuyos efectos obran en nuestra consciencia como si de una astilla clavada en la
mente se tratara. Por eso no podemos reparar en él. Nos envuelve constantemente. Está por
todas partes. Nos rodea, nos posee. Puedes sentirlo al mirar por la ventana, cuando ves la
televisión, pero no podemos discernir como funciona ni cuál es el alcance de sus efectos sobre la
realidad. Opera como una “prisión para nuestra mente”. Es lo que se ha venido en llamar por I.
RAMONET “el pensamiento único” que es asumido, parafraseando a CAPELLA, “como dogma por
los principales órganos de opinión económica mundiales a la que le sirve una policía de
pensamiento omnipresente: son agentes suyos desde los decanos de la facultad, catedráticos (…)
de universidad hasta directores de medios de masas y ejecutivos de la industria editorial y la
publicidad”. CAPELLA, JR., Fruta Prohibida. Una aproximación histórico-teorética al estudio del
derecho y del estado, Trotta, Madrid, 1997, p. 266.
7
En nombre de aquéllas, parafraseando a F. HINKELAMMERT, “cada paso destructivo del
sistema es celebrado como un paso inevitable hacia un futuro mejor (...). Es la utopía neo-liberal
del bienestar (...). Es la utopía de la Sociedad Perfecta del mercado total, que anuncia la
destrucción como el camino realista de la construcción”. HINKELAMMERT, F., El Grito del Sujeto,
DEI, S.José (Costa Rica), 1998, p.239 y 240
152
José María Seco Martínez
persuasión y su pretendida “eficacia” histórica. En fin, son los años de la
consagración silenciosa de la violencia, que no de la victoria, del capital, que ha
incubado la tragedia social para millones de seres humanos y la catástrofe
ecológica para buena parte de los recursos, desde luego extenuables, del planeta.
La conciencia de crisis, por tanto, no es ni por asomo un hecho casual.
Antes bien, es el resultado de una elección que apuesta ahora sin rodeos por el
risorgimento de un capitalismo factual, pertrechado y global. Aquella estalla
precisamente como salida imposible a la crisis múltiple –de corte social,
económico, político, ecológico, etc– de la expansión productivista del mercado y el
ethos materialista donde se cobija y alienta.
El hecho de que pretendamos no reparar en aquélla, para obviar así la
causa de la misma o su verdadera magnitud de proporciones bíblicas, no nos
exime de la necesidad de reconocer que nos topamos con ella a diario. Ya fuere a
través de los medios de comunicación, en las aulas, en el flujo cotidiano de
nuestras conversaciones, lo cierto es que somos en mayor o menor medida
conscientes – otra cosa es que no los situemos jerárquicamente dentro de nuestra
escala individual de problemas requirentes de atención – del deterioro progresivo
del medio natural, de la desaparición de nuestros bosques por razón de la
especulación, de la falta de precaución o la acumulación de residuos sólidos, del
cambio climático de la mano del efecto invernadero o la destrucción de la capa de
ozono, de la marginación social que aflora en los círculos industriales de nuestras
grandes ciudades, del hambre, el desaliño o la privación extrema habituales en lo
que de forma tan recurrente y común denominamos “Tercer Mundo”, que pese a
ser postrero y el más rezagado no es más que el primero geo-cuantitativamente
hablando; etc...
Surge (la idea de crisis), en definitiva, con el propósito nada desdeñable de
auspiciar la superación de los quebrantos de una cultura individualista, inmovilista
y mecanicista, que se forja en las bases metafísicas del optimismo liberal de la
mano
del
espiritualismo
desvitalizado
del
cristianismo
burgués,
(aliado
incondicional del capitalismo y corruptor del hecho temporal cristiano), y que se
obceca en la idea de progreso técnico y productivo entendido como crecimiento
económico. Es decir, como rechazo a la inferencia demasiado sacrificial de un
Globalización
153
desorden histórico al que se conoce, nos guste o no, como globalización 8,
presidido por la glorificación desaforada del dinero, por el beneficio económico
inaplazable, por la erradicación en las instituciones de cualesquiera controles
éticos, por la ocupación del orden social y sus relaciones, por la colonización de
todas las esferas del saber y el poder y por la redefinición del papel del Estado –
orientado ahora a la satisfacción, no ya a las necesidades de la ciudadanía y su
urgencia social (pacto social, consenso, pleno empleo,...), sino de las condiciones
de posibilidad idóneas a la hegemonía del mercado 9.
Sin olvidar mis afanes vindicativos contra el yugo de las estructuras de un
sistema moralmente indiferente que embarra a millones de seres humanos,
trataré a continuación de desenmascarar sin el monóculo tubular de los
entendidos, es decir, sin ánimo de categorizar lo más mínimo y sin perjuicio de
que existan otras interpretaciones de lejos más apropiadas y de mayor alcance
que las aquí se proponen, los valores embozados sobre los que reposa y arraiga
este fenómeno globalizador del modus de producción capitalista. Los adentros de
este régimen económico, hendido en la ciénaga sin memoria social al socaire de
los influjos envilecidos que impone el movimiento del capital, vienen determinados
por el efecto combinado de tres principios claramente diferenciados: la confianza
metafísica del optimismo liberal, la preponderancia del dinero y el primado del
beneficio inaplazable 10. Veamos en que consisten.
8
Se podría esperar en este punto que comenzáramos por definir “Globalización”. Sin embargo, es
tanto lo que se ha escrito y tan variado lo que se ha dicho que no se puede considerar a esta
objeto de una autentica definición. Diríase que es esencial a ésta su no definibilidad. Toda
definición le resulta inadecuada, no ya por la heterogeneidad significacional a que alude o por la
diversidad de situaciones a las que remite, sino porque básicamente no es un concepto, ni tan
siquiera una categoría. El término globalización se ha utilizado de manera indiscriminada y
ambigua. Ahora bien, ya fuere como proceso de mundialización o internacionalización (de
liberalización) de la economía, o como proceso de homogeneización/universalización ideológica, lo
cierto es que el hecho de que no se pueda definir con precisión no conlleva que confinemos al
término de referencia en el ámbito de lo ininteligible. Sólo faltaba que además de su
preponderancia asistiéramos perplejos a la invocación de su incognoscibilidad. Descartando la
posibilidad de una definición comprensiva de múltiples implicaciones, preferimos definir a la
globalización como desorden histórico. Un nuevo desorden que apuesta no ya por la inmutabilidad
del sistema vigente, sino por su definitiva regeneración.
9
V. En este sentido las páginas enervantes de ZOLO, D., Cosmopolis. La prospettiva del governo
mondiale, Feltrinelli, Milan, 1995
10
Régimen o desorden cuya realidad, no obstante la formulación de estos tres principios, requiere
ser comprendida por medio de la contemplación simultánea de todos ellos. Toda vez que al no
representar otra cosa que aspectos de una misma realidad, la que se forja al abrigo de la sociedad
occidental/capitalista, no pueden ser suficientemente evaluados en sus implicaciones como si de
compartimentos estancos se tratara.
154
José María Seco Martínez
a) “La Confianza Metafísica en el Optimismo Liberal”
En virtud del cual, los designios de la libertad, confiada esta a su tiempo e
inercia, tienden de manera espontánea a la armonía. Lo cual refluye tanto en el
arrojo épico del liberalismo, que entroniza a la libertad humana como el eje que
enhebra y da sentido a todo el sistema, como en el mesianismo temporal y
redentor de la acción liberal/capitalista, que sublima las potencialidades del
mercado en la construcción angelical de lo real.
La eclosión internacional del comercio a lo largo del S.XIX, la revolución
industrial y el auge del transporte fueron aquilatando de manera imparable una
nueva fisionomía para el mundo, en el que se alterarían los resortes ya
congestivos del orden social, las formas de vidas de los sujetos y sus modales, el
légamo de sus relaciones, la manera de conocer e interpretar el acontecimiento y,
sobre todo, las estructuras económicas.
Este proceso temprano de expansión acumulativa en el que cada logro o
innovación constituía el fondo desde el que partían los siguientes y el influjo
todavía bullente por aquel entonces de las ciencias de la naturaleza, azuzaron la
necesidad de dedicar esfuerzos a la teorización científica del mercado y sus
sistemas que, acorralados aún por el encomio armonicista (LEIBNIZ) de la vieja
metafísica racionalista, tienden inevitablemente, a causa del automatismo
intrínseco de sus mecanismos de funcionamiento, al mejor de los horizontes
posibles.
El mercado se erige así en el mejor fierro frente a la lividez de los horrores
continuos, la deriva y los riesgos de la escasez y el abandono. Sólo él pasaporta
al mejor de los mundos elaborables; sólo él está en situación de expiar las
atávicas cuentas pendientes del hambre y la necesidad; sólo él puede restañar
definitivamente las heridas de un mundo en carne viva. En fin, sólo él se siente en
condiciones de producir automáticamente un efecto armónico general sobre la
realidad.
Esta transposición del principio (leibniziano) armonioso natural al ámbito de
las relaciones económicas, lo que se ha conocido vox populi como el laissez
Globalización
155
faire 11, se ha sintetizado hasta con soniquete por los historiadores del
pensamiento económico clásico en la mano invisible de ADAM SMIT, por medio
de la cual se organizan todas las actividades, en orden al mejor de los mundos
realizables, de todas y cada una de las diversas entidades existentes fueren
aisladas o no, sin que en ningún caso sea preciso o posible el llamamiento a los
deseos de regulación de los poderes públicos, aquí representados en el dedo
admonitor de una mano externa y visible.
Quizás sea el texto de KINGSLEY, un socialista cristiano providencial y
arremansado en las responsabilidades sociales que se opuso desde el principio a
las falsas esplendideces del optimismo económico liberal, quien nos esclarezca el
fariseismo suntuoso del alacre férreo e industrial del laissez-passer:
Pero tú puedes recordar tanto como yo, cuando una delegación
nuestra acudió a un miembro del Parlamento, que tenía fama de
ser filósofo, economista y un liberal, y le expuso la miseria y
penuria crecientes de nuestro oficio y de los relacionados con él;
recuerdas su respuesta: que, aunque le agradaría poder
ayudarnos, era imposible, él no podía alterar las leyes de la
naturaleza, los salarios, estaban regulados por la competencia
entre los hombres, y ni el Estado ni nadie debía entrometerse en
los acuerdos entre patronos y obreros, pues esas cosas se
regulaban solas a través de las leyes de la economía política, a
las que era una locura y un suicidio oponerse. (KINGSLEY, CH.,
Alton Locke, 1850) 12
En este sentido, sea cual fuere nuestra actitud o propósito más sectario,
individual o fragmentario, siempre debeladores del cálculo y la idea cuantitativa de
ganancia maximizada, el efecto será el mismo: su transformación invariable en
interés común. La conclusión para SMITH, siguiendo posiblemente al dictado la
11
Tradicionalmente se ha considerado por la propia historia del pensamiento económico a ADAM
SMITH como el auténtico precursor, no ya de la ciencia económica clásica, lo cual es también
discutible si nos remontamos a 1767 y reparamos en las aportaciones del que fuera su antecesor
JAMES STEWART en su obra titulada Investigación sobre los principios de la economía política,
sino de la doctrina del laissez faire. De hecho, Smith únicamente se limitó a proscribir, en su obra
principal Las riquezas de las naciones, determinadas actuaciones públicas por su pésima
contribución a la restauración de la actividad económica dirimiendo sus repercusiones en la
exaltación de la no intervención política como principio. Será preciso indagar, por tanto, en los
escritos de otros autores de su tiempo como JOHN RAMSAY MCCULLOCH, STUART MILL,
NASSAU WILLIAM SENIOR o, incluso, predecesores como el propio BERNARD MANDEVILLE,
GEORGE BERKELEY o los propios fisiócratas franceses (a quienes la historia económica ha
reservado la autoria del término), para remontar la reconstrucción del nacimiento y evolución de la
ideología política del laissez nous faire.
12
V. GORDON, S., Historia y filosofía de las ciencias sociales, Ariel, Barcelona, 1995, p. 254 y
255.
156
José María Seco Martínez
conocida intuición de BERNARD MANDEVILLE en su Fábula de las abejas según
la cual los “vicios privados acarrean siempre beneficios públicos”, es bien sencilla:
cuanto más pesada sea tu avidez, cuanto más alobadas sean tus acciones,
cuanto más serpenteante sea tu actitud en función de esa idea de rapacidad
interior que no hace sino calcular ganancias, más contribuirás al interés general.
Cuanto menos restricciones se establezcan al ejercicio de nuestra iniciativa,
cuanto menos trabas oscurezcan y parcialicen el desarrollo de la individualidad
más cercano estará de todos los hombres el advenimiento de un orden social
perfecto.
El mercado rubrica así su disposición y capacidad técnica de arbitrar
mecanismos de ordenación económica perfecta sin otra colaboración política que
la del Estado en la prevención y sanción de los ilícitos contra la vida, la libertad, la
propiedad, la seguridad y el tráfico mercantil por medio del cumplimiento de los
contratos. Con un planteamiento semejante no nos debe extrañar la visión
uniforme, simple y apologética del optimismo liberal y su viejo cartelón de aleluyas
que identifica libertad con armonía, mercado con sociedad perfecta 13 y, sobre
todo, omisión con responsabilidad.
Empero, el uso indiscriminado de la libertad no regulada conforme a los
13
Que se recogen de manera diáfana y precisa en la obra de HARRIER MARTINEAU conocida
como Ilustraciones de economía política que elaborara entre los años 1832 a 1834,
particularmente en su sección destinada a resúmenes de principios. Transcribamos algunos: P.II.
“Los intereses de las dos clases de productores, trabajadores y capitalistas son los mismos: la
prosperidad de ambos depende de la acumulación del capital”; P.XVII “a través de un intercambio
universal y libre, se establece un sistema absolutamente perfecto de economía de recursos. Como
el interés general de cada nación exige que haya libertad perfecta en el intercambio de
mercancías, cualquier limitación a esa libertad, con el propósito de beneficiar a una clase concreta
o a unas clases, es sacrificar un interés mayor a otro más pequeño (...), es decir, un pecado de
gobierno”; P.XXIII “Dado que el gasto público, aunque necesario, es improductivo, debe limitarse
(...). Sólo es justificable que se gaste lo necesario para la defensa, el orden y la mejora social”;
P.XXIV “Un sistema fiscal justo debe dejar a todos los miembros de la sociedad exactamente en la
misma situación en que los halló”. MARTINEAU, H., Ilustraciones de economía política, en
GORDON, S., Op. Cit., p. 261. En definitiva, únicamente en un mercado perfecto, esto es,
realizado en su totalidad, podrán darse alcance a los sueños hasta ahora malhadados de la
sociedad racional. Sólo dejando vía libre al mercado, únicamente encomendando al mismo la
construcción de la realidad, podrá accederse a grados nuevos de paz y felicidad para todos los
hombres. Si existe exclusión social o degradación natural es porque no se abandona al Mercado la
construcción de lo real. Es por esto, que para los teóricos del liberalismo político y económico,
debe desaparecer todo aquello que distorsione el proceso de totalización del mercado. Los
derechos humanos, social y materialmente entendidos, esto es, los derechos sociales, los
proyectos nuevos que abogan por otros modelos de desarrollo sólo obstruyen la consecución de
esa idea de sociedad perfecta. Por tanto, deben desaparecer. Para el neoliberalismo, sólo en el
contexto de una sociedad perfecta de mercado total será posible el sueño de babel
(magistralmente representado por Fritz Lang en Metrópolis, 1926) de un mundo perfecto. Acerca
de la idea de sociedad perfecta V. HINKELAMMERT, F., El Grito del Sujeto, Op. Cit., p. 239 a 241.
Globalización
157
postulados del liberalismo, ha dado origen a un mundo asimétrico cargado de
riesgos ostensibles para el sostenimiento, parafraseando a HINKELAMMERT, F.,
de las condiciones de posibilidad de la vida humana y no humana. Repárese sino
en la desigualdad y exclusión crecientes del ochenta por ciento de la población, la
destrucción a escala de nuestro entorno natural, el aniquilamiento sostenido de
múltiples culturas expresivas de otras formas de concebir el mundo y la
naturaleza.
El optimismo ideológico sin ambages que profesan quienes aventuran, al
igual que los vencedores en camino (pero con muertos todos los días), el derrame
de tanta regalía, al albur del renacimiento del laissez faire y de la
homogeneización
de
la
lex
mercatoria,
contrasta
sobremanera
con
la
tenebrosidad, el patetismo y la experiencia temulenta de sacrificios de unos
hechos demasiado explícitos de la tragedia que hiere la vida concreta de millones
de seres humanos.
Cuando estallan el tifus o el cólera, nos dicen que nadie tiene la
culpa. ¡Ese terrible Nadie! ¡De cuantas cosas tiene que responder!
No hay en el mundo quien haga tanto mal como Nadie. Nadie
adultera nuestra comida. Nadie nos envenena con bebidas malas.
Nadie nos suministra agua hedionda. Nadie difunde la fiebre en
los callejones y en las callejas sin barrer. Nadie deja las calles sin
alcantarillas. Nadie llena las cárceles, penitenciarías y comisarías.
Nadie hace furtivos, ladrones y borrachos.
Nadie tiene una teoría, además (...) una teoría horrible. Está
encarnada en dos palabras: laissez faire (...) “dejadnos en paz”.
Cuando envenenan a la gente con yeso mate mezclado con
harina, el remedio es “dejadnos en paz”. Cuando se utiliza
Cocculus indicus en vez de lúpulo y los hombres mueren
prematuramente, es fácil decir: “Nadie lo hizo”. Dejad que quienes
puedan descubran cuándo se les engaña: Caveat emptor. Cuando
la gente vive en viviendas hediondas, dejadla en paz. Dejad que la
desgracia haga su trabajo; no pongáis obstáculos a la muerte.
(SIMILES, S., Frugalidad, 1875) 14.
Testimonio feroz de un realismo imposible de justificar, estos hechos
evidencian no ya la sucesión interminable de problemas/límite, que están
poniendo en jaque las condiciones indispensables para el mantenimiento de la
vida, ni tan siquiera el agotamiento inequívoco de los ideales y estilos de vida que
se fueron fraguando al hilo de determinados acontecimientos históricos de nuestra
14
V. GORDON, S., Op. Cit., p. 256.
158
José María Seco Martínez
cultura más reciente 15, sino la existencia de dos mundos definitivamente
escindidos 16.
Podría incluso decirse que uno vive arriba y es centro. La tonalidad de sus
relaciones es de color sepia y el sabor de su tiempo azucarado. En él habitan
unos pocos escogidos que abrazan el hechizo de una vida que confunden con el
valle de Josafat, para acto continuo aferrarse con fuerza al rincón cálido y azulino
de un modo de vida sin apenas sobresaltos, colmado de certezas y/o
seguridades. El otro malvive en la periferia y es subterráneo. Discordante con el
primero, por la tonalidad violácea de su tiempo, la agritud será el distintivo de sus
relaciones. Su aspiración más cercana será el tósigo de la sobrevivencia diaria.
Su ambición comer 365 días al año.
Uno de ellos acoge en su regazo el acomodo de unos pocos privilegiados,
ajenos al desierto de “los otros”, y entregados con demasiada fruición a la
conquista del Eliseo. El segundo es el de “los demás”, el de la práctica mayoría,
es decir, el de los pobres, olvidados, marginados, omitidos, abandonados,
desplazados, arrinconados, relegados, negados, huidos..., que sobreviven por
debajo del pan cotidiano de cada día.
En fin, dos mundos irremisiblemente separados por un precipicio, pero
inter-relacionados por razón de la inercia de sus destinos opuestos: el
mantenimiento del primero requiere de la postración del segundo. Mientras que
aquél no hace otra cosa sino porfiar abrazos al globo con el propósito de
apropiarse del mundo para luego concentrar toda su riqueza en su vórtice, el
15
Y que apuntan a un horizonte de “transición paradigmática”. Téngase en consideración que
nuestro modelo de organización social de vivir arranca con la modernidad y sus concepciones del
hombre y sus relaciones, la naturaleza y el Estado. A raíz de la misma se inicia una fase histórica
que llega hasta nuestros días con niveles de expoliación y/o marginación desconocidos en
millones de años. Desde entonces lo que se ha venido en llamar “el paradigma de la Modernidad”,
que adereza un mundo de certezas anclado en el olvido de la realidad, ha ido jalonando el
desarrollo de la cultura occidental. Una cultura que creyendo hallar el paraíso en la tierra, que
tratando de auspiciar la realización de los sueños de la ilustración, propaga el infierno de lo real. V.
en este sentido acerca del contexto de transición en que nos encontramos y a título de ejemplo a
BOAVENTURA DE SOUSA, S., A crítica da razäo indolente contra o despedicio da experiência.
Para um novo senso comum. A ciencia, odireito e a política na transiçao paradigmática, Cortez
Editora, Sau Paulo, 2000.
16
Como ya dijera M. Castells la arquitectura de nuestra civilización ofrece en la actualidad un
mundo “asimétricamente interdependiente, organizado en torno a tres regiones económicas
principales y cada vez más polarizadas a lo largo de un eje de oposición entre zonas productivas,
con abundante información y ricas, y zonas empobrecidas, de economías devaluadas y
socialmente excluidas”. CASTELLS, M., La era de la información. Economía, sociedad y cultura
(VOL.I), Alianza, Madrid, 1996, p. 173.
Globalización
159
segundo, que se debate entre seguir viviendo o morirse de hambre, es
desterrado, abandonado y condenado a la inviabilidad bajo los juegos
platonizantes del liberalismo redentor. El precio de la riqueza de uno es la miseria
del segundo.
b) “La Preponderancia del Dinero”
El primado del capital sobre la economía, el trabajo y cualesquiera otros
factores de producción. Pretenden hacernos creer que el sistema capitalista no es
más que el fruto esperanzado de una simbiosis ordenada entre capital y trabajo 17.
Nada más lejos de la realidad, la jactancia de aquél revierte en una primacía
insultante del capital sobre la remuneración del trabajo y el poder económico.
Lo que empieza siendo desde sus primeros fueros un simple valor de
cambio
orientado
a
la
agilización
necesaria
que
urgía
la
incipiente
internacionalización del tráfico de mercancías, acaba erigiéndose en el objeto
último de los mercados. Del dinero como mera instrumentalización de cambio de
bienes y servicios el aparato capitalista ha desarrollado un bien productivo en sí
mismo. Su reproducción y/o acumulación febril será la finalidad única y excluyente
del proceso productivo. La satisfacción de las necesidades básicas ya no
constituirá el criterio regulador de las relaciones de una sociedad.
El Mercado se ha creado por y para la expiación de la demanda, esto es,
de la necesidad solvente, la única capaz de garantizar el funcionamiento del
sistema mediante la obtención excendentaria de un fetiche llamado dinero. El
dinero, en un sistema tal, posee una fuerza convincente rayana en lo mágico. Es
la llave que abre todas las puertas, es la clave de la prerrogativa y el poder. Todo
cuanto pueda interesar al ser humano, hasta su propia espontaneidad vital y sus
pulsiones más íntimas, sus valores y sus generosidades, sus anhelos de aventura
e imaginación, acaban cediendo bajo el peso grotesco del abrazo al dinero y a la
consideración social que conlleva su hacinamiento.
Se abre paso así un sistema descabellado, al tiempo que eficaz, en que la
17
Por desgracia, el trabajo ha dejado de ser un instrumento de cambio y el capital se ha apropiado
del derecho a disponer de su producto. El trabajo ya no es el agente movilizante de la actividad
económica. La ganancia capitalista deviene posible en la medida en que opta por una
desvinculación con el trabajo.
160
José María Seco Martínez
“recolección” insaciable del capital, debido a su progresión anónima e inorgánica y
su naturaleza matemática, deviene en su razón más solícita. Se rebaña una y otra
vez con el firme propósito de seguir amontonando más y más dinero por medio de
una secuencia diabólica e interminable de acopio de capital en constante
evolución y asociación.
c) “El Primado del Beneficio”
Ante este panorama, se impone progresivamente la exaltación de la
ganancia económica como la mejor opción de las posibles para con esta
estrategia imparable de acumulación. Entra así en escena el último y postrero de
los principios reguladores de la realidad capitalista, el móvil preeminente de la
vida económica en general, el principio “operativo-regulativo básico del
capitalismo” 18: la mistificación artificial del beneficio inaplazable o la ganancia
económica maximizada.
La ganancia y su enfática complicidad con el apremio cuantitativo hacen
del crecimiento con respaldo económico en el bienestar, red azul que nos protege
del crepúsculo de la necesidad, su empeño inmarcesible. Es precisamente esta
convicción larvada en la memoria de sus víctimas la que se ha encargado de
lubricar los procesos de generalización de modelos de desarrollo excesivamente
expeditivos o de realización exterminadora para con la biosfera y la vida humana.
La ecuación es bien sencilla. Si el sueño ilustrado de la felicidad equivale a
bienestar y éste sólo es alcanzable de la mano del crecimiento acaudalado
consistente en un incremento exponencial de la producción y el consumo, la
felicidad sólo será posible en el vientre del progreso económico a caño libre.
Cuanto más crecimiento, esto es, cuanto más elevada sea la producción y el
consumo, más cercano estará ese horizonte metafísico de la modernidad de
hacerse carne en los hombres.
Empero,
la
devoción
irreprimible
a
esta
secuencia
bienestar/felicidad/crecimiento ha posibilitado la legitimación de pautas de
desarrollo, cimentadas en la producción y en el consumo incontenibles,
18
Al menos así se alude al primado del beneficio por SOLORZANO, N.J., Esta globalización: de
los nuevos mitos al contexto, texto impreso (s.e), 2.002, p. 4.
Globalización
161
dimisionarias de la responsabilidad primigenia que les dio sentido en orden a la
ventura de todos los hombres.
El aumento de los niveles de calidad de vida en las sociedades menos
depauperadas y la necesidad de mantener el crecimiento a toda costa en
contextos de mercado cada vez más abotagados19 ha supuesto de modo
simultáneo el consabido primado de la producción sobre el consumo y la dolorosa
desamortización ética del concepto de necesidad humana entendida como
mínimo necesario 20.
Así es, para esta moral del crecimiento indefinido, para la que no existe
otra cosa que mercado o mercancías y no necesidades, precios y no valores, el
consumo ya no es entendido en términos de utilidad. Ha perdido su valor de uso y
su valor de cambio. La necesidad ha dado paso al deseo. La acechanza del
deseo y su arrullo silencioso, raudo, casi lírico consiente el aguardo efímero de
necesidades estériles. Podría decirse que se trata de la deformación interesada
(al mantenimiento de la producción) del principio sine quo non potest vita transigi
secundum proprium statum et negotia ocurrentia, esto es, del necesarium no
estricto que se concibiera otrora, allá por el medioevo, como todo aquello sin lo
cual el sujeto humano concreto no podía vivir en lo que a condición, linaje,
situación y obligaciones se refiere, y que ahora se troca en excusa y reverencias
al dominio abúlico de un consumo cada vez más envilecido en nombre de las
exigencias de valor entendido del rango social, no por eso menos superfluas, de
lo que bien pudiera llamarse arbitrios sinfónicos de clase.
19
La competitividad extrema da pie a una rotación tecnológica irracional, los bienes son cada vez
más efímeros y el consumo se vuelve brutal e irracional. La fluctuación de modas, la reducción de
la vida media de los bienes de consumo, son el remedio técnico que justifica el mantenimiento de
la producción. Sus efectos como la marginación social, la toxicidad ambiental, la insalubridad
acaban siendo absueltos a fuerza de ignorarlos voluntariamente. Acerca de los repercusiones
ecológicas y humanas de la producción desenfrenada V. CLIMENT, V., Producción y crisis
ecológica. Los agentes sociales ante la problemática mediamabiental, Ed. Universitat de
Barecelona, Barcelona, 1999.
20
El mínimo necesario, que fluye de la respuesta a la pregunta ¿qué bienes son precisos a un
hombre para asegurarle una vida humana decorosa?, debe ser entendido en su acepción más
amplia: como necesarium vitae, el estricto vital sine quo aliquid esse non potest, sin cuya
satisfacción la sobrevivencia no deviene posible, y como necesarium personae, el estricto
personal, allende el curso biológico que en poco se diferencia del animal, orientado, parafraseando
a Santo Tomás, a la holgura necesaria para el ejercicio de la virtud (De Reg.Princ.,1. 1. Cap. XV),
esto es, de su participación libre y creadora como sujeto, de su iniciativa, capacidad y
responsabilidad. Porque el hombre, en su vida breve, debe tener la oportunidad de encaminarse
libremente hacia la perfección V. MOUNIER, E., De la propiedad capitalista a la propiedad
humana, Obras Completas (VOL.I), Op. Cit., p.545 a 561.
162
José María Seco Martínez
Usted debiera de comprender como el que más que, dada nuestra
posición, sólo me sienta seguro entre los de mi clase (...); que una
mujer que no tenga doncella para el servicio doméstico carece de
autoestima; que quien no disponga al menos de dos automóviles
de prestaciones elevadas aparente ser un réprobo social; que
trate a toda costa de evitar que los demás piensen que no somos
sofisticados; que me engalane con ropas de fiesta y luzca
perfumes de importación en los días más señalados para parecer
alguien respetable; que frecuente restaurantes tácitamente
reservados a comensales de mi ralea, (...) etc.
En verdad, nadie se cuestiona lo más mínimo si la vanidad y el dinero no
han instituido un código aplastante de deberes públicos farisaicos, de falsas
obligaciones sociales de clase 21. Consumir esto o aquello aquietará los ánimos
tanto de quienes se saben inmersos en un grupo social determinado, como de
aquellos que al abrigo de sus expectativas de disfrute sensible de la vida
pretenden alcanzar la consideración de sectores sociales más específicos
aferrándose a sus convenciones.
La significación del consumo deviene ahora simbólica y cultural. Las
necesidades del consumidor ya no determinan la producción ni condicionan la
oferta, antes al contrario, es la producción la que va forjando las necesidades de
consumo por medio de mercados estandarizados que ensalzan el arrojo simbólico
de determinados hábitos de consumo 22. Sólo de esta forma pueden mantenerse
las exigencias de progreso/crecimiento de las sociedades desarrolladas:
reduciendo al sujeto humano concreto a la condición de mero ser que produce
cuando trabaja y consume cuando deja de trabajar. Es decir que produce o
trabaja sólo para consumir, que sólo vale en la medida en que consume y no en la
medida en que produce.
Quizás sea este el hechizo más procaz del nuevo social/liberalismo, la
colonización, por medio de la creación de un clima de tranquilidad psicológica y
21
Ibíd., p. 548
Tanto es así que la desconfianza de los consumidores puede dar al traste con las previsiones
más avezadas de los analistas y con las expectativas de recuperación más optimistas de los
mercados. La solidez del consumo, que llega a representar buena parte del P.I.B. de algunos
países desarrollados (piénsese sino en las 2/3 partes que ha llegado alcanzar en Estados Unidos),
ha propiciado el mantenimiento ininterrumpido en los últimos años, no sin oscilaciones al albur de
los descensos de los tipos, del crecimiento económico en lo que bien pudiera considerarse la red
de seguridad del sistema capitalista, que gravita sobre los mercados estadounidense y europeo.
Prueba de ello, es el recorte reciente de los tipos de interés en EEUU y la inminencia de su
provisión en la eurozona por la Reserva Federal y el Banco Central respectivamente, a la vista de
la implosión económica que avizoran los expertos como consecuencia del descenso generalizado
del consumo.
22
Globalización
163
social, de prácticamente todo el imaginario, en el que participan hasta sus propios
detractores, muchos de los cuales, de manera singular quienes han hecho fortuna
conforme a los parámetros de funcionamiento de la sociedad de mercado,
residencian su ambivalencia teórico/práctica en la necesidad de aguzar sus
contradicciones por medio de su reprobación intelectual y el usufructo isócrono de
sus plácemes de la facilidad y el confort. El único imaginario social que es
prácticamente compartido por todos es ahora el imaginario mercantil.
...porque unos y otros están dentro del contexto capitalista que es
el único real que hoy funciona (...), tanto a nivel de gran
capitalismo como de capitalismo popular. Nos conmueven poco
los enfrentamientos dialécticos a distancia, las zapatillas que se
arrojan unos a otros y la divergencia de actitudes y banderas,
pues sabemos que, gane quien gane, en las elecciones y en la
vida, el programa a aplicar será más o menos el mismo. Al
capitalismo
unos
lo
llaman
socialdemocracia,
otros
social/liberalismo, unos izquierda y otros derecha, pero todo
desemboca en una modernización del rancio capitalismo (...),
auñón y empeñista, que es el que ha cambiado pesetas por euros,
nos ha hecho consumistas y ha extendido el tabú del dinero
incluso a las clases que nunca soñaron con tenerlo 23.
Por otra parte, el creciente desarraigo del capital del circuito productivo y el
nuevo compás que se prodiga desde el cuadro briago de valores del nuevo
liberalismo 24, determinan que el provecho capitalista no se oriente a una
retribución normal de la prestación de servicios determinados, desplazándose
progresivamente hacia sectores de reproducción especulativa del capital, donde
la especulación transforma la economía en un inmenso juego de azar indiferente
a las consecuencias de sus contrapartidas económicas y humanas, en desmedro
del mundo del trabajo y de su clásica expectativa de creación de riqueza.
Emerge así una forma de provecho diferente. Un beneficio sin trabajo, sin
servicio real o transformación material, aspiración contemporánea de toda
ganancia capitalista, que sólo puede dimanar del propio juego del dinero ocioso
sobre el trabajo de los demás. Elástico y adquirido sin trabajo sustituye la
23
UMBRAL, F., “El contexto”, en Los placeres y los días, El Mundo 30/10/02.
Donde reina la preocupación mecánica por el beneficio con el consiguiente destierro de otra
clase de valores desde luego más humanos: “amor por el trabajo, sentido del servicio social y de la
comunidad humana, sentido poético del mundo, vida privada, vida interior...”198. MOUNIER, E.,
Revolución personalista y comunitaria, en Obras Completas Vol.I, Ed. Sígueme, Madrid, 1997,
p.310.
24
164
José María Seco Martínez
ganancia industrial por el beneficio especulativo. Su ordenación no se halla
vinculada al afrontamiento de las necesidades, su valor no es real porque no es
sinónimo de riqueza y su eficacia enraíza no tanto en los fundamentos de la
economía real, cuanto en los diversos resortes de generación reproductiva y/o
fecunda (financiera) del dinero.
El propósito alcista del mercado de valores no se aviene a la lógica
macroeconómica. No tiene porque obedecer, de hecho no lo hace, a la mejora de
sus indicadores o expectativas de crecimiento, expresivos de la capacidad
inversora de las empresas, del comportamiento del consumo y el desempleo.
Basta con indagar en la actitud desaforada de los mercados en las últimas
semanas para llegar al convencimiento de que su evolución es diametralmente
contraria al desgarro que padecen los indicadores macro-económicos que
apuntan a un crecimiento del P.I.B. muy por debajo de las previsiones más
realistas, al descenso a escala del consumo y al aumento del desempleo.
El hecho de que pese a este contexto de desaceleración económica las
Bolsas en todas las plazas experimentaran, en sus trayectorias respectivas de
ganancias, beneficios contundentes, refutando incluso las previsiones más
sombrías de los analistas, son la demostración irrebatible de que el capitalismo
financiero y su potencia multiplicadora y la economía genuinamente entendida
hollan su destino por sendas muy diferentes.
Ciertamente el sistema económico capitalista deviene así en un aparato
desproporcionado de opresión y de dominación, cuya correa de transmisión son
hoy la banca, los mercados de renta y en general cuantos mecanismos
financieros se establecen para el aseguramiento efectivo de la rentabilidad no
productiva. Es un sistema opaco, pues no es transparente, y cerrado, porque no
es libre, que se apropia del imaginario sometiéndolo a sus propias reglas, modos
y principios, esto es, al precio, a la deuda, a la seguridad, a la certidumbre
psicológica, a la falsa necesidad y a la trampa especulativa. Y al desvirtuar
ostensiblemente la finalidad natural de la economía pliega la acción de los
poderes públicos a los designios de una gestión nefeloide del bienestar.
En efecto, mientras que para los países ricos es sinónimo de opulencia y
prosperidad, para los países menos desarrollados el crecimiento económico es la
única vía plausible para escapar de la desesperación y el marasmo de la pobreza.
Globalización
165
Con el fin de alcanzar las mismas costas de riqueza se abandonan a la misma
convicción productivista que asocia industrialización incontrolada, con arreglo a
los patrones de desarrollo de las sociedades del norte, con desarrollo y riqueza.
Se entregan a la experiencia almidonada de un modelo social que sublima
la potencialidad del mercado como el constituyente de la realidad: se liberaliza la
migración sin trabas del capital a través de la inversión extranjera, la acción de las
multinacionales y el crédito internacional; se transige con la instalación, directa o
por medio de la subcontratación, de grandes empresas en los países en vías de
desarrollo, ávidos de la inversión extranjera para su rápida industrialización,
donde los costes de producción descienden considerablemente por razón de la
precariedad laboral existente y la escasa cualificación de sus trabajadores que los
hace más competitivos que sus homólogos del norte.
El efecto, que hierve por dentro la olla de la globalización, es devastador.
Se globalizan los riesgos ecológicos: se exprimen los recursos, se propaga la
mácula ecológica de la tecnología, se incrementa la toxicidad por el crecimiento
del consumo; y se expande la pobreza: incluso a amplias capas de población, los
más débiles y menos cualificados, en los países más desarrollados del norte
(demasiada demanda de empleo para un mercado con urgencias decrecientes de
mano de obra), se acelera la exclusión de zonas cada vez más extensas
socialmente devaluadas... En fin, se prodiga la destrucción de las relaciones
humanas en beneficio de la proliferación de los vicios estructurales de un sistema
construido a espaldas y en contra de la vida humana en el que únicamente priman
el deseo de producción sobre el consumo y el trabajo, el dinero sobre la economía
o el trabajo, y el provecho, lucro o beneficio sobre cualesquiera otros valores
humanos, personales o colectivos.
Tales son los principios que forjan el doctrinario social/liberal irredento de
los conciliábulos del nuevo liberalismo, seguidores flirteantes del fundamento
levítico, casi sacramental, de la propiedad privada, el contrato y el capital. Con
tales asideros el ideario socio-económico del nuevo contexto capitalista, henchido
de viento universal e idolatrante insaciable del aquél: inflama el pecado de la
explotación humana, celebra la restauración augusta del hombre civilizado pero
posterga a la mayoría; instaura la libertad para luego sepultarla bajo el entramado
anónimo del dinero y suplantarla por el alambicado especulativo de la guerra
166
José María Seco Martínez
económica, la explotación social y las oligarquías ocultas; aplaude la iniciativa, por
el auspicio del lema liberal consagrado a la libertad de competencia y a la
iniciativa individual, más sólo se la reconoce a aquellos que ya la tienen o son
doctos en ella.
Bajo la apariencia de su humanidad prosperan el alarde y el engaño, del
mismo modo que miman la postiza ilusión de un planeta más armonioso, más
próspero, menos lívido y desdibujado, con el fin de embozar mejor el monopolio
de la propiedad, las libertades, el poder económico y el político. El infausto fénix
del absolutismo capitalista se descubre como una fabulosa máquina de enredos
matemáticos, de astucias, de prácticas contables alucinantes, que instaura, en
suma, una dictadura económica decididamente deshumanizada en la que:
 Se desposee a la economía de su encomio más cimero: la satisfacción
de las necesidades fundamentales.
 Se distorsiona el sentido del trabajo al consagrar su separación del
capital, y éste, a su vez, de la idea de responsabilidad. La separación entre
capital, trabajo y responsabilidad es considerada uno de los mecanismos
esenciales para el mantenimiento de las estructuras del modelo capitalista. Se
desposee al trabajador de su ganancia legítima, de la propiedad legal y el dominio
personal del fruto de su trabajo. Se subvierte, por tanto, el orden económico
haciendo primar el capital y el lucro sobre el trabajo y la remuneración.
 Se abandona al determinismo inquisitorial de una nueva sinfonía de
clases en la que como siempre los más fuertes desposeen y oprimen a los más
débiles, concentrándose, de este modo, el poder de la libre competencia en
manos de la prerrogativa.
 Se configura el perfil de un hombre más inhumano, cuya primera noción
es la del beneficio. Su interioridad emética sucumbe al encanto alienante del
dinero zalamero. No tiene otro afán que disiparse en las cosas, diluirse en el
formol de su propio egotismo, caldo lúbrico dado al hombre acorralado.
 Se amilana al consumidor en el ejercicio inmoderado del consumo. Se
apropia de su potencia de ahorro y racionalización del gasto por medio del
recurso a juegos especulativos imprevisibles y a campañas descomunales de
incitación al consumo vacuo e irreflexivo.
 Se fomenta la formación de un clima espiritual presidido por el miedo a
Globalización
167
vivir, el envilecimiento en el confort, el temor enfermizo a la incertidumbre, la
estrechez de miras, la mezquindad, el ansia denodada de seguridad y felicidad 25,
la avaricia reivindicante y la indiferencia des-solidaria para con los otros.
 Se adiestra, en fin, el movimiento expedito y especulativo del capital al
tiempo que patrocina la concentración indiscriminada del poder industrial y
financiero, dando entrada a una nueva forma de endriago multinacional que viene
a detentar sin jaleo épico y por la vía de los hechos el control económico y,
mediante éste, el poder político, haciéndose con las riendas ocultas de los
Estados y su funcionamiento institucional, amén de la distraída naturalidad con
que congestiona la información, la opinión y la cultura en aras de la encarnación
en la ciudadanía de los dictados de voluntad de una clase y sus aspiraciones.
En fin, más de lo mismo. Viejo liberalismo remozado como neoliberalismo
suicida. Su razón el enriquecimiento a toda costa. Su destino a gran escala,
imperialismo. O sea el viejo nirvana burgués, “la flor final y exquisita del
capitalismo” 26.
25
26
V.VELA F., Persona, Poder y Educación, S. Esteban, Salamanca, 1983, p. 96.
UMBRAL, F., El Contexto, loc. Cit.
168
José María Seco Martínez
La Globalización como Trama Jerárquica:
¿“Gobernancia” sin Gobierno o Hegemonía?
El Nuevo Contexto de los Derechos Humanos
Alejandro Medici
Sumario: Introducción. 1. De la “Gobernancia” a la Hegemonía. 2. El
Proyecto de la Globalización como Hegemonía. 3. Conclusiones
Provisionales.
Introducción
Con el creciente desencanto frente a las consecuencias sociales,
ecológicas y políticas de la globalización, las interpretaciones que desde las
relaciones internacionales hablaban de un orden mundial de interdependencia
compleja, o que desde la comunicación, festejaban el advenimiento de la “aldea
global”, sin perder su pertinencia para comprender aspectos de esa compleja
realidad mundial que se sintetiza con el término globalización, parecen pecar,
ahora, de una cierta ingenuidad.
Es que el eje de las preocupaciones teóricas acerca de la globalización se
ha desplazado hacia la lógica de su estructuración jerárquica. En este trabajo
sostenemos la hipótesis de que más que como “gobernancia global”, la trama
jerárquica de la globalización debe entenderse como hegemonía. Hegemonía no
en el sentido que la teoría realista de las relaciones internacionales le atribuye al
término, sino entendida desde una interpretación relacional y dinámica del
pensamiento gramsciano, y también desde las aportaciones que en las corrientes
neomarxistas de las relaciones internacionales han utilizado los conceptos
gramscianos como instrumentos operativos para comprender como se construyen
y deconstruyen los órdenes en el sistema mundial.
1. De la “Gobernancia” a la Hegemonía
En las conclusiones de su obra “La retirada del estado”, Susan Strange
explica cómo en el contexto posterior a la Guerra Fría, los especialistas en
relaciones internacionales han prestado una creciente atención a la situación que
definen mediante el uso y abuso de los términos global governance, gobernación
o “gobernanza” global. Este concepto, pretende transmitir la idea de una especie
de alternativa al sistema de estados, pero que difiere sutilmente del gobierno
mundial 1.
Normalmente este término se utiliza para designar los procesos de
harmonización o estandarización de una práctica entre los gobiernos de los
estados, en la mayoría de las ocasiones llevadas a cabo por organizaciones
internacionales.
La
premisa
implícita
que
transmiten
ambas
palabras,
“gobernación” y “global” es que se está consiguiendo gobernar a una escala
mundial a través de una autoridad mundial 2.
Lo mismo sucede con la literatura sobre los denominados “regímenes
internacionales”, que son frecuentemente caracterizados como el producto de un
proceso concertado, a través del cual los gobiernos han coordinado sus intereses
comunes.
Sin embargo, en realidad, muchos regímenes internacionales no
han sido fruto de una concertación entre iguales, sino el resultado
último de una estrategia desarrollada por un estado dominante, o
a veces por un pequeño grupo de estados dominantes... Hasta las
secretarías de las instituciones internacionales implicadas son
socializadas subliminalmente para administrar un “orden
internacional” que no es en absoluto neutro ni en sus intenciones
ni en sus consecuencias 3.
Vistas las cosas de esta forma, “gobernancia”, pasa a ser un eufemismo
para designar la lógica de esa trama jerárquica de la globalización que articula la
sociedad mundial. Sin embargo, Susan Strange no llega todo lo lejos que cabría
esperar luego de reconocer las asimetrías relacionales que están detrás de la
“gobernancia” y de los “regímenes internacionales”. Sus tres principales
conclusiones respecto a los “patrones de autoridad legítima” a fines del siglo XX,
son las siguientes: Primero, existe una asimetría creciente entre los llamados
1
Strange, Susan. La retirada del estado. Icaria. 2001. pg. 259.
Strange, Susan. Ibid. pg. 13.
3
Strange, Susan. Ibid. pg.13. Ver también Stephen Krasner (Ed.) International regimes. Cornell
University Press. 1995. Para una crítica de las asimetrías de poder que conforman los regímenes
internacionales ver también Gale, Fred. Cave, Cave! Hic dragones: a neo-gramscian
deconstruction and reconstruction of international regime theory. En: Review of International
Political Economy 5:2. Verano 1998. pgs. 252/283. Gowan, Peter. La apuesta por la globalización.
Akal. 1999. pgs.59/60.
2
170
Alejandro Medici
estados soberanos con respecto a la autoridad que ejercen en la sociedad y en la
economía. Segundo, la autoridad de los gobiernos de todos los estados, grandes
y pequeños, fuertes y débiles, se ha debilitado como consecuencia del cambio
tecnológico y financiero, así como la integración acelerada de las economías
nacionales en una única economía de mercado global. Tercero, algunas de las
responsabilidades básicas del estado en una economía de mercado no están
siendo asumidas por nadie. Según Strange,
En el núcleo de la economía política internacional existe un vacío,
(...) que no ha sido convenientemente ocupado por instituciones
intergubernamentales o por un poder hegemónico que ejerza el
liderazgo en aras del interés común. La polarización de los
estados entre aquellos que conservan algún control sobre sus
destinos y aquellos otros que son materialmente incapaces de
ejercer tal control no constituye un juego de suma cero. Lo que
han perdido algunos, no ha sido ganado por otros. La difusión de
la autoridad más allá de los gobiernos nacionales, ha dejado un
enorme agujero vacío de autoridad que podría denominarse
“desgobernación” 4.
Desde nuestra perspectiva, la aproximación de Strange a la trama
jerárquica de la globalización es insuficiente. Compartimos sus dos primeras
conclusiones, son evidentes las crecientes asimetrías interestatales, con los
Estados Unidos como principal potencia capitalista bastante por delante de sus
asociados/competidores europeos, Japón, etc., y todos ellos muy lejos del resto
de estados semiperiféricos y periféricos. Su segunda conclusión también se
sostiene por la evidencia de la refuncionalización de los estados, perdiendo, como
vimos, algunos de sus atributos soberanos. Pero nos parece insatisfactoria por
defecto. su tercera aserción, la idea del “agujero vacío” o de la “desgobernación”,
o simplemente de que parte de la autoridad perdida por los estados se evaporó.
Ese poder se ha trasladado hacia actores no estatales o supraestatales,
como son instituciones formales e informales, G7, OMC, FMI, BM, corporaciones
multinacionales económicas y financieras, etc., y una de sus principales
expresiones son la libertad y movilidad del capital y las condicionalidades
económicas, financieras y políticas que la hacen posible. Por otra parte, pese a
que Strange critica la tradición neorrealista de las relaciones internacionales, su
4
Strange, Susan. Ibid. pgs 34/35.
La Globalización como Trama Jerárquica
171
definición de hegemonía parece seguir siendo tributaria de la teoría de la
estabilidad hegemónica en el sistema interestatal, una hegemonía que debería
ejercerse en “interés común”.
Esta definición estrecha de hegemonía no parece dar cuenta de toda la
tradición crítica que partiendo del materialismo histórico de Antonio Gramsci, ha
desarrollado 5, incluso en el propio terreno de las relaciones internacionales y la
política económica global, una concepción de hegemonía que va más allá de la
estatalidad, analizando las relaciones globales de “complejos sociedad civilestados”, y que enfatiza el importante papel en los procesos hegemónicos de los
actores no estatales y supraestatales. Por otra parte, esta perspectiva, en tanto
que crítica, rechaza la posibilidad de que la hegemonía en la trama jerárquica de
la globalización pueda ser realmente en “interés común”, pese a que se presente
como tal e incluso aunque se limite esa noción a una definición estrecha que se
centre solamente en la estabilidad del orden mundial. La hegemonía se ejerce
siempre a través de una retórica universalista de legitimación, pero beneficia a
grupos sociales e intereses minoritarios.
Juan Ramón Capella, aporta una visión más compleja de las relaciones de
poder que estructuran la sociedad global. Esta visión cabalga, creemos, sobre
algo más que la simple asimetría de las relaciones interestatales y la emergencia
de poderosos agentes globales no estatales. La espacialidad compleja de la
globalización, supone una escisión entre la soberanía, que parece estar siendo
expropiada, especialmente a los estados que no integran el restringido círculo de
los Estados Unidos y asociados, y la estatalidad, que lejos de desaparecer, es
refuncionalizada.
La lógica de la soberanía, si sigue siendo válido usar el concepto, ha
mutado de escala y de sujetos: la eficacia cognitiva de la metáfora de un poder
(político) agente, asociada con el estado soberano, y de una fuerza causal puesta
en movimiento por voluntad de ese agente, ya no da cuenta de la complejidad de
5
Ver de Cox, Robert. Gramsci, hegemony and international relations: an essay in method. En:
Millenium n° 12. pgs. 1983. pgs. 162/175, Production, power and world order: social forces in the
making of history. Columbia University Press. 1987 y Social forces, states and world orders:
beyond international relations theory. En: Kehoane, Robert. O. Neorealism and its critics. Columbia
University Press. 1986. Ver también de Gill, Stephen. American hegemony and the Trilateral
Commission. Cambridge University Press. 1990, Reflections on global order and sociohistorical
time. En: Alternatives, n°. 16. 1991. pgs. 275/314 y de Gill, Stephen y Law, David. The global
political economy: perspectives, problems and policies. John Hopkins University Press. 1988.
172
Alejandro Medici
la realidad. Para comprender el fenómeno del poder en el contexto actual, como
dice Juan Ramón Capella, hay que utilizar alguna metáfora más compleja, por
ejemplo, aquella proveniente de la física, del campo de fuerzas:
hay que prescindir de la idea de un único agente causal y pasar a
hablar de un ámbito en el que se suscitan determinaciones,
aunque éstas no puedan ser atribuidas linealmente a un solo
agente generador o incluso aunque en una situación concreta la
determinación del generador quede oscurecida o sea imposible
dentro del campo. 6
Trasladando la metáfora, el nuevo “campo del poder” contemporáneo se
da, en el espacio de relación entre un soberano privado supraestatal difuso y puesto que se mantiene la base territorial del asentamiento del poder– un “estado
permeable” o unas “asociaciones estatales” permeables, abiertas o porosas. 7
La denominación de soberano privado supraestatal difuso, se atribuye al
titular “privado” de un poder supraestatal que produce efectos de naturaleza
pública o política. Constituye un poder fáctico, no totalmente localizado o
institucionalizado y mucho menos normativizado, de características difusas.
Está constituido por el poder estratégico conjunto de las grandes
compañías transnacionales y sobre todo, hoy, de los grandes
conglomerados financieros. Se impone mediante instancias
convencionales interestatales, como el G7, instituciones, como el
FMI, el BM, y la OMC, la OCDE, instancias privadas de creación
del derecho 8,
como la lex mercatoria, etc. Pero también, como veremos, puede recurrir a
la seguridad y fijeza de la forma jurídica de los acuerdos multilaterales, para
consolidar sus posiciones obtenidas fácticamente.
Este nuevo campo de poder, se caracteriza por señalar el marco de
opciones restringidas de políticas económicas y sociales que pueden desarrollar
los estados e incluso la instituciones internacionales del sistema de las Naciones
Unidas, incidiendo directamente en el nivel de garantía de los derechos
6
Capella, Juan Ramón. Fruta prohibida. Una aproximación histórico-teorética al estudio del
derecho y del estado. Op. cit. pg. 257.
7
Capella, Juan Ramón. Ibid. pg. 258.
8
Capella, Juan Ramón. Ibid. pg. 261.
La Globalización como Trama Jerárquica
173
económicos, sociales, y ambientales. Además, admite legitimaciones distintas, si
los estados siguen vinculados al principio de legitimación democrática, el
soberano privado, al ser difuso y consistir en un poder estratégico de los grandes
agentes económicos, se basa en un discurso legitimador fundado en la eficacia
técnico-productiva. Este principio de legitimación, sobredetermina y erosiona la
legitimación democrática de los estados. 9
Las explicaciones de Strange y de Capella buscan comprender la situación
actual, en que la sociedad mundial se mueve entre dos tipos extremos e “ideales”
de estructuración, que han sido propuestos, respectivamente, por las escuelas
realistas e idealistas de las relaciones internacionales, es decir, entre el modelo
relacional clásico basado en el sistema de estados soberanos del derecho
internacional y otro cosmopolita basado en el derecho, las instituciones
internacionales y la tendencia a la universalización de los derechos humanos en
su indivisibilidad e interrelación.
Frente a la idea de Strange del vacío o evaporación del poder soberano
que ceden los estados, debemos constatar, siguiendo a Capella, con un mínimo
de realismo crítico, que en ese continuo, la globalización hegemónica se ubica
más cerca del primero de los polos, pero desplazando de la mayoría de los
estados del sistema interestatal el ejercicio real del poder y manteniendo, de la
lógica de la soberanía, al menos el hecho de la existencia de poderes fácticos
capaces de imponerse, no controlados o regulados. Con todo, la idea del campo
de poder debe todavía precisarse en cuanto a las lógicas de relación entre los
actores estatales, no estatales, las instituciones dominantes y los dominados,
entre otras cuestiones.
Desde una perspectiva radicalmente diferente, James Petras 10 identifica
claramente un “sistema imperial”, en cuyo centro los Estados Unidos desempeñan
la función de “estado imperial”. Frente a la corrupción del “lenguaje político”, que a
través de eufemismos y conceptos que tienen poca relación con las realidades y
9
Capella, Juan Ramón. Ibid. pg. 265.
Petras, James y Morley, Morris. El estado imperial norteamericano. En: Petras, James. Clase,
estado y poder en el Tercer Mundo. Casos de conflictos de clases en América Latina. F.C.E. 1986.
y del mismo Petras, James. El globalismo y el estado. En: Idem. La izquierda contraataca.
Conflicto de clases en América Latina en la era del neoliberalismo. Akal. 2000, Globalización y
ciudadanía. Dimensiones sociales y políticas y El imperialismo resurgente: el problema principal
del nuevo milenio. Ambos en: Sediciones n°. 13. 1999.
10
174
Alejandro Medici
políticas sobre las que pretenden hablar, sostiene que la globalización se halló
asociada siempre al imperialismo 11, y que, en la actualidad, la globalización debe
ser vista como un nombre en clave del imperialismo ascendente de los Estados
Unidos 12.
Según Petras,
puede definirse al estado imperial norteamericano como el
conjunto de agencias y órganos ejecutivos encargados de
promover y proteger la expansión del capital, más allá de las
fronteras estatales, por la comunidad corporativa multinacional
cuya sede se encuentra en el centro imperial 13
El sistema imperial, consiste en el conjunto de procesos por el que las
agencias del gobierno norteamericano, ejerciendo sus funciones económicas y
coercitivas, promueven la penetración y el establecimiento del capital en los
países imperializados, estableciendo vínculos con las clases colaboradoras.
Respecto a la coerción, mientras en los estados del centro del sistema imperial
juega un papel “en última instancia”, secundario en relación al consenso
ideológicamente inducido, su rol es central en la periferia a través de la represión,
la coerción y la explotación 14. La fuerza es un elemento central del sistema
imperial.
Por nuestra parte, creemos que es innegable el rol que juegan en la
organización de la trama jerárquica de la globalización las asimetrías del sistema
11
Petras, James. El globalismo y el estado. Op.cit. pg. 246.
Petras, James. Globalización y ciudadanía. Dimensiones sociales y políticas. Op.cit. pg. 120.
13
Petras, James y Morley, Morris H. Ibid. pg.19.
14
En su ensayo de los 80, Petras enfatizaba la recurrencia de los regímenes represivos, mientras
que en los ensayos más actuales, posteriores a lo que, desde la politología ha dado en llamarse
“tercera ola de democratización”, y el establecimiento de regímenes electorales formales en las
periferias y semiperiferias, su análisis se ha desplazado hacia lo que denomina “neoautoritarismo”,
“el nuevo autoritarismo es diferente a los regímenes del viejo estilo represivo. En el pasado el
autoritarismo tenía una cara militar, negaba las libertades individuales y la oposición electoral. El
nuevo autoritarismo es un régimen híbrido que combina procesos electorales y libertades
individuales con estructuras de toma de decisión altamente elitistas”. Este neoautoritarismo se
caracteriza por la separación entre promesas y programas electorales votados y políticas
neoliberales de los gobiernos, por el recurso a los decretos presidenciales para imponer esas
políticas, cercenando cada vez más el debate público, chantajes, amenazas y coacción indirecta
por parte del FMI condicionando los créditos y de las corporaciones y actores económicos a través
de “golpes de mercado” y “fugas de capital”. Más allá de que discrepemos con algunos aspectos
de su análisis de la trama jerárquica global, compartimos el análisis del neoautoritarismo en
Petras, que viene a llenar muchos de los vacíos y ambigüedades de las teorizaciones acerca de
las “democracias con adjetivos” de la politología latinoamericana. Petras, James. Globalización y
ciudadanía. Op.cit. pgs. 132/135.
12
La Globalización como Trama Jerárquica
175
interestatal, en primer lugar, la posición dominante de los Estados Unidos, y
luego, la de los principales estados capitalistas asociados del G7 y de la OCDE.
Sin embargo, no compartimos con Petras la simple extensión a la situación actual
del concepto de imperialismo, que supone una forma de espacialidad que no se
corresponde con la complejidad de la configuración espacial global, la falta de
ponderación adecuada de la autonomía y poder relativos de los actores no
estatales y la no distinción clara entre dominación hegemónica y no hegemónica,
que implica calibrar de forma más fina el equilibrio entre consenso y coacción, el
papel de la ideología hegemónica y de las instituciones internacionales.
En un trabajo de los años 80, Robert Cox 15, comentando el trabajo de
Petras desde una perspectiva neogramsciana, sostenía que el imperialismo es un
concepto impreciso, que en la práctica debe ser redefinido con referencia a cada
período histórico. No tiene sentido buscar alguna “esencia” del imperialismo, más
allá de las formas que la dominación y la subordinación toman en sucesivos
órdenes mundiales. La forma actual, sea activada por estados, por fuerzas
sociales (como las corporaciones multinacionales), o alguna combinación de
ambos, sea la dominación primariamente política o económica, debe ser
determinada por un análisis histórico y no por razonamiento deductivo.
Cox, ponderaba el trabajo de James Petras en sus rupturas con la tradición
neorrealista hegemónica en la academia estadounidense y sostenía que en su
uso del concepto de un sistema imperial de estados, había desarrollado una serie
de cuestiones importantes en relación a las características estructurales del
sistema interestatal en el presente orden mundial.
El estado imperial dominante y los estados subordinados colaboradores,
difieren en estructura y tienen funciones complementarias en el sistema imperial,
no son solamente más o menos poderosas unidades del mismo tipo, como se los
representa en el modelo neorrealista simple. Una cuestión importante en el marco
conceptual de Petras, es que el estado imperial que analiza, no es todo el
gobierno de los Estados Unidos, sino esos cuerpos ejecutivos al interior del
gobierno que cargan con la promoción y protección de la expansión del capital a
través de las fronteras estatales. El sistema imperial, es al mismo tiempo, más y
15
Cox, Robert. Social forces, states and world orders. Beyond international relations theory. Op.cit.
pg.228.
176
Alejandro Medici
menos que el estado. Es más que el estado ya que es una estructura
transnacional con un centro dominante y una periferia dependiente 16.
Es menos que el estado, o mejor dicho, diferente que el estado, ya que
partes del gobierno estadounidense forman el centro del sistema con instituciones
tales como el FMI y el BM, relacionadas simbióticamente con la expansión del
capital y con las partes de los gobiernos asociados vinculadas al sistema. Esta
definición, que es al mismo tiempo más y menos que el sistema interestatal,
siguiendo a Cox, debe entenderse en el sentido gramsciano del estado ampliado,
ampliando la interestatalidad en el plano global según la célebre fórmula de los
Quaderni, (EA= SP + SC o hegemonía acorazada de coerción).
Esto implica también un espacio relacional no monolítico y que incluso
puede ser antagónico, en el sentido que puede haber desajustes entre los actores
estatales y no estatales y entre éstos y las instituciones, así como fuerzas no
sistémicas o antisistémicas, pueden estar presentes tanto en el centro como en la
periferia 17. Esta perspectiva, nos resulta sumamente sugerente para comprender
las tramas que estructuran la sociedad global y que inciden en la distribución de
costos y beneficios de los procesos que la producen, superando las visiones
trascendentes de la ideología globalista.
La unidad del estado, propuesta por los neorrealistas, está fragmentada en
esta imagen, y la lucha por y contra el sistema imperial puede darse dentro de las
estructuras estatales tanto del centro como de la periferia, así como a través de
fuerzas sociales sostenedoras o enfrentadas al sistema. El sistema interestatal es
entonces una categoría necesaria pero insuficiente para dar cuenta del sistema
imperial. El sistema imperial en sí mismo, debe ser, para Cox, el punto de partida
de la indagación, entendido ahora como una estructura histórica 18.
En su mayor abstracción, la noción de un marco para la acción o estructura
histórica es una pintura de una particular configuración de fuerzas 19. Esta
configuración no determina acciones de forma directa o mecánica pero impone
16
Cox, Robert. Ibid. pg. 228.
Cox, Robert. Ibid. pg. 229.
18
Cox, Robert. Ibid. pg. 229.
19
Estas fuerzas interactúan de acuerdo a Cox, en una dinámica relacional, donde las ideas, las
capacidades materiales y las instituciones son articuladas, de forma no determinista, por las
fuerzas sociales, las formas de estado ampliado (complejos estado-sociedad civil), y los órdenes
mundiales. Cox, Robert. Ibid. pg. 219/221.
17
La Globalización como Trama Jerárquica
177
presiones y constreñimientos. Los individuos y los grupos pueden moverse con
las presiones o resistir y oponerse a ellas, pero no pueden ignorarlas. En la
medida en que resisten exitosamente una estructura histórica dominante, apoyan
sus acciones en una configuración de fuerzas emergente o alternativa, una
estructuración rival.
Es necesario precaverse de caer en un lenguaje de reificación al hablar de
las estructuras. Éstas son constreñimientos sobre la acción, no actores. El
sistema imperial incluye algunas organizaciones formales y otras menos formales
a través de las cuales puede ejercerse presión sobre los estados sin usurpar el
poder de los mismos. La conducta de estados particulares o de intereses
económicos y sociales organizados, de todas formas, encuentra su significado en
la totalidad más grande del sistema imperial. Las acciones son construidas tanto
directamente por presiones proyectadas a través del sistema, como por la
percepción subjetiva de los actores acerca de los condicionamientos del mismo.
Sin embargo, dice Cox,
Uno no debe esperar entender el sistema imperial identificando el
imperialismo con actores, sean estados o multinacionales, éstos
son ambos elementos dominantes del sistema, pero este, en tanto
estructura, es más que su suma 20.
Aún así, no debe olvidarse el carácter no cerrado o suturado, los puntos de
fractura, los antagonismos, ni sobrestimarse el poder y la coherencia de la
estructura, aún una dominante. Donde una estructura es manifiestamente
dominante, la teoría crítica nos lleva a observar las contraestructuras, incluso las
latentes, buscando sus posibles bases de sustentación y elementos de
cohesión 21.
Matizando la posición de Petras, para Cox, es preferible volver a la
terminología que se refiere a órdenes mundiales hegemónicos y no hegemónicos.
Introducir el término imperial, como hace Petras, en referencia a la pax americana
de postguerra –nosotros agregamos ahora el actual relanzamiento sobre nuevas
bases del papel dominante de los Estados Unidos– presenta el riesgo de
20
21
Cox, Robert. Ibid. pg. 229. Traducción propia.
Cox, Robert. Ibid. pg. 229.
178
Alejandro Medici
confundir un actor principalísimo de la estructura de poder global con la estructura
misma, la dominación hegemónica y la no hegemónica, y también distintas
estructuras históricas o formas de imperialismo 22.
2. El Proyecto de la Globalización como Hegemonía
Este desarrollo nos lleva a interrogarnos acerca de cómo entender la
hegemonía en tanto definición de la articulación de la trama jerárquica de la
globalización. En síntesis, ¿qué significa comprender la globalización como un
campo de relaciones hegemónicas?
Para contestar esta pregunta queremos, en primer lugar, dado que el uso
del término hegemonía en las relaciones internacionales23 y en la teoría política
está lleno de ambigüedades y reduccionismos de tipo estadocéntrico y politicista,
22
Cox sostiene que las formas históricas de relaciones imperialistas deben vincularse con los
ciclos de dominaciones hegemónicas y no hegemónicas. Estos ciclos tendrían dos fases, una fase
de consolidación y ejercicio de la hegemonía y otra de decadencia y disputa entre estados rivales
por articular un nuevo ciclo. Los períodos desde mediados del siglo XIX serían 1845-75 (Pax
Britannica), caracterizado por una economía mundial, el patrón oro, libre comercio, la doctrina de
las ventajas comparativas de las naciones. Por medio de su supremacía naval, Inglaterra
“acorazaba de coerción” su hegemonía, manteniéndose a la cabeza del equilibrio de poder entre
los estados de Europa Occidental y disciplinando con las cañoneras a sus colonias y a los estados
periféricos reacios al libre comercio. En el segundo período, (1875-1945), la decadencia de la
hegemonía británica, el surgimiento de potencias competidoras, como Alemania y Estados Unidos,
el proteccionismo y las dos guerras mundiales, marcan un período de crisis o ausencia de
hegemonía. A partir de 1945-65 se inicia el ciclo hegemónico norteamericano, caracterizado por la
expansión del fordismo y el keynesianismo, las instituciones de Bretton Woods, la expansión
industrial, comercial y financiera del capitalismo estadounidense por medio de sus corporaciones
multinacionales, la densificación del sistema interestatal. Según Cox, con la crisis de fines de los
60 y 70, los proyectos en danza para reconstruir la hegemonía, eran los de la Comisión Trilateral,
una economía más policéntrica regionalizada en torno a potencias económicas, o el
contrahegemónico, basado en un nuevo equilibrio Norte-Sur y la construcción de un nuevo orden
económico internacional (NOEI), auspiciado por, por ejemplo, la comisión Brandt, y los principales
países del Tercer Mundo. Sin embargo, la crisis se resolvió con la emergencia del neoliberalismo,
luego denominado “Consenso de Washington”, y el relanzamiento del papel de los Estados Unidos
en un contexto o estructura diferente. A su vez, estos ciclos hegemónicos, deben relacionarse,
respectivamente, con las formas históricas de imperialismo, del “Imperialismo liberal” británico, el
“nuevo imperialismo”, caracterizado por la competencia interimperialista y el ascenso del capital
financiero, en la forma en que Lenin, Rosa Luxemburgo, Hilderfing, entre otros, lo caracterizaron, y
el tercer período, que Cox denomina “imperialismo liberal-monopolista”, inspirándose en Baran y
Sweezy, caracterizado por la internacionalización de la producción, la emergencia de las
corporaciones multinacionales americanas y nuevas formas de capital financiero (bancos
comerciales y consorcios financieros internacionales). Ver Cox, Robert. Production, power and
world order: social forces in the making of history. Columbia University Press. 1987.
23
En la teoría de las relaciones internacionales, hegemonía designa la dominación de un estado
sobre el sistema de estados y se considera factor de estabilidad. Para una buena revisión de las
teorías de la hegemonía en este terreno ver Fiori, José Luis. Globalizaçao, hegemonia e imperio.
En: Tavares, Maria da Coinceiçao y Fiori, José Luis. Poder e dinheiro. Uma economia política da
globalizaçao. Vozes. 1997. pgs. 92 y ss.
La Globalización como Trama Jerárquica
179
precisar, a través de un necesario excurso, cuáles son las características
principales que atribuimos al mismo a la hora de aplicarlo a la comprensión de la
globalización. Para ello, enunciamos las siguientes proposiciones:
a) La hegemonía es el concepto de una articulación de espacios sociales
económicos, políticos y culturales, por lo tanto, no puede reducirse a su dimensión
ideológico-política, ni tampoco a su dimensión económica. La actual hegemonía
global resuelve la articulación en un espacio absoluto.
Mucho se ha discutido sobre el estatuto teórico de los conceptos de
Gramsci en relación a la teoría marxista. Han proliferado interpretaciones que
acentúan el carácter leninista y revolucionario de Gramsci, lo cual es obvio, y
otras que reducen el problema de la hegemonía al campo de la discursividad
ideológico política. Sin entrar en esas discusiones teóricas que exceden el objeto
de este trabajo, nos interesa destacar dos aspectos que para nosotros hacen a la
actualidad y pertinencia del pensamiento gramsciano.
Esos aspectos son: la visualización de totalidades articuladas por vínculos
orgánicos entre economía, política, cultura y el dinamismo relacional e histórico de
los conceptos gramscianos.
Más que un “teórico de las superestructuras”, Gramsci ha sido un pensador
de totalidades históricas irresueltas y tal vez, irresolubles, de los vínculos
orgánicos entre economía, cultura y política y de las distintas coyunturas
históricas de su articulación. En tanto que activista e intelectual revolucionario,
Gramsci ha construido categorías, que no sólo buscaban describir la dominación
social, sino que querían ser herramientas para trastocarla. Muy lejos de cualquier
exceso estructuralista y funcionalista, o de cualquier reificación de instancias, la
totalidad de lo social es siempre inacabada, sometida a un proceso relacional y
dinámico, que a través de la lucha, el antagonismo y las alianzas de las clases y
otros grupos sociales, va desplazando constantemente los términos de la
articulación 24.
24
En una de las notas de los Quaderni, Gramsci, reflexionando sobre el perenne interrogante
acerca de la naturaleza humana, sostenía: “El problema ¿Qué es el hombre? Es, pues, siempre el
problema llamado de la “naturaleza humana”, o del llamado “hombre en general”, o sea el intento
de crear una ciencia del hombre (una filosofía) que parta de un concepto inicialmente “unitario”, de
una abstracción en la cual pueda contenerse todo lo “humano”. Pero ¿es “lo humano” un punto de
partida o un punto de llegada, como concepto y hecho unitario? ¿O no es más bien esa búsqueda
el resto “teológico”y “metafísico” si se pone como punto de partida?”. Unas líneas más adelante
respondía “La respuesta más satisfactoria es que la “naturaleza humana” es “el complejo de las
180
Alejandro Medici
En esa dinámica histórica, frente a las visiones deterministas y
economicistas de las segunda y tercera internacionales, (de las que surgían
estrategias reformistas o revolucionarias, pero que siempre pensaban el estado
en términos instrumentales), Gramsci negaba causalidades simples, o leyes
históricas objetivas que garantizaran el triunfo de la clases subalternas 25.
Por eso, los conceptos gramscianos más conocidos, como hegemonía,
bloque histórico, estado ampliado, sociedad civil, guerra de maniobras y de
posiciones, revolución pasiva, etc., que han provocado ríos de tinta y extensas
discusiones para fijarlos en una cierta topografía de lo social, en la infraestructura
o la superestructura 26, etc., en realidad son procesos sociales que atraviesan,
desplazando los términos de la articulación de los antagonismos históricos. Son
conceptos preñados de relacionalidad y espacialidad, una espacialidad de límites
móviles y difusos que subvierten las categorías burguesas que separan,
reificando, el estado y lo político de la esfera económica y de la sociedad civil 27,
relaciones sociales”, porque incluye la idea de devenir: el hombre deviene, cambia continuamente
al cambiar las relaciones sociales, y porque esa respuesta niega “al hombre en general”.
Efectivamente, las relaciones sociales son producidas por diversos grupos de hombres que se
presuponen, cuya unidad es dialéctica, no formal. El hombre es aristócrata en cuanto es siervo de
la gleba, etc. También se puede decir que la naturaleza del hombre es la “historia”,..con la
condición de dar a “historia” la significación de “devenir”, en una “concordia discors”que no parte
de la unidad, sino que contiene las razones de la unidad posible”. Apropiar esta comprensión
dinámica y relacional, nos sirve para ver como la praxis, el movimiento, va desplazando los
horizontes de una sutura última posible de lo social y la fijación de las articulaciones. Creemos que
estas reflexiones son válidas tanto en el terreno de las formaciones sociales, como en el de los
órdenes que se van configurando en el despliegue histórico del sistema mundial. Ver Gramsci,
Antonio. Antología. Selección, traducción y notas de Manuel Sacristán. Siglo XXI. Pgs. 279/280. El
resaltado es nuestro.
25
En una nota de los Quaderni titulada “Economía e ideología”, Gramsci argumentaba “La
pretensión (presentada como postulado esencial del materialismo histórico) de presentar y explicar
toda fluctuación de la política y de la ideología como expresión inmediata de la estructura tiene
que ser combatida en la teoría como un infantilismo primitivo, y en la práctica hay que combatirla
con el testimonio auténtico de Marx, escritor de obras políticas e históricas concretas”.Gramsci,
Antonio. Antología. Op.cit. pg.276.
26
Ver por ejemplo, las discusiones reflejadas por Portelli respecto a las categorías bloque histórico
y sociedad civil. En: Portelli, Hugues. Gramsci y el bloque histórico. Siglo XXI. 1992.
27
En una nota sobre el “estado gendarme”, se advierte este movimiento social que desarticula la
exterioridad de sus términos. Gramsci sostiene que en esa concepción. “Seguimos en el terreno
de la identificación entre estado y gobierno, identificación que consiste precisamente en una
resurrección de la forma corporativo-económica, o sea, de la confusión entre sociedad civil y
sociedad política, pues hay que observar que en la noción general de estado intervienen
elementos que hay que reconducir a la noción de sociedad civil (en el sentido, pudiera decirse, de
que Estado=sociedad política + sociedad civil, o sea, hegemonía acorazada con coacción). En una
doctrina que conciba al estado como tendencialmente susceptible de agotamiento y de resolución
en la sociedad regulada, el tema es fundamental. El elemento estado-coacción puede concebirse
en un proceso de agotamiento a medida que se afirman elementos cada vez más importantes de
sociedad regulada (o estado ético, o sociedad civil)”. En otra nota, donde el sardo parece estar
reflexionando sobre la afirmación que hacen Marx y Engels en el Manifiesto, acerca del carácter
La Globalización como Trama Jerárquica
181
pero también la metáfora arquitectónica de la base y la superestructura 28.
Como vimos, los procesos económicos, políticos y culturales que están
fabricando la trama de mundialidad, que se sintetizan en el término globalización,
implican una forma de articulación de esos procesos. Por eso, nos interesa aquí,
más que intentar una exégesis de los textos del revolucionario italiano 29,
desplegar radicalmente el dinamismo, espacialidad y relacionalidad de los
conceptos gramscianos 30, para pensar la trama jerárquica de la globalización
como lógica de dominación política, económica y cultural, pero también en su
apertura histórica. Desde este último ángulo, la radicalización de los conceptos
gramscianos, nos muestra a la globalización como el terreno en el cual surgen y
se articulan, para revertir la dirección hegemónica del proceso, cada vez más
revolucionario (en el sentido de revolucionar los modos de producción precapitalistas, etc.,), define
a la propia hegemonía como movimiento, pretensión de universalidad y expansividad: “La clase
burguesa se pone a sí misma como organismo en movimiento continuo, capaz de absorber toda la
sociedad, asimilándola a su nivel cultural y económico: toda la función del estado se transforma; el
estado se hace “educador”, etc.” Ver Gramsci, An tonio. Antología. Op.cit. pgs. 291 y 316
respectivamente.
28
Perry Anderson, en Las antinomias de Antonio Gramsci, enfatiza que en los Quaderni, aparece
una relación estado-sociedad civil oscilante, según la coyuntura o articulación histórica analizada:
el estado está en una relación “equilibrada”; es solamente una “superficie exterior” de la sociedad
civil; es la “estructura masiva”, que cancela la auto-nomía de la sociedad civil. Derivan de estas
distintas situaciones, diferentes respuestas políticas posibles desde la perspectiva de las clases
subalternas. Anderson, Perry. Las antinomias de Antonio Gramsci. Cuadernos del Sur n°. 6. 1987.
pg. 19.
29
Dado que su obra constituye un texto abierto (como todo texto), pero en este caso, cuyo
carácter no sistemático hay que enfatizar, especialmente en lo que hace a su etapa carcelaria,
pero también en su producción anterior, ya que Gramsci no escribía para la academia sino que lo
hacía al calor de las luchas de su tiempo. Su escritura es una escritura práxica.
30
En este sentido en los últimos años, numerosos pensadores críticos, han propuesto una
renovada lectura de las categorías gramscianas desde el materialismo histórico, y a veces, desde
su intersección con otras tradiciones teóricas. Ver por ejemplo, las ideas de “marxismo sin
garantías” en Stuart Hall, “materialismo posmoderno” en David Ruccio y Antonio Callari,
“materialismo aleatorio” en el último Louis Althousser, y la interpretación que hace Antonio Negri
de este término, y la radicalización del concepto de Hegemonía en Ernesto Laclau y Chantal
Mouffe (aunque en el caso de Laclau, su concepción, luego de escribir junto a Mouffe, Hegemonía
y estrategia socialista, se ha desplazado cada vez más hacia un reduccionismo de la hegemonía a
sus formas de discursividad ideológico-política). Desde el punto de vista de la materialidad de la
lucha ideológica, dos trabajos importantes son el de Göran Therborn y Mabel Thwaytes Rey. Ver
respectivamente, Hall, Stuart. The problem of ideology: marxism without guarantees. En: Morley,
David y Chen, K.H. (eds.). Stuart Hall: Critical dialogues in cultural studies. Routledge. 1996. pgs.
25/46. Callari, Antonio y Ruccio, David. Postmodern materialism and the future of marxist theory.
Essays in the althusserian tradition. Wesleyan University Press. 1996. pgs. 1/45. Negri, Antonio.
Notes on the evolution of the thought of the later Althousser. En: Callari, Antonio y Ruccio, David.
Ibid. pgs. 51/68. Laclau, Ernesto y Mouffe, Chantal. Hegemonía y estrategia socialista. Hacia una
radicalización de la democracia. Siglo XXI. 1987. Therborn, Göran. La ideología del poder y el
poder de la ideología. Siglo XXI. 1989. Thwaytes Rey, Mabel. La noción gramsciana de
hegemonía en el convulsionado fin de siglo. Acerca de las bases materiales del consenso. En:
Ferreira, Leandro, Logiudice, Edgardo y Thwaytes Rey, Mabel. Gramsci mirando al Sur. Sobre la
hegemonía en los 90. Kohen y Asociados. 1994. pgs. 15/84.
182
Alejandro Medici
luchas de dignidad humana.
La construcción de contrahegemonía, puede entenderse desde esta
perspectiva como la articulación de las luchas emancipatorias en diversos
espacio-tiempos sociales, por que lo importante de un marco categorial
neogramsciano es, más que una topografía estática de lo social, el
desplazamiento de las fronteras, la subversión de los tiempos y de las técnicas,
es decir, lo que Joaquín Herrera Flores denomina la construcción de espacios
sociales ampliados 31, desde los que afirmar y consolidar esas luchas por la
dignidad humana. La metáfora gramsciana acerca de las estrategias de “guerra
de maniobras”, y de “posiciones”, ha sido correctamente vinculada a la discusión
estratégica contemporánea de Gramsci acerca de las condiciones de la revolución
en Europa Occidental32.
Sin embargo, analizada desde su aspecto de movimiento o dinamismo en
el espacio absoluto, de relacionalidad compleja de la globalización, puede servir
para pensar las guerras de posiciones que van subvirtiendo los espacios
relacionales y geográficos para articular las luchas frente a la trama jerárquica de
la globalización.
31
Herrera Flores, Joaquín. Feminismo y materialismo: hacia la construcción de un “Espacio Social
Ampliado”. En: Sánchez Rubio, David, Herrera Flores, Joaquín y de Carvalho, Salo. Anuario
iberoamericano de direitos humanos. (2001/2002). Lumen- Juris. 2002. pgs. 321/364.
32
Nos referimos a los ampliamente conocidos y comentados párrafos de Gramsci donde por
Oriente y Occidente debe entenderse la diferencia entre las articulaciones sociales de Rusia y de
los estados de Europa Occidental, analizada por Gramsci en perspectiva histórico-estratégica,
siendo que “En Oriente, el estado lo era todo, la sociedad civil era primaria y gelatinosa; en
Occidente; en cambio, había una correlación eficaz entre el estado y la sociedad civil, y en el
temblor del Estado podía de todos modos verse en seguida una robusta estructura de la sociedad
civil. El estado era una trinchera avanzada detrás de la cual se encontraba una robusta cadena de
fortalezas y fortines; con diferencias entre los Estados, naturalmente, pero eso era precisamente lo
que requería un cuidadoso reconocimiento de carácter nacional”. Gramsci, Antonio. Antología.
Op.cit. pg.284. Para Juan Carlos Rubinstein, esta diferenciación, concerniente a los “complejos
estado-sociedad civil”, pretendió señalar una diferente estrategia a seguir según que aquellas
pertenecieran a lo que hoy se conoce como “periferia” –“Oriente”- de lo que corresponde a los
“centros” –“Occidente”-.Para los países “periféricos” la estrategia se centraba en la lucha tendiente
a conquistar, en una “guerra de movimiento”, los “aparatos” del “estado propiamente dicho”, por la
gelatinosidad o inexistencia virtual de una “sociedad civil”; en cambio, para los “centrales” la lucha,
más lenta, ardua y fundamentalmente de desgaste, se traducía en una “guerra de posición”...que
se concretaba en la construcción y afirmación de las “trincheras” y “casamatas” propias (partidos
políticos de masa, sindicatos económicamente fuertes, organizaciones cooperativas, etc.) y en la
conquista de las correspondientes a “las reservas organizativas de la clase dominante”, mediante
un asedio permanente de esas “trincheras” y “casamatas” para ablandarlas y una concentración
inaudita de “hegemonía” en su doble acepción de “dirección” política de la lucha revolucionaria,
liderada por la clase obrera, y de “ideología” en el desarrollo de una “concepción del mundo”
alternativa) para inclinar la balanza de la relación de fuerzas a su favor”. Rubinstein, Juan Carlos.
“Reflexiones en torno a la sociedad civil”. Editorial de la U.N.L.P. 1995. pgs. 37/38.
La Globalización como Trama Jerárquica
183
Aplicando el concepto gramsciano de hegemonía a las relaciones
internacionales, Robert Cox sostiene que las relaciones de poder global,
geoeconómicas
y
geopolíticas
pueden
rastrearse
hasta
las
tendencias
“orgánicas”, de largo plazo, de las relaciones sociales 33. La aplicación de los
conceptos gramscianos tiene la virtualidad, como vimos, de desbordar el marco
clásico de la interestatalidad en las relaciones internacionales, que toma al estado
como unidad básica de las mismas. El concepto de estado ampliado desborda
hacia arriba y hacia abajo, ya que incluye las bases y fuerzas sociales del estado
que se localizan y/o globalizan.
Al mismo tiempo, este marco categorial sirve para pensar, como lo hizo
Gramsci en sus escritos sobre la “cuestión meridional”, la interrelación entre la
influencia externa que sufre un estado, y las desigualdades económicas y sociales
que lo desgarran por dentro. La vida económica de las naciones subordinadas es
penetrada por y entretejida con la de las naciones poderosas. Esta articulación es
compleja,
dada
la
existencia
al
interior
de
los
estados
de
regiones
estructuralmente diversas que tienen patrones distintos de relación con las
fuerzas exteriores 34.
Según Cox, en el pensamiento de Gramsci, las revoluciones burguesas en
Inglaterra, Francia, Estados Unidos y la revolución proletaria y popular en Rusia,
constituyeron fenómenos históricos que desbordaron para expandirse más allá de
las fronteras nacionales generando fuerzas sociales e ideológicas que
conmovieron la arena internacional, influyendo en lo que Wallerstein llama la
geocultura mundial. Otros países, receptores de estos procesos a través de
grupos sociales y estratos intelectuales dominantes, toman y difunden esas ideas
originadas de una transformación económica y social previa y externa, y no de un
33
En una nota titulada “Análisis de las situaciones. Correlaciones de fuerzas”, Gramsci sostiene
que “Los elementos de observación empírica que comúnmente se exponen en confusión en los
tratados de ciencia política...tendrían que situarse, en la medida en que no sean cuestiones
abstractas o en el aire, en los varios grados de correlaciones de fuerzas, empezando por las
correlaciones de las fuerzas internacionales (en esta sección habría que colocar las notas escritas
acerca de lo que es una gran potencia, las agrupaciones de estados en sistemas hegemónicos y,
por tanto, acerca del concepto de independencia y de soberanía por lo que hace a las potencias
pequeñas y medias), para pasar a las correlaciones objetivas sociales, o sea, al grado de
desarrollo de las fuerzas productivas, a las correlaciones de fuerzas políticas y de partido
(sistemas hegemónicos en el interior de los Estados) y a las correlaciones políticas inmediatas (o
sea, potencialmente militares). Gramsci, Antonio. Antología. Op.cit. pg.409.
34
Cox, Robert. Gramsci, hegemony and international relations: An essay in method. En: Gill,
Stephen. (ed.) Gramsci, historical materialism and international relations. Op.cit. pg. 58.
184
Alejandro Medici
grupo social indígena comprometido en la construcción de una nueva estructura
de relaciones sociales. En consecuencia, el pensamiento de ese grupo
dominante, es construido de forma idealista, sin relación con procesos domésticos
de desarrollo, y su concepción del estado, como en el caso de Benedetto Croce,
toma la forma de un “racional absoluto”35.
Aplicando estas premisas al concepto hegemónico de orden mundial,
sostiene que este se basa no solamente en la regulación del conflicto interestatal,
sino también de una sociedad civil concebida globalmente, un modo de
producción de extensión global que produce vínculos entre las clases y demás
grupos sociales de los estados que abarca. Históricamente, las hegemonías de
este tipo están fundadas por estados poderosos que han atravesado una
revolución (activa o pasiva) y desatado energías que se expanden más allá de las
fronteras. Una hegemonía mundial es la expansión de la hegemonía interna
establecida por los grupos sociales dominantes. Las instituciones económicas y
sociales, la cultura, la tecnología asociada con esta hegemonía nacional devienen
parámetros de emulación. Esa hegemonía expansiva penetra en los complejos
estado-sociedad civil periféricos como una “revolución pasiva”.
Estos estados, no han pasado por la misma revolución social, ni tienen sus
economías desarrolladas de la misma forma, pero tratan de incorporar elementos
del modelo hegemónico sin perturbar las viejas estructuras de poder. Mientras
que los estados periféricos pueden incorporar algunos aspectos económicos y
culturales del centro hegemónico, tienen menos capacidad para adoptar sus
modelos políticos. La hegemonía mundial es más intensa y consistente en el
centro y más inestable y contradictoria en la periferia, donde el nivel de coerción
económica
y política
para
imponerla, es
mayor 36.
Sin embargo,
esta
subordinación frecuentemente aparece ideológicamente deformada a través de la
pantalla del nacionalismo 37.
35
Cox, Robert. Ibid. pg. 59.
Cox, Robert. Ibid. pg. 61.
37
En la mismo nota citada, unos párrafos más adelante, el sardo sostiene: “Cuando más
subordinada está la vida económica inmediata de una nación a las relaciones internacionales,
tanto más representa un partido esa situación y la aprovecha para impedir la llegada de los
partidos adversarios al poder...a menudo el llamado “partido del extranjero” no es precisamente el
que se indica como tal, sino el partido más nacionalista, el cual, en realidad, más que representar
las fuerzas vitales del país, representa la subordinación y sometimiento económico a las naciones
o a un grupo de naciones hegemónicas”. Gramsci, Antonio. Antología. Ibid. pg. 409/410.
36
La Globalización como Trama Jerárquica
185
La hegemonía mundial desde esta perspectiva,
es describible como una estructura social, económica y política, y
no puede ser reducida a uno de estos aspectos... se expresa en
normas, instituciones y mecanismos universales que establecen
reglas generales de conducta para los estados y aquellas fuerzas
de la sociedad civil que actúan a través de las fronteras
nacionales, reglas que sostienen el modo de producción
dominante 38.
Por su parte, Giovanni Arrighi 39, traza un interesante puente entre la teoría
de los sistemas mundiales y la teoría neogramsciana de la economía política
global, analizando las tendencias seculares en el desarrollo de largo plazo de los
ciclos hegemónicos, y enriqueciendo un concepto de hegemonía aplicable a la
actual trama jerárquica de la globalización. La hegemonía en el sistema mundial
es más que la simple dominación. Consiste en la capacidad de generar un
liderazgo intelectual y moral, y de hacer pasar los intereses de los grupos
dominantes como universales. Esta pretensión, es siempre más o menos
fraudulenta, pero la relación hegemónica se produce cuando tiene algún viso de
realidad, y por consiguiente, consigue credibilidad 40.
Para Arrighi, desde que la hegemonía, normal y etimológicamente, se
refiere a relaciones interestatales, es muy posible que Gramsci use el término
metafóricamente para clarificar relaciones entre grupos sociales a través de una
analogía con relaciones entre estados. Por eso, transponiendo el concepto
gramsciano de hegemonía de las relaciones intraestatales a las interestatales,
puede ser que simplemente estemos recorriendo en reversa el proceso mental del
sardo. Al hacerlo, se presentan dos requisitos para la construcción de hegemonía
en el sistema mundial: Primero, ésta debe basarse en un liderazgo que oriente el
sistema hacia una dirección y al hacerlo, que sea percibido como si actuase en
interés universal. Segundo, la hegemonía debe expandir el poder colectivo de los
dominadores en relación a los sujetos, en cuyo caso estamos ante una
hegemonía regresiva. A la inversa, si el liderazgo hegemónico puede pretender
38
Cox, Robert. Ibid. pg. 62. Traducción propia.
Arrighi, Giovanni. The three hegemonies of historical capitalism. En: Gill, Stephen. Gramsci,
historical materialism and international relations. Op.cit. pg.148 y ss.
40
Arrighi, Giovanni. Ibid. pg. 149.
39
186
Alejandro Medici
con credibilidad, que la expansión de su poder relativo a algunos o a los otros
estados es en el interés general de los sujetos de esos estados, estamos ante
una hegemonía progresiva, que incorpora molecularmente, resignificándolas,
algunas de las reivindicaciones y necesidades de los grupos subalternos41.
Al analizar los ciclos hegemónicos, con sus fases de consolidación,
seguidas de decadencia y desorden sucesorio desde los orígenes del capitalismo,
Arrighi encuentra tendencias de largo plazo. Halla que las lógicas de los
acumuladores de capital y la de los gobernantes territoriales, y la espacialidad que
tienden a construir, han sido contradictorias desde el origen de la economía
mundo capitalista. Las sucesivas hegemonías mundiales aparecen entonces,
como un arreglo o mediación entre estas dos lógicas, haciendo y rehaciendo el
sistema mundial para resolver la contradicción recurrente entre la acumulación de
capital sin límites y la comparativamente más estable organización del espacio
político, articulando el mundo de los estados soberanos con las redes de
acumulación de capital 42.
En este entendimiento, es central la definición de capitalismo y
territorialismo como lógicas de poder opuestas. Los soberanos territoriales
identificaban el poder con la extensión del territorio y la cantidad de población en
sus dominios y concebían la riqueza como un medio o un subproducto de la
expansión territorial. Los capitalistas, en cambio, identificaban el poder con la
extensión de su dominio sobre recursos escasos y consideraban las adquisiciones
territoriales como medios o un subproducto para la acumulación de capital sin
límites 43.
Por otra parte, en los períodos de caos sistémico que suceden al declive
del estado hegemónico y anteceden al establecimiento de una nueva hegemonía,
se producen dos dinámicas incrementales: en sus guerras, los competidores por
la hegemonía, en la medida en que el espacio abarcado por la economía-mundo y
la densidad del sistema interestatal se ha ampliado, involucran a más pueblos y
grupos sociales. Las rebeliones populares y la emergencia de movimientos
antisistémicos, que en perspectiva de largo plazo eran instrumentalizadas para el
41
Arrighi, Giovanni. Ibid. pgs. 150/151.
Arrighi, Giovanni. Ibid. pg. 154.
43
Arrighi, Giovanni. Ibid. pg. 155.
42
La Globalización como Trama Jerárquica
187
lanzamiento de la nueva hegemonía y luego de establecida ésta, rápidamente
sofocadas, se hacen cada vez más difíciles de controlar y expanden su alcance y
conflictividad. Esta aceleración de la historia social se debió a la creciente
socialización del estado y de los esfuerzos de construcción del mundo por parte
de los grupos dirigentes, que precisaban, para su viabilidad, cada vez más
consentimiento de los grupos subalternos.
En la medida en que círculos de sujetos cada vez más amplios
eran movilizados directamente o indirectamente en esos
esfuerzos, más rápidamente el conflicto interestatal generó
rebeliones populares en relación con la distribución de los costos y
los beneficios de esos esfuerzos 44.
El reverso de esta tendencia a la aceleración de la historia social, es lo que
Raymon Aron llamó la desaceleración de la historia política. La socialización de la
guerra y de la construcción del estado incrementó, para los grupos dirigentes, los
costos y riesgos de sus antagonismos mutuos. De ahí que, según Arrighi, la
próxima lucha por el relanzamiento de la hegemonía mundial, tomará una forma
más condensada y saltará la fase del conflicto armado entre grandes poderes. Al
final de su ensayo, que data de 1993, Arrighi sugiere que el caos puede estar
comenzando, –aunque no lo notemos, dada la lentitud que para nuestro tiempo
vital entrañan los ciclos hegemónicos–, en este caso, no como resultado de la
agudización del conflicto interestatal, sino como consecuencia de la tendencia a
su superación por el surgimiento de formas de organización y poder supraestatal
y la proliferación de sujetos no estatales45. Es decir, eso que venimos llamando
globalización.
Siguiendo el razonamiento de Arrighi, esta nueva etapa de la mediación
hegemónica entre espacialidad del capital y espacialidad territorial, –es decir, la
lógica topográfica de los continuos espaciales territoriales y la lógica topológica de
las discontinuidades, las segmentaciones y las redes de producción, información y
comunicación–, pareciera estar destinada a resolverse por una hegemonía que
articule una espacialidad absoluta, emergente de la crisis de la soberanía nacional
y la refuncionalización de la estatalidad “post-westfaliana”.
44
45
Arrighi, Giovanni. Ibid. pg. 184. Traducción propia.
Arrighi, Giovanni. Ibid. pg. 185.
188
Alejandro Medici
Esta hegemonía que impone una espacialidad absoluta, es lo que estamos
tratando de comprender como trama jerárquica de la globalización, lo que Antonio
Negri y Michael Hardt, llaman “Imperio”.
A través de las transformaciones contemporáneas, los controles
políticos, las funciones estatales y los mecanismos regulatorios
han continuado rigiendo el campo de la producción social y
económica y el intercambio. Nuestra hipótesis básica es que la
soberanía ha tomado una nueva forma, compuesta por una serie
de organismos nacionales y supranacionales unidos bajo una sola
lógica de dominio. Esta nueva forma de soberanía global es lo que
llamamos Imperio 46.
Esta espacialidad absoluta de la globalización 47, supone que ya no hay una
arena exterior al sistema mundial del capitalismo histórico, y que por lo tanto, la
impugnación, resistencia y construcción de contrahegemonía tendrán a la
globalización directa o indirectamente, explícita o implícitamente, como escenario
46
Hardt, Michael y Negri, Antonio. Empire. Op.cit. pg. xii. Traducción propia. Aunque Hardt y Negri
critican la tendencia, por parte de Arrighi, a considerar las luchas del presente simplemente en el
marco de las crisis cíclicas de acumulación y hegemonía del sistema del capitalismo histórico,
como mera repetición de las fluctuaciones estructurales de este. Por nuestra parte, creemos que
las tendencias seculares de largo plazo constituyen un marco del cual parte la acción humana y no
un determinante, y que se pueden compatibilizar las tendencias diacrónicas con el análisis de las
tendencias sincrónicas de la globalización capitalista. Por otra parte, Wallerstein, Arrighi, ChaseDunn y otros teóricos del world system, reconocen la apertura histórica y la imposibilidad de
pronosticar que sucederá en los próximos 50 años, que no será mera repetición de ciclos
históricos anteriores. Estos autores reconocen, por medio de sus análisis históricos, como el de
Arrighi, que acabamos de comentar, que estamos tal vez ante un período de transformación del
sistema mundial, ya que los patrones de fluctuación de las tendencias seculares toman una
dinámica incremental que exceden los límites de compatibilidad del sistema, lo que se expresa en
una creciente corrosividad sociopsicológica y ecológica, al decir de Wallerstein. Ver Hardt, Michael
y Negri, Antonio. Ibid. pgs. 237/239. Wallerstein, Immanuel. Después del liberalismo. Op.cit.
pg.168/169.
47
Como explican Hardt y Negri, basándose en Marx, Rosa Luxemburgo, Hilderfing, Kautsky y
Lenin, la contradicción entre realización y acumulación de capital, hacía que el capitalismo
necesitara expandir su esfera de circulación constantemente y por lo tanto, que necesitara una
esfera exterior, mercados para conquistar, trabajo, maquinarias e insumos baratos para relanzar el
ciclo. Pero en su expansión, el capital no se limita a extraer recursos y fuerza de trabajo de arenas
no capitalistas, sino que es exportado para extraer plusvalor en la periferia. Esto es lo que se llama
capitalización. En esta actividad de capitalización, relanza el proceso de acumulación primitiva
continuamente, transforma en capitalistas sus entornos no capitalistas, que son subsumidos
formalmente dentro de ese modo de producción. Pero entonces, la capitalización pone un límite
para la realización y viceversa. En ese sentido, las fronteras o división del mundo impuestas por el
imperialismo, se transforman en un momento determinado en una obstáculo para la concreción de
la tendencia inscrita en la lógica del capital a la realización de un mercado mundial. El capital debe
eventualmente trascender las barreras del imperialismo y destruir la distinción entre un afuera y un
adentro. Una vez que ya no hay afuera, la contradicción entre capitalización y realización se
agudiza, se profundiza el proceso de comodificación de más y más aspectos de la vida, y la
corrosividad social y ecológica del capitalismo aumenta exponencialmente. Hardt, Michael y Negri,
Antonio. Empire. Op.cit. pgs. 219/239.
La Globalización como Trama Jerárquica
189
y objeto de conflicto.
b) La hegemonía supone, en su fundamento material, un régimen de
producción y reproducción de la vida.
En tanto que ejercicio de la dirección intelectual y moral, posibilitado por el
carácter económico fundamental de una clase o grupo social que aparece como
organizadora de la sociedad de su época, la hegemonía supone una cierta
estructuración jerárquica de necesidades valoradas, de los medios para su
satisfacción, y un cierto régimen para su imputación. Es el contexto que nos dice
el qué y el cómo acerca de la satisfacción o insatisfacción de las necesidades que
hacen a la producción y la reproducción material de la vida, las instituciones y
normas que son necesarias para ello, y las ideologías justificatorias.
En los contextos hegemónicos de sociedades escindidas en clases
sociales y otras formas de asimetría política, de género, étnica, religiosa, etc., el
régimen de administración de necesidades es también un conjunto de técnicas y
dispositivos biopolíticos de administración de la vida, y por lo tanto, de la muerte.
Estos dispositivos, en forma de normas, instituciones, saberes, regímenes de
verdad, generalmente no son cuestionados por las discusiones que forman el
ámbito formal de “lo político”, ya que se reproducen en espacios “productivos”,
“domésticos”, “privados” o “disciplinarios” 48, pero que están profundamente
arraigados como una “política de la vida” en el sentido común, es decir, esa visión
48
En una nota titulada “Racionalización de la producción y del trabajo”, (y en general en todas sus
notas carcelarias sobre “americanismo y fordismo”, el pensador italiano reflexiona sobre estos
mecanismos disciplinarios y su carácter (diríamos hoy) de dispositivos de poder en el espacio
productivo desde el cual se construía una moralidad y una determinada concepción del mundo y
de la sociedad. Captar el movimiento del pensamiento gramsciano su tendencia a escudriñar más
allá de los límites sociales establecidos (lo político y lo económico, lo público y lo privado), supone
extender su mirada crítica a todos los espacios sociales en que encontremos dispositivos de
control y de disciplina, en lo que Gramsci se presenta como continuador de los maestros de la
sospecha, de Marx principalmente, pero por su actitud también de Freud y de Nietzche, y punto de
referencia para los cultores de esa actitud teórica y práctica crítica contemporánea: como Michel
Foucault, Gilles Deleuze, Félix Guattari y Antonio Negri. En dicha nota Gramsci sostiene que:
“...los nuevos métodos de trabajo son inseparables de un determinado modo de vivir, de pensar y
de sentir la vida;...En América la racionalización del trabajo y el prohibicionismo son cosas
indudablemente relacionadas : las encuestas de los industriales sobre la vida íntima de los
obreros, los servicios de inspección creados por algunas empresas para controlar la “moralidad”
de los obreros, son necesidades del nuevo método de trabajo. El que se burle de estas
iniciativas...y no vea en ellas más que un a hipócrita manifestación de “puritanismo”, se niega toda
posibilidad de comprender la importancia, la significación y el alcance objetivo del fenómeno
norteamericano, que es, entre otras cosas, el mayor esfuerzo colectivo realizado hasta ahora por
crear, con rapidez inaudita y con una consciencia jamás vista en la historia, un nuevo tipo de
trabajador y de hombre”. Gramsci, Antonio. Antología. Op.cit. pgs. 475/476.
190
Alejandro Medici
acrítica, fragmentaria, incoherente del mundo que los hombres recogen en los
diversos ambientes intelectuales y morales en los que se desenvuelve su vida 49,
sobre el que se cimienta y sedimenta la hegemonía social.
Las posiciones que reducen la cuestión de la hegemonía a un problema
que gira en torno de las ideologías políticas y el estado 50, no captan este tipo de
mecanismos hegemónicos que trascienden las topografías simples de lo social y
para los que necesitamos el nomadismo constante de una forma de pensar
gramsciana, que sustenta la posibilidad de la praxis contrahegemónica en la
disolución de esas cartografías estáticas y reductoras, mostrando que puede y
49
Pero por eso mismo potencialmente crítica. En ese sentido, Gramsci decía que “todos los
hombres son filósofos”. “Conviene destruir el muy difundido prejuicio de que la filosofía es una
cosa muy difícil por el hecho de ser actividad intelectual propia de una determinada categoría de
científicos especializados o de filósofos profesionales y sistemáticos. Conviene, por tanto,
demostrar preliminarmente que todos los hombres son “filósofos”, definiendo los límites y la
categoría de esta “filosofía espontánea” propia de “todo el mundo”, o sea de la filosofía contenida:
1) en el mismo lenguaje, que es un conjunto de nociones y de conceptos determinados, y no ya
sólo de palabras gramaticales vacías de contenido; 2)en el sentido común y en el buen sentido;
3)en la religión popular y también, por tanto, en todo el sistema de creencias, supersticiones,
opiniones, modos de ver y de obrar que desembocan en lo que generalmente se llama “folklore”.
Una vez demostrado que todos los hombres son filósofos...se pasa al segundo momento, al
momento de la crítica y de la consciencia, o sea, a la cuestión ¿es preferible “pensar” soin tener
consciencia crítica de ello, de un modo disgregado y ocasional, o sea, “participar” de una
concepción del mundo “impuesta” mecánicamente por el ambiente externo...o es preferible
elaborar uno su propia concepción del mundo conciente y críticamente...participar activamente en
la historia del mundo...? Ver Gramsci, Antonio. Antología. Ibid. pgs. 364/365.
50
Enrique Dussel, desde la filosofía de la liberación, problematiza esta cuestión al criticar el
trabajo de Laclau, quien, justamente, incurre en este tipo de reduccionismo politicista de la
hegemonía. Dussell sostiene que “la reproducción de la vida de los participantes de la lucha
hegemónica es la condición de posibilidad absoluta insubvertible de la misma hegemonía”.
Compartiendo en general esta posición desde una perspectiva materialista, creemos que debe ser
matizada: la hegemonía como régimen de administración de la vida y la muerte, puede suponer la
invisibilización de segmentos o minorías de la población al margen del consenso ideológico
hegemónico de la sociedad. Para esos sectores, la administración de la economía de la fórmula
del estado ampliado, “hegemonía acorazada de coerción”, puede pasar mucho más por el
segundo término, es decir, el de la coacción económica, moral o física incluso llevada hasta la
administración ordinaria de la muerte en ese grupo social, como sucede por ejemplo, con los
inmigrantes que cotidianamente se arriesgan a atravesar las fronteras militarizadas entre el Sur y
el Norte a través, por ejemplo, del estrecho de Gibraltar o la frontera entre México y Estados
Unidos. La clausura de los estados de bienestar es un régimen de administración de la muerte que
se realiza, hasta ahora, sin alterar el consenso hegemónico de las sociedades de bienestar. De
esta forma, Dussel, cuya crítica a Laclau compartimos, construye, sin embargo, una relación de
exterioridad entre el “principio ético material de producción y reproducción de la vida”, y la
hegemonía, con el efecto paradójico de que, por un camino diverso, termina también reduciendo la
misma a lo político. El problema es que estas cuestiones, creemos, deben ser planteadas de
forma histórica y relacional, desde la deconstrucción y contrapropuesta a partir de éticas
materiales que surgen desde las coyunturas y situaciones reales. Una situación del tipo “o bien
hegemonía y vida, o bien coacción y muerte”, es una disyuntiva abstracta. Cualquier sociedad que
se plantee una disyuntiva de ese tipo, estará en un régimen de dominación abierto o en una guerra
civil, más que en una situación de hegemonía. Ver Dussell, Enrique. Hacia una filosofía política
crítica. Op.cit. pg. 206/207.
La Globalización como Trama Jerárquica
191
debe cuestionarse la administración hegemónica de la producción y reproducción
de la vida, que puede y debe democratizarse radicalmente el proceso de
selección, jerarquización, imputación y satisfacción de necesidades.
La globalización, sobredetermina todos los espacios de producción y
reproducción de la vida y al hacerlo, jerarquiza autoritariamente las necesidades.
Bajo el velo de la ideología neoliberal hegemónica se hallan las necesidades de la
acumulación mundial de capital a las que se subsumen las de los pueblos, grupos
y clases oprimidas. Los medios, formas y entornos de vida y satisfacción de
necesidades, hasta ahora considerados comunes, como por ejemplo el agua y la
tierra, los bienes y espacios públicos, como la salud, la educación, los lugares
públicos, los conocimientos ancestrales de los poblaciones indígenas y
tradicionales, están sometidos a un proceso expansivo que los subsume cada vez
más como mercancías.
El proceso de globalización hegemónica actual, para poder sostenerse sin
transformaciones radicales, necesita, como demuestra Susan George en el
Informe Lugano 51, una biopolítica que pasa por la reducción administrada de la
producción y reproducción de la vida de millones de seres humanos. Pero la
espacialidad absoluta de la globalización, al derribar muchas de las barreras y
soluciones del pasado en la topografía del sistema mundial, provoca posibilidades
inéditas para la construcción contrahegemónica de los grupos sociales cuyas
necesidades radicales o radicalizadas 52, no pueden ser satisfechas en el actual
contexto global.
c) Las relaciones hegemónicas globales son articuladas por un bloque
histórico que se expresa no solamente a través de una alianza de clases y
fracciones de clases, las asimetrías del sistema interestatal y de instituciones
nacionales e internacionales, sino también en relaciones y fuerzas de la “sociedad
civil global”.
51
George, Susan. Informe Lugano. Icaria. 2001.
Necesidades radicales o radicalizadas son aquellas que van surgiendo en interacción dinámica
con el proceso de trabajo (en sentido amplio como actividad humana encaminada a la producción
y reproducción de la vida en la interacción natural y social) y el proceso de valoración, es decir, de
adscripción de preferencias sociales generalizadas, cuya puesta en práctica y reconocimiento se
hace difícil para la lógica capitalista basada en la explotación, la miseria y la destrucción del
hábitat. Cfr. Herrera Flores, Joaquín. Los derechos humanos desde la Escuela de Budapest.
Tecnos. 1989. pg. 84 y ss. También de Heller, Agnes. Teoría de las necesidades en Marx.
Catedra. 1998 y Una revisión de la teoría de las necesidades. Paidos.1996.
52
192
Alejandro Medici
La hegemonía es ejercida al interior de una amplia constelación social y
política de fuerzas, o bloque histórico. Este concepto se refiere a la congruencia
histórica de fuerzas materiales, institucionales e ideológicas, e incluye, aunque no
se reduce a, una alianza de diferentes clases sociales. Iluminado desde su
determinación sociológica, consistiría en un núcleo central transnacionalizado de
sectores sociales de mayor o menor importancia relativa según cada “complejo
estado-sociedad civil”, su posición central o periférica, etc. Estos sectores
comparten una cultura y un estilo de vida comunes que es mucho mayor que la
posibilidad de comunicación de esos sectores con sus coterráneos obreros,
desempleados, campesinos o marginados53.
El concepto de bloque en Gramsci, surge para designar la forma de unidad
o relación entre lo económico, lo cultural y lo político en la hegemonía de grupos
sociales en un momento histórico, impugnando de esta forma el reduccionismo y
determinismo economicista que predominaba entonces en las Segunda y Tercera
internacionales. 54
Es un concepto que no debemos imaginar como monolítico, sino como una
estructura abierta, una articulación, suponiendo entonces una trama de relaciones
con puntos fijos, o fijaciones más rígidas y duraderas (nunca perennes) y partes
móviles o fluidas. Tenemos aquí una pista, para trazar una cierta y provisional,
analítica y no ontológica, cartografía del bloque histórico que hegemoniza la
globalización.
La acumulación de capital y la función de dominio político conforman la
trama institucional tejida entre alianzas político militares (Estados Unidos, OTAN)
y relaciones económicas afianzadas por instituciones (FMI, BM, OMC,
corporaciones multinacionales) que funcionalmente desempeñan en el bloque la
función “fija” de comando, o dominio político, más directiva y coactiva, y de
acumulación de capital. Mientras que la “cultura”, (que implica no sólo los
mensajes, sino también los medios, los soportes materiales y técnicos de
producción, reproducción y difusión de productos y objetivaciones culturales),
53
Cfr. Rubinstein, Juan Carlos. Revolución tecnológica, desempleo y debilitamiento de las
sociedades civiles. En El Príncipe. Revista de Ciencia Política. Nro. 3-4. Primavera de 1995. pg.86.
54
“El bloque histórico, que no debe reducirse a una simple alianza entre clases sociales, expresa
el vínculo orgánico que une la estructura económica con las superestructuras jurídico-política e
ideológica..” Aguilera de Prat, Cesáreo Rodriguez. Gramsci y la vía nacional al socialismo.
Akal.1984. Pg.47.
La Globalización como Trama Jerárquica
193
supone la parte “móvil”, “fluida” de la articulación, de construcción de hegemonía
por movilización del consenso 55.
Por lo tanto, un bloque histórico es el vínculo orgánico entre la sociedad
política y la sociedad civil, una fusión de capacidades materiales, institucionales,
intersubjetivas, teóricas e ideológicas. Un bloque histórico exitoso se articula en
torno a un conjunto de ideas hegemónicas que le dan alguna dirección y
coherencia estratégica a sus elementos constitutivos 56.
Este concepto es útil para analizar, en el terreno del orden mundial, sobre
qué constelación histórica de fuerzas descansa el ejercicio de la hegemonía y
cuáles son sus bases materiales, políticas e ideológicas de articulación.
El orden hegemónico de postguerra, estuvo cimentado por un bloque
histórico centrado en los Estados Unidos, que vino a ser la pieza sociopolítica
fundamental de la alianza orgánica occidental de postguerra. El bloque se originó
en la expansión de fuerzas emergentes desde el interior de los Estados Unidos.
Los elementos sociales fundamentales en esta constelación de fuerzas buscaron
internacionalizar los principios del New Deal y las formas asociadas a la
acumulación fordista, es decir, un régimen de acumulación intensivo en capital y
un patrón de consumo masivo, y extender las oportunidades para las
exportaciones y/o la inversión extranjera directa, tanto en manufacturas como en
industrias extractivas. El bloque también comprendía intereses financieros en Wall
Street, que buscaban oportunidades de inversión más amplias en el mundo y un
rol más importante para el dólar. Este bloque articulaba no solamente fracciones
del capital financiero y productivo, sino también grupos en los aparatos de estado,
partidos políticos centristas y sindicatos no comunistas en las principales naciones
capitalistas, y algunos estados y grupos sociales periféricos. Pero además,
descansaba sobre bases normativas, ideológicas e institucionales que estaban
dados por el consenso neocorporativo de postguerra, el estado de bienestar, y la
proliferación de instituciones internacionales con diferentes grados de eficacia, por
55
Pero al mismo tiempo, la que exhibe más contradicciones, ya que sus tópicos legitimadores, por
ejemplo, democracia, derechos humanos, no pueden escapar a una diseminación y diferencia, a
una polisemia y a una resignificación, teniendo puntos de fuga y tensionando en exceso respecto a
los puntos nodales de la articulación que tienen que ver con la acumulación de capital y el dominio
geopolítico del mundo.
56
Gill, Stephen y Law, David. Global hegemony and the structural power of capital. En: Gill,
Stephen. Op.cit. pgs. 93/94.
194
Alejandro Medici
ejemplo, las instituciones de Bretton Woods, las del sistema ONU, etc.
Según Cox57, luego de un proceso de erosión de ese bloque histórico que
comenzó en los 70, durante los 90 comenzó a configurarse de forma cada vez
más clara la emergencia de un nuevo bloque histórico y de un intento de
recomposición de la hegemonía mundial, nuevamente centrado en los Estados
Unidos. El contexto de aparición de este nuevo bloque tiene que ver con la
popularidad de la “gobernancia global”. Bajo este término, pareciera subyacer una
idea de control y orientación sin un poder coercitivo formalmente legitimado. Sin
embargo, detrás de esta apariencia, emerge un bloque histórico nuevo,
articulando las fuerzas económico-corporativas más poderosas, sus aliados en los
gobiernos, y la variedad de redes que envuelven las líneas políticas principales y
la propagación de la ideología de la globalización. Los estados juegan el rol de
agencias de la economía global, con la tarea de ajustar las políticas y las
prácticas económicas nacionales a las exigencias del liberalismo económico
global 58.
Esta estructura de poder es sostenida desde fuera de los estados a través
de un consenso político global y la influencia de las finanzas globales sobre la
política estatal, y desde dentro del estado por aquellas fuerzas sociales que se
benefician de la globalización, los segmentos de la sociedad integrados dentro de
la economía mundial. La competitividad en el mercado mundial es el criterio último
de la política estatal, que justifica el ataque a las conquistas sociales que la lucha
de
los
trabajadores
había
logrado
y
que
habían
sido
parcialmente
institucionalizadas en el período hegemónico anterior. El neoliberalismo es
hegemónico en términos tanto ideológicos como de políticas. Donde la
hegemonía ideológica y política no es suficiente para proteger la estructura de la
gobernancia global, entonces la fuerza militar está disponible cuando un poder
regional trata de ignorarla.
El bloque histórico emergente, desde su centro articulatorio, polariza la
totalidad de los grupos sociales de diferentes formas, integrando segmentos de
57
Cox, Robert. Civil Society at the turn of the millenium: prospects for an alternative word order.
En: Review of International Studies. N° 25. 1999.pg.3 y ss.
58
Cox, Robert. Ibid. pg. 12.
La Globalización como Trama Jerárquica
195
los mismos 59. En cuanto a los grupos dominantes, éstos se articulan a través de
las corporaciones económicas y financieras transnacionales, los bancos
comerciales internacionales, las instituciones formales e informales como el FMI,
BM, OMC, Diálogo Empresario Transatlántico, Foro de Davos, etc.
Gill y Law 60, sostienen que los patrones internacionales de interacción de
las
elites,
funcionarios,
burócratas,
miembros
de
las
organizaciones
internacionales y las redes que generan, no han sido suficientemente investigadas
o explicadas, al menos en comparación con las redes domésticas. Pero
organizaciones como el Diálogo Empresario Transatlántico, el Foro de Davos, los
encuentros de Bilderberg (que datan de 1954) o la Comisión Trilateral (que se
inició en 1973), están explícitamente preocupadas en fomentar la cohesión de la
“comunidad de las finanzas y los negocios”, incrementar las redes de relación y
una perspectiva compartida por las elites de los mayores países capitalistas. Una
interacción similar puede encontrarse en algunas instituciones interestatales,
como por ejemplo, la OCDE, que organiza conferencias e investigaciones
económicas.
Para estos autores, lo que es importante es que hay elementos de una
perspectiva común, al menos con respecto al rol de las empresas e “iniciativa
privada” internacionales, que atraviesa todos estos foros e instituciones 61.
59
Cox identifica tres instancias en los grupos sociales polarizados por el bloque histórico, por un
lado están las elites económicas, financieras, políticas e intelectuales dominantes en lo económico
y que cumplen la tarea hegemónica de dirección intelectual y moral, a través de corporaciones,
instituciones, aparatos ideológicos, think thanks, etc. Existe una “zona gris”, formada por lo que
Cox llama el “mundo secreto”, o covert world, formado por grupos paraestatales o no estatales
como los servicios de inteligencia, las mafias, el narcotráfico, el tráfico de armas y las sectas
religiosas, que se relacionan de formas equívocas con las elites, algunos tienen vínculos directos
con el aparato del estado pero sin responsabilidad democrática, están en una zona opaca y
discrecional del poder. Otros se relacionan con las elites políticas a través de la corrupción y el
financiamiento ilegal de campañas políticas, mientras que muchos de ellos, están en abierta
oposición al mundo “oficial”. Finalmente están los sectores populares urbanos y rurales, de los
cuales sólo se integran en el bloque los trabajadores altamente cualificados, que forman parte
fundamental del diseño sobre qué y cómo se produce, o actúan en servicios tecnológicos,
investigación y desarrollo, etc. Si hasta aquí el análisis de Cox se asemeja mucho al que realiza
Susan Strange en La retirada del estado acerca de estos poderes no estatales, nos parece
importante el énfasis que pone este autor en la relación funcional que existe entre ese “mundo
secreto” y la hegemonía neoliberal que provoca el enflaquecimiento de los espacios públicos y
posibilita la expansión de ese “mundo”. Ejemplos paradigmáticos son los procesos de crisis del
estado en Rusia y América Latina, amplificados por las políticas de ajuste estructural, los servicios
de inteligencia que bajo el amparo de la razón de estado actúan en una zona de sombras, la
corrupción que vincula a las mafias y el tráfico de drogas y armas con las elites políticas.
60
Gill, Stephen y Law, David. Global hegemony and structural power of capital. Op.cit. pg. 103.
61
Gill, Stephen y Law, David. Global hegemony and structural power of capital. Ibid. pgs. 103/104.
196
Alejandro Medici
Por supuesto que hay matices y debates, pero en general, puede decirse
que desde los 70 el énfasis en la política económica ha cambiado, desplazándose
hacia definiciones que son más convergentes con los intereses del capital
transnacional de amplia escala. Por otra parte, las elites activas en redes
transnacionales comparten la lectura de periódicos internacionales como The
Finantial Times, The Economist y The Wall Street Journal. Es indudable que el
proceso de densificación e interacción creciente de las redes de las elites del
capitalismo mundial, es importante a la hora de rastrear las fuentes de la agenda
de políticas que favorecen la operación del capital transnacional62.
Muchos autores sugieren que los elementos mencionados confluyen para
producir una clase o fracción de clase capitalista transnacional, con sus propias
formas de conciencia estratégica, que involucra un horizonte temporal de largo
plazo y consideraciones sobre las condiciones generales bajo las que opera el
capital transnacional. Pero también es cierto que con la creciente financierización
de la economía mundial y el consiguiente poder de la fracción financiera, los
horizontes temporales varían hacia el corto plazo y las operaciones especulativas,
que incluso encuentran apoyos tácitos en funcionarios de la Reserva Federal de
Estados Unidos y fondos en los bancos comerciales internacionales 63.
La noción de “clima de confianza para los negocios y los inversionistas”,
refleja el poder condicionante del capital transnacional sobre las políticas de los
gobiernos. La ubicuidad y movilidad del capital y la universalización de sus pautas
de valoración de las políticas económicas, hacen que el “clima para las
inversiones” de un país sea juzgado con relación al clima que predomina en todas
partes. Las corporaciones multinacionales valoran rutinariamente las libertades
jurídicas (para extraer ganancias y remitir retornos), los costos de producción, las
relaciones laborales, la estabilidad política y las concesiones financieras ofrecidas
por muchos países diferentes. También examinan el tamaño y el crecimiento
potencial del mercado de un país 64.
Esta actividad es conocida como análisis del riesgo económico y político de
las inversiones, y las corporaciones multinacionales en realidad lo delegan en las
62
Gill, Stephen y Law, David. Ibid. pg. 104.
Al respecto, ver Gowan, Peter. La apuesta de la globalización. Op.cit. pgs. 86/139.
64
Gill, Stephen y Law, David. Op.cit. pg.105.
63
La Globalización como Trama Jerárquica
197
seis grandes firmas de consultoría internacional: Price Waterhouse, Peat Marwick
Mc Clintock, Coopers y Librand, Ernst & Young, Deloitte Touche Tohmatsu y
Arthur Andersen. Entre todas ellas, realizan la auditoría de 96 de las 100 mayores
empresas británicas y de 494 de las 500 de Fortune. Sus ingresos mundiales
solamente por emolumentos, sumaban a 1997, 30.000 millones de dólares, es
decir el PBI de Irlanda o un poco menos del presupuesto nacional de Argentina
para el 2002 65.
Estas grandes empresas consultoras, que son descendientes gigantescos
de las modestas funciones de contabilidad empresaria y auditoría privada en los
procedimientos de quiebra de las empresas domésticas inglesas del siglo XIX,
además de sus funciones de consultoría, cuando son contratadas por los
gobiernos, tienden a estandarizar según criterios neoliberales de reducción de
costos y gestión empresarial las políticas de reforma del estado y de los sistemas
fiscales. Han contribuido a la concentración económica actuando como
intermediarias de las grandes acuerdos de fusiones y adquisiciones en los que
han participado grandes empresas internacionales. Además, como consultores
fiscales de las empresas, han proporcionado consejos valiosos para evadir
impuestos, diseñando la ingeniería jurídica financiera para reducir costos y
desplazar precios de la manera más conveniente, limitando así la capacidad de
los gobiernos nacionales para hacerse con una parte de la riqueza de los
“grandes negocios”. Se han implicado en la financiación de empresas, operando
casi como bancos y desempeñando un papel clave en la estructura financiera
mundial66.
Estas empresas consultoras desempeñan el papel de verdaderas
“intelectuales orgánicas” o “capitalistas colectivas”, ya que, al asesorar a los
gobiernos y a las empresas, destilan una cohesión y coherencia ideológica
uniformizando los criterios de maximización de las ganancias de las grandes
empresas y de lo que se consideran políticas económicas y fiscales que
produzcan un “clima favorable para los negocios”. Al mismo tiempo, generan una
simbiosis entre las capas gerenciales, los tecnócratas y burócratas de las
empresas que solicitan sus servicios y los profesionales (abogados, economistas
65
66
Strange, Susan. La retirada del estado. Op.cit. pg. 195.
Strange, Susan. Ibid. pg. 195.
198
Alejandro Medici
y contadores), que trabajan en las mismas, que son grupo de referencia y modelo
de “éxito” en sus respectivas profesiones. Las calificaciones de “riesgo-país” 67,
que se producen constantemente, hora tras hora, las 24 horas del día, son un
mecanismo disciplinario para los gobiernos que pretendan desarrollar políticas
que lesionen el “clima hospitalario” para los inversionistas 68. En ese sentido, las
consultoras actúan como un panóptico global del neoliberalismo disciplinario.
Por otra parte, en relación a las organizaciones internacionales, puede
decirse que, en la medida en que aceptan la agenda o el marco de pensamiento
que conviene a los intereses del capital, ejercen influencia e incluso presión y
coacción económica a través de la gestión del crédito internacional sobre los
estados nacionales, en sentido congruente a la ejercida por el capital mismo a
través de su poder directo y de su poder estructural.
En ese sentido, las organizaciones internacionales, en general, pero
especialmente las instituciones económico-financieras, pueden ser vistas como
“aparatos de hegemonía” 69, ya que funcionan de acuerdo a las siguientes pautas:
1.
Dan forma a las normas y reglas que facilitan la expansión de los
órdenes mundiales hegemónicos.
2.
Son, ellas mismas, el producto de un orden mundial hegemónico,
aunque sus funciones pueden cambiar con las transformaciones en las relaciones
de poder del orden mundial.
3.
Legitiman ideológicamente las normas del orden mundial.
4.
Cooptan las elites de los estados periféricos.
67
Sobre los criterios que se utilizan para diseñar los indicadores de riesgo, ver Fidel, Gabriel.
Riesgo país, estabilidad política y estabilidad económica en Argentina 1982-1995. En: Postdata.
Revista de reflexión y análisis político, n°.1 Diciembre 1995. pg. 3 y ss. Faria, José Eduardo. El
derecho en la economía globalizada. Trotta. 2001. Pgs. 85/88
68
En Argentina, por ejemplo, el principal grupo multimedia, propietario del periódico Clarín, Canal
13 de TV, radios y canales de cable, servicios de internet, desde hace algún tiempo y
especialmente desde la crisis que afecta a ese país, informa en sus periódicos y noticieros de TV y
radio constantemente de las variaciones del “riesgo país” que refleja las expectativas de las
empresas, los inversionistas y los llamados mercados de capitales. Es notable como este tipo de
indicadores que señalan el grado de aquiescencia de los gobiernos al consenso hegemónico, han
ganado difusión y publicidad durante los 90 en detrimento de otros que eran más frecuentemente
difundidos en los 70 y 80 y que tenían que ver con una economía de producción y de trabajo,
como la relación entre el costo promedio de la canasta familiar tipo y el salario mínimo y la
capacidad industrial instalada ociosa, que ahora han desaparecido de los noticieros ordinarios y
solo pueden consultarse en publicaciones especializadas. Todo esto, en un país donde todos los
días grupos familiares pertenecientes a la otrora distinguida clase media, pasan a integrar la
creciente categoría de los “nuevos pobres”.
69
Cfr. Cox, Robert. Gramsci, hegemony and international relations. Op.cit. pg. 62.
La Globalización como Trama Jerárquica
199
5.
Absorben, resignifican y funcionalizan ideas contrahegemónicas.
6.
Pueden ser, en algunos casos, un espacio de lucha.
Las instituciones y reglas internacionales son impulsadas por el estado que
establece la hegemonía y en última instancia deben tener el apoyo de ese estado.
También los estados asociados al hegemónico son consultados, y su consenso
debe ser recabado para que el funcionamiento de esas instituciones sea posible.
Al mismo tiempo, algunos estados periféricos pueden brindar su apoyo activo o
pasivo.
Además de la participación formal (que puede seguir criterios de poder
político y militar, como en el Consejo de Seguridad de la ONU, de igualdad, como
en la Asamblea General, donde cada estado tiene un voto, o de poder económico,
como en el FMI y el BM, donde los países pesan en las decisiones en función del
capital aportado), existe siempre una estructura informal de influencia reflejando
los diferentes niveles del poder político y económico real que subyacen bajo los
procesos formales. Las instituciones internacionales juegan un rol ideológico
también. Ayudan a definir las principales líneas de política de los estados y a
legitimar ciertas instituciones y prácticas en su terreno doméstico. Reflejan
orientaciones favorables a las fuerzas económicas y sociales dominantes, la
OCDE, por ejemplo, al recomendar en sus resoluciones e investigaciones en los
80 las políticas monetaristas para combatir la inflación, ayudó a reforzar la
hegemonía ideológica del neoliberalismo en los estados del centro al mismo
tiempo que en los de la periferia, cuyas elites las toman como ineludible
referencia 70.
Solamente cuando la representación en las instituciones internacionales
está firmemente basada en un desafío político y social naciente a la hegemonía,
puede tener consecuencias transformadoras 71. Por otra parte, las ideas
originariamente
surgidas
de
movimientos,
intelectuales
y
ONG
contrahegemónicas, pueden ser absorbidas y resignificadas para legitimar las
políticas fomentadas por las instituciones internacionales en sintonía con el
consenso hegemónico, en ese sentido por ejemplo, los “derechos humanos”, el
“desarrollo sustentable”,y la “participación local”, aparecen como fundamentos de
70
71
Cox, Robert. Gramsci, hegemony and international relations. Ibid. pg. 63.
Cox, Robert. Ibid. pg. 63.
200
Alejandro Medici
las acciones del BM 72.
d) En tanto un bloque histórico trasciende una mera descripción sociológica
de una alianza de clases y fracciones de clases, para involucrar una dirección
intelectual y moral como función hegemónica, una capacidad para movilizar el
consenso, pero también las diferentes formas de coacción, todo esto en nombre
de la universalidad de valores y normas, supone también una articulación
polarizada de distintos grupos sociales y sus capacidades funcionales. Supone,
en síntesis, una constitución material del bloque histórico.
Constitución material, en el espacio absoluto de la sociedad global no debe
entenderse en sentido jurídico-formal ya que en el actual período de transición
paradigmática no existe una jerarquía clara de fuentes y sujetos de derecho, ni
unidad y sistematicidad de un orden jurídico global, (tampoco lo hubo nunca).
En relación a lo que se entiende como órdenes jurídicos formales en el
terreno de los estados, puede decirse que el constitucionalismo, paralelo a la
formalización, sistematización y racionalización del derecho, es una tendencia
reciente, que data de los últimos doscientos años, aproximadamente. En cambio,
el estudio de las configuraciones constitucionales materiales, se remonta a los
clásicos greco-romanos, como Heródoto, Platón, Aristóteles, Polibio, Cicerón, y
atraviesa toda la historia, teniendo altas cumbres de desarrollo en Maquiavelo y
Spinoza, entre otros. En esta tradición, si despejamos de la ecuación los
contenidos míticos, en realidad, la constitución tiene que ver con las formas de
producción y reproducción material de la vida, con la estabilidad y cambio de las
relaciones económicas y políticas entre clases sociales, y con los arreglos, o
articulaciones que se pueden establecer entre esas clases.
Es una tradición que, pese a hacerse secundaria frente al predominio del
constitucionalismo formal, ha tenido voces tan brillantes como las del joven Carlos
Marx, que en “La Cuestión Judía”, denuncia la contradicción inherente a la
constitución burguesa, Ferdinand Lasalle, para quien la constitución consiste en
los factores reales de poder subyacentes el orden jurídico formal73, en el siglo XX,
72
Ver O´Brien, Robert. Goetz, Anne Marie, Aart Scholte, Jan. Williams, Marc. Contesting global
governance. Multilateral economic institutions and global social movements. Cambridge University
Press. 2000. Stiles, Kendall. Global institutions and local empowerment. Competing theoretical
perspectives. Mc Millan-St. Martin Press. 2000. George, Susan y Sabelli, Fabrizio. La religión del
crédito. El Banco Mundial y su imperio secular. Intermón. 1996.
73
Lassalle, Ferdinand. ¿Qué es una constitución?. Ediciones Siglo Veinte. 1987.
La Globalización como Trama Jerárquica
201
a Carl Schmitt, para quien la constitución, en sentido absoluto, es la concreta y
existencial manera de ser resultante de la unidad política existente 74, y a Hermann
Heller, para quien la constitución...es una forma abierta a través de la cual pasa la
vida, vida en forma y forma nacida de la vida 75, entre otros.
Contemporáneamente, algunos trabajos de Antonio Negri, pueden
inscribirse, creemos, en esta tradición, a la que, además de actualizar su
materialismo y realismo, agrega un contenido crítico, al trazar una genealogía de
esa anomalía salvaje e inconmensurable que agrieta todas las certezas de la
historia moderna: el poder constituyente de la multitud, y de los mecanismos
políticos (soberanía, constitución formal), que han tratado de encauzarlo,
sujetarlo, de limitar su productividad ontológica 76.
Para nosotros, la idea de constitución material remite a una distribución
fáctica de poder entre grupos social y funcionalmente diferenciados articulados en
el bloque histórico, algunos de los cuales disponen de capacidad de dirección
intelectual y moral, jerarquización y asignación de valores, es decir, preferencias
sociales generalizadas, y capacidad de asegurar, en última instancia, el orden a
través de la coacción. Esta capacidad no debe entenderse solamente como la que
tienen los operadores jurídicos formales, sino que, abarcando este aspecto, va
mucho más allá, es una capacidad material, ontológica, de construcción
hegemónica.
La constitución material del bloque histórico global, es una totalidad pero
abierta e inconclusa, posee zonas grises, lagunas, pluralidad de formas de
derecho, pero todas estas características ya no forman una arena exterior, no hay
exterior absoluto, sino zonas que se mantienen articuladas al bloque a través de
74
Schmitt, Carl. Teoría de la constitución. Alianza. 1992. pgs.32/34.
El trabajo de Heller, es el primer intento sistemático, desde nuestro punto de vista, para superar
las visiones que, simplemente yuxtaponían constitución material y constitución formal (Jellinek),
que subordinaban la constitución formal a la constitución material (Schmitt), o que reducían la
constitución material a la constitución formal (Kelsen). Heller planteaba de forma relacional e
histórica la dinámica entre constitución material y constitución formal. Esta concepción se aleja
tanto de la kelseniana que “priva a las normas de su sentido ser-deber ser”, que obliga al jurista
austríaco a “poner de relieve la importancia que tiene el momento de la observancia ordinaria para
la positividad, o sea, en realidad para la validez y la existencia de las normas jurídicas”,como
también de la de Schmitt, quien “incurre en el error opuesto...subestima completamente la
normatividad exaltando, en oposición a ella, la existencialidad, de modo que viene a concebir la
Constitución no como norma, sino sólo como “decisión”.Ver Heller, Hermann. Teoría del estado.
Fondo de Cultura Económica. 1987. pgs. 268 y 271, respectivamente.
76
Negri, Antonio. El poder constituyente. Ensayo sobre las alternativas de la modernidad.
Libertarias-prodhufi. 1994.
75
202
Alejandro Medici
una cierta economía de intercambios materiales y simbólicos, donde los límites,
siempre difusos, se van desplazando constantemente. En ese sentido, cabe aquí
la metáfora del “campo” propuesta por Capella, donde no se visualizan
claramente agentes causales claros, sino tramas de relaciones.
Esta constitución material no surge de un acto constituyente explícito, sino
que se va produciendo como resultado de una trama de relaciones hegemónicas,
que actúan en distintas áreas con diferentes cauces, ritmos y racionalidades.
Esas relaciones distribuyen eficacias diferenciales entre las pluralidades
normativas que se articulan en la constitución material y también al interior de las
mismas.
En este entendimiento, puede trasponerse a la constitución material del
bloque histórico, lo que Clemerson Merlín Cleve dice sobre las constituciones
nacionales, La constitución, actualmente, es el gran espacio, el gran “locus”
donde se opera la lucha jurídico-política. El proceso constituyente es un proceso
que se desenvuelve sin interrupción... 77 Al estar determinada su dinámica por el
campo global de relaciones hegemónicas y al ser compleja y pluridimensional,
resulta una estructura de historicidad abierta a los antagonismos de las fuerzas
sociales que actualizan y proyectan ciertas posibilidades de su materialidad, al
mismo tiempo que silencian, omiten o rechazan otras.
La configuración de la constitución material global, ha sido descripta por
Hardt y Negri, a través de la figura metafórica de una pirámide, por medio de la
cual buscan explicar la articulación funcional de los actores estatales y no
estatales de la globalización y el desplazamiento de escala de las funciones
constitucionales materiales desde el estado hacia lo que nosotros llamamos el
bloque histórico de la globalización hegemónica. De esta forma proponen ir más
allá de la figura simple de “gobernancia sin gobierno” que nos plantean algunos
estudiosos de la globalización 78. La descripción de la constitución material del
bloque histórico global emergente que proponen, es una forma de resolver el
interrogante sobre la trama jerárquica que articula los espacios de la globalización
77
Merlín Cleve, Clemerson. A teoria constitucional e o direito alternativo (para uma dogmatica
constitucional emancipatoria). Conferencia pronunciada en el Seminario sobre uso alternativo del
derecho”. Instituto dos Advogados Brasileiros. Rio de Janeiro. 7/9 de junio de 1993. mimeo. Pg.
40. Traducción propia.
78
Hardt, Michael y Negri, Antonio. Empire. Op.cit. pgs. 308/309.
La Globalización como Trama Jerárquica
203
y le da entidad política material y real a la pretensión de vivir en una “aldea
global”.
A un golpe de vista, el nuevo marco constitucional mundial, nos dicen,
aparece como un conjunto caótico y desordenado de controles y organizaciones
representativas, distribuidas en un amplio espectro de cuerpos, divididos por
funciones y contenidos, y atravesados por una variedad de actividades
productivas. Pero por debajo de esta superficie, una mirada atenta descubre una
cierta trama formada, más que por elementos ordenados, por matrices que
delimitan horizontes relativamente coherentes en el desorden de la vida política y
jurídica global 79.
Cuando analizamos las configuraciones del poder global en sus varios
cuerpos y organizaciones, se hace inteligible una pirámide compuesta de tres
niveles. En el extremo superior del vértice, los Estados Unidos, que detentan la
hegemonía sobre el uso global de la fuerza. Un superpoder que puede actuar solo
pero prefiere actuar en colaboración con otros bajo el paraguas de la ONU. En un
segundo plano inmediato, todavía en el primer nivel de la pirámide, un grupo de
estados-nación controlan los instrumentos monetarios globales y tienen la
habilidad de regular los intercambios internacionales. Estas naciones se articulan
en una serie de organismos formales e informales, el G7, los Clubes de Londres y
París, Davos, etc 80.
Debajo de este primer nivel de dominio, a medida que la pirámide se
ensancha, las funciones de comando aparecen ampliamente distribuidas,
enfatizando en este caso, más que la unificación, la articulación. Este nivel está
estructurado primariamente por las redes que las corporaciones capitalistas
transnacionales han extendido a través del mercado mundial, redes que
configuran espacios de flujos (de capital, de tecnología, de población, etc.). Estas
organizaciones productivas que forman el mercado mundial se extienden
transversalmente bajo el paraguas y la garantía del poder articulador que
constituye el vértice de la pirámide. A través de la distribución global de capitales,
tecnologías, bienes y poblaciones, las corporaciones construyen bastas redes de
comunicación y proveen satisfacción de las necesidades. El mercado mundial
79
80
Hardt, Michael y Negri, Antonio. Ibid. pg.309.
Hardt, Michael y Negri, Antonio. Ibid. pgs. 309/310.
204
Alejandro Medici
tanto homogeneiza como diferencia los territorios, rehaciendo el mapa global.
En este segundo plano, reside el conjunto general de estados nación, que
consisten en organizaciones territoriales, localizadas, y que desempeñan varias
funciones: de mediación política con respecto a los poderes hegemónicos
globales, de negociación con respecto a las corporaciones multinacionales, y de
redistribución de recursos de acuerdo a necesidades biopolíticas al interior de sus
propios territorios. Constituyen filtros de los flujos de circulación global y
reguladores de la articulación del dominio global; capturan y distribuyen flujos de
riqueza hacia y de el poder global, y disciplinan, en la medida de sus
posibilidades, a sus propias poblaciones81.
El tercer y más ancho escalón de la pirámide, consiste en grupos y
organizaciones que representan los intereses populares en la constitución
material global 82. La multitud no está articulada en el bloque hegemónico. No
puede estarlo directamente, sino a través de una serie de mediaciones y
mecanismos de representación que muestran el carácter de revolución pasiva del
proyecto hegemónico de la globalización. Estos mecanismos de representación
se producen en la Asamblea General de la ONU, a través de los estados. La
mayoría numérica pero la minoría en términos de poder real, funciona como un
límite simbólico e instancia de legitimación del bloque histórico.
El sistema ONU con sus agencias especializadas y sus cumbres, es
también la zona gris entre la interestatalidad y la sociedad civil global, donde
proliferan las ONG de todo tipo, algunas cooptadas, otras buscando cambiar el
sistema “desde dentro”, otras críticas, se manifiestan para impugnarlo. Las
primeras, canalizan los deseos y necesidades de los grupos subalternos en
formas que puedan ser representadas al interior del funcionamiento de las
estructuras de poder global, a veces, logrando instalar acotados espacios de
lucha y debate al interior de las organizaciones internacionales más permeables.
En la sociedad civil global, también aparecen las iglesias de vocación ecuménica
y sus organizaciones y las comunidades locales cuando dan a sus
reivindicaciones alcance global, o cuando encuadran sus necesidades en el
81
82
Hardt, Michael y Negri, Antonio. Ibid. pg. 310.
Hardt, Michael y Negri, Antonio. Ibid. pg. 311.
La Globalización como Trama Jerárquica
205
escenario más amplio de la globalización jerárquica 83.
Merced a la actuación de todos estos grupos y organizaciones, la agenda
de la globalización se expande y cambia su sentido, apareciendo explícitamente
los problemas que tienen que ver con la producción y reproducción de la vida, los
bienes comunes, los derechos, la preservación del ambiente natural y de los
espacios culturales, la autonomía, problemas que se vinculan a un sujeto
genérico, metacolectivo de identificación: la humanidad.
La humanidad se concreta en cada espacio, en cada situación, en distintas
necesidades y grupos sociales y puede servir tanto a la legitimación de la
hegemonía, como a los grupos sociales subalternos cuyas necesidades se
radicalizan, de acuerdo a quien la invoque. Pero en la base de la pirámide la
hegemonía ya no es monolítica y una pluralidad de voces humanas ascendentes
pugnan por hacerse oír, por achicar la distancia con el vértice, por achatar la
pirámide del poder global, desestabilizando, en ocasiones, la articulación del
bloque histórico. E incluso, construyendo y demandando formas de relaciones
sociales que transforman profundamente la constitución material de la
globalización.
3. Conclusiones Provisionales
En síntesis, y a título de conclusiones provisionales, podemos decir que la
trama jerárquica de la globalización entraña un proceso complejo de hegemonía,
que trasciende (al mismo tiempo que abarca), las relaciones interestatales.
Primero, la hegemonía global articula lo político, lo económico y lo cultural
en una espacialidad absoluta, no limitada por arenas territoriales, y frente a la cual
ya no puede haber exterioridad total. Segundo, la globalización hegemónica,
supone un régimen de producción y reproducción de la vida. Tercero, la
globalización hegemónica no es un proceso sin sujeto: está guiada por un bloque
histórico, cuyo centro articulador ejerce la función de dirección intelectual y moral,
y de coacción, con un sentido de finalidad histórica y de universalidad. Cuarto, la
ideología hegemónica de la globalización, (el neoliberalismo disciplinario), es
83
Hardt, Michael y Negri, Antonio. Ibid. pgs. 312/313.
206
Alejandro Medici
tanto consensual como coercitiva, ejerce una pluralidad de formas de dominación
ideológica. Quinto, más que en presencia de una “gobernancia” sin gobierno,
estamos ante una constitución material de la globalización hegemónica.
Constatar la materialidad y realidad de la trama jerárquica de la
globalización, exige una metodología relacional a la hora de considerar, por
ejemplo, la posibilidad de alcanzar los objetivos cosmopolitas proclamados en la
Carta de San Francisco de 1945, en la Declaración Universal de Derechos
Humanos de 1948 y demás tratados internacionales y regionales de Derechos
Humanos. La globalización supone la construcción de distintas formas de
institucionalidad y juridicidad con objetivos contradictorios, velocidades y eficacias
variables. Pero cada vez es mas profunda la brecha entre el objetivo de una
globalización de los derechos y la democracia frente al imperativo sistémico de la
acumulación de capital a escala mundial y las recetas neoliberales en las que se
fundamenta.
El escenario esta servido entonces para las cada vez más numerosas
voces que desde redes de ONG y movimientos sociales, y desde los ámbitos más
autónomos del sistema ONU, vuelven a poner en el centro de la escena la
cuestión de una nueva forma de relación entre el Norte y el Sur, la necesidad de
solución estructural al problema de la deuda externa, la regulación de las
operaciones especulativas del capital financiero y el desarrollo sustentable como
precondiciones para el avance de unos derechos humanos realmente universales,
indivisible e interdependientes. Pero esas posibilidades no deben enunciarse en
abstracto, sino que su afirmación es una tarea política que tiene como contexto el
escenario adverso de los poderosos intereses atrincherados detrás de la trama
jerárquica de la globalización.
La Globalización como Trama Jerárquica
207
II. DIREITOS HUMANOS
E INTERVENÇÕES HUMANITÁRIAS
Reflexiones E (Im)Precisiones en Torno a la
Intervención Humanitaria y los Derechos Humanos *
David Sánchez Rubio
Sumário: 1. Sobre la Defensa Internacional de los Derechos Humanos en
Situaciones de Violaciones Graves y Masivas. 2. Ampliando y Abriendo
Horizontes. 3. Dudas, Inquietudes, Premisas e Hipótesis de Trabajo en
Torno a la “Intervención Humanitaria” a partir de la Articulación de Tramas
Sociales. 4. ¿Qué se Entiende por “Intervención Humanitaria” y por
“Intervención de Humanidad”? 5. Los Conceptos de “Intervención
Humanitaria” y de “Intervención de Humanidad”. 5.1. El Concepto de
“Intervención”. 5.2. Sobre el Concepto de “Asistencia Humanitaria” y el
Problema de la Protección de los Derechos Humanos. 5.3. Activismo en
Derechos Humanos y Asistencia Humanitaria: Un Ejemplo.
1. Sobre la Defensa Internacional de los
En Situaciones De Violaciones Graves Y Masivas
Derechos
Humanos
La conformación de un mundo global ha provocado la conciencia de un
destino común para toda la humanidad. La globalización y sus diversos procesos
han posibilitado espacios de interconexión entre las personas pertenecientes a
diferentes puntos de la Tierra. La convivencia entre los seres humanos ha
alcanzado dimensiones planetarias, articulándose múltiples y heterogéneos
ámbitos tanto de jerarquías y subordinaciones, como de horizontalidades y
solidaridades. Vivimos en una sociedad global, distinta del pasado por su
incrementada complejidad e integración. Hemos llegado a la conciencia de que el
mundo es un lugar único en el que países, civilizaciones, pueblos y culturas en
apariencia
separadas,
simultáneamente,
son
inseparables.
Asimismo,
desesperanza y esperanza, pesimismo y optimismo se unen y se funden para
mostrar la contradictoriedad que tan perturbada y tan desorientada mantiene a la
comunidad internacional.
*
Resumen: Este trabajo forma parte de um estudio más amplio que saldrá publicado en formato
de libro, y que se centra en el concepto de “intervención de humanidad”, también comúnmente
llamada “intervención humanitaria”. En ambos estudios pretendemos abordar esta figura política,
ética y jurídica, intentando realizar una serie tanto de aclaraciones como de cuestionamientos
terminológicos. Asimismo, discutismos sobre algunos de los más comunes y generalizados
planteamientos que sobre los dos conceptos se estabelecen. El principal propósito es remarcar el
rechazo del uso de la fuerza armada como instrumento de protección de los derechos humanos, y
principalmente en su versión de violencia más cruda: la guerra.
Desesperanza no sólo porque el sistema económico dominante excluye y
rechaza en su lógica de funcionamiento a millones de personas, sino también
porque un gran número de conflictos y catástrofes de muy distinta naturaleza, ha
incrementado el clima de perturbación de la comunidad internacional, al
multiplicar las crisis humanitarias, con sus secuelas dramáticas de tragedia
humanas y de víctimas. Gran parte de dichas situaciones provocan directamente
violaciones graves y sistemáticas de los derechos humanos, que atentan contra
obligaciones erga omnes del Derecho internacional. Los medios de comunicación
se han hecho eco de tales acontecimientos, influyendo en la opinión pública,
principalmente de los países desarrollados y, por ello, propiciando la reacciones
políticas y jurídicas, con el establecimiento de mecanismos institucionales para la
exigibilidad de una responsabilidad internacional penal individual, y con la
actividad
tanto
humanitarismo”.
de
los
activistas
de
derechos
humanos
y
el
“nuevo
1
La esperanza viene marcada, entre otras cosas, por estas posibilidades de
respuesta que parecen brindar los sentimientos solidarios de la gente en nuestro
planeta, aunque no se hagan por el momento con la contundencia debida. Pero,
sobre todo, esperanza porque existen unas instancias universalizadas de defensa
y de protección de los seres humanos frente a determinadas agresiones a su
dignidad. La lucha por los derechos humanos y su garantía, han abierto espacios
y opciones hacia un mundo menos injusto, como mecanismo de apelación y
enfrentamiento contra la adversidad consciente e/o inconscientemente provocada
desde las múltiples expresiones del poder.
Dentro de esos contextos de conflictos y catástrofes, y fruto del proceso de
humanización del Derecho internacional con la internacionalización de los
derechos humanos y la centralidad de la persona, se han propuesto nuevas
formulaciones normativas tanto desde el punto de vista doctrinal, como
institucional. Se habla y, hasta se exige, que la comunidad internacional tiene un
derecho a reaccionar frente a situaciones que atentan contra la dignidad del
hombre, y a interpelar violaciones graves y masivas de los derechos
1
Ver María del Carmen Márquez Carrasco, “La nueva dimensión humanitaria del mantenimiento
de la paz: la práctica reciente del Consejo de Seguridad”, en Joaquín Alcaide, María del Carmen
Márquez Carrasco y Juan Antonio Carrillo Salcedo, La asistencia humanitaria en el Derecho
internacional contemporáneo, Universidad de Sevilla, Sevilla, 1997, p. 81-82.
210
David Sánchez Rubio
fundamentales que se producen al interior de un Estado y sobre sus ciudadanos.
En los últimos tiempos, muchas de las reacciones internacionales a las
situaciones de conflicto, incluyendo aquellas a las que se suma el uso de la fuerza
armada, tienden a ser etiquetadas como “humanitarias”. En múltiples foros
internacionales, medios de comunicación y reuniones entre gobernantes de
Estados, se utilizan las expresiones “intervención” o “injerencia”, añadiéndoles el
adjetivo
de
“humanitaria”.
Incluso
términos
aún
más
sorprendentes
y
contradictorios como “humanitarismo militar”, “guerra humanitaria” y “bombardeo
humanitario”.
Pocas personas se van a negar ante afirmaciones tales como que existen
valores y principios universales que fundamentan y justifican una intervención
directa en el territorio de un país soberano, cuando éste aplica decisiones
contrarias a normas y convenios de la comunidad internacional; 2 o
ante la vigencia de un núcleo duro mínimo de derechos humanos
fundamentales imprescindibles y universales, como son los
derechos a la vida y a la integridad física y moral, la comunidad
internacional debe reaccionar, incluso con la fuerza, en el
momento en que son vulnerados de manera grave, masiva y
sistemática. 3
El hecho es que lo que aparentemente se presenta como una respuesta lógica,
clara y justificada de la comunidad internacional para detener trágicos y
denigrantes acontecimientos ocasionados por la acción agresiva del ser humano,
en virtud de la defensa de unos valores universales aceptados por todas las
naciones, ofrece fuertes dosis de conflicto, y una gran polémica y un intenso
debate doctrinal. Guerras como la del Golfo Pérsico a principios de los 90 y la de
los Balcanes (Bosnia-Herzegovina y Kosovo), así como la actual crisis de Irak en
el marco de las guerras justas y/o preventivas y la defensa de la seguridad
internacional dentro de la lucha contra el terrorismo, han provocado reacciones
favorables y desfavorables de todo tipo ante la forma de actuar de las Naciones
Unidas y de las grandes potencias, por medio de la OTAN. Observando
2
Véase Emma Bonino, “Las distintas formas de intervención”, Revista de Occidente, n° 236-237,
p. 25.
3
Ver, en este sentido, Eusebio Fernández, “Lealtad cosmopolita e intervenciones bélicas
humanitarias”, Revista de Occidente, n° 236-237, p. 63. También aparece este trabajo modificado,
en su libro Dignidad humana y ciudadanía cosmopolita, Dykinson, Madrid, 2001; La cita no es
literal. Nosotros la hemos construido líbremente, en función de la posición defendida por el autor.
Reflexiones E (Im)Precisiones en Torno a la Intervención Humanitaria y los Derechos Humanos
211
detenidamente el problema, que no es nuevo, poco sorprende tanta disparidad de
criterios. Tampoco que tenga tantos detractores como defensores. Unos y otros
para fundamentar y justificar sus posiciones, abordan toda una serie de elementos
de carácter jurídico y ético, que giran en torno a los siguientes bloques temáticos:
1) Pese a que son muchos los que no se preocupan por el uso de los
términos, hay quienes subrayan la importancia que tiene la utilización correcta de
las palabras, pues ello evita confusiones innecesarias e impide la ocultación de la
disparidad de significados, que suele diluirse cuando se produce la mezcla de
esferas diferentes o la intromisión de unas en otras. La polémica se centra entre
quienes defienden la conveniencia de mantener separadas la idea de asistencia
humanitaria por un lado, propia del Derecho internacional humanitario, y el uso de
la fuerza armada de protección, que se vincula más con el Derecho internacional
de los derechos humanos y de coexistencia pacífica.
2) Asimismo, la convivencia tensa y conflictiva entre los dos troncos
básicos del ordenamiento internacional: a) el Derecho internacional de
coexistencia pacífica, vinculado a la estabilidad y a la seguridad internacionales; y
b) el Derecho internacional de los derechos humanos, que se plasma en la
tensión existente entre cuatro de los principios constitucionales del Derecho
internacional: el principio de no intervención, junto con el principio de prohibición
del uso de la fuerza, con los que se protege el principio de la soberanía de los
Estados; y el principio de protección y/o salvaguarda de los derechos humanos.
La doctrina polemiza sobre cuál de ellos prevalece, y en función de cuál adquiera
un rango superior, se establece la legalidad o la ilegalidad de la “intervención
humanitaria”.
Dada
la
dificultad
y
la
indeterminación
de
las
normas
internacionales, las dudas permean los argumentos. Como ejemplo, tenemos las
reflexiones hechas por Yves Sandoz, 4 para quien por una parte, este concepto, en
un sentido amplio, autoriza la intervención armada de un Estado en el territorio de
otro Estado para poner término a las violaciones graves y masivas de los
derechos humanos, pero a pesar de ello, este tipo de actuación no tiene cabida
en el sistema previsto por la ONU. Incluso en su sentido restringido, la
intervención armada para salvaguardar a sus propios ciudadanos en otros
4
Ver Yves Sandoz, “Derecho o deber de injerencia, derecho de asistencia: ¿de qué hablamos?”,
en http://www.wfn.org, (The Wordwide Faith News Archives).
212
David Sánchez Rubio
Estados, también es rechazada por la doctrina como lícito. Pero por otra,
considera razonable que los Estados deban tener derecho a abrir los ojos. La
interdependencia cada vez más marcada entre los Estados, el desarrollo de los
derechos humanos y la emergencia del principio de solidaridad, subraya el autor,
permiten señalar que hoy los Estados no gozan del “derecho a la indiferencia”.
Además, en el seno de estas discusiones, se suele destacar la ausencia de
una jurisdicción y una autoridad planetaria capaz de hacer legalmente efectiva la
protección y la garantía de los derechos humanos fundamentales. Pese a las
posibilidades que ofrece la organización de Naciones Unidas y, en concreto, el
sistema de seguridad colectivo establecido a partir de la Carta, los avances son
exiguos y las dudas de actuaciones unilaterales o multilaterales, pero al margen
de las decisiones del Consejo de Seguridad, están justificadas. Para algunos, la
intervención bajo determinados requisitos llenaría esa laguna, para otros, sólo y
exclusivamente se debe de intervenir dentro del sistema de seguridad colectiva
establecido conforme a la Carta de Naciones Unidas.
3) En tercer lugar, otro de los bloques temáticos se refieren a la legitimidad
o ilegitimidad ética y moral del uso de la fuerza armada. En este sentido, C. Beitz
y Ernesto Garzón Valdés, comentan que el auténtico problema ético de las
acciones bélicas humanitarias no es el conflicto entre los principios de no
intervención y el de protección de los derechos humanos, sino que sean
operaciones armadas que, como tales, pueden causar muertes y víctimas tanto
en la población del país sobre el que se realiza la injerencia, como en los
soldados de los propios actores de la intervención. Resulta un contrasentido que
para proteger los derechos humanos de un grupo se tengan que lesionar los del
otro. 5 Aparte de las opiniones sobre la proporcionalidad o desproporcionalidad de
los medios, y de las consecuencias y resultados negativos o positivos provocados
por este tipo de actuación, la cuestión de la centralidad de lo humano y del
mantenimiento de la vida y su posible sacrificialidad se nos hace crucial. Se
reactualizan doctrinalmente algunas de las teorías justificativas de las “guerras
justas” desde las cuales se suelen situar quienes apuestan por la intervención.
Aquí también entra a escena la discusión sobre las “nuevas guerras” en las que
5
Véase Ernesto Garzón Valdés, “Guerra e diritti humani”, Región Practica, n° 13, 1999, p. 47.a
Reflexiones E (Im)Precisiones en Torno a la Intervención Humanitaria y los Derechos Humanos
213
se presuponen unas categorías exclusivistas de seres humanos. Hechos como
los ataques aéreos ocurridos en Kósovo, demostraron que las vidas de los
occidentales tienen preferencias sobre otras, y entre los propios occidentales,
también las vidas de unos son más valoradas que las de otros. Para evitar las
bajas de la OTAN, se pusieron vidas de civiles en peligro, incluida la de aquellos a
quienes supuestamente la operación debía proteger. 6
4) Finalmente, otro ámbito temático de reflexión importante gira en torno a
la existencia o inexistencia de un mínimo moral planetario, y sobre la
universalidad o no de un catálogo amplio o reducido, abierto o cerrado, de
derechos humanos. Desde que Norberto Bobbio proclamara que la Declaración
Universal es la más grande prueba histórica que jamás se haya dado del
consensus omnium gentium sobre un determinado sistema de valores, y que
demuestra, por primera vez, que toda la humanidad lo comparte universalmente, 7
desde diversas y múltiples instancias han salido a la palestra voces discrepantes
sobre el alcance resaltado por tal tipo de aseveración. Para muchos,
principalmente para personas pertenecientes a culturas no occidentales, los
derechos humanos representan valores eurocéntricos, que son fruto de procesos
colonizadores y hegemónicos. No sólo se trata de posiciones relativistas y
escépticas en el peor sentido de la palabra, sino también de planteamientos que
proponen construir dialógica y participativamente otros caminos de universalidad,
que sean expresivos de una auténtica interculturalidad.
2. Ampliando y Abriendo Horizontes
Desde nuestro punto de vista, uno de los principales defectos de los que
adolecen las reflexiones y el tratamiento de la “intervención o injerencia
humanitaria” o “de humanidad”, reside en la reducción, la unidimensionalidad, el
perfil sesgado y la estrechez de las perspectivas. Para explicar algo mejor esto
vamos a utilizar una idea de Joaquín Herrera Flores retomada de Douglas R.
6
En este sentido, ver Mary Kaldor, Las nuevas guerras. Violencia organizada en la era global,
Tusquets, Barcelona, 2001, p. 207.
7
Norberto Bobbio, “Presente y futuro de los derechos del hombre”, que, entre otras de sus obras,
aparece en El problema de la guerra y las vías de la paz, Gedisa, Barcelona, 1982, p. 133.
214
David Sánchez Rubio
Hofstadter en su libro Gödel, Escher, Bach. Un Eterno y Grácil Bucle: 8
El iusfilósofo español, mientras profundiza sobre el problema de si es
posible o no es posible establecer una Constitución europea, se refiere a la
dimensión “lagunar” de toda ideología en tanto que oculta y niega, sin negarlo
explícitamente, determinados contenidos que son básicos, porque definen y
marcan
sus
objetivos
más
concretos.
Entendida
como
sistema
de
representaciones y de normas que nos guían a la hora de conocer y de actuar, la
ideología es “lagunar” porque en su pretensión de generalizarse, oculta su
particularidad bajo el manto de un universalismo homogenizador. Al final, acaba
mostrándose como un discurso al margen de los espacios sociales y políticos, sin
historia y sin tiempo; además, termina expulsando cualquier aspecto subjetivo. La
ideología liberal, señala Joaquín Herrera, junto a estos mecanismos, llega a
autonombrarse como el paradigma del “género humano” y escamotea el conflicto,
disimula la dominación y oculta la presencia de lo particular, en tanto que
particular, dándole la apariencia de universalidad. 9 Dentro de este marco, ante la
pregunta de la necesidad o no de una Constitución europea, el autor señala los
límites y las insuficiencias de aquellas respuestas que se limitan a moverse entre
un “sí” o un “no”, y que resultan insatisfactorias. La razón se debe a que el
entendimiento del contexto de la pregunta, que en este caso suele situarse en el
marco del Estado nacional, es demasiado pequeño para la utilidad de la
respuesta, y debe ser matizado y ampliado. No se trata de un interrogante mal
planteado, sino de una pregunta que oculta intencionalmente determinados
elementos considerados fundamentales. Se necesita ampliar el contexto para
poder entender mejor el problema que se debate. Y aquí entra la idea de
Hofstadter que queremos proyectar sobre la “intervención de humanidad”. En su
esfuerzo por mostrar la incompletud de los sistemas formales, este autor toma
como ejemplo la dialéctica entre lo que en el arte se llama la relación entre figura
y fondo. La primera muestra la significación explícita del fenómeno a estudiar o a
contemplar (en nuestro caso, el fenómeno de la “intervención de humanidad” y de
la “intervención humanitaria”). El fondo, en cambio, aparece como la significación
8
Tusquets, Barcelona, 1987; y Joaquín Herrera Flores, “Las lagunas de la ideología liberal”, en
Joaquín Herrera Flores (ed.), El vuelo de Anteo. Derechos humanos y crítica de la razón liberal,
Desclée de Brouwer, Bilbao, 2000, p. 151-152.
9
Ibid., p. 132-133.
Reflexiones E (Im)Precisiones en Torno a la Intervención Humanitaria y los Derechos Humanos
215
implícita del mismo, es decir, el marco, el contexto sin el cual la figura aparece
carente de sentido. 10 Pone un ejemplo muy ilustrativo: tenemos la creencia
ingenua y falsa de que el ruido es un efecto colateral, aunque necesario, de
cualquier colisión entre dos objetos. No nos damos cuenta de que si chocan en el
vacío, no se producirá ningún sonido. Al final atribuimos el ruido exclusivamente a
la colisión, ignorando la gran importancia que tiene el medio, que hace de
vehículo entre los objetos y el oído.
En el caso que nos concierne, se suele incurrir en la costumbre de abordar
tanto la “intervención de humanidad” como la “intervención humanitaria”,
utilizando una perspectiva bastante reducida. Por lo general, se ubican las dos
figuras desde un doble ámbito: a) uno referido al conflicto tradicional entre la
guerra y la paz entre los Estados y, en concreto, con relación a las
tradicionalmente llamadas “guerras justas”; b) el otro ámbito, se coloca dentro de
la bifurcación del ordenamiento internacional que se plasma, a su vez, en sus dos
ramas básicas: el Derecho internacional, de origen westfaliano, de coexistencia
pacífica bajo el principio de soberanía, vinculado a la “estabilidad internacional” y
a la “seguridad internacional”; y el Derecho internacional de los derechos
humanos, dentro del cual hay que situar el Derecho internacional humanitario,
pese a que sea considerado por muchos como un sistema normativo distinto.
Estas dos ramas del ordenamiento internacional también se encuentran en una
situación de tensión permanente. Pues bien, sobre este doble plano de guerra/paz
y principio de soberanía/principio de salvaguardia de la dignidad humana, se
delimitan los análisis tanto de la “intervención de humanidad” como de la
“intervención humanitaria”, dándose prioridad a uno o a otro, en función de que se
acentúe el carácter realista o idealista de los fenómenos interpretados. Asimismo,
desde estas premisas ya se condiciona y disminuye el marco de explicación, al
asociarse ambos conceptos con un tipo de intervención exclusivamente militar, en
donde “quirúrgicamente” se utiliza un contingente bélico como medio para el uso
de la fuerza con el propósito, bien de proteger a las víctimas de violaciones
graves y masivas de derechos humanos, bien de hacer llegar la asistencia
humanitaria internacional a quienes se encuentran en peligro de supervivencia. La
10
Ibid., p. 151.
216
David Sánchez Rubio
cultura
militarista
que
aspira
a
una
acción
directa
de
reacción,
se
sobredimensiona por encima de una cultura civil más atenta a las actividades de
prevención y a las consecuencias de las medidas reactivas.
No es que estos planteamientos sean equivocados y erróneos, pues tocan
elementos imprescindibles para la comprensión de ambas realidades. El problema
es que los estudios realizados sobre la “figura”, pensamos, suelen ignorar
elementos del “fondo” que consideramos esenciales para su mayor y más
profundo entendimiento. ¿En qué sentido?
Por una parte, la “figura” sobre la “intervención humanitaria” y la
“intervención de humanidad” se reduce a un plano dominado por el paradigma de
los Estados nacionales, que son los sujetos por antonomasia del Derecho
internacional tradicional. Los conflictos interestatales y las luchas por el poder
internacional son los principales objetivos colocados en los puntos de mira de las
investigaciones de corte político y autocalificado de realistas. La posible aparición
de otros actores se supedita al molde del Estado nacional.
Por otra parte, dada la peculiaridad del Derecho internacional, en el cual no
existe ni un orden institucional más o menos centralizado con autoridad para
ejercer legítimamente la coacción y la fuerza, ni un sistema de protección y
garantía de los derechos humanos, las investigaciones jurídicas se centran en
remarcar y subrayar sus deficiencias, y buscar salidas posibles con la proyección
a nivel internacional, de la estructura jurídico-institucional interna que poseen los
Estados constitucionales más avanzados. Siendo primordial la búsqueda de
soluciones a partir de la normativa existente, al final todo se queda en una
reducida interpretación de los artículos y disposiciones ofrecidas por los textos
positivos internacionales (principalmente el artículo 2 y el capítulo VII de la Carta
de San Francisco y las distintas resoluciones del Consejo de Seguridad y la
Asamblea General de la ONU). Asimismo, la existencia de un núcleo duro y
mínimo de valores universales, considerados reglas imperativas de ius cogens y
obligaciones erga omnes, suele ser una de las principales fuentes de discusión.
Dentro de ese debate, el concepto de “derechos humanos” desde el que se parte,
por lo general es excesivamente formal y, al final, se utiliza como instrumento
puntual de ingeniería institucional, perdiéndose el referente de los sujetos y, sobre
todo, de los sujetos víctimas. Los derechos humanos quedan desgajados de los
Reflexiones E (Im)Precisiones en Torno a la Intervención Humanitaria y los Derechos Humanos
217
procesos de lucha que día a día desarrollan sus sujetos protagonistas, y se
eterniza la gran separación que existe entre la dimensión normativa y la
dimensión garantista y protectora del Derecho internacional.
El inconveniente principal con el que también nos encontramos, radica en
el aislamiento, la separación y la fragmentación de todos estos enfoques políticos
y jurídicos. Síntomas éstos que se dan no sólo al interior de los estudios, sino
también en relación con la apertura o cierre que adoptan con respecto a otras
disciplinas y a otras dimensiones de lo real, a pesar de que, nominalmente o con
una simple técnica de yuxtaposición, queden mencionadas. Por esta razón,
pensamos que el “fondo” es mucho más amplio. Desde una metodología
relacional, compleja y respectiva dirigida a interpretar la realidad, fenómenos
como la “intervención de humanidad” y la “intervención humanitaria” implican
elementos éticos, económicos, políticos, culturales, además de jurídicos, que
forman parte de la “figura” y establecen un marco o “espacio en negativo” de
fondo, más rico.
En este sentido, el contexto histórico-concreto en el que nos encontramos
está conformado por instancias y factores que trascienden el marco interestatal.
Nos referimos a los tan mencionados, pero poco integrados en los estudios
jurídicos, procesos de globalización. Procesos que en su lógica de desarrollo
están poniendo en crisis tanto a los Estados, como a los ordenamientos jurídicos
estatales sobre cuyos moldes se intentan regular los conflictos internacionales. La
globalización es todo un reto para el Derecho nacional e internacional y para las
concepciones tradicionales sobre la guerra y la paz. Más todavía cuando
incrementa y conforma una estructura jerarquizada de la realidad. Si resulta que
el orden internacional funciona sobre un sistema económico, político y cultural
estructuralmente desigual y con tendencias claras de exclusión social, endémicas
y normalizadas, en las cuales no se valora la vida de casi dos tercios de la
humanidad, difícilmente se entiende cómo se puede legitimar sin discusión,
actividades de intervención que, supuestamente, intentan remediar una situación
anormal de violación grave y masiva de derechos humanos y recuperar la vida de
las víctimas. Mucho menos cuando las medidas son adoptadas por quienes, de
alguna manera, contribuyen al mantenimiento de un orden internacional injusto y
excluyente, pese a los argumentos de legalidad que arguyen para justificar tales
218
David Sánchez Rubio
acciones.
Las respuestas que desde el ámbito del Derecho pueden y deben hacerse
para paliar estos efectos tan negativos, se hacen necesarias y urgentes. Un
asunto con tantos problemas éticos y políticos implicados, y en el que las
relaciones de poder colisionan con el respeto de los derechos humanos de las
personas, tienen que ser regulados por normas y principios. Parafraseando a
Victor Hugo, el derecho está por encima del poder. No se puede construir la paz y
una sociedad internacional volcada en el reconocimiento de las personas
humanas, si sus cimientos se asientan en incuestionados materiales de miseria y
de opresión de los fuertes sobre los débiles.
Dada la complejidad del fenómeno de la globalización, entre otras cosas,
hay que tener en cuenta e incorporar los siguientes factores que tanto influyen en
la “figura” como conforman el “fondo” de la intervención humanitaria: la nueva fase
del capitalismo financiero no productivo con sus estrategias globalizadoras de
expansión e imposición de un modelo de desarrollo supeditado y orientado al
capital especulativo; la preponderancia de otros actores internacionales como las
empresas y grandes corporaciones trasnacionales, organismos internacionales,
entidades financieras y movimientos, colectivos o grupos pertenecientes a la
sociedad civil; los impactos medioambientales y culturales provocados como
consecuencia de los avances tecnológicos y científicos en materia de medios de
comunicación, armamentos, salud... y los peligros ontológicos que conllevan; el
incremento de la desigualdad internacional y las polarizaciones Norte/Sur y
Occidente/No-Occidente; el predominio hegemónico de los Estados Unidos y el
incremento de su nacionalismo militarista; la ruptura de las relaciones sociales
más o menos solidarias subyugadas bajo una cultura sacrificial de la violencia; los
desplazamientos interfronterizos de personas por razones de fuerza mayor; el
problema del “terrorismo” y la seguridad internacional acentuados tras los
acontecimientos del 11 de septiembre de 2001 11; el comercio de armas y el
problema del narcotráfico, etc.
11
Sobre el incremento del nacionalismo militarista usamericano a partir de los sucesos del 11 de
septiembre y el ascenso de un derecho militar y de una institucionalidad jurídica de cuartel
cimentado en el unilateralismo y la razón de la fuerza de USA, ver el espléndido trabajo de
Eduardo Saxe-Fernández, “Militarización de la crisis mundial: costos de la hegemonía, colapsos
mundiales y pensamiento oficial”, Documentos de Estudio, n° 15, Universidad Nacional de Costa
Rica, Heredia, 2002.
Reflexiones E (Im)Precisiones en Torno a la Intervención Humanitaria y los Derechos Humanos
219
3. Dudas, Inquietudes, Premisas e Hipótesis De Trabajo en Torno a la
“Intervención Humanitaria” a partir de la Articulación de Tramas Sociales
Las razones de subrayar la importancia que tiene la realización de una
delimitación previa del “fondo”, además de hacerla con la “figura” de la
intervención de humanidad nos permite situarla en un mundo concreto y
específico de relaciones humanas. No se trata de realizar un ejercicio de
laboratorio, aislando el objeto de investigación de toda impureza y de posibles
distorsiones externas. Moviéndonos en la abstracción, la selección de elementos
es inherente. Muchas cosas y muchos factores quedarán fuera, pero al menos,
estamos sobre-avisados de determinadas circunstancias y, asimismo, abordamos
el problema teniendo en cuenta una serie de hipótesis, intuiciones e inquietudes
que en forma de premisas nos mueven a realizar estas reflexiones. Algunas de
las premisas son las siguientes:
En primer lugar, cuando se habla de los derechos humanos, nos
encontramos constantemente con lo que Santo Tomás denomina habitus
principiorum, es decir, la costumbre y el hábito que la cultura occidental tiene de
proclamar principios para no tener que vivir según ellos. 12 La separación entre la
dimensión normativa y formal de la dimensión efectiva y concreta de los derechos
humanos se descubre principalmente a través de la manera de articularse y darle
sentido a la acción humana. Por esta razón, es necesario en todo momento
vincular los derechos humanos con las tramas sociales que los constituyen. En
ellas se plasman y se reflejan los tipos inclusivos o exclusivos de
reconocimientos, reciprocidades y conformaciones de los sujetos, dentro de las
cuales se sitúan los ordenamientos jurídicos y las constituciones nacionales e
internacionales,
que
pueden
establecer
límites
sustanciales
a
acciones
controladas por lógicas de rechazo y cosificación. Por muy bueno que sea
cualquier principio, norma, criterio o institución, si está instalado en una lógica de
dominación, inevitablemente operará como un dispositivo más de ésta. En este
caso, el marco de los derechos humanos en tanto que internacionalizados, hay
que establecerlo en el contexto de la globalización y en la relacionalidad en la que
12
Ver Boaventura de Sousa Santos, A crítica da razao indolente: contra o desperdício da
experiencia, Cortez Editora, Sao Paulo, 200, p. 32. Existe traducción al castellano en la Editorial
Desclée de Brouwer, Bilbao, 2003.
220
David Sánchez Rubio
se sitúa y se desarrolla toda la comunidad internacional.
Jaime Oraa señala que la situación de los derechos humanos en el mundo
contemporáneo experimenta una gran paradoja, en el sentido de que junto al
avance innegable en el último lustro, tanto teórico-jurídico como institucional con
el desarrollo de la legislación regional e internacional en materia de derechos
humanos, asistimos simultáneamente a gravísimas violaciones de los mismos.
Con sus palabras, no se trata solamente de que este siglo XX haya asistido
posiblemente a las mayores masacres de la historia de la humanidad, sino que
además existe una situación estructural de violación de estos derechos para las
grandes mayorías. 13 El incremento de las tendencias destructivas de la vida social
y natural tiene como resultado la creciente exclusión y pobreza de la población
mundial, acompañada de la aniquilación del entorno natural de la vida humana. 14
¿A qué se debe esto? ¿cuáles pueden ser las razones de esta gran contradicción,
que refleja la separación que existe entre el reconocimiento institucional de los
derechos humanos y su falta de aplicación y real reconocimiento para, al menos,
dos tercios de la población del planeta que se muere de hambre? ¿Realmente
existe una clara intención para que todo ser humano concreto y corporal, en tanto
sujeto de necesidades, tenga reconocidas sus capacidades y potencialidades?,
¿o es que los discursos y las instituciones que los universalizan, únicamente
hacen referencia a un sujeto abstracto, representativo de una específica
manifestación de ejercer lo humano, de entre las múltiples posibilidades y
manifestaciones que existen?
La historia está llena de infinitud de contactos y conexiones, de vínculos e
interrelaciones, de procesos y trayectos que son imposibles de reflejar en su
totalidad desde un punto de vista científico. Eric Wolf afirma que todos estos
elementos no se toman en consideración en la mayoría de las investigaciones
históricas. Incluso suelen abundar los enfoques que narran la historia como si
fuera un relato de éxito moral, sobre el desarrollo de la virtud en la que se cuenta
cómo los buenos ganan a los malos y, por el hecho de esa victoria, son los
13
Jaime Oraa, “La gran paradoja de los derechos humanos en el mundo contemporáneo”, en
Antonio Marzal (ed.), Los derechos humanos en el mundo, J.M. Bosch/ESADE, Barcelona, 200, p.
39 y 46.
14
Ver Germán Gutiérrez, Globalización, caos y sujeto en América Latina, DEI, San José, 2001, p.
220-221.
Reflexiones E (Im)Precisiones en Torno a la Intervención Humanitaria y los Derechos Humanos
221
verdaderamente virtuosos. 15 Asimismo, las narraciones quedan como una carrera
en el tiempo en que cada corredor pasa la antorcha de la libertad al siguiente
equipo. 16 Desde esa actitud se acaba por convertir los nombres con los que
interpretamos la realidad, en cosas, con lo cual creamos falsos modelos de
realidad. De esta forma, atribuimos a naciones, sociedades, culturas, la calidad de
objetos internamente homogéneos y externamente diferenciados y limitados. El
mundo termina por concebirse como una gran mesa de pool, en donde las
entidades giran alrededor como bolas de billar, perdiéndose todo el sentido de la
relacionalidad. 17 Algo parecido sucede con los estudios tanto diacrónicos como
sincrónicos sobre los derechos humanos. Se suele olvidar un factor primordial
sobre los cuales se construyen y articulan: las tramas sociales. 18
El carácter excesivamente formal de la mayoría de los discursos y de las
concepciones modernas sobre los derechos humanos, adolecen de un excesivo
carácter abstracto, tendencia que tiene su raíz y gestación en el orden burgués.
De esta forma, se concibe al ser humano como “individuo”, y cada “individuo”
pertenece a una idea de “humanidad” con independencia de las relaciones
sociales que se establecen entre sí y de las lógicas que las animan. Ambas
circunstancias se deshistorizan y se ignoran los concretos y complejos
señalamientos sociales, que configuran las posiciones y las prácticas que
protagonizan o sufren las diversas personas o grupos humanos. 19 Se puede
hablar de “humanidad”, de “derechos humanos”, de “dignidad”, pero con
independencia de las tramas sociohistóricas que dan una más completa medida
de su operatividad y de su factibilidad. De ahí la importancia que tiene la atención
a si se ponen o no se ponen los medios, y se facilitan o no se facilitan las
condiciones para que los seres humanos puedan desplegarse como verdaderos
sujetos. En función de cuáles sean las lógicas sobre las que se articulen las
tramas
y
relaciones
sociales,
mayores
o
menores
serán
los
medios
proporcionados a los seres humanos para que el reconocimiento de sus derechos
sea efectivo. Las lógicas bien pueden ser de dominación y marginación o de
15
Ver Eric R. Wolf, Europa y la gente sin historia, FCE, México, 1987, p. 16.
Ibid., p. 17.
17
Ibid., p. 19.
18
Concepto e idea que hemos tomado de Helio Gallardo, Política y transformación social.
Discusión sobre derechos humanos, Tierra Nueva, Quito, 2000.
19
Ibid., p. 132.
16
222
David Sánchez Rubio
imperio, bien de emancipación y de solidaridades. El mismo Helio Gallardo,
refiriéndose al contexto internacional actual, afirma que la humanidad no aparece
como un proyecto a realizar, en tanto que expresa la voluntad particular y
generalizada de reproducir prácticas de imperio y discriminación, mediante formas
que pueden incluir la adscripción a declaratorias sobre derechos humanos, e
incluso a una estricta judicialización. El resultado es que se respaldan los
derechos humanos con normas jurídicas que garantizan su vigencia jurídicoformal pero no su eficacia social. 20
En segundo lugar y en función de lo anterior, pero ya referido a la “figura”
de la “intervención de humanidad”, resulta que si en condiciones normales
predomina una situación general de no reconocimiento de los derechos humanos
en donde, al menos, dos tercios de la humanidad no tienen elementos suficiente
de subsistencia, parece un contrasentido tratar de argumentar, en abstracto, la
justificación de la intervención en condiciones extremas, para salvar la vida de
quienes son agredidos en sus derechos más fundamentales de forma grave y
masiva. Da la sensación de que ante el drama de la exclusión, que es estructural,
normalizado y también sistemático y masivo, pretendemos acercarnos a lo que se
ha propuesto como una solución balsámica: la acción humanitaria sobrevenida y
que se proporciona con el uso de la fuerza militar.
Antes de entrar en las condiciones y en los requisitos legales y morales
para poder intervenir por razones humanitarias (quién decide, quién ejecuta, cómo
y con qué medios, cuándo y durante cuánto tiempo, etc.), si partimos de un
contexto de desigualdad económica, de asimetría internacional, institucionalmente
precario en democracia y en el reconocimiento de la capacidad de desarrollo de
las potencialidades de los sujetos, controlado bajo una lógica de exclusión en la
que predomina una racionalidad instrumental de cálculo medio/fin, en la que el
capital está por encima de las personas y sus necesidades, nos encontramos con
unas premisas que ya nos están avisando de la precariedad con la que
pretendidamente pudiera justificarse un derecho de “intervención humanitaria” o
“de humanidad”.
Como en las situaciones del normal funcionamiento del sistema
20
Ibid., p. 103-104.
Reflexiones E (Im)Precisiones en Torno a la Intervención Humanitaria y los Derechos Humanos
223
socioeconómico global no se reconocen los derechos humanos, ni se valora la
vida de todos los sujetos humanos como objetivo prioritario, la legitimidad de
intervenir en situaciones de “anormalidad”, es decir, la “salvación” puntual y
ocasional de vidas que se alega, posee todos los tintes de falsedad, hipocresía y
cinismo. Al estar la situación del orden social imperante quebrada de raíz, también
quedará rota y en entredicho cualquiera de las decisiones que a favor de la
intervención de humanidad o humanitaria se tome.
En tercer lugar, hay que subrayar otro hábito en el seno de nuestra cultura
y que se plasma con el tema de la “intervención de humanidad”: sólo nos
preocupamos por los efectos directos e inmediatos de las acciones directas e
ignoramos los efectos indirectos de las acciones directas. La “intervención de
humanidad”, entendida en su real intención de evitar violaciones de derechos
humanos, implica una acción directa, la militar, con motivo de situaciones límites
de eliminación grave, masiva, directa e inmediata de vidas humanas. Pero en una
situación cotidiana y de normalidad, vivimos en un contexto en el que hay una
eliminación indirecta, grave, masiva y mediata de las vidas. Sólo se piensa que es
anormal la agresión directa contra la vida de determinadas personas, pero no se
reacciona ante los efectos indirectos provocados por otras acciones directas que,
aparentemente no tienen el propósito de aniquilar seres humanos. 21
Incluso hay víctimas directas e indirectas en toda acción armada para
salvar vidas. Todo esto tiene mucho que ver con el problema de la
responsabilidad y la legitimidad de quienes actúan a favor de los derechos
humanos sistemática y masivamente violados. Quienes tienen la suficiente
capacidad de intervenir –suelen ser las grandes potencias, los más fuertes,
además de contribuir a mantener la cotidianidad de la exclusión, también suelen
cerrar las puertas al reconocimiento humano con acciones muy directas:
impidiendo la inmigración; no reconociendo los derechos económicos, sociales y
culturales, que paradójicamente son los que permiten las condiciones mínimas
vitales; manteniendo la deuda externa; proporcionando el armamento militar a los
países y grupos del Tercer Mundo que están en guerra; etc.
21
Sobre los efectos indirectos de la acción directa, ver el trabajo de Franz Hinkelammert, “Los
derechos humanos frente a la globalidad del mundo”, en El retorno del sujeto reprimido,
Universidad Nacional de Colombia, 2002, p. 199 y ss.
224
David Sánchez Rubio
Finalmente, está la cuestión de la vida y de la muerte, y en qué grado se
valora la vida de los seres humanos. Intervenir con medios de muerte para salvar
vidas, implica todo un proceso de reflexión sobre la adecuación o no de la
adopción de dichas medidas y de prudencia a la hora de hablar de un supuesto
“derecho de intervención”. Asimismo, se hacer urgente abordar problemas
relacionados con la necesidad de adoptar medidas preventivas, y con la
articulación de acciones solidarias más integrales desde una cultura de pacifismo
activo, cuyo juicios de existencia se cimenta sobre el “no matarás”. La vida se
genera desde la vida y no desde la muerte. 22
Tal como señala Fernando Vallespín, la “intervención humanitaria” en
general es un ejemplo de la tensión del sentido universal y las condiciones locales
de realización de los derechos humanos, además de que representa un típico
supuesto de hard choice o decisión difícil que no admite decisión limpia ni libre de
cargas, de ahí que se deban evitar las autocomplaciencias y los espíritus
autosatisfechos. 23 Por ello queremos insistir en lo siguiente: que no se den los
requisitos para considerar legítima la “intervención de humanidad”, no quiere decir
que en determinadas circunstancias se deban evitar situaciones graves de
violación de derechos humanos fundamentales. No obstante, la acción bélica no
es un mecanismo de garantía de los derechos humanos. Pensamos que,
efectivamente, hay situaciones de hecho en las que la acción armada y violenta
aparece y hay que emplearla transitoriamente, pero debemos quitarle el ropaje
ideológico que legitima el uso de la fuerza y que lo bautiza y lo viste bajo el ropaje
de una acción humanitaria. Nunca habrá por medio del uso de la fuerza armada
una protección de derechos humanos, pues la utilización de instrumentos de
muerte, también genera situaciones de muerte. El propio José María Mendiluce
22
Partimos de la consideración que el criterio y el principio de producción, reproducción y
desarrollo de la vida humana son unas de las principales instancias de fundamentación de los
derechos humanos, pues no hay situaciones más extremas que las provocadas por los actos de
violación grave y masiva. En ellas es cuando se pone a prueba la capacidad de respuesta de la
comunidad internacional, y resulta impactante que para salvar vidas humanas deba realizarse a
través de un discutido uso de la fuerza. Sobre el criterio de vida como condición de posibilidad de
todos los fines, ver la obra de Franz Hinkelammert. Entre muchos de sus libros: La fe de Abraham
y el Edipo occidental, DEI, San José, 1991; El mapa del emperador, DEI, San José, 1996; El grito
del sujeto, DEI, San José, 1998; Sacrificios humanos y sociedad occidental. Lucifer y la bestia,
DEI, San José, 1998; y El retorno, del sujeto... También ver Enrique Dussel, Ética de la liberación
en la edad de la globalización y la exclusión, Trotta, Madrid, 1998.
23
Ver Fernando Vallespín, “Intervención humanitaria: ¿moral o política?”, Revista de Occidente, n°
236-237, 2001, p. 59-60.
Reflexiones E (Im)Precisiones en Torno a la Intervención Humanitaria y los Derechos Humanos
225
subraya que toda guerra es atroz en sí misma y escenario propicio para actos
especialmente atroces. La guerra no es nunca limpia ni inocente... 24
Con todo esto, además, lo que queremos también es llamar la atención
sobre el hecho de que hay indicios muy claros para sospechar y cuestionar, en
situaciones reales, sobre las verdaderas intenciones de quienes, en nombre de
unos derechos que en lo cotidiano no reconocen a la mayoría de la población del
planeta, usan la fuerza militar. Cuando el ser humano no cuenta, extraña manera
es la de recuperarlo a base de bombas y/o armas humanitarias.
Por último y como trasfondo, subyacen una inquietud y una duda
adicionales, pero no por ello menores. La inquietud es la de si realmente la vida
corporal y concreta de los sujetos humanos es el principal propósito de las
medidas de asistencia; y la duda se centra en si la intervención armada, aún en
casos extremos, es el medio más adecuado. Dentro de estas preocupaciones
buscamos algunas de las razones que expliquen el por qué en situaciones de
anormalidad se actúa con tanta contundencia, cuando en situaciones normales no
se hace.
Como anticipo de las conclusiones a las que hemos llegado tras el estudio
del cual forma parte este trabajo, siempre incompleto de un tema tan complejo
como éste, afirmamos que en ningún caso ni en ningún momento consideramos
que en la historia de la humanidad pasada y presente, se ha realizado un
supuesto acto de “intervención de humanidad” con el único, el exclusivo o,
incluso, el principal propósito de evitar una situación de violación masiva y
sistemática de los derechos humanos.
Entendida la “intervención de humanidad” como la utilización de la fuerza
armada para proteger frente a los criminales a las víctimas masivas y sistemáticas
de sus derechos fundamentales, 25 y teniendo en cuenta el deber y la obligación
de asistencia que toda la comunidad internacional tiene de proteger el derecho
colectivo inderogable a la vida, consideramos que en ninguna ocasión se ha
presentado una real y verdadera intención de salvar las vidas de las víctimas de
24
Ver José María Mendiluce, La nueva política. Por una globalización democrática, Planeta,
Madrid, 2002, p. 50-51.
25
Véase Fernando M. Mariño Menéndez, “Algunas consideraciones sobre el derecho internacional
relativo a la `intervención´ armada de protección de los derechos fundamentales”, Revista de
Occidente, n° 236-237, 2001, p. 108.
226
David Sánchez Rubio
dichas violaciones. Es decir, si supuestamente con la protección y la garantía de
los derechos humanos se pretende proteger las libertades y los espacios vitales
de todos los seres humanos, sin excepciones, en los casos de un uso legítimo de
la fuerza por razones de humanidad, en ningún momento se ha considerado a las
personas, a los sujetos humanos concretos y corporales, como los principales
destinatarios de dicho tipo de actuaciones. Antes se han valorado y priorizado otro
tipo de razones o circunstancias como: intereses económicos, razones de
seguridad bajo el principio del mantenimiento de la paz y la seguridad
internacionales; la protección de intereses geoestratégicos y geopolíticos; la
preocupación selectiva por los propios nacionales o por determinados colectivos
más o menos afines ideológicamente; motivos religiosos... Es decir, en la balanza
entre las mediaciones y las instituciones humanas junto a la racionalidad que las
mueve por un lado, y los seres humanos reales, necesitados, concretos y
corporales por otro, en todo momento ha habido una abdicación de lo humano no
abstracto a favor de una idea sí abstracta de “civilización”, de “mercado”, de
“libertad”, de “racionalidad instrumental calculadora”, de “riqueza”, de “eficiencia”,
de “paz”, de “democracia”, de “equilibrio”, de “seguridad nacional o internacional”,
de “seguridad del capital o del mundo de las finanzas”, de “derechos humanos” en
abstracto, de “monopolio y control internacional del poder”, de “derecho o deber
de injerencia”.
La inquietud que se nos presenta va mucho más lejos. Profundizando un
poco más y con ciertas dosis de temeridad en el fondo, de lo que se trata es de
reconocer si realmente, en nuestras actuaciones no sólo extraordinarias, como las
que se requieren en los casos de intervención de humanidad, sino también en las
ordinarias y cotidianas, tanto las llevadas a nivel de lo público e institucional como
en el nivel de lo privado, como decimos, es realmente la vida y/o la dignidad de
todos los seres humanos el fin primario y último que nos empuja a actuar. No ya
la vida de unos pocos o unos cuantos seres humanos, sino de todos los seres
humanos sin excepciones.
Por esta razón, partimos de la consideración de que la vida humana es el
fundamento interno de la realidad. Funciona como criterio que juzga sobre toda
acción, tanto sobre aquello que la produce, reproduce y desarrolla como sobre
aquello que la aniquila o degrada. No nos referimos a ella como fin, ni como
Reflexiones E (Im)Precisiones en Torno a la Intervención Humanitaria y los Derechos Humanos
227
programa que se puede cumplir o en el que se fracasa. Se trata de la condición
para cualquier cosa, acción o evento que esté dentro de los marcos de la realidad
histórica del ser humano. A partir de este criterio, cuestionamos aquellos
argumentos que, por ejemplo, con respecto a la justificación o el rechazo de
determinadas guerras, ante la conciencia de exterminio global y total provocada
por las armas nucleares, se condenan las situaciones de exterminio parcial y
específico. 26 Ni éstas ni aquellas, en ningún caso, alcanzan cualquier grado de
validación moral. Es decir, cualquier guerra no viene invalidada moralmente por la
posibilidad de una “guerra final” en la que la humanidad queda eliminada, sino en
la medida que cualquier guerra supone muerte –aunque sea la de un solo ser
humano–, esto implica y es siempre el fracaso de todos. No existe un margen de
muertos tolerable o sustentable. 27 La guerra, sea cual sea, es un infortunio, un
drama y un fracaso para la humanidad, pues si valoramos la vida de todos lo
seres humanos, sin excepciones, la muerte de una sola persona nos afecta a la
totalidad de los miembros de la especie, implica también la “muerte” de todos y
cada uno de los integrantes de la humanidad.
Desde el punto de vista de la “intervención de humanidad”, tal como indica
Tzvetan Todorov, ninguna acción que conlleva el uso de la fuerza armada y
participa de una situación de guerra es un gesto humanitario, sean cuales sean
las acrobacias verbales que utilicemos. 28 Por esta razón, dentro del ámbito de las
relaciones internacionales, la acción bélica no es justificable en términos de
legitimidad. Otra cosa es asumir el hecho de que en determinados casos se deba
intervenir, pero nunca con el propósito de convertir el uso de la fuerza en un
elemento de protección y garantía de los derechos humanos, porque la acción
armada intrínsecamente es una violación de los derechos humanos.
Esta hipótesis de trabajo también guarda una estrecha relación con el
empleo de los términos. Sin ninguna duda nos encontramos con conceptos
indeterminados de difícil delimitación. Por este motivo se hace muy ardua y
26
Ver por ejemplo, Norberto Bobbio, El problema de la guerra y las vías de la paz, Gedisa,
Barcelona, 1982; y Alfonso Ruiz Miguel, La justicia de la guerra y de la paz, CEC, Madrid, 1988.
27
Ver Norman J. Solórzano Alfaro, Crítica de la imaginación jurídica. Una mirada desde la
epistemología y la historia al Derecho moderno y su ciencia, Tesis de Doctorado, Universidad
Pablo de Olavide, 1 de julio de 2002, p. 94 y 95, nota 43.
28
Tzvetan Todorov, Memoria del mal y tentación del bien. Indagación sobre el siglo XX,
Península/HCS, Barcelona, 2002, p. 316.
228
David Sánchez Rubio
complicada la selección de una denominación precisa. Esto no será un
impedimento para que, desde el principio, afirmemos nuestra disconformidad por
el uso y la atribución de los rótulos “intervención de humanidad” e “intervención
humanitaria” a los fenómenos implicados. Más adelante daremos más detalles de
nuestras razones de por qué lo consideramos un error. Por ahora señalar que
preferimos hablar de “intervención militar o armada”, ya sea considerada
unilateral, multilateral o institucional en función de los actores internacionales
intervinientes, y añadiéndole el adjetivo que corresponda en cada circunstancia.
Es decir, si se trata de una intervención militar para proteger el desarrollo de la
asistencia humanitaria, preferimos calificarlo de “intervención militar de protección
de asistencia” en tanto que aplicación coercitiva de la función de asistencia
internacional (que sería lo que se entiende por “intervención humanitaria” con el
uso de la fuerza armada); si se pretende poner fin a una situación de violación
grave y masiva de derechos humanos, preferimos llamarlo “intervención militar o
armada de defensa del Derecho internacional” (equivalente a la “intervención de
humanidad”). Debido a las utilizaciones generalmente admitidas, pese a las
discrepancias, tanto de la “intervención humanitaria” como de la “intervención de
humanidad” –incluso llegándose a incluir ésta en aquélla–, vamos a utilizar
indistintamente estos términos con los dos que proponemos, pero poniéndolos
entre comillas.
Una vez hecha la delimitación de algunos elementos del “fondo” en el que
consideramos hay que situar el problema de la “intervención de humanidad” y, por
extensión, de los derechos humanos, a partir de ahora pondremos especial
atención a la “figura” sobre la cual se desenvuelven todas estas reflexiones, sin
renunciar ni dejar de hacer referencias a cuestiones vinculadas, de alguna u otra
manera, con ambas dimensiones de lo real. A lo largo de las próximas páginas
nos detendremos en la reflexión sobre cuestiones vinculadas con los conceptos
de “intervención humanitaria” e “intervención de humanidad”, así como una
justificación de las razones por las que consideramos inadecuada la utilización de
dichos rótulos.
Reflexiones E (Im)Precisiones en Torno a la Intervención Humanitaria y los Derechos Humanos
229
4. ¿Qué se Entiende por “Intervención Humanitaria” y por “Intervención de
Humanidad”?
Lo primero que tenemos que decir es que el rótulo “intervención
humanitaria” junto con el de “injerencia humanitaria” son los que, por lo general,
más se utilizan para designar indistintamente y aglutinar diversas situaciones en
las que se hace un uso de acción bélica por uno o varios Estados en el territorio
de otro, como mecanismo de protección de los derechos humanos y/o de la
asistencia humanitaria. Por ello, existe una gran imprecisión terminológica al
hablarse de “intervención de humanidad”, “deber de injerencia”, “derecho de
asistencia”, “derecho de intervención”, “intervención de urgencia”, etc. Todas
estas expresiones se suelen usar para referirse a los mismos acontecimientos. No
obstante, la noción de “intervención humanitaria”, como las demás, son conceptos
jurídicos indeterminados. Pese a que desde hace mucho tiempo la doctrina de la
“intervención humanitaria” ha sido objeto de controversia en el seno del Derecho y
en las relaciones internacionales, y sigue siéndolo en la actualidad, no se ha
hecho una clara definición de la misma hasta el momento. Además, tal como
anticipamos, a ello hay que añadir que los aspectos tanto jurídicos como éticos
aparecen tan unidos y vinculados que es difícil deslindar las propuestas que
pertenecen a uno u otro orden. En todo caso, la indeterminación del concepto y la
diversa terminología empleada han contribuido a crear confusión sobre su
contenido. 29 Incluso hay quienes, como nosotros, cuestionamos tales términos.
Por tanto, no existe una definición que goce de aceptación unánime o universal.
En este sentido, el propio Yves Sandoz se lamenta de que muchas de las
disputas sobre el tema del “derecho o deber de injerencia” malgaste demasiada
energía con controversias provocadas sobre la base de equívocos. Entristece que
los partidarios del humanitarismo, los “humanitarios”, busquen polémicas entre
ellos. Para él, tres son los factores que conforman la causa de estos conflictos: a)
los juristas se han encontrado con un concepto sin definir. Para hablar seriamente
de Derecho es necesario hacerlo con definiciones, pues sin ellas se hace la
empresa imposible; b) se ha oído de todo en el debate público lanzado
29
Ver María del Carmen Márquez Carrasco, Problemas actuales sobre la prohibición del recurso a
la fuerza en derecho internacional, Tecnos, Madrid, 1998, p. 200.
230
David Sánchez Rubio
paralelamente; y c) se ha aplicado a este concepto sin definir dos entidades no
comparables, los Estados y las organizaciones humanitarias. Esta es la razón de
que el “derecho de injerencia” sea una contradicción en términos. 30
Asimismo, a pesar de los numerosos instrumentos normativos en los que
se consagran los principios estructurales del Derecho internacional como son el
principio de no intervención y el principio de prohibición del uso de la fuerza,
frente a los cuales la “intervención humanitaria” y/o la “intervención de
humanidad” serían una excepción, no se cuenta con ninguno en el cual se
delimite con claridad y precisión la conducta prohibida por dichos principios, y
tampoco en las escasas ocasiones en las que la jurisprudencia internacional se
ha ocupado de eventuales supuestos de intervención, ha aportado una perfecta
definición de esta conducta (como por ejemplo, en el asunto relativo al estrecho
de Corfú y el referente a las acciones militares y paramilitares en y contra
Nicaragua). En realidad, ha sido la doctrina internacional la encargada de definir y
perfilar los elementos constitutivos de la intervención, que supone siempre una
injerencia coactiva en los asuntos de un Estado. 31
Por nuestra parte, dentro de la dificultad, trataremos de aclarar un poco
todo este mare mágnum terminológico. Pero vayamos por partes. Primero,
siguiendo el consejo de Sandoz, vamos a reflejar una serie de conceptos que la
doctrina internacionalista ha dado tanto sobre la “intervención humanitaria” como
sobre la “intervención de humanidad”. Después, entraremos a aclarar algunos
elementos de los significantes e ideas que más vinculados están con ambas
definiciones, como son el concepto de “intervención”, la idea de “humanidad” en
relación al tema de la “asistencia humanitaria”, y el propósito de “protección de los
derechos humanos”.
30
Ver Yves Sandoz, “Derecho o deber de injerencia...”
Fernando Pignatelli y Meca, “La intervención e injerencia humanitaria. ¿Un derecho, un deber,
una excusa?”, Normativa reguladora del militar profesional en el inicio del siglo XXI y otros
estudios jurídicos militares. III Jornadas sobre asesoramiento jurídico en el ámbito de la defensa,
Ministerio de Defensa. Subsecretaría de Defensa, Madrid, 2001, p. 688-689.
31
Reflexiones E (Im)Precisiones en Torno a la Intervención Humanitaria y los Derechos Humanos
231
5. Los Conceptos de “Intervención Humanitaria” y de “Intervención de
Humanidad”
En todas las definiciones sobre la “intervención humanitaria” y/o “de
humanidad” realizadas a lo largo de la historia, se pueden encontrar algunos
elementos básicos y recurrentes. Consuelo Ramón Chornet destaca a título de
ejemplo: la apelación a la justicia o a la legitimidad de la “intervención de
humanidad”; la existencia de leyes, principios o exigencias comunes a la noción
de “humanidad”, cuya violación suspendería el derecho de soberanía, y que
tendría como la concreción más típica el carácter irrenunciable de la defensa de
los derechos humanos, etc. 32
A partir de la combinación de esos elementos recurrentes con otros
adicionales, y teniendo en cuenta el actual contexto histórico en el que nos
situamos, en principio y de manera provisional, consideramos que ambos
términos se pueden utilizar, en un sentido general, para designar indistintamente,
aquellas acciones armadas realizadas por uno o varios Estados
y/u organizaciones internacionales sobre el territorio de otro y sin
su consentimiento, para proporcionar a la población de éste, o
bien una protección de sus derechos humanos más elementales,
que están siendo vulnerados de forma grave, masiva y
sistemática, o bien para proporcionarle asistencia en aquellas
situaciones de emergencia que ponen en peligro la vida, la
seguridad, la dignidad o los bienes materiales indispensables para
el ser humano. 33
De esta definición descriptiva inicial que proponemos, y en la que incluimos
por igual ambos conceptos, deduciremos después las diferencias que existen
32
Consuelo Ramón Chornet, ¿Violencia necesaria? La intervención humanitaria en Derecho
internacional, Trotta, Madrid, 1995, p. 58-59.
33
Ya en el año 1910, A. Rougier señaló en un sentido mucho más amplio que el aquí propuesto,
que la doctrina de la “intervención humanitaria” reconoce como un derecho el ejercicio del control
internacional de un Estado sobre los actos de soberanía interior de otro contrarios a las `leyes de
humanidad´... siempre que los derechos humanos de un pueblo sean desconocidos por sus
gobernantes, uno o varios Estados podrían intervenir en nombre de la Sociedad de Naciones, ya
sea para pedir la anulación de los actos del poder público criticables, ya sea para impedir la
reanudación de tales actos en el porvenir, ya sea para suplir la inacción del Gobierno tomando
medidas cautelares urgentes y sustituir momentáneamente la soberanía misma del Estado
controlado. “La théorie de l`intervention d`humanité, Revue General de Droit International Public,
vol. XVII, 1910, p. 472. Referencia tomada de Luis Peral Fernández, Éxodos masivos,
supervivencia y mantenimiento de la paz, Trotta, Madrid, 2001, p. 258.
232
David Sánchez Rubio
entre uno y otro.
Tal como señala el internacionalista Fernando M. Mariño Menéndez, el
régimen jurídico de una intervención armada para proteger los derechos humanos
fundamentales vincula dos elementos: a) el uso de medidas de coerción armada
por uno o varios Estados y/u organizaciones internacionales en el territorio de un
tercer Estado sin su autorización; y b) para salvaguardar los derechos humanos
fundamentales, esencialmente el derecho a la vida, a la integridad física y moral y
la libertad de personas que allí habitan. 34 El medio empleado: la fuerza armada;
los
objetivos:
la
salvaguarda
y
protección
de
los
derechos
humanos
fundamentales; y el hecho de la intromisión en la esfera de la soberanía de un
tercer Estado sin su consentimiento, por tanto, son sus principales características.
En el momento en el que se dé el consentimiento por parte del tercer Estado para
intervenir con fines humanitarios, ya no tiene el debate relevancia jurídica al no
haber violación de la soberanía territorial, ni tampoco hay intervención que, por
definición, conforme una conducta no consentida. 35
Además, la profesora Pérez Vera afirma que por “intervención de
humanidad” –que nosotros, reiteramos, ahora la asociamos con la “intervención
humanitaria” sin establecer diferencias entre ambas–, se puede entender
la institución jurídica que, en el marco de la comunidad
internacional de los Estados, trata de proteger a todo individuo,
cualquiera que sea su nacionalidad, sus derechos fundamentales,
es decir, aquellos que le pertenecen en cuanto que hombres,
antes incluso de que forme parte de la sociedad política.
Y supone e implica la injerencia activa de uno o varios Estados en los asuntos
internos de otro, con vistas a imponerle el respeto de los derechos fundamentales
34
Fernando M. Mariño Menéndez, “Algunas consideraciones sobre el Derecho internacional
relativo a la “intervención” armada de protección de derechos fundamentales”, en Revista de
Occidente, n° 236-237, p. 107.
35
Ibid., p. 109. W.D. Verwey entiende que sólo es “intervención humanitaria” aquella realizada de
modo unilateral o multilateral por los Estados, y que no está autorizada por relevantes organismos
de Naciones Unidas, además de por el Estado sobre el cual se interviene. La concibe como la
protección de los derechos humanos fundamentales por un Estado o grupo de Estados,
particularmente el derecho a la vida de la persona nacional de otro Estado, por medio del uso de la
fuerza, sin autorización de autoridades del Estado que la soporta y sin la autorización de los
órganos relevantes de NNUU. Referencia tomada de Jaume Ferrer Lloret, Responsabilidad
internacional de los Estados y derechos humanos, Tecnos-Universidad de Alicante, Madrid, 1998,
p. 287. La traducción es nuestra.
Reflexiones E (Im)Precisiones en Torno a la Intervención Humanitaria y los Derechos Humanos
233
de sus ciudadanos y, además, sólo se da en los supuestos que se realiza una
intervención armada. 36 Por tanto, cualquier otro tipo de intervención que no sea
ejecutada mediante el uso de la acción bélica, no se sitúan dentro del supuesto de
la “intervención humanitaria” en el sentido general aquí propuesto. Entre los
distintos grados de ejecución de la fuerza, sólo se tienen en cuenta las que se
realizan con ataque armado. En el próximo apartado nos detendremos con más
detalle sobre el particular.
Asimismo, de la definición inicial, dos son los supuestos que pueden
escindirse en contextos de crisis humanitarias, y a partir de los cuales haremos la
distinción “intervención humanitaria”/“intervención de humanidad”: a) el primer
supuesto se refiere a los casos de protección militar o apoyo logístico o bélico
para asegurar la seguridad de los envíos humanitarios. En concreto, a la fuerza
militar que se utiliza para asegurar que la “ayuda humanitaria” prestada por
organismos internacionales u organizaciones privadas (ONGs) llegue a las
poblaciones en peligro. 37 Nos encontramos con acontecimientos de grave crisis
humanitaria que justifican el empleo de la fuerza armada para socorrer a las
personas en situación de grave necesidad y, con ello, asegurarles la llegada y la
distribución de la ayuda humanitaria; b) el segundo supuesto consiste en el uso
de la fuerza armada para poner fin a violaciones graves, masivas y sistemáticas
de los derechos fundamentales del ser humano, es decir, la utilización de la
fuerza armada para proteger frente a los criminales a las víctimas de violaciones
masivas y sistemáticas de sus derechos humanos fundamentales. 38
En el primer caso, nos encontramos con lo que entendemos por
“intervención humanitaria”, actividad vinculada con el concepto de “asistencia
humanitaria”. Aquella pretende abrir un espacio de seguridad que permita el
ejercicio con ciertas garantías de las acciones de asistencia. La “intervención de
humanidad”, en cambio, ya implica el propósito expreso de proteger a la población
de un Estado que es víctima de violaciones masivas y sistemáticas de los
36
E. Pérez Vera, “La protection d`humanité en droit international”, Revue Belge de Droit
International, 1969, p. 401-402. Traducción que hemos tomado de Consuelo Ramón Chornet,
¿Violencia necesaria?, p. 53.
37
Ver Fernando M. Mariño Menéndez, “Algunas consideraciones sobre el Derecho
internacional...”, p. 108
38
Ibid. En el mismo sentido, ver Florentino Ruiz Ruiz, Derechos humanos y acción unilateral de los
Estados, Universidad de Burgos, Burgos, 2000, p. 40 y 201.
234
David Sánchez Rubio
derechos humanos fundamentales. Según Cesareo Gutiérrez Espada, la primera
consiste en imponer a un Estado (ante su silencio o aún contra su voluntad) la
asistencia, cuando se dan circunstancias de catástrofe humanitaria. Para
proporcionar tal ayuda, por lo general, no hace falta el uso de la fuerza armada,
aunque se dan casos en los que es necesaria la aportación de elementos
militares de apoyo logístico, pero con la única finalidad de facilitar y hacer segura
la asistencia, por lo que el uso de la fuerza no sería dirigida directamente contra
un Estado. Como ejemplos, pone el establecimiento de zonas de exclusión aérea,
zonas protegidas o santuarios, operaciones de asistencia humanitaria, o incluso
levantar Estados que se derrumban y caen en pedazos como sucedió en Somalia.
Se trata de una injerencia limitada y no comparable con intervenciones armadas
contra Estados que violan los derechos humanos, que sí sería la característica de
la “intervención de humanidad”. Esta no supone una ayuda médica o sanitaria
acompañada con un dispositivo militar de apoyo militar a los cooperantes, sino
que pretende arrancar a las víctimas de las masacres de las garras de sus
opresores. 39
De todas formas, ambas justificaciones aparecen unidas en todos los
conflictos en los que se ha autorizado o empleado la fuerza armada en los últimos
años. En la práctica, una situación conlleva a la otra, por lo que, en consecuencia,
la distinción conceptual más que perder su sentido, 40 demuestra que tanto el
Derecho humanitario internacional como el Derecho internacional de los derechos
humanos deben ser considerados como partes ambos, de un concepto más
general y más amplio de derechos humanos, de ahí el hecho de que, en muchas
ocasiones, merezcan el mismo tratamiento. Como veremos, la prestación
humanitaria puede considerarse hoy ya un derecho humano fundamental. 41
No obstante, ante la indeterminación y la indiferencia en el empleo de los
términos, reiteramos el uso indistinto realizado por la doctrina. Así, por ejemplo,
podemos encontrarnos con especialistas que usan el rótulo de “intervención
humanitaria” en tanto derecho, para referirse a lo que nosotros entendemos por
39
Ver Cesáreo Gutiérrez Espada, “Uso de la fuerza, intervención humanitaria y libre determinación
(la `Guerra de Kosovo´)”, en Antonio Blanc Altemir, La protección internacional de los derechos
humanos a los cincuenta años de la Declaración Universal, Tecnos, Madrid, 2001, nota 26, p.198.
40
Así lo considera Florentino Ruiz Ruiz, Derechos humanos y acción unilateral..., p. 201.
41
Ibid.
Reflexiones E (Im)Precisiones en Torno a la Intervención Humanitaria y los Derechos Humanos
235
“intervención de humanidad”, como Romualdo García Bermejo que la define como
el derecho de los Estados de recurrir a la fuerza sobre el territorio
de cualquier otro Estado con el fin de proteger o salvaguardar las
personas de tratos inhumanos que está sometidas por este último
Estado y que no pueden evitarse más que por un recurso a la
fuerza. 42
O también Fernando Tesón, quien indica que como
la justificación última de los Estados es la protección y refuerzo de
los derechos naturales de sus ciudadanos, un gobierno que
incurra en violaciones sustanciales de los derechos humanos
traiciona el objetivo real para el que existe, y así no sólo pierde su
legitimidad interna sino también su legitimidad internacional. 43
Finalmente queremos terminar con una pequeña precisión referida a
algunos supuestos más o menos afines a la “intervención de humanidad” e
“intervención humanitaria”:
El término “intervención por motivos de humanidad” es otro de los utilizados
en el pasado para designar operaciones de asistencia e intervenciones en los
asuntos internos de un tercer Estado, principalmente en el siglo XIX. Pero, sobre
todo, y es el matiz diferencial que queremos resaltar, para referirse a la protección
de sus propios ciudadanos por parte de un Estado en otro país. 44 Con
anterioridad al régimen establecido por la Carta de San Francisco, ha sido
considerado lícito el uso de la fuerza armada por el Derecho internacional general
para la protección de nacionales en el extranjero. La prohibición aparece y es
establecida por la misma Carta. 45 En este supuesto concurren dos circunstancias:
42
Ver Romualdo García Bermejo, “El derecho/deber de injerencia humanitaria en el derecho
internacional actual”, en VV.AA., El derecho por razones humanitarias, III Jornadas de Derecho
Internacional Humanitario, Cruz Roja Española, Universidad de Sevilla y Asociación para las
Naciones Unidas en Sevilla, Sevilla, 1995, p. 57; y Fernando Pignatelli y Meca, “La intervención e
injerencia humanitaria. ¿Un derecho, un deber, una excusa?”, p. 689.
43
Fernando R. Teson, Humanitarian intervention. An inquiry into Law and Morality, International
Publishers, New York, 1988, p. 3. Para otras definiciones, ver Florentino Ruiz Ruiz, Derechos
humanos y acción unilateral..., nota 167, p. 184; y Consuelo Ramón Chornet, ¿Violencia
necesaria?, p. 59-60.
44
En este sentido ver Anne Ryniker, “La posición del CICR sobre la “intervención humanitaria”, en
www.iciss.gc.ca/report-e.asp
45
Ver Florentino Ruiz Ruiz, Derechos humanos y acción unilateral..., p. 185-186. Romualdo
Bermejo García, distingue tres teorías respecto a su justificación: una restrictiva (ante la
prohibición de los artículos 2.4 y 51 de la Carta); otra realista (en virtud de los artículos 1, 55 y 56 y
236
David Sánchez Rubio
la violación de los derechos humanos fundamentales o de alguno de ellos en
determinadas personas; y un conflicto entre la competencia territorial de un
Estado y el personal de otro u otros. El predominio de los objetivos humanitarios,
y la consideración como imperativa de la norma que reconoce los derechos
humanos fundamentales que debe prevalecer sobre otras de la misma naturaleza,
aporta la circunstancia adicional a la competencia personal sobre la territorial. 46
Por otro lado, hay que distinguir la “intervención de humanidad” y la
“intervención humanitaria”, de las operaciones de mantenimiento de la paz y de
las acciones humanitarias en conflictos bélicos que sí tienen el consentimiento del
Estado receptor. Con respecto a la “intervención de humanidad”, coinciden en los
sujetos que intervienen (las Naciones Unidas y/o algunos de los Estados
miembros), como en los medios (el empleo de las fuerzas armadas), pero se
diferencian por la ausencia del consentimiento de la parte intervenida y en la
finalidad, que ni es la de garantizar el cese de hostilidades, ni tampoco la
resolución pacífica de un conflicto, sino la de establecer una situación política que
excluya las violaciones masivas de los derechos humanos. 47 Para Eusebio
Fernández, el medio utilizado es pleno y abiertamente bélico en las
“intervenciones de humanidad” –que él denomina “intervención humanitaria”–. La
finalidad, no es la de lograr la paz, ni la salvaguarda de un básico humanitarismo
en las actividades bélicas, sino la restauración de los derechos básicos
previamente
violados
en
la
población
ayudada, 48
hecho
que
nosotros
el fracaso del sistema de seguridad colectiva previsto por la Carta); y otra basada en la legítima
defensa (supone un ataque contra el propio Estado. Ibid., p. 186). En la práctica, existe una
tendencia similar a las justificaciones de las “intervenciones de humanidad”. En realidad, en raras
ocasiones las intervenciones de los Estados se justifican sobre la necesidad de proteger
nacionales en el extranjero. Se acompaña con otros argumentos: como la legítima defensa y el
estado de necesidad. Ibid., p. 187.
46
Ibid., p. 186. Según E. Spiry, los límites, una vez empleada la fuerza armada, son los siguientes:
la proporcionalidad; un mínimo perjuicio al principio de autodeterminación y de no injerencia
política; duración limitada a lo imprescindible; la comunicación inmediata a los organismos
internacionales competentes. Para Antonio Remiro Brotons en cambio, son: una intervención
puntual en el espacio y en el tiempo; que esté limitada y sea proporcional en los medios; que esté
supeditada a la ineficacia del sistema de seguridad colectiva; que haya una carencia de
colaboración del Estado territorial para resolver la situación; y que esté encaminada estrictamente
a la protección de la vida de las personas. Se excluye, además, la protección de los bienes. Ibid.,
p. 188.
47
Ver Enrique Múgica, “¿Está justificada la intervención bélica humanitaria?”, Revista de
Occidente, n° 236-237, p. 129, para quien es irrelevante el consentimiento. Tal como hemos dicho
antes, para nosotros, la ausencia de consentimiento del Estado intervenido es fundamental. Si hay
consentimiento, no estamos en el caso de una intervención.
48
Ver Eusebio Fernández, “Lealtad cosmopolita e intervenciones...”, p. 64 y 65.
Reflexiones E (Im)Precisiones en Torno a la Intervención Humanitaria y los Derechos Humanos
237
cuestionamos, tal como en su momento anticipamos y tal como más adelante
profundizamos, porque no hay protección de derechos humanos que se logre a
través de acciones armadas. Se puede hablar de “acción”, “medio” o “instrumento
de apoyo” que de la misma manera que puede salvar vidas, también provoca
situaciones de muerte. No obstante, retomando el razonamiento anterior sobre las
operaciones de mantenimiento de la paz, idénticas diferencias se dan entre éstas
con respecto a lo que entendemos por “intervención humanitaria”. En cuanto a las
acciones humanitarias en conflictos bélicos, como veremos, no es lo mismo la
actividad propia de la ayuda o asistencia, que no tiene nada que ver con el uso de
contingente bélico pues se trata de una acción civil, que la actividad
complementaria de apoyo militar que, ocasionalmente, pueda necesitarse para
llevarla a cabo.
Aunque no vamos a detenernos en precisar los elementos que caracterizan
las figuras de “estado de necesidad”, “fuerza mayor”, “caso fortuito” y “peligro
extremo”, sólo comentar que son supuestos distintos a los de “intervención de
humanidad” e “intervención humanitaria”, aunque a veces puedan confundirse. 49
5.1. El Concepto de “Intervención”
Tal como hemos señalado anteriormente, tanto la “intervención de
humanidad” como la “intervención humanitaria” implican el uso de la fuerza
armada. Pero en el ámbito de las relaciones interestatales, hay diversos grados
de uso de la fuerza, y no todas conllevan el ejercicio de una acción bélica.
Muchas de ellas entran dentro de la imposición de sanciones o de la práctica de
recomendaciones. 50 Aunque en cierta forma, cada modalidad coactiva implica un
determinado tipo de intervención o injerencia. En este sentido, Emma Bonino se
queja de que el debate sobre el “derecho de intervención con fines humanitarios”
se ha hecho más difícil, y hasta se ha distorsionado, por el previo supuesto de
que las intervenciones son exclusivamente de carácter militar, olvidándose que,
49
Para mayor detalle véase Jaume Ferrer Lloret, Responsabilidad internacional de los Estados, p.
294-297; y Cesareo Gutiérrez Espada, El estado de necesidad y el uso de la fuerza en Derecho
internacional, Tecnos, 1988, p. 44-59.
50
En este sentido, ver Federico Arcos Ramírez, ¿Guerras en defensa de los derechos humanos?
Problemas de legitimidad de las intervenciones humanitarias, Dykinson, Madrid, 2002, p. 20.
238
David Sánchez Rubio
especialmente ahora, en tiempos de la globalización, hay muchas formas de
traspasar las fronteras nacionales y las soberanías de los Estados sin apelar a las
armas. 51 Pero ¿qué se entiende por el concepto de “intervención”?
Tal como hemos señalado, los términos “injerencia” y/o “intervención” en el
Derecho internacional no son tampoco unos conceptos jurídicos claros y
determinados. Se suele denominar con ambos rótulos la acción de un Estado u
organización internacional que procede al examen y solución de un asunto
relevante de la competencia de otro u otros Estados. 52 Aunque para E. C. Stowell,
el concepto de “intervención” queda reservado al uso de la fuerza en defensa del
Derecho internacional, mientras que el concepto de “injerencia” es siempre
contrario al Derecho internacional, por lo tanto siempre es ilegal. 53
Asimismo, Ernesto Garzón Valdés, en el ámbito de las relaciones
internacionales, distingue dos tipos de intervención, uno de carácter más general
y otro más estricto. En sentido general puede entenderse por intervención la
influencia por parte de un agente externo en los asuntos internos de un país
soberano. 54 El propio autor aclara que, dada la estrecha red de interdependencia
que existe entre los Estados en el sistema internacional, en un contexto de
interconexión global, y dado que esta influencia se puede llevar a cabo tanto por
omisión como por acción, se hace difícil, por no decir imposible, que algún Estado
se libre de este tipo de intervenciones.
Una versión más restringida es la que subraya el aspecto de la injerencia
coactiva en los asuntos internos de un país, y puede desenvolverse de múltiples
maneras:
desde la imposición de programas educacionales o culturales,
pasando por la presión diplomática, la aplicación de sanciones
económicas, la incitación a la rebelión de algunos sectores de la
población hasta la “amenaza o el uso de la fuerza (artículo 2, 4 de
la Carta de Naciones Unidas) y el “ataque armado” o la “invasión
por la fuerza armada” (Tratado Interamericano de Asistencia
51
Ver Emma Bonino, “Las distintas formas de intervención”, p. 26.
Fernando Pignatelli y Meca, “La intervención e injerencia humanitaria...”, p. 690.
53
E. C. Stowell, La théorie et la pratique de lintervention”, en Recueil des Cours de l`Académie de
Droit International de La Haye, vol. 40-II, 1932, p. 92 y ss.
54
Ver Ernesto Garzón Valdés, “Intervencionismo y paternalismo”, en Ernesto Garzón Valdés,
Derecho, ética y política, Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1993, p. 383.
52
Reflexiones E (Im)Precisiones en Torno a la Intervención Humanitaria y los Derechos Humanos
239
Recíproca de Río de Janeiro de 1947, artículo 9, a, b).
55
Por tanto tenemos, por un lado, las medidas que suponen el empleo de la
fuerza armada y que entran dentro de la “intervención de humanidad” y la
“intervención humanitaria”; y por otro lado, toda una gama de actividades
coactivas e instrumentos de presión no armados, cuyos objetivos básicos son los
de influir en determinados ámbitos que son de dominio interno de un tercer
Estado.
En este mismo sentido, Mario Bettati señala que la intervención o la
injerencia puede ser de dos tipos: material o inmaterial. 56 La material comporta
una incursión física sobre el territorio extranjero y que, además, sea calificada de
intervención o agresión por otro Estado o una organización internacional. La
inmaterial, consiste solamente en inmiscuirse en los asuntos internos de un
Estado extranjero, tomando posición sobre su régimen político, económico o
social, en orden a hacerlo cambiar por la movilización de los medios de
comunicación, la deliberación de una organización internacional, la ruptura
diplomática o la utilización de otras presiones diversas. No comportan acción
física ni presencia de ninguna clase en el territorio del país en el que se
interviene.
Volviendo a Emma Bonino, ella distingue cinco tipos de intervención,
aunque utiliza la denominación de injerencia: a) injerencia económica; b)
injerencia mediática; c) injerencia judicial; d) injerencia militar; y e) injerencia
humanitaria. 57
a) La intervención económica viene provocada por la globalización y la
influencia que los países del Norte ejercen sobre los países del Sur en materia de
expansión del mercado. La movilidad sin trabas de bienes, servicios y mercancías
55
Ibid., p. 384. Tres notas comunes que parecen constituir el núcleo firme de toda intervención en
sentido estricto: 1) la ruptura manifiesta de las formas convencionales de interacción estatal; 2) el
propósito de cambiar o preservar una determinada estructura política, económica, social o cultural
del Estado en que se interviene y 3) la realización de la acción u omisión que configura la
intervención, sin el consentimiento del gobierno del país intervenido.
56
Ver Mario Bettati, “Un droit d´ingérence?, Revue Générale de Droit International Public, Tome
95, n° 3, 1991, p. 644. Referencia tomada de José Antonio Pastor Ridruejo, Curso de Derecho
internacional público y organizaciones internacionales, Tecnos, Madrid, 1996, p. 306; también ver
Fernando Pignatelli y Meca, “La intervención e injerencia humanitaria..., p. 690.
57
Para una clasificación del concepto de intervención en el marco de las Naciones Unidas, ver
Juan Francisco Escudero Espinosa, Aproximación histórica a la noción de intervención
humanitaria en el derecho internacional, Universidad de León, 2002, p. 139 y ss.
240
David Sánchez Rubio
representan el bien supremo de esta forma de mundialización. Se celebra que
todos estos productos lleguen a todas partes porque es sinónimo de progreso y
libertad. No sucede lo mismo cuando se habla de seres humanos o de principios y
valores universales con los que respetar la dignidad y la dimensión participativa
del ser humano. Hay que romper con este problema y esta contradicción,
buscando la coherencia de hacer efectivos tanto los derechos humanos como la
democracia, promoviéndolos en todos los pueblos (y en todas las instancias), sin
excepciones. Sólo entonces se conseguirá un desarrollo económico y social justo,
integral y equitativo. 58
b) La intervención mediática desempeña una inapreciable labor de
denuncia para despertar las conciencias tanto de los gobernantes como de los
gobernados. Los medios de comunicación, junto con la colaboración de los
“humanitaristas” y activistas de derechos humanos, sirven de testigos y de
testimonios oculares de los actos de agresión y de los horrores causados por la
guerra, y sucedidos en tantos otros y diversos escenarios de crisis. Periodistas y
cooperantes movilizan a la opinión pública apelando al sentimiento moral de
solidaridad y de compasión ante el sufrimiento humano. De esta manera, la
política y la diplomacia no tienen más remedio que responder a estas demandas,
antes que dejar en el olvido los efectos perversos tanto de la irracionalidad de los
“señores de la guerra” y grupos sumergidos en la barbarie del aniquilamiento,
como de las consecuencias provocadas por catástrofes naturales.
El riesgo que conlleva nuestra cultura consumista es el de hacer de las
imágenes del sufrimiento ajeno un “mercado de horror”, de convertir en mercancía
el dolor del prójimo para acabar dentro de un completo estado de banalización y
pasividad. 59 No obstante, para Emma Bonino, pese a esa “pornografía del dolor”,
el auténtico escándalo reside en lo que reflejan esas imágenes insorportables,
más que en la insuficiencia de nuestras acciones para impedirlo. Pone como
ejemplo lo reacios que son los señores de la guerra no sólo respecto al Derecho
internacional, al Derecho humanitario y los derechos humanos, sino también
respecto a cualquier forma de testimonio transmitido por los media. 60
58
Emma Bonino, “Las distintas formas...”, p. 26-27.
En este sentido, ver Michael Ignatieff, El honor del guerrero. Guerra étnica y conciencia
moderna, Suma de Letras, Madrid, 2002, p. 45-48.
60
Emma Bonino, “Las distintas formas de intervención”, p. 28-29.
59
Reflexiones E (Im)Precisiones en Torno a la Intervención Humanitaria y los Derechos Humanos
241
A pesar de todo, tampoco hay que olvidar que los medios de comunicación
están controlados por los intereses del gran capital, del mundo de los negocios y
de las grandes potencias, y esto conlleva a que mediante sus noticias sean correa
de transmisión de las llamadas “políticas de doble rasero” que se dan en el ámbito
de los derechos humanos. Habrá lugares y acontecimientos denunciables, pero
habrá otros que políticamente no es correcto sacar a la luz, todo ello en función
de determinados intereses geoestratégicos. Según convenga, se invisibilizan
masacres en unos sitios y se supervisibilizan en otros. Ejemplos claros en uno o
en otro sentido los hemos tenido en Guatemala, Panamá, Timor Oriental, Irak,
Afganistán, y tantos otros lugares.
c) En cuanto a la intervención judicial, ésta expresa una modalidad de
injerencia de Derecho a nivel global, más propia de la última década, y que
culmina con la creación del Tribunal Penal Internacional Permanente en 1998,
capacitado para juzgar los crímenes contra la humanidad, los crímenes de guerra
y el genocidio. Los tribunales ad hoc constituidos por decisión del Consejo de
Seguridad de la ONU en La Haya en 1993 para juzgar los crímenes cometidos en
la antigua Yugoslavia, y en Arusha en 1994 para juzgar los crímenes cometidos
en Ruanda han servido de antecedentes, junto a los tribunales que se crearon en
Nuremberg y Tokio para juzgar a alemanes y japoneses con motivo de la II
Guerra Mundial.
Para la autora italiana, la capacidad disuasiva del Tribunal Penal
Internacional
representa
una
justicia
sin
fronteras
permanentemente activa, que intimidará a los reales y potenciales
criminales de guerra, minando sus esperanzas de impunidad. 61
d) La intervención militar, en tanto derecho a emplear la fuerza como
remedio extremo -por haber fracasado todas las demás formas de injerencia–,
para impedir o interrumpir la comisión de un crimen contra la humanidad. La
autora italiana en base a la existencia de unos valores fundamentales y
universales como la paz, el pleno respeto de los derechos humanos y la
cohabitación en la diferencia, defiende lo que nosotros entendemos como
“intervención de humanidad” y así manifiesta su opinión favorable sobre la
61
Íbid., p. 30-31.
242
David Sánchez Rubio
actuación de la OTAN en la guerra de Kosovo. La soberanía del Derecho y de los
derechos del individuo están siempre por encima de la soberanía estatal, y los
crímenes contra la humanidad no deben quedar impunes. La defensa de los
derechos humanos no tiene que considerarse como algo opcional y como
instancia sólo aplicables por razones de oportunidad. 62
e) Finalmente está la modalidad de intervención humanitaria, que Emma
Bonino califica, curiosamente, de “desarmada”, y que, aparte de que trataremos
con mayor detenimiento en el próximo apartado, nos servirá de conexión, pues
hace referencia a la cuestión de la “acción de asistencia humanitaria” y la relación
que tiene con la defensa de los derechos humanos. Para ella, es artificiosa la
separación de ambos supuestos. La acción humanitaria es en sí misma una forma
de mantener, en situaciones de emergencia, algunos derechos fundamentales,
empezando por el derecho a la vida y a la dignidad de las personas. Hoy en día,
no hay catástrofe humanitaria que no venga acompañada de violaciones
deliberadas y masivas de los derechos humanos. Por esta razón, la intervención
humanitaria, en tanto acción de asistencia, no debe reducirse a una defensa de
los derechos violados tardía, limitada y a posteriori. Hay que articular toda una
política de conjunto que ponga la atención a la dimensión preventiva de los
conflictos, antes de que sucedan, pero cimentada sobre los derechos humanos,
en donde desde una injerencia humanitaria preventiva, se ponga coto a los focos
potenciales generadores de víctimas. 63
5.2. Sobre el Concepto de “Asistencia Humanitaria” y el Problema de la
Protección de los Derechos Humanos
La “asistencia o acción humanitaria” guarda relación con la tendencia que
el ser humano posee de moverse en una dolorosa y trágica contradicción. Tal
como señala Xabier Etxeberria, anidan en las personas, simultáneamente,
inclinaciones hacia la destrucción y la opresión de sus semejantes, y una
espontánea tendencia que le empuja a compadecerse del que sufre y que le incita
a prestarle ayuda. La acción humanitaria, desde la solidaridad con el sufriente,
62
63
Íbid., p. 31-34
Íbid., p. 27-28.
Reflexiones E (Im)Precisiones en Torno a la Intervención Humanitaria y los Derechos Humanos
243
expresa la lucha contra diversas expresiones del dolor humano y manifiesta el
afianzamiento de un principio humanitario que no sólo incite a remediar o paliar
los sufrimientos existentes, sino que vaya imponiéndose a nuestras tendencias
destructivas y a las expresiones del poder personal y estructural en la que se
encarnan. 64 En este sentido, el primero de los Principios Fundamentales del
Movimiento Internacional de la Cruz Roja y de la Media Luna Roja es el principio
humanidad, que insta a esforzarse en prevenir y aliviar el sufrimiento de las
personas en todas las circunstancias, y lucha contra diversas expresiones del
dolor humano. 65 La acción humanitaria es el lugar en el que el principio
humanitario adquiere una progresiva precisión.
En cuanto a su concreción, el concepto de “asistencia humanitaria” se
expresa según el contexto en el que se ubique bien como asistencia, que consiste
en la aportación de alimentos, ropa, atención médica, cobijo y socorro moral,
intelectual y espiritual en situaciones extremas, bien como protección, que tiene
como finalidad poner a los seres humanos fuera del alcance de la violencia o de la
privación de sus derechos fundamentales. Este contexto es el propio de los
derechos humanos en espacios sociales de normalidad. 66 Efectivamente, el
código de las organizaciones no gubernamentales humanitarias concibe la acción
humanitaria como ayuda de socorro que tiene por finalidad satisfacer las
necesidades básicas, entendiéndose por éstas las referidas a las necesidades
corporales más elementales y en sus niveles básicos. Pretende garantizar con
ello la supervivencia de las poblaciones amenazadas por los desastres, además
de servir de condición de posibilidad de otras necesidades no estrictamente
asociadas a la supervivencia, como las vinculadas con determinadas vivencias de
libertad e igualdad. 67 El caso es que, tanto en situaciones de conflicto o de
emergencia como en situaciones de paz, la articulación de las tramas sociales
para crear condiciones de existencia implican estas mismas acciones. La
protección de derechos humanos y la asistencia humanitaria son realidades
64
Ver Xabier Etxeberria, Ética de la acción humanitaria, Universidad de Deusto, Bilbao, 1999, p. 9
y “El marco ético de la acción humanitaria”, en AA.VV., Los desafíos de la acción humanitaria,
Icaria, Barcelona, 1999, p. 101-102
65
Ibidem; también en Yves Sandoz, “Derecho o deber de injerencia...”
66
A. Durand habla de dos aspectos de la “asistencia humanitaria”, pero nosotros preferimos hablar
de dos contextos diferentes en los cuales se plasma. Ver su trabajo, “El CICR”, Revista
Internacional de la Cruz Roja, n° 46, 1981, p. 13.
67
Véase Xabier Etxeberria, Ética de la acción humanitaria, p. 39 y 41.
244
David Sánchez Rubio
análogas, no diferentes tal como generalmente se entiende. Lo que cambian son
los contextos (el “fondo”), no la “figura”.
No obstante, el principio humanitario por medio del cual se resuelve la
tensión trágica entre la tendencia a causar sufrimiento y la tendencia a aliviarlo,
ha servido para ir superando, bajo su aspiración de universalidad, las limitaciones
y el no reconocimiento que determinados seres humanos han experimentado
como consecuencia del privilegio y la especial atención que se les ha dispensado
a otros seres humanos. La práctica de auxiliar a un semejante en una situación de
apuro, bien por circunstancias personales, bien por una catástrofe, una guerra o
por una ruina económica, se ha dado en todos los tiempos y en todos los pueblos,
pero no de manera universal. Históricamente se ha discriminado la tendencia a
aliviar
el
sufrimiento,
considerados
verdadera
realizándose
y
una
plenamente
separación
humanos
entre quienes
-normalmente
eran
aquellos
pertenecientes al propio grupo–, frente a los que lo eran pero de una manera
confusa, o incluso frente a quienes eran tachados de no-humanos o in-humanos –
considerados los otros, los extraños, los extranjeros, los bárbaros, los
homúnculos, etc. La solidaridad hacia nuestros congéneres, la empatía que nos
hace “ser un sólido”, puede ser orgánica, sólo reducida hacia aquéllos que
pertenecen y participan de nuestra identidad grupal (familia, grupo, pueblo,
nación, comunidad de creencias, cultural o histórica...), pero también puede ser
abierta, al estar dirigida a todo ser humano, independientemente de su
nacionalidad o comunidad. Su ámbito y su pertenencia es la humanidad entera,
no siendo nadie ajeno a ella. 68
Desde el punto de vista de la “asistencia humanitaria”, nos encontramos
con este tipo de solidaridad universal que se abre a todos, pero desde la
perspectiva de los más necesitados. El principio humanitario se expresa en ella
con el compromiso hacia quienes se encuentran amenazados, en situaciones de
precariedad existencial y doliente.
La solidaridad no se define tanto por su pura relación universal,
cuanto por el compromiso respecto al amenazado, no se define
por su imparcialidad sino por su “parcialidad” por el débil y
oprimido, o, si se quiere, persigue la imparcialidad (igualdad) a
68
Ibid., p. 9 y 34-35.
Reflexiones E (Im)Precisiones en Torno a la Intervención Humanitaria y los Derechos Humanos
245
través de esa parcialidad.
69
De ahí que todo ser humano tenga el derecho de ser asistido cuando lo
necesite. Nos encontramos con una parcela relacionada con los derechos
humanos
que
se
articula
en
determinadas
circunstancias
extremas
y
excepcionales.
Pero desde el punto de vista de la realidad socio-política actual, el modelo
de organización de los seres humanos ha sido el establecido por el Estado. De la
misma manera que veíamos cuando hacíamos mención al proceso de
internacionalización de los derechos humanos en su expresión institucional y
normativa que los mayores niveles de protección de éstos se obtenían a nivel
estatal e interno, lo mismo sucede con la ayuda solidaria. Es la ayuda intraestatal
la que se ha considerado prioritaria. En cambio, las relaciones interestatales han
sido vistas como relaciones de fuerza, de poder, que han obstaculizado en
muchas ocasiones la universalización efectiva del principio humanitario. De nuevo
el principio de soberanía ha supuesto una limitación a este proceso, aunque el
deber de asistencia comienza con la responsabilidad de cada Estado de atender a
sus ciudadanos. En el momento que, por diversas razones, no puede o no quiere
proporcionar la ayuda, entran a escena los mecanismos establecidos por las
normas del Derecho internacional humanitario.
Por esta razón se habla de dos sistemas normativos diferentes: por un lado
está el Derecho internacional humanitario, también llamado “derecho de los
conflictos armados” y “derecho de guerra”, y que se aplica en situaciones de
conflicto armado y de emergencia. 70 Por otro lado está el Derecho internacional
de los derechos humanos, que se aplica en todo momento, tanto en la guerra
como en la paz, y en la mayoría de las ocasiones se limita a hechos en los que
sólo intervienen los Estados. Aunque la finalidad de ambos es proteger a la
persona humana, lo hacen en circunstancias y según modalidades diferentes.
69
Ibid., p. 35. Sobre los distintos modelos de solidaridad, ver también Ernesto J. Vidal Gil, Los
derechos de solidaridad en el ordenamiento jurídico español, (Cuadernos de solidaridad, n° 1),
Tirant lo Blanch, Valencia, 2002, p. 93 y ss.
70
El Derecho internacional humanitario “es el conjunto de normas cuya finalidad, en tiempo de
conflicto armado, es, por una parte, proteger a las personas que no participan, o han dejado de
participar, en las hostilidades y, por otra, limitar los métodos y medios de hacer la guerra”. CICR,
Derecho internacional humanitario. Respuestas a sus preguntas, Comité Internacional de la Cruz
Roja, Ginebra, 1998, p. 1.
246
David Sánchez Rubio
Si el derecho humanitario tiene como objeto proteger a las
víctimas procurando limitar los sufrimientos provocados por la
guerra, los derechos humanos protegen a la persona y favorecen
su completo desarrollo. 71
El caso es que al establecerse sistemas distintos, parece que nos
encontramos con realidades distintas. Si observamos detenidamente, el principio
de humanidad es el mismo que se manifiesta en la idea institucional de derechos
humanos asociada generalmente a lugares sociales de normalidad. Lo único que
cambian son los marcos espacio-temporales, las circunstancias, es decir, los
contextos. La proyección del principio de humanidad, vinculado con la dignidad
humana, se manifiesta de manera diversa cuando se encuentra en condiciones de
conflicto o en condiciones de paz. Pero resulta que esta dualidad de contextos se
interpreta como fenómenos e instituciones diferentes, cuando en realidad
pensamos que la polémica sólo se ciñe a una cuestión terminológica, a problemas
de denominaciones y de adecuación de palabras.
En cierta medida, en este sentido viene dada la queja manifestada por
Emma Bonino y que hemos mencionado antes. La autora italiana pone el dedo en
la llaga cuando afirma que es artificiosa la separación que se traza entre la
“asistencia humanitaria” y la protección de los derechos humanos. De esta forma
aborda el aspecto crucial de toda esta problemática que estamos remarcando:
que la “asistencia humanitaria” forma parte de lo que entendemos son los
derechos humanos, entendidos en un sentido que, aunque lo engloba, va más allá
de su componente institucional y jurídico-positivo, pese a la opinión generalmente
aceptada que afirma la existencia de dos sistemas o regímenes normativos
internacionales distintos (como son, por un lado, el Derecho internacional
humanitario y, por otro, el Derecho internacional de los derechos humanos),
aunque
sí reconoce la
complementariedad.
72
estrecha
relación
entre
ambos,
e incluso
su
Consideramos los derechos humanos como procesos de
apertura y consolidación de espacios de lucha por la dignidad humana, procesos
que se dan tanto en situaciones de emergencia como en conflictos armados o en
71
Ibidem, p. 40.
En este sentido, véase Thomas Buergenthal, Claudio Grossman y Pedro Nikken, Manual
internacional de derechos humanos, Universidad de Santiago de Cali, 1995, p. 16; y AA.VV.,
Derecho internacional y ayuda humanitaria, Instituto de Derechos Humanos, Universidad de
Deusto, Bilbao, 2000, p. 39.
72
Reflexiones E (Im)Precisiones en Torno a la Intervención Humanitaria y los Derechos Humanos
247
situaciones de “paz”. Es como si dijéramos que los derechos humanos y la
asistencia humanitaria son procesos análogos que se desenvuelven en
situaciones que no son idénticas ni similares. Ambos son dos manifestaciones de
procesos de apertura y consolidación de espacios lucha por la dignidad humana.
Además, en uno y otro contexto, uno de los principales dispositivos de activación
que moviliza esos procesos guarda relación con ese “imperativo categórico” que
echa por tierra todas las relaciones en que el hombre sea un ser humillado,
sojuzgado, abandonado y despreciable. 73
Las consecuencias de esta separación artificiosa son múltiples y los
principales
perjudicados
son
los
mismos
seres
humanos.
La
principal
consecuencia a efectos prácticos viene marcada por la paralización de la
activación de los mecanismos que se adjudican a una y otra esfera, y que deben
desarrollarse
conjuntamente.
Emma
Bonino,
por
ejemplo,
señala
el
desentendimiento de los gobiernos que descargan en las organizaciones
humanitarias la gestión de los conflictos que no sabe o no quieren ocuparse, salvo
para echar las culpas a éstas cuando no se ha eliminado el sufrimiento humano. 74
Asimismo, a través de esa separación, todo lo relacionado con el tema de
la asistencia humanitaria se desmarca del uso de la fuerza, mientras que la
protección de los derechos humanos se reduce a la intervención armada
concreta, tardía y limitada. Sólo en situaciones calificadas de “extremas”, de
violaciones graves y sistemáticas de los derechos humanos de una población se
pueden proteger los mismos por medio de la acción bélica, en tanto “intervención
de humanidad”. Ésta pasa a concebirse como un elemento de garantía de los
derechos humanos, un acto puntual y quirúrgico que, en teoría, pretende sanar o
curar una situación de enfermedad en fase terminal, de muerte. Se establece un
símil con las medidas que adoptan los bomberos para apagar fuegos. 75 Como
73
Palabras de Carlos Marx tomadas de Franz Hinkelammert, “Plenitud y escasez: la subjetividad
del reino de dios”, Pasos, n° 100, p. 9, que a su vez las retoma de Erich Fromm, Marx y su
concepto de hombre. (Karl Marx: Manuscritos económicos-filosóficos), FCE, México DF, 1964, p.
230.
74
Ver “Las distintas formas de intervención”, p. 27-28.
La Corte Internacional de Justicia en sentencia 9 de abril de 1949, relativa al asunto del Estrecho
de Corfú se ha referido a ciertos principios bien reconocidos en el Derecho internacional
humanitario, tales como elementales consideraciones de humanidad, que son más absolutos
incluso en tiempos de paz que en tiempos de guerra.
75
En el primer sentido, dice Todorov: Han regresado de nuevo a nosotros, por ejemplo, las
metáforas médicas aplicadas al cuerpo social, que podían considerarse prohibidas tras su uso
248
David Sánchez Rubio
consecuencia, se invisibiliza y se ignora que hay otras formas de evitar las
violaciones masivas de los derechos y de reducir los riesgos que provocan
situaciones de emergencia y catástrofe. Al respecto, Andrés Ortega denuncia el
hecho de que se gane en capacidad de intervención pero se carezca de
instrumentos para resolver situaciones antes de que se degraden, de ahí la
importancia de las actuaciones de prevención antes que de “curación”. Y aunque
también deben ofrecerse medios para reconstruir lo que previamente se ha
destruido, primero hay que evitar aquello que provoca la destrucción. 76
Por parte de los defensores de una asistencia humanitaria diferenciada, se
dice que la acción humanitaria está diseñada para contemplar las consecuencias,
pero no las causas de los conflictos. No es su papel resolver conflictos. Su único
objetivo es proteger la dignidad humana y salvar vidas (posee un carácter
imparcial y neutral). No puede ser substituida por una acción política que estudie
las raíces de los conflictos y que trate de solucionarlos. Son dos esferas que
deben ser claramente distinguidas. Desde el punto de vista del CICR, por
ejemplo, la acción humanitaria es inherentemente no coercitiva y no puede ser
impuesta por la fuerza. La experiencia demuestra que cuando lo humanitario
resulta enredado con una acción política o militar, contribuye más bien a sustentar
los conflictos en vez de acabarlos. 77
El propio Jacques Forster, Vicepresidente del CICR, denuncia el peligro
que lleva un uso de la ayuda de corte militarista, porque puede dar pie a que el
Derecho internacional humanitario sea invocado para justificar una intervención
armada. Además, abre la posibilidad a quienes invocan tal intervención armada
para resolver una crisis humanitaria, para que puedan eximirse de un total
acatamiento del Derecho internacional humanitario. Finalmente, tales expresiones
intensivo en los regímenes totalitarios: se habla de intervenciones quirúrgicas, se afirma que es
mejor prevenir que curar, como si las taras de la sociedad se dejaran analizar en términos de
enfermedad. La imagen del cuerpo sólo se impone si se concibe a la humanidad como un todo,
con un cerebro y un corazón, con brazos que actúan (siempre los mismos) y, también, zonas de
enfermedad y corrupción, contra las que es preciso saber protegerse, extirpándolas si es
necesario. Ver Tzvetan Todorov, Memoria del mal..., p. 333. En el segundo sentido, Javier Solana
habla de un trabajo de bomberos internacionales: reactivo, rápido y eficaz. Pese a que habla de
ayuda humanitaria, la asocia a la “intervención de humanidad”. En “Introducción”, Revista de
Occidente, n° 236-237, 2001, p. 13.
76
Andrés Ortega, “Antes mejor que después”, Revista de Occidente, n° 236-237, 2001, p. 153 y
ss.
77
Ver Jacques Forster, “’Intervención Humanitaria’ y Derecho...”
Reflexiones E (Im)Precisiones en Torno a la Intervención Humanitaria y los Derechos Humanos
249
implican que la acción humanitaria pueda ser impuesta por la fuerza y aplicada
con éxito por actores que persiguen otros objetivos no humanitarios, como
pueden ser políticos y militares. 78
Por otra parte, el Derecho internacional humanitario no tiene nada que ver
con el derecho de los Estados a utilizar la fuerza, mientras los derechos humanos,
supuestamente, sí. El papel de aquél está estrictamente circunscrito a poner
límites a la fuerza armada, sin entrar en consideraciones de la legitimidad de su
uso. Sí se reconoce que en algunas circunstancias específicas, para que la acción
humanitaria pueda llevarse a cabo con cierta efectividad, la acción militar puede
realizarse para contribuir a mantener el espacio humanitario: por ejemplo la
creación de corredores seguros para la entrega de la asistencia humanitaria. Pero
posibilitar la acción humanitaria no debe ser el único objetivo de una intervención
armada. Además, el “espacio humanitario” hace referencia a las condiciones que
se crean para que la acción humanitaria pueda ser implementada con éxito, y los
actores humanitarios pueda operar de acuerdo con sus propias reglas.
De todas formas, cualquier intervención armada (“intervención de
humanidad”) u operación de socorro humanitario con apoyo de la fuerza
(“intervención humanitaria”), es en sí misma un resultado de una prevención
fallida. 79 La intervención armada con fines humanitarios, a veces es necesaria,
pero no una buena solución y seguirá siendo siempre un mal menor en
situaciones extremas. Es el resultado de un doble fracaso: el primero de la
solución de las diferencias por medios pacíficos, que corresponde a la comunidad
internacional; el segundo fracaso es del Derecho humanitario, cuya finalidad es,
en las guerras, hacer que se apliquen las normas humanitarias sobre una base
consensual, sin necesidad de recurrir a la fuerza. Ésta hay que ejercerla como un
último recurso y no como método satisfactorio para solucionar problemas
humanitarios.
Erigir en sistema la intervención armada con fines humanitarios
sería un desistimiento de la comunidad internacional frente a sus
78
En este sentido ver Jacques Forster, “’Intervención Humanitaria’ y Derecho internacional
humanitario”, Discurso inaugural del Noveno Seminario Anual de DIH para Diplomáticos
acreditados en las Naciones Unidas, marzo de 2000, en www.wfn.org, (The Wordwide Faith News
Archives)
79
Ibid.
250
David Sánchez Rubio
verdaderos desafíos: prevenir los conflictos y promover los valores
esenciales que encierra el derecho internacional humanitario. 80
Pues bien, nos encontramos con una falta de legitimidad de las fuerzas
armadas como sujetos de la acción humanitaria y de los derechos humanos. El
militarismo y su mediación institucional privilegiada, no podrán ser actores ni
sujetos de la acción humanitaria y de protección de los derechos humanos.
Lo que ha sido y es causa fundante de violencia estructural –el
militarismo– no podrá ser remedio ni antídoto para la herida más
trágica de la globalización: las víctimas. El militarismo en su
naturaleza constitutiva niega los derechos humanos al proponer
como terapia frente a la fuerza del consenso (o disenso) y la
palabra, la fuerza de las armas y la lógica de la violencia y la
conscripción. 81
Por tanto, hay que rechazar la terminología empleada de “intervención de
humanidad” y de “intervención humanitaria” como reacción y crítica a una cultura
militarista global que reside y se aloja en toda pretensión de humanización
emancipadora, y en toda forma de pensar y afrontar toda tentativa terapéutica
para las heridas de la globalización. 82 Las garras del militarismo se extienden más
allá de la esfera específicamente militar, apoderándose de todas las áreas del
todo social. La acción humanitaria es civil, y también la lucha por los derechos
humanos. Se trata de asumir la condición de las víctimas, desde los derechos
humanos, englobando éstos tanto los momentos de emergencia y urgencia como
los momentos de normalidad y de paz. Existe una contradicción inmanente
cuando se habla de “intervención” añadiéndole el adjetivo de “humanitaria”, en el
sentido que el término “humanitario” debe reservarse a la acción encaminada a
mitigar el sufrimiento de las víctimas y a generar condiciones de posibilidad de
existencia.
80
Ver Yves Sandoz, “Límites y condiciones del derecho de intervención humanitaria. Derecho de
intervención y Derecho internacional en el ámbito humanitario. Hacia una nueva concepción de la
soberanía nacional”, en Sesión pública de la Comisión de Asuntos Exteriores y Seguridad del
Parlamento Europeo sobre el derecho de intervención humanitaria, Bruselas, 25 de enero de
1994, http://www.wfn.org
81
Ibid.
82
Ver Asier Martínez de Bringas, “Los derechos humanos como núcleo fundante de la acción
humanitaria”, en David Sánchez Rubio, Joaquín Herrera Flores y Salo de Carvalho, Anuario
Iberoamericano de Direitos Humanos, (2002/2003), Lumen/Juris, Río de Janeiro, 2002 (en
prensa).
Reflexiones E (Im)Precisiones en Torno a la Intervención Humanitaria y los Derechos Humanos
251
De ahí que Anne Ryniker prefiera hablar de “intervención armada en
respuesta a violaciones graves de los derechos humanos y del derecho
internacional humanitario”. Incluso no sólo se reducen a esto, porque también se
realizan con motivo de la amenaza a la paz y a la seguridad internacionales.
El ejercicio de la fuerza militar para matar no es ni un acto humanitario ni
un acto de protección de los derechos humanos, dado que los tipos de acción
humana implicadas se apoyan sobre valores como los de “humanidad”,
“universalidad”, “neutralidad”, “imparcialidad” que cada contexto modula. Tienen
como objetivo ayudar a la población en peligro de existencia, tanto en situaciones
de normalidad como de anormalidad. El recurso a la fuerza militar, en cambio,
incluso para apoyar esos objetivos, entraña inevitablemente atentados contra la
población civil, de destrucción de bienes y otros actos de violencia deliberada.
Cuando se hace referencia a la “intervención de humanidad” y a la “intervención
humanitaria”, si acaso, podría hablarse de un “recurso a la fuerza militar para
apoyar objetivos humanitarios en situaciones de crisis que resultan de violaciones
en gran escala de los derechos humanos”. 83
La propia Comisión Internacional sobre intervención y soberanía de los
estados, creada en septiembre del año 2000, a iniciativa del ex Ministro de
Relaciones Exteriores del Canadá, Lloyd Axworthy, en un plazo de un año ha
culminado un intento de instaurar un modelo jurídico de intervención. En su
informe señala que ante la fuerte oposición expresada y manifestada por
agencias, organizaciones y trabajadores humanitarios hacia cualquier tipo de
militarización del mundo “humanitario”, considera inapropiado el uso de esta
palabra para describir cualquier tipo de acción militar, pues se concibe como un
anatema.
La
Comisión
ha
preferido,
para
evitar
malentendidos
y
susceptibilidades, utilizar el término de “intervención” a secas o “intervención
militar con el objetivo de protección humanitaria”. 84
Por nuestra parte, calificamos de “intervención militar reactiva de protección
de asistencia” a la “intervención humanitaria”; y de “intervención militar reactiva de
protección del Derecho internacional” a la “intervención de humanidad”. Nunca se
83
Ibídem.
The responsability to protect, report of the International Comission on Intervention and Estate
Sovereignty, diciembre 2001, p. 13, www.iciss.gc.ca/report-e.asp
84
252
David Sánchez Rubio
puede argumentar desde la legitimidad moral el uso de la fuerza, pues no hay
protección de derechos humanos a través de instrumentos que matan pese a que
se tenga la intención de salvar vidas. No se articulan tramas sociales con lógicas
de emancipación y de autoconstitución de sujetos por medio de la acción bélica.
Se pueden dar otras razones, pero no como medios que pretenden incorporar
como un elemento de garantía de los derechos humanos a las fuerzas armadas
que actúan por medio de la violencia, por mucho que se intente adjetivar con
términos tales como “pacificación” y/o “humanitaria”. Además, en el ámbito de las
relaciones internacionales, el referente de los derechos humanos y de los seres
humanos son secundarios en la toma de decisiones y en las medidas adoptadas.
5.3. Activismo en Derechos Humanos y Asistencia Humanitaria: Un Ejemplo
Veamos a continuación, y como finalización, un ejemplo de lo que
consideramos representa esta postura que diferencia y confronta la “asistencia
humanitaria” con los “derechos humanos”:
Según David Rieff, los imperativos morales del “activista de derechos
humanos” y del “humanitarista”, son totalmente diferentes. El primero es un
absolutista moral por excelencia, que cree defender los patrones que rigen los
derechos humanos y, sobre todo, la legislación sobre derechos humanos al pie de
la letra si no quiere arriesgarse a ver cómo fracasa toda su empresa. 85 El segundo
cree en el “meliorismo”, su labor principal es proporcionar la ayuda que tan
desesperanzadamente se necesita y que a menudo sólo ellos pueden ofrecer a
las poblaciones pobres y en peligro. Los “humanitaristas” no pueden ni deben ser
unos “puristas” como los “activistas de derechos humanos”. Por otra parte, este
autor indica que se cree que ambos deben y necesitan trabajar juntos, que las
emergencias humanitarias se deben a crisis de los derechos humanos y que hay
que enfrentarse a ellas antes de enfrentarse a una emergencia humanitaria. Pero
a pesar de todo, lo que está en juego para Rieff es más complejo que una simple
división de trabajo: un
85
Ver David Rieff, “¿Qué pasa cuando no todo lo bueno es compatible?”, en El País, sábado 13 de
julio de 2002, p. 14.
Reflexiones E (Im)Precisiones en Torno a la Intervención Humanitaria y los Derechos Humanos
253
activista de los derechos humanos quiere ver derrocado a un
régimen opresivo, cree que ésa es la única solución a largo plazo.
Por el contrario, quien se dedica a labores humanitarias quiere dar
de comer a un pueblo, aunque sabe perfectamente que la ayuda
alimentaria podría fortalecer al régimen opresor.
Por tanto, se trata a menudo de un conflicto entre dos derechos diferentes,
de ahí la trágica posibilidad de tener que elegir entre “buenas acciones” e
“imperativos morales” que negamos, pues es como si nos obligaran a elegir la
muerte sobre la vida. 86
Ante este razonamiento, al menos una cuestión nos planteamos: ¿acaso
no nos encontramos con espacios de lucha por la dignidad y por un principio de
humanidad plasmados en distintos niveles?
En este caso, proporcionar alimentos es un tipo de garantía de los
derechos vinculado con condiciones de vida y en una situación anormal, de
conflicto y de urgencia, mientras que el imperativo moral para derrocar un
gobierno es una manifestación de resistencia y apertura de espacios de lucha con
los que obtener nuevas situaciones favorables para la dignidad humana (que son
de cierre para quienes mueren en el camino). Y en ese proceso de lucha y
resistencia, simultáneamente, hay que proporcionar asistencia a toda víctima que
lo necesite. Si no se combinan como dos facetas de un mismo problema, la idea
de sacrificialidad invadirá las acciones a favor o conforme a derechos,
principalmente las que implican el uso de la fuerza armada, pues intrínsecamente
el sacrificio está tanto en su justificación como en su modo de actuación y
ejecución. Nunca habrá derechos humanos para quienes mueren mediante el
empleo de la fuerza.
Luchar contra el terrorismo o contra violaciones de derechos humanos en
nombre de la libertad, la democracia, o los mismos derechos humanos sin
importar que caigan vidas, o considerando que son inevitables, implica todo un
bagaje ideológico que legitima un sistema u orden que está por encima de los
sujetos que lo componen, más aún de quienes se le resisten y oponen. Mediante
actos de fuerza armada se pueden salvar vidas pero sólo de manera indirecta,
como un efecto secundario de una acción cuyo principal propósito es mantener la
86
Ibídem.
254
David Sánchez Rubio
paz y la seguridad internacional, que legitima la estabilidad y el orden de quienes
dominan el poder internacional, matando. No se pretende establecer unas
condiciones de vida ni para quien se intenta “salvar”, ni para quienes forman parte
de la humanidad, sin exclusión de nadie y sin prórrogas en el tiempo.
El hecho es que tenemos ante nosotros una curiosa manifestación de una
mentalidad simplista, reduccionista, posicional y oposicional, que establece la
distinción entre “activistas de derechos humanos” y quienes desempeñan tareas
humanitarias (“humanitaristas”). Detrás de esta postura subyace un imaginario de
pureza por parte de quienes actúan en nombre de los derechos humanos, cuando
de lo que se trata realmente es de que no nos veamos como la encarnación del
derecho y la fuerza, y vencedores del mal absoluto. La tentación del bien es
nefasta porque sustituye las personas particulares por objetivos abstractos. 87
Asimismo, implica una cultura de sacrificio, en cuyo razonamiento, hay personas
prescindibles, sacrificables en nombre de los derechos humanos. Se trata de una
posición que muestra un proceso de inversión ideológica y de reversibilidad de los
derechos humanos. Además, se trata de una postura que legitima moralmente el
uso de la fuerza armada, cuando los derechos humanos son procesos y tramas
sociales por medio de las cuales nos podemos auto-constituir como sujetos. Las
armas no son instancias que generen esas condiciones. Que se den casos en los
que no haya más remedio que utilizarla, por pensarse que es necesario –aunque
no inexorable, porque la necesidad ya contiene una toma de partido por parte de
quien detenta el poder que declara tal necesidad–, no es una razón para tratar de
incorporar el uso de la fuerza armada como un elemento más de protección y
garantía de los derechos humanos. No hay dignidad humana que se afirme ni con
la creación de situaciones de muerte, ni con la reacción frente a ellas por medio
de mecanismos que también la provocan.
En definitiva, si observamos los hechos reales en los cuales se ha actuado
bajo el rótulo de “intervención de humanidad”, en ningún momento, ni en el
contexto espacio-temporal previo a la situación de violación masiva y sistemática
de derechos humanos, ni durante el acto de intervención con el uso de la fuerza
armada, ni posteriormente, se pretende articular una respuesta relacional, un
87
Tzvetan Todorov, Memoria del mal..., p. 339.
Reflexiones E (Im)Precisiones en Torno a la Intervención Humanitaria y los Derechos Humanos
255
sistema de tramas de reconocimientos, autoestima y autoapropiación de las
capacidades humanos, en donde todos/as sean tratados como sujetos humanos.
Ni quien comete el genocidio, ni quien supuestamente salva a las víctimas por
medio de la fuerza, pretenden establecer espiritual y materialmente una
reapropiación de las condiciones bajo las cuales es posible la actividad de
autoproducción humana como actividad particular y genérica, social e individual y
universal.
Para terminar, y frente a esta postura defendida por Rieff, comentar que
existe un dicho popular que viene a decir que si te dan a elegir entre dos caminos,
toma uno tercero. El propio Todorov, al respecto señala:
La vida política pocas veces se reduce a opciones tan brutales y
no es cierto que sea preciso elegir entre la cobardía de la
indiferencia y el caos de los bombardeos. Tal consecuencia se
impone sólo si se decide de antemano que “actuar” significa
“actuar militarmente”. Ahora bien, existen otras formas de
intervención distintas a los ataques militares. No porque exista
acuerdo sobre el fin existe, automáticamente, acuerdo sobre los
medios. 88
Trabajar a favor de los derechos humanos, por el contrario, conlleva el
desarrollo de actuaciones que establezcan condiciones de existencia y de vida
para todos/as. La mejor forma para ello es la articulación tanto de medidas
preventivas que eviten la aparición de situaciones de violaciones masivas y
graves de los derechos humanos como de actuaciones reconstructivas dirigidas a
establecer la paz y no a potenciar la guerra –entre las que se encuentra la
cooperación al desarrollo y la ayuda humanitaria bajo una lógica de colaboración,
dialogicidad, reciprocidad, horizontalidad y respeto mutuo.
88
Ibídem, p. 310.
256
David Sánchez Rubio
Los Derechos Humanos como Núcleo Fundante de la Acción Humanitaria 1
Asier Martínez de Bringas
Sumario: 1. Marco de Comprensión y Punto de Partida. 2. ¿Puede el
Humanitarismo Armado Ser Actor Humanitario? 3. Conclusiones.
Referências Bibliográficas.
1. Marco de Comprensión y Punto de Partida
El actual proceso de globalización envuelve y habilita todo ámbito de
posibilidades de la acción humana. La proclamada autonomía de las esferas de
valor por la que las cuestiones de hecho (ciencia), cuestiones de justicia (moral) y
cuestiones de gusto (estética), proclamaban su libre determinación frente a
direcciones religiosas, cosmológicas o historicistas, vuelven a quedar suturadas y
entrelazadas por el manto demiúrgico de la globalización. La globalización
vertebra Economía-Política-Cultura como un monolito inconsútil que no entiende
de externalidades ni de ritmos autónomos y segregados. La globalización nos
abre a nuevas dimensiones por causa y efecto de la interconexión e
interactuación global. La internacionalización de los procesos, como mero
momento agregativo de fenómenos y eventos, queda desbaratado por el eclipse
de la simultaneidad: los nuevos desarrollos informacionales permiten una acción
social global de tiempo inmediato y espacio ubicuo. Sin embargo, no se procede a
explicar que esa simultaneidad de procesos que arrastra consigo la globalización
tiene un lado oscuro y arredrado: la exclusión selectiva y la desconexión
indiscriminada de la mayoría de la humanidad de un proceso integral de
globalización. La globalización de la crisis, guerras y desgarros, tragedias,
hambrunas y catástrofes, es ese reverso nunca referido en los discursos políticos
y científicos, pero que inevitablemente caracterizan los procesos globales desde
sus momentos constitutivos. Lo que hace eficaz y hábil a la globalización es
oscurecer y silenciar su momento trágico: la caterva de víctimas que produce.
El nuevo escenario que nos preocupa y aturde es el de la universalidad de
1
Este artículo debe mucho a la inestimable ayuda y a las oportunas sugerencias hechas por David
Sánchez Rubio, profesor de la Universidad de Sevilla.
la tragedia humana que es inevitablemente global. Paralelamente a la
globalización del mercado y del mundo administrativo que colonizan los
corazones y sensibilidades de los mundos de la vida mediante la implementación
de una política que se formatea como global a través de un multilateralismo difuso
hegemonizado por USA; y la exposición de un modo de entender lo cultural que
pone todo su potencial de significación al servicio y causa de la tiranía de los
mercados y que pretende hacer plausible esa ideología práctica del “american
way of life”; irrumpe el espectro que horripila a la ciudadanía y deja hirsuta la
sensibilidad, como es el drama de la exclusión global de la materialidad
antropológica, que es reciclada y calificada como las víctimas de la globalización.
Asumiendo que el dinamismo de la globalización está atravesado por el
drama de la exclusión, pretenderemos acercarnos a lo que se ha propuesto como
solución balsámica en el paroxismo de la crisis: la acción humanitaria
sobrevenida. Pretendemos desarrollar una crítica a una cultura militarista global
que reside y se aloja en toda pretensión humanitaria y en la forma de pensar y
afrontar toda tentativa terapéutica para las heridas de la globalización. El
militarismo atraviesa todo intento de desarrollar modelos alternativos de seguridad
humana y pervierte y distorsiona el contenido de prácticas vitales y significaciones
de pacifismo activo, militarizándolas. El manto protector del militarismo no reduce
nunca su influencia a la esfera específicamente militar; imbuye con su poderío y
atracción el todo social. Nuestra crítica, asumiendo el carácter denso y estructural
del militarismo en la globalización, se centrará en lo que son sus agentes
privilegiados –los ejércitos– en un momento concreto de su actuación: la acción
humanitaria.
La trama humanitaria, tan urgentemente necesaria como susceptible de
espectacularización y teatralidad, tiene el peligro de optar por una síntesis
cómoda entre estas dos opciones tan mal avenidas por su inmanente repulsión. Si
la tragedia de la humanidad necesitante y espoleada por una realidad que la
devora, se trivializa con el gusto del sensacionalismo sardónico e irreverente, a la
vez que se hace depositario privilegiado del rumbo de este barco a la deriva a las
FF.AA, invertimos la realidad, la fetichizamos y caemos en la tentación de
narcotizarla con los mismos bálsamos que la llevaron a su desgarramiento
humano actual: el militarismo como estructura y su eje de dinamismo, la fuerza de
258
Asier Martínez de Bringas
las armas.
Partiendo de la constatación de un diagnóstico: la existencia de una mal
formación de nacimiento o una desviación en las raíces y gérmenes de la práctica
humanitaria convencional; asumiendo también sus consustanciales problemas de
aprendizaje 2 (inevitable,
por otro lado, en
cualquier práctica
humana);
adoptaremos una perspectiva en la consideración de las FF.AA. que sitúe su eje
epistemológico, sus motivaciones morales y sus exigencias políticas en los
derechos humanos. Los derechos humanos serán cabeza de puente, mediación
privilegiada y propuesta última a la que deberá arribar necesariamente la acción
humanitaria. La acción humanitaria guarda una posición restauradora y
subsidiaria respecto a los derechos humanos, no pudiendo nunca sustituirlos ni
desplazarlos; de ahí, que ésta se entronque y encuentre su sentido en aquellos.
La defensa de un pacifismo bien entendido es aquél que hace aprehensión crítica
y radical de los derechos humanos. Éstos serán criterio último, motivo fundante y
condición de la acción humanitaria. Esta perspectiva supondrá entender los
derechos humanos como desobediencia civil.
Tomarse en serio la acción humanitaria supone entender ésta en un
sentido estructural. No es posible proceder mediante la separación tajante con la
que se expresa la dicotomía ayuda-intervención. Ello es un todo estructural con
relaciones referidas y remitidas. La intervención es fruto de una ayuda no prevista
o mal gestionada. Resultado de una comprensión militar de la seguridad que evita
la implementación de mecanismos de alerta temprana, y de otras formas de
comprender la seguridad humana, que sitúen a las víctimas como sus referencias
prioritarias. En numerosas ocasiones se implementa la acción humanitaria cuando
la crisis y el conflicto han eclosionado y deflagrado; o cuando éstos han alcanzado
un grado alto de madurez y desarrollo. No hay un programa intencional de
actuación anterior a la crisis y a su trágica irreversibilidad. Muchas veces, se
accede a la acción humanitaria como la vía corta y abreviada para solucionar un
conflicto; como sustitutiva de la acción política civil –la civilidad del poder–, lo que
es inaceptable. Por tanto, habrá que sospechar necesariamente de toda
intervención humanitaria por lo que tiene de vulneración y merma de los derechos
2
D. Sogge “Los subalternos en la cadena de ayuda” en Los desafíos de la acción humanitaria,
Unidad de Estudios Humanitarios, Icaria, Barcelona, 1999, p. 154.
Los Derechos Humanos como Núcleo Fundante de la Acción Humanitaria
259
humanos, frente a su supuesta pretensión restauradora; y por lo que,
paralelamente, supone de mercantilización del escándalo y espectacularización
del riesgo.
Vivimos un mundo cuyas condiciones de normalidad y sosiego vienen
caracterizadas por la extrema desigualdad: de 6000 millones de habitantes que
habitan el planeta, 2800 viven con menos de 2$ al día y 1200 con menos de 1$; el
ingreso medio de los 20 países más ricos es 37 veces mayor que el de las 20
naciones más pobres, cuestión que se ha duplicado en los últimos 40 años 3.
Siendo esto así, ¿por qué interesa llegar a tildar una situación de crisis
humanitaria cuando el momento de “ideológica normalidad” que vivimos ya
supone una constante y perpetua crisis? Si la urgente normalidad que nos rodea
no es motivo de concienciación y reacción humanitaria, ¿no será que la
espectacularización de la tragedia y el clímax del riesgo son condiciones
necesarias para inyectar dinero, interés y voluntad en un sector –el humanitario–
cuyo principio y fundamento han dejado de ser las víctimas y que para
enmascarar y solapar esta pretensión es necesario vestirlas de lentejuelas? ¿no
estaremos ante un producto más –las víctimas– que sólo provocan y excitan un
sospechoso interés en momentos de supuesta discontinuidad histórica, de crisis
generadas y elaboradas por los medios de comunicación precisamente porque es
en esos momentos cuando adquieren sumo interés y preponderancia para el
mercado, momento en que las víctimas se convierten en posibilidades
comerciales por efecto y gracia de su teatralización publicitaria?, ¿no serán las
crisis humanitarias una construcción telemática más que tiene el peligro de hacer
de las víctimas un fenómeno coyuntural, que reaparece de manera espasmódica
en tiempos en que la moral del consumidor así lo exige, pero que conlleva a su
vez el gran riesgo de invisibilizar a las víctimas y a los procesos de victimación
como momentos estructurales, perennes y sistemáticos de la globalización?
En el marco de la acción humanitaria, entender los derechos humanos
como criterio de verdad, supondrá dar un estatuto de centralidad al hecho de
producir, reproducir y desarrollar la vida de las víctimas con prioridad lógica,
temporal y discriminada hacia los más vulnerables por ser su vida la que más
3
Informe sobre el desarrollo mundial 2000/2001. Lucha contra la pobreza, Banco Mundial, Ed.
Mundi Press, p. 3.
260
Asier Martínez de Bringas
trágicamente exhorta a la conciencia internacional. Las víctimas, como criterio de
existencia de toda acción y derecho humanitario 4; como el contenido que rellena y
otorga sentido a una disciplina que sería pura formalidad si no se dejara
desbordar y aleccionar por esta condición tan dramática como ubicua, tienen el
peligro de quedar abstraídas y diluidas en su corporalidad sufriente y necesitante.
La dignidad humana es victimada precisamente cuando se cuantifica y entra en
competencia con otras variables. Para ello será necesario diluir y vaciar de
contenido la materialidad que da consistencia a la dignidad humana,
descorporalizándola y obviándola en sus necesidades materiales. En la medida
que esto se realiza nos situamos ante cuerpos disponibles, fungibles,
mecantilizables, que entran en competencia. Pero la dignidad humana en su
corporalidad ni tiene competencia ni admite competencia. Sólo una racionalidad
reproductiva que no reduzca la vida humana a un cálculo empresarial de costos,
sino que considere que la pérdida de la vida humana es un costo infinito, pauta y
criterio para valorar y considerar cualquier otro costo social5, permitirá rescatar la
dignidad humana de su condición subalterna y de su calificación vejatoria: la de
víctima.
La consideración de víctima no es una denominación originaria y
constitutiva que dignifique y ensalce al ser humano; es una calificación derivada y
adjudicada, fruto de la infravaloración de la corporalidad humana; de un
vaciamiento y sometimiento de ésta a la mera cuantificación estadística; el
resultado de una consideración de la vida como mera variable y, por tanto, como
un simple costo de mercado. Es la consecuencia irremediable de no haber
tomado en serio la vida humana, de haberla subestimado en su potencialidad y
profanado en su sacralidad. Cuando esto ocurre, acaece la victimación como
proceso. Por tanto, la comprensión de las víctimas en el ámbito de la acción
humanitaria deberá hacerse desde una habilitación de la razón reproductiva 6 que
se revista y capacite mediante derechos para atender las necesidades físicobiológicas vulneradas; dando cobertura a estructuras psíquicas golpeadas y
4
Ese sería el tema del libro publicado por la Unidad de Estudios Humanitarios, Puertas cerradas.
El acceso a las víctimas en la acción humanitaria, Icaria, Barcelona, 2001.
5
F. Hinkelammert y H. Mora, Coordinación social del trabajo: Mercado y reproducción de la vida
humana, DEI, San José, 2001, p. 117-118.
6
O. c., p. 114 y ss.
Los Derechos Humanos como Núcleo Fundante de la Acción Humanitaria
261
mancilladas; a memorias profanadas y desbaratadas que exigen un tratamiento
específico para poder recuperar la dignidad de vivientes y poder desarrollar la
vida con garantías. Derechos que atiendan a corporalidades indiscriminadamente
abandonadas por la esfera pública y cruelmente perseguidas por el poder (como
es el caso de los refugiados). Persecución y abandono son dos responsabilidades
de las que tendrá que hacerse cargo el poder para poder restaurar la vida de las
víctimas mediante derechos, que éste, entre otros y por influencia de otras
variables, ha causado por acción u omisión.
Las víctimas, al ser expresión y sintetizar el mayor grado de precariedad y
necesidad humana, constituyen el momento más cualificado para el ejercicio y la
fundamentación de los derechos humanos. Las víctimas son el lugar en que la
universalidad de los derechos se expresa con más intensidad y cualidad. Si la
universalidad de los derechos se encarna con verdadera radicalidad en las
víctimas, es porque en ellas residen con más urgencia y de manera más explicita
las condiciones que propiciaron históricamente el advenimiento de los derechos
humanos: la necesidad de restaurar la condición humana de una situación
agónica de precariedad, vulneración, inanición, presupuestos todos ellos que
impiden la producción, reproducción y desarrollo de la vida. Si los derechos
humanos surgen como instancias críticas que harán viable y sostenible la
dignidad de los sujetos, éstos encuentran su lugar privilegiado en las víctimas
cuya vulnerabilidad está a punto de desbordarse, siendo un derramamiento que
no admite retorno. Afirmar esto no supone entrar en una dinámica competencial
de derechos (los de las víctimas, como derechos más cualificados, frente a los
derechos de las no-víctimas)7; sino enconar los esfuerzos para la implementación
de una política de derechos que encauce la asimetría de quienes tienen más
posibilidades de morir antes de tiempo. Las víctimas ofrecen los criterios para que
el contenido de los derechos garantice realmente la dignidad de todos y no sólo la
de aquellos que estaba a priori asegurada; son propedéutica para transitar hacia
una situación transvictimaria.
7
La dialéctica victimas versus victimarios es un simplismo ortodoxo del que pretendemos
evadirnos. No se trata de volver a poner en el centro de la lucha por la hegemonía el viejo tópico
de pugna de contrarios -opresores contra oprimidos-, lo que cualificaría moral y políticamente un
lado de la relación polar. Se trata de restaurar la dignidad de los sistemáticamente excluidos,
situándolos a la misma altura de quines ya gozan y siempre han gozado de derechos.
262
Asier Martínez de Bringas
Asumir la condición de las víctimas desde esta perspectiva nos sitúa ante
el moderno fenómeno biopolítico 8 en que la vida biológica, en su intensa
corporalidad y vitalidad, se convierte el hecho político decisivo. El poder encuentra
su potencialidad, sus nuevas formas de hegemonizarse y sus réditos más
intensos, al aplicarse directamente sobre la vida humana ejercitando sobre ella
controles precisos y regulaciones generales.
El poder reside y ejerce en el nivel de la vida, de la especie, de la
raza y de los fenómenos masivos de población (...) Ahora es en la
vida y a lo largo de su desarrollo donde el poder establece su
fuerza; la muerte es su límite, el momento que no puede apresar 9.
La política moderna pivota y se mueve sobre un cambio de paradigma que
no trata ya de hacer jugar la muerte en el campo de la soberanía, de atemorizar el
espíritu humano con la coacción límite de la muerte; sino espaciar y regionalizar el
material viviente humano en un dominio que posee valor y utilidad para el poder10.
El
poder
se
enseñorea
y
se
legitima
produciendo,
administrando
e
institucionalizando los procesos de victimación. La biopolítica no es un fenómeno
no-intencional, un simple efecto colateral del poder; sino el resultado de una
estrategia que conlleva la aplicación de unas técnicas seriamente meditadas y
ansiosamente buscadas. El eje de la moderna dominación y exclusión radica en la
potencialidad sustraída y drenada de la vida humana. El mantenimiento de una
8
“Es característico de la dialéctica de la modernidad el que si bien sus tendencias principales
desvalorizan el Cuerpo y tienden a expulsarlo de todos los sectores importantes de la vida social,
fue precisamente la modernidad la que emancipó legalmente el cuerpo por primera vez en la
historia escrita, al ampliar la ley de habeas corpus, antes privilegio del noble, y convertirla en un
principio general para todos (...) Nadie que sea un simple cuerpo, dice el razonamiento, puede
convertirse en una persona política y racional. Para conseguir esto último, hay que liberar al simple
“Cuerpo” (en otras palabras, hay que acabar con la cautividad de un ser potencialmente racional);
la saludable norma de lo espiritual no llega hasta después. Pero lo irónico del proceso moderno
fue precisamente que este acto de liberación, cuyo objetivo proclamado era acabar con la
corporeidad abstracta, preparase el camino para la biopolítica. No existía nada parecido a eso
antes de la modernidad. Nada habría legitimado la búsqueda de una política diferenciada del
Cuerpo en un mundo en que el Cuerpo (su autonomía y su supervivencia física) estaba de un
modo u otro vinculado a todo tipo de política” en A. Héller y F. Fehér, Biopolítica. La modernidad y
la liberación del cuerpo, Península, Barcelona, 1995, p. 18-19.
9
Foucault, Historia de la sexualidad. 1. La voluntad de saber, Siglo XXI, Madrid, 1984, p.166-167.
Una versión prolongada y actualizada del pensamiento biopolítico de Foucault sería el magnífico
libro de Giorgio Agamben, Homo Sacer. El poder soberano y la nuda vida, Pre-Textos, Valencia,
1998.
10
Foucault, “Del poder de soberanía al poder sobre la vida” en Genealogía del racismo, La
Piqueta, Madrid, 1992, p. 247-273.
Los Derechos Humanos como Núcleo Fundante de la Acción Humanitaria
263
vida en lo liminar, en los límites tolerables de la existencia, congelando y
reteniendo su sostenibilidad reproductiva y haciendo de ésta una incertidumbre
por la que hay luchar y movilizarse a diario, es el mayor ejercicio de dominación,
por un lado, y de subyugación, por otro. Es la clave de la nueva hegemonía del
poder.
Por tanto, las víctimas como realidad palpitante no admiten ejercicios de
hermenéutica, grados de comprensión variables y distintos de su condición, o
matizaciones en su naturaleza por los señores de la ayuda. Por tanto, la política
externa de los Estados-Nación por mediación de sus hegemonías políticas
militares como instrumento privilegiado de intervención, no podrán moldear con
pretensión legítima en ámbito de vivencias y de sentidos de las víctimas. Serán
éstas las que autorizarán la nominación y jerarquización de los distintos actores
humanitarios y nunca al revés.
El sentido de la acción humanitaria destila desde las víctimas –vehiculadas
por instituciones normativas privilegiadas, los derechos humanos– hacia el poder.
El flujo de consentimiento desde el desgarro de las víctimas será el que nos
habilitará competencialmente; cualquier subversión en su diagrama nos facultaría
para ejercitar los derechos humanos como desobediencia. Por tanto, si un actor
humanitario se constituye a priori y en abstracto, sin referencia a las urgencias,
condiciones y exigencias de las víctimas, tendrá grandes posibilidades de olvidar
los derechos humanos como criterios posibilitadores, y de caer en la
mercantilización cosificante de aquellos con quienes se trabaja: los sujetovíctimas. Olvidar los sustratos que nos constituyen y nos impulsan a trabajar,
puede llevar a convertir la acción humanitaria en un negocio que regatea recursos
humanitarios, que comercia usureramente con aquello que posibilitará la vida, que
distribuye sin criterios lo que exige una racionalidad extrema acompasada con
solidaridad.
Esta exhibición de amnesia puede hacer que las víctimas, por la acción
confabulada de la ayuda y el poder de dominación de quienes la posibilitan,
resultan domésticas y enjauladas. Se procede a una inversión de los marcos
categoriales de los derechos humanos por la que se justifica la intervención en
nombre de éstos, para acabar violando más derechos. La actitud reparadora
patentada bajo el formato de la legitimidad que otorgan los derechos humanos,
264
Asier Martínez de Bringas
supone una estrategia muy sutil y bien pertrechada, que abre las puertas de la
impunidad sobre todos los derechos de aquellos que han sido calificados, de
forma irrefutable –ya que no cabe prueba en contrario–, como violadores y
enemigos acérrimos de los derechos humanos 11. Eso ocurre cuando se militariza
la ayuda humanitaria; cuando el ámbito militar de la acción humanitaria adquiere
una preponderancia y omnipotencia tan hegemónica que oscurece y niega toda
civilidad de las víctimas que es lo primario y fundante.
Aunque lo desarrollado pueda resultar obvio a las conciencias, asumir los
derechos humanos como momento crítico y radical para comprender la acción
humanitaria supone que ésta quedará mediatizada, corregida y limitada desde
aquellos. Si la producción, reproducción y desarrollo de la vida de las víctimas
atraviesa el campo de posibilidades y exigencias que nos compete, ésta máxima
será también quien determinará la legitimidad, o no, de proyectos, diseños
humanitarios y actores. En este sentido consideramos que desde la misma lógica
de los derechos humanos, el militarismo y su mediación institucional privilegiada –
los ejércitos y las FF.AA.–, no podrán ser actores ni sujetos de acción
humanitaria. Lo que ha sido y es causa y motivo fundante de violencia estructural
–el militarismo–, no podrá ser remedio ni antídoto para la herida más trágica de la
globalización: las víctimas. El militarismo en su naturaleza constitutiva niega los
derechos humanos al proponer como terapia frente a la fuerza del consenso (o
disenso) y la palabra, la fuerza de las armas y la lógica de la violencia y la
conscripción. Admitiendo pocas inflexiones en este postulado, la de negar la
capacidad para ser actor humanitario a los ejércitos, no nos podremos dejar llevar
por la esperanza de una idea límite y trascendental como la de un mundo sin
ejércitos ni conflictos –propuesta de la que tampoco se abdica como dinamismo
utópico de la política–, y habrá que ubicar la presencia de éstos en la acción
humanitaria, aunque de manera subalterna y contenida y nunca como actores y
sujetos.
11
“Después de la guerra del Golfo, la defensa de los derechos humanos se ha transformado en un
acto subversivo en contra del cual está la misma opinión pública. Y es que, de ahora en adelante,
el movimiento a favor de la paz ha sido caracterizado como el verdadero peligro; la guerra, en
cambio, es presentado como “Guerra para la Paz”, como “intervención humanitaria”, como el único
camino realista para asegurar la paz”, F. Hinkelammert, “La proyección del monstruo: la
conspiración terrorista mundial” en Pasos, n° 101, (mayo-junio) 2002, p. 33.
Los Derechos Humanos como Núcleo Fundante de la Acción Humanitaria
265
2. ¿Puede el Humanitarismo Armado Ser Actor Humanitario?
La formulación retórica ya encierra una respuesta inevitable: la de la falta
de legitimidad de las FF.AA. como sujetos de la acción humanitaria. Con ello no
se pretende una crítica gratuita, enconada y sesgada contra la institución militar;
se trata, fundamentalmente, de de-construir el falso busto con el que ha autoeregido el poder su vertiente militar al presentarlo como plataforma para una
filantropía universal y escuela para la construcción de la paz y la libertad 12. El
militarismo, para ganar espacio social y legitimidad, abandera, renovadamente, un
estatuto que no le pertenece porque nunca lo ha cultivado, que le resulta extraño
y lesivo y que, además, se instaura como una contradicción irrefrenable en el
seno de su propia naturaleza constitutiva. Cultura de paz y militarismo lejos de
abrazarse y enredarse afectivamente, han sido enemigos históricos. Por ello, la
acción humanitaria es una disciplina que por principio resulta extraña al
militarismo, lo que exigirá, por tanto, promocionar y fomentar la acción
humanitaria civil por ser ésta quien más se interesa por conocer y mejor se
informa para asistir a las víctimas; para conocer sus necesidades y urgencias;
para diseñar planes estratégicos y de logística no derivados de la manera militar
de comprenderse y entenderse con los conceptos de seguridad y riesgo. Una
acción humanitaria civil siempre será más eficiente, frugal en recursos y fructífera
desde el punto de vista de los derechos humanos. La inteligencia militar, su
racionalidad y estructura, está sensibilizada y habilitada para la confrontación
bélica; sin embargo, resulta agnóstica e inespecífica respecto a un humanitarismo
centrado en las víctimas. La estructura militar, ni sabe ni pretende derivar y
12
Es muy significativo que tras las cruentas guerras centroamericanas, por ejemplo, tanto en El
Salvador como en Guatemala, los grandes núcleos de población estuviesen florecidos y
adornados con grandiosos carteles que rezaban “El ejército trabaja por la paz”, “El ejército es
constructor de paz”. De manera muy similar se ha ataviado la propaganda con la que se quiere
renovar y depurar las posibilidades y funciones del nuevo ejército profesional en España, sabiendo
que su prestigio y respetabilidad gozaban de una debilidad endémica. La necesidad de
legitimarse, exige abrazar la cultura de paz como el mejor barniz para ganar y hacerse con un
espacio social hasta ahora desconocido para el militarismo, pero que le podrá reportar réditos de
popularidad además de encauzarle para alcanzar una posición de privilegio en la acción
humanitaria. Resulta paradójico un despliegue publicitario y propagandístico tan desorbitado como
novedoso, para adherirse estéticamente a lo que ha sido la crítica más densa al militarismo: la
cultura de paz y de los derechos humanos.
266
Asier Martínez de Bringas
facilitar sus recursos y capacidades al servicio de la civilidad del poder 13.
La historia como dinamismo y como tradición nos ha mostrado que la
legitimidad militar se ha revelado a través de dos rostros: uno, que se expresaba
como legitimidad tradicional y constitutiva, por la que las FF.AA. jugaban un papel
crucial en la modelación y conformación del espíritu y de la identidad nacional;
otro, fruto del desgaste y desprestigio que la acción bélica había comunicado a las
instituciones militares a lo largo del siglo XX, y que la acción crítica de los
movimientos pacifistas, como filtración capilar, había conseguido oscurecer y
declinar: sería la legitimidad instrumental, aquella que contempla al ejército y a las
FF.AA. como mal necesario y tolerable y que desde perspectivas pacifistas se
entiende sencillamente como mal innecesario.
A través de la legitimidad militar tradicional se establecía el fertilizante
necesario para conjugar de forma acompasada y rítmica la guerra con la
construcción de la identidad nacional, desde el postulado de una legitimidad
militar asentada y coercitivamente mantenida. Es decir, la legitimidad militar
asumía un papel hegemónico en la construcción política del Estado por medio de
la ritualización de la guerra 14. Se trataba de dar formato a la máxima de
Clausewitz de continuar la política mediante otros medios. La conformación
política de muchos Estados europeos se produce gracias al cedazo selectivo y
homogeneizante que el poder militar aplica sobre la materia prima humana de un
territorio, aglutinándolo en torno a una manera común de sentirse y
comprenderse. Todo ello bajo la égida de un liderazgo autoritario soberanizado
13
En este aspecto y corroborando nuestra posición, resulta enormemente revelador el informe
desarrollado por el Development Assistance Committee de la OECD-OCDE en 1997, en donde
procede a una auditoría contable y comparable entre los costos de la acción civil humanitaria y la
acción militar humanitaria. La propuesta final, a partir de los resultados derivados de este análisis
de campo, es la desmitificación y deslegitimación de las ventajas a priori de la intervención militar
en cuestiones humanitarias. Éstas, ni son más efectivas, ni más eficaces, ni siquiera más
económicas desde una perspectiva estrictamente de mercado. Los costos de la intervención militar
son exponencialmente más altos que los de la acción civil; el problema está en que mientras los
primeros se promocionan intensivamente, los segundos se desatienden intencional y cínicamente.
La acción humanitaria no conoce una perspectiva que enfatice, con prioridad indiscutible, el lado
civil de la acción e intervención, reduciéndose, muchas veces, a una consideración estrictamente
militar de los costos y de la procedimentalidad de la acción. Cf. Conflict, Peace and Development
Co-operation. Civilian and Military Means of Providing and Suporting Humanitarian Assistance
During Conflict. Comparative Advantages and Costs, Report n° 1, en http://www.oecd.org/dac.
14
Anthony Smith “War and Ethnicity: The Role of Warfare in the Formation, Self-images and
Cohesion of Ethnic Communities” en Ethnic and Racial Studies, vol. 4, n° 4, (octubre 1981), p. 65 y
ss.
Los Derechos Humanos como Núcleo Fundante de la Acción Humanitaria
267
desde la esfera militar 15. La preponderancia militar en el comando estatal y en el
despliegue de la soberanía adherido a éste, alcanzaba su paroxismo en la guerra:
expresión simbólica máxima para la expansión y establecimiento de la identidad.
La guerra, como recurrencia sistemática del poder militar, ha sido la forma más
eficaz para la construcción política de los Estados mediante la exhibición y
conjugación dialéctica del par amigo-enemigo 16.
Para ello, el aparato militar ha sido movilizador fundamental, haciendo
participar a los sujetos en las guerras y cohesionando sus identidades mediante la
participación colectiva; ello iba acompañado, a su vez, de una potente maquinaria
de propaganda que eliminaba demagógicamente cualquier escrúpulo sobre el uso
de la violencia como medio de acción política; a lo que habría que sumar la
potencia cohesionadora y centralizadora que la estructura militar ha desplegado
para evitar fracturas y pérdidas en la estructura hermética de su ámbito soberano,
lo que evitaría tránsfugas en una solidaridad coercitivamente implantada, y un
sentimiento de unidad constitutiva y originaria recogida bajo el concepto de
Estado 17. Por tanto, la guerra ha fungido como forja de identidades nacionales a
la vez que, paralelamente, coadyuvaba a la construcción nacional y a su
materialización institucional en forma de Estado. Toda esta agresiva dirección ha
sido monopolizada y adoctrinada desde la vertiente militar del poder.
Conseguido esto, la legitimidad tradicional es subrogada por la legitimidad
instrumental debido al desgaste sufrido por el factor militar. Una vez que la
constitución política del Estado adquiere cierta consistencia y solvencia, a la vez
que ciertas cotas de democracia, procede a una reubicación del estamento militar
que no podrá seguir ocupando una posición expresamente hegemónica en el
15
Charles Tilly, Coerción, capital y los Estados europeos, 990-1990, Alianza, Madrid, 1992, cap.
III.; X. Aguirre, Yugoslavia y los ejércitos. La legitimidad militar en tiempos de genocidio, Catarata,
Madrid, 1997, p. 110-120.
16
“El enemigo político no necesita ser moralmente malo, ni estéticamente feo; no hace falta que se
erija en competidor económico, e incluso puede tener sus ventajas hacer negocios con él.
Simplemente es el otro, el extraño, y para determinar su esencia basta con que sea
existencialmente distinto y extraño en un sentido particularmente intensivo”(57); “Enemigo no es
pues cualquier competidor o adversario. Tampoco es el adversario privado al que se detesta por
cuestión de sentimientos de antipatía. Enemigo es sólo un conjunto de hombres que siquiera
eventualmente, esto es, de acuerdo con una posibilidad real, se opone combativamente a otro
conjunto análogo. Sólo es enemigo el enemigo público, pues todo cuanto hace referencia a un
conjunto tal de personas, o en términos más precisos a un pueblo entero, adquiere eo ipso
carácter público” (p. 58-59), Carl Schmitt, El concepto de lo político, Alianza, Madrid, 1991.
17
R. Bañon y J.A. Olmeda La institución militar en el Estado contemporáneo, Alianza, Madrid,
1985, p. 284 y ss; X. Aguirre, Op. Cit., p. 112-113.
268
Asier Martínez de Bringas
Estado. El rostro civil del Estado irrumpe con fuerza, controlando y gestionando la
estructura militar. Además, el ritmo progresivo con que se va asentando la cultura
democrática junto con su blasón más férreo, los derechos humanos, incita el
despertar de una conciencia pública cívica que difícilmente tolera la pertinencia de
la presencia pública de lo militar en la vida cotidiana del ciudadano.
Hoy el estamento militar trata de recuperar parte de la legitimidad perdida,
de reforzar su añeja y altanera hegemonía, colonizando otras esferas y espacios
de lo social hasta ahora ignotos para él. Las FF.AA. necesitan renovar e higienizar
su expediente para ganar una posición política en la sociedad civil. Se trata de
reconstruir la perdida legitimidad tradicional con rostros actualizados. De ahí que,
ataviados con las posibilidades que otorga el mercado publicitario, la institución
militar se invista como eje cualificado en la construcción y distribución de una
cultura de paz como si de una mercancía más se tratara; como fuente dimanadora
de virtudes cívicas y como correa de trasmisión de las mismas.
La necesidad de ubicarse como sujeto activo y privilegiado de la acción
humanitaria, constituye una nota más de este despliegue. La recepción de la
legitimidad pasa necesariamente por nominarse sin ningún tipo de prejuicio, como
actor humanitario al mismo nivel y en la misma calidad que cualquier otro actor.
Por ello y conociendo la naturaleza con la que se ha identificado y reconocido la
institución militar, y las estructuras comportamentales con la que se ha expresado
y se expresa a lo largo de la historia, no podrá ser considerado actor humanitario
en la perspectiva y desde la lógica con la que nos habilitan los derechos
humanos. Ello no significa que, dada la conflictividad compleja de lo real, estén
inhabilitados para desempeñar una función en este campo; sin embargo, ésta
siempre estará subordinada al poder civil y ejercerá una función delegada
respecto a lo que éste y demás agentes humanitarios dispongan.
La naturaleza de la racionalidad militar se ha venido caracterizando por
criterios de funcionalidad, de eficacia y de máxima rentabilidad a corto plazo. La
intervención militar viene motejada por su carácter quirúrgico y epidérmico; por el
oscurecimiento de intereses nacionales específicos y por la colonización de
sectores civiles y recursos humanos. Es significativo, en este sentido, que bajo el
criterio de máxima eficacia bélica, se actúe, a su vez, bajo el mandato de mínimas
bajas militares, lo que ha exigido un cambio en la naturaleza de las intervenciones
Los Derechos Humanos como Núcleo Fundante de la Acción Humanitaria
269
militares. Se ha sustituido la presencia territorial del ejército por la intervención
aérea 18 mediante la pedagogía del bombardeo; lo que supone mínimo gravamen
militar con máxima indiscreción sobre víctimas civiles. Se produce lo que
habíamos anticipado: se invisibiliza la víctima, se la considera residuo del
espectáculo humanitario al nominarla como daño colateral, y se abandona el
núcleo fundante básico que había permitido y posibilitado la intervención: los
derechos de las víctimas. Además, ciertos Estados, como es el caso de los
EE.UU, desde el fiasco intervencionista de Somalia, recoloca la logística militar
reduciendo su participación en futuras operaciones de paz de la ONU a aquellas
que tuviesen importancia estratégica directa para sus intereses19. Se desenfoca y
se desnaturaliza el objeto de la intervención, pervirtiendo la completa estructura
de la acción humanitaria. Por ello, este carácter selectivo de la intervención hace
de los medios fines, a la vez que el objetivo y el motivo fundante de la acción
queda anulado y desplazado. Por ello, como venimos insistiendo, la acción
humanitaria civil puede tener más ventajas comparativas que la militar si se la
promociona económicamente 20. Someter la acción acción civil humanitaria a una
prodigalidad indigna, constituye la clave para la reivindicación y justificación del
protagonismo del sector militar en la ayuda humanitaria.
De esta manera bregamos hacia el núcleo fuerte de nuestro argumento.
Habíamos sostenido que el principio fundante básico que relata y da contenido
último a la acción humanitaria, sería el respeto y la promoción inexcusable de los
derechos de las víctimas. Sin embargo, ciertas prácticas humanitarias han
relegado este factor por constituir un gravamen demasiado costoso y, por tanto,
necesariamente dispensable 21. Las políticas estratégicas que ocultan las
intervenciones
militares
18
(intereses
político-económicos
específicamente
A. Roberts El papel de las cuestiones humanitarias en la política internacional en los años
noventa” en Los desafíos de la acción humanitaria, Op. Cit., p.66.
19
A. Ramsbotham y J. Raisin, “Ayuda, desarrollo e intervención humanitaria” en Op. Cit., p. 194 y
ss.
20
Cf. Conflict, Peace and Development Co-operation. Civilian and Military Means of Providing and
Supporting Humanitarian Assistance During Conflict. Comparative Advantages and Costs, OECDOCDE, DAC, 1997, Op. Cit.
21
Para Human Rights Watch, el desfase entre realidad e idealidad en la protección de los
derechos humanos en las operaciones de paz de El Salvador, Camboya, Yugoslavia, Somalia e
Irak, es tildada de “agenda perdida”. Se procede a una adulteración tal de los verdaderos motivos
de intervención, que lo que acabó imperando fueron motivos domésticos, interesados e
instrumentales. Las víctimas y los derechos humanos fueron la parte dispensable y olvidada de
estas intervenciones. H.R.W., New York, 1993.
270
Asier Martínez de Bringas
identificados
con
Estados-Nacionales
concretos),
resultan
inversamente
proporcionales a la protección y promoción de los derechos humanos. El coste de
éstos supone una minorización de los réditos y ventajas que impulsaban los
verdaderos motivos de la intervención: intereses estratégicos de los Estados. Por
ello es necesario sacrificar las víctimas para que las injerencias continúen siendo
rentables según los criterios que evalúen los intereses de intervención de cada
Estado; lo que, dramáticamente, no acaba coincidiendo con los intereses de las
víctimas.
Todo ello lleva a un quebrantamiento inadmisible de los principios de
neutralidad e imparcialidad en que se debe fundamentar la ayuda humanitaria.
Los ejércitos tienden a sustituir la imparcialidad por voluntad política. La agenda
militar se metamorfosea en ayuda politizada 22. El máximo ejercicio de politización
e inversión de la naturaleza de la acción humanitaria es presentar la acción militar
bajo los velos de una prístina neutralidad que nunca es tal. El doble gravamen de
esta ideologización de la neutralidad es que, no existiendo, se pretende también
ocultar la naturaleza política de todo mandato militar. Los distintos mandos
militares se autodeterminan respecto al mandato formal de la ONU, respondiendo
exclusivamente a la voluntad política de sus propios gobiernos. Falsa neutralidad
y técnicas de ocultación acompañan como fieles acólitos cualquier intervención
militar.
Por ello, la imparcialidad queda adulterada como principio. La acción militar
se caracteriza por la revisión alevosa de los conceptos y categorías tal y como se
dan en la nuda realidad. Procede a una revisión de los crímenes y de la
impunidad acontecida, narrando medias verdades, diluyendo, muchas veces, la
responsabilidad
de
los
verdaderos
perpetradores
y
desplazando
tal
responsabilidad, de manera injustificada, al barbarismo connatural de la población
local 23. Invierte la relación amigo-enemigo para describir la historia bélica según
22
X. Etxeberría “Marco ético de la acción humanitaria” en Los desafíos de la acción humanitaria,
Op. Cit., p. 122.
23
Como dejó escrito Hannah Arendt “La deliberada negación de la verdad fáctica –la capacidad de
mentir- y la capacidad de cambiar los hechos –la capacidad de actuar– se hallan interconectados.
Deben su existencia a la misma fuente: la imaginación” (13); “La sinceridad nunca ha figurado
entre las virtudes políticas y las mentiras han sido siempre consideradas en los tratos políticos
como medios injustificables” (12); “El desprecio a la realidad era inherente a la política”(50) en La
crisis de la república, Taurus, Madrid, 1999. Piénsese en el peligro de la confabulación políticomilitar en ciertas intervenciones humanitarias, que se ha exhibido mediante técnicas de escamoteo
y prácticas de invisibilización de datos, invirtiendo los hechos reales e interpretándolos al antojo de
lo que las directrices político-militares exigían.
Los Derechos Humanos como Núcleo Fundante de la Acción Humanitaria
271
convenga a los intereses de los Estados que determinan la intervención.
Si no es pertinente, por todo lo expuesto, la investidura de las FF.AA. como
actor de la acción humanitaria, ¿qué papel les corresponde desempeñar a éstas
cuando la práctica humanitaria está inevitablemente tejida por la tragedia y la
confrontación? Sabiendo, por tanto, que el conflicto y la violencia nos constituyen
y atraviesan; que la militarización social es un proceso trágicamente presente y
absolutamente dermático; que la existencia de los ejércitos se ensaya,
lamentablemente, como la única manera viable y plausible de entender el
polivalente concepto de seguridad; que la premura e inmediatez de la tragedia
nos abraza y nos sacude cotidianamente, lo que embota la mente de actores
sociales y políticos para diseñar procesos y marcos que conciencien, primero, y
permitan accionar, después, modelos diferentes para entenderse con los
conflictos y convulsiones sociales; parece dolorosamente inevitable la existencia
de un ámbito militar en la acción humanitaria.
Sin embargo, la acción humanitaria como acción estructural deberá ir
acompañada siempre de una voluntad política que la dirija; de un momento fuerte
de neutralidad: la acción humanitaria como acción imparcial. Es este momento el
que dará razón ética a la ayuda humanitaria cuyo núcleo central será la
preservación y promoción de los derechos humanos de las víctimas. La actividad
militar, por tanto, no podrá jugar un papel estructural en la acción humanitaria,
sino derivado y donado. Deberá ser la civilidad del poder, con voluntad política
civil, la que imponga su mando sobre el poder militar desde las necesidades de
las víctimas. Dado el potencial bélico que encierra el bloque militar, su capacidad
operativa deberá ser siempre ejecutiva, plegada a los mandos de una autoridad
civil previamente informada y conformada por las prospecciones de las ONG’s y la
ONU; nunca, por tanto, legislativa, autónoma y autodeterminada. Todo vacío en la
civilidad del poder supone un riesgo enorme para la construcción y el
mantenimiento de la paz. Toda delegación de la civilidad del poder en manos
militares, una negligencia inexcusable.
Reconocer al poder militar como sujeto y actor de la acción humanitaria,
supondría abrir las puertas a la totalización militar de la realidad como ha venido
ocurriendo en el pasado. El germen de muchos conflictos ha tenido y tiene su
sustrato germinal en las procelosas aguas que agita el militarismo. Dado el
272
Asier Martínez de Bringas
recorrido y expediente con que las FF.AA. se han presentado en la escena de la
historia, no podrá otorgarse un papel activo y determinante en la acción
humanitaria a aquellos sectores que guardan un potencial altísimo de
responsabilidad en las causas y sostenibilidad de los conflictos.
3. Conclusiones
La acción humanitaria entronca su esencia en la dignidad de las víctimas
vulneradas, lo que queda referido y recogido normativamente por medio de los
derechos humanos 24. Sería necesario que esta acción humanitaria, consciente y
sensibilizada por la fundamentalidad de los derechos humanos en toda praxis
humanitaria, sea vehiculada mediante una acción política (salpicada y modulada
en un segundo momento por la acción de las ONG’s) a la protección y promoción
de los derechos humanos de las víctimas, lo que trasciende la mera acción
humanitaria convencional. La acción humanitaria como voluntad política, deberá
ser estructural; ello supone asumir el cotinium ayuda-desarrollo de manera
unitaria, de tal manera que se recombine la ayuda exógena con la promoción de
un desarrollo local sostenible. Por ello, la perspectiva de los derechos humanos
no puede conformarse con el mero mantenimiento de la vida e integridad física
(derechos civiles y políticos); sino que para garantizar el desarrollo, será
necesario la capacitación mediante derechos sociales: promoción cultural,
educativa, lingüística... Todo ello inserto y formando parte de un programa
estructural de Cultura de Paz que deberá, necesariamente, interpretarse
localmente. Si se habla, por tanto, de Derecho a la Paz, sus habilitadores
materiales primeros serán los derechos sociales. A esta lógica ineluctable de los
derechos humanos tendrá que plegarse, adherirse y subordinarse las disciplinas
24
En este sentido defendemos la utilización de los derechos humanos como mecanismo de
desobediencia civil que permitirá la constante movilización, dinamismo y crítica respecto a lo que
es criterio único y fundamento de la acción humanitaria: las víctimas con sus derechos. Por ello, lo
que podría resultar legítimo y plausible para el Derecho internacional, puede que no sea tal desde
la perspectiva de los derechos humanos. Esta dualidad de legitimidades –Derecho internacional
versus Derechos humanos- tiene la virtualidad de desplazar el hontanar de la legitimidad desde los
derechos humanos al Derecho internacional. Sin embargo, la arquitectónica de procesos, normas
e instituciones que ensamblan el derecho internacional, deben someterse a lo que es su criterio
posibilitante y legitimante: los DD.HH. Desde ahí, y frente a estos desplazamientos de sentido,
tendría sentido formular una utilización de los derechos humanos como desobediencia civil.
Los Derechos Humanos como Núcleo Fundante de la Acción Humanitaria
273
militares, que nunca podrán ser agentes decisorios por estar inhabilitados
específicamente para conocer las dinámicas civiles y sociales. Ello es una
cuestión de inespecificidad.
Hablar de derechos humanos supone hablar fundamentalmente de
capacitación en recursos. Cuando se menta a los derechos humanos como una
causa perdida, o se refiere a su imposibilidad de aplicación por su carácter
gravoso, se está haciendo referencia a dos planos distintos que se interpretan
unitariamente: el existencial y el económico. La auditoria contable de un programa
de derechos humanos centrado en las víctimas, es costoso en sí mismo por lo
que supone de habilitación material en recursos por medio de derechos; y es
costoso, también, por lo que supone de promoción de una política de Cultura de
Paz que desmovilice conciencias y cosmovisiones, remueva instituciones, sujete a
las partes armadas en conflicto, congele y reforme la potencia bélica-militar del
(los) ejército(s).
La neutralidad e imparcialidad, como principios de la acción humanitaria, se
conectan aquí con la independencia financiera. Una política estructural de
derechos humanos en el marco de la acción humanitaria, exigiría recursos no
politizados que ni condicionen ni narcoticen las posibilidades de hacer justicia.
Una subvención y promoción de derechos humanos interesadamente politizada,
puede llevar a su más rotunda neutralización. Sin voluntad política real de situar
en el centro de la acción humanitaria los derechos humanos, todo el universo de
medios que suponen éstos (los derechos) –tribunales, personal, instituciones,
recursos en general– estarán sujetos a la voluntad de los sufragadores; de no ser
así, no se sufragarán. La centralidad de una Cultura de Paz como acción
humanitaria, supone invertir este sentido.
Suele ser traumático, también, el carácter gravoso de los derechos
humanos por los costos reales que suponen. Una política de derechos para ser
factible exige una inversión grande que no pierda la centralidad que ocupa el
sujeto humano. Es aquí donde la legitimidad de lo militar, como la partida
financiera estrella en el marco de cualquier acción humanitaria y operación de
paz, exige también transformación. Es incoherente y perverso que los gastos
militares gocen de un despliegue de recursos desorbitado, siendo una partida más
dentro del monto total de la acción humanitaria, cuando, muchas veces, la acción
274
Asier Martínez de Bringas
humanitaria no puede ser desarrollada por falta de asignación de recursos a
aquellos sectores que constituyen el núcleo y razón de ser del ejercicio
humanitario: los derechos humanos. Constituye una dramática ironía el hecho de
que los medios militares para la instauración y sostenimiento de la Paz, gocen de
una subvención tan abultada que inhabiliten y veten una política de derechos
humanos entendida como capacitación. Hoy, el sostenimiento de los gastos
militares impide habilitar una acción humanitaria eficaz y rápida.
Mientras los Tribunales Penales Internacionales han sufrido importantes
mermas en sus presupuestos, auténticas agonías financieras que condicionaban
su viabilidad, el estamento militar –en bloque– de la acción humanitaria ha gozado
de una fuerte e ininterrumpida financiación 25. Ello exigiría un cambio político
conciencial que estableciendo como prioridad los derechos humanos, permitiese
la transferencia de recursos de la estructura militar hacia la acción humanitaria en
consonancia con los principios y motivos que inspiran la práctica humanitaria. Ello
denota que la actividad y práctica militar es mucho más costosa que la actividad y
práctica civil. El carácter monumental de los gastos militares impide la
rehabilitación de los ciudadanos-víctimas por inexistencia de presupuestos
sociales orientados a políticas de derechos. El par gastos militares-gastos
sociales exige una revisión muy crítica que se concrete en inversión social y
disminución de la presencia y pertinencia de lo militar para la solución de los
conflictos y rehabilitación de las poblaciones. Si esto no se produce, será
necesario reclamar la centralidad de los derechos humanos como una estrategia
más de desobediencia civil.
Pero, ¿qué supone esto? Supone un esfuerzo serio por situar en el centro
de la convivencia humana el imperio de la justicia y las garantías democráticas
necesarias para conseguirlo. El objetivo último de una utilización de los derechos
humanos como estrategia de la desobediencia civil será incrementar la realización
práctica, la intensidad garantista e inalienabilidad de los derechos humanos para
todos, incluyendo muy especialmente ese sector hasta ahora arredrado: las
víctimas de la globalización. No se trata de poner en riesgo la virtualidad
liberadora de los derechos humanos, sino de proceder a una protección y
25
Así por ejemplo, el presupuesto anual del Tribunal especial para Yugoslavia equivalía, en 1994,
a dos semanas de gasto militar destinado a UNPROFOR.
Los Derechos Humanos como Núcleo Fundante de la Acción Humanitaria
275
promoción más intensa de los mismos. La realización estructural y no ideológica
de los derechos humanos es el objetivo de la apelación a la desobediencia civil
como estrategia. Por ello, cuando los derechos humanos son regateados,
adelgazados e ideologizados en su comprensión; cuando se juega y especula
estratégicamente con la indivisibilidad de los derechos (prioridad de los derechos
civiles sobre los derechos sociales, por ejemplo) para leninizar su potencialidad,
será posible la utilización de la desobediencia civil desde exigencias legítimas:
aquellas que exigen la restauración de los derechos humanos en su total
corporalidad y estructura, por ser estos el corazón y la garantía más cualificada
para la supervivencia del Estado de derecho y de cualquier exigencia
democrática.
Hablamos de una utilización legítima y fundante de la desobediencia civil
ya que su sentido explicativo y la secuencia en la que encuentra su razón de ser
es la siguiente: partiendo de una consideración de los derechos humanos como
núcleo fundante básico de todo proceso de convivencia social en un Estado de
derecho, y sabiendo que estos encierran dentro de sí una vocación
universalizante como ideal a alcanzar –la de abrazar y hacerse extensivo al mayor
número de población posible con prioridad sobre aquellos núcleos de población
más vulnerados; sabiendo que por otro lado la realidad cotidiana es conflictiva y
viene caracterizada por la sistemática y constante violación de derechos humanos
en muchas regiones de nuestra geografía global; será legítima la utilización de la
desobediencia civil como modo para recuperar y restaurar aquellos medios
jurídicos que son condición necesaria para poder producir, reproducir y desarrollar
la vida: los derechos humanos. No se da, por tanto, una primordialidad y
principalidad de la estrategia de la desobediencia civil sobre los derechos
humanos; sino que serán los derechos humanos los que funden la desobediencia
civil para restaurar las garantías democráticas y el compromiso de la ley con el
mantenimiento de una vida humana digna para sus ciudadanos, lo que tiene una
aplicación directa en el caso de la acción humanitaria.
El ejercicio de la desobediencia civil no podrá exigir, como condición previa
y como prueba de su certera legitimidad, agotar las vías legales existentes en un
Estado de derecho; es decir, estimar que la desobediencia sólo será legítima
cuando sea el último recurso viable para la restauración de la democracia. Si de
276
Asier Martínez de Bringas
hecho es necesario apelar a la desobediencia, es porque el carácter formal de la
democracia ha pervertido y truncado las posibilidades de vida de los sujetos
haciendo abstracción de sus necesidades. Ha encerrado a los sujetos en una
jaula coercitiva de leyes que difícilmente velarán por el mantenimiento y
sostenibilidad de una vida digna de ser vivida. Se produce, por tanto, una
adulteración de la naturaleza democrática del Estado de derecho por la que las
propias estructuras estatales coadyuvan a invisibilizar y a desfondar la vigencia
real de los derechos humanos. Se da una situación en la que el propio Estado
brega con intensidad y malicia para esquivar las voces críticas que reclaman una
urgente aplicación de los derechos humanos. En este sentido, lo que es legal y
legítimo según el derecho internacional y la práctica interior de un Estado, puede
que no lo sea según el estricto espíritu y la letra de los derechos humanos. La
legalidad ilegítima de un Estado que diseña todo un cuerpo legal para sancionar
la impunidad, no puede saltar por encima de esa barrera crítica e insobornable
como son los derechos humanos. Ante la sibilina violación y perversión de los
derechos humanos se exige una reacción eficaz y no instrumental como es la
desobediencia civil. Lo que está en juego con la puesta en práctica de la
desobediencia civil como estrategia crítica frente a la legalidad vigente, son los
derechos humanos negados de las víctimas que nunca serán satisfechos por
displicencia o ignorancia del valor de esta cualidad humana (la de las víctimas)
para el sistema, todo ello sin merma de los derechos de aquellos que ya los
tienen garantizados. La desobediencia civil tiene una voluntad extensiva e
inclusiva; a la vez que una pasión desatada y fundamental por la integración de
los excluidos.
Referências Bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio (1998): Homo Sacer. El poder soberano y la nuda vida, Pretextos, Valencia.
AGUIRRE, Xabier (1997): Yugoslavia y los ejércitos. La legitimidad militar en
tiempos de genocidio, Catarata, Madrid.
AA.VV.(2001). Puertas cerradas. El acceso a las víctimas en la acción
humanitaria, Unidad de Estudios Humanitarios, Icaria, Barcelona.
Los Derechos Humanos como Núcleo Fundante de la Acción Humanitaria
277
ARENDT, Hannah (1999): La crisis de la república, Taurus, Madrid.
BANCO MUNDIAL (2000-2001): Informe sobre el desarrollo mundial 2000/2001.
Lucha contra la pobreza, Ed. Mundi Press
BAÑON y OLMEDA (1985): La institución militar en el Estado contemporáneo,
Alianza, Madrid
DEVELOPMENT ASSISTANCE COMMITTEE, OECD-OCDE (1997): Conflict,
Peace and Development Co-operation. Civilian and Military Means of Providing
and Supporting Humanitarian Assitance During Conflict. Comparative Advantages
and Costs, en www.oecd.org/dac.
ETXEBERRÍA, Xabier (1999): “Marco ético de la accion humanitaria” en Los
desafíos de la acción humanitaria, Icaria, Barcelona, p. 101-127.
FISAS, Vicenç (1998): Cultura de paz y gestión de conflictos, Icaria&Unesco,
Barcelona.
FOUCAULT, Michel (1984): Historia de la sexualidad. 1. La voluntad de saber,
Siglo XXI, Madrid.
______. (1992): Genealogía del racismo, La Piqueta, Madrid.
HÉLLER, Agnes y Fehér, F. (1995): Biopolítica. La modernidad y la liberación del
cuerpo, Península, Barcelona.
HINKELAMMERT, Franz y MORA Hector (2001): Coordinación social del trabajo:
Mercado y reproducción de la vida humana, DEI, San José.
______. “La proyección del monstruo: la conspiración terrorista mundial” en
Pasos, n° 101, (mayo-junio).
HUMAN RIGHTS WATCH (1993): (Memoria), Routledge, New York.
RAMSBOTHAM A. y RAISIN J. (1999): “Ayuda, desarrollo e intervención
humanitaria” en Los desafíos de la acción humanitaria, Icaria, Barcelona, p. 183202.
ROBERTS, Adam (1999): “El papel de las cuestiones humanitarias en la política
internacional en los años noventa” en Los desafíos de la acción humanitaria,
Icaria, Barcelona, p. 31-70.
SMITH, Anthony (1980): “War and Ethnicity: The Role of Warfare in the Formation,
Self-images and Cohesion of Ethnic Communities” en Ethnic and Racial Estudies,
vol. 4, n°4 (octubre 1981)
278
Asier Martínez de Bringas
SCHMITT, Carl (1991): El concepto de lo político, Alianza, Madrid.
SOGGE, David (1999): “Los subalternos en la cadena de ayuda” en Los desafíos
de la acción humanitaria, Icaria, Barcelona, p. 153-182.
TILLY, Charles (1992): Coerción, capital y los Estados europeos, 990-1990,
Alianza, Madrid.
Los Derechos Humanos como Núcleo Fundante de la Acción Humanitaria
279
A Intervenção Armada por Razões Humanitárias
e a Questão de Kosovo: Lições e Paradigmas
Ielbo Marcus Lobo de Souza
Sumário: Introdução. I. A Questão de Kosovo no Conselho de Segurança.
II. A Legitimidade ou Legalidade do Exercício de um Direito de
Intervenção Humanitária na Questão de Kosovo. Conclusão.
Introdução
Este artigo abordará uma questão nova, pulsante, dentro do direito
internacional contemporâneo: a prática da intervenção armada, por razões
humanitárias, em favor de nacionais de outros Estados. O tema é complexo,
porque coloca em questão algumas normas fundamentais do sistema jurídico
internacional e a própria arquitetura e funcionamento do sistema de segurança
coletiva universal do pós-guerra. Como pano de fundo, como se verá, está a
problemática da dimensão axiológica do direito internacional.
Embora referências sejam feitas a outros casos, esse estudo irá se
concentrar no caso da ação armada efetuada pela Organização do Tratado do
Atlântico Norte (OTAN) contra a República Federal da Iugoslávia (Iugoslávia), em
1999. Desde logo, esclareça-se que não se pretende avaliar ou julgar a legalidade
da ação armada da OTAN. A preocupação é mais ampla: muito embora a OTAN
tenha apresentado uma série de justificativas legais para a sua ação armada (e
talvez elas devessem ser consideradas no seu conjunto), o que será examinado é
a adequação do argumento da intervenção armada por razões humanitárias
naquele contexto e quais as repercussões dessa prática sobre o desenvolvimento
do direito internacional.
I. A Questão de Kosovo no Conselho de Segurança
O desenrolar da situação de Kosovo, que deu lugar ao conflito armado de
1999, pode ser examinado à luz das resoluções respectivas do Conselho de
Segurança da ONU. A primeira resolução de relevância foi a Res. 1160, de
31/03/98, aprovada pelo Conselho de Segurança sob o calor de um conflito
intenso entre as forças militares e paramilitares sérvias e o Exército de Libertação
de Kosovo (KLA). A Resolução, adotada com base no Cap. VII da Carta, condena
o uso de força excessiva por forças policiais sérvias contra civis e os atos de
terrorismo do KLA; afirma o compromisso de todos os Estados membros com a
soberania e a integridade territorial da Iugoslávia; requer que a Iugoslávia inicie
negociações substantivas com os representantes da comunidade albanesa
kosovense, incluindo a participação de representantes externos; exige a retirada
das forças policiais especiais sérvias da região e a cessação de atos contra a
população civil; requer a aceitação de uma missão da OSCE de verificação e
mediação; estabelece um embargo de armas contra a Iugoslávia, incluindo
Kosovo; e enfatiza que, na ausência de progresso construtivo para uma solução
pacífica da situação, haverá medidas adicionais. Na época, já estavam envolvidos
no processo de solução pacífica do conflito a União Europeia, o chamado Grupo
de Contato (composto pela Alemanha, Estados Unidos, França, Itália, Reino
Unido, Rússia) e a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa
(OSCE).
Na Resolução seguinte, a de número 1199, de 23/09/98, o Conselho de
Segurança, novamente com base no Cap. VII da Carta, manifesta sua
preocupação com a intensificação da luta em Kosovo e particularmente com o
excessivo e indiscriminado uso da força por forças de segurança sérvias e o
exército iugoslavo, “que tem causado numerosas vítimas civis e, de acordo com a
estimativa do Secretário-Geral, o deslocamento de mais de 230.000 pessoas de
suas casas”; mostra-se preocupado com a “rápida deterioração de situação
humanitária em Kosovo”; expressa seu alarme com a“iminente catástrofe
humanitária” descrita no relatório do Secretário-Geral, enfatizando a necessidade
de prevenir que isso aconteça; e afirma que a deterioração da situação em
Kosovo, Iugoslávia, “constitui uma ameaça à paz e segurança na região”. Três
conclusões podem ser tiradas dessa resolução: 1) o processo de solução pacífica
do conflito não estava produzindo resultados satisfatórios; 2) uma grave crise
humanitária estava se desenvolvendo; 3) as partes em conflito não estavam
cumprindo as determinações mandatórias do Conselho (tanto que a Resolução,
A Intervenção Armada por Razões Humanitárias e a Questão de Kosovo
281
ao final, indica que se as medidas concretas exigidas na resolução e na resolução
1160 não fossem adotadas, o Conselho iria considerar a tomada de ações ou
medidas adicionais para manter ou restaurar a paz na região).
Em 24 de março de 1999, a OTAN iniciou uma ação militar contra a
República Federal da Iugoslávia (Iugoslávia), que terminou em 10 de junho de
1999, com a assinatura de um acordo entre a Iugoslávia e a OTAN. Com o fim do
conflito, o Conselho adotou a Resolução 1244, de 10/06/99, que, com base no
Cap. VII da Carta, ratifica os princípios gerais estabelecidos pelo Grupo G-8 de
Ministros das Relações Exteriores (França, Alemanha, Itália, Rússia, Reino Unido,
Estados Unidos, Canadá e Japão) para a solução política da crise de Kosovo, e
que incluiriam as seguintes ações: imediato e verificável fim da violência e
repressão em Kosovo; retirada de Kosovo de todas as forças militares,
paramilitares e policiais da Iugoslávia; emprego em Kosovo, sob os auspícios da
ONU, de uma presença civil e de seguranças internacionais capazes de garantir a
consecução de objetivos comuns; o retorno seguro e livre dos refugiados e
pessoas deslocadas e acesso desimpedido a Kosovo por organizações de ajuda
humanitárias; o estabelecimento de uma administração interina para Kosovo; e
um processo político para o estabelecimento de um Governo autônomo e
democrático, tendo em conta os acordos de Rambouillet, os princípios da
soberania e integridade territorial da Iugoslávia e de outros países da região, e a
desmilitarização do KLA.
Em consonância com as resoluções do Conselho de Segurança,
especialmente a Res. 1199/98, a OTAN afirmou reiteradas vezes, de forma oficial,
que a ação militar contra a Iugoslávia era necessária e justificada para evitar uma
catástrofe humanitária na região de Kosovo, envolvendo especialmente a
população local de etnia/origem albanesa, embora detentora da nacionalidade da
Iugoslávia.
Por exemplo, no dia 30 de janeiro de 1999, a OTAN emitiu um Comunicado
Oficial de Imprensa, no qual afirmava que estava pronta para tomar todas as
medidas necessárias “[...] para evitar uma catástrofe humanitária [...]” 1. A mesma
justificativa foi repetida em outros comunicados oficiais à imprensa, emitidos
1
Press Release (99)12.
282
Ielbo Marcus Lobo de Souza
inclusive depois que o conflito teve início 2.
A OTAN também procurou fundamentar sua ação nas Resoluções emitidas
pelo Conselho de Segurança da ONU sobre a situação no Kosovo. Em
Comunicado Oficial à Imprensa, datado de 30 de janeiro de 1999, deixou claro
que
[...] está pronta para agir e não descarta nenhuma opção para
assegurar o [...] cumprimento de todas as resoluções relevantes
do Conselho de Segurança, especialmente as disposições das
Resoluções 1160, 1199 e 1203. 3
II. A Legitimidade ou Legalidade do Exercício de um Direito de Intervenção
Humanitária na Questão de Kosovo
A grande questão que o conflito de Kosovo tem suscitado atualmente é se
o direito internacional contemporâneo admite o uso da força nas relações
internacionais por parte de um Estado ou Estados, ou organização internacional
de cunho regional, ou multilateral, contra outro Estado por razões humanitárias.
No plano da prática dos Estados, existem numerosos exemplos em que os
Estados usaram da força contra outro Estado sob a alegação de proteger os seus
nacionais residentes ou situados no território do outro Estado. O direito de
intervenção armada do Estado em favor de seus nacionais que estão no território
de outro Estado tem sido objeto de antigo debate doutrinário, de tal forma que não
se pode concluir com segurança pela sua existência. O receio de alguns é que
Estados mais poderosos usem, como teria ocorrido no passado em numerosas
ocasiões, a justificativa da proteção de seus nacionais no exterior para encobrir
verdadeiras intervenções armadas com objetivos políticos, econômicos ou
estratégicos. Vale citar a posição do Prof. Brownlie a respeito:
As ocasiões em que Estados invocaram considerações
humanitárias para justificar o uso da força dentro e contra um
outro Estado não inspiram confiança na nova doutrina. Tais
intervenções são comumente baseadas numa agenda política
2
Veja, inter alia, Press Release (1999)040, de 23/03/99, e Press Release (1999)042, de 25/03/99.
Nesta última, o Secretário-Geral afirma: “Permita-me reiterar que estamos determinados a
continuar até que tenhamos alcançado nossos objetivos: interromper a violência e impedir uma
catástrofe humanitária adicional”.
3
Press Release (99) 12, de 30/01/99.
A Intervenção Armada por Razões Humanitárias e a Questão de Kosovo
283
colateral e envolvem uma perda considerável de vidas, cuja
existência é obscurecida pela manipulação da mídia 4.
Para citar apenas um exemplo, uma das justificativas apresentadas pelos
Estados Unidos para a ação armada realizada contra o Panamá, em dezembro de
1989, foi a necessidade de “proteger vidas americanas” 5. Quando a defesa do seu
nacional está em jogo, os Estados procuram enquadrar a ação como um exercício
do direito de autodefesa, reconhecido no art. 51 da Carta da ONU, vez que os
nacionais do Estado comporiam a dimensão pessoal do Estado. Essa,
naturalmente, não foi a única justificativa legal apresentada, mas é significativo
que a ação armada dos Estados Unidos tenha sido condenada num foro político
regional: o Conselho Permanente da OEA 6.
A experiência de Kosovo, no entanto, é ainda mais controversa e
complexa, pois os supostos beneficiados pela ação armada são nacionais do
Estado vítima da ação armada, embora possuam etnia diferenciada. Cuida-se,
pois, não de intervenção armada do Estado em favor de seus nacionais que estão
no território de outro Estado, mas do uso da força por parte de Estados contra um
Estado e em favor dos nacionais desse Estado que estão sendo vítimas das
ações militares. A questão que se coloca é se o direito internacional atual
reconheceria aos Estados uma espécie de direito de ação armada contra um
Estado quando este viola (talvez de forma grave) os direitos humanos de seus
nacionais.
Se examinada a questão sob o ponto de vista do direito convencional, em
especial da Carta da ONU, fica claro que o princípio proibitivo do uso da força e
as exceções ao princípio lá previstas não abarcam expressamente a hipótese de
uso da força por razões humanitárias. Como se sabe, a Carta da ONU veio a
estabelecer uma proibição geral da ameaça ou uso da força nas relações
internacionais (art. 2(4)), abrindo uma exceção para os casos de legítima defesa
individual ou coletiva, ou em cumprimento de decisão do órgão competente das
Nações Unidas. Essa última possibilidade situa-se dentro do sistema de
4
Brownlie, Ian. General Course on Public International Law. Recueil des cours de l’académie de
droit international, vol. 255 p.207, 1995.
5
Cf. Yearbook of the United Nations 1989, p.174.
6
Cf. Consejo Permanente, Acta de la Sesion Extraordinaria Celebrada el 20, 21 y 22 de diciembre
de 1989, OEA/Ser.G, CP/Acta 800/89, p.11-15, 125-126.
284
Ielbo Marcus Lobo de Souza
segurança coletiva universal instituído pela Carta, que cria um monopólio
centralizado do uso da força e o coloca sob a gerência do Conselho de
Segurança. Cabe ao Conselho administrar o monopólio da força tendo em vista a
manutenção da paz e segurança internacionais.
A possibilidade de intervenção humanitária, tal qual ocorreu em Kosovo,
não poderia ser justificada com base no exercício de legítima defesa, seja
individual ou coletiva, previsto no art. 51 da Carta, uma vez que não se trata de
proteção de nacionais próprios que estariam sendo vítimas de um ataque armado.
A inadequação dessa justificativa é evidenciada pelo fato de os Estados que
participaram da ação armada em nome da OTAN, assim como a própria OTAN,
não terem invocado essa justificativa legal. Vale referir uma manifestação da
Corte Internacional de Justiça no caso Nicarágua (1986), que exclui a hipótese de
associação entre a legítima defesa coletiva e a intervenção armada por razões de
direitos humanos:
A Corte conclui que o argumento derivado da preservação dos
direitos humanos na Nicarágua não pode fornecer uma justificativa
legal para a conduta dos Estados Unidos, e não pode em qualquer
caso ser reconciliado com a estratégia legal do Réu, que está
baseada no direito de autodefesa coletiva. 7
No mesmo caso Nicarágua (1986), a Corte Internacional de Justiça parece
rejeitar a existência de um direito geral de intervenção humanitária. Lembre-se
que, neste caso, os Estados Unidos invocaram inter alia como base para as suas
ações contra a Nicarágua, a descoberta, por parte do Congresso norteamericano, de que a Nicarágua estava violando os direitos humanos de seus
próprios nacionais. A Corte assim se manifestou sobre a alegação:
Em todo caso, enquanto os Estados Unidos podem fazer sua
própria avaliação da situação quanto ao respeito aos direitos
humanos na Nicarágua, o uso da força não poderia ser o método
apropriado para monitorar ou assegurar tal respeito. Com relação
aos passos realmente dados, a proteção dos direitos humanos,
um objetivo estritamente humanitário, não pode ser compatível
com a minagem dos portos, a destruição das instalações
petrolíferas, ou novamente com o treinamento, ou o fornecimento
7
Cf. Military and paramilitary activities in and against Nicaragua (Nicaragua v. United States of
America): Merits, judgement. ICJ Reports 1986, p.134-135, par. 268.
A Intervenção Armada por Razões Humanitárias e a Questão de Kosovo
285
de armas e equipamentos aos contras.
8
O entendimento manifestado pela Corte em nenhum momento refere-se à
Carta da ONU, o que indicaria que essa posição teria feito referência ao direito
internacional geral (ou direito costumeiro internacional) 9.
A possibilidade de intervenção armada por motivos humanitários deveria
então ser estudada como uma medida tomada sob o sistema de segurança
coletiva das Nações Unidas. Nessa hipótese, uma situação interna que
configurasse uma grave crise humanitária poderia ser enfrentada pelo Conselho
de Segurança da ONU na perspectiva de uma situação que recai sob o Cap. VII
da Carta. Para tal fim, o Conselho faria uma determinação no sentido de que a
situação humanitária dentro de um Estado está colocando em risco a paz e
segurança internacionais (com esteio no art. 39 da Carta), autorizando, com base
no Cap. VII da Carta, o uso da força contra o Estado que insistisse em descumprir
resoluções prévias do Conselho sobre a questão, ou estabelecendo uma
operação de paz das Nações Unidas autorizada a usar da força para
salvaguardar ações humanitárias tópicas.
Se colocada a possibilidade de intervenção humanitária armada como um
mecanismo de ação compreendido dentro do sistema de segurança coletiva da
ONU, não haveria necessidade de se considerar o direito de intervenção
humanitária como o desenvolvimento normativo de uma nova exceção ao
princípio proibitivo do art. 2(4) da Carta da ONU. Na realidade, não seria
desejável que se criasse essa exceção fora do sistema de segurança coletiva,
pois o risco de tal direito ser exercido de forma abusiva pelos Estados mais fortes,
ou organizações regionais, seria considerável, como bem pondera o Prof.
Schachter:
A relutância dos Governos em legitimar a invasão estrangeira no
interesse do humanitarismo é compreensível à luz dos abusos
passados por Estados poderosos. Estados fortes o suficiente para
intervir e suficientemente interessados em fazê-lo tendem a ter
uma solução política no seu próprio interesse nacional. A maioria
8
Ibid.
A Corte estava impedida de julgar o caso com base em tratados multilaterais, por força da
reserva formulada pelos Estados Unidos na sua declaração de aceitação da jurisdição da Corte.
Tal reserva excluía da jurisdição da Corte os mais relevantes tratados multilaterais, entre os quais
a própria Carta da ONU. Seu julgamento, portanto, apoiou-se explicitamente no direito costumeiro
internacional.
9
286
Ielbo Marcus Lobo de Souza
dos Governos está atualmente sensível a esse perigo e não
mostra disposição em abrir o Artigo 2(4) a uma exceção ampla
para intervenção humanitária através da força armada 10.
A relação direta entre uma crise humanitária, gerada por graves violações
dos direitos humanos, e a paz e segurança internacionais, foi identificada pelo
Conselho de Segurança em várias ocasiões. Por exemplo, cite-se o caso da
profunda crise humanitária constatada na Somália. Em sua sessão de 23 de
janeiro de 1992, o Conselho de Segurança adotou a Resolução 733, que
expressa o alarme do Conselho com a rápida deterioração da situação na
Somália e a pesada perda de vidas humanas, e a sua preocupação de que a
continuação da situação constituiria uma ameaça à manutenção da paz e
segurança internacionais, tomando, a seguir, decisões com base no Cap. VII da
Carta. O Conselho veio a adotar, subsequentemente, inúmeras resoluções que
afirmaram a mesma ameaça e estabeleceram medidas com base no Cap. VII da
Carta.
Um outro caso de interesse foi o do Haiti. Seguindo o mesmo padrão da
resolução relativa à Somália, na Resolução 940 (1994), o Conselho, após
manifestar sua preocupação com a “deterioração significativamente ainda maior
da situação humanitária no Haiti”, determinou que “a situação no Haiti continua a
constituir uma ameaça à paz e segurança na região”, e, com base no Cap. VII da
Carta, autorizou os Estados membros a formarem uma força multinacional sob um
comando unificado para “usar todos os meios necessários”, facilitando a saída da
liderança militar do Haiti... e o retorno imediato do Presidente eleito
legitimamente 11.
O Conselho de Segurança também fez uma relação entre graves violações
de direitos humanos no interior de um País e a manutenção da paz e segurança
internacionais no caso do Iraque. Na Resolução 688, de 5 de abril de 1991, o
Conselho condenou a “repressão da população civil iraquiana em muitas partes
do Iraque”, e manteve que as consequências dessa prática “ameaçam a
segurança e paz internacional na região”, exigindo que o Iraque pusesse um fim à
10
Schachter, Oscar. International law in theory and practice. Recueil des Cours de l´académie de
droit international, v. 178, p.144.
11
Cf. S/RES/940 (1994), de 31 de julho de 1994.
A Intervenção Armada por Razões Humanitárias e a Questão de Kosovo
287
repressão.
Na questão de Kosovo, o Conselho de Segurança realmente adotou várias
resoluções que trataram da questão humanitária sob a ótica da manutenção da
paz e segurança internacionais. De especial relevância foi a Resolução 1.199
(1998), na qual o Conselho manifestou preocupação com a “iminente catástrofe
humanitária em Kosovo” e com os “relatórios de crescentes violações de direitos
humanos e do direito humanitário”, e, afirmando que a deterioração da situação
em Kosovo “constitui uma ameaça à paz e segurança na região”, tomou decisões
com base no Cap. VII da Carta, que são obrigatórias a todos os Estados. Como já
sublinhado antes, a citada resolução afirmou, ao final, que “medidas adicionais”
para manter ou restaurar a paz e estabilidade na região seriam consideradas,
caso as medidas concretas exigidas naquela resolução e na Resolução 1.160
(1998) não fossem tomadas. Lembre-se que, anteriormente, a Res. 1.160/98
havia adotado medidas provisórias sob o art. 40 da Carta, e imposto embargos de
material militar contra a Iugoslávia (art. 41 da Carta). Essa Resolução 1.199
(1998), portanto, apresentou quase todos os requisitos para um primeiro e
autêntico caso de intervenção humanitária sob os auspícios da ONU. Faltava
apenas um: a autorização ou determinação expressa do Conselho de Segurança,
que poderia ser dada numa outra resolução. Tal, entretanto, não ocorreu, pois
não havia o consenso dos membros permanentes do Conselho.
A atuação inicial e posterior omissão (ou silêncio) do Conselho de
Segurança indicam que houve um patente conflito entre o direito material e uma
regra de procedimento. Por um lado, o Conselho de Segurança estabeleceu sua
competência para considerar a questão e decidir a respeito, conforme atestam as
resoluções adotadas. Chegou ao ponto de identificar a questão como uma
situação que recai sob o Cap. VII da Carta, o que não apenas representa um
reconhecimento da gravidade da situação, mas também que os poderes lá
previstos poderiam ser utilizados para a manutenção da paz e segurança
internacionais (como, de fato, o foram). Ao agir, o Conselho estava também
promovendo uma das finalidades das Nações Unidas, prescritas no art. 1(3) da
Carta da ONU, e colocando em movimento a roda do sistema de segurança
coletiva. Por outro lado, o procedimento previsto no art. 27 da Carta para o
processo decisório impediu a materialização da decisão mais importante – na
288
Ielbo Marcus Lobo de Souza
opinião de alguns membros do Conselho – para o restabelecimento da situação
humanitária e a cessação da ameaça à paz e segurança internacionais: aquela
que autorizaria o uso dos “meios necessários” para fazer cumprir as resoluções
anteriores.
Claro, os defensores do processo decisório do Conselho, estabelecido no
art. 27 da Carta, imediatamente poderão ressaltar a importância da regra de
procedimento. Poderão argumentar que a regra é fruto de uma concertação
política que sustenta o atual sistema de segurança coletiva universal. O objetivo
político da regra decisória, poder-se-ia argumentar, é assegurar que o Conselho
de Segurança, em deferência às realidades do poder mundial, atuará de forma
eficaz, contando com o apoio e eventual participação das grandes potências, que
são os seus membros permanentes, e jamais agirá contra o interesse nacional de
uma grande potência, sob pena de desencadear um holocausto nuclear. A regra
procedimental do art. 27 também impediria ações unilaterais por parte de uma
grande potência, que teria que se submeter a um processo de acomodação de
interesses com as outras (e com os membros não permanentes do Conselho)
para obter a autorização legal e mesmo legitimar o eventual uso da força armada.
Todas essas considerações em favor do respeito à regra procedimental do
art. 27 são relevantes, especialmente se pensadas à luz do contexto histórico da
guerra fria e das experiências da Liga das Nações. O problema é que o sistema
político internacional mudou sobremaneira com o fim da guerra fria. Entre as
mudanças, vale mencionar uma apontada pelo Secretário-Geral da ONU no
documento An Agenda for Peace: aumentaram os conflitos intraestatais em
comparação com os conflitos interestatais, e uma das características desses
conflitos intraestatais é justamente a ocorrência de graves e sistemáticas
violações dos direitos humanos e do direito internacional humanitário 12.
A nova dimensão do sistema político internacional, e a dialética entre os
interesses do Estado e os do ser humano, foi bem sistematizada pelo SecretárioGeral da ONU no seu Relatório sobre os Trabalhos da Organização, apresentado
na 54a sessão da Assembleia Geral da ONU. Os trechos mais relevantes do
Relatório são a seguir transcritos:
12
Cf. UN Doc. A/50/60-S/1995/1, de 3 de janeiro de 1995.
A Intervenção Armada por Razões Humanitárias e a Questão de Kosovo
289
O fato de que as melhores estratégias de prevenção podem falhar
significa que nós nunca podemos escapar completamente do
flagelo da guerra. Segue-se que, para o futuro previsível, a
comunidade internacional deve estar preparada para engajar-se
politicamente – e se necessário, militarmente – para conter,
administrar e finalmente resolver os conflitos que escaparam do
controle. Isso demandará um funcionamento melhor do sistema de
segurança coletiva do que existe no momento. Será preciso,
acima de tudo, uma maior disposição para intervir com o fim de
prevenir violações graves dos direitos humanos.
Com relativamente poucas guerras interestatais, as justificativas
tradicionais para a intervenção têm se tornado cada vez menos
relevantes, enquanto que os princípios dos direitos humanos e
humanitário têm sido frequentemente invocados para justificar o
uso da força nas guerras internas, nem sempre com a autorização
do Conselho de Segurança.
A década passada tem sido também um período de tensão e
dificuldade para as Nações Unidas, quando tem buscado cumprir
o seu mandato de segurança coletiva. Defensores das
interpretações tradicionais do direito internacional salientaram a
inviolabilidade da soberania do Estado; outros salientaram o
imperativo moral de agir com força em caso de graves violações
dos direitos humanos. Os erros e acertos morais dessa questão
complexa e controversa serão objeto de debate por anos, mas o
que está claro é que ações coercitivas sem a autorização do
Conselho de Segurança ameaçam a núcleo mesmo do sistema de
segurança internacional fundado sobre a Carta das Nações
Unidas 13.
O novo contexto internacional estaria, portanto, a reclamar uma mudança
no atual direito internacional (ou, mais especificamente, na estrutura ou nas
regras de procedimento do Conselho de Segurança) para que, mediante
processos políticos legítimos, se assegurasse o respeito aos novos padrões
internacionais de proteção dos direitos humanos e do direito internacional
humanitário. Uma das teses atualmente mais discutidas, proposta por Huntington
e outros, é a de que, na nova ordem mundial, o sistema político internacional seria
multipolar e multicivilizacional, e que haveria um novo paradigma a orientar o
entendimento da política internacional: o paradigma civilizacional. Huntington
sugere que desenvolvimentos importantes do mundo do pós-guerra fria poderiam
ser melhor compreendidos à luz do paradigma civilizacional, tais como a
ocorrência de conflitos tribais e étnicos dentro de civilizações assim como de
conflitos entre Estados e grupos de diferentes civilizações, e estes últimos seriam,
na sua opinião, aqueles que potencialmente maiores consequências danosas
13
Cf. General Assembly, Official Records, Fifty-fourth Session, Supplement n. 1 (A/54/1).
290
Ielbo Marcus Lobo de Souza
poderiam trazer para a humanidade. Nessa perspectiva, a reformulação da
composição do Conselho de Segurança, que está sendo discutida no âmbito das
Nações Unidas, deveria refletir não apenas o aumento extraordinário do número
de Estados desde a fundação da ONU, a nova configuração do poder mundial, e
as regiões do mundo, mas também as mais importantes civilizações14. Esse
debate, no entanto, ainda não foi concluído, e a tarefa da comunidade
internacional é fazer o Conselho cumprir de forma satisfatória a sua principal
missão: manter a paz e a segurança internacionais.
Na ausência de vontade política por parte dos Estados membros da ONU
para efetuar a pura e simples aplicação do procedimento previsto no Cap. XVIII
da Carta da ONU para a sua emenda, quais as alternativas possíveis para
situações com a de Kosovo?
Diante da relevância dos valores humanos que estavam em jogo na
questão de Kosovo, poderia ser sugerido que a regra procedimental prevista no
art. 27(3) da Carta – relativa ao processo decisório – devesse ser relegada ao
segundo plano, isto é, não aplicada naquele caso específico, por produzir um
resultado moralmente inaceitável: a inação ou omissão frente a uma catástrofe
humanitária. Em tal circunstância excepcional, a regra não perderia sua validade,
apenas deixaria de ser aplicada, e, em seu lugar, por exemplo, seria observada a
regra do art. 27(2), que exclui o poder de veto. Essa proposição insere-se na
discussão entre o direito internacional e a moral, pois, em outras palavras,
pretende traduzir o sentimento de que o uso do veto não deveria ser reconhecido
como um direito em casos de graves violações dos direitos humanos. Por
conseguinte, os Estados estariam desobrigados a respeitar uma disposição de
natureza procedimental moralmente reprovável naquela situação 15. Caberia, aqui,
a analogia com a crítica que se faz a um dos elementos essenciais da concepção
de justiça: o princípio segundo o qual se deve tratar de igual forma os casos
iguais. Hart considera que esse princípio corresponde à justiça na administração
do direito e não à justiça do direito 16. Se, para os casos iguais, a “justiça
14
Huntington, Samuel. The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order. New York:
Touchstone, 1997, p.21-39.
15
Entenda-se “desrespeitar” no sentido de evitar o veto mediante o não encaminhamento de uma
proposta de resolução que autoriza o uso da força, ou a aplicação da regra procedimental contida
no art. 27(2) da Carta.
16
Hart, H.L. Essays in Jurisprudence and Philosophy. Oxford: Clarendon Press, 1983, p.81.
A Intervenção Armada por Razões Humanitárias e a Questão de Kosovo
291
procedimental” não assegura a justiça do direito, imagine em situações distintas e
específicas, como a de Kosovo!
Concretamente, tal proposta geral não foi aduzida por nenhum membro
permanente do Conselho de Segurança, embora o argumento moral tivesse sido
utilizado em diversas ocasiões por praticamente todos os membros. A dificuldade
em se encontrar a boa vontade (política) dos membros permanentes do Conselho
para tal proposta é que a vantagem moral pode mudar de lado: no futuro, em
determinada questão, os papéis e interesses dos membros permanentes poderão
estar invertidos. A ideia também pode ser o início de uma proposição maior: a
extinção do poder de veto, e os membros permanentes do Conselho dificilmente
concordarão com ela, pois o status quo lhes serve muito bem, perpetuando o
privilégio. Se examinada a proposta sob o aspecto meramente técnico, a
Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados (1969), é verdade, admite a
suspensão da execução de uma parte determinada de um tratado, mas as
hipóteses previstas (arts. 57-60) seguramente não se enquadrariam no caso.
Uma segunda possibilidade, relacionada com a anterior, porém mais
refinada, é interpretar o silêncio do Conselho durante o conflito, conjugado com a
ratificação posterior dos princípios propugnados pelo Grupo G-8, como uma
emenda (ou interpretação) à regra procedimental do art. 27, introduzida pela
prática do Conselho (aliás, tal como ocorreu com o entendimento de que a
abstenção ou ausência não seria considerada como veto). A emenda seria no
sentido de que
a não oposição ou condenação expressa do Conselho à ação
armada, efetuada por Estados em situações previamente
definidas pelo Conselho como graves violações dos direitos
humanos que ameaçam a paz e segurança internacionais,
caracterizaria esse uso da força como uma ação que está em
consonância com o sistema de segurança coletiva da ONU 17.
Na prática, essa seria uma forma de passar ao largo de um provável veto,
17
Esta se aproxima, em linhas gerais, de uma das sugestões do Prof. Louis Henkin, expressa em
Henkin, L. Kosovo and the Law of “Humanitarian Intervention”. The American Journal of
International Law, vol 93, 1999, p.827-828. No mesmo sentido, Charney, Jonathan. Anticipatory
Humanitarian Intervention in Kosovo. The American Journal of International Law, vol 93, 1999,
p.838-839.
292
Ielbo Marcus Lobo de Souza
tornando desnecessário o encaminhamento de um projeto de resolução.
O problema com essa proposta é que ela pressupõe algo que pode estar
ausente: a aquiescência do Conselho de Segurança com respeito à ação armada.
A prática do Conselho na questão de Kosovo leva à conclusão de que se, por um
lado, o Conselho não manifestou expressamente sua oposição à ação armada,
por outro lado, tampouco manifestou expressamente sua concordância com a
ação. De fato, as manifestações dos Estados membros durante os debates do
Conselho demonstram que uma proposta de resolução num ou noutro sentido
encontraria o veto de pelo menos um dos membros permanentes. Cite-se, por
exemplo, a não aprovação da resolução apresentada conjuntamente pela Rússia
e a China, condenando a ação armada da OTAN18.
Há, ainda, um risco produzido por essa proposta que merece ser apontado:
ela implicaria a transferência do ônus da prova da legalidade ou legitimidade da
ação armada. Assim, o ônus da prova caberia não mais ao Estado que recorreu
primeiramente à força armada sem a autorização expressa do Conselho (e que
potencialmente está agindo em desacordo com a Carta da ONU 19), mas aos
outros Estados, especialmente a vítima da ação armada. Num sistema
internacional que se caracteriza pela anarquia e alto grau de descentralização,
essa perspectiva favoreceria bastante os Estados mais fortes e constituiria uma
ameaça ao princípio do não uso da força nas relações internacionais.
Mesmo que, por força do argumento, essa emenda viesse a ser adotada
pelo Conselho, isso poderia gerar uma contramedida de ordem prática que
obstacularizaria a ação do Conselho de igual modo: bastaria que um membro
permanente vetasse a adoção da resolução prévia que atesta a situação de crise
humanitária e a sua ameaça à paz e segurança internacionais. O perigo, portanto,
é que se crie um círculo vicioso que não impeça a paralisia do Conselho.
Uma circunstância que, na questão de Kosovo, poderia ser invocada em
defesa de legitimidade da ação armada de Estados membros da OTAN contra a
Iugoslávia foi a tentativa, por parte desses Estados, de previamente conciliarem
18
Para acesso ao projeto, ver UN Security Council Doc. S/1999/328.
Veja, nesse sentido, que a Resolução 3.314 da Assembleia Geral da ONU, que define o
conceito de agressão, estabelece a presunção de que o primeiro uso das forças armadas por
o
parte de um Estado (numa das formas previstas no art. 3 ) configuraria um ato de agressão
armada. Cf. Lobo de Souza, I.M. O Conceito de Agressão Armada no Direito Internacional. Revista
de Informação Legislativa, n 129, 1996, p.145-156.
19
A Intervenção Armada por Razões Humanitárias e a Questão de Kosovo
293
suas posições com as preocupações e interesses da Rússia, um dos membros
permanentes do Conselho e um dos integrantes do Grupo de Contato. Em artigo
publicado no Washington Post, Richard Holbrook, Ex-Embaixador dos Estados
Unidos nas Nações Unidas durante o Governo Clinton, descreveu os esforços dos
Ministros das Relações Exteriores dos demais países do Grupo de Contato (Reino
Unido, França, Alemanha, Itália, Estados Unidos) para conseguirem a
concordância da Rússia com uma resolução do Conselho que autorizasse o uso
da força. O encontro, realizado na sala VIP do aeroporto de Heathrow
(proximidades de Londres), teria durado cerca de quatro horas. Diante das
insistentes ponderações e pedidos dos demais Chanceleres, o Ministro das
Relações Exteriores da Rússia (Igor Ivanov) manteve sua firme posição no
sentido de que a Rússia não poderia concordar com essa resolução. Ao final do
encontro, porém, os Ministros europeus, o Embaixador norte-americano e a
Secretária de Estado norte-americano teriam ficado com a impressão de que a
Rússia sabia que não poderia impedir uma ação militar pela OTAN, mas não
poderia formalmente endossá-la. Segundo Holbrook, Ivanov parecia estar dizendo
“vão em frente, mas não com a aprovação explícita da Rússia”20.
Realmente, é provável que, em certas ocasiões, o veto seja utilizado para
resguardar
um
determinado
interesse
ou
posição
política
que
não
é
verdadeiramente fundamental para o Estado. O Estado que recorre ao veto
pretende apenas manifestar sua solidariedade política a um aliado seu, mas
jamais chegaria ao ponto de mobilizar, ou ameaçar a mobilização, de suas forças
armadas em defesa daquele aliado. Nesses casos, poderia ser argumentado que
a aplicação da regra de procedimento prevista no art. 27(3) representaria apenas
uma mera formalidade, e que, substancialmente, o equilíbrio de interesses dos
membros permanentes – alicerce do sistema de segurança coletiva – estaria
assegurado.
Por outro lado, pode-se argumentar que, na questão de Kosovo, os países
do Grupo de Contato na verdade não teriam procurado conciliar ou transigir sua
posição com a da Rússia, mas, ao contrário, simplesmente convencer a Rússia a
aceitar a sua posição. A falta de flexibilidade negocial poderia também ser
20
Cf. Holbrooke, Richard. Give Diplomacy More Time. The Washington Post, Washington, 7 de
Setembro de 2002. Disponível em: http://washingtonpost.com. Acesso em 02/10/2002.
294
Ielbo Marcus Lobo de Souza
argumentada nos encontros havidos entre o representante norte-americano e os
representantes da Iugoslávia. Tanto assim que a Rússia chegou a propor um
projeto de resolução condenatória ao Conselho de Segurança, mesmo sabendo
que não seria aprovado, como de fato não foi. Se o que se procura na tentativa de
conciliação é apenas a ratificação de um curso de ação que já foi decidido, a
legitimidade do processo de negociação prévia fica em dúvida.
Por fim, há que se considerar que seria muito ingênuo pensar que os
Estados estariam sempre dispostos a intervirem militarmente contra outro Estado
por razões puramente humanitárias, isto é, sem qualquer vinculação com algum
interesse nacional, seja de caráter econômico, político (interno ou externo), militar
ou estratégico. A falta de intervenção armada externa no caso do genocídio
ocorrido
em
Ruanda,
a
despeito
dos
apelos
das
organizações
não
governamentais e outras, prova o ponto. Talvez o mais razoável seja supor que,
quando ocorre uma intervenção humanitária por parte de Estados, a despeito do
discurso diplomático dos Estados, existe uma convergência entre determinados
interesses nacionais dos Estados e a necessidade humanitária.
Falk critica a ausência de um senso de responsabilidade e de vontade
política, por parte dos Estados, para responder às graves e sistemáticas violações
de direitos humanos em outros Estados, e aponta como causas principais a
orientação de cunho realista na política externa dos Estados mais poderosos, que
agiriam somente com base em considerações de poder, e a debilidade das
instituições de governança global na implementação das normas fundamentais de
direitos humanos. Analisando casos como o da Bosnia e Ruanda, conclui que a
relutância em intervir às vezes se explica por razões logísticas (isto é, militares),
mas muitas vezes se deve ao peso de interesses geopolíticos21.
O curioso é que, não raro, os Estados procuram ocultar a existência de
interesses nacionais imediatos, atrás de um discurso externo que justifica a ação
pela defesa de valores maiores, notadamente a moral e a democracia, e a
promoção do bem comum internacional22. O problema maior é quando uma
situação humanitária não existe, ou foi provocada, ou pode ser resolvida por
21
Falk, Richard. The challenge of genocide. In: Dunne, Tim e Wheeler, Nicholas (eds). Human
Rights in Global Politics. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 2001, p.178-186.
22
Este seria o caso dos Estados Unidos, desde a Presidência do “idealista” Woodrow Wilson, na
opinião de Kissinger. Kissinger, Henry. Diplomacy. New York: Touchstone, 1994, p.45-55.
A Intervenção Armada por Razões Humanitárias e a Questão de Kosovo
295
meios pacíficos, e é apenas uma justificativa para o atingimento do interesse
nacional de um grupo de Estados. Deve-se atentar também se os meios utilizados
vão além dos necessários para a consecução do fim humanitário – porque no
fundo se almejava algo a mais – ou os danos colaterais à população civil são de
tal monta a caracterizar uma violação do direito internacional humanitário.
Nunca é demais, entretanto, postular, como o fez Lauterpacht, por
processos
ordenados
e
pacíficos
dentro
uma
comunidade
organizada
politicamente que sejam livres da “precariedade e anarquia da força” e que
propiciem a eficácia dos sacrifícios de interesses nacionais em prol do bem último
(preservação da paz) 23.
Conclusão
A ação armada levada a cabo por países membros da OTAN contra a
Iugoslávia em 1999 tem suscitado um debate intenso nos meios acadêmicos
sobre a necessidade e opções de reformulação do sistema de segurança coletiva
universal, estabelecido na Carta da ONU para responder adequadamente à nova
realidade internacional. Há seguramente, na opinião pública mundial, uma maior
preocupação com o que acontece no interior dos Estados, especialmente com o
tratamento dado pelos Governos aos seus nacionais, incluindo as minorias
étnicas. A globalização tem produzido uma crescente exposição das políticas
internas dos Estados na mídia internacional, e uma participação mais acentuada
dos atores não estatais no processo de difusão e promoção do respeito pelos
direitos humanos. Como, no entanto, achar o equilíbrio entre as necessidades
prementes de natureza humanitária e a estabilidade do sistema político
internacional? A premissa para qualquer solução que venha a ser pensada é
privilegiar o ser humano como a preocupação central da ordem jurídica
internacional.
23
Laeterpacht, Hersch. International Law. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1975, vol 2, p.8990.
296
Ielbo Marcus Lobo de Souza
III. DIREITOS HUMANOS, INTERPRETAÇÃO DA
CONSTITUIÇÃO E GARANTISMO
O Começo da História
A Nova Interpretação Constitucional e o Papel dos
Princípios no Direito Brasileiro 1
Luís Roberto Barroso 2
Sumário: Introdução: A pré-história constitucional brasileira. Parte I: A
nova interpretação constitucional. I. Tradição e modernidades: uma nota
explicativa. II. Pós-positivismo e a ascensão dos princípios. III. Princípios
e regras, ainda uma vez. IV. Ponderação de interesses, valores e normas.
V. Teoria da argumentação. Parte II: Princípios constitucionais. I.
Princípios instrumentais de interpretação constitucional. II. Princípios
constitucionais materiais: uma classificação. III. As modalidades de
eficácia dos princípios. IV. Algumas aplicações concretas dos princípios
materiais. Conclusão.
Introdução – A Pré-História Constitucional Brasileira
A experiência política e constitucional do Brasil, da independência até
1988, é a melancólica história do desencontro de um país com sua gente e com
seu destino. Quase dois séculos de ilegitimidade renitente do poder, de falta de
efetividade das múltiplas Constituições e de uma infindável sucessão de violações
da legalidade constitucional. Um acúmulo de gerações perdidas.
A ilegitimidade ancestral materializou-se na dominação de uma elite de
visão estreita, patrimonialista, que jamais teve um projeto de país para toda a
gente 3. Viciada pelos privilégios e pela apropriação privada do espaço público,
produziu uma sociedade com deficit de educação, de saúde, de saneamento, de
habitação, de oportunidades de vida digna. Uma legião imensa de pessoas sem
acesso à alimentação adequada, ao consumo e à civilização, em um país rico,
uma das maiores economias do mundo.
A falta de efetividade das sucessivas Constituições brasileiras decorreu do
não reconhecimento de força normativa aos seus textos e da falta de vontade
1
Este trabalho é dedicado a Raymundo Faoro. No geral, pelo papel que desempenhou na
transição democrática brasileira. No particular, por ter ajudado a evitar que estudantes da UERJ
sofressem violências no Departamento de Polícia Política e Social – DPPS, no final da década de
70.
2
Os tópicos IV (Ponderação de interesses, valores e normas) e V (Teoria da argumentação) da
Parte I, e o tópico I (Modalidades de eficácia dos princípios) da Parte III foram escritos com a
colaboração de Ana Paula de Barcellos, Professora Assistente de Direito Constitucional da UERJ
e doutoranda em Direito Público.
3
a
Sobre o tema v.Raymundo Faoro, Os donos do poder, 2000 (a 1 edição é de 1957).
política de dar-lhes aplicabilidade direta e imediata 4. Prevaleceu entre nós a
tradição europeia da primeira metade do século, que via a Lei Fundamental como
mera ordenação de programas de ação, convocações ao legislador ordinário e
aos poderes públicos em geral. Daí porque as Cartas brasileiras sempre se
deixaram inflacionar por promessas de atuação e pretensos direitos que jamais se
consumaram na prática. Uma história marcada pela insinceridade e pela
frustração.
O desrespeito à legalidade constitucional acompanhou a evolução política
brasileira como uma maldição, desde que D. Pedro I dissolveu a primeira
Assembleia Constituinte. Das rebeliões ao longo da Regência ao golpe
republicano, tudo sempre prenunciou um enredo acidentado, cuja força bruta
diversas vezes se impôs sobre o Direito. Foi assim com Floriano Peixoto, com o
golpe do Estado Novo, com o golpe militar, com o impedimento de Pedro Aleixo,
com os Atos Institucionais. Intolerância, imaturidade e insensibilidade social
derrotando a Constituição.
A Constituição de 1988 foi o marco zero de um recomeço, da perspectiva
de uma nova história. Sem as velhas utopias, sem certezas ambiciosas, com o
caminho a ser feito ao andar. Mas com uma carga de esperança e um lastro de
legitimidade sem precedentes, desde que tudo começou. E uma novidade.
Tardiamente, o povo ingressou na trajetória política brasileira, como protagonista
do processo, ao lado da velha aristocracia e da burguesia emergente.
Nessa história ainda em curso, e sem certeza de final feliz, é fato, quanto à
ilegitimidade ancestral, que a elite já não conserva a onipotência e a
insensibilidade da antiga plutocracia. Seus poderes foram atenuados por
fenômenos políticos importantes, como a organização da sociedade, a liberdade
de imprensa, a formação de uma opinião pública mais consciente, o movimento
social e, já agora, a alternância do poder.
A legalidade constitucional, a despeito da compulsão com que se emenda
a Constituição, vive um momento de elevação: quinze anos sem ruptura, um
4
Sobre o conceito de “força normativa” v. Konrad Hesse, A força normativa da Constituição, 1991
(trata-se da aula inaugural proferida por Konrad Hesse na Universidade de Freiburg em 1959). V.
também, sobre o tema: José Afonso da Silva, Aplicabilidade das normas constitucionais, 1998 (1ª
edição de 1969) e Luís Roberto Barroso, O direito constitucional e a efetividade de suas normas,
2002.
O Começo da História
299
verdadeiro recorde em um país de golpes e contragolpes. Ao longo desse
período, destituiu-se um Presidente, afastaram-se Senadores e chegou ao poder
um partido de esquerda, sem que uma voz sequer se manifestasse pelo
desrespeito às regras constitucionais. Nessa saudável transformação, não deve
passar despercebido o desenvolvimento de uma nova atitude e de uma nova
mentalidade nas Forças Armadas.
E a efetividade da Constituição, rito de passagem para o início da
maturidade institucional brasileira, tornou-se uma ideia vitoriosa e incontestada.
As normas constitucionais conquistaram o status pleno de normas jurídicas,
dotadas de imperatividade, aptas a tutelar direta e imediatamente todas as
situações que contemplam. Mais do que isso, a Constituição passa a ser a lente
através da qual se leem e se interpretam todas as normas infraconstitucionais. A
Lei Fundamental e seus princípios deram novo sentido e alcance ao direito civil,
ao direito processual, ao direito penal, enfim, a todos os demais ramos jurídicos 5.
A efetividade da Constituição é a base sobre a qual se desenvolveu, no Brasil, a
nova interpretação constitucional 6.
A seguir, expõem-se algumas ideias a propósito dessa fase de
efervescente criatividade na dogmática jurídica e de sua aproximação com a ética
e com a realização dos direitos fundamentais. O debate é universal, mas a
perspectiva é brasileira. Um esforço de elaboração teórica a serviço dos ideais de
avanço social e de construção de um país justo e digno. Que possa derrotar o
passado que não soube ser.
Parte I
A Nova Interpretação Constitucional
I.Tradição e Modernidades: uma Nota Explicativa
A
ideia
de
uma
5
nova
interpretação
constitucional
liga-se
ao
O direito civil, em especial, tem desenvolvido toda uma nova perspectiva de estudo a partir da
Constituição. V., dentre outros, Gustavo Tepedino (coord.), A parte geral do novo Código Civil.
Estudos na perspectiva civil-constitucional, 2002; Luiz Edson Fachin, Repensando os fundamentos
do direito civil, 1998; Judith Martins-Costa (org.), A reconstrução do direito privado, 2002; Renan
Lotufo (coord.), Direito civil constitucional, cad. 3, 2002.
6
Sobre o tema, Luís Roberto Barroso, O direito constitucional e a efetividade de suas normas,
2002.
300
Luís Roberto Barroso
desenvolvimento de algumas fórmulas originais de realização da vontade da
Constituição. Não importa desprezo ou abandono do método clássico – o
subsuntivo 7, fundado na aplicação de regras – nem dos elementos tradicionais da
hermenêutica: gramatical, histórico, sistemático e teleológico. Ao contrário,
continuam eles a desempenhar um papel relevante na busca de sentido das
normas e na solução de casos concretos 8. Relevante, mas nem sempre
suficiente.
Mesmo no quadro da dogmática jurídica tradicional, já haviam sido
sistematizados diversos princípios específicos de interpretação constitucional,
aptos a superar as limitações da interpretação jurídica convencional, concebida,
sobretudo, em função da legislação infraconstitucional, e mais especialmente do
direito civil. A grande virada na interpretação constitucional se deu a partir da
difusão de uma constatação que, além de singela, sequer era original: não é
verdadeira a crença de que as normas jurídicas em geral – e as normas
constitucionais em particular – tragam sempre em si um sentido único, objetivo,
válido para todas as situações sobre as quais incidem. E que, assim, caberia ao
intérprete uma atividade de mera revelação do conteúdo pré-existente na norma,
sem desempenhar qualquer papel criativo na sua concretização.
A nova interpretação constitucional assenta-se no exato oposto de tal
proposição: as cláusulas constitucionais, por seu conteúdo aberto, principiológico
e extremamente dependente da realidade subjacente, não se prestam ao sentido
unívoco e objetivo que certa tradição exegética lhes pretende dar. O relato da
norma, muitas vezes, demarca apenas uma moldura dentro da qual se desenham
diferentes possibilidades interpretativas. À vista dos elementos do caso concreto,
dos princípios a serem preservados e dos fins a serem realizados é que será
determinado o sentido da norma, com vistas à produção da solução
constitucionalmente adequada para o problema a ser resolvido.
7
Nessa perspectiva, a interpretação jurídica consiste em um processo silogístico de subsunção
dos fatos à norma: a lei é a premissa maior, os fatos são a premissa menor e a sentença é a
conclusão. O papel do juiz consiste em revelar a vontade da norma, desempenhando uma
atividade de mero conhecimento, sem envolver qualquer parcela de criação do Direito para o caso
concreto.
8
Sobre esta temática, vejam-se no direito brasileiro, dentre outros, Luís Roberto Barroso,
Interpretação e aplicação da Constituição, 2003 (a 1ª edição é de 1995), Juarez de Freitas, A
interpretação sistemática do direito, 2002 (a 1ª edição é de 1995) e Inocêncio Mártires Coelho,
Interpretação constitucional, 1997.
O Começo da História
301
Antes de avançar no tema, cabe ainda uma nota de advertência. Muitas
situações subsistem em relação às quais a interpretação constitucional envolverá
uma operação intelectual singela, de mera subsunção de determinado fato à
norma. Tal constatação é especialmente verdadeira em relação à Constituição
brasileira, povoada de regras de baixo teor valorativo, que cuidam do varejo da
vida. Alguns exemplos de normas que, de ordinário, não dão margem a maiores
especulações teóricas: (i) implementada a idade para a aposentadoria
compulsória, o servidor público deverá passar para a inatividade (CF, art. 40, § 1°,
II); (ii) o menor de trinta e cinco anos não é elegível para o cargo de Senador da
República (CF, art. 14, § 3°, VI, a); (iii) não é possível o divórcio antes de um ano
da separação judicial (CF, art. 226, § 6°).
Portanto, ao se falar em nova interpretação constitucional, normatividade
dos princípios, ponderação de valores, teoria da argumentação, não se está
renegando o conhecimento convencional, a importância das regras ou a valia das
soluções subsuntivas. Embora a história das ciências se faça, por vezes, em
movimentos revolucionários de ruptura, não é disso que se trata aqui. A nova
interpretação constitucional é fruto de evolução seletiva, que conserva muitos dos
conceitos tradicionais, aos quais, todavia, agrega ideias que anunciam novos
tempos e acodem a novas demandas.
No fluxo das modernidades aqui assinaladas, existem técnicas, valores e
personagens que ganharam destaque. E outros que, sem desaparecerem,
passaram a dividir o palco, perdendo a primazia do papel principal. Um bom
exemplo: a norma, na sua dicção abstrata, já não desfruta da onipotência de
outros tempos. Para muitos, não se pode sequer falar da existência de norma
antes que se dê a sua interação com os fatos, tal como pronunciada por um
intérprete 9. É claro que os fatos e o intérprete sempre estiveram presentes na
interpretação constitucional. Mas nunca como agora. Faça-se uma anotação
sumária sobre cada um:
9
A não identidade entre norma e texto normativo, entre o “programa normativo” (correspondente
ao comando jurídico) e o “domínio normativo” (a realidade social), é postulado básico da
denominada metódica “normativo-estruturante” de Friedrich Müller (Discourse de la méthode
a
juridique, 1996; a 1 . ed. do original Juristische Methodik é de 1993). Sobre o tema, v. também. J.
J. Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da Constituição, 2001, p. 1.179.
302
Luís Roberto Barroso
(i) Os fatos subjacentes e as consequências práticas da
interpretação. Em diversas situações, inclusive e notadamente nas
hipóteses de colisão de normas e de direitos constitucionais, não
será possível colher no sistema, em tese, a solução adequada: ela
somente poderá ser formulada à vista dos elementos do caso
concreto, que permitam afirmar qual desfecho corresponde à
vontade constitucional 10. Ademais, o resultado do processo
interpretativo, seu impacto sobre a realidade não pode ser
desconsiderado 11: é preciso saber se o produto da incidência da
norma sobre o fato realiza finalisticamente o mandamento
constitucional 12.
(ii) O intérprete e os limites de sua discricionariedade. A moderna
interpretação constitucional envolve escolhas pelo intérprete, bem
como a integração subjetiva de princípios, normas abertas e
conceitos indeterminados. Boa parte da produção científica da
atualidade tem sido dedicada, precisamente, à contenção da
discricionariedade judicial, pela demarcação de parâmetros para a
ponderação de valores e interesses e pelo dever de demonstração
fundamentada da racionalidade e do acerto de suas opções.
Feita a advertência, passa-se à discussão de alguns dos temas que têm
mobilizado o universo acadêmico nos últimos tempos e que, mais recentemente,
vêm migrando para a dogmática jurídica e para a prática jurisprudencial.
II. Pós-Positivismo e a Ascensão dos Princípios 13
O jusnaturalismo moderno, que começou a formar-se a partir do século
XVI, dominou por largo período a filosofia do Direito. A crença no direito natural –
isto é, na existência de valores e de pretensões humanas legítimas que não
10
Qual o bem jurídico de maior valia: a liberdade de expressão ou a liberdade de ir e vir? Quando
será legítima uma manifestação política que paralise o trânsito em uma via pública? Se for o
comício de encerramento da campanha presidencial do candidato de um partido político nacional,
parece razoável. Mas se vinte estudantes secundaristas deitarem-se ao longo de uma larga
avenida, em protesto contra a qualidade da merenda, seria uma manifestação legítima?
11
Eduardo García de Enterría, La constitucion como norma y el tribunal constitucional, 1994, p.
183 e ss.
12
Pode acontecer que uma norma, sendo constitucional no seu relato abstrato, produza um
resultado inconstitucional em uma determinada incidência. Por exemplo: o STF considerou
constitucional a lei que impede a concessão de antecipação de tutela contra a Fazenda Pública
(RTJ 169:383, ADC-MC 4, Rel. Min. Sydney Sanches), fato que, todavia, não impediu um Tribunal
de Justiça de concedê-la, porque a abstenção importaria no sacrifício do direito à vida da
a
requerente (AI 598.398.600, TJRS, 4 . CC, Rel. Des. Araken de Assis). Veja-se o comentário
dessa decisão em Ana Paula Ávila, Razoabilidade, proteção do direito fundamental à saúde e
antecipação da tutela contra a Fazenda Pública, Ajuris 86/361.
13
Sobre o tema, v. Luís Roberto Barroso, Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito
constitucional brasileiro (pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo), in Temas de direito
constitucional, t. II, p. 3 e ss.
O Começo da História
303
decorrem de uma norma emanada do Estado – foi um dos trunfos ideológicos da
burguesia e o combustível das revoluções liberais. Ao longo do século XIX, com o
advento do Estado liberal, a consolidação dos ideais constitucionais em textos
escritos e o êxito do movimento de codificação, o jusnaturalismo chega ao seu
apogeu e, paradoxalmente, tem início a sua superação histórica. Considerado
metafísico e anticientífico, o direito natural é empurrado para a margem da história
pela onipotência positivista do final século XIX 14.
O positivismo filosófico foi fruto de uma crença exacerbada no poder do
conhecimento científico. Sua importação para o Direito resultou no positivismo
jurídico, na pretensão de criar-se uma ciência jurídica, com características
análogas às ciências exatas e naturais. A busca de objetividade científica, com
ênfase na realidade observável e não na especulação filosófica, apartou o Direito
da moral e dos valores transcendentes. Direito é norma, ato emanado do Estado
com caráter imperativo e força coativa. A ciência do Direito, como todas as
demais, deve fundar-se em juízos de fato, que visam ao conhecimento da
realidade, e não em juízos de valor, que representam uma tomada de posição
diante da realidade. Não é no âmbito do Direito que se deve travar a discussão
acerca de questões como legitimidade e justiça 15.
Sem embargo da resistência filosófica de outros movimentos influentes nas
primeiras
décadas
do
século
XX 16,
a
decadência
do
positivismo
é
emblematicamente associada à derrota do fascismo na Itália e do nazismo na
Alemanha. Esses movimentos políticos e militares ascenderam ao poder dentro
do quadro de legalidade vigente e promoveram a barbárie em nome da lei. Os
principais acusados de Nuremberg invocaram o cumprimento da lei e a
obediência a ordens emanadas da autoridade competente. Ao fim da Segunda
Guerra Mundial, a ideia de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos e
14
Bobbio, Matteucci e Pasquino, Dicionário de política, 1986, p. 659; Ana Paula de Barcellos, As
relações da filosofia do direito com a experiência jurídica. Uma visão dos séculos XVIII, XIX e XX.
Algumas questões atuais, Revista Forense 351/10; e Viviane Nunes Araújo Lima, A saga do
zangão: uma visão sobre o direito natural, 2000, p. 181.
15
V. Norberto Bobbio, O positivismo jurídico, 1995, p. 223-4, e também Michael Löwy, Ideologias e
ciência social – elementos para uma análise marxista, 1996, p. 40: O positivismo, que se
apresenta como ciência livre de juízos de valor, neutra, rigorosamente científica, (...) acaba tendo
uma função política e ideológica.
16
Como por exemplo, a jurisprudência dos interesses, iniciada por Ihering, e o movimento pelo
direito livre, no qual se destacou Ehrlich.
304
Luís Roberto Barroso
da lei como uma estrutura meramente formal, uma embalagem para qualquer
produto, já não tinha mais aceitação no pensamento esclarecido 17.
A superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso político do positivismo
abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca
do Direito, sua função social e sua interpretação. O pós-positivismo é a
designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a
definição das relações entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada
nova hermenêutica constitucional, e a teoria dos direitos fundamentais 18, edificada
sobre o fundamento da dignidade humana. A valorização dos princípios, sua
incorporação,
explícita
ou
implícita,
pelos
textos
constitucionais
e
o
reconhecimento pela ordem jurídica de sua normatividade fazem parte desse
ambiente de reaproximação entre Direito e Ética.
Gradativamente, diversas formulações antes dispersas ganham unidade e
consistência, ao mesmo tempo em que se desenvolve o esforço teórico que
procura transformar o avanço filosófico em instrumental técnico-jurídico aplicável
aos problemas concretos. O discurso acerca dos princípios, da supremacia dos
direitos fundamentais e do reencontro com a Ética – ao qual, no Brasil, se deve
agregar o da transformação social e o da emancipação – deve ter repercussão
sobre o ofício dos juízes, advogados e promotores, sobre a atuação do Poder
Público em geral e sobre a vida das pessoas. Trata-se de transpor a fronteira da
reflexão filosófica, ingressar na dogmática jurídica e na prática jurisprudencial e,
indo mais além, produzir efeitos positivos sobre a realidade. Os tópicos que se
seguem têm a ambição de servir de guia elementar para a construção da
normatividade e da efetividade do pós-positivismo.
17
Carlos Santiago Nino, Etica y derechos humanos, 1989, p. 3 e ss.; e Ricardo Lobo Torres, Os
direitos humanos e a tributação – imunidades e isonomia, 1995, p. 6 e ss.
18
Sobre o tema, vejam-se: Antônio Augusto Cançado Trindade, A proteção internacional dos
direitos humanos: fundamentos jurídicos e instrumentos básicos, 1991; Ingo Wolfgang Sarlet, A
eficácia dos direitos fundamentais, 1998; Flávia Piovesan, Temas de direitos humanos, 1998;
Ricardo Lobo Torres (org.), Teoria dos direitos fundamentais, 1999; Willis Santiago Guerra Filho,
Processo constitucional e direitos fundamentais, 1999; e Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio
Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco, Hermenêutica constitucional e direitos
fundamentais, 2000.
O Começo da História
305
III. Princípios e Regras, ainda uma vez
Na trajetória que os conduziu ao centro do sistema, os princípios tiveram
de conquistar o status de norma jurídica, superando a crença de que teriam uma
dimensão puramente axiológica, ética, sem eficácia jurídica ou aplicabilidade
direta e imediata. A dogmática moderna avaliza o entendimento de que as normas
em geral, e as normas constitucionais em particular, enquadram-se em duas
grandes categorias diversas: os princípios e as regras. Antes de uma elaboração
mais sofisticada da teoria dos princípios, a distinção entre eles fundava-se,
sobretudo, no critério da generalidade 19. Normalmente, as regras contêm relato
mais objetivo, com incidência restrita às situações específicas às quais se
dirigem. Já os princípios têm maior teor de abstração e incidem sobre uma
pluralidade de situações. Inexiste hierarquia entre ambas as categorias, à vista do
princípio da unidade da Constituição. Isso não impede que princípios e regras
desempenhem funções distintas dentro do ordenamento.
Nos últimos anos, todavia, ganhou curso generalizado uma distinção
qualitativa ou estrutural entre regra e princípio, que veio a se tornar um dos pilares
da moderna dogmática constitucional, indispensável para a superação do
positivismo legalista, cujas normas se cingiam a regras jurídicas. 20 A Constituição
passa a ser encarada como um sistema aberto de princípios e regras, permeável
a valores jurídicos suprapositivos, no qual as ideias de justiça e de realização dos
direitos fundamentais desempenham um papel central. A mudança de paradigma
nessa matéria deve especial tributo às concepções de Ronald Dworkin 21 e aos
desenvolvimentos a ela dados por Robert Alexy 22. A conjugação das ideias
desses dois autores dominou a teoria jurídica e passou a constituir o
19
Josef Esser, Principio y norma en la elaboración jurisprudencial del derecho privado, 1961, p.
66.
20
Rodolfo L. Vigo, Los principios jurídicos – perspectiva jurisprudencial, 2000, p. 9-20. O autor
apresenta um interessante panorama dos critérios distintivos entre princípios e regras já propostos
pela doutrina.
21
a
Ronald Dworkin, Taking rights seriously, 1997 (a 1 . edição é de 1977). O texto seminal nessa
matéria, do próprio Dworkin, foi “The model of rules”, University of Chicago Law Review, 35/14
(1967).
22
a
Robert Alexy, Teoria de los derechos fundamentales, 1997 (a 1 . ed. do original Theorie der
Grundrechte é de 1986).
306
Luís Roberto Barroso
conhecimento convencional na matéria 23.
Regras são, normalmente, relatos objetivos, descritivos de determinadas
condutas e aplicáveis a um conjunto delimitado de situações. Ocorrendo a
hipótese prevista no seu relato, a regra deve incidir, pelo mecanismo tradicional
da subsunção: enquadram-se os fatos na previsão abstrata e produz-se uma
conclusão. A aplicação de uma regra se opera na modalidade tudo ou nada: ou
ela regula a matéria em sua inteireza ou é descumprida. Na hipótese do conflito
entre duas regras, só uma será válida e irá prevalecer 24. Princípios, por sua vez,
contêm relatos com maior grau de abstração, não especificam a conduta a ser
seguida e se aplicam a um conjunto amplo, por vezes indeterminado, de
situações. Em uma ordem democrática, os princípios frequentemente entram em
tensão dialética, apontando direções diversas. Por essa razão, sua aplicação
deverá se dar mediante ponderação: à vista do caso concreto, o intérprete irá
aferir o peso que cada princípio deverá desempenhar na hipótese, mediante
concessões recíprocas, e preservando o máximo de cada um, na medida do
possível. Sua aplicação, portanto, não será no esquema tudo ou nada, mas
graduada à vista das circunstâncias representadas por outras normas ou por
situações de fato 25.
Pois bem: ultrapassada a fase de certo deslumbramento com a
23
O consenso vem sendo, todavia, progressivamente rompido pelo surgimento de trabalhos
críticos de qualidade. V. na doutrina nacional, Humberto Ávila, Teoria dos princípios (da definição
à aplicação dos princípios jurídicos), 2003, mimeografado (livro no prelo, original gentilmente
cedido pelo autor); na doutrina estrangeira, Klaus Günther, The sense of appropriateness –
Application discourses in morality and law, 1993. Para uma defesa das posições de Alexy, v.
Thomas da Rosa Bustamante, A distinção estrutural entre princípios e regras e sua importância
para a dogmática jurídica, 2003, mimeografado (original gentilmente cedido pelo autor).
24
V. Luís Roberto Barroso, Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional
brasileiro, in Temas de direito constitucional, t. II, p. 32: “O Direito, como se sabe, é um sistema de
normas harmonicamente articuladas. Uma situação não pode ser regida simultaneamente por
duas disposições legais que se contraponham. Para solucionar essas hipóteses de conflito de leis,
o ordenamento jurídico se serve de três critérios tradicionais: o da hierarquia – pelo qual a lei
superior prevalece sobre a inferior –, o cronológico – cuja lei posterior prevalece sobre a anterior –
e o da especialização – em que a lei específica prevalece sobre a lei geral. Esses critérios,
todavia, não são adequados ou plenamente satisfatórios quando a colisão se dá entre normas
constitucionais, especialmente entre princípios constitucionais, categoria na qual devem ser
situados os conflitos entre direitos fundamentais.”
25
Robert Alexy, Teoria de los derechos fundamentales, 1997, p. 86: “Princípios são normas que
ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e
reais existentes. Por isso, são mandados de otimização, caracterizados pelo fato de que podem
ser cumpridos em diferentes graus e que a medida devida de seu cumprimento não só depende
das possibilidades reais, mas também das jurídicas. O âmbito do juridicamente possível é
determinado pelos princípios e regras opostas.”
O Começo da História
307
redescoberta dos princípios como elementos normativos, o pensamento jurídico
tem se dedicado à elaboração teórica das dificuldades que sua interpretação e
aplicação oferecem, tanto na determinação de seu conteúdo quanto no de sua
eficácia. A ênfase que se tem dado à teoria dos princípios deve-se, sobretudo, ao
fato de ser nova e de apresentar problemas ainda irresolvidos. O modelo
tradicional, como já mencionado, foi concebido para a interpretação e aplicação
de regras. É bem de ver, no entanto, que o sistema jurídico ideal se
consubstancia em uma distribuição equilibrada de regras e princípios, nos quais
as regras desempenham o papel referente à segurança jurídica – previsibilidade e
objetividade das condutas – e os princípios, com sua flexibilidade, dão margem à
realização da justiça do caso concreto 26.
É de proveito aprofundar o tema da distinção entre princípios e regras,
especialmente no que diz respeito às potencialidades que oferecem para a
atuação do intérprete constitucional. Sem embargo da multiplicidade de
concepções na matéria, há pelo menos um consenso sobre o qual trabalha a
doutrina em geral: princípios e regras desfrutam igualmente do status de norma
jurídica e integram, sem hierarquia, o sistema referencial do intérprete. Dos
múltiplos critérios distintivos possíveis 27, três deles são aqui destacados: (i) o
conteúdo; (ii) a estrutura normativa; (iii) as particularidades da aplicação.
Quanto ao conteúdo, destacam-se os princípios como normas que
identificam valores a serem preservados ou fins a serem alcançados. Trazem em
si, normalmente, um conteúdo axiológico ou uma decisão política. Isonomia,
26
V. Ana Paula de Barcellos, Ponderação de normas: alguns parâmetros jurídicos. Projeto de tese
de doutoramento aprovado no programa de Pós-Graduação em Direito Público da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro: “É possível identificar uma relação entre a segurança, a estabilidade e a
previsibilidade e as regras jurídicas. Isso porque, na medida em que veiculam efeitos jurídicos
determinados, pretendidos pelo legislador de forma específica, as regras contribuem para a maior
previsibilidade do sistema jurídico. A justiça, por sua vez, depende em geral de normas mais
flexíveis, à maneira dos princípios, que permitam uma adaptação mais livre às infinitas
possibilidades do caso concreto e que sejam capazes de conferir ao intérprete liberdade de
adaptar o sentido geral do efeito pretendido, muitas vezes impreciso e indeterminado, às
peculiaridades da hipótese examinada. Nesse contexto, portanto, os princípios são espécies
normativas que se ligam de modo mais direto à idéia de justiça. Assim, como esquema geral, é
possível dizer que a estrutura das regras facilita a realização do valor segurança, ao passo que os
princípios oferecem melhores condições para que a justiça possa ser alcançada” (texto
ligeiramente editado).
27
Sobre o tema, vejam-se Karl Larenz, Metodologia da ciência do direito, 1997; Claus-Wilhelm
Canaris, Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito, 1996. Na doutrina
brasileira, v. o importante estudo de Humberto Ávila, Teoria dos princípios (da definição à
aplicação dos princípios jurídicos), cit.
308
Luís Roberto Barroso
moralidade e eficiência são valores. Justiça social, desenvolvimento nacional,
redução das desigualdades regionais são fins públicos. Já as regras limitam-se a
traçar uma conduta. A questão relativa a valores ou a fins públicos não vem
explicitada na norma porque já foi decidida pelo legislador, e não transferida ao
intérprete. Daí se possível afirmar-se que regras são descritivas de conduta, ao
passo que princípios são valorativos ou finalísticos.
Com relação à estrutura normativa, tem-se que o relato de uma regra
especifica os atos a serem praticados para seu cumprimento adequado. Embora a
atividade do intérprete jamais possa ser qualificada como mecânica, pois a ele
cabe dar o toque de humanidade que liga o texto à vida real, a aplicação de uma
regra normalmente não envolverá um processo de racionalização mais
sofisticado. Ocorre o fato previsto em abstrato, produz-se o efeito concreto
prescrito. Já os princípios indicam fins, estados ideais a serem alcançados. Como
a norma não detalha a conduta a ser seguida para sua realização, a atividade do
intérprete será mais complexa, pois a ele caberá definir a ação a tomar.
Pode ocorrer ainda, em relação aos princípios, uma dificuldade adicional: o
fim a ser atingido ou o estado ideal a ser transformado em realidade pode não ser
objetivamente determinado, envolvendo uma integração subjetiva por parte do
intérprete. Um princípio tem um sentido e alcance mínimos, um núcleo essencial,
no qual se equiparam às regras. A partir de determinado ponto, no entanto,
ingressa-se em um espaço de indeterminação, no qual a demarcação de seu
conteúdo estará sujeita à concepção ideológica ou filosófica do intérprete. Um
exemplo é fornecido pelo princípio da dignidade da pessoa humana. Além de não
explicitar os comportamentos necessários para realizar a dignidade humana –
essa, portanto, é a primeira dificuldade: descobrir os comportamentos – poderá
haver controvérsia sobre o que significa a própria dignidade a partir de um
determinado conteúdo essencial, conforme o ponto de observação do intérprete 28.
Quanto ao modo ou particularidades de sua aplicação, a doutrina que se
desenvolveu sobre as premissas teóricas de Dworkin e Alexy traça a distinção
entre princípios e regras na forma já registrada acima e que se reproduz
28
Essa característica dos princípios, aliás, é que permite que a norma se adapte, ao longo do
tempo, a diferentes realidades, além de permitir a concretização do princípio da maioria, inerente
ao regime democrático. Há um sentido mínimo, oponível a qualquer grupo que venha a exercer o
poder, e também um espaço cujo conteúdo será preenchido pela deliberação democrática.
O Começo da História
309
sumariamente, para fins de encadeamento do raciocínio. Regras são proposições
normativas aplicáveis sob a forma de tudo ou nada (“all or nothing”). Se os fatos
nela previstos ocorrerem, a regra deve incidir, de modo direto e automático,
produzindo seus efeitos. Uma regra somente deixará de incidir sobre a hipótese
de fato que contempla se for inválida, se houver outra mais específica ou se não
estiver em vigor. Sua aplicação se dá, predominantemente, mediante subsunção.
Princípios contêm, normalmente, uma maior carga valorativa, um
fundamento ético, uma decisão política relevante, e indicam uma determinada
direção a seguir. Ocorre que, em uma ordem pluralista, existem outros princípios
que abrigam decisões, valores ou fundamentos diversos, por vezes contrapostos.
A colisão de princípios, portanto, não só é possível, como faz parte da lógica do
sistema, que é dialético. Por isso a sua incidência não pode ser posta em termos
de tudo ou nada, de validade ou invalidade. Deve-se reconhecer aos princípios
uma dimensão de peso ou importância. À vista dos elementos do caso concreto, o
intérprete deverá fazer escolhas fundamentadas, quando se defronta com
antagonismos inevitáveis, como os que existem entre a liberdade de expressão e
o direito de privacidade, a livre iniciativa e a intervenção estatal, o direito de
propriedade e a sua função social. A aplicação dos princípios se dá,
predominantemente, mediante ponderação 29.
É certo que, mais recentemente, já se discute tanto a aplicação do
esquema tudo ou nada aos princípios como a possibilidade de também as regras
serem ponderadas. Isso porque, como visto, determinados princípios – como o
princípio da dignidade da pessoa humana e outros – apresentam um núcleo de
29
Partindo da ideia original de Dworkin, o autor alemão Robert Alexy (Teoria de los derechos
fundamentales, 1997, p. 81 e ss.) deu novos desenvolvimentos analíticos ao tema, nos termos a
seguir resumidos. As regras veiculam mandados de definição, ao passo que os princípios são
mandados de otimização. Por essas expressões se quer significar que as regras (mandados de
definição) têm natureza biunívoca, isto é, só admitem duas espécies de situação, dado seu
substrato fático típico: ou são válidas e se aplicam ou não se aplicam por inválidas. Uma regra
vale ou não vale juridicamente. Não são admitidas gradações. A exceção da regra ou é outra
regra, que invalida a primeira, ou é a sua violação. Os princípios se comportam de maneira
diversa. Como mandados de otimização, pretendem eles ser realizados da forma mais ampla
possível, admitindo, entretanto, aplicação mais ou menos intensa de acordo com as possibilidades
jurídicas existentes, sem que isso comprometa sua validade. Esses limites jurídicos, capazes de
restringir a otimização do princípio, são (i) regras que o excepcionam em algum ponto e (ii) outros
princípios de mesma estatura e opostos que procuram igualmente maximizar-se, impondo a
necessidade eventual de ponderação.
310
Luís Roberto Barroso
sentido ao qual se atribui natureza de regra, aplicável biunivocamente 30. Por outro
lado, há situações em que uma regra, perfeitamente válida em abstrato, poderá
gerar uma inconstitucionalidade ao incidir em determinado ambiente ou, ainda, há
hipóteses em que a adoção do comportamento descrito pela regra violará
gravemente o próprio fim que ela busca alcançar 31. Esses são fenômenos de
percepção recente, que começam a despertar o interesse da doutrina, inclusive
por seu grande alcance prático.
Princípios – e, com crescente adesão na doutrina, também as regras – são
ponderados, à vista do caso concreto. E, na determinação de seu sentido e na
escolha dos comportamentos que realizarão os fins previstos, deverá o intérprete
demonstrar o fundamento racional que legitima sua atuação. Chega-se, assim,
aos dois temas que se seguem: a ponderação e a argumentação jurídica.
IV. Ponderação de Interesses, Bens, Valores e Normas 32
Durante muito tempo, a subsunção foi a única fórmula para compreender a
aplicação do direito, a saber: premissa maior – a norma – incidindo sobre a
30
Ana Paula de Barcellos, A eficácia jurídica dos princípios constitucionais. O princípio da
dignidade da pessoa humana, 2002, p. 191 e ss.
31
V. Humberto Ávila, Teoria dos princípios (da definição à aplicação dos princípios jurídicos), cit.,
p. 28 e ss. O STF, no julgamento do Habeas Corpus 7703-PE (Rel. Min. Marco Aurélio, DJ
11.09.98), considerou ser essa a hipótese e afastou, no caso concreto, a aplicação do art. 1° do
Decreto-Lei n° 200/67 para conceder a ordem e trancar ação penal proposta contra Ex-Prefeita. A
questão era a seguinte. Determinado Município contratou, sem concurso público, um gari por
cerca de nove meses; posteriormente, o gari ingressou na justiça trabalhista exigindo um conjunto
de direitos. A reclamação foi julgada improcedente pelo Juízo trabalhista, que acolheu a alegação
do Município de nulidade da relação por falta de concurso público e determinou a remessa de
peças ao Ministério Público para responsabilização da autoridade que dera causa ao
descumprimento da regra constitucional. Com fundamento nesses fatos, o Ministério Público
propôs a ação penal em face da Ex-Prefeita. O STF, no entanto, considerou que o evento era
insignificante, que a Municipalidade não teria sofrido prejuízo e que o fim da norma prevista no art.
1° do Decreto-Lei n° 200/67 não fora afetado e, por essas razões, determinou o trancamento da
ação penal.
32
Ronald Dworkin, Taking rights seriously, 1997; Robert Alexy, Teoria de los derechos
fundamentales, 1997 e os seguintes textos mimeografados: Colisão e ponderação como problema
fundamental da dogmática dos direitos fundamentais (1998) e Constitutional rights, balancing, and
rationality (2002) (textos gentilmente cedidos por Margarida Lacombe Camargo); Karl Larenz,
Metodologia da ciência do direito, 1997; Daniel Sarmento, A ponderação de interesses na
Constituição Federal, 2000; Ricardo Lobo Torres, Da ponderação de interesses ao princípio da
ponderação, in Urbano Zilles (coord.), Miguel Reale. Estudos em homenagem a seus 90 anos,
2000, p. 643 e ss; Aaron Barak, Foreword: a judge on judging: the role of a Supreme Court in a
Democracy, Harvard Law Review 116/1 (2002); Marcos Maselli Gouvêa, O controle judicial das
omissões administrativas, 2003; Humberto Ávila, Teoria dos princípios (da definição à aplicação
dos princípios jurídicos), cit.
O Começo da História
311
premissa menor – os fatos – e produzindo como consequência a aplicação do
conteúdo da norma ao caso concreto. Como já se viu essa espécie de raciocínio
continua a ser fundamental para a dinâmica do direito. Mais recentemente, porém,
a dogmática jurídica deu-se conta de que a subsunção tem limites, não sendo por
si só suficiente para lidar com situações que, em decorrência da expansão dos
princípios, são cada vez mais frequentes. Não é difícil demonstrar e ilustrar o
argumento.
Imagine-se uma hipótese em que mais de uma norma possa incidir sobre o
mesmo conjunto de fatos – várias premissas maiores, portanto, para apenas uma
premissa menor –, como no caso clássico da oposição entre liberdade de
imprensa e de expressão, de um lado, e os direitos à honra, à intimidade e à vida
privada, de outro 33. Como se constata singelamente, as normas envolvidas
tutelam valores distintos e apontam soluções diversas e contraditórias para a
questão. Na sua lógica unidirecional (premissa maior – premissa menor), a
solução subsuntiva para esse problema somente poderia trabalhar com uma das
normas, o que importaria a escolha de uma única premissa maior, descartando-se
as demais. Tal fórmula, todavia, não seria constitucionalmente adequada: por
força do princípio instrumental da unidade da Constituição (v. infra), o intérprete
não pode simplesmente optar por uma norma e desprezar outra em tese também
aplicável, como se houvesse hierarquia entre elas. Como consequência, a
interpretação constitucional viu-se na contingência de desenvolver técnicas
capazes de lidar com o fato de que a Constituição é um documento dialético –
que tutela valores e interesses potencialmente conflitantes – e que princípios nela
consagrados frequentemente entram em rota de colisão.
A dificuldade que se acaba de descrever já foi amplamente percebida pela
doutrina; é pacífico que casos como esses não são resolvidos por uma subsunção
simples. Será preciso um raciocínio de estrutura diversa, mais complexo, que seja
capaz de trabalhar multidirecionalmente, produzindo a regra concreta que vai
reger a hipótese a partir de uma síntese dos distintos elementos normativos
incidentes sobre aquele conjunto de fatos. De alguma forma, cada um desses
33
Há diversos estudos sobre esse conflito específico. Veja-se, por todos, o trabalho de Edilsom
Pereira de Farias, Colisão de direitos. A honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a
liberdade de expressão e informação, 1996.
312
Luís Roberto Barroso
elementos deverá ser considerado na medida de sua importância e pertinência
para o caso concreto, de modo que na solução final, tal qual em um quadro bem
pintado, as diferentes cores possam ser percebidas, ainda que uma ou algumas
delas venham a se destacar sobre as demais. Esse é, de maneira geral, o
objetivo daquilo que se convencionou denominar de técnica da ponderação.
A ponderação consiste, portanto, em uma técnica de decisão jurídica 34
aplicável a casos difíceis 35, em relação aos quais a subsunção se mostrou
insuficiente, especialmente quando uma situação concreta dá ensejo à aplicação
de normas de mesma hierarquia que indicam soluções diferenciadas 36. A
estrutura interna do raciocínio ponderativo ainda não é bem conhecida, embora
esteja sempre associada às noções difusas de balanceamento e sopesamento de
interesses, bens, valores ou normas. A importância que o tema ganhou no dia a
dia da atividade jurisdicional, entretanto, tem levado a doutrina a estudá-lo mais
cuidadosamente 37. De forma simplificada, é possível descrever a ponderação
como um processo em três etapas, relatadas a seguir.
Na primeira etapa, cabe ao intérprete detectar no sistema as normas
relevantes para a solução do caso, identificando eventuais conflitos entre elas.
Como se viu, a existência dessa espécie de conflito – insuperável pela subsunção
– é o ambiente próprio de trabalho da ponderação 38. Assinale-se que norma não
se confunde com dispositivo: por vezes uma norma será o resultado da
conjugação de mais de um dispositivo. Por seu turno, um dispositivo isoladamente
34
José Maria Rodríguez de Santiago, La ponderación de bienes e intereses en el derecho
administrativo, 2000.
35
Do inglês hard cases, a expressão identifica situações para as quais não há uma formulação
simples e objetiva a ser colhida no ordenamento, sendo necessária a atuação subjetiva do
intérprete e a realização de escolhas, com eventual emprego de discricionariedade.
36
A ponderação também tem sido empregada em outras circunstâncias, como na definição do
conteúdo de conceitos jurídicos indeterminados (a definição dos que sejam os “valores éticos e
sociais da pessoa e da família”, referidos no art. 221, IV, da Constituição, envolverá por certo um
raciocínio do tipo ponderativo) ou na aplicação da equidade a casos concretos, embora este último
caso possa ser reconduzido a um confronto de princípios, já que a eqüidade tem como
fundamento normativo específico o princípio constitucional da justiça.
37
Ricardo Lobo Torres, Da ponderação de interesses ao princípio da ponderação, in Urbano Zilles
(coord.), Miguel Reale. Estudos em homenagem a seus 90 anos, 2000, p. 643 e ss.
38
É bem de ver que algumas vezes o conflito se estabelece mais claramente entre interesses que
se opõem, quando então será preciso verificar se esses interesses podem ser reconduzidos a
normas jurídicas (normas que, por sua vez, podem ter como fundamento regras e/ou princípios,
explícitos ou implícitos).
O Começo da História
313
considerado pode não conter uma norma ou, ao revés, abrigar mais de uma 39.
Ainda nesse estágio, os diversos fundamentos normativos – isto é: as diversas
premissas maiores pertinentes – são agrupados em função da solução que
estejam sugerindo. Ou seja: aqueles que indicam a mesma solução devem formar
um conjunto de argumentos. O propósito desse agrupamento é facilitar o trabalho
posterior de comparação entre os elementos normativos em jogo.
Na segunda etapa, cabe examinar os fatos, as circunstâncias concretas do
caso e sua interação com os elementos normativos. Relembre-se, na linha do que
já foi exposto anteriormente, a importância assumida pelos fatos e pelas
consequências práticas da incidência da norma na moderna interpretação
constitucional. Embora os princípios e regras tenham uma existência autônoma
em tese, no mundo abstrato dos enunciados normativos, é no momento em que
entram em contato com as situações concretas que seu conteúdo se preencherá
de real sentido. Assim, o exame dos fatos e os reflexos sobre eles das normas
identificadas na primeira fase poderão apontar com maior clareza o papel de cada
uma delas e a extensão de sua influência.
Até aqui, na verdade, nada foi solucionado nem sequer há maior novidade.
Identificação das normas aplicáveis e compreensão dos fatos relevantes fazem
parte de todo e qualquer processo interpretativo, sejam os casos fáceis ou
difíceis. É na terceira etapa que a ponderação irá singularizar-se, em oposição à
subsunção. Relembre-se, como já assentado, que os princípios, por sua estrutura
e natureza, e observados determinados limites, podem ser aplicados com maior
ou menor intensidade, à vista de circunstâncias jurídicas ou fáticas, sem que isso
afete sua validade 40. Pois bem: nessa fase dedicada à decisão, os diferentes
grupos de normas e a repercussão dos fatos do caso concreto estarão sendo
examinados de forma conjunta, de modo a apurar os pesos que devem ser
atribuídos aos diversos elementos em disputa e, portanto, o grupo de normas que
deve preponderar no caso. Em seguida, é preciso ainda decidir quão
intensamente esse grupo de normas – e a solução por ele indicada – deve
prevalecer em detrimento dos demais, isto é: sendo possível graduar a
39
Sobre o tema, v. Humberto Ávila, Teoria dos princípios (da definição à aplicação dos princípios
jurídicos), cit., p. 13.
40
Essa estrutura em geral não se repete com as regras, de modo que a ponderação de regras
será um fenômeno muito mais complexo e excepcional.
314
Luís Roberto Barroso
intensidade da solução escolhida, cabe ainda decidir qual deve ser o grau
apropriado em que a solução deve ser aplicada. Todo esse processo intelectual
tem como fio condutor o princípio instrumental da proporcionalidade ou
razoabilidade (v. infra).
Da exposição apresentada extrai-se que a ponderação ingressou no
universo da interpretação constitucional como uma necessidade, antes que como
uma opção filosófica ou ideológica 41. É certo, no entanto, que cada uma das três
etapas descritas acima – identificação das normas pertinentes, seleção dos fatos
relevantes e atribuição geral de pesos, com a produção de uma conclusão –
envolve avaliações de caráter subjetivo, que poderão variar em função das
circunstâncias pessoais do intérprete e de outras tantas influências 42. É
interessante
observar
que
alguns
dos
principais
temas
da
atualidade
constitucional no Brasil tem seu equacionamento posto em termos de ponderação
de valores, podendo-se destacar:
(i) o debate acerca da relativização da coisa julgada, na qual se
contrapõem o princípio da segurança jurídica e outros valores
socialmente relevantes, como a justiça, a proteção dos direitos da
personalidade e outros 43;
(ii) o debate acerca da denominada “eficácia horizontal dos
direitos fundamentais”, envolvendo a aplicação das normas
constitucionais às relações privadas, na qual se contrapõem a
autonomia da vontade e a efetivação dos direitos fundamentais 44;
41
Há, na verdade, quem critique essa necessidade e a própria conveniência de aplicar-se a
ponderação a temas constitucionais que, por seu caráter fundamental, não deveriam estar sujeitos
a avaliações tão subjetivas como as que ocorrem em um processo de ponderação: v. tb.
Alexander Aleinikoff, Constitutional law in the age of balancing, Yale Law Journal 96, 1987, p. 943
e ss.
42
Para o exame de algumas situações concretas de ponderação na nossa perspectiva, vejam-se
em Luís Roberto Barroso, Temas de direito constitucional, 2002: Liberdade de expressão, direito à
informação e banimento da publicidade de cigarro, p. 243 e ss. (sobre liberdade de expressão e
informação versus políticas públicas de proteção à saúde); Liberdade de expressão, censura e
controle da programação de televisão na Constituição de 1988, p. 341 e ss. (sobre liberdade de
expressão versus proteção aos valores éticos e sociais da pessoa e da família). E em Temas de
direito constitucional, t. II, 2003: A ordem constitucional e os limites à atuação estatal no controle
de preços, p. 47 e ss. (sobre livre iniciativa e livre concorrência versus proteção do consumidor); e
Banco Central e Receita Federal. Comunicação ao Ministério Público para fins penais.
Obrigatoriedade da conclusão prévia do processo administrativo, p. 539 e ss. (sobre proteção da
honra, imagem e privacidade versus repressão de ilícitos).
43
V. Cândido Rangel Dinamarco, Relativizar a coisa julgada material in Carlos Valder do
Nascimento (coord.), Coisa julgada inconstitucional, 2002, p. 33 e ss.
44
Ingo Wolfgang Sarlet, Direitos fundamentais e direito privado: algumas considerações em torno
da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, in Ingo Wolfgang Sarlet (org.), A
Constituição concretizada. Construindo pontes com o público e o privado, 2000, p. 107 e ss.
Vejam-se, também, dois projetos de doutoramento em curso perante a Pós-Graduação em Direito
O Começo da História
315
(iii) o debate acerca do papel da imprensa, liberdade de expressão
e direito à informação em contraste com o direito à honra, à
imagem e à vida privada.
Algumas observações finais sobre o tema. A metáfora da ponderação,
associada ao próprio símbolo da justiça, não é imune a críticas, se sujeita ao mau
uso e não é remédio para todas as situações. Embora tenha merecido ênfase
recente, por força da teoria dos princípios, trata-se de uma ideia que vem de
longe 45. Há quem a situe como um componente do princípio mais abrangente da
proporcionalidade 46 e outros que já a vislumbram como um princípio próprio,
autônomo, o princípio da ponderação 47. É bem de ver, no entanto, que a
ponderação, embora preveja a atribuição de pesos diversos aos fatores
relevantes de uma determinada situação, não fornece referências materiais ou
axiológicas para a valoração a ser feita. No seu limite máximo, presta-se ao papel
de oferecer um rótulo para voluntarismos e soluções ad hoc, tanto as beminspiradas como as nem tanto 48.
O risco de tal disfunção, todavia, não a desmerece como técnica de
decisão nem priva a doutrina da possibilidade de buscar parâmetros melhor
definidos para sua aplicação. No estágio atual, a ponderação ainda não atingiu o
padrão desejável de objetividade, dando lugar a ampla discricionariedade judicial.
Tal discricionariedade, no entanto, como regra, deverá ficar limitada às hipóteses
em que o sistema jurídico não tenha sido capaz de oferecer a solução em tese,
elegendo um valor ou interesse que deva prevalecer. A existência de ponderação
Público da UERJ: Daniel Sarmento, Direito humanos e relações privadas: a eficácia horizontal dos
direitos fundamentais na Constituição brasileira, 2002, e Jane Reis Gonçalves Pereira, O sistema
de interpretação dos direitos fundamentais, 2002.
45
Roscoe Pound, Interpretations of legal history, 1923 é citado como grande impulsionador da
moderna técnica de ponderação, no âmbito da “jurisprudência sociológica”. V. Murphy, Fleming e
Harris, II, American constitutional interpretation, 1986, p. 309.
46
Robert Alexy, Constitutional rights, balancing, and rationality, 2002, mimeografado, p. 6.
47
Ricardo Lobo Torres, Da ponderação de interesses ao princípio da ponderação, in Urbano Zilles
(coord.), Miguel Reale. Estudos em homenagem a seus 90 anos, 2000, p. 643 e ss.
48
Antônio Henrique Corrêa da Silva, em monografia de final de curso na Pós-Graduação em
Direito Público da UERJ, significativamente denominada de Colisão de princípios e ponderação de
interesses: solução ruim para problema inexistente, 2002, faz densa crítica à ideia de ponderação
em si e, considerando artificiais as distinções entre regra e princípio, concluiu: a) a distinção entre
regra e princípio é inócua do ponto de vista funcional, uma vez que o princípio não pode operar
por si só, mas apenas através de uma regra que dele se extraia; b) a ”colisão de princípios” é, na
verdade, um conflito de regras extraídas de princípios, que podem ou não ser solucionáveis
(rectius: solucionável) pelos critérios tradicionais de superação de antinomias.
316
Luís Roberto Barroso
não é um convite para o exercício indiscriminado de ativismo judicial. O controle
de legitimidade das decisões obtidas mediante ponderação tem sido feito através
do exame da argumentação desenvolvida. Seu objetivo, de forma bastante
simples, é verificar a correção dos argumentos apresentados em suporte de uma
determinada conclusão ou ao menos a racionalidade do raciocínio desenvolvido
em cada caso, especialmente quando se trate do emprego da ponderação. O
próximo tópico será dedicado a esse tema.
V. A Teoria da Argumentação49
Após um primeiro momento de perplexidade, os iniciantes no estudo do
Direito passam a encarar com naturalidade um fenômeno que causa estranheza a
uma pessoa leiga: a existência de decisões em sentidos opostos acerca de uma
mesma matéria, posições doutrinárias divergentes e até mesmo votos conflitantes
em um mesmo julgado 50. Isto é: considerados os mesmos fatos e os mesmos
elementos normativos, pessoas diferentes poderão chegar a conclusões diversas.
A principal questão formulada pela chamada teoria da argumentação 51 pode ser
facilmente
visualizada
nesse
ambiente:
se
há
diversas
possibilidades
interpretativas acerca de uma mesma hipótese, qual delas é a correta? Ou, mais
49
Sobre o tema, v. Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, Tratado da argumentação: a nova
a
retórica, 1996 (1 . edição do original Traité de l’argumentation: la nouvelle rhétorique, 1958);
Stephen E. Toulmin, The uses of argument, 1958; Neil Maccormick, Legal reasoning and legal
a
theory, 1978; Robert Alexy, Teoria de la argumentación jurídica, 1989 (1 . edição do original
Theorie der juristischen Argumentation, 1978); Manuel Atienza, As razões do direito. Teorias da
argumentação jurídica, 2002; Antônio Carlos Cavalcanti Maia, Notas sobre direito, argumentação e
democracia, in Margarida Maria Lacombe Camargo (org.), 1988-1998: uma década de
Constituição, 1999.
50
O HC 73662/MG (STF, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 20.09.96) é um exemplo interessante e
emblemático do que se afirma. A discussão envolvia a interpretação dos arts. 213 e 224, alínea
“a”, do Código Penal, e em particular da presunção de violência nos casos de relação sexual com
menor de 14 anos, para o fim de tipificar-se o crime de estupro. O voto do Relator defendeu que a
presunção deveria ser compreendida como relativa, tanto pelas circunstâncias do caso concreto (a
menor levava vida promíscua, aparentava maior idade e consentiu com a relação sexual), como
por força da norma constitucional que prevê deva ser conferida especial proteção à família (art.
226). Isso porque, segundo o Ministro Relator, 5 (cinco) anos já se haviam passado do evento e,
nesse ínterim, o paciente no habeas corpus, condenado por estupro, havia casado e constituído
família. Os votos vencidos, por outro lado, e afora outros argumentos, defendiam a presunção
absoluta de violência no caso com fundamento no art. 227, § 4°, da Constituição, pelo qual “a lei
punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente”.
51
Na verdade, há várias teorias sobre a argumentação, mas suas preocupações concentram-se
em elementos comuns, de modo que se fará referência a elas de forma unificada.
O Começo da História
317
humildemente, ainda que não se possa falar de uma decisão correta 52, qual (ou
quais) delas é (são) capaz(es) de apresentar uma fundamentação racional
consistente? Como verificar se uma determinada argumentação é melhor do que
outra?
Existem diversas teorias acerca dos parâmetros que a argumentação deve
observar para ser considerada válida e não se pretende aqui discutir suas
complexidades, cujo exame forma por si só um ramo novo e autônomo de
estudo 53. Mesmo sem ingressar nelas, no entanto, é possível sistematizar três
parâmetros elementares de controle da argumentação que, a despeito de sua
simplicidade, serão especialmente úteis quando a técnica da ponderação esteja
sendo utilizada.
Em primeiro lugar, a argumentação jurídica deve ser capaz de apresentar
fundamentos normativos (implícitos que sejam) que a apoiem e lhe deem
sustentação. Ou seja: não basta o bom senso e o sentido de justiça pessoal – é
necessário que o intérprete apresente elementos da ordem jurídica que
referendem tal ou qual decisão. Embora óbvia essa exigência tem sido deixada de
lado com mais frequência do que se poderia supor, substituída por concepções
pessoais embaladas em uma retórica de qualidade. Não custa lembrar que, em
um Estado democrático de direito, o Judiciário apenas pode impor coativamente
determinada conduta a alguém com fundamento em lei. A argumentação jurídica
deve preservar exatamente seu caráter jurídico – não se trata apenas de uma
argumentação lógica ou moral. Nessa mesma linha, ao menos como orientação
prima facie, um conflito normativo deve ser resolvido em favor da solução que
apresente em seu suporte o maior número de normas jurídicas 54. Nesse ponto, é
oportuno fazer uma observação de caráter geral.
Apenas será possível controlar a argumentação do intérprete se houver
uma argumentação explicitamente apresentada. Essa evidência conduz ao
problema da motivação das decisões que envolvam a técnica da ponderação,
52
Com efeito, praticamente todas as teorias que se têm desenvolvido acerca dos parâmetros que
a argumentação deve observar para ser considerada válida reconhecem que, muitas vezes, não
haverá uma resposta certa, mas um conjunto de soluções plausíveis e razoáveis. V. Manuel
Atienza, As razões do direito. Teorias da argumentação jurídica, 2002, p. 40 e ss.
53
Manuel Atienza, em As razões do direito. Teorias da argumentação jurídica, 2002, faz uma
apresentação do pensamento dos principais autores sobre o assunto.
54
Humberto Ávila, Argumentação jurídica e a imunidade do livro eletrônico, Revista de Direito
Tributário 79/178 e ss.
318
Luís Roberto Barroso
particularmente as decisões judiciais. Como é corrente, toda e qualquer decisão
judicial deve ser motivada quanto aos fatos e quanto ao direito, mas quando uma
decisão judicial envolve a técnica da ponderação, o dever de motivar torna-se
ainda mais grave. Nesses casos, como visto, o julgador percorre um caminho
muito mais longo e acidentado para chegar à conclusão É seu dever
constitucional guiar as partes por essa viagem, demonstrando, em cada ponto,
porque decidiu por uma direção ou sentido e não por outro.
Nada obstante o truísmo do que se acaba de afirmar, provavelmente nunca
se motivou tão pouco e tão mal 55. Há uma série de explicações para esse
fenômeno, que vão do excesso de trabalho atribuído aos juizes, passam pela
chamada “motivação concisa”, autorizada pela jurisprudência das Cortes
superiores56, e pelas recentes reformas do Código de Processo Civil, que admite
agora como fundamentação de determinadas decisões a mera referência a
súmulas 57. Não é o momento aqui de examinar cada uma dessas questões. Ainda
que se possam admitir motivações concisas em muitos casos, certamente isso
não é possível quando se trate de decidir adotando a técnica de ponderação.
Nessas hipóteses, é absolutamente indispensável que o julgador exponha
analítica e expressamente o raciocínio e a argumentação que o conduziram a
uma determinada conclusão, permitindo assim que as partes possam controlá-la.
Feita a digressão, e retornando ao ponto, um segundo parâmetro útil para o
controle da argumentação jurídica, em especial quando ela envolva a
55
A ausência de motivação chega, às vezes, a ser tautológica, como registrou o Ministro
Sepúlveda Pertence no acórdão que segue: “Sentença condenatória: o acórdão que improvê
apelação: motivação necessária. A apelação devolve integralmente ao Tribunal a decisão da
causa, de cujos motivos o teor do acórdão há de dar conta total: não o faz o que – sem sequer
transcrever a sentença – limita-se a afirmar, para refutar apelação arrazoada com minúcia, que ‘no
mérito, não tem os apelantes qualquer parcela de razão’, somando-se ao vazio dessa afirmação a
tautologia de que ‘a prova é tranquila em desfavor dos réus’: a melhor prova da ausência de
motivação válida de uma decisão judicial – que deve ser a demonstração da adequação do
dispositivo a um caso concreto e singular – é que ela sirva a qualquer julgado, o que vale por dizer
que não serve a nenhum.” (STF, HC 78013/RJ, DJ 19.03.99, Rel. Min. Sepúlveda Pertence).
56
STF, AI(AgR) 310272-RJ, DJ 28.06.02, Rel. Min. Maurício Corrêa: “A fundamentação concisa
atende à exigência do artigo 93, IX da Constituição Federal, não implicando a invalidação da
decisão que a utiliza”.
57
CPC, art. 557: “O relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível,
improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do
respectivo Tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior.
§ 1° - A Se a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com a súmula ou com a
jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior, o relator poderá
dar provimento ao recurso.
O Começo da História
319
ponderação, diz respeito à possibilidade de universalização dos critérios adotados
pela decisão. Por força do imperativo de isonomia, espera-se que os critérios
empregados para a solução de um determinado caso concreto possam ser
transformados em regra geral para situações semelhantes. Esse exercício de
raciocínio – verificar a possibilidade de generalizar o critério de decisão que se
pretende adotar no caso concreto – projeta a argumentação desenvolvida para o
caso concreto em um conjunto maior de hipóteses, facilitando a visualização de
desvios e inconsistências.
Por fim, um último parâmetro capaz de balizar de alguma forma a
argumentação jurídica, especialmente a constitucional, é formado por dois
conjuntos de princípios: o primeiro, composto de princípios instrumentais ou
específicos de interpretação constitucional; o segundo, por princípios materiais
propriamente ditos, que trazem em si a carga ideológica, axiológica e finalística da
ordem constitucional. Ambas as categorias de princípios orientam a atividade do
intérprete, de tal maneira que, diante de várias soluções igualmente plausíveis,
deverá ele percorrer o caminho ditado pelos princípios instrumentais e realizar,
tão intensamente quanto possível, à luz dos outros elementos em questão, o
estado ideal pretendido pelos princípios materiais.
Aqui vale fazer uma nota. Os três parâmetros de argumentação expostos
acima estão relacionados com um dos problemas suscitados pela teoria da
argumentação, talvez o principal deles: a verificação da correção ou validade de
uma argumentação que, consideradas determinadas premissas fáticas e a
incidência de determinadas normas, conclui que uma consequência jurídica deve
ser aplicada ao caso concreto. Isto é: cuida-se aqui do momento final da
aplicação do direito, quando os fatos já foram identificados e as normas
pertinentes selecionadas. Isso não significa, porém, que esses dois momentos
anteriores – seleção de fatos e de enunciados normativos – sejam autoevidentes.
Ao contrário.
Desse modo, fica apenas o registro de que, além da questão posta acima,
outros dois problemas que têm ocupado os estudiosos da argumentação jurídica
envolvem exatamente a seleção das normas e dos fatos que serão considerados
em uma determinada situação. Com efeito, não é incomum, diante de um caso,
que alguns fatos sejam considerados relevantes e outros ignorados. Que critérios
320
Luís Roberto Barroso
levam o intérprete a dar relevância jurídica a alguns eventos e ignorar outros58?
Também a seleção da norma ou normas aplicáveis, isto é, o estabelecimento da
premissa normativa, nem sempre é um evento simples. A pergunta aqui, que
muitas vezes não terá uma resposta unívoca, pode ser formulada nos seguintes
termos: que normas são pertinentes ou aplicáveis ao caso 59?
Em suma, o controle da racionalidade do discurso jurídico suscita questões
diversas e complexas, que se tornam tanto mais graves quanto maior seja a
liberdade concedida a quem interpreta. No caso da interpretação constitucional, a
argumentação assume, muitas vezes, um papel decisivo: é que o caráter aberto
de muitas normas, o espaço de indefinição de conduta deixado pelos princípios e
os
conceitos
indeterminados
conferem
ao
intérprete
elevado
grau
de
subjetividade. A demonstração lógica adequada do raciocínio desenvolvido é vital
para a legitimidade da decisão proferida 60.
58
Um exemplo dessa espécie de problema pode ser observado na decisão do Supremo Tribunal
Federal que considerou legítima a aplicação de aumento da alíquota do imposto de renda,
publicado ao longo de determinado ano, ao fato gerador que se consolidou em 31 de dezembro
daquele mesmo ano. Na hipótese, era possível considerar ao menos dois fatos aparentemente
relevantes: (i) o fato gerador já estava em curso quando do incremento da alíquota; e (ii) o fato
gerador se consolida no dia 31 de dezembro. O intérprete que tomasse em consideração apenas o
primeiro fato poderia concluir pela inconstitucionalidade do aumento, tendo em conta o princípio
constitucional da anterioridade tributária. Por outro lado, aquele que apenas considerasse
relevante o segundo, como fez o STF, entenderia constitucional a incidência do aumento desde
logo. Confira-se: “Tratava-se, nesse precedente, como nos da súmula, de Lei editada no final do
ano-base, que atingiu a renda apurada durante todo o ano, já que o fato gerador somente se
completa e se caracteriza, ao final do respectivo período, ou seja, a 31 de dezembro” (STF, RE
194.612-1, DJ 08.05.98, Rel. Min. Sydney Sanches).
59
Nos casos, e.g., em que o conteúdo de matérias jornalísticas se pode opor à honra e à
privacidade, há autores que procuram solucionar o problema afirmando que a liberdade de
expressão assegurada constitucionalmente é aplicável apenas às pessoas naturais,
individualmente consideradas, e não às empresas que exploram meios de comunicação. Estas
gozariam apenas da liberdade de empresa e de iniciativa, direitos também assegurados pela
Constituição, mas que poderiam ser restringidos com mais facilidade que a liberdade de
expressão, prevista, afinal, como uma cláusula pétrea. Essa é a posição do professor Fábio
Konder Comparato, expressa em obra coletiva em homenagem a Paulo Bonavides (A
democratização dos meios de comunicação de massa, in Eros Roberto Grau e Willis Santiago
Guerra Filho, Direito constitucional. Estudos em homenagem ao Paulo Bonavides, 2001). Ora, o
fato de a liberdade de expressão ser ou não um elemento normativo relevante no caso é
fundamental para sua solução.
60
Comentando a absolvição do ex-presidente Collor em artigo publicado no Jornal do Brasil (O
avesso do Direito) e reproduzido parcialmente na Revista Consulex v. I, nº 19, 1998 (Juristas
analisam a candidatura Collor), escreveu Luís Roberto Barroso: “A decisão do STF que absolveu o
Ex-Presidente Fernando Collor comporta mais de uma leitura. É possível alguém supor, em boafé, que os cinco ministros que consideraram o Presidente inocente simplesmente não se
convenceram de sua culpabilidade. Provavelmente, além de Suas Excelências, dos advogados de
defesa e da estranha gente que recebe a alcunha de ‘tropa de choque’, não teria sido possível
contabilizar outras cinco pessoas no País inteiro que pensassem igual. (...) Mas há outra leitura
possível da decisão majoritária do STF. A teoria convencional do Direito sustenta que o juiz é um
mero aplicador da lei. Seu papel consiste tão somente em apurar os fatos e sobre eles fazer incidir
O Começo da História
321
Em desfecho dessa parte do trabalho, faz-se a seguir, para ilustrar as
ideias desenvolvidas, um exercício singelo de ponderação e argumentação.
Suponha-se o seguinte fato: o ocupante de um importante cargo político na
República é visto na saída de um motel, acompanhado de uma senhora que não
é sua esposa. Um jornalista que se encontrava na calçada em frente fotografa o
casal, ainda sob a placa identificadora do estabelecimento. A foto irá ilustrar a
capa de uma importante revista semanal, que circulará no sábado seguinte,
trazendo
ampla
matéria
intitulada
“A
infidelidade
no
poder”.
Tomando
conhecimento do fato, a autoridade propõe medida judicial de natureza cautelar
com o fim de impedir a publicação de sua foto e de referências à sua pessoa,
invocando seu direito de privacidade (CF, art. 5º, X) e alegando que: estava em
seu carro particular, fora do horário do expediente e que não há qualquer
interesse legítimo em divulgar fatos de sua vida pessoal e sexual. Os direitos
contrapostos, como intuitivo, são os da liberdade de expressão (CF, art. 5º, IX) e o
da informação (CF, arts. 5º, XIV, e 220).
Não é um caso fácil, por envolver um conflito entre direitos fundamentais,
sem que o ordenamento jurídico forneça, em tese, a solução constitucionalmente
adequada. O juiz, portanto, terá de fazer a ponderação entre os valores em
conflito e efetuar escolhas. E, reconheça-se, pessoas esclarecidas e de boa-fé
poderão produzir soluções diferentes para o problema. Veja-se a demonstração
argumentativa de uma delas. Apreciando a matéria, o juiz de primeiro grau nega a
liminar, fundamentando sua decisão em um teste tríplice:
a) O fato é verdadeiro. Argumento: somente em situações de rara
excepcionalidade deve o Judiciário impedir, mediante interferência
prévia, a divulgação de um fato que incontroversamente ocorreu;
b) O conhecimento do fato foi obtido por meio lícito. Argumento: O
Judiciário pode e deve interferir para impedir a divulgação de uma
notícia se ela tiver sido produto, por exemplo, de um crime, como
uma interceptação telefônica clandestina ou uma invasão de
o comando da norma. Mecanicamente. Acriticamente. Vive-se a ficção implausível de que o
Estado é inteiramente neutro e seus agentes são totalmente imparciais. O terceiro-mundismo tem
dessas hipocrisias. Na verdade, por um processo que é frequentemente inconsciente, o que se
constata é que por trás do discurso aparentemente jurídico o que existe é o compromisso
ideológico, o sentimento de classe. Os afortunados e os não afortunados. O que acontece no dia a
dia da Justiça se materializou de forma emblemática na decisão do Supremo: a classe dominante
brasileira – e seus intérpretes conscientes e inconscientes nos tribunais – não consegue condenar
os seus pares, os seus iguais.”
322
Luís Roberto Barroso
domicílio. Não sendo esse o caso, não deve fazê-lo;
c) Há interesse público potencial no conhecimento do fato.
Suponha-se que a autoridade em questão exercesse seu cargo no
Ministério dos Transportes, na qual uma importante licitação
estivesse por ser decidida. E que a senhora que o acompanhava
estivesse a serviço de um dos licitantes, utilizando argumentos –
como dizer – não previstos no edital.
Em sua fundamentação, portanto, o juiz levou em conta as normas
constitucionais relevantes, os elementos do caso concreto e a existência ou não
de interesse público legitimador de uma determinada opção. Essa solução não
era a única possível, pois o domínio dos conflitos de direitos fundamentais não é
de verdades ou certezas absolutas. Mas a argumentação desenvolvida é
suficientemente lógica e racional para pretender conquistar a adesão de um
universo de pessoas bem intencionadas e esclarecidas.
Parte II 61
Princípios Constitucionais
I. Princípios Instrumentais de Interpretação Constitucional
As normas constitucionais são normas jurídicas e, como consequência, sua
interpretação serve-se dos conceitos e elementos clássicos da interpretação em
geral.
Todavia,
as
normas
constitucionais
apresentam
determinadas
especificidades que as singularizam, dentre as quais é possível destacar: a) a
superioridade jurídica 62; b) a natureza da linguagem 63; c) o conteúdo específico 64;
61
A Parte II do presente texto sintetiza e consolida ideias expostas em Luís Roberto Barroso,
Interpretação e aplicação da Constituição, 2003 e Ana Paula de Barcellos, A eficácia jurídicas dos
princípios constitucionais. O princípio da dignidade da pessoa humana, 2001.
62
A Constituição é dotada de superlegalidade, de superioridade jurídica em relação às demais
normas do ordenamento. Tal característica faz dela o parâmetro de validade, o paradigma pelo
qual se afere a compatibilidade de uma norma com o sistema como um todo. Adiante se voltará ao
tema.
63
A natureza da linguagem constitucional, própria à veiculação de normas principiológicas ou
esquemáticas, faz com que estas apresentem maior abertura, maior grau de abstração e,
consequentemente, menor densidade jurídica. Cláusulas gerais e conceitos indeterminados
conferem à Constituição uma adaptabilidade às mudanças operadas na realidade e ao intérprete
um significativo espaço de discricionariedade.
64
As normas materialmente constitucionais podem ser classificadas em três grandes categorias:
a) as normas constitucionais de organização, que contêm as decisões políticas fundamentais,
instituem os órgãos de poder e definem suas competências; b) as normas constitucionais
definidoras de direitos, que identificam os direitos individuais, políticos, sociais e coletivos de base
O Começo da História
323
d) o caráter político 65. Em razão disso, desenvolveram-se ou sistematizaram-se
categorias doutrinárias próprias, identificadas como princípios específicos ou
princípios instrumentais de interpretação constitucional.
Impõe-se, nesse passo, uma qualificação prévia. O emprego do termo
princípio, nesse contexto, prende-se à proeminência e à precedência desses
mandamentos dirigidos ao intérprete, e não propriamente ao seu conteúdo, à sua
estrutura ou à sua aplicação mediante ponderação. Os princípios instrumentais de
interpretação constitucional constituem premissas conceituais, metodológicas ou
finalísticas que devem anteceder, no processo intelectual do intérprete, a solução
concreta da questão posta. Nenhum deles encontra-se expresso no texto da
Constituição, mas são reconhecidos pacificamente pela doutrina e pela
jurisprudência. Embora toda classificação tenha um componente subjetivo, a
sistematização que se segue parece ter resistido ao teste do tempo 66.
I.1. Princípio da Supremacia da Constituição
Do ponto de vista jurídico, o principal traço distintivo da Constituição é a
sua supremacia, sua posição hierárquica superior sobre as demais normas do
constitucional; e c) as normas programáticas, que estabelecem valores e fins públicos a serem
realizados. As normas definidoras de direitos têm, como regra, a estrutura típica das normas de
conduta, presentes nos diferentes ramos do Direito: preveem um fato e a ele atribuem uma
consequência jurídica. Mas as normas de organização e as normas programáticas têm
características singulares na sua estrutura e no seu modo de aplicação.
65
A Constituição é o documento que faz a travessia entre o poder constituinte originário – fato
político – e a ordem instituída, que é um fenômeno jurídico. Cabe ao direito constitucional o
enquadramento jurídico dos fatos políticos. Embora a interpretação constitucional não possa e não
deva romper as suas amarras jurídicas, deve ela ser sensível à convivência harmônica entre os
Poderes, aos efeitos simbólicos dos pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal e aos limites e
possibilidades da atuação judicial.
66
Esta foi a ordenação da matéria proposta em nosso Interpretação e aplicação da Constituição,
a
cuja 1 . edição é de 1995. Autores alemães e portugueses de grande expressão adotam
sistematizações diferentes, mas o elenco acima parece o de maior utilidade, dentro de uma
perspectiva brasileira de concretização da Constituição. Na doutrina brasileira mais recente,
embora de forte influência germânica, destaca-se o tratamento dado ao tema por Humberto Ávila,
em seu livro Teoria dos princípios (da definição à aplicação dos princípios jurídicos), cit. Propõe
ele a superação do modelo dual de separação regras-princípios pela criação de uma terceira
categoria normativa: a dos postulados normativos aplicativos. Seriam eles “instrumentos
normativos metódicos” que imporiam “condições a serem observadas na aplicação das regras e
dos princípios, com eles não se confundindo”. Em alguma medida, tal categoria se aproxima
daquilo que temos denominado de princípios instrumentais de interpretação constitucional.
Todavia, sua classificação é bem distinta, nela se identificando o que denomina de postulados
inespecíficos (ponderação, concordância prática e proibição de excesso) e postulados específicos
(igualdade, razoabilidade e proporcionalidade).
324
Luís Roberto Barroso
sistema. As leis, atos normativos e atos jurídicos em geral não poderão existir
validamente se incompatíveis com alguma norma constitucional. A Constituição
regula tanto o modo de produção das demais normas jurídicas como também
delimita o conteúdo que possam ter. Como consequência, a inconstitucionalidade
de uma lei ou ato normativo poderá ter caráter formalou material. A supremacia
da Constituição é assegurada pelos diferentes mecanismos de controle de
constitucionalidade. O princípio não tem um conteúdo próprio: ele apenas impõe a
prevalência da norma constitucional, qualquer que seja ela. É por força da
supremacia da Constituição que o intérprete pode deixar de aplicar uma norma
inconstitucional a um caso concreto que lhe caiba apreciar – controle incidental de
constitucionalidade – ou o Supremo Tribunal Federal pode paralisar a eficácia,
com caráter erga omnes, de uma norma incompatível com o sistema
constitucional (controle principal ou por ação direta).
I.2. Princípio da Presunção de Constitucionalidade das Leis e Atos do Poder
Público
A Constituição contém o código de conduta dos três Poderes do Estado,
cabendo a cada um deles sua interpretação e aplicação no âmbito de sua
competência. De fato, a atividade legislativa destina-se, em última análise, a
assegurar os valores e a promover os fins constitucionais. A atividade
administrativa, tanto normativa quanto concretizadora, igualmente se subordina à
Constituição e destina-se a efetivá-la. O Poder Judiciário, portanto, não é o único
intérprete da Lei Maior, embora o sistema lhe reserve a primazia de dar a palavra
final. Por isso mesmo, deve ter uma atitude de deferência para com a
interpretação levada a efeito pelos outros dois ramos do governo, em nome da
independência e harmonia dos Poderes. O princípio da presunção de
constitucionalidade, portanto, funciona como fator de autolimitação da atuação
judicial: um ato normativo somente deverá ser declarado inconstitucional quando
a invalidade for patente e não for possível decidir a lide com base em outro
fundamento.
O Começo da História
325
I.3. Princípio da Interpretação Conforme a Constituição
A interpretação conforme a Constituição pode ser apreciada como um
princípio de interpretação e como uma técnica de controle de constitucionalidade.
Como princípio de interpretação, decorre ele da confluência dos dois princípios
anteriores:
o
da
supremacia
da
Constituição
e
o
da
presunção
de
constitucionalidade. Com base na interpretação conforme a Constituição, o
aplicador da norma infraconstitucional, dentre mais de uma interpretação possível,
deverá buscar aquela que a compatibilize com a Constituição, ainda que não seja
a que mais obviamente decorra do seu texto. Como técnica de controle de
constitucionalidade, a interpretação conforme a Constituição consiste na expressa
exclusão de uma determinada interpretação da norma, uma ação “corretiva” que
importa em declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto. Em
qualquer de suas aplicações, o princípio tem por limite as possibilidades
semânticas do texto, para que o intérprete não se converta indevidamente em um
legislador positivo.
I.4. Princípio da Unidade da Constituição
A ordem jurídica é um sistema, o que pressupõe unidade, equilíbrio e
harmonia. Em um sistema, suas diversas partes devem conviver sem confrontos
inarredáveis. Para solucionar eventuais conflitos entre normas jurídicas
infraconstitucionais utilizam-se, como já visto, os critérios tradicionais da
hierarquia, da norma posterior e o da especialização. Na colisão de normas
constitucionais, especialmente de princípios – mas também, eventualmente, entre
princípios e regras e entre regras e regras – emprega-se a técnica da
ponderação. Por força do princípio da unidade, inexiste hierarquia entre normas
da Constituição, cabendo ao intérprete a busca da harmonização possível, in
concreto,
entre
comandos
que
tutelam
valores
ou
interesses
que
se
contraponham. Conceitos como os de ponderação e concordância prática são
instrumentos de preservação do princípio da unidade, também conhecido como
princípio da unidade hierárquico-normativa da Constituição.
326
Luís Roberto Barroso
I.5. Princípio da Razoabilidade ou da Proporcionalidade 67
O princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade, termos aqui
empregados de modo fungível 68, não está expresso na Constituição, mas tem seu
fundamento nas ideias de devido processo legal substantivo e na de justiça.
Trata-se de um valioso instrumento de proteção dos direitos fundamentais e do
interesse público, por permitir o controle da discricionariedade dos atos do Poder
Público e por funcionar como a medida com que uma norma deve ser interpretada
no caso concreto para a melhor realização do fim constitucional nela embutido ou
decorrente do sistema. Em resumo sumário, o princípio da razoabilidade permite
ao Judiciário invalidar atos legislativos ou administrativos quando: a) não haja
adequação entre o fim perseguido e o instrumento empregado (adequação); b) a
medida não seja exigível ou necessária, havendo meio alternativo menos gravoso
para chegar ao mesmo resultado (necessidade/vedação do excesso); c) não haja
proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, o que se perde com a medida é de
maior relevo do que aquilo que se ganha (proporcionalidade em sentido estrito). O
princípio pode operar, também, no sentido de permitir que o juiz gradue o peso da
norma, em uma determinada incidência, de modo a não permitir que ela produza
67
Sobre o tema, v. Luís Roberto Barroso, Interpretação e aplicação da Constituição, 2002, p. 213
e ss., no qual se faz amplo levantamento da bibliografia na matéria.
68
A ideia de razoabilidade remonta ao sistema jurídico anglo-saxão, tendo especial destaque no
direito norte-americano, como desdobramento do conceito de devido processo legal substantivo. O
princípio foi desenvolvido, como próprio do sistema do common law, através de precedentes
sucessivos, sem maior preocupação com uma formulação doutrinária sistemática. Já a noção de
proporcionalidade vem associada ao sistema jurídico alemão, cujas raízes romano-germânicas
conduziram a um desenvolvimento dogmático mais analítico e ordenado. De parte disso deve-se
registrar que o princípio, nos Estados Unidos, foi antes de tudo um instrumento de direito
constitucional, funcionando como um critério de aferição da constitucionalidade de determinadas
leis. Já na Alemanha, o conceito evoluiu a partir do direito administrativo, como mecanismo de
controle dos atos do Executivo. Sem embargo da origem e do desenvolvimento diversos, um e
outro abrigam os mesmos valores subjacentes: racionalidade, justiça, medida adequada, senso
comum, rejeição aos atos arbitrários ou caprichosos. Por essa razão, razoabilidade e
proporcionalidade são conceitos próximos o suficiente para serem intercambiáveis. Esse é o ponto
a
de vista que tenho sustentado desde a 1 . edição de meu Interpretação e aplicação da
Constituição, que é de 1995. No sentido do texto, v. por todos Fábio Corrêa Souza de Oliveira, Por
uma teoria dos princípios. O princípio constitucional da razoabilidade, 2003, p. 81 e ss. É certo, no
entanto, que a linguagem é uma convenção. E se nada impede que se atribuam significados
diversos à mesma palavra, com muito mais razão será possível fazê-lo em relação a vocábulos
distintos. Basta, para tanto, qualificar previamente a acepção com que se está empregando um
determinado termo. É o que faz, por exemplo, Humberto Ávila (Teoria dos princípios, cit.), que
explicita conceitos diversos para proporcionalidade e razoabilidade. Ainda na mesma temática,
Luís Virgílio Afonso da Silva (O proporcional e o razoável, RT 798/23) investe grande energia
procurando demonstrar que os termos não são sinônimos e critica severamente a jurisprudência
do STF na matéria.
O Começo da História
327
um resultado indesejado pelo sistema, assim fazendo a justiça do caso concreto.
I.6. Princípio da Efetividade
Consoante doutrina clássica, os atos jurídicos em geral, inclusive as
normas jurídicas, comportam análise em três planos distintos: os da sua
existência, validade e eficácia. No período imediatamente anterior e ao longo da
vigência da Constituição de 1988, consolidou-se um quarto plano fundamental de
apreciação das normas constitucionais: o da sua efetividade. Efetividade significa
a realização do Direito, a atuação prática da norma, fazendo prevalecer no mundo
dos fatos os valores e interesses por ela tutelados. Simboliza a efetividade,
portanto, a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever ser normativo
e o ser da realidade social 69. O intérprete constitucional deve ter compromisso
com a efetividade da Constituição: entre interpretações alternativas e plausíveis,
deverá prestigiar aquela que permita a atuação da vontade constitucional,
evitando, no limite do possível, soluções que se refugiem no argumento da não
autoaplicabilidade da norma ou na ocorrência de omissão do legislador.
II. Os Princípios Constitucionais Materiais: Uma Classificação
Uma classificação que tem se mostrado útil e parece ter resistido ao teste
do tempo é a que procura singularizar os princípios – princípios materiais, notese, e não mais instrumentais – de acordo com o seu destaque no âmbito do
sistema e a sua abrangência 70. Os princípios, ao expressar valores ou indicar fins
a serem alcançados pelo Estado e pela sociedade, irradiam-se pelo sistema,
interagem entre si e pautam a atuação dos órgãos de poder, inclusive a do
Judiciário na determinação do sentido das normas. Nem todos os princípios,
todavia, possuem o mesmo raio de ação. Eles variam na amplitude de seus
efeitos e mesmo no seu grau de influência. Por essa razão, podem ser agrupados
em três categorias diversas, que identificam os princípios como fundamentais,
69
Luís Roberto Barroso, O direito constitucional e a efetividade de suas normas, 2002.
Luís Roberto Barroso, Princípios constitucionais brasileiros (ou de como o papel aceita tudo),
RTDP 1/168.
70
328
Luís Roberto Barroso
gerais e setoriais.
II.1. Princípios Fundamentais
Os princípios fundamentais expressam as principais decisões políticas no
âmbito do Estado, aquelas que vão determinar sua estrutura essencial. Veiculam,
assim, a forma, o regime e o sistema de governo, bem como a forma de Estado.
De tais opções resultará a configuração básica da organização do poder
político 71. Também se incluem nessa categoria os objetivos indicados pela
Constituição como fundamentais à República 72 e os princípios que a regem em
suas relações internacionais 73. Por fim, merece destaque em todas as relações
públicas e privadas o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), que
se tornou o centro axiológico da concepção de Estado democrático de direito e de
uma ordem mundial idealmente pautada pelos direitos fundamentais.
II.2. Princípios Gerais
Os princípios constitucionais gerais, embora não integrem o núcleo das
decisões políticas que conformam o Estado, são importantes especificações dos
princípios fundamentais. Têm eles menor grau de abstração, sendo mais
facilmente determinável o núcleo em que operam como regras. Por tal razão,
prestam-se de modo corrente à tutela direta e imediata das situações jurídicas
que contemplam. Por serem desdobramentos dos princípios fundamentais,
irradiam-se eles por toda a ordem jurídica 74. A maior parte dos princípios gerais
71
E.g., princípio republicano (art. 1º, caput), princípio federativo (art. 1º, caput), princípio do Estado
democrático de direito (art. 1º, caput), princípio da separação de Poderes (art. 2º), princípio
presidencialista (art. 76), princípio da livre iniciativa (art. 1º, IV).
72
CF, art. 3º: construção de uma sociedade livre, justa e solidária, garantia do desenvolvimento
nacional, erradicação da pobreza e da marginalização, redução das desigualdades sociais e
regionais, promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação.
73
E.g., soberania, independência, autodeterminação dos povos, não intervenção e igualdade entre
os Estados (art. 4º, I, III, IV, V), defesa da paz, de solução pacífica dos conflitos e repúdio ao
terrorismo e ao racismo (art. 4º, VI, VII e VIII), prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II).
74
Exemplos de princípios gerais são: legalidade (art. 5°, II), liberdade (art. 5°, II e diversos incisos
do art. 5°, como IV, VI, IX, XIII, XIV, XV, XVI, XVII, etc), isonomia (art. 5°, caput e inciso I),
autonomia estadual e municipal (art. 18), acesso ao Judiciário (art. 5°, XXXV), juiz natural (art.5°,
XXXVII e LIII), devido processo legal (art. 5°, LIV). O elenco, naturalmente, não é exaustivo e
comportaria significativa ampliação, de acordo com o ponto de observação de cada um. Há
O Começo da História
329
concentra-se no art. 5º da Constituição, dedicado aos direitos e deveres
individuais e coletivos, o que apenas ratifica a equiparação doutrinária que se
costuma fazer entre direitos fundamentais e princípios 75.
II.3. Princípios Setoriais
Princípios setoriais ou especiais são aqueles que presidem um específico
conjunto de normas afetas a determinado tema, capítulo ou título da Constituição.
Eles se irradiam limitadamente, mas no seu âmbito de atuação são supremos. Por
vezes, são mero detalhamento dos princípios gerais, como os princípios da
legalidade tributária ou da reserva legal em matéria penal. Outras vezes são
autônomos, como o princípio da anterioridade em matéria tributária ou o do
concurso público para provimento de cargos na administração pública. Há
princípios especiais em domínios diversos, como os da Administração Pública 76,
organização dos Poderes 77, tributação e orçamento 78, ordem econômica 79 e
ordem social80.
características peculiares a esses princípios, em contraste com os que se identificam como
fundamentais. Notadamente, não têm caráter organizatório do Estado, mas sim limitativo de seu
poder, resguardando situações individuais.
75
Robert Alexy, Colisão e ponderação como problema fundamental da dogmática dos direitos
fundamentais, cit., p. 10: “As colisões dos direitos fundamentais acima mencionadas devem ser
consideradas segundo a teoria dos princípios como uma colisão de princípios. O processo para a
solução de colisões de princípios é a ponderação.”
76
E.g., legalidade administrativa (art. 37, caput), impessoalidade (art. 37, caput), moralidade (art.
37, caput), publicidade (art. 37, caput), concurso público (art. 37, II) e prestação de contas (arts.
70, parágrafo único, 34, VII, d, e 35, II);
77
E.g., majoritário (arts. 46 e 77, § 2°), proporcional (arts. 45, e 58, § 1°), publicidade e motivação
das decisões judiciais e administrativas (art. 93, IX e X), independência e imparcialidade dos juízes
(arts. 95 e 96) e subordinação das Forças Armadas ao poder civil (art. 142).
78
E.g., capacidade contributiva (art. 145, § 1°), legalidade tributária (art. 150, I), isonomia tributária
(art. 150, II), anterioridade da lei tributária (art. 150, III), imunidade recíproca das pessoas jurídicas
de direito público (art. 150, VI, a), anualidade orçamentária (art. 165, III), universalidade do
orçamento (art. 165, § 5°) e exclusividade da matéria orçamentária (art. 165, § 8°).
79
E.g., garantia da propriedade privada (art. 170, II), função social da propriedade (art. 170, III),
livre concorrência (art. 170, IV), defesa do consumidor (art. 170, V) e defesa do meio ambiente
(art. 170, VI).
80
E.g., gratuidade do ensino público (art. 206, IV), autonomia universitária (art. 207) e autonomia
desportiva (art. 217, I).
330
Luís Roberto Barroso
III. Modalidades de Eficácia dos Princípios 81
Examina-se, nesse tópico, os diferentes comportamentos exigíveis com
base nos princípios materiais. A eficácia é um atributo associado às normas e
consiste na consequência jurídica que deve resultar de sua observância, podendo
ser exigida judicialmente se necessário. A percepção de que também aos
princípios constitucionais deve ser reconhecida eficácia jurídica é fenômeno
relativamente recente, em comparação com as regras. De toda sorte, a doutrina
tem procurado expandir a capacidade normativa dos princípios através de dois
movimentos: aplicando, com as adaptações necessárias, a modalidade
convencional de eficácia jurídica das regras também aos princípios – é a eficácia
positiva
ou
simétrica
referida
abaixo
–
e
desenvolvendo
modalidades
diferenciadas, adaptadas às características próprias dos princípios – de que são
exemplo as três outras modalidades de eficácia apresentadas na sequência 82.
III.1. Eficácia Positiva ou Simétrica
Eficácia jurídica positiva ou simétrica é o nome pelo qual se convencionou
designar a eficácia associada à maioria das regras. Embora sua enunciação seja
bastante familiar, a aplicação da eficácia positiva aos princípios ainda é uma
construção recente. Seu objetivo, no entanto, seja quando aplicável a regras, seja
quando aplicável a princípios, é o mesmo: reconhecer àquele que seria
beneficiado pela norma, ou simplesmente àquele que deveria ser atingido pela
realização de seus efeitos, direito subjetivo a esses efeitos, de modo que seja
possível obter a tutela específica da situação contemplada no texto legal. Ou seja:
se os efeitos pretendidos pelo princípio constitucional não ocorreram – tenha a
norma sido violada por ação ou por omissão –, a eficácia positiva ou simétrica
pretende assegurar ao interessado a possibilidade de exigi-los diretamente, na via
judicial se necessário. Como se vê, um pressuposto para o funcionamento
81
Ana Paula de Barcellos, A eficácia jurídica dos princípios. O princípio da dignidade da pessoa
humana, 2002, p. 59 e ss.
82
Paulo Bonavides, Curso de direito constitucional, 1999, p. 254; Luís Roberto Barroso,
Interpretação e aplicação da Constituição, 2000, p. 146; e Ruy Samuel Espíndola, Conceito de
princípios constitucionais, 1999.
O Começo da História
331
adequado dessa modalidade de eficácia é a identificação precisa dos efeitos
pretendidos por cada princípio constitucional. A esse ponto se retornará adiante.
III.2. Eficácia Interpretativa
A eficácia interpretativa significa, muito singelamente, que se pode exigir do
Judiciário que as normas de hierarquia inferior sejam interpretadas de acordo com
as de hierarquia superior a que estão vinculadas. Isso acontece, e.g., entre leis e
seus
regulamentos
e
entre
as
normas
constitucionais
e
a
ordem
infraconstitucional como um todo. A eficácia interpretativa poderá operar também
dentro da própria Constituição, em relação aos princípios, embora eles não
disponham de superioridade hierárquica sobre as demais normas constitucionais,
é
possível reconhecer-lhes
uma
ascendência axiológica
sobre
o texto
constitucional em geral, até mesmo para dar unidade e harmonia ao sistema 83. A
eficácia dos princípios constitucionais, nessa acepção, consiste em orientar a
interpretação das regras em geral (constitucionais e infraconstitucionais), para
que o intérprete faça a opção, dentre as possíveis exegeses para o caso, por
aquela que realiza melhor o efeito pretendido pelo princípio constitucional
pertinente.
III.3. Eficácia Negativa
A eficácia negativa 84, por sua vez, autoriza que sejam declaradas inválidas
todas as normas ou atos que contravenham os efeitos pretendidos pela norma 85.
É claro que para identificar se uma norma ou ato viola ou contraria os efeitos
pretendidos pelo princípio constitucional é preciso saber que efeitos são esses.
Como já referido, os efeitos pretendidos pelos princípios podem ser relativamente
83
José Afonso da Silva, Aplicabilidade das normas constitucionais, 1998, p. 157 e ss; e Luís
Roberto Barroso, Interpretação e aplicação da Constituição, 2000, p. 141 e ss.
84
Sobre essa modalidade de eficácia, vejam-se: Jorge Miranda, Manual de direito constitucional,
vol. II, 1990, p. 220 e ss., e German J. Bidart Campos, La interpretacion y el control
constitucionales en la jurisdiccion constitucional, 1987, p. 238 e ss.; Celso Antônio Bandeira de
Mello, Eficácia das normas constitucionais sobre justiça social, RDP n° 57-58/243 e ss.; e José
Afonso da Silva, Aplicabilidade das normas constitucionais, 1998, p. 158 e ss.
85
No caso das normas, elas poderão ser consideradas revogadas ou não recepcionadas, casos
anteriores à promulgação da Constituição.
332
Luís Roberto Barroso
indeterminados a partir de certo núcleo; é a existência desse núcleo, entretanto,
que torna plenamente viável a modalidade de eficácia jurídica negativa. Imaginese um exemplo. Uma determinada empresa rural prevê, no contrato de trabalho
de seus empregados, penas corporais no caso de descumprimento de
determinadas regras. Ou sanções como privação de alimentos ou proibição de
avistar-se com seus familiares. Afora outras especulações, inclusive de natureza
constitucional, não há dúvida de que a eficácia negativa do princípio da dignidade
da pessoa humana conduziria tal norma à invalidade. É que nada obstante a
relativa indeterminação do conceito de dignidade humana há consenso de que em
seu núcleo central deverão estar a rejeição às penas corporais, à fome
compulsória e ao afastamento arbitrário da família.
III.4. Eficácia Vedativa do Retrocesso
A vedação do retrocesso, por fim, é uma derivação da eficácia negativa 86,
particularmente ligada aos princípios que envolvem os direitos fundamentais. Ela
pressupõe que esses princípios sejam concretizados através de normas
infraconstitucionais (isto é: frequentemente, os efeitos que pretendem produzir
são especificados por meio da legislação ordinária) e que, com base no direito
constitucional em vigor, um dos efeitos gerais pretendidos por tais princípios é a
progressiva
ampliação
dos
direitos
fundamentais 87.
Partindo
desses
pressupostos, o que a vedação do retrocesso propõe se possa exigir do Judiciário
é a invalidade da revogação de normas que, regulamentando o princípio,
concedam ou ampliem direitos fundamentais, sem que a revogação em questão
seja acompanhada de uma política substitutiva ou equivalente. Isto é: a
invalidade, por inconstitucionalidade, ocorre quando se revoga uma norma
infraconstitucional concessiva de um direito, deixando um vazio em seu lugar 88.
Não se trata, é bom observar, da substituição de uma forma de atingir o fim
86
A vedação do retrocesso enfrenta ainda alguma controvérsia, especialmente quanto à sua
extensão. Para uma visão crítica dessa construção, confira-se José Carlos Vieira de Andrade, Os
direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976, 1998, p. 307-311.
87
Na Carta brasileira, esse propósito fica claro tanto no art. 5°, § 2°, como no caput do art. 7°.
88
Cármen Lucia Antunes Rocha, O princípio da dignidade da pessoa humana e a exclusão social,
IP 4/41: “De se atentar que prevalece, hoje, no direito constitucional, o princípio do não-retrocesso,
segundo o qual as conquistas relativas aos direitos fundamentais não podem ser destruídas,
anuladas ou combalidas (...)”.
O Começo da História
333
constitucional por outra, que se entenda mais apropriada. A questão que se põe é
a da revogação pura e simples da norma infraconstitucional, pela qual o legislador
esvazia o comando constitucional, exatamente como se dispusesse contra ele
diretamente 89.
A atribuição aos princípios constitucionais das modalidades de eficácia
descritas acima tem contribuído decisivamente para a construção de sua
normatividade. Entretanto, como indicado em vários momentos no texto, essas
modalidades de eficácia somente podem produzir o resultado a que se destinam
se forem acompanhadas da identificação cuidadosa dos efeitos pretendidos pelos
princípios e das condutas que realizem o fim indicado pelo princípio ou que
preservem o bem jurídico por ele protegido.
IV. Algumas Aplicações Concretas dos Princípios Materiais
Não é possível, à vista do objetivo do presente estudo e das circunstâncias
de tempo e espaço, analisar o sentido, alcance, propriedades e particularidades
de cada uma das categorias e espécies de princípios assinalados acima.
Tampouco investigar o núcleo no qual cada um deles operará como regra e o
espaço remanescente no qual deverão ser ponderados entre si. Mas para
ilustração, antes do desfecho das ideias desenvolvidas, faz-se o destaque da
aplicação concreta dos princípios da dignidade humana 90 e do devido processo
legal 91, concluindo com breve apreciação do papel desempenhado pelo princípio
89
Sobre o tema, v. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da constituição, 1999, p.
327.
90
Ana Paula de Barcellos, A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da
dignidade da pessoa humana, 2002; Ingo Wolfgang Sarlet, Dignidade da pessoa humana e
direitos fundamentais, 2002; Fernando Ferreira dos Santos, O princípio constitucional da dignidade
da pessoa humana, 1999; Cleber Francisco Alves, O princípio constitucional da dignidade da
pessoa humana: o enfoque da doutrina social da Igreja, 2001; Fábio Konder Comparato, A
afirmação histórica dos direitos humanos, 2003; Alexandre de Moraes, Direitos humanos
fundamentais, 2002; Lúcia de Barros Freitas de Alvarenga, Direitos humanos, dignidade e
erradicação da pobreza; uma dimensão hermenêutica para a realização constitucional, 1998;
Joaquim B. Barbosa Gomes, O poder de polícia e o princípio da dignidade da pessoa humana na
jurisprudência francesa (ADVSJ 12-96/17); Cármen Lúcia Antunes Rocha, O princípio da
dignidade da pessoa humana e a exclusão social (IP 4/23); Antonio Junqueira de Azevedo,
Caracterização jurídica da dignidade da pessoa humana (RT 797:11); Valter Shuenquener de
Araújo, Hierarquização axiológica de princípios – relativização do princípio da dignidade da pessoa
humana e o postulado da preservação do contrato social (RPGERJ 55/82).
91
Ada Pellegrini Grinover, Antônio Carlos de Araújo Cintra e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria
geral do processo, 1998, p. 56.
334
Luís Roberto Barroso
da razoabilidade no âmbito do sistema.
O princípio da dignidade da pessoa humana identifica um espaço de
integridade moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua só existência no
mundo. É um respeito à criação, independentemente da crença que se professe
quanto à sua origem. A dignidade relaciona-se tanto com a liberdade e valores do
espírito como com as condições materiais de subsistência. Não tem sido singelo,
todavia, o esforço para permitir que o princípio transite de uma dimensão ética e
abstrata para as motivações racionais e fundamentadas das decisões judiciais.
Partindo da premissa anteriormente estabelecida de que os princípios, a despeito
de sua indeterminação a partir de certo ponto, possuem um núcleo no qual
operam como regras, tem-se sustentado que no tocante ao princípio da dignidade
da pessoa humana esse núcleo é representado pelo mínimo existencial. Embora
existam visões mais ambiciosas do alcance elementar do princípio 92, há razoável
consenso de que ele inclui pelo menos os direitos à renda mínima, saúde básica,
educação fundamental e acesso à justiça 93.
A percepção da centralidade do princípio chegou à jurisprudência dos
tribunais superiores, onde já se assentou que “a dignidade da pessoa humana,
um dos fundamentos do Estado democrático de direito, ilumina a interpretação da
lei ordinária” 94. De fato, tem ela servido de fundamento para decisões de alcance
diverso, como o fornecimento compulsório de medicamentos pelo Poder
Público 95, a nulidade de cláusula contratual limitadora do tempo de internação
hospitalar 96, a rejeição da prisão por dívida motivada pelo não pagamento de
juros absurdos97, o levantamento do FGTS para tratamento de familiar portador
do vírus HIV 98, dentre muitas outras. Curiosamente, no tocante à sujeição do réu
em ação de investigação de paternidade ao exame compulsório de DNA, há
92
Como, por exemplo, a que inclui no mínimo existencial o atendimento às necessidades que
deveriam ser supridas pelo salário mínimo, nos termos do art. 7°, IV, da Constituição, a saber:
moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social.
93
Ana Paula de Barcellos, A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: O princípio da
dignidade da pessoa humana, 2002, p. 247 e ss..
94
STJ, HC 9.892-RJ, DJ 26.3.01, Rel. orig. Min. Hamilton Carvalhido, Rel. para ac. Min. Fontes de
Alencar.
95
STJ, ROMS 11.183-PR, DJ 4.9.00, Rel. Min. José Delgado.
96
TJSP, AC 110.772-4/4-00, ADV 40-01/636, n° 98859, Rel. Des. O. Breviglieri.
97
STJ, HC 12547/DF, DJ 12.2.01, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar.
98
STJ, REsp. 249026-PR, DJ 26.06.00, Rel. Min. José Delgado.
O Começo da História
335
decisões em um sentido 99 e noutro 100, com invocação do princípio da dignidade
humana.
Quanto ao princípio do devido processo legal, embora seus corolários mais
diretos já estejam analiticamente previstos no texto constitucional e na legislação
infraconstitucional, tem sido aplicado de modo a gerar a exigibilidade de outros
comportamentos não explicitados. O princípio foi invocado para considerar, com
base nele, inválido o oferecimento de denúncia por outro membro do Ministério
Público, após anterior arquivamento do inquérito policial 101, entender ilegítima a
anulação de processo administrativo que repercutia sobre interesses individuais
sem observância do contraditório 102, reconhecer haver constrangimento ilegal no
uso de algemas quando as condições do réu não ofereciam perigo 103, para negar
extradição à vista da perspectiva de inobservância do devido processo legal no
país requerente 104 e para determinar fosse ouvida a parte contrária na hipótese de
embargos de declaração opostos com pedido de efeitos modificativos, a despeito
de não haver previsão nesse sentido na legislação 105.
Por fim, merece uma nota especial o princípio da razoabilidade, que tem
sido fundamento de decidir em um conjunto abrangente de situações, por parte de
juízes e tribunais, inclusive e especialmente o Supremo Tribunal Federal. Com
base nele tem-se feito o controle de legitimidade das desequiparações entre
pessoas, de vantagens concedidas a servidores públicos106, de exigências
desmesuradas formuladas pelo Poder Público 107 ou de privilégios concedidos à
Fazenda
Pública 108.
O
princípio,
referido
na
jurisprudência
como
da
proporcionalidade ou razoabilidade (v. supra), é por vezes utilizado como um
parâmetro de justiça – e, nesses casos, assume uma dimensão material –, porém,
99
STF, HC 71.373-RS, DJ 10.11.94, Rel. Min. Marco Aurélio.
TJSP, AC 191.290-4/7-0, ADV 37-01/587, n. 98580, Rel. Des. A. Germano.
101
STJ, HC 6.802-RJ, RT 755/569, Rel. Min. Vicente Leal.
102
STF, AI 199.620-55, DJ 14.8.97.
103
TJRS, RT 785/692, HC 70.001.561.562, Rel. Des. Silvestre Jasson Ayres Torres.
104
STF, Extr. 633-China, DJ 6.4.01, Rel. Min. Celso de Mello.
105
STF, AI 327728-SP, DJ 19.12.01, Rel. Min. Nelson Jobim.
106
STF, ADIn 1.158-8-AM, RDA 200/242, Rel. Min. Celso de Mello. A norma legal que concede ao
servidor vantagem pecuniária cuja razão de ser se revela absolutamente destituída de causa
(gratificação de férias) ofende o princípio da razoabilidade.
107
STF, ADIn 855-2-PR, RDA 194/299, Rel. Min. Sepúlveda Pertence. Viola o princípio da
razoabilidade e da proporcionalidade lei estadual que determina a pesagem de botijões de gás à
vista do consumidor.
108
STF, ADInMC 1.753-DF, DJ 12.6.98, Rel. Min. Sepúlveda Pertence.
100
336
Luís Roberto Barroso
mais comumente, desempenha papel instrumental na interpretação de outras
normas. Confira-se a demonstração do argumento.
O princípio da razoabilidade faz parte do processo intelectual lógico de
aplicação de outras normas, ou seja, de outros princípios e regras. Por exemplo:
ao aplicar uma regra que sanciona determinada conduta com uma penalidade
administrativa, o intérprete deverá agir com proporcionalidade, levando em conta
a natureza e a gravidade da falta. O que se estará aplicando é a norma
sancionadora, sendo o princípio da razoabilidade um instrumento de medida. O
mesmo se passa quando ele é auxiliar do processo de ponderação. Ao admitir o
estabelecimento de uma idade máxima ou de uma altura mínima para alguém
prestar concurso para determinado cargo público 109, o que o Judiciário faz é
interpretar o princípio da isonomia, de acordo com a razoabilidade: se o meio for
adequado, necessário e proporcional para realizar um fim legítimo, deve ser
considerado válido. Nesses casos, como se percebe intuitivamente, a
razoabilidade é o meio de aferição do cumprimento ou não de outras normas 110.
Uma observação final. Alguns dos exemplos acima envolveram a não
aplicação de determinadas regras porque importariam em contrariedade a um
princípio ou a um fim constitucional. Essa situação – aquela em que uma regra
não é em si inconstitucional, mas em uma determinada incidência produz
resultado inconstitucional – começa a despertar interesse da doutrina 111. O fato de
uma norma ser constitucional em tese não exclui a possibilidade de ser
inconstitucional in concreto, à vista da situação submetida a exame. Portanto,
uma das consequências legítimas da aplicação de um princípio constitucional
109
STF, RE 140.889-MS, DJ 15.12.00, Rel. Min. Marco Aurélio. V. tb. STF, RE 150.455-MS, DJ
7.5.99, Rel. Min. Marco Aurélio.
110
No mesmo sentido, v. Humberto Ávila, Teoria dos princípios (da definição à aplicação dos
princípios jurídicos), cit., p. 71: “[N]o caso em que o Supremo Tribunal Federal declarou
inconstitucional uma lei estadual que determinava a pesagem de botijões de gás à vista do
consumidor, o princípio da livre iniciativa foi considerado violado, por ter sido restringido de modo
desnecessário e desproporcional. Rigorosamente, não é a proporcionalidade que foi violada, mas
o princípio da livre iniciativa, na sua inter-relação horizontal com o princípio da defesa do
consumidor, que deixou de ser aplicado adequadamente.”
111
Normalmente, na linha da doutrina de Dworkin e Alexy, a ponderação se dá entre princípios.
Trata-se aqui, no entanto, de uma hipótese menos típica, mas possível, de ponderação entre
princípio e regra. Usualmente, a regra já espelhará uma ponderação feita pelo legislador e deverá
ser aplicada em toda a sua extensão, desde que seja válida. Mas a ponderação feita em tese pelo
legislador, assim como a pronúncia em tese de constitucionalidade pelo STF, pode não realizar a
justiça do caso concreto.
O Começo da História
337
poderá ser a não aplicação da regra que o contravenha 112.
Mas esse já é o começo de uma outra história.
Conclusão
Ao final dessa exposição, é possível compendiar algumas das principais
ideias desenvolvidas nas proposições que se seguem.
I. A interpretação constitucional tradicional assenta-se em um modelo de
regras, aplicáveis mediante subsunção, cabendo ao intérprete o papel de revelar
o sentido das normas e fazê-las incidir no caso concreto. Os juízos que formula
são de fato, e não de valor. Por tal razão, não lhe toca função criativa do Direito,
mas apenas uma atividade de conhecimento técnico. Essa perspectiva
convencional ainda continua de grande valia na solução de boa parte dos
problemas jurídicos, mas nem sempre é suficiente para lidar com as questões
constitucionais, notadamente a colisão de direitos fundamentais.
II. A nova interpretação constitucional assenta-se em um modelo de
princípios, aplicáveis mediante ponderação, cabendo ao intérprete proceder à
interação entre fato e norma e realizar escolhas fundamentadas, dentro das
possibilidades e limites oferecidos pelo sistema jurídico, visando à solução justa
para o caso concreto. Nessa perspectiva pós-positivista do Direito, são ideias
essenciais a normatividade dos princípios, a ponderação de valores e a teoria da
argumentação.
III. Pós-positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário
difuso, no qual se incluem o resgate dos valores, a distinção qualitativa entre
princípios e regras, a centralidade dos direitos fundamentais e a reaproximação
entre o Direito e a Ética. A estes elementos devem-se agregar, em um país como
o Brasil, uma perspectiva do Direito que permita a superação da ideologia da
desigualdade e a incorporação à cidadania da parcela da população deixada à
margem da civilização e do consumo. É preciso transpor a fronteira da reflexão
filosófica, ingressar na prática jurisprudencial e produzir efeitos positivos sobre a
112
Luís Roberto Barroso, Interpretação e aplicação da Constituição, post scriptum, 2003. Para
uma importante reflexão sobre o tema, v. Ana Paula Oliveira Ávila, Razoabilidade, proteção do
direito fundamental à saúde e antecipação de tutela contra a Fazenda Pública, Ajuris 86/361.
338
Luís Roberto Barroso
realidade.
IV. A ponderação de valores, interesses, bens ou normas consiste em uma
técnica de decisão jurídica utilizável nos casos difíceis, que envolvem a aplicação
de princípios (ou, excepcionalmente, de regras) que se encontram em linha de
colisão, apontando soluções diversas e contraditórias para a questão. O raciocínio
ponderativo, que ainda busca parâmetros de maior objetividade, inclui a seleção
das normas e dos fatos relevantes, com a atribuição de pesos aos diversos
elementos em disputa, em um mecanismo de concessões recíprocas que procura
preservar, na maior intensidade possível, os valores contrapostos.
V. A teoria da argumentação tornou-se elemento decisivo da interpretação
constitucional, nos casos em que a solução de um determinado problema não se
encontra previamente estabelecida pelo ordenamento, dependendo de valorações
subjetivas a serem feitas à vista do caso concreto. Cláusulas de conteúdo aberto,
normas de princípio e conceitos indeterminados envolvem o exercício de
discricionariedade por parte do intérprete. Nessas hipóteses, o fundamento de
legitimidade da atuação judicial transfere-se para o processo argumentativo: a
demonstração racional de que a solução proposta é a que mais adequadamente
realiza a vontade constitucional.
VI. A interpretação constitucional serve-se das categorias da interpretação
jurídica em geral, inclusive os elementos gramatical, histórico, sistemático e
teleológico. Todavia, as especificidades das normas constitucionais levaram ao
desenvolvimento de um conjunto de princípios específicos de interpretação da
Constituição, de natureza instrumental, que funcionam como premissas
conceituais, metodológicas ou finalísticas da aplicação das normas que vão incidir
sobre a relação jurídica de direito material. Esses princípios instrumentais são os
da supremacia da Constituição, da presunção de constitucionalidade, da
interpretação
conforme
a
Constituição,
da
unidade,
da
razoabilidade-
proporcionalidade e da efetividade.
VII. Os princípios constitucionais materiais classificam-se, em função do
seu status e do grau de irradiação, em fundamentais, gerais e setoriais. Dentre as
modalidades de eficácia dos princípios, merecem destaque a interpretativa – que
subordina a aplicação de todas as normas do sistema jurídico aos valores e fins
neles contidos – e a negativa, que paralisa a incidência de qualquer norma que
O Começo da História
339
seja com eles incompatível. É possível acontecer de uma norma ser constitucional
no seu relato abstrato, mas revelar-se inconstitucional em uma determinada
incidência, por contrariar o próprio fim nela abrigado ou algum princípio
constitucional.
VIII. A jurisprudência produzida a partir da Constituição de 1988 tem
progressivamente se servido da teoria dos princípios, da ponderação de valores e
da argumentação. A dignidade da pessoa humana começa a ganhar densidade
jurídica e a servir de fundamento para decisões judiciais. Ao lado dela, o princípio
instrumental da razoabilidade funciona como a justa medida de aplicação de
qualquer norma, tanto na ponderação feita entre princípios quanto na dosagem
dos efeitos das regras.
IX. A Constituição de 1988 tem sido valiosa aliada do processo histórico de
superação da ilegitimidade renitente do poder político, da atávica falta de
efetividade das normas constitucionais e da crônica instabilidade institucional
brasileira. Sua interpretação criativa, mas comprometida com a boa dogmática
jurídica, tem se beneficiado de uma teoria constitucional de qualidade e
progressista. No Brasil, o discurso jurídico, para desfrutar de legitimidade
histórica, precisa ter compromisso com a transformação das estruturas, a
emancipação das pessoas, a tolerância política e o avanço social.
340
Luís Roberto Barroso
A Jurisdição Constitucional e as Possibilidades
Hermenêuticas de Efetivação da Constituição:
Breve Balanço Crítico nos quinze anos da
Constituição Brasileira
Lenio Luiz Streck
Sumário: 1. A Pré-Compreensão Hermenêutica em Terra Brasilis: de
como pré-juízos inautênticos acerca do sentido da Constituição acarretam
prejuízos ao intérprete. 2. Sage mir Deine Einstellung zur
Verfassungsgerichtsbarkeit und ich sage Dir, man für einen
Verfassungsbegriff Du hast. 3. Em aportes finais: o constitucionalismo que
não morreu. A Constituição que (ainda) constitui. A necessidade de um
processo de resistência constitucional como compromisso ético dos
juristas.
1. A Pré-Compreensão Hermenêutica em Terra Brasilis: de como pré-juízos
inautênticos acerca do sentido da Constituição acarretam prejuízos ao
intérprete
No inesquecível romance “Cem Anos de Solidão”, Gabriel Garcia Marquez
relata que, na pequena Macondo, o mundo era tão recente que muitas coisas
careciam de nome e para mencioná-las precisava-se apontar com o dedo. Nossa
Constituição também é muito recente. Olhando a imensidão de seu texto, colhese a nítida impressão de que algumas coisas ainda não têm “nome”; os juristas
limitam-se – quando o fazem – a apontá-las com o dedo... Parecem “significantes”
à espera de “significações”! Isso ocorre pela ausência de uma adequada précompreensão, que é condição de possibilidade para todo e qualquer processo
interpretativo. Esse déficit pré-compreensivo, representado pela impossibilidade
de “atribuir-a-adequada-significação-ao-novo”, impede o acontecer (Ereignen) do
sentido (da Constituição). É nesse sentido que não podemos esquecer a valiosa
lição de Hans-Georg Gadamer, que sempre nos ensinou que a compreensão
implica uma pré-compreensão que, por sua vez, é pré-figurada por uma tradição
determinada em que vive o intérprete e que modela os seus pré-juízos!
Desse modo, o intérprete do direito (aqui entendido como o jurista lato
sensu) falará (d)o Direito a partir dos seus pré-juízos, enfim, de sua pré-
compreensão. Falará, com efeito, de sua situação hermenêutica 1. Essa précompreensão é produto da relação intersubjetiva que o intérprete tem no mundo e
com o mundo. O intérprete não interpreta do alto de uma relação sujeito-objeto.
Estará, sim, inserido sempre em uma situação hermenêutica, isto é, estará
sempre no entremeio de uma “situação linguística”, no interior da qual a
linguagem não é algo que esteja à sua disposição, circunstância que
inexoravelmente transformaria a atividade de interpretar em um ato voluntarista.
Ao contrário disso, o intérprete “pertence” a essa linguisticidade. Ele é refém da
linguagem.
A atividade hermenêutica ex-surge desse processo de (auto) compreensão.
Por isso, se hermenêutica é modo-de-ser e não um procedimento, sendo antes de
tudo, filosofia, ela não se limita, nas palavras de Gadamer 2, a prestar conta dos
procedimentos que a ciência aplica. Trata das questões que determinam todo o
saber e o fazer humanos, essas questões “máximas” que são decisivas para o ser
humano enquanto tal e para sua escolha do “bem”. Em definitivo, o mestre
alemão vai dizer que a hermenêutica não é uma mera disciplina auxiliar das
ciências românticas do espírito.
Nesse ponto, nada melhor do que deixar o próprio Gadamer colocar o dedo
na ferida narcísica da(s) metodologia(s): não se trata de averiguar o fundamento
último do entendimento, porque isso denunciaria com mais vigor a obsessão
cartesiana das ciências metodológicas contra as quais se põe em guarda a obra
“Verdade
e
Método”.
Ao
contrário,
trata-se
de
tomar
consciência
da
insondabilidade de qualquer tipo de experiência. Uma experiência hermenêutica
não é algo que podemos planejar e controlar em um laboratório, porque é algo
que nos ocorre, derruba-nos e obriga a pensar de outro modo 3.
Na contramão e à revelia dessa verdadeira revolução copernicana que
ocorreu no campo da filosofia (linguistic turn) e no Direito (advento do paradigma
do Estado Democrático de Direito, no interior do qual o Direito assume um papel
1
Conforme explicitado no decorrer da obra de Gadamer, o conceito de situação caracteriza-se
porque alguém não se encontra frente a ela e, portanto, não pode ter um saber objetivo dela; se
está nela, este alguém se encontra sempre em uma situação cuja iluminação é uma tarefa que
não pode ser desenvolvida por inteiro. Cfe. Gadamer, Hans-Georg. Verdad y Método I.
Salamanca: Ediciones Sígueme, 1994, p. 377 e segs.
2
Cfe. GADAMER, Hans-Georg. Wahrheit und Methode II. Tubingen: Mohr, 1990, p. 318-319.
3
Cfe. Gadamer, Hans-Georg. Una biografia. Barcelona: Herder, 2002, p. 376.
342
Lenio Luiz Streck
de transformação da realidade social, superando os paradigmas do Estado Social
e Liberal),
o estudo da hermenêutica jurídica no Brasil continuou – e continua
– atrelado aos cânones da hermenêutica clássica, no interior da
qual a linguagem é relegada a uma terceira coisa que se interpõe
entre um sujeito cognoscente (sic) e um objeto a ser conhecido
(sic). 4
Nesse paradigma (metafísico), a linguagem resume-se a algo que fica à
“disposição” do sujeito-intérprete. É, tão somente, veículo de conceitos (por isso,
para o senso comum teórico dos juristas, a Constituição – e sua linguagem
normativa – não constitui 5; é apenas uma ferramenta manipulável pelos
operadores do Direito). Foi essa questão, aliás, que levou Gadamer a fazer uma
crítica ao processo interpretativo clássico, que entendia a interpretação como
sendo produto de uma operação realizada em partes (subtilitas intelligendi,
subtilitas explicandi, subtilitas applicandi, isto é, primeiro conheço, depois
interpreto, para só então aplicar). Daí que a ruptura com o pensamento metafísico
que sustenta a hermenêutica clássica dá-se pela ideia de antecipação de sentido,
que ocorre no interior do círculo hermenêutico – ideia chave na hermenêutica
filosófica – no interior do qual o intérprete fala e diz o ser na medida em que o ser
se diz a ele, e cuja compreensão e explicitação do ser já exige uma compreensão
anterior. Consequentemente, a noção de círculo hermenêutico torna-se
absolutamente incompatível com a assim denominada – como quer a dogmática
jurídica – “autonomia” (sic) de métodos, cânones ou técnicas de interpretação
e/ou de seu desenvolvimento em partes ou em fases.
Para ser mais claro: o processo interpretativo não acontece aos pedaços,
em partes, em fatias. Interpretar é sempre aplicar 6. Não há uma subtilitas
intelligendi, que antecederia a uma subtilitas explicandi, para só então ocorrer “o
coroamento do processo hermenêutico” por intermédio dessa “terceira fase”
4
Para uma melhor compreensão acerca desta problemática, consultar STRECK, Lenio Luiz.
Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Uma Nova Crítica do Direito. 2ª. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2003, em especial cap. 5.
5
Sobre o constituir da Constituição, consultar Jurisdição Constitucional e Hermenêutica, op. cit.
6
Para uma discussão mais aprofundada sobre a hermenêutica de matriz gadamerianaheideggeriana, ver meu Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. 4ª. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2003.
A Jurisdição Constitucional e as Possibilidades Hermenêuticas de Efetivação da Constituição
343
denominada de subtilitas applicandi. Definitivamente, não! Fazer hermenêutica é
um ato de applicatio. Interpretar não é realizar um ato reprodutivo, em que o
intérprete desacopla sentidos de textos (Auslegung), mas, sim, um ato de
produção de sentido (Sinngebung).
Assim, o entendimento de que o processo interpretativo é feito por etapas
(fases ou “fatias”) implica inexoravelmente a crença em uma metodologia, o que,
a toda evidência, vai remeter-nos ao paradigma epistemológico da filosofia da
consciência 7. Não é por acaso que o senso comum teórico dos juristas (habitus)
inicia todas as discussões sobre hermenêutica jurídica reportando-se a um
“método” capaz de “garantir” uma espécie de “supervisão epistemológica” no
processo de compreensão.
Dito de outro modo: o pensamento dogmático do direito (sentido comum
teórico) continua acreditando na ideia de que o intérprete extrai o sentido da
norma, como se este estivesse contido na própria norma, enfim, como se fosse
possível extrair o sentido-em-si-mesmo. Trabalha, pois, com os textos no plano
meramente epistemológico, olvidando o processo ontológico da compreensão.
Clássico exemplo disso é a tese de Aníbal Bruno 8 (que é repetida em dezenas de
manuais e livros doutrinários), para quem interpretar a lei é penetrar-lhe o
verdadeiro e exclusivo sentido, sendo que, quando a lei é clara, a interpretação é
instantânea (in claris fit interpretatio). Conhecido o texto, diz Bruno, apreende-se
imediatamente o seu conteúdo, acreditando, assim, na busca do sentido primevo
da norma (texto jurídico), na medida em que falava na possibilidade de o
intérprete apreender “o sentido das palavras em si mesmas”. Por trás (e/ou
próximo) da concepção defendida por Bruno, que – ínsito – ainda impera no
interior do sentido comum teórico dos juristas, está, entre outras questões, a
teoria correspondencial da verdade e a crença de que existe uma natureza
intrínseca da realidade, tese que também pode ser encontrada em autores como
7
Entretanto, há que se ficar atento: no plano do sentido comum teórico existe um “algo mais” do
que a filosofia da consciência, representado pelo paradigma metafísico aristotélico-tomista, de
cunho dedutivista, ambos consubstanciando as práticas argumentativas dos operadores jurídicos.
Assim, na medida em que o processo de formação dos juristas tem permanecido associado a tais
práticas, tem-se como consequência a objetificação dos textos jurídicos, circunstância que, para a
interpretação constitucional, constitui forte elemento complicador/obstaculizador do acontecer
(Ereignen) da Constituição.
8
BRUNO, Aníbal. Direito Penal. Tomo I. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967, p. 198.
344
Lenio Luiz Streck
Maximiliano. Nesse caso, a linguagem tem um papel secundário, qual seja, a de
servir de veículo para a busca da verdadeira “essência” do Direito ou do texto
jurídico.
Aliás, a tradição hermenêutica inaugurada no Brasil por autores como
Maximiliano guarda similitude com a hermenêutica normativa de Emilio Betti, isto
é, uma hermenêutica que dá regras para a interpretação, as quais dizem tanto ao
objeto como ao sujeito da interpretação. Mais contemporaneamente, Maria
Helena Diniz 9 vai dizer que interpretar é descobrir o sentido e o alcance da norma,
procurando a significação dos conceitos jurídicos. Assim, para ela, interpretar é
explicar, esclarecer, dar o verdadeiro significado ao vocábulo; extrair, da norma,
tudo o que nela se contém, revelando seu sentido apropriado para vida real e
conducente a uma decisão. Daí ser facilmente perceptível nessa “busca do
verdadeiro sentido da norma” (sic) e na “revelação que deve ser feita pelo
intérprete” a (forte) presença da dicotomia sujeito-objeto, própria da filosofia da
consciência.
De uma forma mais genérica, é possível afirmar que, explícita ou
implicitamente, parcela expressiva da doutrina brasileira sofre influência da
hermenêutica de cunho objetivista de Emilio Betti, baseada na forma metódica e
disciplinada da compreensão, em que a própria interpretação é fruto de um
processo triplo que parte de uma abordagem objetivo-idealista. A interpretação é
sempre produto de um processo reprodutivo, pelo fato de interiorizar ou traduzir
para a sua própria linguagem objetificações da mente, através de uma realidade
que é análoga à que originou uma forma significativa. Assim, a atribuição de
sentido e a interpretação são tratados separadamente, uma vez que Betti acredita
que só isso vai garantir a objetividade dos resultados da interpretação.
Ora, uma hermenêutica que ainda se calque em métodos ou técnicas
interpretativas fica, sobremodo, debilitada no universo da viragem linguística. Daí
ser possível exprimir a firme convicção da fragilidade dos assim denominados
métodos ou técnicas de interpretação. Entre tantas críticas, vale lembrar a
contundente observação de Dallari, para quem o juiz/intérprete, ao utilizar “tantos
modelos de interpretação da lei”, considera-se exonerado de responsabilidade,
9
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. São Paulo: Saraiva, 1993, p.
384 e segs.
A Jurisdição Constitucional e as Possibilidades Hermenêuticas de Efetivação da Constituição
345
atribuindo ao legislador as injustiças que decorrem de suas sentenças. Vê-se
nessa assertiva de Dallari uma clara denúncia do alheamento provocado pela
objetificação metodológica. Com efeito, os assim denominados métodos ou
técnicas de interpretação tendem a objetificar o Direito, impedindo o questionar
originário da pergunta pelo sentido do Direito em nossa sociedade.
Assim, se o ato de interpretar depende de uma prévia compreensão e esta
tem como condição de possibilidade a pré-compreensão (Vorverständnis), que é
produto da condição de ser-no-mundo (faticidade e historicidade), parece óbvio
concluir que o intérprete/operador do Direito, quando fala do Direito ou sobre o
Direito, fala a partir do seu “desde-já-sempre”, o “já-sempre-sabido” sobre o
Direito, enfim, como o Direito sempre-tem-sido (é como ele “é” e tem sido
estudado
nas
faculdades,
reproduzido
nos
manuais
e
aplicado
quotidianamente)10. O mundo jurídico é, assim, pré-dado (e predado!) por esse
10
Não se pode ignorar o papel reprodutor desempenhado pelos cursos jurídicos, que continuam
assentados no dualismo “teoria e prática”. Assim, a teoria seria aquela “feita” nas academias,
enquanto a prática seria a atividade realizada na “efetiva aplicação do Direito”. Isso é facilmente
detectável nas salas de aula dos cursos jurídicos: os alunos desdenham as matérias ditas
“teóricas”, como filosofia, introdução ao estudo do Direito, sociologia jurídica etc., preferindo as
disciplinas “práticas” (direito processual civil, penal etc.). A proliferação dos “manuais práticos” dá
mostras da gravidade e da dimensão dessa problemática. Na verdade, o pensamento dogmático
do Direito não conseguiu escapar ainda do elemento central da tradição kantiana: o dualismo. É
por ele que fomos introduzidos no período da modernidade em uma separação entre consciência
e mundo, entre palavras e coisas, entre linguagem e objeto, entre sentido e percepção, entre
determinante e determinado, entre teoria e prática. Heidegger vai dizer que esses dualismos
somente puderam ser instalados através do esquecimento do ser, através da introdução de um
universo de fundamentação filosófica conduzida apenas pelo esquema da relação sujeito-objeto. É
essa relação sujeito-objeto que sustenta as dicotomias ou os dualismos que povoam o imaginário
dos juristas. Do mesmo modo, essa dualização metafísica dá azo à tese de que as faculdades
devem se dedicar, preferentemente, à formação de técnicos (o que isso significa ninguém
consegue explicar). Para isso, engendrou-se um imaginário positivista-normativista-formalista que
sustenta que o Direito é uma (mera) técnica (racionalidade instrumental). Esse processo é,
sobremodo, retroalimentado pelas escolas de preparação para concursos públicos de carreiras
jurídicas e pelo formato das provas desses concursos. Afinal, os “cursinhos” procuram ensinar o
que será perguntado nos concursos públicos. Forma-se, nesse contexto, um círculo vicioso, não
sendo temerário afirmar que aquele que não frequentar curso de preparação tem as suas chances
de aprovação sensivelmente reduzidas. Essa problemática repete-se nas provas de “Exame de
Ordem” realizadas pela OAB. Não se pode olvidar um outro fator que colabora para a crise do
ensino jurídico. Trata-se do alarmante aumento do número de faculdades de Direito no Brasil, a
ponto de existirem faculdades em cidades com não mais do que cinco mil habitantes. Muito
embora essa expansão ainda encontre respaldo no “mercado”, há um visível déficit no número de
docentes com capacidade para o adequado enfrentamento das demandas das salas de aula dos
mais de seiscentos cursos espalhados por todo o Brasil. Na medida em que o mercado necessita,
por determinação da LDB, de docentes com formação mínima em nível de mestrado, ocorre
igualmente um aumento no número de programas de pós-graduação. Por outro lado, os órgãos
institucionais, em face do aumento da demanda por mestres e doutores, diminuem drasticamente
os prazos para a defesa das dissertações de mestrado (vinte e quatro meses) e teses de
doutorado (trinta e seis meses), fatores que terão consideráveis reflexos na qualidade dos novos
docentes, que, muitas vezes, ingressam na carreira acadêmica com pouquíssima experiência.
346
Lenio Luiz Streck
sentido comum teórico, que é, assim, o véu do ser autêntico do Direito!
Isso tudo implica a necessidade de se ter claro que, diferentemente de
outras disciplinas (ou ciências), o Direito possui uma especificidade, que reside na
relevante circunstância de que a interpretação de um texto normativo – que
sempre ex-surgirá como norma – depende de sua conformidade com um texto de
validade superior. Trata-se da Constituição, que, mais do que uma matriz
privilegiada de sentido, é um fenômeno construído historicamente como produto
de um pacto constituinte, enquanto explicitação do contrato social.
Como os juristas respondem à pergunta “o que é isto, a Constituição?” A
resposta é complexa, porque vai depender das condições pré-compreensivas do
intérprete, de sua situação hermenêutica, enfim, de sua condição-de-ser-nomundo (faticidade e historicidade) e da capacidade de separar pré-juízos
autênticos de pré-juízos inautênticos. Ora, a tradição nos lega vários sentidos de
Constituição. Contemporaneamente, a evolução histórica do constitucionalismo
no mundo (mormente no continente europeu) trás à lume a noção de Constituição
enquanto detentora de uma força normativa, dirigente, programática e
compromissária. Desse modo, é exatamente a partir das possibilidades
hermenêuticas de compreensão desse fenômeno que poderemos dar sentido à
Constituição e à ligação umbilical desta com o Estado e a Sociedade no Brasil,
por exemplo. Mais do que isso, do sentido que temos de Constituição dependerá
o processo de interpretação dos textos normativos do sistema.
Não fica difícil concluir, a partir do que até aqui foi dito, que, sendo um
texto jurídico – cujo sentido, repita-se, estará sempre contido em uma norma que
é produto de uma atribuição de sentido – válido tão somente se estiver em
conformidade com a Constituição, a aferição dessa conformidade exige uma précompreensão (Vorverständnis) acerca do sentido de (e da) Constituição, que já se
Desse modo, forja-se um imaginário no interior do qual o ensino jurídico (de graduação e pósgraduação) tem a finalidade precípua de atender as demandas (imediatas) dos operadores (leia-se
“mercado”). Esse processo estabelece-se a partir da prática de uma “metodologia didáticocasuística”, que produz uma cultura estandardizada, dentro da qual o jurista vai trabalhar no seu
dia a dia com soluções e conceitos lexicográficos (que são transformados em “categorias”, como
se fossem “universais”, aptos ao exercício “dedutivo-subsuntivo” do “intérprete”), recheando, desse
modo, metafisicamente, suas petições, pareceres e sentenças com ementas (verbetes)
jurisprudenciais ahistóricas e atemporais. A proliferação de manuais jurídicos não pode ser
subestimada, uma vez que consubstanciam tanto as disciplinas jurídicas ministradas nas
faculdades de Direito como o processo de aplicação quotidiana do Direito.
A Jurisdição Constitucional e as Possibilidades Hermenêuticas de Efetivação da Constituição
347
encontra, em face do processo de antecipação de sentido, numa co-pertença
entre faticidade-historicidade do intérprete e Constituição–texto infraconstitucional.
Sob hipótese alguma, interpreta-se um texto jurídico (um dispositivo, uma lei etc.)
desvinculado da antecipação de sentido representado pelo sentido que o
intérprete tem da Constituição. É preciso, assim, des-cobrir o óbvio: o intérprete já
trás consigo o sentido de Constituição, com o que a norma que ex-surge do texto
(infraconstitucional) já vem filtrada hermeneuticamente (de forma adequada ou
inadequada, dependendo dos pré-juízos do intérprete)! Ou, dizendo de outro
modo: o intérprete não vislumbra textos infraconstitucionais nús (carentes de
sentido), para depois acoplar-lhes “capas de sentido originárias da Constituição”.
Não! Pensar assim é resvalar em direção aos dualismos próprios da metafísica
(essência e aparência, teoria e prática, palavra e coisa, questão de fato e questão
de direito etc). Em síntese, pensar assim é retornar à hermenêutica clássica
(lembremos, aqui, os três “momentos” representados pelas subtilitas intelligendi,
subtilitas explicandi, subtilitas applicandi de que fala Gadamer). O ato interpretativo é (sempre) um ato aplicativo, que não ocorre por subsunção e tampouco
por dedução, 11 mas, sim, em uma síntese hermenêutica, no interior do círculo
hermenêutico.
Isso significa poder afirmar que uma “baixa compreensão” acerca do
sentido da Constituição – naquilo que ela significa no âmbito do Estado
Democrático de Direito – inexoravelmente acarretará uma “baixa aplicação”,
problemática que não é difícil de constatar nas salas de aula de expressiva
maioria dos cursos jurídicos do país e na quotidianidade das práticas dos
operadores do Direito 12. Por isso, pré-juízos inautênticos (no sentido de que fala
11
Nesse sentido, ver o livro “Jurisdição Constitucional”, op.cit., em especial 5.8.
Alerte-se que até mesmo algumas posturas consideradas críticas do Direito, muito embora
procurem romper com o formalismo normativista (para o qual a norma é uma mera entidade
linguística), acabam por transferir o lugar da produção do sentido do objetivismo para o
subjetivismo; da coisa para a mente/consciência (subjetividade assujeitadora e fundante); da
ontologia (metafísica clássica) para a filosofia da consciência (metafísica moderna). Não
conseguem, assim, alcançar o patamar da viragem linguístico/hermenêutica, no interior da qual a
linguagem, de terceira coisa, de mero instrumento e veículo de conceitos, passa a ser condição de
possibilidade. Permanecem, desse modo, prisioneiros da relação sujeito-objeto (problema
transcendental), refratária à relação sujeito-sujeito (problema hermenêutico). Sua preocupação é
de ordem metodo-lógica e não ontológica (no sentido heideggeriano-gadameriano). A revolução
copernicana provocada pela viragem linguístico-hermenêutica tem o principal mérito de deslocar o
locus da problemática relacionada à “fundamentação” do processo compreensivo-interpretativo do
“procedimento” para o “modo de ser”. Muito embora a recepção da hermenêutica pelas diversas
concepções da teoria do direito é com a hermenêutica da faticidade de Gadamer, caudatário da
12
348
Lenio Luiz Streck
Gadamer) acarretam sérios prejuízos ao jurista!
As condições de possibilidades para que o intérprete possa compreender
um texto implicam – sempre e inexoravelmente – a existência de uma précompreensão (seus pré-juízos) acerca da totalidade (que a sua linguagem lhe
possibilita) do sistema jurídico-político-social. Desse belvedere compreensivo, o
intérprete formulará (inicialmente) seus juízos acerca do sentido do ordenamento
(repita-se, o intérprete jamais interpreta em tiras, aos pedaços, como bem alerta
Eros Grau). E sendo a Constituição o fundamento de validade de todo o sistema
jurídico – e essa é a especificidade maior da ciência jurídica –, de sua
interpretação/aplicação (adequada ou não) é que exsurgirá a sua (in)efetividade.
Calham, pois, aqui, as palavras de Konrad Hesse, para quem “resulta de
fundamental importância para a preservação e a consolidação da força normativa
da
Constituição
a
interpretação
constitucional,
a
qual
se
encontra
necessariamente submetida ao mandato de otimização do texto constitucional.”
Trata-se, pois, de problema fundamentalmente hermenêutico, muito bem
detectado, aliás, por Paulo Bonavides, para quem,
para agravar a crise das Constituições, verificou-se o emprego de
uma metodologia interpretativa que caiu prisioneira do formalismo
e do jusprivatismo. Foi, portanto, um equívoco, segundo Müller, a
recepção de regras artificiais de interpretação elaboradas pelo
positivismo e recolhidas da herança romanista de Savigny,
fazendo da realização do Direito e da concretização da norma
simples operação interpretativa de textos de norma.
Desse modo, partindo da tese de que hermenêutica é condição de ser no
mundo, de que hermenêutica é existência e de que o processo de interpretação
tem como condição de possibilidade a compreensão, em que o sentido já vem
antecipado pela pré-compreensão, a pergunta que se impõe é:
antimetafísica heideggeriana, que se dará o grande salto paradigmático, porque ataca o cerne da
problemática que, de um modo ou de outro, deixava a hermenêutica ainda refém de uma
metodologia, por vezes atrelada aos pressupostos da metafísica clássica e, por outras, aos
parâmetros estabelecidos pela filosofia da consciência (metafísica moderna). Enquanto tentativa
de elaboração de um discurso crítico ao normativismo, a metodologia limita-se a procurar traçar as
“regras” para uma “melhor” compreensão dos juristas (v.g. autores como Coing, Canaris e
Perelman), sem que se dê conta daquilo que é o calcanhar de Aquiles da própria metodologia (que
tem um cunho normativo): a da absoluta impossibilidade da existência de uma regra que
estabeleça o uso dessas regras, portanto, da impossibilidade da existência de um Grundmethode
(ver, nesse sentido, o livro “Jurisdição Constitucional”, op.cit, em especial cap. 5). Daí o
contraponto hermenêutico: o problema da interpretação é fenomenológico, é existencialidade.
A Jurisdição Constitucional e as Possibilidades Hermenêuticas de Efetivação da Constituição
349
Como é possível olhar o novo (texto constitucional de 1988) se os
nossos pré-juízos (pré-compreensão) estão dominados por uma
compreensão inautêntica do Direito, na qual, no campo do direito
constitucional, pouca importância tem sido dada ao estudo da
jurisdição constitucional?
Com efeito, nossos pré-juízos (campo jurídico ou habitus dogmaticus
brasileiro) estão tomados por um histórico de jurisdição constitucional pouco
favorável. Explicando melhor essa questão 13: tornado independente de Portugal,
a primeira Constituição brasileira – outorgada pelo Imperador D. Pedro I – não
estabeleceu controle de constitucionalidade stricto sensu. Inspirados (sic) no
modelo revolucionário francês, foi deixada ao Poder Legislativo a tarefa de
controlar a legalidade/constitucionalidade das leis. Consta que, em todo o período
colonial-imperial, que durou mais de 70 anos, somente em duas oportunidades foi
feito o referido “controle”. A mais alta Corte de justiça do Império era o Supremo
Tribunal de Justiça, composto de 17 juízes, que, na sua primeira composição,
teve cinco juízes portugueses de nascimento, e somente sete brasileiros natos.
Todos eles vieram das Cortes de Relação, consoante o disposto no art. 163 da
Constituição de 1824 e tinham o título de Conselheiros. A competência do
Tribunal estava restrita a conceder ou denegar recursos de revista, decidir
conflitos de jurisdição e conhecer os delitos e erros de ofício que cometessem os
seus ministros, os das Relações, os empregados no corpo diplomático e os
Presidentes das Províncias.
Desnecessário dizer que a falta da instituição de uma forma de
controle de constitucionalidade colocava a Constituição em um
plano secundário, sendo absolutamente ineficaz e inoperante o
modelo de “controle” legislativo por ela estabelecido.
Agregue-se a isso a forma de provimento dos cargos de Conselheiro do
Supremo Tribunal de Justiça, mormente nos primeiros anos: o Brasil tornara-se
independente, adotara uma nova Constituição, e os membros do mais alto tribunal
de justiça do Império eram originários das Cortes de Relação, isto é, eram
instituídos pelo colonizador!
13
Questão essa melhor constatada no livro “Jurisdição Constitucional e Hermenêutica”, op. cit.,
onde explicito o histórico do desenvolvimento do Direito e das instituições jurídicas brasileiras, do
descobrimento aos dias atuais.
350
Lenio Luiz Streck
Como se isso não bastasse, com o advento da República, importamos o
sistema de controle difuso jurisdicional vigorante nos Estados Unidos.
Lamentavelmente, os republicanos brasileiros não atentaram para o relevante fato
de que os Estados Unidos dispunham de uma fórmula advinda da tradição inglesa
– o stare decisis – de conceder efeito erga omnes, próprio do sistema jurídico da
common law, às decisões da Suprema Corte julgadas em grau de recurso. Por
incrível que possa parecer, em plena República, durante quarenta e três anos
ficamos sob os auspícios de um sistema de controle jurisdicional difuso que
somente funcionava inter partes.
Não se deve deixar de registrar que, muito embora tenhamos ingressado
na República, o Supremo Tribunal Federal, que veio a substituir o Supremo
Tribunal de Justiça do Império, foi composto por juízes do velho regime, sem
conhecimento e experiência acerca do que era o controle jurisdicional de
constitucionalidade. Os ministros do novo Supremo Tribunal Federal foram
nomeados quarenta e oito horas após a promulgação da Constituição e instalados
quatro dias após no edifício da Relação, na rua do Lavradio, no Rio de Janeiro.
Aproveitou-se a maior parte do Supremo Tribunal de Justiça da Monarquia,
inclusive quatro Conselheiros septuagenários, sete sexagenários e apenas quatro
com menos de sessenta anos. Alguns deles eram Viscondes e Barões (sic) 14.
O avanço representado pela Constituição de 1934 tão somente teve o
condão de fazer com que as decisões do STF em sede de controle difuso fossem
remetidas ao Senado (como ocorre hoje com o art. 52, X), cuja consequência era
de, uma vez suspensa a execução da lei, conceder eficácia erga omnes à
decisão. Ademais, tirante o período da ditadura Vargas, no qual houve retrocesso
no campo do controle de constitucionalidade – o Poder Legislativo podia, por voto
de dois terços, revogar a decisão de inconstitucionalidade tomada pelo Supremo
Tribunal Federal –, a Constituição de 1946 não trouxe qualquer avanço no plano
da jurisdição constitucional. Tivemos que esperar até o ano de 1965 para que
passássemos a ter um modo de conceder efeito erga omnes às decisões em
14
Ver, para tanto, BALEEIRO, Aliomar. O Supremo Tribunal Federal. Esse outro desconhecido.
Rio de Janeiro: Forense, 1968, p. 22 e segs.
A Jurisdição Constitucional e as Possibilidades Hermenêuticas de Efetivação da Constituição
351
ações (representações) de inconstitucionalidade (EC 16/65) 15. Ou seja, muito
embora no final dos anos 50 já se falasse em controle direto de
constitucionalidade do direito estadual naquilo que diz respeito aos princípios
sensíveis, somente no ano de 1965 inaugura-se o controle objetivo concentrado
de constitucionalidade no país.
Em face de tudo isso, fazendo um breve inventário, não é temerário afirmar
que não há muito a comemorar em termos de jurisdição constitucional no Brasil.
Afinal de contas, excluindo o período imperial (1822-1889), em que sequer falouse em controle de constitucionalidade, os primeiros cinquenta anos da República
não representaram contribuição significativa para o aprimoramento da jurisdição
constitucional. A isso se deve agregar que mesmo a inovação consistente na
remessa da decisão do Supremo Tribunal Federal para o Senado (1934) não
representou grandes avanços, mormente se compararmos os modelos brasileiros
com os sistemas de controle de constitucionalidade vigorantes no resto do
mundo.
Com isso, explica-se parte da crise constitucional brasileira, isto é, a pouca
importância dada ao direito constitucional e ao próprio texto constitucional,
mormente se levarmos em conta o novo modelo de Estado Democrático de
Direito estabelecido pela Constituição de 1988, que seguiu os modelos de
Constituições dirigentes e compromissárias do segundo pós-guerra.
A partir disso, é possível afirmar que, no campo jurídico brasileiro, esses
pré-juízos, calcados em uma história que tem relegado o direito constitucional a
um plano secundário, constituem um fenômeno que se pode denominar de “baixa
constitucionalidade”, que, hermeneuticamente, estabelece o limite do sentido e o
sentido do limite de o jurista dizer o Direito, impedindo, consequentemente, a
manifestação do ser (do Direito). Um dos fatores que colabo(ra)ram para a pouca
importância que se dá à Constituição deve-se ao fato de que as Constituições
brasileiras, até o advento da atual, sempre haviam deixado ao legislador a tarefa
de fazer efetivos os valores, direitos ou objetivos materiais contidos no texto
constitucional, que, com isso, transformava-se, porque assim era entendida, em
15
Ressalvo, por óbvio, a assim denominada ação “direta de inconstitucionalidade” destinada a
proceder a intervenção nos Estados (ação direta interventiva), que tinha, como se verá mais
adiante, limites e contornos bem definidos, não servindo, nem de longe, para solucionar o
problema em debate.
352
Lenio Luiz Streck
mero programa, uma mera lista de propósitos.
O legislador ordinário erigia-se em dono absoluto dos conteúdos da
Constituição, podendo desenvolvê-los com maior ou menor amplitude, ou,
inclusive, desconhecê-los, sem que nem os cidadãos e nenhum outro órgão do
Estado pudessem ser capazes de reprovar tais comportamentos. Na prática – e
isso não é difícil de constatar – em que pese as várias Constituições que tivemos,
sempre prevaleceram os Códigos (Civil, Comercial, Penal etc.). Mesmo com o
advento da Constituição de 1988, ainda é considerável o movimento de refração
ao novo texto, mormente naquilo que ele tem de ab-rogante e no seu papel de
filtragem hermenêutica. Nesse sentido, veja-se a importância que teve o processo
de derrogação das normas fascistas (anteriores a 1948) feito pelo Tribunal
Constitucional italiano 16.
É por isso que Hesse vai dizer que não é possível interpretar sem uma
prévia teoria da Constituição, isso porque para compreender a norma é preciso
uma teoria constitucional. Na verdade, esta resulta igualmente necessária para
compreender, caso a caso, a realidade em que deve ser aplicado o texto da
Constituição. 17
Em síntese: não há como negar que a ausência de uma adequada
compreensão do novo paradigma do Estado Democrático de Direito torna-se fator
decisivo para a inefetividade dos valores constitucionais. Acostumados com a
resolução de problemas de índole liberal-individualista e com posturas
privatísticas que ainda comandam os currículos dos cursos jurídicos (e os
manuais jurídicos), os operadores do Direito não conseguiram, ainda, despertar
para o novo. O novo (Estado Democrático de Direito) continua obscurecido pelo
velho paradigma, sustentado por uma dogmática jurídica entificadora. Dizendo de
outro modo: ocorreu uma verdadeira revolução copernicana na filosofia, no direito
constitucional e na ciência política, que ainda não foi suficientemente
recepcionada pelos juristas brasileiros.
16
Conferir em BONIFÁCIO, Francisco P. Constitucionalidad, legislacion regresiva y civilidad
jurídica. In: Division de poderes e Interpretacion. Hacia una teoria de la prazis constitucional.
Madrid: Tecnos, 1987, p. 81. Também em La Quadra, op. cit., p. 134.
17
Cfe. HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1983.
A Jurisdição Constitucional e as Possibilidades Hermenêuticas de Efetivação da Constituição
353
2. Sage mir Deine Einstellung zur Verfassungsgerichtsbarkeit und ch sage
Dir, man für einen Verfassungsbegriff Du hast 18
A frase título foi dita por Werner Kägi, no longínquo ano de 1945. Contudo,
tal advertência ainda hoje encontra ressonância quando se pretende discutir a
problemática referente à (in)efetividade da Constituição no Brasil. A tradição de
“baixa constitucionalidade” está diretamente relacionada com uma prática self
restraint de jurisdição constitucional em nosso país. Com efeito, já no nascedouro
da República, era possível identificar claramente a dificuldade com que a nossa
Suprema Corte lidava com o controle de constitucionalidade das leis, valendo
para tanto acompanhar os passos da luta travada por Rui Barbosa na busca
desse desiderato. Ao depois, a insistência do STF em entender que a
Constituição de 1891 não lhe outorgara um judicial control pleno, mas apenas um
judicial control restrito à apreciação de inconstitucionalidades de leis estaduais:
O Supremo Tribunal Federal brasileiro em parte obedeceu às
lições do seu paradigma norte-americano. Mas, no regime
instituído em 1889, e sem que houvesse formal determinação
daquele atributo na Carta Federal, não podia esse tribunal que
herdara a tradição do judiciário do Império, criar e engrandecer um
princípio que se não harmonizava com as nossas praxes
políticas... qual o da jurisprudência a derrubar a lei, contra a
autoridade, em favor dos direitos individuais 19.
Por isso, chegou-se a pensar que essa “anomalia” (judicial control restrito à
apreciação de leis estaduais) somente teria sido corrigida em 1894, com a
promulgação da Lei n° 221, que, em seu art. 13, § 10, dizia que “os juízes e
tribunais apreciarão a validade das leis e regulamentos e deixarão de aplicar aos
casos ocorrentes as leis manifestamente inconstitucionais e os regulamentos
manifestamente incompatíveis com as leis ou a Constituição”. Ocorre que a
competência de apreciar inconstitucionalidades de leis estaduais e federais,
18
“Diz-me tua posição quanto à jurisdição constitucional e eu te direi o que entendes por
Constituição”. Cfe. KÄGI, Werner. Die Verfassung als rechliche Grundordnung des Saates.
Untersuchungen über die Entwicklungstendenz im modernen Verfassungsrecht. Zurich:
Polygraphischer Verlag, 1945, p. 147.
19
Cfe. CALMON, Pedro. Curso de Direito Constitucional Brasileiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,
1937, p. 187.
354
Lenio Luiz Streck
outorgada ao Supremo Tribunal e aos juízes 20, já estava expressa no preâmbulo
do Decreto nº 848, que criou a Justiça Federal. Isto é, antes mesmo de o
Supremo Tribunal ser criado, essa prerrogativa já existia, baseada no caso
Marbury versus Madison.
Além das dificuldades dos primeiros anos, decorrentes, dentre outras
razões, da própria formação dos seus membros, outro problema assolou o
Supremo Tribunal, que, lamentavelmente, somente foi solucionado com a reforma
de 1926. Com efeito, em face da inexistência de uma clara explicitação na
Constituição, o Supremo Tribunal entendeu que a ele não competia uniformizar a
interpretação do direito substantivo, quando do exame dos recursos que lhe
chegassem dos tribunais. No fundo, com essa posição, o Supremo Tribunal pouco
diferia do Supremo Tribunal de Justiça do Império, ficando indiferente às múltiplas
e contraditórias interpretações que às leis uniformes do país davam as Relações
revisoras, decidindo em última e derradeira instância. Releva notar que os
próprios defensores dessa tese restritiva confessavam os males que esse
procedimento causava ao país, tornando os tribunais locais onipotentes. Essa
discussão já aparece no início do século XX. A respeito do tema, dizia Rui:
Seria um absurdo que, reservando-se a função de legislar acerca
do direito civil, comercial e penal, entregasse a União esse direito,
criação sua, à variedade de interpretações da justiça dos Estados,
sem lhe opor ao menos, em última instância, um corretivo, uma
garantia de unificação 21.
20
Mesmo já sob a vigência da Lei nº 221, o exercício do controle difuso de constitucionalidade
custou ao juiz gaúcho Alcides de Mendonça Lima uma condenação, em primeira instância, por ter
deixado de aplicar a Lei nº 10, de 16.12.1895, na parte referente às recusas de jurados e ao voto a
descoberto, mandando observar em tais pontos a lei antiga. Denunciado pelo crime previsto no
o
o
o
art. 207, §1 , do Código Penal, com as agravantes do art. 39, §§ 2 e 4 , Mendonça Lima foi
condenado à pena de nove meses de suspensão do cargo, em acórdão lavrado na sessão de
10.02.1897, pelo Superior Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apreciando a
matéria, rendeu-se o Supremo Tribunal Federal à argumentação de seu advogado, Rui Barbosa:
reconheceu que o acusador, declarando nula, em parte, por inconstitucional, a lei rio-grandense, e
deixando de aplicá-la, não excedera os limites das funções de seu cargo; pelo contrário, exerceraas regularmente: “Os juízes estaduais, assim como os federais, têm faculdade para, no exercício
das funções deixarem de aplicar as leis inconstitucionais, como é expresso na Constituição da
o
República, art. 59, nº 3, Lei n. 221, de 20 de novembro de 1895, art. 8 (...)”. Cfe. NEQUETE,
Lenine. O Poder Judiciário no Brasil a partir da Independência. II – república. Porto Alegre: Sulina,
1973, p. 20 e segs.
21
É necessário referir que juristas como Carlos Maximiliano, muito embora crítico contumaz do
uso da interpretação literal, optou por este método, ao sustentar que não havia autorização no
texto da Constituição de 1891 para a uniformização da jurisprudência. Nesse sentido, ver seu
Commentários à Constituição de 1891. Rio de Janeiro: Forense, 1930, p. 660 e segs.
A Jurisdição Constitucional e as Possibilidades Hermenêuticas de Efetivação da Constituição
355
Em acórdão de 11.07.1908, o Ministro Pedro Lessa votou vencido, acatando a
tese de Rui. O Supremo Tribunal, entretanto, não anuiu à doutrina. Ainda em
28.08.1918, o Tribunal deixou assentado que, se a justiça local interpretava os
preceitos da lei substantiva, quaisquer que fossem os defeitos dessa
interpretação (sic), não se ensejava o recurso extraordinário. Essa posição foi
ratificada em 30.12.1922, sendo necessário que o país aguardasse a reforma de
1926, para que se pudesse ter a uniformização da jurisprudência 22.
Vê-se, assim, que aquilo que desde o nascedouro da República estava
implícito no Decreto nº 848 e que, mais do que qualquer coisa, era ingrediente
importante para a afirmação do sistema federativo, somente ganhou forma a partir
de uma emenda constitucional. Dito de outro modo, o Supremo Tribunal Federal,
criado pelos republicanos para ser uma instituição para a manutenção da união
nacional, como um autêntico tribunal da federação23, ao não elaborar um
processo hermenêutico mais “agressivo/criativo” pelo qual se autoconcedesse a
competência para uniformizar a jurisprudência, colaborou para o enfraquecimento
institucional do País 24. Nesse sentido, a denúncia do Ministro Pedro Lessa (que
votava vencido, entendendo que essa prerrogativa estava estampada na ideia de
federação e na própria exposição de motivos do Decreto nº 848), dizendo que se
estava diante de um “manifesto desacato ao Poder Legislativo da União” e de um
“desrespeito
a
autoridade
22
da
Federação”.
De
fato,
é
absolutamente
Ver, para tanto, NEQUETE, O Poder Judiciário, op. cit., p. 26 e segs; SODRÉ, Moniz. O Poder
Judiciário na Reforma Constitucional, 1943, p. 180 e segs; NUNES, Castro. Teoria e Prática do
Poder Judiciário. 1929, p. 20 e segs.
23
Daí a nítida inspiração que o constituinte brasileiro de 1890 buscou no judicial review norteamericano, que, muito embora não estivesse previsto como figura constitucional stricto sensu,
nasce da própria lógica que preside a natureza da Constituição, uma vez que o pacto federativo
que ela exprimia reclamava um tertius para a limitação dos poderes exercidos por cada
“departamento do governo” ao lado da proteção das “liberdades” dos Estados, implicando que o
governo de leis assumisse a forma de um complexo empreendimento entre diferentes
competências e prerrogativas. Cfe. VIANNA, Luiz Werneck. Revolução processual do Direito e
democracia progressiva. In: VIANNA, Luiz Werneck (Org.). A democracia e os três poderes. Rio de
Janeiro: UFMG, IUPERJ, FAPERJ, 2002, p. 365.
24
Muito embora tais fatos apontem para o enfraquecimento do sistema federativo, autores como
Leda Boechat Rodrigues apontam na direção contrária. Nesse sentido, diz a autora, num momento
em que o Presidente Campos Sales inaugurava a chamada política dos governadores e
proclamava a soberania dos Estados ao lado da soberania da União, o STF, através do exercício
do controle da constitucionalidade das leis estaduais, funcionou de certo modo como um fator de
equilíbrio do sistema federal: “Sem a sua ação vigilante e corretiva – entregues como estavam os
Estados aos desmandos de uma legislação antinacional e perturbadora do livre fluxo do comércio
interestadual – provavelmente o federalismo, como a democracia, teria também funcionado de
maneira ainda mais defeituosa no Brasil e se teriam agravado ainda mais os problemas
econômicos, já excepcionalmente graves, de todo o País”.
356
Lenio Luiz Streck
incompreensível que o sistema federativo convivesse com um sistema jurídico
que não contemplasse uma instância de concentração, de reparação, de
uniformização da jurisprudência. Parafrazeando as palavras de Rui: sendo o
direito entre nós obra da União, ele não podia, sob qualquer hipótese, sob pena
de colocar em risco o sistema federativo, ficar sem reserva à mercê dos Estados.
Apesar disso – e não são poucas as críticas feitas ao Supremo Tribunal
Federal no decorrer de sua história 25 –, não se pode olvidar a importante atuação
da Suprema Corte no campo da defesa das liberdades civis, mormente se forem
levados em conta os tempos sombrios dos primeiros anos da República, que, já
sob a vigência da nova Constituição, sofreu o primeiro golpe de Estado em 3 de
novembro de 1891 – comandado pelo mesmo militar que fora um dos corifeos da
Proclamação da República – e um contra-golpe do Marechal Floriano, vinte dias
depois 26.
Afinal de contas, séculos de escravidão e de exclusão social,
aliados à ausência, durante o período imperial, de um sistema
judiciário que pautasse suas ações na defesa dos direitos
individuais, forjaram uma sociedade autoritária, cujas sequelas
podem ser sentidas ainda na aurora do século XXI.
De qualquer sorte, releva notar que, em vários momentos, as decisões do
ainda jovem Tribunal causaram a ira dos governantes27.
25
Assim, veja-se, por todos, as críticas de João Mangabeira, para quem o STF foi o poder que
mais falhou na República, e de José Honório Rodrigues, ao asseverar que, dentre os Poderes no
Brasil, “o Executivo foi sempre mais progressista e mais receptivo às aspirações populares; o
Congresso mais antirreformista e mais retardatário; a Justiça esteve sempre a favor das forças
dominantes”. Cfe. RODRIGUES, José Honório. História do Supremo Tribunal, op. cit., p. 5; e, do
mesmo autor, Conciliação e Reforma no Brasil. Um desafio histórico-político. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1965, p. 14 e 125.
26
Observe-se a complexidade da situação, a partir do fato de dois Ministros do STF, Barão de
Lucena e Tristão de Araripe, terem apoiado o golpe de Estado chefiado pelo Marechal Deodoro.
27
Com efeito, quando o STF, em 1893, declarou a nulidade do Código Penal da Marinha, Aristides
Lobo, líder governista, escreveu que o Tribunal incorrera em crime de abuso de autoridade. E
tendo o Tribunal despertado a ira política de Floriano Peixoto, em razão daquele julgamento, ficou
meses sem funcionar, porque Floriano não provia as vagas que iam ocorrendo, além de recusarse a dar posse ao Presidente eleito do Tribunal. No final do quatriênio do Presidente Prudente de
Morais, ao firmar, em rumoroso habeas corpus, o princípio das imunidades parlamentares durante
o estado de sítio, não somente o STF foi criticado em mensagem presidencial, como sofreu
violenta campanha da imprensa governista. Acontecimentos ligados à revolução federalista
iniciada no Rio Grande do Sul, em fevereiro de 1893, ensejariam novos julgamentos de enorme
repercussão pela Suprema Corte. Em 19.09.1895, julgando a apelação cível nº 112, em que era
apelado o Mal. José de Almeida Barreto, reformado contra a sua vontade, o STF estabeleceu que
“é nulo o ato do Poder Executivo que reforma forçadamente um oficial militar, fora dos casos
previstos em lei.” De forma similar, o acórdão proferido na Apelação Cível nº 148, do mesmo ano
A Jurisdição Constitucional e as Possibilidades Hermenêuticas de Efetivação da Constituição
357
Entretanto, como anteriormente referido, já no nascedouro da República
havia um problema que afetava, sobremodo, as possibilidades do florescimento
de uma jurisdição constitucional mais efetiva no Brasil: a ausência de um
mecanismo para dar efeito erga omnes às decisões oriundas do controle de
constitucionalidade, problema que somente foi percebido no processo constituinte
de 1933/34, sem, contudo, a necessária suficiência 28, uma vez que sanado tão
somente no ano de 1965, com a implantação (tardia) do controle concentrado de
constitucionalidade.
Afora
esses
problemas,
muitos
deles
originários
de
uma
baixa
funcionalidade do sistema jurídico, imbricados com um histórico déficit de
democracia decorrente de sucessivos golpes de Estado,
é necessário ressaltar que mais contemporaneamente não é mais
possível colocar a culpa na falta de democracia ou em um virtual
déficit funcional da forma de controle de constitucionalidade, isso
porque a Constituição de 1988 colocou à disposição da
comunidade jurídica talvez o mais rico e completo sistema de
controle de constitucionalidade do mundo, bastando para tanto
examinar os múltiplos mecanismos aptos para o exercício do
controle difuso e concentrado da constitucionalidade das leis.
O Brasil, junto com Portugal, é um dos poucos países que adotam o controle
difuso misto com o concentrado. Assim, no controle difuso, qualquer juiz pode
deixar de aplicar uma lei (até mesmo emenda constitucional) se entendê-la
inconstitucional; nos tribunais, o controle difuso funciona a partir da suscitação do
respectivo incidente de inconstitucionalidade 29. Nesse sentido, não se pode
de 1895. Outro julgamento de repercussão diz respeito à inconstitucionalidade do Decreto
Legislativo nº 310, de 21.10.1895, que concedeu anistia, com restrições, às pessoas envolvidas
em movimentos revolucionários ocorridos até 23.08.1895, o que fez com que o parlamento, em
1898, editasse lei suprimindo as aludidas restrições. O STF também cuidou do fortalecimento da
liberdade de reunião e dos limites do poder de polícia, quando concedeu habeas corpus a favor
dos membros do Centro Monarquista de São Paulo, no ano de 1897. Cfe. RODRIGUES, História
do Supremo Tribunal, I, op. cit., p. 5 e segs.; também COSTA, Edgard. Os grandes julgamentos do
STF. 1892 a 1962. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964.
28
Não considero que a instituição do mecanismo da remessa ao Senado das decisões de
inconstitucionalidade proferidas pelo STF no controle difuso – e só havia essa modalidade de
controle até 1965 – tenha representado o avanço que muitos constitucionalistas proclamavam. Na
verdade, é pífio o número de decisões remetidas pelo STF ao Senado nesses quase 70 anos, do
mesmo modo como é inexpressivo o número de Resoluções suspensivas expedidas por aquela
Casa legislativa.
29
Observe-se a dispensa dessa suscitação em alguns casos, consoante previsão do art. 481,
parágrafo único, do CPC. Quanto à constitucionalidade dessa previsão legal, remeto o leitor ao
livro “Jurisdição Constitucional e Hermenêutica”, op.cit., cap. 10.
358
Lenio Luiz Streck
olvidar o expressivo leque de ações constitucionais aptas à provocação do exame
da inconstitucionalidade de atos normativos in concreto (mandado de segurança,
ação civil pública, habeas corpus, mandado de injunção, para citar algumas). Para
o exercício do controle concentrado, há a ação direta de inconstitucionalidade, a
ação
de
inconstitucionalidade
por
omissão,
a
ação
declaratória
de
constitucionalidade – inserida na CF por emenda constitucional – e a arguição de
descumprimento de preceito fundamental.
Muito embora todo esse elenco de possibilidades de controle de
constitucionalidade, a jurisdição constitucional ainda está longe de assumir o
papel que lhe cabe no Estado Democrático de Direito, mormente se entendermos
que a Constituição brasileira tem um nítido perfil dirigente e compromissário.
Desse modo, fazer jurisdição constitucional não significa restringir o processo
hermenêutico ao exame da parametricidade formal de textos infraconstitucionais
com a Constituição. Trata-se, sim, de compreender a jurisdição constitucional
como processo de vivificação da Constituição na sua materialidade, a partir desse
novo paradigma instituído pelo Estado Democrático de Direito.
Esse paradigma toma forma quando a liberdade de conformação do
legislador, pródiga em discricionariedade no Estado-Liberal, passa a ser
contestada de dois modos: de um lado, os textos constitucionais dirigentes,
apontando para um dever de legislar em prol dos direitos fundamentais e sociais;
de outro, o controle por parte dos tribunais, que passaram não somente a decidir
acerca da forma procedimental da feitura das leis, mas acerca de seu conteúdo
material, incorporando os valores previstos na Constituição.
Há, assim, a prevalência do princípio da constitucionalidade sobre o
princípio da maioria, o que significa entender a Constituição como um remédio
contra maiorias. Portanto, a noção de um terceiro modelo de Direito, o do Estado
Democrático de Direito, leva em conta a noção de Constituição como valores a
serem realizados, exsurgentes do contrato social. A Constituição surge, nesse
terceiro modelo/paradigma, não somente como a explicitação do contrato social,
mas, mais do que isso, com a sua força normativa de constituir-a-ação do Estado.
Assim, quando aqui se afirma que a Constituição é a explicitação do
contrato social, está-se afirmando o caráter discursivo que assume a noção de
Constituição, enquanto produto de um processo constituinte. A noção de
A Jurisdição Constitucional e as Possibilidades Hermenêuticas de Efetivação da Constituição
359
Constituição do Estado Democrático de Direito e da função da justiça
constitucional como garantidora da força normativa substancial 30 do texto
constitucional está umbilicalmente ligada à noção de contrato social. Daí ser
necessário advertir para o fato de que a Constituição, entendida como
explicitação do contrato, não pode ser entendida (meramente) como um “contrato”
que se estabelece como uma terceira coisa entre o Estado, o Poder, o Governo, e
os destinatários; antes disso, a linguagem constituinte passa a ser condição de
possibilidade do novo, na medida em que, na tradição do Estado Democrático de
Direito, o constitucionalismo não é mais o do paradigma liberal, mas, sim, passa
por uma revolução copernicana (Jorge Miranda) mediante o constituir da
Sociedade.
Em face do que foi exposto, entendo que o Poder Judiciário não pode
assumir uma postura passiva diante da sociedade. Na perspectiva aqui defendida,
reserva-se ao Poder Judiciário (lato sensu, entendido aqui como justiça
constitucional) uma nova forma de inserção no âmbito das relações dos poderes
de Estado, levando-o a transcender as funções de
checks and balances, mediante uma atuação que leve em conta a
perspectiva de que os valores constitucionais têm precedência
mesmo contra textos legislativos produzidos por maiorias
eventuais.
Entendo, assim, que a justiça constitucional deve assumir uma postura
intervencionista, longe da postura absenteísta própria do modelo liberalindividualista-normativista que permeia a dogmática jurídica brasileira 31. Ou seja,
como bem aduz Vianna 32, se a judicialização da política
30
No embate entre as posturas substancialistas e procedimentalistas, claramente posiciono-me ao
lado do substancialismo, conforme melhor explicitado no livro Jurisdição Constitucional, op. cit.,
em especial cap. 4.
31
Como bem assinala Ackerman, ao tratar da problemática norte-americana, declarando
inconstitucional um determinado dispositivo legal, o Tribunal está desempenhando uma função
dualista crítica. Ele está indicando à massa de cidadãos privados que algo especial está ocorrendo
nos corredores do poder; que seus pretendidos representantes estão tratando de legislar com
pouca credibilidade; e que, uma vez mais, há chegado o momento de determinar se nossa
geração responderá fazendo o esforço político requerido para redefinir, como cidadãos privados,
nossa identidade coletiva. Cfe. ACKERMAN, Bruce. La política del diálogo liberal. Barcelona:
Gedisa, 1999, p. 203.
32
Cfe. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia – entre facticidade e validade. v. I. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 126 e segs.; CABRAL PINTO, Luiza Marques da Silva. Os
limites do poder constituinte e a legitimidade material da Constituição. Coimbra: Coimbra Editora,
1994, p. 126 e segs.; e BUBNER, R. Filosofia moderna Alemanha. Madrid: Cátedra, 1984, p. 228 e
ss.
360
Lenio Luiz Streck
significar a delegação da vontade do soberano a um corpo
especializado de peritos na interpretação do Direito e a
”substituição” de um Estado benfeitor por uma justiça providencial
e de moldes assistencialistas, não será propícia à formação de
homens livres e nem à construção de uma democracia de
cidadãos ativos. Contudo, a mobilização de uma sociedade para a
defesa dos seus interesses e direitos, em um contexto institucional
em que as maiorias efetivas da população são reduzidas, por uma
estranha alquimia eleitoral, em minorias parlamentares, não se
pode desconhecer os recursos que lhe são disponíveis a fim de
conquistar uma democracia de cidadãos. Do mesmo modo, uma
vida associativa ainda incipiente, por décadas reprimida no seu
nascedouro, não se pode recusar a perceber as novas
possibilidades, para a reconstituição do tecido da sociabilidade,
dos lugares institucionais que lhe são facultados pelas novas vias
de acesso à justiça.
Quando
falo
em
“intervencionismo
substancialista”,
refiro-me
ao
cumprimento dos preceitos e princípios ínsitos aos Direitos Fundamentais Sociais
e ao núcleo político do Estado Social previsto na Constituição de 1988, no qual é
possível afirmar que, na inércia dos poderes encarregados precipuamente de
implementar as políticas públicas, é obrigação constitucional do Judiciário, através
da jurisdição constitucional, propiciar as condições necessárias para a
concretização dos direitos sociais-fundamentais.
É evidente que tais questões podem esbarrar naquilo que se denomina de
“financeiramente possível” e na (de)limitação do âmbito (político) de esfera de
competência. Cristina Queiroz33 enfatiza que,
quando existe um direito, este mostra-se sempre como justiciável.
Sucede é que, por vezes, no caso dos direitos de natureza
econômica e social, estes necessitam ainda de uma configuração
jurídica particular a levar a cabo pelo legislador. A ”reserva do
possível”, ”no sentido daquilo que o indivíduo pode razoavelmente
exigir da sociedade” (BverfGE 33, 303, 333; 43, 291, 314), não
tem como conseqüência a sua ineficácia jurídica. Essa cláusula
expressa unicamente a necessidade da sua ponderação. Konrad
Hesse fala, a esse propósito, de uma “obrigação positiva” de
33
Cfe. QUEIROZ, Cristina. Interpretação e Poder Judicial – sobre a epistemologia da construção
constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 65. Veja a esse propósito o seguinte acórdão
do Tribunal Constitucional de Portugal: “Todo este complexo normativo, que não é meramente
programático e contém antes uma vinculação para o legislador ordinário, não pode desprender-se
de princípios fundamentais consagrados na Constituição como seja o empenhamento da
República ‘na construção de uma sociedade livre, justa e solidária’, o objectivo da ‘realização da
democracia econômica, social e cultural’, as tarefas fundamentais do Estado de promover ‘a
efectivação dos direitos econômicos, sociais e culturais’ e assegurar ‘o ensino e a valorização
permanente’”. Ac. TC 148/94.
A Jurisdição Constitucional e as Possibilidades Hermenêuticas de Efetivação da Constituição
361
”fazer tudo para a realização dos direitos fundamentais, ainda
quando não exista a esse respeito nenhum direito subjectivo por
parte dos cidadãos”.
Muito embora tais teses/perspectivas, um olhar – mesmo que perfunctório
– sobre o agir quotidiano dos juristas mostra-nos que estamos longe de uma
postura mais interventiva (portanto, menos self restraint) do Poder Judiciário, o
que pode ser verificado pela inefetividade da expressiva maioria dos direitos
sociais previstos na Constituição 34 e da postura assumida pelo Poder Judiciário
na apreciação de institutos como o mandado de injunção, a ação de
inconstitucionalidade por omissão, além da falta de uma adequada filtragem
hermenêutico-constitucional das normas anteriores e posteriores a Constituição.
Assim:
a)
mecanismos
como
a
interpretação
conforme
a
Constituição
(verfassungskonforme Auslegung) e a nulidade parcial sem redução de texto
(Teilnichtigerklärung ohne Normtext Reduzierung) têm sido pouco utilizados para
a adequação do enorme contingente de leis e atos normativos ao texto da
Constituição. Até mesmo o entendimento acerca do sentido e alcance desses
institutos tem recebido uma interpretação self restraint 35.
b) O exercício do controle difuso de constitucionalidade, nestes quinze
anos, tem-se mostrado aquém das expectativas. No primeiro grau de jurisdição,
ainda são poucos os magistrados que lançam mão desse (poderoso) mecanismo,
que, saliente-se, não fica restrito à (mera) rejeição (não aplicação) de leis
inconstitucionais, podendo, à toda evidência, alcançar a interpretação conforme e
a nulidade parcial sem redução de texto, para citar apenas essas duas
modalidades
de
decisões
denominadas
pela
tradição
de
“decisões
interpretativas” 36. Nos tribunais, continua reduzido o número de incidentes de
inconstitucionalidade.
34
Nesse sentido há que se levar em conta a advertência de Alexy, que fala da justiciabilidade
plena como um dos tesouros da Constituição, lembrando que “quem pretenda escrever na
Constituição ideais políticos não justiciáveis, deve ser consciente do que está em jogo. Com uma
só disposição da Constituição não controlável judicialmente abre-se o caminho para a perda de
sua obrigatoriedade.” Cfe. ALEXY, Robert. Los derechos fundamentales en el Estado
Constitucional Democrático. In: CARBONELL, Miguel. Neoconstitucionalimo(s). Madrid: Trotta,
2003, p. 33.
35
Para tanto, consultar Streck, Jurisdição Constitucional, op. cit., em especial cap. 11.
36
Idem ibidem, em especial capítulos 10, 11 e 12.
362
Lenio Luiz Streck
c) Diversas leis, apenas em parte incompatíveis com a Constituição, têm
permanecido intactas no sistema, pela timidez hermenêutica dos operadores.
Veja-se
a
recente
Lei
n°
10.259/01,
que,
de
forma
inconstitucional,
(des)classificou delitos como abuso de autoridade, fraude em licitação, fraude
processual, porte ilegal de arma, sonegação de tributos, desobediência, atentado
ao pudor mediante fraude, crimes contra a honra, para ficar apenas nos
principais, como “infrações de menor potencial ofensivo” (soft crimes), utilizando
para tanto o critério horizontal da quantidade da pena 37. Do mesmo modo, o
Código Penal está eivado de inconstitucionalidades; dezenas de tipos penais não
recepcionados pela Constituição continuam sendo aplicados; as penas não
guardam relação com o princípio da proporcionalidade (para se ter uma ideia,
furto qualificado tem pena maior que sonegação de tributos e lavagem de
dinheiro; adulteração de chassis de automóvel acarreta pena maior do que a do
homicídio praticado ao volante etc.); nessa linha, não causa nenhum espanto à
comunidade jurídica o fato de que a sonegação de tributos tenha um tratamento
absolutamente privilegiado em relação aos crimes contra o patrimônio, como o
furto, a apropriação indébita etc. 38; a falta de filtragem é tão grande que o sistema
jurídico convive com o paradoxo representado pelo fato de os crimes de estupro e
atentado violento ao pudor, elevados à condição de hediondos na década de 90 39,
continuarem a ser considerados “crime de ação privada” (sic).
d) A dimensão da crise de baixa constitucionalidade pode ser aquilatada
por alguns casos emblemáticos, como o ocorrido com a edição da Lei n°
37
Em termos de filtragem hermenêutico-constitucional, o problema decorrente da indevida
inserção desses crimes no rol dos soft crimes pode ser resolvida por intermédio da aplicação da
técnica da nulidade parcial sem redução de texto. Para tanto, ver STRECK, Lenio Luiz. Os
juizados especiais criminais à luz da jurisdição constitucional. Caderno Jurídico. Ano 2, v. 2, n. 5.
São Paulo: Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, out/2002, p. 63-100.
38
A recente Lei n° 10.684/03, repisando a matéria já sedimentada, possibilita que os sonegadores
façam parcelamento (REFIS) de seus “débitos”. Com isso, extingue-se a punibilidade (sic). Antes
dessa Lei, já havia casos de financiamentos que ultrapassavam os 500 anos! Enquanto isso, em
completa violação ao princípio da isonomia, ao cidadão que pratica crime contra o patrimônio não
é dada qualquer possibilidade de parcelamentos e, tampouco, a possibilidade de extinção da
punibilidade pelo ressarcimento do prejuízo! Isso mostra a dura face da crise de paradigmas que
atravessa a dogmática jurídica brasileira.
39
Veja-se que a comunidade jurídica, inserida no senso comum teórico, convive pacificamente
com dispositivos como art. 107, VIII, do Código Penal, pelo qual se extingue a punibilidade do
crime de estupro ou atentado violento ao pudor pelo “casamento da ofendida com terceiro” (sic),
dicção que o STF chegou a estender ao “concubinato da vítima com terceiro”. Ora, tal disposição
legal afronta a Constituição Federal, conforme sustentei em parecer que exarei nos autos da
ª
Apelação-Crime nº 70006451827 - 5 Câmara Criminal, TJRS).
A Jurisdição Constitucional e as Possibilidades Hermenêuticas de Efetivação da Constituição
363
9.639/98. Com efeito, a importância desse episódio assume uma transcendência
ímpar, porque simboliza a crise paradigmática que atravessa a operacionalidade
do Direito em nosso país. Explico: o Poder Executivo enviou projeto de lei ao
Congresso Nacional, concedendo anistia aos agentes políticos responsabilizados
pela prática dos crimes previstos na alínea d do art. 95 da Lei n° 8.212/91 e no
art. 86 da Lei n° 3.807/60 (retenção de contribuições previdenciárias dos
segurados da previdência social, sem que fosse atribuição legal sua). Tal matéria
constou no art. 11 do projeto, que foi votado, aprovado e enviado para sanção do
Presidente da República. Ocorre que, de forma “fantasmagórica”, foi introduzido
um parágrafo único “pirata” ao citado art. 11, estendendo a anistia aos “demais
responsabilizados pela prática dos crimes previstos na alínea d do art. 95 da Lei
n° 8.212/91 e no art. 86 da Lei n° 3.087/60, isto é, o dispositivo “acrescentado”
estendia de forma irrestrita a citada anistia. Surpreendentemente, a Lei foi
sancionada
com
a
inclusão
do
parágrafo
único
“pirata”.
Ora,
parece
desnecessário dizer que um dispositivo não votado e não aprovado pelo
parlamento jamais existiu no mundo jurídico. Constatado o manifesto equívoco,
de imediato foi enviada mensagem ao Presidente da República comunicando o
fato, o que ensejou a republicação da lei, o que veio a ocorrer no dia seguinte ao
da publicação original. Pois bem: com base na “vigência” (sic) do aludido
parágrafo único do art. 11, começaram a ser concedidas anistias a todas as
pessoas envolvidas nos crimes de retenção de contribuições sociais, sob os mais
variados argumentos, tais como “em nome da segurança jurídica, o texto foi
publicado, apesar do erro, existe e entra em vigor, devendo ser protegidos os
direitos decorrentes dessa vigência...”, aduzindo-se, ainda, citações doutrinárias
acerca da interpretação do art. 1°, §4°, da Lei de Introdução ao Código Civil... Em
face disso, o Ministério Público Federal passou a recorrer das (centenas de)
decisões judiciais concessivas das anistias irrestritas baseadas no inexistente
parágrafo único, tendo que a matéria ser, finalmente, decidida pelo Supremo
Tribunal Federal, que, em decisão plenária de 4.11.98 (HC n° 77724-3, Rel. Min.
Marco Aurélio), julgou inconstitucional o citado parágrafo único do art. 11 da Lei n°
9.639, em sua publicação no Diário Oficial da União de 26.5.98, explicitando o
STF que a decisão tinha caráter ex tunc, atingindo todas as decisões concessivas
anteriores. A argumentação do Supremo Tribunal Federal foi singela – porque
364
Lenio Luiz Streck
singela era a questão, sem dúvida –, baseando o acórdão no fato de que o
parágrafo único em tela não cumpriu, no Congresso Nacional, o rito de discussão
e votação de projeto de lei, previsto no art. 65 da CF. Ou seja, a publicação por
engano do parágrafo único não poderia gerar efeitos no mundo jurídico. Ou seja,
reféns do sentido comum teórico, os operadores do primeiro grau de jurisdição
não conseguiram – no âmbito do controle difuso – dar uma solução constitucional
adequada a um problema tão simples.
e)
As
mesmas
carências
hermenêutico-constitucionais
podem
ser
encontradas no campo do direito processual. Assim, v.g. 40, embora o conteúdo
garantista da Constituição de 1988, o Código Processo Penal continua fazendo
vítimas, pela falta de uma adequada interpretação que o conforme ao texto
constitucional. Em pleno Estado Democrático de Direito, o sistema jurídico
convive com a quotidiana violação dos princípios da ampla defesa (interrogatórios
que continuam sendo realizados sem a presença de defensor), do contraditório
(exames periciais feitos à revelia do réu) e do devido processo legal (denúncias
que são recebidas sem qualquer fundamentação), para citar apenas alguns dos
problemas.
f) Por outro lado, se os Códigos Penal e Processual Penal sofrem de
profunda inadequação com o texto constitucional em face da distância temporal,
um texto como o do Código Civil que entrou em vigor em 2003 deveria ingressar
no ordenamento devidamente adequado à Constituição. Entretanto, não é isso
que ocorre. Com efeito, em muitos aspectos, o Código Civil provoca retrocesso,
com nítida violação da cláusula constitucional de proibição de retrocesso social,
implícita na Constituição Federal. Nesse ponto, concordo com Gustavo Tepedino,
quando diz que o novo Código Civil é retrógado e demagógico. Retrógado porque
nasce velho principalmente por não levar em conta a história constitucional
brasileira e a corajosa experiência jurisprudencial, que protegem a personalidade
mais que a propriedade, o ser mais que o ter, os valores existenciais mais do que
40
Deixo de referir aqui os problemas decorrentes das diversas (mini) reformas no Código de
Processo Civil, muitas delas de duvidosa constitucionalidade. Do mesmo modo, permito-me
remeter o leitor ao livro “Jurisdição Constitucional”, op. cit., em especial capítulos 11 e 12, nos
quais são tratadas as inconstitucionalidades constantes na Lei n° 9.868/99 – que trata do processo
e do procedimento das ações diretas de inconstitucionalidade e das ações declaratórias de
constitucionalidade – e na Lei n° 9.882/99, que estabelece o regramento da arguição de
descumprimento de preceito fundamental.
A Jurisdição Constitucional e as Possibilidades Hermenêuticas de Efetivação da Constituição
365
os patrimoniais; e demagógico porque, engenheiro de obras feitas, pretende
consagrar direitos que, na verdade, estão tutelados em nossa cultura jurídica pelo
menos desde o pacto de outubro de 1988 41. Não é desarrazoado afirmar, nesse
contexto, que a edição do novo Código Civil representou a vitória da codificação
sobre a hermenêutica e a abertura interpretativa. Os assim denominados avanços
do novo Código desde há muito estavam previstos na Constituição. Às várias
manifestações “louvando” o fato de que, a partir do novo Código, o juiz assumirá
uma nova postura perante o Direito (sic), é fácil responder (e esclarecer) que essa
propalada “abertura hermenêutica proporcionada pelo ‘novo’ Código Civil” é fruto
do paradigma que instituiu o Estado Democrático de Direito e tudo o que
representa a Constituição, entendida no seu caráter compromissário e dirigente.
Não é o Código que estabelece um novo paradigma, mas, sim, é o Código que
deve(ria) estabelecer os delineamentos do Direito Civil levando em conta o
primado da Constituição.
É exatamente por isso que parcela considerável das centenas de
emendas que estão sendo propostas ao novo Código são
desnecessárias, uma vez que as anomalias do novo Codex
podem ser corrigidas a partir de um adequado manejo da
jurisdição constitucional,
naquilo que o sistema jurídico coloca à disposição do operador em termos de
controle difuso e concentrado, além dos modernos mecanismos interpretativos,
como a interpretação conforme a Constituição e a nulidade parcial sem redução
de texto. Infelizmente, tudo está a indicar que a equiparação feita por parcela
considerável de juristas entre “vigência e validade” e “texto e norma” continuará
fazendo suas vítimas por muito tempo.
g) Registre-se, por fim, a postura self restraint que a Suprema Corte
assumiu nos episódios que envolveram as grandes privatizações e na discussão
dos conceitos de “urgência e relevância”, requisitos para o Poder Executivo editar
medidas provisórias. Saliente-se que, antes da promulgação da EC n° 32, que
alterou o art. 62, da CF, o Poder Executivo já havia editado mais de 3.000
41
Cfe. TEPEDINO, Gustavo. O novo Código Civil: duro golpe na recente experiência constitucional
brasileira. Revista Trimestral de Direito Civil, v 7. Rio de Janeiro: Padma, 2001, p. 229.
366
Lenio Luiz Streck
medidas provisórias. Uma postura hermenêutica mais incisiva do STF poderia, 42
sem dúvida, no exame da matéria e no momento oportuno, ter evitado esse mar
de medidas provisórias, que tantos prejuízos causaram à cidadania e à
democracia.
3. Em Aportes Finais: O Constitucionalismo que não Morreu. A Constituição
que (ainda) constitui. A Necessidadede um Processo de Resistência
Constitucional como Compromisso Ético dos Juristas:
I.Como visto, vários são os fatores que leva(ra)m a esse deficit de
jurisdição constitucional, que podem ser debitados tanto a uma crise de modelo
de direito e de Estado, como a uma crise de compreensão (crise de viés
hermenêutico).
Observe-se – e tenho constantemente batido nessa tecla – como
a dogmática jurídica continua equiparando os âmbitos da vigência
e da validade de um texto, questão que decorre do problema
próprio da hermenêutica clássica-reprodutiva, que equipara o
texto à norma, como se o texto carregasse consigo a norma
(sentido) 43.
42
Deve ser criticada, também, a decisão do STF no julgamento da ADIn 425, que tratava da
inconstitucionalidade de a Constituição do Estado do Tocantins prever a possibilidade de o
Governador editar medidas provisórias. Entendo que o nosso Tribunal Maior não encontrou a
melhor solução para a controvérsia. Como muito bem deixou assentado o Min. Carlos Velloso em
seu voto vencido, para que fosse possível aos Estados-Membros lançarem mão do instituto da
medida provisória seria necessária expressa autorização da Constituição Federal. Com efeito, sem
tal previsão, parece desarrazoado entender que os Estados-Membros (e quiçá os Municípios)
possam lançar mão desse instrumento que, a toda evidência, constitui exceção à tradicional teoria
da divisão de poderes. Interpretar que a não previsão expressa da possibilidade de os Estados
editarem medidas provisórias constitui uma lacuna da Constituição de 1988 – a qual seria
colmatável pelo constituinte estadual – é abrir um perigoso precedente que, inexoravelmente,
enfraquece o caráter rígido característico do modelo constitucional adotado em terra brasilis. Para
mais detalhes, ver meu Jurisdição, op.cit.
43
Conforme tenho referido à saciedade em outros textos, não há equivalência entre texto e norma
e entre vigência e validade, em face do que se denomina na fenomenologia hermenêutica de
diferença ontológica. Sustentar que há uma diferença (ontológica) entre texto e norma não
significa que haja uma separação entre ambos (o mesmo valendo para a dualidade vigênciavalidade). Ou seja, concordo com Friedrich Müller quando diz que a norma é sempre o produto da
interpretação de um texto e que a norma não está contida no texto (ver, para tanto, Juristiche
Methodik, op. cit.; no mesmo sentido, GRAU, Eros. La doble estruturación y la interpretación del
derecho. Barcelona: M.J. Bosch, SL, 1998). Ocorre que o texto não subsiste como texto; não há
texto isolado da norma! O texto já aparece na “sua” norma, que é produto da atribuição de sentido
do intérprete (e, para isso, não há um processo de discricionariedade do intérprete, uma vez que a
atribuição de sentido exsurgirá de sua situação hermenêutica, da tradição em que está inserido,
enfim, a partir de seus pré-juízos). Por isso não há separação entre texto e norma; há, sim, uma
diferença ontológica entre eles, questão que pode ser retirada da assertiva heideggeriana de que
o ser é sempre o ser de um ente, e o ente só é no seu ser. Não há ser sem ente. A norma, assim,
A Jurisdição Constitucional e as Possibilidades Hermenêuticas de Efetivação da Constituição
367
II. De outra banda, não construímos uma teoria da Constituição
suficientemente colada à Teoria do Estado apta a superar certo enciclopedismo
ainda presente na análise da Constituição de 1988. Em suma, a Constituição não
encontrou terreno fértil para a efetivação das promessas contidas em seu texto. A
comunidade jurídica demorou a perceber a revolução paradigmática que
representaram os textos constitucionais dirigentes e compromissários no seio da
Teoria do Estado e da Constituição. Sejamos claros: não havia um caldo de
cultura apto a recepcionar
essa verdadeira revolução copernicana que alçou o Direito
constitucional ao status de disciplina dirigente, questão que
assumia contornos mais relevantes ainda se levado em conta o
problema de ser o Brasil um país de modernidade tardia.
Não ocorreu no Brasil algo similar ao “Debate de Weimar”, na qual foi
discutida, nos idos de 1919, a crise da Teoria Geral do Estado, a partir da
insuficiência da Teoria Geral do Estado “enciclopédica” de Jellinek44.
não é uma capa de sentido a ser acoplada a um texto “desnudo”. Ela é a construção hermenêutica
do sentido do texto. Esse sentido manifesta-se na síntese hermenêutica da applicatio. Daí que, de
algum modo, concordo com Nelson Saldanha em suas críticas à tese de Müller. Com efeito,
Saldanha não concorda com a afirmação de que o texto da norma é apenas um “enunciado
linguístico”. “Todo texto é um enunciado lingüístico, mas nenhum texto é apenas isto: o texto de
um poema se distingue de seu ‘conteúdo’, como ocorre com o de uma prece ou o de uma
mensagem pessoal. Mas em cada caso o texto está relacionado ao conteúdo: não se procuraria
uma mensagem religiosa no texto de um livro de química, nem se buscaria um conteúdo poético
no texto de um decreto. Os textos que integram o direito positivo contêm a norma: são textos
jurídicos e não contábeis, nem litúrgicos. Não se ‘chegaria’ à norma sem o texto dela, nem com
outro que não fosse jurídico. A distinção entre as palavras do texto e o conteúdo normativo não
pode levar a uma negação da relação entre ambas as coisas” (cfe. SALDANHA, Nelson.
Racionalismo jurídico, crise do legalismo e problemática da norma. Anuário dos Cursos de PósGraduação em Direito da UFPE, n. 10. Recife: UFPE, 2000, p. 203 e segs). Correto o professor
pernambucano quando diz que os textos que integram o direito positivo contêm já, de pronto, a
norma cujo sentido aponta para o fato de que tais textos são jurídicos, e não qualquer outra coisa.
Ou seja, há um sentido que se antecipa e, portanto, é condição de possibilidade: antes de tudo, o
texto é um texto jurídico! Em síntese, texto e norma são coisas distintas, mas não separadas, no
sentido de que possam subsistir um sem o outro. Também por isso um não contém o outro, assim
como o ser não contém o ente. Por isso, o que existe é uma diferença entre ambos, que é
ontológica.
44
A crise da Teoria Geral do Estado gerou três grandes propostas para a sua superação, todas
descartando as concepções de Jellinek. Duas propostas vão substituir a velha Teoria Geral do
Estado pela nova Teoria da Constituição. De um lado, a visão da Constituição exclusivamente
como norma jurídica (Kelsen). De outro, as Teorias Materiais da Constituição, vista agora como
algo mais do que uma simples norma jurídica, mas como lei global da vida política do Estado e da
sociedade (Carl Schmitt e Rudolf Smend). Finalmente, a terceira proposta busca a renovação
metodológica completa da Teoria Geral do Estado, que deveria ser substituída pela Teoria do
Estado como ciência da realidade (Hermann Heller). Cfe. BERCOVICI, Gilberto. A Constituição
Dirigente e a Crise da Teoria da Constituição. São Paulo, 2003. Inédito.
368
Lenio Luiz Streck
III. As mesmas insuficiências teórico/paradigmáticas que preocuparam os
juristas alemães não alcançaram igual tratamento em terra brasilis. O novo
paradigma
do
Estado
Democrático
de
Direito,
no
interior
do
qual
o
constitucionalismo – porque umbilicalmente ligado à Teoria do Estado – assume
contornos transformadores da realidade social, vem sendo trabalhado a partir de
uma ultrapassada Teoria Geral do Estado, que não reúne as condições
suficientes para a elaboração de um discurso que imbrique Constituição e Estado.
Mais do que uma crise na Teoria (Geral) do Estado, há uma crise da Constituição,
que, segundo Bercovici, pode ser superada ao compreendermos a Constituição
nesses pressupostos da Teoria do Estado, em conexão com a política e a
realidade social (e aqui assume relevância a circunstância de vivermos em um
país de modernidade tardia). Afinal, aduz o autor, ao contrário do que alguns
juristas defendem, não é possível entender a Constituição sem o Estado. A
existência histórica e concreta do Estado soberano é pressuposto, é condição de
existência da Constituição. Talvez aqui esteja um dos problemas fundamentais da
crise que obstaculiza a compreensão do papel da Constituição no Brasil (e
consequentemente do porquê de sua inefetividade, passados quinze anos): a
Constituição tem sido compreendida apenas como normativa descontectada da
política (no qual entra, por decorrência lógica, o Estado). Há uma necessária
conexão/imbricação entre Estado, Constituição e política. Só assim será possível
perceber que a Constituição pertence também à realidade histórico-social 45.
IV. Em face de todo o exposto, venho propondo, fundamentado em Garcia
Herrera, uma resistência constitucional, entendida como o processo de
identificação e detecção do conflito entre princípios constitucionais e a inspiração
neoliberal que promove a implantação de novos valores que entram em
contradição com aqueles: solidariedade frente ao individualismo, programação
frente à competitividade, igualdade substancial frente ao mercado, direção pública
frente a procedimentos pluralistas.
O novo modelo constitucional supera o esquema da igualdade
formal rumo à igualdade material, o que significa assumir uma
posição de defesa e suporte da Constituição como fundamento do
ordenamento jurídico e expressão de uma ordem de convivência
45
Cfe. Bercovici, A Constituição, op. cit.
A Jurisdição Constitucional e as Possibilidades Hermenêuticas de Efetivação da Constituição
369
assentada em conteúdos materiais de vida e em um projeto de
superação da realidade alcançável com a integração das novas
necessidades e a resolução dos conflitos alinhados com os
princípios e critérios de compensação constitucionais 46.
V. Este resistir implica, entre outras tarefas, uma mobilização em torno da
criação de um Tribunal Constitucional, na tradição dos tribunais desse naipe que
tanto serviço prestaram à democracia e à realização dos direitos fundamentaissociais no velho mundo, e, em consequência, a utilização, de forma ampla, dos
mecanismos de acesso à justiça, mormente à jurisdição constitucional, através do
controle difuso de constitucionalidade e do controle concentrado, sob suas várias
formas, sem olvidar as ações constitucionais específicas, como o mandado de
injunção,
o mandado
de
segurança, a ação popular,
a arguição
de
descumprimento de preceito fundamental etc. Nesse sentido, é preciso ter claro
que não há texto infraconstitucional imune à filtragem constitucional; não há textos
“blindados”. Até mesmo as leis que descriminalizam estão sujeitas ao controle de
constitucionalidade 47.
VI. Para ser mais claro: no Estado Democrático de Direito, não há liberdade
de conformação do legislador; há uma diferença (ontológica) entre vigência (que é
secundária) e validade (que é primária, porque dependente da materialidade da
Constituição), e entre texto e norma. O texto não contém a norma. Essa é sempre
o produto de um processo de atribuição de sentido, o que reforça a
responsabilidade (ética) do intérprete.
VII. Por isso, torna-se relevante a discussão das condições de
possibilidade que têm os juristas para a construção de um discurso (crítico) que
aponte para a superação da crise paradigmática e a implementação dos valores
constitucionais. Ao lado disso, torna-se necessário constantemente denunciar as
reformas legislativas ad hoc que têm levado, sistematicamente, à concentração
do poder nos tribunais superiores, a ponto de transportar para o nosso sistema
46
Consultar GARCIA HERRERA, Miguel Angel. Poder Judicial y Estado Social: Legalidad y
Resistencia Constitucional. In: Corrupción y Estado de Derecho – El papel de la jurisdicción.
Perfecto Andrés Ibáñes (Editor). Madrid: Trotta, 1996, p. 83.
47
Ver, nesse sentido, STRECK, Lenio Luiz. Os juizados especiais criminais à luz da jurisdição
constitucional, op. cit.
370
Lenio Luiz Streck
mecanismos próprios da common law 48 e do direito tedesco (nesse sentido, v.g.,
a inversão dos efeitos nas decisões em sede de ADIn e ADC, prevista na Lei n°
9.868/99). Veja-se, a propósito, o problema do acesso à justiça, sonegado a partir
de mecanismos como os constantes no art. 557 do CPC, monocratizando as
decisões de segundo grau, além de impedirem o acesso aos tribunais superiores
(TST, STJ e STF). É evidente que necessitamos de mecanismos que conduzam à
efetividade da justiça e ao “desafogo dos tribunais superiores” (sic). Entretanto,
não se pode, em nome de uma “instrumentalidade quantitativa”, solapar uma
“instrumentalidade qualitativa”.
VIII. Em síntese: é necessário construir (novos) caminhos na busca da
concretização das promessas da modernidade plasmadas no texto constitucional.
Isso implica continuar a acreditar na força normativa da Constituição e no seu
papel dirigente e compromissário. Daí a necessidade da construção de uma
Teoria da Constituição Dirigente Adequada a Países de Modernidade Tardia
(TCDAPMT), 49 cujos fundamentos decorrem da necessidade de preenchimento
do déficit resultante do histórico descumprimento das promessas da modernidade
nos países periféricos. Destarte, a defesa de uma Teoria da Constituição
Dirigente Adequada a Países de Modernidade Tardia fundamenta-se na ideia de
um conteúdo compromissário mínimo a constar no texto constitucional, bem como
nos correspondentes mecanismos de acesso à jurisdição constitucional e de
participação democrática.
IX. Tal teoria deve, assim, tratar da construção das condições de
possibilidade para o resgate das promessas incumpridas da modernidade, as
quais, como se sabe, colocam em xeque os dois pilares – democracia e direitos
fundamentais-sociais – que sustentam o próprio Estado Democrático de Direito. A
ideia de uma TCDAPMT implica uma interligação com uma teoria do Estado,
48
No plano da operacionalidade do direito, grande parcela das querelas jurídicas tem sido
decidida mediante a (singela) citação de ementas jurisprudenciais (ou Súmulas)
descontextualizadas, a ponto de o Supremo Tribunal Federal declarar a inconstitucionalidade (sic)
de um dispositivo de medida provisória com fundamento na Súmula 618, de edição anterior à
Constituição. Calha lembrar, além disso, que as decisões, embora fundamentadas nos verbetes
(nos seus mais variados tipos), não são suficientemente justificadas, isto é, não são agregados
aos ementários jurisprudenciais os imprescindíveis supor-tes fáticos, decorrendo daí o que
denomino de “um perigoso ecletismo”, originário de um hibridismo (simplista/simplificado)
representado pela fusão de institutos da common law e da civil law.
49
Sobre a construção de uma Teoria da Constituição Dirigente Adequada a Países de
Modernidade Tardia, ver livro “Jurisdição Constitucional”, op. cit., em especial cap. 3.
A Jurisdição Constitucional e as Possibilidades Hermenêuticas de Efetivação da Constituição
371
visando à construção de um espaço público, apto a implementar a Constituição
em sua materialidade. Dito de outro modo, uma teoria da Constituição dirigente
voltada às especificidades de países periféricos como o Brasil não prescinde de
uma teoria do Estado, que seja apta a explicitar as condições de possibilidade da
implantação das políticas de desenvolvimento constantes – de forma dirigente e
vinculativa – no texto da Constituição. É importante pontuar que tal teoria
conforma-se manifestamente ao que se projeta a partir de uma estrutura
normativa consistente no Estado Democrático de Direito, ou seja, uma forma
civilizada e democrática de realização do bem estar de todos, rechaçando
alternativas revolucionárias, distantes de qualquer paradigma de Estado de
Direito. Evidentemente, tal tese não implica sustentar um normativismo
constitucional (revolucionário ou não) capaz de, por si só, operar transformações
emancipatórias. O que permanece da noção de Constituição dirigente é a
vinculação do legislador aos ditames da materialidade da Constituição, pela exata
razão de que, nesse contexto, o Direito continua a ser um (poderoso) instrumento
de implementação de políticas públicas.
50
X. Entretanto, como na Macondo de Gabriel Garcia Marquez, algumas
“coisas” de nossa Constituição ainda são tão novas, tão recentes, que, para
mencioná-las, muitos juristas limitam-se a apontá-las com o dedo! É como se
essas “coisas” novas ainda não tivessem nome. É como se lhes faltasse a
“nominação constitucionalizante”. O ser (da Constituição e tudo o que ela
representa) continua velado. Velhos pré-juízos, decorrentes de paradigmas
ultrapassados, continuam a causar seriíssimos prejuízos à comunidade jurídica.
Não houve, ainda, a surgência constitucionalizadora. A baixa compreensão do
sentido da Constituição acarreta uma “baixa constitucionalidade”. Entre sístoles e
diástoles51, os quinze anos de Constituição deixaram muitas lições. Talvez na
imbricação entre o exercício pleno e efetivo da jurisdição constitucional e uma
ampla participação da sociedade, a partir dos mecanismos de representação
50
Idem, ibidem.
Na medida em que o objetivo deste texto é fazer um apanhado crítico acerca do funcionamento
da jurisdição constitucional nos seus diversos âmbitos, torna-se desnecessário lembrar os
avanços conquistados no período pós-constitucional, como, por exemplo, e que vale por todos, a
consolidação da democracia em terra brasilis, condição indispensável para o florescimento de uma
cultura jurídica que aponte para o efetivo cumprimento das promessas ex-surgentes do pacto
constituinte.
51
372
Lenio Luiz Streck
popular e de democracia direta, esteja o caminho para que se possa dizer (e
nominar) o novo, sem que se precise “apontar com o dedo”, superando, desse
modo, a crise, que, como se sabe, existe exatamente quando o novo não nasce e
o velho não morre; enfim, quando o velho obnubila o novo!
A Jurisdição Constitucional e as Possibilidades Hermenêuticas de Efetivação da Constituição
373
Pluralismo Jurídico e Direito Alternativo no Brasil.
Notas para um Balanço
Luciano Oliveira
Sumário: 1. Introdução. 2. O Pluralismo Jurídico: uma ideia fora do lugar?
3. O Direito Alternativo – Algumas Confusões Conceituais. Referências
Bibliográficas
1. Introdução
Os dois temas que dão título a este artigo têm tido nos últimos vinte anos –
o primeiro, Pluralismo Jurídico, a partir de inícios dos anos 80; o segundo, Direito
Alternativo, a partir de inícios dos anos 90 – uma notável presença nos meios
jurídicos brasileiros, mas também latino-americanos de um modo geral, em
decorrência de um amplo trabalho de divulgação e de militância levado a efeito
por juristas que adotaram aquilo que tem sido genericamente chamado de
“perspectiva crítica” – ou seja: um “esfuerzo consciente por cuestionar los
fundamentos de las formas jurídicas y sociales dominantes con el fin de impulsar
prácticas e ideas emancipadoras dentro y fuera del campo jurídico” (Villegas e
Rodrígues, 2001:3). Ainda que, como já ressalvado, não seja um movimento
adstrito ao Brasil, as reflexões que se seguem têm esse país como principal
referência, pela óbvia razão de que, sendo brasileiro, conheço bem melhor o que
se passa na realidade do meu país do que na realidade dos países latinoamericanos de língua espanhola, embora creia que tais reflexões possam
também, com as devidas adaptações1, aplicar-se a esses países.
Como sinaliza a própria expressão, a perspectiva crítica é fortemente
influenciada pelo pensamento de esquerda. Com isso quero significar um amplo
espectro de tendências que inclui desde o pensamento marxista stricto sensu até
a “teoria crítica” da Escola de Frankfurt, a teologia da libertação etc. Mas,
1
Vale observar, por exemplo, que a expressão “direito alternativo” é utilizada, sobretudo, no Brasil,
sendo bem menos encontrada nos demais países latino-americanos, ainda que a temática que ela
designa também esteja aí presente. É significativo, por exemplo, que ela sequer apareça no texto
que serve de referência ao empreendimento deste livro (Villegas e Rodrígues, 2001); e que no
livro do colombiano Germán Palacio (1993), Pluralismo Jurídico, ela seja referida em apenas duas
páginas (131 e 132).
também, correntes de pensamento não necessariamente de esquerda, mas
comprometidas com a “questão social”, como a doutrina dos direitos humanos.
Integram o movimento professores e estudantes de direito, advogados dos
chamados “novos movimentos sociais” (como os dos favelados, dos “sem-terra”,
etc.), e mesmo alguns juízes. Todos partilham mais ou menos uma visão crítica a
respeito do direito oficial, a seu ver o guardião de uma ordem social e econômica
injusta
e
exploradora.
Alternativamente,
a
perspectiva
crítica
aparece
comprometida com o projeto de construção de uma sociedade livre, justa e
igualitária – numa palavra, embora esse termo apareça cada vez menos,
socialista.
Passados mais de vinte anos de presença ativa do movimento, creio ser
tempo bastante para nos dispormos a um balanço, não apenas pelo fato das duas
décadas transcorridas, mas também – talvez sobretudo – porque parece haver, a
partir de metade dos anos 90, um certo “refluxo” do movimento, como anota,
referindo-se especificamente ao Direito Alternativo, um dos seus representantes
(Andrade, 1998, p. 25), julgamento matizado pela observação feita logo em
seguida de que se trata de algo “muito positivo, permitindo a seus membros uma
espécie de parada para reflexão” (ibidem). Elencando uma série de iniciativas
editoriais e docentes surgidas a partir dessa data, o que indicaria estar o
movimento passando para uma nova fase mais reflexiva, o juízo de Andrade
sobre o “fim de um início eufórico” parece estar baseado no inevitável desgaste
que atinge todo acontecimento – intelectual ou não – que vira moda. Um bom
exemplo disso é a perda progressiva de público que sofreram os Encontros
Internacionais de Direito Alternativo realizados na cidade de Florianópolis, no sul
do Brasil, a partir de 1991, e que teve sua quarta e – até agora – última edição em
1998 2. Depois voltaremos a esse assunto. Por enquanto, voltemos nossa atenção
para os dois temas anunciados no título.
Para começar, devemos melhor esclarecer o que exatamente vem a ser o
Direito Alternativo – pois, como veremos, esse não é um conceito isento de
algumas confusões –, e o que ele tem a ver com o Pluralismo Jurídico. Muito
2
Os quatro Encontros, sempre na cidade de Florianópolis, foram realizados em 1991, 1993, 1996
e 1998. Segundo informa Andrade, “os últimos encontros e congressos tiveram um número de
participantes bastante menor” (1998:25).
Pluralismo Jurídico e Direito Alternativo no Brasil
375
simplificadamente, poderíamos dizer que há entre os dois uma relação análoga
àquela que há entre gênero e espécie. O Pluralismo Jurídico seria um fenômeno
mais vasto, abrigando várias modalidades, das quais o Direito Alternativo seria
uma delas. Mas, isto dito, considero mais conveniente, em vez de estabelecer
uma definição para ambos – até porque nenhum dos dois é um conceito unívoco
–, percorrer, ainda que um tanto sumariamente, a trajetória desses dois conceitos
como eles aportaram no Brasil, observando as peripécias e mesmo os
deslizamentos de sentido pelos quais já passaram. Por razões cronológicas, mas
também lógicas, dado o seu caráter mais genérico, comecemos pelo Pluralismo
Jurídico.
2. O Pluralismo Jurídico: Uma Ideia Fora do Lugar?
Esse conceito foi posto em voga no Brasil a partir de inícios dos anos 80,
como já disse, mas a sua aparição tem por origem um pioneiro trabalho de campo
do sociólogo português Boaventura de Souza Santos, feito dez anos antes, no
início dos anos 70, sobre práticas jurídicas não oficiais exercitadas no interior de
uma favela do Rio de Janeiro a que ele deu o nome fictício de “Pasárgada”. Aí, os
favelados, sem título de propriedade do chão onde habitavam – e, portanto, sem a
proteção do direito oficial que eles próprios chamavam de “direito do asfalto” –,
desenvolveram informalmente um conjunto de práticas processuais que,
aplicadas pela associação de moradores da favela, tinham por finalidade resolver
os conflitos de natureza, sobretudo, territorial surgidos entre os seus habitantes. O
trabalho resultou numa tese de doutorado em sociologia defendida na
Universidade de Yale, nos Estados Unidos, e os textos dele resultantes
publicados nos anos 70, em língua inglesa (Santos, 1974, 1977), permaneceram
praticamente desconhecidos no Brasil durante essa década. Posteriormente, já
em 1980, um pequeno resumo dessa pesquisa (Santos, 1980) foi publicado numa
coletânea de textos de sociologia jurídica organizada por dois dos mais eminentes
nomes da área no Brasil – os professores Cláudio Souto e Joaquim Falcão –, o
que constituiu uma contribuição para tornar o nome de Boaventura Santos
amplamente conhecido dos sociólogos do direito brasileiro e popularizou, entre
376
Luciano Oliveira
eles, suas reflexões sobre a pluralidade de ordenamentos jurídicos. 3
Com isso não estou sustentando que a enorme repercussão do trabalho de
Boaventura Santos nessa época se deva à simples publicação desse texto. Creio,
na verdade, que isso ocorreu, sobretudo, porque havia um terreno cultural
propício a essa recepção – justamente a “perspectiva crítica” já aludida.
Estávamos vivendo, entre fins dos anos 70 e início dos 80, o ocaso do regime
militar e, como ocorreu nas mais variadas áreas da atividade cultural e acadêmica
houve, também, no terreno jurídico (nesse caso de maneira surpreendente, dado
o tradicional conservadorismo da área) uma disseminação do pensamento de
esquerda, marxista principalmente, submetido durante a ditadura à perseguição
das forças de repressão. Por volta dessa época, e independentemente da
influência do trabalho de Boaventura Santos, floresceram vários movimentos
críticos 4, entre os quais destacaríamos alguns mais conhecidos e influentes.
É o caso do movimento Crítica do Direito, de origem francesa, que aportou
no Brasil através da Pós-Graduação em Direito da Universidade de Santa
Catarina, irradiando-se daí para outros centros. É também o caso da Nova Escola
Jurídica Brasileira, do jurista Roberto Lyra Filho, professor da Universidade de
Brasília, o qual, dotado de uma personalidade carismática e francamente
iconoclasta 5, veio a se tornar um nome conhecido e muito controvertido,
detestado por boa parte dos juristas e, obviamente, idolatrado por boa parte dos
estudantes. Há que se mencionar também o Direito Insurgente, do advogado
Miguel Pressburger, principal teórico de uma instituição chamada Apoio Jurídico
Popular – AJUP – sediada no Rio de Janeiro.
Uns e outros, malgrado algumas diferenças importantes que não vêm ao
3
Em termos de América espanhola, tomando-se como padrão uma publicação de prestígio como
a revista El Otro Derecho, a conceitualização de “direitos paralelos”, “informais” etc. como
fenômenos de pluralismo jurídico ocorre bem mais tarde. Salvo engano, apenas num texto de
Eduardo Rodríguez, publicado no sexto número do periódico, é que essa expressão aparece pela
primeira vez (Rodríguez, 1990: 57). Já no número seguinte, entretanto, em 1991, um artigo do
brasileiro Antônio Carlos Wolkmer era explicitamente dedicado a essa questão (Wolkmer, 1991).
Logo em seguida, o ILSA, responsável pela revista, organizava um concurso de ensaios sobre o
tema, vencido, significativamente, por dois brasileiros com um trabalho sobre possessões agrárias
na Amazônia (Benatti e Maues, 1994).
4
Sobre o assunto ver, entre outros, o livro de Eliane Botelho Junqueira, A Sociologia do Direito no
Brasil – Introdução ao debate atual, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1993, principalmente o capítulo
“Anos Rebeldes”.
5
O próprio autor dessas linhas teve a oportunidade, em 1982, no curso de uma mesa-redonda em
que Roberto Lyra Filho estava presente, de ouvi-lo fazer um jogo de palavras de gosto duvidoso
com a Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, chamando-a de “teoria puta do direito”...
Pluralismo Jurídico e Direito Alternativo no Brasil
377
caso nesse momento abordar, adotam uma perspectiva materialista e veem o
direito como cristalizando, em cada etapa histórica, os interesses das classes
dominantes, contra os quais as classes dominadas, através de suas lutas, vão
cristalizando valores e princípios próprios, os quais, um dia, tenderão a tornar-se
um novo direito. Ora, dentro de tal perspectiva, o povo, as classes dominadas, os
grupos oprimidos têm a capacidade, através de suas lutas, de gerarem um novo
direito – postura presente mais nos trabalhos de Lyra Filho (1982a) e de Miguel
Pressburger (1987-1988) do que na Crítica do Direito francês, a qual trabalhava
mais no terreno da epistemologia e era bem menos propositiva. Como quer que
seja esses vários movimentos eram basicamente teóricos, animados por juristas
que, mesmo voltados para o “concreto”, não exercitavam a prática da pesquisa
empírica. E eis que aparece o trabalho de Boaventura Santos, um trabalho de
campo feito por um sociólogo que revelou a existência do “direito de Pasárgada”,
vale dizer, uma ilustração concreta de que os grupos dominados eram, sim,
capazes de produzir um novo direito. Creio que, aí, reside a explicação para a
extraordinária recepção do seu trabalho e de suas ideias a respeito do pluralismo
jurídico.
O conceito de pluralismo jurídico, entretanto, é bastante antigo. Definido
geralmente como a existência, no mesmo espaço geopolítico, de mais de uma
ordem jurídica, o pluralismo jurídico já foi objeto de reflexão por parte de vários
juristas que adotaram na sua reflexão um enfoque sociológico 6, a exemplo de
Gurvitch e sua visão acerca da pluralidade de centros geradores de direito, tanto
supraestatais – como as organizações internacionais, por exemplo – quanto
infraestatais – como os sindicatos, cooperativas, etc. De um modo geral, porém, o
enfoque pluralista dos juristas revela-se, no fundo, um falso pluralismo, pois,
como lembra Carbonnier, os fenômenos descritos como constituindo um outro
direito são tomados em consideração pelo sistema jurídico global e, portanto, “de
certo modo, integrados nele – e a unidade é restaurada” (1979:220). Para um
enfoque verdadeiramente pluralista, é para a antropologia e sociologia jurídicas
que devemos nos voltar. E é para essas duas áreas do conhecimento, aliás, que
se volta Boaventura Santos, observando que se trata de um conceito aplicável, e
6
Sobre o assunto, ver Jean Carbonnier (1979), principalmente páginas 213 a 224.
378
Luciano Oliveira
já aplicado, às mais variadas situações, das quais algumas se tornaram clássicas.
A mais conhecida é a situação do colonialismo do século XIX, na qual
havia necessariamente a coexistência, num mesmo espaço arbitrariamente
unificado como colônia, do direito do estado colonizador e dos direitos
tradicionais. Além do contexto colonial clássico, três outras situações de
pluralismo
jurídico
têm
sido
geralmente
identificadas
pela
literatura
socioantropológica. Tal é a situação dos países com tradições culturais
dominantes não europeias, que adotaram o direito europeu como instrumento de
modernização. É o caso, entre outros, da Turquia, Tailândia, etc. Nesses casos, a
situação de pluralismo jurídico resultou do fato de o direito tradicional não ter sido
eliminado no plano sociológico pelo novo direito oficial, continuando a ser utilizado
por amplos setores da população. Uma segunda situação tem lugar quando, em
virtude de uma revolução, o direito tradicional entra em conflito com a nova
legalidade, sem, no entanto, deixar de vigorar, em termos sociológicos, durante
muito tempo. O caso mais conhecido é o das Repúblicas da Ásia Central, de
tradição jurídica islâmica, no seio da URSS depois da revolução soviética. Por
último, Boaventura Santos considera os casos em que populações autóctones,
“nativas” ou “indígenas”, quando não totalmente exterminadas no curso da
expansão marítima europeia, foram submetidas ao direito do conquistador com a
permissão, expressa ou implícita, de em certos domínios continuarem a seguir o
seu direito tradicional. É o caso das populações índias dos países da América do
Norte e da América Latina, e dos povos autóctones da Nova Zelândia e Austrália
(Santos, 1988: passim).
O mesmo Boaventura Santos faz uma observação que me parece
interessante reter: “Todos esses casos de pluralismo jurídico [...] constituem
situações socialmente consolidadas e de longa duração [...]. Têm lugar em
sociedades que, por isso, têm sido designadas ‘heterogêneas’”. Mas é ele próprio
quem, em seguida, sugere
... ampliar o conceito de pluralismo jurídico, de modo a cobrir
situações susceptíveis de ocorrer em sociedades cuja
homogeneidade é sempre precária porque definida em termos
classistas; isto é, nas sociedades capitalistas. Nestas sociedades,
a ‘homogeneidade’ é, em cada momento histórico, o produto
concreto das lutas de classes e esconde, por isso, contradições
Pluralismo Jurídico e Direito Alternativo no Brasil
379
[...]. Essas contradições podem assumir diferentes expressões
jurídicas [...]. Uma dessas expressões [...] é precisamente a
situação de pluralismo jurídico e tem lugar sempre que as
contradições se condensam na criação de espaços sociais, mais
ou menos segregados, no seio dos quais se geram litígios ou
disputas processados com base em recursos normativos e
institucionais internos.
Tal é, para Boaventura Santos, o caso de “Pasárgada”. Mas, como ele
próprio reconhece, tais casos, “em geral, tendem a configurar situações de menor
consolidação (e por vezes mais curta duração) quando confrontadas com as que
compõem os contextos de pluralismo jurídico anteriormente mencionados”. Ora,
uma pergunta que merece ser colocada é: essas “situações de menor
consolidação” – às vezes de “curta duração” –, até que ponto será mesmo válido
caracterizá-las como casos de pluralismo jurídico? Algumas dúvidas ocorrem. Ao
realçarmos, por exemplo, as situações históricas a partir das quais o conceito
emerge, não estaremos, ipso facto, realçando também certa impropriedade em
aplicá-lo ao contexto da realidade brasileira, mas também de boa parte da
realidade latino-americana dos nossos dias? 7 Ou seja: na medida em que os
fenômenos jurídicos plurais emergentes nessa realidade configuram enclaves
cercados por uma ordem dominante e seus valores, não estariam eles
devidamente “contaminados” por esses mesmos valores? Nesse caso, não
faltaria a eles a originalidade cultural que está na base dos fenômenos de
pluralismo jurídico na sua feição clássica?
Essas interrogações ficam melhor esclarecidas quando comparamos as
situações clássicas de pluralismo jurídico com as situações emergentes. Ora, seja
no caso do colonialismo do século XIX, da adoção do direito europeu como
instrumento de modernização, das situações revolucionárias nas estepes
asiáticas, ou da sobrevivência de culturas “indígenas” à expansão marítima
europeia do século XVI, as situações clássicas de pluralismo jurídico opõem, por
assim dizer, duas ordens estranhas uma à outra, cada qual dotada de uma lógica
e valores originais. Tal não é o caso, evidentemente, de fenômenos como o de
“Pasárgada”, originário não de uma situação anterior à implantação da ordem
industrial capitalista moderna, mas, ao contrário, de mecanismos postos em
7
Para uma dúvida semelhante à minha, remeto ao texto de Marcelo Neves, para quem essa
aplicação “parece um grave error de valoración” (1994:73).
380
Luciano Oliveira
marcha por essa mesma ordem – da qual “Pasárgada”, aliás, não seria senão um
subproduto...
A hipótese da “contaminação” pela ideologia dominante que afetaria esses
fenômenos jurídicos plurais 8 é confirmada por ninguém menos do que o próprio
Boaventura Santos, o qual, a respeito da ordem jurídica de “Pasárgada”, diz:
[...] as normas que regem a propriedade no direito do asfalto
podem ser seletivamente incorporadas no direito de Pasárgada e
aplicadas na comunidade. Deste modo não surpreende, por
exemplo, que o princípio da propriedade privada (e as
conseqüências legais dela decorrentes) seja, em geral, acatado
no direito de Pasárgada do mesmo modo que o é no direito estatal
brasileiro (Santos: 1988:14).
A rigor, em termos de América Latina, o conceito de pluralismo jurídico,
pelo menos na sua feição clássica, recobriria apenas aquelas situações em que
os direitos indígenas continuaram sobrevivendo após a implantação da ordem
capitalista 9. Mesmo aí, entretanto, é preciso certa cautela, pois a partir do
momento em que o contato se estabelece, é preciso considerar que as
comunidades indígenas, como partes mais fracas nessa troca desigual,
dificilmente mantêm seus valores originais ao abrigo da sociedade capitalista
envolvente. Em países como o Brasil, por exemplo, em que o extermínio dos
índios ou sua “assimilação” (salvo remanescentes na área amazônica) se deu de
forma quase que total, a visão do pluralismo jurídico clássico não se aplica sem
grandes dificuldades, pois as comunidades indígenas sobreviventes não estão
suficientemente “lejanas” do cerco capitalista para manterem seus valores
originais. No Brasil, os índios passaram, e passam, ainda, por aquilo que um autor
chama de “acampesinamiento” (Almeida, 1991:112) – ou seja, a sua redução à
8
Essa percepção também é partilhada por Antonio Azuela que, refletindo sobre a sociologia
jurídica frente ao fenômeno da urbanização na América Latina e sobre as várias “gramáticas
culturales” que as comunidades segregadas podem gerar, observa que “... en los barrios
populares de las ciudades da América Latina, esa gramática no puede mantenerse al margen de
la lógica del orden jurídico estatal.” E completa: “No es extraño, entonces, que muchos elementos
del orden jurídico estatal se introduzcan al conjunto de representaciones vigentes a nivel local (o
sea a la gramática cultural) y, de ese modo, pasen a formar parte del marco normativo que orienta
la acción” (Azuela, s/d: 22).
9
Azuela, na mesma medida em que considera pouco provável a existência de tais fenômenos nos
aglomerados urbanos, admite a possibilidade de que “... en las comunidades indígenas lejanas e
incomunicadas de los centros urbanos sea más fácil que una cultura tradicional se mantenga y
reproduzca” (ibidem).
Pluralismo Jurídico e Direito Alternativo no Brasil
381
condição de camponeses pobres, cujas raízes culturais vão paulatinamente se
reduzindo a episódios residuais na sua dura luta pela sobrevivência.
Entendamo-nos bem: não se trata, com essas observações, de negar que
exista – ou, mais exatamente, que tenha existido –, em “Pasárgada”, um
fenômeno de pluralismo jurídico, entendido este como uma forma não estatal de
resolução de conflitos. Também não se trata de recusar a explicação marxista
para a existência desse direito, ocasionado basicamente pela segregação a que a
estrutura social capitalista condena grupos sociais inteiros. O questionamento a
ser feito diz respeito a certas leituras desses fenômenos, enviesadas pela
“perspectiva crítica” típica da época, nas quais eles aparecem como dotados de
um potencial anticapitalista e emancipatório 10 que, empiricamente falando,
dificilmente apresentam. Ora, a partir da extraordinária recepção do trabalho de
Boaventura Santos pela “perspectiva crítica” então em evidência, instala-se nos
meios críticos brasileiros uma verdadeira onda pluralista em busca de ordens
jurídicas existentes em favelas e nos bairros miseráveis das periferias da cidade,
supostamente dotadas de uma maior legitimidade por sua origem comunitária.
Miguel Pressburger, principal teórico do Direito Insurgente, anuncia:
Os deserdados da sociedade, os que foram lançados na periferia
ou jamais permitidos a ingressar na modernidade modelada pelo
sistema, construíram e desenvolvem culturas paralelas, para eles
revestidas de todas as prerrogativas legais (1987-1988:5).
E Daniel Rech, do mesmo movimento, dá o tom:
Sin embargo, las comunidades urbanas e rurales al margen del
Estado de Derecho, han creado en su interior normas de conducta
que tienen vigencia y eficacia, tal como el derecho estatal
normatizado. Esas reglas de conducta, verdaderas normas
consensuales ya que non están escritas, han demostrado ser
adecuadas y eficientes, llevando mejor cuenta de las relaciones
sociales vigentes (Rech, 1990:4).
Uma das grandes questões que essas reflexões levantam diz respeito ao
10
Como observa Fernando Rojas Hurtado, “... los nuevos servicios legales latinoamericanos y los
abogados críticos ordinariamente asumen que los grupos explotados, o de cualquier manera
discriminados, guardan en sí mismos el potencial para un orden social no explotador” (Hurtado,
1989:51).
382
Luciano Oliveira
critério de legitimidade que os seus autores aparentemente elegem, qual seja o
da maior eficiência e adequação das práticas jurídicas plurais às relações sociais
vigentes no seio das comunidades populares. Trata-se, de certa forma – e mesmo
que a partir de um registro de esquerda –, de uma atualização da antiga e
conservadora perspectiva sociologista sobre o direito (que engloba movimentos
doutrinários como a Escola Histórica de Savigny, o Direito Livre de Kantorowicz, o
Direito Vivo de Ehrlich etc.), a qual, em resumo, se caracteriza por situar “nas
profundezas da vida social a única fonte de direito” (Carbonnier, 1979: 28). É
preciso aqui lembrar que a perspectiva sociologista já recebeu inúmeras críticas 11,
as quais, para não alongar o debate, podem ser resumidas na observação,
perpassada de bom senso, de que a visão sociologista corre o risco de, em vez
de promover o “verdadeiro” direito, legitimar de fato a injustiça.
Pode ser o caso. Esses direitos locais, em muitas de suas manifestações,
longe de significarem uma praxis libertadora, cristalizam ao contrário práticas de
dominação tão velhas quanto o mundo 12. Um bom exemplo disso chega até nós
através do próprio Miguel Pressburger, o qual, procurando o “direito insurgente”
numa favela do Rio de Janeiro, deixa falar um trabalhador:
[...] allá donde nosotros vivimos [...], existen también reglas del
vivir bien, de la convivencia, que son nuestras leyes, si no, sería
cada uno por sí y Dios por nadie. [...] ? Quiere ver solo una?
Puede hasta parecer violento, pero hace parte de la vida de las
personas. El marido que coje a la mujer con outro, puede llenarla
de golpes y nadie se mete (Pressburger, 1989: 98).
Em resumo, as provas empíricas são falhas em demonstrar que essas
formas populares e comunitárias de justiça portam consigo princípios e valores
mais libertadores do que aqueles existentes no direito oficial. Da mesma forma
que são também inexistentes as evidências de que essas comunidades
marginalizadas sejam portadoras de valores anticapitalistas. Como já ressaltei a
propósito da “contaminação” a que esses fenômenos estariam submetidos, é mais
11
Ver, a propósito, Elías Días (1974:156).
Para uma visão crítica dessas posições, remeto aos comentários de Cláudio Souto, ao lembrar
que os doutrinadores desses fenômenos jurídicos plurais têm rejeitado a “legislação estatal em
nome de uma justiça que se define por uma maioria grupal”, mas que, assim fazendo, tornam “o
direito alternativo usual prisioneiro de uma perspectiva tão formal quanto a estatista” (Souto,
1997:98).
12
Pluralismo Jurídico e Direito Alternativo no Brasil
383
do que plausível a hipótese de que comunidades não anteriores ao capitalismo,
mas produzidas no seu interior, dificilmente apresentem um perfil coletivista de
acordo com a visão frequentemente idealizada presente na literatura pluralista.
É o caso de aglomerados urbanos como “invasões” e “favelas” – que, na
verdade, não são senão “invasões” consolidadas –, frutos de um agir conjunto
que responde mais a uma necessidade ditada pela carência do que a um projeto
político conscientemente coletivo. Vejamos, sobre isso, o que dizem alguns
pesquisadores que, desde o início dos anos 80, debruçaram-se sobre o fenômeno
das invasões numa das metrópoles brasileiras onde elas mais ocorrem: a cidade
do Recife, no Nordeste do Brasil. A ação coletiva, certo, é de regra. Ela é, aliás, a
condição sine qua non para que o movimento tenha alguma chance de êxito.
Como observa Joaquim Falcão num trabalho pioneiro que se tornou uma
referência para os que se seguiram,
... os invasores [... ] sabiam que o sucesso na defesa de seus
direitos seria proporcional à capacidade de permanecerem unidos.
A força do eventual direito repousava no caráter coletivo das
reivindicações, e unitário das soluções. (Falcão, 1984:88).
Mas cessa aí a pretensão de fundar um direito radicalmente diferente:“... a
pretensão maior dos que pautam suas condutas por essas manifestações
normativas não-estatais é justamente transformá-las posteriormente em direito
estatal” (idem: 83). E prossegue: “Os invasores querem ser proprietários.
Justificam a invasão [...] porque sobre o direito de usar e dispor segundo a livre
vontade do proprietário, deve prevalecer o direito de moradia de todos” (idem: 95).
Mas, uma vez o miserável barraco edificado,
[...] a pretensão de todo invasor não é permanecer com um direito
‘informal’ ou paralegal. Sua pretensão é de numa segunda etapa
fazer com que a posse mantida e reconhecida seja ”legalizada”
pelo direito estatal (idem: 98). 13
13
No mesmo diapasão, adverte Azuela: “Al menos en México, es excepcional que quienes
controlan el aceso al suelo se presenten ante los demás enarbolando ‘su’ propria legalidad como
substituto de la legalidad estatal; al contrario, tratan de presentarse a sí mismos como titulares de
un derecho, o como capaces de ‘legalizar’ la situación en un futuro no muy lejano” (Azuela, s/d:
21).
384
Luciano Oliveira
O acesso à propriedade, em boa e devida forma, é a grande pretensão. Um
bom exemplo disso foi o descontentamento dos invasores com um instrumento
jurídico que o poder público, ainda em Recife, elaborou para regularizar a posse
por eles arduamente obtida: a Concessão de Direito Real de Uso (CDRU). Como
explica Salvador Soler Lostão, antigo advogado da Comissão Justiça e Paz local,
“... a CDRU permite ao poder público ceder [...] terra para uso específico fixado
em contrato. A CDRU se resolve, isto é, se extingue, caso ocorra desvio de
finalidade no seu uso” (Lostão, 1991:106). O descontentamento decorreu do fato
de que a Concessão, apesar de assegurar a posse, não transmitia a propriedade.
A sua adoção pelo poder público, aliás, foi inspirada pela melhor das intenções:
impedir a “expulsão branca” dos próprios invasores, os quais, em decorrência da
fragilidade econômica que lhes é peculiar, dificilmente têm condições de resistir à
tentação de vender o imóvel desde que a ocasião se apresente ou a necessidade
assim obrigue. Por isso é que Lostão, com longos anos de experiência como
advogado dos movimentos populares, diz com certa melancolia:
No movimento popular não parece haver um projeto socialista ou
capitalista. Os movimentos populares, como um todo, têm projetos
de curto prazo. Na melhoria da qualidade de vida encontram o seu
denominador comum. (Lostão, 1991:49).
Da mesma forma, para ele, as associações de moradores não parecem
prestes a se transformar em sovietes:
Para os moradores de terras ocupadas irregularmente, a maior
das vitórias é a posse da terra. É sobre esta expectativa que os
conselhos de moradores se afirmam perante a população dos
bairros (idem: 101).
Voltamos, assim, à nossa hipótese sobre o caráter desses fenômenos
jurídicos plurais: produzidos no interior do sistema capitalista, e, portanto,
submetidos à ideologia aí dominante, eles não configurariam a afirmação de um
novo direito, assentado em bases coletivistas, mas, ao contrário, a reivindicação
Pluralismo Jurídico e Direito Alternativo no Brasil
385
para integrar-se ao sistema dominante 14. O que eles pretendem não é viver uma
cultura, valores e normas autóctones, sem a interferência do Estado, mas que
este, através das mais diversas políticas públicas – inclusive uma política de
regularização de suas “invasões” – intervenha a seu favor 15. Essa é também a
opinião de Eliane Junqueira que, voltando vinte anos depois à mesma favela que
Boaventura Santos tinha chamado de “Pasárgada”, e constatando a substituição
da associação de moradores pelo crime organizado como “locus de resolução de
conflitos”, considera que
[...] o direito só é produzido de forma alternativa, paralela, em
razão do profundo vazio de poder derivado da ausência de um
Estado regulamentador que [...] nunca se preocupou em se fazer
presente nas áreas socialmente marginalizadas, a não ser através
da polícia, ou seja, de seu braço repressor (Junqueira, 2001:29).
E conclui:
Neste sentido, o alternativo detectado por Boaventura Santos em
relação às favelas cariocas apenas revela um esforço
desesperado de criação de alguma forma de juridicidade para
gerir relações sociais de uma ”localidade” abandonada à própria
sorte (ibidem) 16.
O mais curioso é que essa perspectiva do pluralismo como um subproduto
da ausência do poder público – noutros termos, não como afirmação de uma
14
Escrevendo mais recentemente do que os autores aqui citados, Lédio Rosa de Andrade é ainda
mais enfático a esse respeito: “O Movimento dos Sem-Terra, o mais citado pelos pluralistas, não
dá a garantia da construção de um Direito solidário e social; [...] Recentes pesquisas feitas pelo
jornal ‘Folha de São Paulo’ demonstram que a luta é por propriedade privada, para poderem entrar
na esfera do Direito instituído. Uma vez conseguido o título da terra, passa-se de posseiro invasor
a proprietário defensor da propriedade. Portanto, discutível, também em nível teórico, todos os
pressupostos de solidariedade, de justiça, de bem-comum e de ética dados, gratuitamente, a
essas normas paralelas” (Andrade, 1998: 58-9).
15
Villegas e Rodríguez chamam a atenção para o fato de que “... la intervención del Estado en la
sociedad no es la única causa de buena parte de la exclusión y la jierarquización sociales. Esto
también sucede cuando el Estado no interviene. Esta segunda perspectiva es con frecuencia
subestimada en la literatura sociojurídica latinoamericana debido a la prevalencia de una
concepción reificada de la sociedad civil como espacio en donde la dominación está excluida”
(2001:27).
16
Ver, no mesmo sentido, Marcelo Neves, para quem “el hecho indiscutible de que en la
modernidad periférica latinoamericana muchas ‘unidades sociales’ disponen difusamente de
diferentes códigos jurídicos, no implica, en rigor, alternativas plurales en relación con el
funcionamiento legal del derecho estatal; antes bien, mecanismos inestables y difusos de reacción
a la ausencia de legalidad” (Neves, 1994:83).
386
Luciano Oliveira
positividade, mas como consequência de uma negatividade –, já se encontra
presente em ninguém menos do que o próprio Boaventura Santos, o qual
observa, numa passagem menos lida do que talvez deveria, que “a intervenção
da associação de moradores nesse domínio [a resolução de conflitos] visa
constituir como que um ersatz da proteção jurídica oficial de que carecem”...
(Santos, 1988:14). Feitas essas anotações a respeito do Pluralismo Jurídico,
voltemos agora nossa atenção para o problema do Direito Alternativo. Como já foi
feito em relação ao tema anterior, irei, também aqui, em vez de estabelecer uma
definição inicial, percorrer os caminhos que levam do aparecimento do conceito à
sua situação atual.
3. O Direito Alternativo – Algumas Confusões Conceituais
Como já foi assinalado, essa é uma designação que surge no início dos
anos 90. Para ser mais preciso, entretanto, digamos que é a partir dessa época
que ela se torna conhecida, pois o conceito, na verdade, já tinha sido formulado –
e mesmo teorizado – antes dessa data. Até onde estou informado, essa
expressão surge pela primeira vez num livro publicado em 1984 pelo jurista crítico
Carlos Artur Paulon, Direito Alternativo do Trabalho, o qual abre com uma “Nota”
que começa dizendo o seguinte: “Aqui estão compilados alguns trabalhos que têm
em comum a tentativa de investigação crítica da lei trabalhista brasileira” (Paulon,
1984: 13) – grifo meu; e termina com uma conclamação:
Por minha vontade, a publicação serviria para advogados, juízes e
estudantes. Não como lições de direito, mas como uma alternativa
de uso deste direito ainda tão distante da verdade democrática
(ibidem) – grifos também meus.
Notam-se aqui duas referências importantes: a primeira, à “perspectiva
crítica” então em evidência; a segunda, ainda que com os termos trocados e sem
referência explícita, ao movimento do “uso alternativo do direito”, de origem
italiana, sobre o qual adiante falaremos. A referência a esse movimento volta a
ser feita adiante, quando Paulon propugna a utilização das “contradições do
ordenamento jurídico estatal” a serviço dos trabalhadores e, já aí utilizando a
expressão com todas as letras, diz:
Pluralismo Jurídico e Direito Alternativo no Brasil
387
Uma legislação trabalhista jamais toca na questão do modo de
produção, jamais avança no sentido de democratizar a
propriedade da empresa, ou seja, jamais se constitui em
instrumento de substituição da propriedade privada pela
propriedade social. Todavia, o uso alternativo do direito do
trabalho, mesmo que instituído com o propósito de manutenção da
ideologia capitalista, acaba por, pelo menos, demonstrar até onde
a ordem jurídica burguesa poderá absorver as conquistas
elevadas à categoria de lei (idem: 19-20) – grifos no original.
Como se vê, o autor não parece muito entusiasmado com a perspectiva
que adota, pois está consciente de que não é através dela que se conseguirá a
“substituição da propriedade privada pela propriedade social”, mas, ainda assim,
recomenda o seu uso:
Quando é possível aos advogados, juízes e demais trabalhadores
em Direito exercitarem suas atividades com uma perspectiva de
engajamento na luta pela libertação do proletariado, esses
profissionais devem fazê-lo no sentido de, mesmo dentro das
instituições das classes dominantes, pressionarem esta ordem
jurídica que expressa a dominação. Pressionar com novas
interpretações, criando as alternativas de um mesmo direito
legislado e gerando jurisprudência e outros instrumentos
normativos que tenham como objetivo uma verdadeira justiça
social (idem: 20) – grifos no original.
Como se vê, a perspectiva mais clássica do “uso alternativo do direito” aí
está. As referências a ele, entretanto, são apenas alusivas. A única indicação
bibliográfica dessa filiação aparece, de forma indireta, pela referência a um
trabalho de Roberto Lyra Filho – o principal teórico e animador da Nova Escola
Jurídica Brasileira, como vimos –, Direito do Trabalho e Direito do Capital, de
1982, no qual esse autor faz referência explícita à corrente alternativista italiana
liderada por Pietro Barcellona, nos seguintes termos:
Na hipocrisia de fazer o contrário do que dizem (isto é, dizer que
vão realizar a Justiça, nas normas, enquanto resguardam seus
privilégios), os dominadores se contradizem, deixam ‘buracos’ nas
suas leis, costumes e doutrina, por onde os mais hábeis juristas
de vanguarda podem enfiar a alavanca do progresso. A isto
chamariam Barcellona e seu grupo de “uso alternativo do direito”
(Lyra Filho, 1982b: 40).
Apesar dessa filiação, Paulon deu à sua perspectiva uma designação
388
Luciano Oliveira
própria: Direito Alternativo, ainda que certamente pensando em termos de um uso
alternativo do direito. E haveria alguma diferença? A meu ver, sim, na medida em
que a expressão escolhida por Paulon, pelo menos atentando-se ao sentido literal
da palavra, remeteria não ao direito estatal – e é disso que trata o uso alternativo
do direito –, mas, para usar uma expressão consagrada no título da prestigiosa
revista do ILSA da Colômbia, a “otro derecho”... – ou seja, um direito alternativo
ao estatal! Essa é a perspectiva que, anos depois, vai ser adotada por Jesús
Antonio Muñoz Gómez num texto publicado logo no primeiro número da revista El
Otro Derecho, no qual o autor tece algumas considerações a respeito do
movimento de origem italiana e sobre a impropriedade que ele considera existir
em sua aplicação no contexto da realidade latino-americana.
Muñoz Gomez começa por fazer uma revisão dos princípios hermenêuticos
do positivismo, com seus postulados de coerência e completude do ordenamento
jurídico, a ele contrapondo a visão, adotada pelo movimento do Uso Alternativo do
Direito, que:
[...] ve el ordenamiento jurídico como algo incompleto, abierto, con
verdaderas lagunas, en donde se reflejan y reproducen las
contradicciones que se presentan en el ámbito de lo económico, lo
político y lo social. [...] Tales contradicciones, lagunas, fisuras,
grietas inherentes al sistema jurídico son justamente las
características que hacen viable un uso alternativo del derecho.
Seria entonces posible tomar las normas más progresistas del
sistema jurídico y con base en ellas sustentar una interpretación y
aplicación del derecho en beneficio de los sectores sociales más
necesitados. Esta nueva forma de interpretar y aplicar el derecho
tendría la misma legitimidad que la tradicional, puesto que se
levantaría también sobre una base normativa (Muñoz Gómez,
1988:48-49).
Como se sabe, o Uso Alternativo do Direito surgiu entre fins dos anos 60 e
inícios dos anos 70 na Itália, através do movimento “Magistratura Democrática”.
Os integrantes dessa corrente estribavam-se nos dispositivos da vigente
Constituição italiana que, proclamada em 1948 ao fim da segunda guerra mundial,
num contexto político marcado pela forte presença do movimento proletário
industrial reconstituído após a queda do fascismo (Bergalli, 1992:25), abrigava
preocupações sociais bastante próximas de um programa socialista. Muñoz
Gómez lembra essa circunstância, transcrevendo o artigo 3° da referida
Pluralismo Jurídico e Direito Alternativo no Brasil
389
Constituição, que diz:
Es misión de la República remover los obstáculos de orden
económico y social que, limitando de hecho la libertad y la
igualdad de los ciudadanos, impidan el pleno desarrollo de la
persona humana y la efectiva participación de todos los
trabajadores en la organización política, económica y social del
país (in 1988:49).
A partir daí, tratava-se de estabelecer uma nova direção na interpretação
da lei, fazendo com o que a legislação ordinária, tradicionalmente presa aos
cânones liberais da codificação civilista típica do século XIX, fosse doravante
aplicada à luz dos novos princípios sociais consagrados na Constituição de 1948,
levando o direito, alternativamente, a operar em benefício dos setores sociais
mais necessitados. Ora, para Muñoz Gómez, esse uso alternativo do direito não
seria possível na Colômbia, pois, segundo ele, escrevendo em 1988, “no tenemos
una norma como el artículo 3° de la Constitución italiana, que le permita al jurista
una práctica judicial alternativa” (idem: 54). E, adiante, generalizando talvez um
tanto apressadamente, dizia:
En América Latina, en los últimos años há surgido una concepción
diferente de la europea del uso alternativo del derecho. Creemos
que la versión que comienza a desarrollarse en América Latina
está más sobre la base de un derecho alternativo que de un uso
alternativo del derecho. Además seria conveniente darle esa
denominación – derecho alternativo – para distinguirla de la
europea, ya que ciertamente tienen sus puntos de diferencia
(idem: 58).
O ponto de diferença fundamental, anunciado pela própria expressão, seria
o fato de que, para usar os próprios termos do autor:
Las dos corrientes parten de prácticas diferentes: la una de la
práctica judicial y la outra de las luchas de la comunidad por sus
derechos [...] En la concepción latinoamericana no se piensa en la
reivindicación del juez como verdadero protagonista de la justicia,
a quien se le mira como un personaje distante, sino en la
comunidad. Se pretende que sea la comunidad misma, los
usuarios directos del derecho, quienes adopten mecanismos para
la defensa de sus proprios intereses, estén o no reconocidos y
protegidos adecuadamente por el derecho (idem: 59).
390
Luciano Oliveira
Em resumo, no caso do Uso Alternativo do Direito de procedência
europeia, o direito de que se fala é o direito estatal, enquanto, no caso do Direito
Alternativo surgido na América Latina, tratar-se-ia de um direito novo gestado
pelas próprias comunidades cujos interesses não seriam acobertados pelo
sistema jurídico. Como se vê, é o Pluralismo Jurídico de Boaventura Santos.
Entretanto, como vimos, quando a designação aparece pela primeira vez no
Brasil, no trabalho de Carlos Artur Paulon, os seus destinatários seriam
“advogados, juízes e demais trabalhadores em Direito”, conclamados a criar uma
“jurisprudência e outros instrumentos normativos que tenham como objetivo uma
verdadeira justiça social”. Ou seja: algo mais próximo da corrente europeia do que
da corrente latino-americana.
O livro de Paulon é de 1984; e o artigo de Muñoz Gómez, de 1988. No ano
seguinte, em 1989, o juiz brasileiro Amilton Bueno de Carvalho 17, do estado do
Rio Grande do Sul, começa um curso na Escola da Magistratura do seu estado
com o nome, justamente, de Direito Alternativo, inspirado, segundo se recorda 18,
pelo título do livro de Carlos Artur Paulon. Mas é de se imaginar que o seu curso,
até pelo fato de ser dado numa escola da magistratura, dirigido a juízes, fosse, se
pensarmos na diferença estabelecida por Muñoz Gómez, mais propriamente
falando, de Uso Alternativo do Direito 19. E isso era possível porque,
diferentemente do que disse o autor colombiano a respeito da impropriedade de
tal designação no seu país, a situação do ordenamento jurídico brasileiro em 1989
apresentava – e apresenta ainda – uma situação mais próxima da situação do
ordenamento italiano dos anos 70 do que da situação colombiana tal qual referida
por Muñoz Gómez, na medida em que a Constituição brasileira de 1988 –
promulgada, portanto, um pouco antes do curso de Carvalho –, entre outros
17
Um nome que viria a se tornar, ao lado de Edmundo Lima de Arruda Júnior, professor da
Universidade de Santa Catarina, a principal referência do movimento no Brasil.
18
Em correspondência dirigida ao autor deste trabalho, em resposta a uma consulta a respeito da
origem do termo.
19
No mesmo sentido, Oscar Correas, que, refletindo sobre a questão de saber se esses
fenômenos protagonizados por juízes deveriam ser classificados de Direito Alternativo, opina no
sentido negativo, na medida em que “... la conducta de esos jueces no está prohibida por el orden
hegemónico”, e que “la ‘resemantización’ y producción de sentencias sobre una base tal [...] está
dentro de sus facultades” (Correas, 1994:73).
Pluralismo Jurídico e Direito Alternativo no Brasil
391
dispositivos igualmente progressistas 20, estabelecia logo no seu artigo 3° o
seguinte princípio:
Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil:
I – Construir uma sociedade livre, justa e solidária;
[...]
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as
desigualdades sociais [...].
Dentro do mesmo espírito, o inciso XXIII do seu artigo 5° dizia: “A
propriedade atenderá a sua função social.” Mas, apropriadamente aplicada ou
não, a designação escolhida pelo juiz Amilton Bueno de Carvalho foi a que ficou.
E a sua popularização no Brasil se deu a partir de um episódio mediático
envolvendo o grupo de juízes alternativistas por ele liderado. Em 25 de outubro de
1990, um grande jornal do estado de S. Paulo, o Jornal da Tarde, publicou uma
reportagem sobre o grupo com um título provocador: “Juízes Colocam Direito
Acima da Lei” 21. Nela, o jornalista autor da matéria, aparentemente aproveitando
o nome do curso dado na Escola da Magistratura por Carvalho, chamou o
movimento de Direito Alternativo. A reportagem teve grande repercussão, dentro
e fora do Judiciário, gerando grandes discussões e fortes acusações por parte
dos juízes mais tradicionais. Foi na sequência desse “tiroteio” que o grupo de
juízes alternativistas, juntamente com Edmundo Lima de Arruda Júnior, professor
na Universidade de Santa Catarina, resolveram, “numa espécie de resposta”
(Andrade: 1998:20), organizar o I Encontro Internacional de Direito Alternativo
para o ano seguinte. O resultado, em termos de repercussão e participação, foi
muito além do esperado 22, e o movimento tornou-se conhecido em todo o Brasil –
e mesmo além fronteiras –, passando, daí em diante, a tornar-se praticamente
sinônimo de toda a “perspectiva crítica” que lhe antecedeu no país. Com o passar
20
Mesmo bem antes disso, aliás, o ordenamento jurídico brasileiro já tinha consagrado na sua
legislação ordinária princípios dotados desse mesmo teor “social”. Em 1942, por exemplo, foi
editada uma Lei de Introdução ao Código Civil cujo artigo 5° dizia: “Na aplicação da lei, o juiz
atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. Não por acaso, esse
é um dos dispositivos mais citados pelos doutrinadores do Direito Alternativo.
21
Informações colhidas em Andrade (1998).
22
Os organizadores previam a presença de umas 400 pessoas; mas as inscrições, ao chegarem
ao número surpreendente de 1.200 pessoas, foram suspensas por falta de espaço físico para
acomodar mais gente... (Andrade: 1998:21)
392
Luciano Oliveira
do tempo, como vimos, o “início eufórico” do movimento perdeu velocidade, com o
que voltamos ao nosso ponto de partida.
Retomando o balanço de Lédio Rosa de Andrade, ele o conclui anunciando
que o Direito Alternativo estaria diante de duas perspectivas: ou se firmar como
uma corrente crítica do Direito, “consolidando uma práxis jurídica alternativa e o
início de uma nova teoria do Direito”, ou fracassar e ficar “na história como uma
moda, uma revolta momentânea que veio e passou” (1998:26). Divirjo dele, que
acredita na primeira hipótese, mas também não creio simplesmente na segunda.
Como se costuma dizer, “nem tanto ao mar, nem tanto a terra”. Entre as duas
posições extremas – a glória de um lado, a efemeridade de outro –, considero
mais prudente investir numa terceira hipótese: a de que o Direito Alternativo está
se tornando, pelas discussões que levantou e pela incorporação de muitas de
suas preocupações à prática de vários operadores, um movimento renovador da
nossa cultura jurídica, inclusive do Poder Judiciário, tradicionalmente preso a um
dogmatismo abstrato indiferente às consequências sociais de suas decisões.
Parece, é verdade, ter passado o tempo das escaramuças iniciais, época
em que um jurista conservador, presidente do Instituto Brasileiro de Direito
Constitucional, referia-se pela imprensa aos juízes que iniciaram o movimento do
Direito Alternativo como uma “magistratura rebelde”, aduzindo que ela devia “ser
processada” (ver Junqueira, 2001: 27, nota 26). Ao mesmo tempo, essa menor
visibilidade mediática corre paralelamente a uma menos ruidosa – e talvez mais
frutífera – penetração do movimento nos espaços docentes das faculdades de
direito, e mesmo em espaços antes impensáveis como as escolas da
magistratura 23, indicadores talvez de que estaria havendo uma espécie de
“normalização” do movimento. E aqui poderíamos alargar esse juízo para sugerir
que, para além do Direito Alternativo – englobando-o, na verdade –, estaríamos
diante de uma normalização da própria “perspectiva crítica” do direito. Um bom
exemplo disso seria a sua assimilação em certa medida pelos cursos jurídicos
através da disciplina sociologia jurídica, um fenômeno que ocorre nesse
momento.
23
O próprio autor deste texto, no ano de 2001, ministrou um curso de Direito Alternativo na Escola
Superior da Magistratura de Pernambuco (um dos estados da federação brasileira) para mais de
uma centena de juízes...
Pluralismo Jurídico e Direito Alternativo no Brasil
393
Por força de uma Portaria do Ministério da Educação (n° 1.886/94) que
passou a vigorar a partir de 1997, atualmente no Brasil a sociologia jurídica é
matéria obrigatória no currículo dos cursos de direito. E não se trata de qualquer
sociologia jurídica, mas, como evidenciam as discussões que antecederam a sua
edição 24, de uma sociologia que pudesse “recuperar uma visão humanista,
introduzir uma dimensão crítica” nos cursos (Junqueira, 2000:19) – grifei. E essa
intenção, numa boa medida, é igualmente partilhada pelos professores da
disciplina. Segundo dados de uma pesquisa feita junto aos mesmos, entre os
objetivos da disciplina figura, majoritariamente, o de “desenvolver uma visão
crítica” 25. E, ainda que o Direito Alternativo pouco apareça explicitamente nos
programas dos professores, é de se notar que, malgrado tudo, aparece, e um dos
seus principais animadores, o professor Edmundo Lima de Arruda Júnior, figura
entre os dez autores mais referidos nas bibliografias adotadas pelos professores
(Junqueira, idem: 42 e 44) 26. Não é pouca coisa. Mas, também, é certamente um
tanto menos do que imaginavam alguns dos seus doutrinadores na ocasião do
seu aparecimento, bastante influenciados pela visão de um Pluralismo Jurídico
anunciador de uma nova sociedade livre, justa e igualitária, bem dentro do espírito
da “perspectiva crítica” a que aludimos no começo.
Juntemos as pontas dos dois fios que viemos desenrolando. Dissemos, em
algum ponto atrás, que o Direito Alternativo seria uma espécie do gênero
Pluralismo Jurídico. No caso, estamos falando de direito alternativo no sentido
atribuído por Muñoz Gómez ao termo, isto é, aquele direito não oriundo do
Estado, mas criado pelos grupos sociais desfavorecidos a partir dos seus
interesses e necessidades. O “direito de Pasárgada” seria um bom exemplo disso.
O “direito à moradia” que emerge das ações do Movimento dos “Sem-Terra”,
também. No caso, o que os distingue de um Uso Alternativo do Direito seria o fato
24
De se observar também que a Comissão de Especialistas do Ministério da Educação para o
ensino do direito, responsável pela edição da Portaria, era composta, entre outros, por José
Geraldo de Souza Júnior, professor da Universidade de Brasília e um dos principais colaboradores
e depois continuadores do trabalho de Roberto Lyra Filho, o fundador da Nova Escola Jurídica
Brasileira.
25
Assinalado por 36,2% dos respondentes, esse foi o objetivo que mais recebeu adesões entre
outros (Junqueira, 2000:48).
26
Aparece em sexto lugar, sintomaticamente ao lado de outro nome muito importante dentro da
“perspectiva crítica” do direito no Brasil, o professor Roberto Aguiar, da Universidade de Brasília
(Junqueira, idem:44).
394
Luciano Oliveira
de que eles se desenrolam seja no âmbito interno a uma comunidade e na
indiferença do direito estatal, como no caso do primeiro exemplo, seja infringindo
disposições desse mesmo direito, como no caso do segundo exemplo, em que há
uma infração aos dispositivos que regem a propriedade no Brasil.
Em relação a esse último exemplo, todavia, vale lembrar que muitas vezes
os conflitos que surgem dessas ocupações chegam ao Judiciário sob a forma de
ações movidas pelo proprietário do terreno invadido demandando a expulsão dos
invasores. De um modo geral, os juízes decidem pela desocupação. Em alguns
casos, todavia – cujo volume ainda está a demandar uma pesquisa específica –,
há juízes que, influenciados pelo movimento alternativista, ou simplesmente
sensíveis à questão social embutida nos conflitos, valem-se dos dispositivos
constitucionais já mencionados a respeito da construção de uma sociedade justa,
casando-os com aquele outro da Lei de Introdução ao Código Civil que manda o
juiz aplicar a lei atentando aos seus “fins sociais” (ver nota n° 21), e negam o
pedido de expulsão dos invasores! Nesse caso, o Direito Alternativo transformase em Uso Alternativo do Direito...
Foi a partir da existência dessas várias situações e da imprecisão
conceitual delas resultantes que o próprio Amilton Bueno de Carvalho, já em
1993, num texto ampliado em 1997, sugeriu a adoção de uma tipologia que
esclarecesse e, ao mesmo tempo, abrangesse todas as vertentes do que ele
passa a chamar de “Direito Alternativo lato sensu”, que seria uma espécie de
gênero, abrigando as seguintes espécies: a) “Uso Alternativo de Direito” que,
como vimos, seria uma “atuação dentro do sistema positivado”, mediante uma
reinterpretação dos seus dispositivos; b) “Positividade Combativa” 27, que seria a
“efetiva concretização [de] conquistas democráticas que já foram erigidas à
condição de lei”, mas que muitas vezes permanecem sem aplicação; c) e,
finalmente, o “Direito Alternativo em sentido estrito”, que, esse sim, seria aquilo
que Muñoz Gómez chamou de direito alternativo tout court, e que, como diz
Amilton Bueno de Carvalho, confirmando nossa hipótese a respeito de sua
filiação, “emerge do pluralismo jurídico”, mas que, como conclui o mesmo autor,
27
Conceito que, na versão original de 1993, comparecia com a designação de “Positivismo de
Combate”, abandonada pelo autor em virtude dos pressupostos da neutralidade e da
imparcialidade implicados no termo “Positivismo” (Carvalho: 1997:134).
Pluralismo Jurídico e Direito Alternativo no Brasil
395
“merece efetivação” (Carvalho, 1997: passim).
Gostaria de fazer duas observações a respeito dessa tipologia e das
realidades que ela recobre. A primeira é a de que, no final das contas, o Direito
Alternativo stricto sensu termina sendo um fenômeno residual frente às outras
manifestações abrigadas pela designação genérica de Direito Alternativo. E, last
but not least, no que diz respeito às suas manifestações colidentes com o direito
estatal, mas que têm como “horizonte a utopia da vida digna em abundância para
todos”– o caso das ocupações de terras, por exemplo –, ele aparece, no dizer do
seu principal animador, como tendo a vocação para tornar-se... direito estatal! 28
Isso reforça, a meu ver, a hipótese a respeito da “normalização” do
movimento alternativista no Brasil. Um bom exemplo disso, aliás, é fornecido pelo
próprio concurso de ensaios promovido pela revista El Otro Derecho sobre
Pluralismo Jurídico (ver nota n° 4), vencido por dois brasileiros que fizeram um
trabalho sobre conflitos nas possessões agrárias na Amazônia. Trata-se de um
tipo de conflito clássico nessas zonas de fronteira, opondo, de um lado,
proprietários de largas extensões de terra em bases capitalistas e, de outro,
posseiros que mantêm uma atividade extrativa nessa mesma terra em bases
comunais, numa “forma colectiva de apropriación de los recursos” (Benatti e
Maues, 1994: 17). Os conflitos são inevitáveis “de esas modalidades [de derecho]
con el derecho estatal, caracterizando situaciones de pluralismo jurídico” (idem:
16). Entretanto, a tensão entre as duas modalidades jurídicas, no caso, resolveuse mediante a intervenção do próprio Estado, através da edição de um Decreto
Federal (n° 98.987/90) estabelecendo “la creación de reservas extractivas”, ou
seja, fixando em alguma medida direitos de coleta para os “seringueiros”. E
comentam os autores: “En el caso analizado, la búsqueda de reconocimiento por
el Estado condiciona aún más la eficacia del derecho alternativo” (idem: 29) –
grifei.
28
Essa mesma perspectiva parece ser a de Edmundo Lima de Arruda Júnior que, analogamente à
tipologia proposta por Amilton Bueno de Carvalho, propõe três vertentes que guardam o mesmo
sentido da proposta deste último: o uso alternativo do direito seria o que ele chama de “instituído
relido”; a positividade combativa, o “instituído sonegado”; e o direito alternativo stricto sensu, o
“instituinte negado” – mas, como indica a forma propositiva da palavra “instituinte”, com a vocação
de tornar-se, um dia, instituído... (Arruda Junior, 1993:184-185).
396
Luciano Oliveira
4. Conclusão
Resumindo e concluindo essas notas – que ficam aqui mais como uma
hipótese de trabalho do que como algo cabalmente demonstrado –, parece-me
que hoje, no Brasil, as lutas sociais que se desenvolvem em torno da ideia de
direito almejam mais a um reconhecimento e integração ao sistema jurídico 29 do
que a uma “alternatividade” ou a um “pluralismo” que termina se revelando mais
um subproduto da segregação e do abandono do que um projeto livremente
acordado entre homens livres e autônomos. Na medida em que situações como a
de “Pasárgada” ou das “invasões” são produzidas por mecanismos de exclusão –
é o próprio Boaventura Santos, vale lembrar, que fala em “espaços segregados” –
, não seria mais razoável ver nelas tentativas de superação dessa mesma
exclusão? Uma analogia para clarear: igual ao que acontece nas lutas contra a
discriminação racial em sociedades que afirmam teoricamente o valor igual de
todos os seres humanos, essas situações não configurariam, de preferência, uma
luta pela integração?
Nos últimos anos, o próprio sistema jurídico brasileiro, como observei com
alguns exemplos – não exaustivos, diga-se de passagem – extraídos da
Constituição vigente, tem reconhecido e integrado, ao menos em nível normativo,
e mesmo em nível jurisprudencial, vários princípios que inspiram essas e outras
lutas coletivas a partir da noção de direitos. Num país como o Brasil, com uma
forte tradição de autoritarismo e de desrespeito aos direitos dos mais fracos, não
seria essa a verdadeira alternativa a conferir?
Referências Bibliográficas
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Tierras de Negro, Tierras de Santo, Tierras
de Indio – Uso común y conflicto, In: El Otro Derecho, n° 7, ILSA, Bogotá, 1991.
ANDRADE, Lédio Rosa de. O que é Direito Alternativo?, Florianópolis, Obra
Jurídica Editora, 1998.
ARRUDA JUNIOR, Edmundo Lima de. Introdução à Sociologia Jurídica
29
Eliane Junqueira, com quem concordo, dirá que “... o desafio para a sociedade brasileira
consiste não em criar espaços autônomos na órbita do privado, mas sim em introduzir-se na
máquina estatal, formalizando e positivando suas demandas e seus interesses” (2001:24).
Pluralismo Jurídico e Direito Alternativo no Brasil
397
Alternativa, S. Paulo, Editora Acadêmica, 1993.
AZUELA, Antonio. La Sociologia Jurídica frente a la Urbanización en América
Latina, Instituto de Investigaciones Sociales, U.A.M., México, s/d, repro.
BENATTI, José Heder ; MAUES, Antonio Gomes Moreira. El Pluralismo Jurídico y
las posesiones agrarias en la Amazonia, In: El Otro Derecho, n° 16, ILSA, Bogotá,
1994.
BERGALLI, Roberto. Usos y Riesgos de Categorias Conceptuales: conviene
seguir empleando la expresión ‘uso alternativo del derecho’?, In: Revista de
Direito Alternativo, n° 1, S. Paulo. Editora Acadêmica, 1992.
CARBONNIER, Jean. Sociologia Jurídica, Coimbra, Livraria Almedina, 1979.
CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Alternativo: uma revisita conceitual, in
Justiça e Democracia, n° 3, São Paulo, 1997.
CORREAS, Oscar. La Teoria General del Derecho y el Derecho Alternativo, in El
Otro Derecho, n° 15, ILSA, Bogotá, 1994.
DÍAS, Elías. Sociologia y Filosofía del Derecho, Madrid, Taurus, 1974.
FALCÃO, Joaquim de Arruda. Justiça Social e Justiça Legal: conflitos de
propriedade no Recife, in FALCÃO, Joaquim de Arruda (org.), Conflito de Direito
de Propriedade – Invasões urbanas, Rio de Janeiro, Forense, 1984.
HURTADO, Fernando Rojas. Comparación entre las Tendencias de los Servicios
Legales em Norteamérica, Europa y América Latina – Primera Parte, in El Otro
Derecho, n° 1, ILSA, Bogotá, 1988.
JUNQUEIRA, Eliane Botelho. A Sociologia do Direito no Brasil – Introdução ao
debate atual, Rio de Janeiro, Lemen Juris, 1993.
______. Geléia Geral: a sociologia jurídica nas faculdades de direito, in Cadernos
do IDES, Série Pesquisa, n° 8, IDES, Rio de Janeiro, 2000.
______. O Alternativo regado a Vinho e a Cachaça, In: Através do Espelho –
Ensaios de Sociologia Jurídica, Rio de Janeiro, IDES/Letra Capital, 2001.
LOSTÃO, Salvador Soler. O PREZEIS: Um Processo de Participação Popular na
Formação da Cidade, Dissertação do Mestrado em Desenvolvimento Urbano
(MDU), Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 1991.
LYRA FILHO, Roberto. A Nova Escola Jurídica Brasileira, in Direito e Avesso, n°
1, Brasília, Editora Nair, 1982a.
398
Luciano Oliveira
______. Direito do Capital e Direito do Trabalho, Porto Alegre, Sergio Antonio
Fabris Editor, 1982b.
MUÑOZ GÓMEZ, Jesús Antonio. Reflexiones sobre el uso alternativo del
derecho, in El Otro Derecho, n° 1, ILSA, Bogotá, 1988.
NEVES, Marcelo. Del Pluralismo Jurídico a la miscelánea social, in El Otro
Derecho, n° 16, ILSA, Bogotá, 1994.
PALACIO, Germán. Pluralismo Jurídico, Bogotá, Universidad Nacional de
Colombia, 1993.
PAULON, Carlos Artur. Direito Alternativo do Trabalho, São Paulo, Editora LTr,
1984.
PRESSBURGER, Miguel. Direito Insurgente – Anais de fundação do Instituto
Apoio Jurídico Popular, Rio de Janeiro, AJUP, 1987-1988.
______. (Entrevistador). Habla un Trabajador: El Derecho, la Justicia y la Ley, in
El Outro Derecho, n° 2, ILSA, Bogotá, 1989.
RECH, Daniel. Derecho Insurgente – El derecho de los oprimidos, in El Outro
Derecho, n° 6, ILSA, Bogotá, 1990.
RODRÍGUES, Eduardo. La Producción Social del Derecho, in El Otro Derecho, n°
6, ILSA, Bogotá, 1990.
SANTOS, Boaventura de Souza. Law against Law, México, Centro Intercultural de
Documentación, Caderno n° 87, 1974.
______. The Law of the Opressed, in Law & Society Review, vol 12, n° 1, 1977.
______. Notas sobre a História Jurídico-Social de Pasárgada, in SOUTO, Cláudio
e FALCÃO, Joaquim (Orgs.), Sociologia e Direito, São Paulo, Editora Pioneira,
1980.
______. O Discurso e o Poder, Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 1988.
SOUTO, Cláudio. Tempo do Direito Alternativo, Porto Alegre, Livraria do
Advogado, 1997.
VILLEGAS, Mauricio García e RODRÍGUEZ, César, Derecho y Sociedad en
América Latina: hacia la consolidación de los estudios jurídicos críticos (texto sem
referências), 2001, repro.
WOLKMER, Antonio Carlos. “Pluralismo Jurídico, Movimientos Sociales y
Prácticas Alternativas”, In: El Otro Derecho, n° 7, ILSA, Bogotá, 1991.
Pluralismo Jurídico e Direito Alternativo no Brasil
399
Neoconstitucionalismo y Ponderación Judicial*
Luis Prieto Sanchís
Sumario: 1.¿Qué Puede Entenderse por Neoconstitucionalismo? 2. El
Modelo de Estado Constitucional de Derecho. 3. El Neoconstitucionalismo
como Teoría del Derecho. 4. La Ponderación y los Conflictos
Constitucionales. 5. El Juicio de Ponderación. 6. Ponderación,
Discrecionalidad y Democracia.
1. ¿Qué Puede Entenderse por Neoconstitucionalismo?
Neoconstitucionalismo, constitucionalismo contemporáneo o, a veces
también, constitucionalismo a secas son expresiones o rúbricas de uso cada día
más difundido y que se aplican de un modo un tanto confuso para aludir a
distintos aspectos de una presuntamente nueva cultura jurídica. Creo que son tres
las acepciones principales 1. En primer lugar, el constitucionalismo puede encarnar
un cierto tipo de Estado de Derecho, designando por tanto el modelo institucional
de una determinada forma de organización política. En segundo término, el
constitucionalismo es también una teoría del Derecho, más concretamente
aquella teoría apta para explicar las características de dicho modelo. Finalmente,
por constitucionalismo cabe entender también la ideología que justifica o defiende
la fórmula política así designada.
Aquí nos ocuparemos preferentemente de algunos aspectos relativos a las
dos primeras acepciones, pero conviene decir algo sobre la tercera. En realidad,
el (neo)constitucionalismo como ideología presenta diferentes niveles o
proyecciones. El primero y aquí menos problemático es el que puede identificarse
con aquella filosofía política que considera que el Estado constitucional de
Derecho representa la mejor o más justa forma de organización política.
Naturalmente, que sea aquí el menos problemático no significa que carezca de
problemas; todo lo contrario, presentar el constitucionalismo como la mejor forma
de gobierno ha de hacer frente a una objeción importante, que es la objeción
*
Trabajo también aparecido em M. Carbonell, Neoconstitucionalismo(s), Trotta, Madrid, 2003, P.
123-158.
1
Con algunas libertades adopto aquí el esquema propuesto por P. Comanducci, “Formas de
(neo)constitucionalismo: un reconocimiento metateórico”, trabajo inédito.
democrática o de supremacía del legislador: a más Constitución y a mayores
garantías judiciales, inevitablemente se reducen las esferas de decisión de las
mayorías parlamentarias, y ocasión tendremos de comprobar que esta es una de
las consecuencias de la ponderación judicial.
Una segunda dimensión del constitucionalismo como ideología es aquella
que pretende ofrecer consecuecias metodológicas o conceptuales y que puede
resumirse así: dado que el constitucionalismo es el modelo óptimo de Estado de
Derecho, al menos allí donde existe cabe sostener una vinculación necesaria
entre el Derecho y la moral y postular por tanto alguna forma de obligación de
obediencia al Derecho. Por último, la tercera versión del constitucionalismo
ideológico, que suele ir unida a la anterior y que tal vez podría denominarse
constitucionalismo dogmático, representa una nueva visión de la actitud
interpretativa y de las tareas de la ciencia y de la teoría del Derecho, propugnando
bien la adopción de un punto de vista interno o comprometido por parte del jurista,
bien una labor crítica y no sólo descriptiva por parte del científico del Derecho.
Ejemplos de estas dos última implicaciones pueden encontrarse en los
planteamientos de autores como Dworkin, Habermas, Alexy, Nino, Zagrebelsky y,
aunque tal vez de un modo más matizado, Ferrajoli 2.
2. El Modelo de Estado Constitucional de Derecho
En la primera acepción, como tipo de Estado de Derecho, cabe decir que el
neoconstitucionalismo es el resultado de la convergencia de dos tradiciones
constitucionales que con frecuencia han caminado separadas3: una primera que
concibe la Constitución como regla de juego de la competencia social y política,
como pacto de mínimos que permite asegurar la autonomía de los individuos
como sujetos privados y como agentes políticos a fin de que sean ellos, en un
marco democrático y relativamente igualitario, quienes desarrollen libremente su
plan de vida personal y adopten en lo fundamental las decisiones colectivas
2
He tratado de estos aspectos en Constitucionalismo y positivismo, Fontamara, México, 2ªed.,
1999, p. 49 y ss.
3
Sobre esas dos tradiciones sigo en lo fundamental el esquema propuesto por M. Fioravanti, Los
derechos fundamentales. Apuntes de historia de las Constituciones, trad. de M. Martínez Neira,
Trotta, Madrid, 1996, p. 55 y ss.; del mismo autor vid también Constitución. De la antigüedad a
nuestros días, trad. de M. Martínez Neira, Trotta, Madrid, 2001, p. 71 y ss.
Neoconstitucionalismo y Ponderación Judicial
401
pertinentes en cada momento histórico. En lineas generales, esta es la tradición
norteamericana originaria, cuya contribución básica se cifra en la idea de
supremacia constitucional y en su consiguiente garantía jurisdiccional: dado su
carácter de regla de juego y, por tanto, de norma lógicamente superior a quienes
participan en ese juego, la Constitución se postula como jurídicamente superior a
las demás normas y su garantía se atribuye al más “neutro” de los poderes, a
aquel que debe y que mejor puede mantenerse al margen del debate político, es
decir, al poder judicial. La idea del poder constituyente del pueblo se traduce aquí
en una limitación del poder político y, en especial, del más amenazador de los
poderes, el legislativo, mediante la cristalización jurídica de su forma de proceder
y de las barreras que no puede traspasar en ningún caso. En este esquema, es
verdad que el constitucionalismo se resuelve en judicialismo, pero -con
independencia ahora de cuál haya sido la evolución del Tribunal Supremo
norteamericano 4 – se trata en principio de un judicialismo estrictamente limitado a
vigilar el respeto hacia las reglas básicas de la organización política.
La segunda tradición, en cambio, concibe la Constitución como la
encarnación de un proyecto político bastante bien articulado, generalmente como
el programa directivo de una empresa de transformación social y política. Si
puede decirse así, en esta segunda tradición la Constitución no se limita a fijar las
reglas de juego, sino que pretende participar directamente en el mismo,
condicionando con mayor o menor detalle las futuras decisiones colectivas a
propósito del modelo económico, de la acción del Estado en la esfera de la
educación, de la sanidad, de las relaciones laborales, etc. También en lineas
generales, cabe decir que esta es la concepción del constitucionalismo nacido de
la revolución francesa, cuyo programa transformador quería tomar cuerpo en un
texto jurídico supremo. Sin embargo, aquí la idea de poder constituyente no
quiere agotarse en los estrechos confines de un documento jurídico que sirva de
límite a la acción política posterior, sino que pretende perpetuarse en su ejercicio
por parte de quien resulta ser su titular indiscutible, el pueblo; pero, como quiera
que ese pueblo actúa a través de sus representantes, a la postre será el
legislativo quien termine encarnando la rousseauniana voluntad general que,
4
Sobre esa evolución puede verse Ch. Wolfe, La transformación de la interpretación
constitucional, trad. de M.G. Rubio de Casas y S. Valcárcel, Civitas, Madrid, 1991.
402
Luis Prieto Sanchís
como es bien conocido, tiende a concebirse como ilimitada. Por esta y por otras
razones que no es del caso comentar, pero entre las que se encuentra la propia
disolución de la soberanía del pueblo en la soberanía del Estado, tanto en Francia
como en el resto de Europa a lo largo del siglo XIX y de parte del XX, la
Constitución tropezó con dificultades prácticamente insalvables para asegurar su
fuerza normativa frente a los poderes constituidos, singularmente frente al
legislador y frente al gobierno. De modo que este constitucionalismo se resuelve
más bien en legalismo: es el poder político de cada momento, la mayoría en un
sistema democrático, quien se encarga de hacer realidad o, muchas veces, de
frustrar cuanto aparece “prometido” en la Constitución.
Sin duda, la presentación de estas dos tradiciones resulta esquemática y
necesariamente simplificada. Sería erróneo pensar, por ejemplo, que en el primer
modelo la Constitución se compone sólo de reglas formales y procedimentales,
aunque sólo sea porque la definición de las reglas de juego reclama también
normas sustantivas relativas a la protección de ciertos derechos fundamentales.
Como también sería erróneo suponer que en la tradición europea todo son
Constituciones revolucionarias, prolijas en su afán reformador y carentes de
cualquier fórmula de garantía frente a los poderes constituidos. Pero, como
aproximación general, creo que sí es cierto que en el primer caso la Constitución
pretende determinar fundamentalmente quién manda, cómo manda y, en parte
también, hasta dónde puede mandar; mientras que en el segundo caso la
Constitución quiere condicionar también en gran medida qué debe mandarse, es
decir, cuál ha de ser la orientación de la acción política en numerosas materias.
Aunque, eso sí, como contrapartida, la fórmula más modesta parece haber
gozado de una supremacía normativa y de una garantía jurisdiccional mucho más
vigorosa que la exhibida por la versión más ambiciosa.
El neoconstitucionalismo reúne elementos de estas dos tradiciones: fuerte
contenido normativo y garantía jurisdiccional. De la primera de esas tradiciones se
recoge la idea de garantía jurisdiccional y una correlativa desconfianza ante el
legislador; cabe decir que la noción de poder constituyente propia del
neoconstitucionalismo es más liberal que democrática, de manera que se traduce
en la existencia de límites frente a las decisiones de la mayoría, no en el
apoderamiento de esa mayoría a fin de que quede siempre abierto el ejercicio de
Neoconstitucionalismo y Ponderación Judicial
403
la soberanía popular a través del legislador. De la segunda tradición se hereda,
sin embargo, un ambicioso programa normativo que va bastante más allá de lo
que exigiría la mera organización del poder mediante el establecimiento de las
reglas de juego. En pocas palabras, el resultado puede resumirse así: una
Constitución transformadora que pretende condicionar de modo importante las
decisiones de la mayoría, pero cuyo protagonismo fundamental no corresponde al
legislador, sino a los jueces.
Para comprender mejor el alcance del constitutcionalismo contemporáneo,
al menos en el marco de la cultura jurídica europea, tal vez conviene recordar y
tomar como punto de referencia la aportación del Kelsen, cuyo modelo de justicia
constitucional, llamado de jurisdicción concentrada, sigue siendo por lo demás el
modelo vigente en Alemania, Italia, España o Portugal, aunque seguramente esa
vigencia se cifre más en la apariencia de su forma de organización que en la
realidad de su funcionamiento. Kelsen, en efecto, fue un firme partidario de un
constitucionalismo escueto, circunscrito al establecimiento de normas de
competencia y de procedimiento, esto es, a una idea de Constitución como norma
normarum, como norma reguladora de las fuentes del Derecho y, con ello,
reguladora de la distribución y del ejercicio del poder entre los órganos estatales5.
La Constitución es así, ante todo, una norma “interna” a la vida del Estado, que
garantiza sólo el pluralismo en la formación parlamentaria de la ley, y no una
norma “externa” que desde la soberanía popular pretenda dirigir o condicionar de
manera decisiva la acción política de ese Estado, es decir, el contenido de sus
leyes 6. Puede decirse que con Kelsen el constitucionalismo europeo alcanza sus
últimas metas dentro de lo que eran sus posibilidades de desarrollo: la idea de un
Tribunal Constitucional es verdad que consagraba la supremacía jurídica de la
5
Advertía Kelsen que la Constitución, especialmente si crea un Tribunal Constitucional, debería de
abstenerse de todo tipo de fraseología, porque “podrían interpretarse las disposiciones de la
Constitución que invitan al legislador a someterse a la justicia, la equidad, la igualdad, la libertad,
la moralidad, etc. como directivas relativas al contenido de las leyes. Esta interpretación sería
evidentemente equivocada”, pues conduciría a la sustitución de la voluntad parlamentaria por la
voluntad judicial: “el poder del tribunal sería tal que habría que considerarlo simplemente
insoportable”, “La garantía jurisdiccional de la Constitución (la justicia constitucional)”, en Escritos
sobre la democracia y el socialismo, ed. de J. Ruiz Manero, Debate, Madrid, 1988, p. 142 y s.
6
Como dice F. Rubio, hay en Kelsen “una repugnancia a admitir la vinculación del legislador a los
preceptos no puramente organizativos de la Constitución, a aceptar la predeterminación del
contenido material de la ley”, “Sobre la relación entre el Tribunal Constitucional y el Poder Judicial
en el ejercicio de la jurisdicción constitucional”, Revista Española de Derecho Constitucional, n° 4,
1982, p. 40.
404
Luis Prieto Sanchís
Constitución, pero su neta separación de la jurisdicción ordinaria representaba el
mejor homenaje al legislador y una palmaria muestra de desconfianza ante la
judicatura, bien es verdad que entonces estimulada por el Derecho libre; y
asimismo, la naturaleza formal de la Constitución, que dejaba amplísimos
espacios a la política, suponía un segundo y definitivo acto de reconocimiento al
legislador 7.
Constituciones garantizadas sin contenido normativo y Constituciones con
un más o menos denso contenido normativo, pero no garantizadas. En cierto
modo, este es el dilema que viene a resolver el neoconstitucionalismo, apostando
por una conjugación de ambos modelos: Constituciones normativas garantizadas.
Que una Constitución es normativa significa que, además de regular la
organización del poder y las fuentes del Derecho –que son dos aspectos de una
misma
realidad–,
inmediatamente
genera
exigibles.
de
modo
Los
directo
documentos
derechos
y
obligaciones
jurídicos
adscribibles
al
neoconstitucionalismo se caracterizan, efectivamente, porque están repletos de
normas que le indican a los poderes públicos, y con ciertas matizaciones también
a los particulares, qué no pueden hacer y muchas veces también qué deben
hacer. Y dado que se trata de normas y más concretamente de normas supremas,
su eficacia ya no depende de la interposición de ninguna voluntad legislativa, sino
que es directa e inmediata. A su vez, el carácter garantizado de la Constitución
supone que sus preceptos pueden hacerse valer a través de los procedimientos
jurisdiccionales existentes para la protección de los derechos: la existencia de un
Tribunal
Constitucional
no
es,
desde
luego,
incompatible
con
el
neoconstitucionalismo, pero sí representa un residuo de otra época y de otra
concepción de las cosas, en particular de aquella época y de aquella concepción
(kelseniana) que hurtaba el conocimiento de la Constitución a los jueces
ordinarios, justamente por considerar que aquélla no era una verdadera fuente del
Derecho, sino una fuente de las fuentes, cuyos conflictos habían de dirimirse ante
un órgano especialísimo con un rostro mitad político y mitad judicial. Pero si la
Constitución es una norma de la que nacen derechos y obligaciones en las más
7
Sobre el modelo de justicia constitucional kelseniano y sus insuficiencias desde la perspectiva del
constitucionalismo contemporáneo he tratado en “Tribunal Constitucional y positivismo jurídico”, en
Teoría de la Constitución. Ensayos escogidos, compilación de M. Carbonell, Porrúa, UNAM,
México, 2000, p. 312 y ss.
Neoconstitucionalismo y Ponderación Judicial
405
diversas esferas de relación jurídica, su conocimiento no puede quedar cercenado
para la jurisdicción ordinaria, por más que la existencia de un Tribunal
Constitucional imponga complejas y tensas fórmulas de armonización.
El constitucionalismo europeo de posguerra parece así haber tomado
elementos de distintas procedencias, conjugándolos de un modo bastante
original.
Frente
a
la
idea
rousseauniana
de
una
soberanía
popular
permanentemente activa que, además de dotarse de una Constitución, quiere
prolongarse en la inagotable voluntad general que se hace efectiva a través del
legislador, parece haber retornado más bien a la herencia norteamericana que
veía en la Constitución la expresión acabada de un poder constituyente limitador
de los poderes constituidos, incluido el legislador. Pero, frente a la concepción
más escueta de la Constitución como regla del juego que se reduce a ordenar el
pluralismo político en la formación de la ley, una visión presente en el primer
constitucionalismo
norteamericano
pero también en
Kelsen,
las
nuevas
Constituciones no renuncian a incorporar en forma de normas sustantivas lo que
han de ser los grandes objetivos de la acción política, algo que se inscribe mejor
en la tradición de la revolución francesa. Del primero de los modelos enunciados
se deduce la garantía judicial, que es el método más consecuente de articular la
limitación del legislador; pero del segundo se deducen los parámetros del
enjuiciamiento, que ya no son reglas formales y procedimentales, sino normas
sustantivas.
Desde esta perspectiva, no cabe duda que el Estado constitucional
representa una fórmula del Estado de Derecho, acaso su más cabal realización,
pues si la esencia del Estado de Derecho es el sometimiento del poder al
Derecho, sólo cuando existe una verdadera Constitución ese sometimiento
comprende también al legislativo. Y esto en sí mismo no es ninguna novedad. Ya
en 1966 Elías Díaz se preguntaba si en el Estado de Derecho habría base para el
absolutismo legislativo y su respuesta era categóricamente negativa:“el poder
legislativo está limitado por la Constitución y por los Tribunales, ordinarios o
especiales según los sistemas, que velan por la garantía de la constitucionalidad
de las leyes” 8. Sin embargo, al margen de que el citado autor insistiese más en el
8
E. Díaz, Estado de Derecho y sociedad democrática, Edicusa, Madrid, 1966, p. 21. La afirmación
se mantiene inalterada en la novena edición, Taurus, Madrid, 1998, p. 47 y s.
406
Luis Prieto Sanchís
principio de legalidad que en el de constitucionalidad y al margen también de que
afirmase la supremacía (más que el equilibrio) del legislativo sobre el judicial, hay
al menos dos elementos en el constitucionalismo contemporáneo que suponen
una cierta corrección al modelo liberal europeo de Estado de Derecho y ambos
han sido ya aludidos. El primero es la fuerte “rematerialización” constitucional,
impensable en el contexto decimonónico. La Constitución ya no sólo limita al
legislador al establecer el modo de producir el Derecho y, a lo sumo, algunas
barreras infranquables, sino que lo limita también al predeterminar amplias
esferas de regulación jurídica, en ocasiones por cierto de forma no
suficientemente unívoca ni concluyente. El segundo elemento, y tal vez más
importante, es lo que pudiéramos llamar el desbordamiento constitucional 9, esto
es, la inmersión de la Constitución dentro del ordenamiento jurídico como una
norma suprema. Los operadores jurídicos ya no acceden a la Constitución a
través del legislador, sino que lo hacen directamente, y, en la medida en que
aquélla disciplina numerosos aspectos sustantivos, ese acceso se produce de
modo permanente, pues es difícil encontrar un problema jurídico medianamente
serio que carezca de alguna relevancia constitucional.
Conviene subrayar la importancia que para la justicia constitucional tiene la
confluencia de esas dos tradiciones y, consiguientemente, la incorporación de
principios, derechos y directivas a un texto que se quiere con plena fuerza
normativa. Porque ahora esas cláusulas materiales no se presentan sólo como
condiciones de validez de las leyes, según advirtió Kelsen de forma crítica. Si
únicamente fuese esto, el asunto sería transcendental sólo para aquellos órganos
con competencia específica para controlar la ley, lo que en verdad no es poco. Sin
embargo, la vocación de tales principios no es desplegar su eficacia a través de la
ley -se entiende, de una ley respetuosa con los mismos– sino hacerlo de una
forma directa e independiente. Con lo cual la normativa constitucional deja de
estar “secuestrada” dentro de los confines que dibujan las relaciones entre
órganos estatales, deja de ser un problema exclusivo que resolver entre el legislar
y el Tribunal Constitucional, para asumir la función de normas ordenadoras de la
9
Tomo prestada la expresión de A.E. Pérez Luño, El desbordamiento de las fuentes del Derecho,
Real Academia sevillana de legislación y jurisprudencia, Sevilla, 1993, un trabajo por lo demás
muy luminoso para comprender algunas implicaciones del constitucionalismo contemporáneo.
Neoconstitucionalismo y Ponderación Judicial
407
realidad que los jueces ordinarios pueden y deben utilizar como parámetros
fundamentales de sus decisiones. Desde luego, las decisiones del legislador
siguen vinculando al juez, pero sólo a través de una interpretación constitucional
que efectúa este último 10.
3. El Neoconstitucionalismo como Teoría del Derecho
El Estado constitucional de Derecho que acaba de ser descrito parece
reclamar una nueva teoría del Derecho, una nueva explicación que en buena
medida se aleja de los esquemas del llamado positivismo teórico. Hay algo
bastante obvio: la crisis de la ley, una crisis que no responde sólo a la existencia
de una norma superior, sino también a otros fenómenos más o menos conexos al
constitucionalismo, como el proceso de unidad europea, el desarrollo de las
autonomías territoriales, la revitalización de las fuentes sociales del Derecho, la
pérdida o deterioro de las propias condiciones de racionalidad legislativa, como la
generalidad y la abstracción, etc. 11. En suma, la ley ha dejado de ser la única,
suprema y racional fuente del Derecho que pretendió ser en otra época, y tal vez
este sea el síntoma más visible de la crisis de la teoría del Derecho positivista,
forjada en torno a los dogmas de la estatalidad y de la legalidad del Derecho.
Pero seguramente la exigencia de renovación es más profunda, de manera que el
constitucionalismo esté impulsando una nueva teoría del Derecho, cuyos rasgos
más sobresalientes cabría resumir en los siguientes cinco epígrafes, expresivos
de otras tantas orientaciones o lineas de evolución: más principios que reglas;
más ponderación que subsunción; omnipresencia de la Constitución en todas las
areas jurídicas y en todos los conflictos mínimamente relevantes, en lugar de
espacios exentos en favor de la opción legislativa o reglamentaria; omnipotencia
judicial en lugar de autonomía del legislador ordinario; y, por último, coexistencia
de una constelación plural de valores, a veces tendencialmente contradictorios, en
lugar de homogeneidad ideológica en torno a un puñado de principios coherentes
10
En palabras de L. Ferrajoli, “la sujeción del juez a la ley ya no es, como en el viejo paradigma
positivista, sujeción a la letra de la ley, cualquiera que fuese su significado, sino sujeción a la ley
en cuanto válida, es decir, coherente con la Constitución”, Derechos y garantías. La ley del más
débil, Introducción de P. Andrés, trad. de P. Andrés y A. Greppi, Trotta, Madrid, 1999, p. 26.
11
Me he ocupado de ello en “Del mito a la decadencia de la ley. La ley en el Estado
constitucional”, en Ley, Principios, Derechos, Dykinson, Madrid, 1998, p. 17 y ss.
408
Luis Prieto Sanchís
entre sí y en torno, sobre todo, a las sucesivas opciones legislativas 12.
Comenzaremos por lo que tal vez se perciba mejor, la omnipresencia de la
Constitución. Como hemos dicho, esta última ofrece un denso contenido material
compuesto de valores, principios, derechos fundamentales, directrices a los
poderes públicos, etc., de manera que es difícil concebir un problema jurídico
medianamente serio que no encuentre alguna orientación y, lo que es más
preocupante, en ocasiones distintas orientaciones en el texto constitucional:
libertad, igualdad –formal, pero también sustancial– seguridad jurídica, propiedad
privada, cláusula del Estado social, y así una infinidad de criterios normativos que
siempre tendrán alguna relevancia. Es más, cabe decir que detrás de cada
precepto legal se adivina siempre una norma constitucional que lo confirma o lo
contradice. Por ejemplo, la mayor parte de los artículos del Código civil protegen
bien la autonomía de la voluntad, bien el sacrosanto derecho de propiedad, y
ambos encuentran sin duda respaldo constitucional. Pero frente a ellos militan
siempre otras consideraciones también constitucionales, como lo que la
Constitución española llama “función social” de la propiedad, la exigencia de
protección del medio ambiente, de promoción del bienestar general, el derecho a
la vivienda o a la educación, y otros muchos principios o derechos que
eventualmente pueden requerir una limitación de la propiedad o de la autonomía
de la voluntad. Es lo que se ha llamado a veces el efecto “impregnación” o
“irradiación” del texto constitucional; de alguna manera, todo deviene Derecho
constitucional y en esa misma medida la ley deja de ser el referente supremo para
la solución de los casos.
Porque la Constitución es una norma y una norma que está presente en
todo tipo de conflictos, el constitucionalismo desemboca en la omnipotencia
judicial. Esto no ocurriría si la Constitución tuviese como único objeto la regulación
de las fuentes del Derecho o, a lo sumo, estableciese unos pocos y precisos
derechos fundamentales, pues en tal caso la normativa constitucional y, por
12
Resumo aquí la caracterización más o menos coincidente que ofrecen distintos autores, como
R. Alexy, El concepto y la validez del Derecho, trad. de Jorge M. Seña, Gedisa, Barcelona, 1994,
p. 159 y ss; G. Zagrebelsky, El Derecho dúctil. Ley, derechos, justicia, trad. de M. Gascón, epílogo
de G. Peces-Barba, Trotta, Madrid, 1995, p. 109 y ss; R. Guastini, “La
‘costituzionalizzazione’dell’ordinamento italiano”, en Ragion Pratica, n° 11, 1998, p. 185 y ss.
Puede verse también mi Constitucionalismo y Positivismo, citado, p. 15 y ss.
Neoconstitucionalismo y Ponderación Judicial
409
consiguiente, su garantía judicial sólo entrarían en juego cuando se violase alguna
condición de la producción normativa o se restringiera alguna de las áreas de
inmunidad garantizada. Pero, en la medida en que la Constitución ofrece
orientaciones en las más heterogéneas esferas y en la medida en que esas
esferas están confiadas a la garantía judicial, el legislador pierde lógicamente
autonomía. No es cierto, ni siquiera en el neoconstitucionalismo, que la ley sea
una mera ejecución del texto constitucional, pero sí es cierto que éste “impregna”
cualquier materia de regulación legal, y entonces la solución que dicha regulación
ofrezca nunca se verá por completo exenta de la evaluación judicial a la luz de la
Constitución.
En cierto modo, ha quedado ya explicado el último de los rasgos antes
enunciados: el neoconstitucionalismo no representa un pacto en torno a unos
pocos principios comunes y coherentes entre sí, sino más bien un pacto logrado
mediante
la
incorporación
de
postulados
distintos
y
tendencialmente
contradictorios. En ocasiones, esto es algo que resulta patente y hasta
premeditado, como sucede con el artículo 27 de la Constitución española 13. Otras
veces, sin embargo, lo que ocurre es que se incorporan normas que resultan
coherentes en el nivel abstracto o de la fundamentación, pero que conducen a
eventuales conflictos en el nivel concreto o de la aplicación. Así, y como ya hemos
avanzado, las Constituciones suelen estimular las medidas de igualdad
sustancial, pero garantizan también la igualdad jurídica o formal, y es
absolutamente evidente que toda política orientada en favor de la primera ha de
tropezar con el obtáculo que supone la segunda; se proclama la libertad de
expresión, pero también el derecho al honor, y es asimismo obvio que pueden
entrar en conflicto; la cláusula del Estado social, que comprende distintas
directrices de actuación pública, necesariamente ha de interferir con el modelo
constitucional de la economía de mercado, con el derecho de propiedad o con la
13
El art. 27, cuya elaboración estuvo a punto de frustrar el consenso en la fase constituyente,
regula el modelo educativo de una forma bastante prolija mediante la incorporación de postulados
y pretensiones procedentes de distintas filosofías o ideologías educativas, por lo demás siempre
presentes en la historia de la España contemporánea; por simplificar, algunos de los preceptos
parecen dar satisfacción a la opción confesional, mientras que otros estimulan el desarrollo de la
opción laica. Pero la cuestión es que, tal y como ha sido interpretado este artículo, no cabe decir
que permita sin más el triunfo absoluto de una u otra opción, según cuál sea la mayoría
parlamentaria, sino que reclama una fórmula integradora capaz de armonizar ambas, es decir,
reclama un “encaje de bolillos”, que por cierto termina efectuando el Tribunal Constitucional.
410
Luis Prieto Sanchís
autonomía de la voluntad y, desde luego, ha de interferir siempre con las
antiguamente indiscutibles prerrogativas del legislador para diseñar la política
social y económica. Y así sucesivamente; tal vez sea exagerar un poco, pero casi
podría decirse que no hay norma sustantiva de la Constitución que no encuentre
frente a sí otras normas capaces de suministrar eventualmente razones para una
solución contraria.
Este carácter contradictorio de los documentos constitucionales presenta
una extraordinaria importancia para el tema central que ha de ocuparnos, pero
resulta también relevante desde la perspectiva del constitucionalismo ideológico al
que aludimos al principio. Y es que, dada la densidad normativa de las
Constituciones en torno principalmente al amplio catálogo de derechos
fundamentales, es corriente escuchar que estos documentos jurídicos son algo
así como el compendio de una nueva moral universal, que “ya no flota sobre el
derecho... (sino que) emigra al interior del derecho positivo” 14. Ciertamente, son
muchas las dificultades para concebir los derechos fundamentales como una
verdadera ética, incluso aunque los entendamos de una forma homogénea en
torno a la tradición liberal, pues los derechos encarnan más bien un consenso
jurídico acerca de lo que podemos hacer, más que un consenso moral acerca de
lo que debemos hacer 15. Pero es que, además, los derechos constitucionales no
sólo se muestran como tendencialmente contradictorios en lo que tienen de
ejercicio de la libertad, sino que responden incluso a un esquema de valores
diferente y en tensión; es lo que, con Zagrebelsky, podríamos llamar la
disociación entre los derechos y la justicia 16.
Ciertamente, tras el panorama expuesto, pudiera pensarse que estas
Constituciones del neoconstitucionalismo son un despropósito, un monumento a
la antinomia: un conjunto de normas contradictorias entre sí que se superponen
de modo permanente dando lugar a soluciones dispares. Sucedería efectivamente
así si las normas constitucionales apareciesen como reglas, pero ya hemos dicho
que una de las características del neoconstitucionalismo es que los principios
14
J. Habermas, “¿Cómo es posible la legitimidad por vía de legalidad?”, en Escritos sobre
moralidad y eticidad, Introducción y trad. de M. Jiménez Redondo, Paidos, Barcelona, 1991, p.168.
15
Sobre esta y otras dificultades de “La ética de los derechos” vid. el trabajo con este mismo título
de F. Viola, Doxa, n° 22, 1999, p. 507 y ss.
16
G. Zagrebelsky, El derecho dúctil, citado, p. 75 y ss
Neoconstitucionalismo y Ponderación Judicial
411
predominan sobre las reglas. Mucho se ha escrito sobre este asunto y es
imposible resumir siquiera los términos del debate. Pero, a mi juicio, la cuestión es
la siguiente: si bien individualmente consideradas las normas constitucionales son
como cualesquiera otras, cuando entran en conflicto interno suelen operar como
se supone que hacen los principios. La diferencia puede formularse así: cuando
dos reglas se muestran en conficto ello significa que o bien una de ellas no es
válida, o bien que una opera como excepción a la otra (criterio de especialidad).
En cambio, cuando la contradicción se entabla entre dos principios, ambos siguen
siendo simultáneamente válidos, por más que en el caso concreto y de modo
circunstancial triunfe uno sobre otro 17.
Inmediatamente habremos de volver sobre esta cuestión, pero dado que
hemos hablado de principios es el momento de formular la siguiente pregunta: el
neoconstitucionalismo ¿determina una nueva teoría de la interpretación jurídica? 18
Algunos han
respondido afirmativamente
sugiriendo
que el género
de
interpretación que requieren los principios constitucionales es sustancialmente
distinto al tipo de interpretación que reclaman las reglas legales. Pero se impone
una respuesta más cauta, al menos por dos motivos: primero, porque no existe
una sola teoría de la interpretación anterior al neoconstitucionalismo, ni tampoco
una sola alentada o fundada en el mismo; desde el positivismo, en efecto, se ha
mantenido tanto la tesis de la unidad de respuesta correcta (el llamado
paleopositivismo), como la tesis de la discrecionalidad (Kelsen, Hart); y desde el
constitucionalismo, o asumiendo las consecuencias del mismo, resulta posible
encontrar tambien defensores de la unidad de solución correcta (Dworkin), de la
discrecionalidad débil (Alexy) 19 y de la discrecionalidad fuerte (Guastini,
17
Esta es la caracterización que hace R. Alexy, Teoría de los derechos fundamentales, trad. de E.
Garzón Valdés, C.E.C., Madrid, 1993, p. 81 y ss.
18
Sobre la pretendida especificidad de la interpretación constitucional debe verse P.
Comanducci,”Modelos e interpretación de la Constitución”, en Teoría de la Constitución. Ensayos
escogidos, citado, p. 123 y ss. Aquí se sostiene de forma convincente que, en realidad, los
modelos de interpretación constitucional son dependientes o se conectan estrechamente con la
forma de concebir la Constitución misma.
19
Seguramente, son R. Dworkin y R. Alexy los autores en que con mayor intensidad se aprecian
las implicaciones de una teoría de los principios que es, en suma, una teoría del
constitucionalismo contemporáneo; implicaciones que van más allá del ámbito meramente
explicativo acerca del funcionamiento de los sistemas jurídicos para alcanzar las esferas
metodológicas y conceptuales sobre la idea de Derecho y su relación con la moral. Vid. sobre el
particular A. García Figueroa, Principios y positivismo jurídico. El no positivismo principialista en
las teorías de R. Dworkin y R. Alexy, C.E.P.C, Madrid, 1998.
412
Luis Prieto Sanchís
Comanducci). No creo que la entrada en escena o la desaparición de textos
constitucionales hiciese cambiar de opinión a estos autores acerca de la
naturaleza de la interpretación. Y en segundo lugar ocurre que, aun cuando
aceptásemos que los principios supongan una teoría de la interpretación propia,
en ningún momento se ha dicho que los principios sean exclusivos de la
Constitución. Las pautas normativas que suelen recibir el nombre de principios,
como la libertad o la igualdad, estaban y siguen estando presentes en las leyes en
forma de apelaciones al orden público, a la moralidad, a la equidad, etc.; y no creo
que a primera vista se adivinen diferencias en la forma de aplicación de todas
estas pautas. De manera que, si cabe hablar de alguna peculiaridad de la
interpretación constitucional, la diferencia sería más de carácter cuantitativo que
cualitativo: las Constituciones parecen presentar en mayor medida que las leyes
un género de normas, que suelen llamarse principios y que requieren el empleo
de ciertas herramientas interpretativas. El estudio de una de estas herramientas
nos llevará al último de los rasgos enunciados: más ponderación que subsunción.
En resumen, dado que la teoría del Derecho pretende explicar o describir
los rasgos caracterizadores y el modo de funcionamiento de los sistemas
jurídicos, el cambio operado en estos últimos merced al constitucionalismo
reclama nuevos planteamientos teóricos y, por tanto, la revisión de la herencia
positivista que, al menos en el continente europeo, se forjó a la vista de realidades
distintas. En particular, me parece obvio que se impone una profunda revisión de
la teoría de las fuentes del Derecho, sin duda menos estatalista y legalista, pero
probablemente también más atenta al surgimiento de nuevas fuentes sociales;
tampoco puede olvidarse, en segundo lugar, el impacto que el constitucionalismo
tiene sobre el modo de concebir la norma jurídica y la necesidad de considerar la
presencia de nuevas “piezas del Derecho” 20, en particular de los principios; por
último, pero muy unido a este último aspecto, se reclama también una más
meditada y compleja teoría de la interpretación, alejada desde luego del
formalismo decimonónico, pero que, a mi juicio, tampoco ha de conducirnos a
conclusiones muy diferentes a las que propició el positivismo maduro, esto es, a
20
“Las piezas del Derecho” de M. Atienza y J. Ruiz Manero es precisamente el título de una de las
obras que más ha contribuido a revisar la teoría de los enunciados jurídicos, Ariel, Barcelona,
1996.
Neoconstitucionalismo y Ponderación Judicial
413
la tesis de la discrecionalidad, aunque, eso sí, pasando por el tamiz de la teoría
de la argumentación. Todo ello es, sin duda, importante, pero creo que no
compromete el modo de enfocar la actividad teórica sobre el Derecho; como dice
Comanducci, “la teoría del Derecho neoconstitucionalista resulta ser nada más
que el positivismo jurídico de nuestros días” 21.
4. La Ponderación y los Conflictos Constitucionales
De las distintas acepciones que presenta el verbo ponderar y el sustantivo
ponderación en el lenguaje común, tal vez la que mejor se ajusta al uso jurídico es
aquella que hace referencia a la acción de considerar imparcialmente los
aspectos contrapuestos de una cuestión o el equilibrio entre el peso de dos cosas.
En la ponderación, en efecto, hay siempre razones en pugna, intere
Descargar