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CONTENTS
José Pedro Paiva
preaching and bishops ..................................................................7
Inmaculada Osuna
avisos para la muerte of luis ramírez de arellano ......43
Eduardo Javier Alonso Romo
exercises and penance in tomé de jesus’ work ..................81
Fr. António-José de Almeida
lives and illustrations of penitent naked female
saints in the desert and on pilgrimage in the flos
sanctorum of 1513 ....................................................................... 107
María Isabel Toro Pascua
the noble penance: cavaliers and dames in secular
literature of the xv and xvi centuries ........................... 157
Maria Helena Queirós
“a contra-reforma em portugal 1540-1700”. critical note.
...................................................................................................................173
VARIA .....................................................................................................185
Jorge A. Osório
camões’ lament «o poeta simónides, falando» ...............187
Reviews by
cristina osswald, paula mendes ...........................................213
Abstracts in English at the end of each article.
ÍNDICE
Pregação e espaços penitenciais
1 – Episcopado e Pregação – José Pedro Paiva
Este artigo visa abordar um tópico muito pouco considerado pela historiografia, tanto
nacional, como internacional: a relação do episcopado com a pregação. Apesar da
escassez das fontes documentais disponíveis, procurar-se-á, através dos múltiplos indícios
disponíveis, lançar alguma luz sobre o modo como os bispos portugueses durante a
Época Moderna regulamentaram e vigiaram a actividade dos milhares de pregadores
que recorreram ao sermão para difundir a palavra de Deus. Para além disso, aferir-se-á
a própria actuação de alguns antístites como pregadores, enunciando o perfil dessa
intervenção.
2 – Los avisos para la muerte de Luis Ramírez de Arellano – Inmaculada Osuna
Los Avisos para la muerte (1634), recopilados por Luis Ramírez de Arellano, recogen,
junto con otros materiales complementarios (entre ellos, sendas oraciones en verso para
antes de la confesión y de la comunión y un acto de contrición en prosa), treinta poemas
que se presentan como modelo de oración dirigida a Cristo crucificado en el momento
de la muerte. Los poemas proceden de una iniciativa colectiva en la que participan
destacados poetas de la Corte madrileña como Lope de Vega, Pedro Calderón de la
Barca, José Pellicer, José de Valdivielso, Luis Vélez de Guevara, Juan Pérez de Montalbán
o Francisco de Rojas Zorrilla, entre otros. El presente artículo aborda el entorno social
en que surge la colección poética, la composición del libro y su exitosa historia editorial
a lo largo de dos siglos y la reiterativa representación en los poemas de determinados
tópicos de la meditatio mortis (escenificación del momento de la agonía; expresión del
arrepentimiento, del amor a Cristo y de la esperanza en su misericordia; contemplación
del cuerpo de Cristo en la cruz).
3 – Ejercicios y penitencia en la obra de Tomé de Jesus – Eduardo Javier Alonso Romo
O presente artigo pretende abordar os clássicos Trabalhos de Jesus, obra póstuma do
frade agostinho quinhentista Tomé de Jesus, através duma perspectiva de exercícios
penitenciais, dentro do campo mais alargado dos exercícios espirituais. Analisam-se
questões como a metodologia, as práticas oracionais e de discernimento espiritual, a
dualidade entre penitência interior e penitências exteriores, assim como os conselhos
para vencer as tentações, e os usos para o exame de consciência e a confissão. Coloca-se
o autor em relação com outros autores peninsulares daquele tempo, nomeadamente
S. Inácio de Loyola.
4 – Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação,
no Flos Sanctorum de 1513 – Fr. António-José de Almeida
A tentativa de identificação de uma figura feminina deitada seminua, existente num
fragmento de pintura mural recentemente descoberto na igreja de Nossa Senhora de
Balsamão, em Chacim, concelho de Macedo de Cavaleiros, em Trás-os-Montes, levou
o autor deste artigo a pesquisar as vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas em
Legendários impressos na Europa nos séculos XV e XVI, especialmente na Península
Ibérica, e de modo particular no Flos Sanctorum em linguagem português, impresso em
Lisboa em 1513. Neles, há exemplos de dois tipos de santas desnudas, ligadas a formas de
vida penitente: as que habitaram em lugares desertos ou desabitados (como Santa Maria
Egipcíaca e Santa Maria Madalena), mas também de santas peregrinas (as três mulheres
da legenda peninsular dos Quatro Santos Coroados).
Relacionada com o seu actual projecto de pesquisa, o autor aproveita ente ensejo
para publicar as suas mais recentes descobertas no domínio da estampa ilustrativa, na
Península Ibérica, referentes à representação da Santíssima Trindade de tipo trifacial
segurando o scutum fidei, rodeada pelo tetramorfo evangélico.
5 – La noble penitencia: caballeros y damas penitentes en la literatura profana de los
siglos XV y XVI – María Isabel Toro Pascua
El motivo de la penitencia se revela como un recurso literario muy fértil en el ámbito
de la literatura profana de los siglos XV y XVI, y más concretamente en la ficción
caballeresca y sentimental. Este tópico se presenta de diversas maneras en estas obras,
pero en todos los casos parece responder a procedimientos o patrones literarios muy
concretos, siempre relacionados con el propio desarrollo del motivo, tales como el espacio
en que se desenvuelve la penitencia, y con la función que desempeña en la estructuración
narrativa del relato entero. En todos los casos, la finalidad última del tópico no es otra
que la de insistir en el necesario cumplimiento del código caballeresco o sentimental,
imprimiendo a veces un marcado didactismo, pero sin ningún tipo de pretensiones
espirituales o devocionales de más hondo calado.
6 – A Contra-Reforma em Portugal 1540-1700 – Maria Helena Queirós
Nota crítica à obra.
7 – Varia
Na elegia de Camões «O poeta Simónides, falando» – Jorge A. Osório
Este artigo estuda a importância da «memória» na composição «O poeta Simónides,
falando», relacionando-a com as práticas líricas de Camões e com múltiplos aspectos da
biografia do poeta.
7
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Episcopado e pregação no Portugal Moderno:
formas de actuação e de vigilância1
Introdução
O estudo da actividade do episcopado português no âmbito da pregação, na
Época Moderna, não é tarefa fácil. Desde logo, porque a produção historiográfica
prévia nesta matéria é praticamente nula2. Em segundo lugar, pela escassez de fontes
que o consintam. Núcleos documentais da maior relevância para o concretizar,
como as cartas pastorais, os registos das licenças para pregar emitidas pelos bispos,
os processos dos auditórios episcopais, os sermões proferidos pelos antístites,
rareiam, encontram-se dispersos, em séries muito truncadas e, por norma, mal
catalogados nos arquivos. Mesmo o inventário das centenas de púlpitos ainda
existentes em igrejas, e que poderiam fornecer utilíssimas informações, se encontra
por fazer3.
Daí que seja arriscado o exercício aqui proposto, pelo qual se intentará fornecer
um quadro sistémico e sintético da matéria em análise, a partir dos fragmentários
indícios disponíveis. Assume-se a dificuldade e o risco, com a exacta consciência das
limitações dos caminhos percorridos e a impossibilidade de sustentar conclusões
seguras relativamente a muitos dos aspectos que serão abordados.
Era o ano de 1743. Já ia bem adiantado o século XVIII, quando chegou
à Mesa da Inquisição de Coimbra uma denúncia contra um frade pregador,
oriunda de Santo Tirso, próximo do Porto. O delator, para além de esclarecer
que este religioso se fazia acompanhar por um músico, o qual tinha a finalidade
de convocar pessoas para ouvirem os sermões, esclarece ainda que ele não escrevia
o texto da pregação «dizendo asim tudo o que lhe vinha a cabeça». Pior, não
difundia boa doutrina, pois, ainda nas palavras do denunciante, nas suas prédicas
Este estudo foi elaborado no âmbito do Projecto de Investigação Sociedades, Poderes e Culturas: Portugal e
os «Outros», do Centro de História da Sociedade e da Cultura da Universidade de Coimbra (FCT). Agradeço
ao Prof. Doutor João Marques a leitura e comentários críticos que fez à versão inicial deste texto.
2
É disso testemunho a excelente síntese proposta por João Francisco MARQUES, Pregação in História
Religiosa de Portugal (direcção de Carlos Moreira AZEVEDO), Lisboa, Círculo de Leitores, 2000, vol.
II, 393-447, ou o que sobre a pregação se propõe na mais recente e bem elaborada síntese sobre a reforma
católica em Portugal, Federico PALOMO, A contra-reforma em Portugal 1540-1700, Lisboa, Livros
Horizonte, 2005, 77-81.
3
Uma boa utilização da análise dos púlpitos para a história da pregação pode ver-se em Nirit Ben-Aryeh
DEBBY, The Renaissance pulpit: art and preaching in Tuscuny, 1400-1550, Turnhout, Brepols, 2007.
1
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José Pedro Paiva
«tudo sam flores, jardins, pinturas e fábulas de que se não tira proveito espiritual»4.
Esta denúncia do pitoresco pregador, o qual já descobrira a capacidade atractora
da música como forma de anúncio propagandístico de um evento público – como
era um sermão –, para além de permitir iluminar interessantes facetas do complexo
universo da oratória sacra no Portugal Moderno, podia suscitar a percepção de que
este era um mundo desgovernado, no qual era ilimitada a margem de liberdade da
avalanche de pregadores que enxameavam os púlpitos nas mais variadas ocasiões.
Essa seria uma ideia errada. Se é certo que no Portugal de Setecentos, mais de
duzentos anos depois de no Concílio de Trento (1545-1563) se ter determinado
a atenta vigilância que os bispos deviam exercitar sobre os pregadores da palavra
de Deus, ainda se topavam episódios deste género, não é menos verdade que os
bispos não estiveram passivos. É disso que se tratará nas páginas seguintes.
1. Instrumentos normativos: Constituições diocesanas, provisões e pastorais
Competia aos bispos a promulgação de directivas regulamentadoras da
actividade dos pregadores nas dioceses. Neste domínio, encontram-se disposições
tanto nas Constituições diocesanas como em provisões e cartas pastorais. As
primeiras, também ditas Constituições sinodais, prescreviam normas que tinham
uma dimensão mais estruturante e duradoura. Já as outras, de que não existe
sequer um inventário exaustivo, estipulavam, habitualmente, medidas de cariz
mais pontual, procurando acudir a aspectos com os quais os prelados se deparavam
no exercício do seu múnus, e tinham uma dimensão mais pessoal, no sentido em
que representavam as intenções específicas de um bispo.
As Constituições promulgadas durante a primeira metade de Quinhentos são
quase omissas a propósito da pregação e dos pregadores, denunciando a escassa
importância conferida pelo episcopado, nesta fase, à divulgação da palavra divina
por via do sermão5. Aquelas onde se descobrem espartanas menções ao assunto,
como é o caso das da Guarda de 1500, Coimbra (1521), Viseu (1527) ou Lisboa
(1536), limitam-se a proibir os designados «echacorvos», isto é, pregadores
ambulantes, que difundiam indulgências e recolhiam esmolas, usualmente
burlando os ouvintes, impondo-lhes a proibição de o fazerem sem apresentarem
uma licença do bispo6. O que pode ser lido como uma manifestação do desejo de
Cf. Instituto Arquivos Nacionais/Torre do Tombo (doravante sempre IAN/TT), Inquisição de Coimbra,
Livro 383 (Caderno do Promotor), fl. 529-530.
5
Pode obter-se um elenco de toda a série de Constituições promulgadas na Época Moderna em José Pedro
PAIVA, Constituições diocesanas in Dicionário de História Religiosa de Portugal, (direcção de Carlos
Moreira AZEVEDO), Lisboa, Círculo de Leitores, 2000, vol. II, 9-15.
6
Ver Constituyçoes e estatutos feytos e ordenados novamente por ho mui reverendo senhor dom Pedro bispo
da Guarda, Salamanca, [s.n.], 1500, constituição 58; Costituyçooes do bispado de Coimbra: feytas pollo
muyto reverendo e magnifico senhor o señor dom Jorge d´Almeyda bispo de Coimbra conde D´Arganil, Braga,
Pedro Gonçalves Alcoforado, 1521, constituição 80; Constituiçoes feytas por mandado do muito reverendo
4
10
Episcopado e pregação no Portugal Moderno: formas de actuação e de vigilância
afirmação da autoridade do prelado no espaço que governava, sem revelar qualquer
preocupação com a preparação e comportamentos dos pregadores, menos ainda
com os conteúdos das prédicas.
As primeiras Constituições a conferirem um pouco mais de atenção à regulação
da pregação foram as de Coimbra, de 1548, ordenadas por D. João Soares e as de
Viseu, de 1556, de D. Gonçalo Pinheiro. Em ambas, não só se proíbe a circulação
de pregadores sem licença do bispo, como acontecia nas anteriores, mas exige-selhes um exame, por via do qual se devia apurar a sua «suficiência», impondo ainda
aos párocos o dever de vigilância, por forma a não consentirem que nas suas igrejas
pregasse quem não apresentasse licença do antístite ou do vigário geral7. Para além
disso, explicita-se a condição especial dos pregadores das ordens regulares, os quais
deveriam primeiramente mostrar ao bispo a permissão para pregar dos superiores
da sua ordem religiosa, advertindo que não «concorram com os curas e pregadores
do nosso bispado e o façam do prazimento delles», como se escreve nas de Viseu.
Por fim, estipulam penas para os que não cumprissem estas normas, as quais
podiam implicar prisão e confisco de todas as esmolas obtidas pelos pregadores
na sua actividade.
Posturas semelhantes encontram-se nas primeiras constituição elaboradas após
o Concílio de Trento. Nas de Miranda, de 1565, onde se acrescenta ainda que os
pregadores não deviam difundir dos púlpitos os «erros dos hereges», mesmo que
fosse para os confutar8. E nas extravagantes do arcebispado de Lisboa (1569),
ordenadas pelo cardeal D. Henrique, acrescenta-se uma norma onde se adverte
para que a principal obrigação dos pastores de almas é pregar e ensinar a doutrina
aos seus fregueses, para assim providenciar à sua salvação, pelo que obriga a todos
os priores, reitores, vigários e curas do arcebispado a pregarem aos seus fiéis
dominicalmente e em todos os dias santos, devendo «acomodar» os sermões às
capacidades dos ouvintes9. Preocupação que, como de seguida se exporá, se veio a
tornar omnipresente.
Depois do Concílio de Trento, sobretudo no século XVII, em flagrante
contraste com o panorama comum até então, é notório o aumento das disposições
sobre pregação nas Constituições. Estas passaram a conter detalhadas normas,
não só a propósito das licenças e necessidade de os párocos vigiarem localmente
a actividade dos pregadores, mas também sobre as competências e códigos de
conduta dos difusores do verbo divino no acto do sermão. Uma das primeiras a
señor ho señor dom Miguel da Silva, bispo de Viseu, [s.l.], [s.n.], [1527], constituição 27 e Constituiçoes do
Arcebispado de Lixboa, Lisboa, German Galharde Frances, 1537, título XXIIII, constituição primeira.
7
Ver Constituiçoes Synodaes do Bispado de Coimbra, Coimbra, João Barreira e João Alvares, 1548, fl. lxxxvii e
lxxxvii verso e Constituiçoes synodaes do bispado de Viseu, Coimbra, João Alvares, 1556, fl. lxxii.
8
Ver Constituiçoes synodaes do Bispado de Miranda, Lisboa, Francisco Correia, 1565, fl. 7-7v.
9
Ver Constituiçoes extravagantes do Arcebispado de Lisboa, Lisboa, Antonio Gonsalves, 1569, fl. 13v.
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José Pedro Paiva
trilharem esta via foram as de Leiria, de 1601, ordenadas por D. Pedro de Castilho,
onde se compilou um capítulo autónomo intitulado «Das qualidades e partes que
ham-de ter os pregadores, e que ninguem pregue sem nossa licença»10. Já em 1589,
mas não tão detidamente, também as Constituições de Portalegre, compiladas por
ordem de D. frei Amador Arrais, dedicavam um capítulo específico à pregação11.
Antes, as do Porto (1585) e Coimbra (1591), por exemplo, tinham mais larga
produção normativa sobre pregação do que as anteriores a Trento, mas ainda na
parte dedicada às obrigações dos párocos, não apresentando, portanto, como as
leirienses, nenhum título específico e autónomo sobre a pregação12.
As Constituições seiscentistas, respondendo ao apelo lançado em Trento,
revelam uma grande preocupação da parte do episcopado relativamente à
regulação da pregação. Nem todas, naturalmente, tiveram o mesmo grau de
profundidade no tratamento do assunto, destacando-se pela sua prolixidade e zelo
as da Guarda (1621 com 2ª edição em 1686), Braga (1639, impressas em 1697),
Lisboa (1640, impressas a primeira vez em 1646) e Porto (1687, impressas em
1690)13. A análise que seguidamente se propõe procura apresentar as matérias
afloradas, não as avaliando caso a caso, mas sim numa perspectiva de conjunto,
ainda que dando conta do cariz específico de certas normas de algumas delas.
O elenco das prescrições é imenso. Muitas Constituições, logo a abrir,
lembram a disposição tridentina segundo a qual a pregação do Evangelho era uma
das principais obrigações dos bispos14. Nas do Algarve, de 1674, promulgadas
por D. Francisco Barreto II, para o reforçar, ainda se acrescenta que no próprio
ritual de consagração episcopal era recordado aos bispos o dever de alimentarem
as almas com a pregação evangélica15.
Todas retomam a defesa da jurisdição episcopal em matéria de vigilância dos
Ver Constituiçoes synodaes do bispado de Leiria, feytas e ordenadas em synodo pelo senhor D. Pedro de
Castilho, Coimbra, Manuel D´Araujo, 1601, fl. 86v-87.
11
Ver Constituições sinodais de D. Frei Amador Arrais (1589), (Transcrição e notas por Tarsício Fernandes
ALVES), [Portalegre], Cabido da Sé de Portalegre, 1999, 12: «Constituiçam 5ª que nam preguem, nem consintam pregar aos que não teem licença do prelado, e que os leigos não disputem da fee». Estas Constituições
nunca foram impressas, senão nesta edição de 1999. O original manuscrito encontra-se no Arquivo do Cabido
de Portalegre.
12
Ver Constituiçoes synodaes do Bispado de Coimbra, feytas e ordenadas em synodo pello Illustrissimo
Senhor Dom Affonso de Castel Branco (...), Coimbra, Antonio de Mariz, 1591, 110 (cito a partir da edição de
1731) e Constituiçoes synodaes do bispado do Porto ordenadas pelo muyto illustre Reverendissimo Senhor
Dom frey Marcos de Lisboa Bispo do dito bispado, Coimbra, Antonio de Mariz, 1585, fl. 55-57.
13
Ver Constituiçoes synodais do bispado da Goarda, Lisboa, Pedro Crasbeeck, 1621 (nas citações futuras
segue-se a paginação da 2ª edição de 1686); Constituiçoes synodaes do arcebispado de Braga, Lisboa, Miguel
Deslandes, 1697; Constituições Synodaes do arcebispado de Lisboa, Lisboa Oriental, Filippe de Sousa
Villela, 1737 e Constituiçoes synodaes do bispado do Porto novamente feitas e ordenadas pelo illustrissimo
e reverendissimo senhor Dom João de Sousa, Porto, Joseph Ferreira, 1690 (em citações futuras utilizarei a
edição de Coimbra, Collegio das Artes da Companhia, 1735).
14
Ver, por exemplo, Constituiçoes synodaes do bispado do Porto (1687), 262-263.
15
Ver Contituiçoes synodaes do bispado do Algarve, Évora, Imprensa da Universidade, 1674, 317.
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Episcopado e pregação no Portugal Moderno: formas de actuação e de vigilância
pregadores, impondo que ninguém pudesse pregar sem licença escrita do bispo,
e co-envolvendo os párocos na obrigação de denunciarem os incumpridores, aos
quais se chegaram a prescrever pesadas penas (excomunhão, suspensão das ordens
e prisão) sendo negligentes16. Nas de Viseu, de 1684, abre-se uma excepção a
este preceito, esclarecendo que estavam isentos desta dispensa todos os pregadores
que possuíssem uma autorização papal concedida à pessoa ou à congregação
religiosa de que fizesse parte, o que demonstra que, apesar de tudo, era possível
através de privilégios apostólicos contornar a suprema autoridade do bispo na sua
diocese17. E nas de Elvas, de 1635, onde não há qualquer título específico sobre
pregadores, ao contrário do habitual nas congéneres seiscentistas, autorizam-se os
bispos espanhóis que pudessem vir a Portugal a pregar sem ter qualquer licença
especial do antístete elvense18. Algumas Constituições, como as de Lisboa (1640),
esclarecem sobre o prazo destas autorizações, as quais podiam ser temporárias ou
de duração ilimitada no tempo, advertindo que pela sua emissão não se podiam
cobrar quaisquer taxas a favor da chancelaria episcopal19. Ou seja, as licenças eram
gratuitas, porventura como forma de evitar que os candidatos se tentassem eximir
à sua obtenção, alegando os custos materiais do processo.
Estas licenças para pregar não eram apenas exigidas aos clérigos seculares.
Os membros das ordens ou congregações religiosas também necessitavam delas
para poder pregar numa diocese20. Isso mesmo, aliás, tinha sido instituído já no
longínquo Concílio de Viena (1311-1312), através do cânone Dudum a Bonifacio,
pelo qual se determinava que os dominicanos e franciscanos para pregarem nas
igrejas paroquiais necessitavam de uma autorização do antístite21. Mesmo que os
regulares quisessem subir aos púlpitos nas igrejas dos seus conventos ou mosteiros,
era-lhes exigido uma licença do seu superior, com a qual se deviam apresentar
perante o bispo, pedindo-lhe a benção, conforme se determinara no Concílio
Tridentino22.
Todas previam penalizações para os prevaricadores, as quais se foram
agravando com o decorrer do tempo. Assim, nas de Leiria (1601) aos infractores
seria cominada multa de 10 cruzados e suspensão do consentimento de
pregarem, mas as de Lisboa (1640) já falavam em excomunhão, suspensão das
ordens, prisão e outras penas a arbítrio do arcebispo23.
Ver Contituiçoes synodaes do Algarve, ed. cit., 317.
Ver Constituiçoes synodaes do bispado de Viseu, Coimbra, Joseph Ferreyra, 1684, 6.
18
Ver Primeiras constituçoes sinodaes do bispado d’Elvas, Lisboa, Lourenço Craesbeeck, 1635, fl. 26.
19
Ver Constituições Synodaes (...) de Lisboa (1640), 221.
20
Ver, por exemplo, Constituiçoes synodais do bispado de Portalegre, Portalegre, Jorge Rodrigues, 1632, 4.
21
Ver Michelle MANCINO, Licentia confitendi. Selezione e controllo dei confessori a Napoli in età moderna,
Roma, Edizione di Storia e Letteretura, 2000, 15. Agradeço a Paola Nestola a indicação deste livro.
22
Ver, por exemplo, Contituiçoes synodaes do bispado do Algarve, 318.
23
Ver Constituiçoes synodaes do bispado de Leiria, 87 e Constituições Synodaes (...) de Lisboa (1640), 220.
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José Pedro Paiva
Uma das grandes novidades em relação ao passado pré-tridentino são as
prescrições relativas às qualidades e competências exigidas aos pregadores,
explicitando-se os tipos de exames a que se deviam submeter para alcançarem
as licenças que os habilitariam a pregar. Nas do Porto exigia-se, pelo menos,
que o candidato fosse subdiácono24. Mas, neste aspecto, as do arcebispado
de Braga (1639), ordenadas em sínodo por D. Sebastião de Matos Noronha,
são exemplares25. Informam que para ser admitido a exame o candidato tinha
que possuir idade mínima e, invocando disposíções do Concílio Provincial
bracarense (1566) do tempo de D. Frei Bartolomeu dos Mártires, estipulam que
só seriam conferidas licenças a quem fosse, pelo menos, bacharel em teologia
ou cânones por Universidade aprovada, denunciando, deste modo, aturada
preocupação com a preparação dos protagonistas da arte concionatória26. E
as provas não seriam ligeiras. Em Braga tinham três componentes. Duas de
doutrina e uma relativa ao apuramento das qualidades de vida e costumes dos
examinandos. Sobre esta requeria-se-lhes idade «madura, inteireza de vida e
costumes, prudencia, piedade e devoção»27. A competência doutrinal era aferida
em duas avaliações distintas. Numa propunha-se ao candidato uma perícope
do Evangelho, dava-se-lhe tempo para preparar um sermão, o qual devia ser
proferido diante dos examinadores. Noutra teria que sustentar três conclusões
de teologia sobre matérias diversas, podendo os examinadores colocar-lhe
questões variadas sobre elas. A prova era exigente e disso havia consciência, pois
termina-se este ponto das Constituições bracarenses acrescentando que com
os pregadores conhecidos do arcebispo, examinados por outros antístites, ou
regulares aprovados pelos seus superiores, não se «usará destes rigores»28. Estes
exames deviam ser efectuados de preferência pelo bispo, ou pelo menos na sua
presença, ou então pelo provisor ou quem o antístite escolhesse29. Tal sublinha
o poder episcopal neste domínio, o que igualmente se comprova pela disposição
que impunha aos pregadores efectuarem a profissão de fé nas mãos do bispo ou
do vigário geral, antes de pregarem, conforme breve de Pio IV (1559-1565),
que muitas relembravam30. E pode comprovar-se que, pelo menos em algumas
dioceses isso foi cumprido, como sucedeu, por exemplo, na de Viseu, enquanto
foi governada por D. Jorge de Ataíde (1568-1578)31.
Ver Constituiçoes synodaes do bispado do Porto (1687), 264.
Sobre a mesma matéria são igualmente detalhadas as Constituições Synodaes (...) de Lisboa (1640), 221 e
as Constituiçoes synodais do bispado da Goarda, 221.
26
Ver Constituiçoes synodaes do arcebispado de Braga, 313.
27
Cf. Constituiçoes synodaes do arcebispado de Braga, 313.
28
Cf. Constituiçoes synodaes do arcebispado de Braga, 313.
29
Ver, a título de exemplo, Constituições Synodaes (...) de Lisboa (1640), 221.
30
Ver, por exemplo, Contituiçoes synodaes do bispado do Algarve, 319.
31
Veja-se o termo seguinte: «Profissao da fe que fes Frei Manuel da Anunciação para pregar neste bispado.
24
25
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Episcopado e pregação no Portugal Moderno: formas de actuação e de vigilância
Para além dos exames, as Constituições impunham códigos de conduta a
quem, a partir do ambão, difundia a palavra de Deus. Eram usuais apetrechos
do arquétipo definido a modéstia, gravidade, autoridade, prudência, moderação,
espírito conciliador. Nas Constituições de Leiria (1601) ordenava-se que os
pregadores fossem «circunspectos e advertidos», e nas da Guarda (1686), lembravase ainda como o «procedimento exemplar é o melhor modo de pregação»32. Já as
de Lamego recomendavam que os pregadores, antes de iniciarem a sua oratória
sacra, não fizessem vénias ou saudações a eclesiásticos presentes no auditório, a não
ser a legados papais ou bispos33. Eram ainda frequentes os pedidos para os párocos
serem tratados com toda a cortesia e sem qualquer desconsideração ou reprimenda
pública, não dizendo nada que os pudesse desmerecer aos olhos dos fiéis34.
A matéria e forma da pregação também foram objecto de regulamentação. Em
geral, exigia-se brevidade e clareza do discurso, por forma a evitar o tédio e mal
entendidos da parte dos ouvintes. Estes deviam ser estimulados pelos pregadores
a praticar as virtudes cristãs, a fugir das ocasiões propícias a pecar, a confessar e a
comungar nos tempos de preceito35.
Além disso, quase todas colocavam interditos aos pregadores. Que se
abstivessem de narrar historietas humanas, profanas e anedotas que provocassem o
riso, ou que fundassem os seus argumentos em livros apócrifos e fábulas poéticas,
devendo antes alegar em abono das suas palavras com a Bíblia, Padres da Igreja
e autores santos36. A disputa de heresias, mesmo que fosse para as combater,
era igualmente proibida. E, sendo absolutamente indispensável, tal devia ser
feito com toda a clareza e prudência, para evitar dúvidas nos ouvintes entre a
verdadeira doutrina católica e o erro37. Na mesma linha, interditava-se a discussão
de questões difíceis dos mistérios da religião cristã, e ainda as críticas dos poderes
eclesiásticos e seculares38. Por vezes, surgem normas mais pontuais, como é o caso
Ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil quinhentos e setenta e oito anos, aos vinte e sete
dias do mes de Janeiro do dito ano, nos Paços Pontificais da Quinta e couto do Fontelo, estando ahi o reverendo padre e illustrissimo Senhor Dom Jorge de Ataide, bispo de Viseu, ante ele fez a profissão de fee na forma
do Sagrado Consilio tridentino e bula de Pio IV, frei Manuel da Anunciação, religioso egresso dos menores de
S. Francisco, da Custodia do Porto, e lhe mandou Sua Reverendissima passar licença para pregar e confessar
neste bispado (...) foram presentes Baltazar de Chaves, porteiro de Sua Reverendissa, e Antonio da Silva,
escrivão da câmara», cf. Arquivo Distrital de Viseu, Livro de Colações, nº 262/321, fl. 54. Muito agradeço ao
mestre João Rocha Nunes a indicação desta informação.
32
Cf. Constituiçoes synodaes do bispado de Leiria, 87 e Constituiçoes synodais do bispado da Goarda, 220
e 222.
33
Ver Constituiçoes synodaes do Bispado de Lamego feitas pelo Bispo D.Miguel de Portugal publicadas e
aceitas no synodo que o dito senhor celebrou em o anno de 1639 e agora impressas por mandado do illustrissimo e reverendissimo senhor D. Frei Luis da Sylva, Lisboa, Miguel Deslandes, 218.
34
Ver Constituiçoes synodais do bispado da Goarda, 220 e 222.
35
Ver, por exemplo, Constituiçoes synodaes do arcebispado de Braga, 312.
36
Ver, por exemplo, Constituiçoes synodaes do bispado do Porto (1687), 266.
37
Ver, por exemplo, Constituiçoes synodaes do bispado de Viseu (1684), 6.
38
Ver, por exemplo, Constituiçoes synodaes do arcebispado de Braga, 312-313.
15
José Pedro Paiva
de disposição das Constituições de Portalegre (1630), as quais, invocando breve
do papa Gregório XV, de 1622, não autorizavam sermões contra a puríssima
Concepção de Nossa Senhora39.
Este programa baseava-se nas disposições canónicas, conciliares e em
bulas e breves papais de aplicação em toda a Igreja católica, fontes que eram
regularmente citadas nos textos das Constituições. Tal como S. Paulo, o apóstolo
da palavra, expressamente invocado nas de Lisboa de 1640, por exemplo, para
legitimar a disposição de que ninguém podia pregar o Evangelho por autoridade
própria40. E, apesar de não serem expressamente citadas, dada a natureza jurídica
das Constituições, é natural que os bispos seguissem as propostas de alguns
autores consagrados, campo onde a produção foi abundantíssima, conhecendose cerca de 200 títulos de retórica eclesiástica saídos dos prelos entre os séculos
XVI e XVIII41. João Francisco Marques já identificou os manuais por onde
vulgarmente se aprendiam os preceitos da eloquência sagrada, numa abordagem
onde é perceptível alguma evolução de padrões/modelos seguidos, percurso que
não é possível analisar aqui. Eram eles o De arte rethorica libri tres ex Aristotele,
Cicerone et Quintiliano praecipue deprompti (1562), do jesuíta Cipriano Soarez,
a Ecclesiasticae retoricae, sive de ratione concionandi libri sex (1576), do domínico
Luis de Granada, o De ratione concionandi (1576), de frei Diogo de Estella, as
Instruções da pregação da palavra de Deus (vertido pra português em 1763), do
cardeal e arcebispo de Milão, Carlos Borromeu, os Diálogos sobre a eloquencia
em geral e do pulpito em particular (tradução portuguesa de 1761), do abade
Fénelon42.
Com maior ou menor grau de detalhe as Constituições enquadravam ainda
uma grande variedade de aspectos relacionados com a pregação nas dioceses. Um
deles eram os tempos em que deviam ocorrer, proibindo-se em quase todo o lado
que houvesse pregações de noite ou em simultâneo com momentos em que o
bispo pregasse na Sé catedral43. Nas de Lamego, constatando-se a impossibilidade
de haver oradores suficientes para fazerem sermões dominicalmente nas igrejas
paroquiais, prescreve-se que pelo menos se fizessem no dia do orago da Igreja44.
Nas de Lisboa, por exemplo, muito cuidadosas neste plano, estabelecia-se a
norma de haver sermão durante a celebração da Eucaristia e após leitura do
Evangelho, na Sé catedral todos os domingos e dias santificados, e na época da
Ver Constituiçoes synodais do bispado de Portalegre, 5.
Ver Constituições Synodaes (...) de Lisboa (1640), 220.
41
Valores referidos em Roberto RUSCONI, Rhetorica ecclesiatica. La predicazione nell´età post-tridentina
fra pulpito e biblioteca in La predizazione in Italia dopo il Concilio di Trento (direcção de Giacomo MARTINA
e Ugo DOVERE), Roma, Edizioni Dehoniane, 1996, 34.
42
Ver João Francisco MARQUES, Pregação, art. cit., 401.
43
Ver Constituiçoes synodais do bispado de Portalegre, 5.
44
Ver Constituiçoes synodaes do Bispado de Lamego, 219.
39
40
16
Episcopado e pregação no Portugal Moderno: formas de actuação e de vigilância
Quaresma todos os domingos, quartas e sextas-feiras O mesmo se cumprindo nas
localidades maiores do arcebispado, como Setúbal, Torres Novas ou Santarém. Já
nas terras menores haveria sermão obrigatoriamente nas festas maiores de Cristo
e de Nossa Senhora, e nos restantes dias isso dependeria da disponibilidade dos
fiéis para pagarem o pregador45. A respeito destes vencimentos, a norma era na
catedral serem as despesas suportadas pelos bispos, nas restantes igrejas pelos
fiéis ou pelas confrarias, devendo ser sempre respeitados os costumes ancestrais
das localidades46.
Para além dos tempos definia-se quem devia dizer os sermões. Sempre nas
Constituições de Lisboa, estabelecia-se cumprir ao arcebispo definir quem pregaria
na Sé e nas paróquias, devendo ser respeitados costumes locais, e instruíam-se
os párocos a pregarem aos Domingos e dias santificados aos seus fregueses, por
si próprios quando tivessem qualidades para tanto, ou pagando de seu próprio
bolso a um pregador47. Sendo isto inviável, deviam os párocos ler sermões já
previamente redigidos e insertos em livro preparado pelo arcebispo de Braga,
D. Frei Bartolomeu dos Mártires48.
Competia aos visitadores apurar se estes preceitos se cumpriam, como se
lembra nas Constituições da Guarda, nas quais se ordenava ainda a necessidade
de pregar aos presos nos locais onde houvesse cadeias públicas e a proibição de
realizar sermões de exéquias sem especial autorização do bispo49. A vigilância dos
visitadores era também lembrada em alguns manuais de visita, instruindo-os a
verificarem se os párocos e restante clero possuíam licenças de confessar e pregar,
e se os púlpitos das igrejas estavam do lado direito do altar50. De igual modo era
vedada a pregação de indulgências sem idêntica licença especial do prelado51.
A regulação do ministério do púlpito por parte dos bispos também se efectuou
através da promulgação de provisões e pastorais. Em geral, estas importantíssimas
fontes para o conhecimento da actividade episcopal estão praticamente ignoradas,
não existindo sequer inventários das ainda conservadas nos arquivos52. Todavia,
a consulta não sistemática de alguma dessa produção a que foi possível recorrer
na pesquisa efectuada, permite perceber que também por esta via os bispos
Ver Constituições Synodaes (...) de Lisboa (1640), 221-222.
Ver Constituiçoes synodaes do bispado do Algarve, 319.
47
Ver Constituições Synodaes (...) de Lisboa (1640), 283-284.
48
Sobre este livro ver infra o capítulo 3 deste estudo.
49
Ver Constituiçoes synodais do bispado da Goarda, 222-223.
50
Ver Lucas de ANDRADE, Visita geral que deve fazer hum prelado no seu bispado apontadas as cousas
porque deve perguntar e o que devem os parochos preparar para a visita, Lisboa, Of. de João da Costa,
1673, 37 e 57.
51
Ver Constituiçoes synodaes do bispado de Viseu (1684), 6.
52
Constitui rara excepção a abordagem de síntese relativa à produção pastoral, normas do seu registo e difusão
pelos prelados açorianos, entre 1693 e 1812, em Susana Goulart COSTA, Viver e morrer religiosamente. Ilha
de São Miguel Século XVIII, Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada, 2007, 46-61.
45
46
17
José Pedro Paiva
procuraram disciplinar a pregação. Quer reiterando disposições nalguns casos já
vertidas em textos das Constituições, quer promulgando outras, por norma de
cariz mais conjuntural.
Por provisão de 3 de Novembro de 1564, D. Frei Bartolomeu dos Mártires
instituiu que todos os abades, reitores, vigários e capelães que não fossem doutos
em Sagrada Escritura, teologia ou cânones, nos domingos e dias de guarda lessem
aos seus fregueses um dos sermões que o arcebispo propunha no livro que acabava
de publicar, intitulado Cathecismo ou doutrina christã (1564)53.
D. Teotónio de Bragança, arcebispo de Évora, ordenava em Junho de 1590
que todos pregadores no exercício da pregação não deixassem de lembrar aos fiéis
como estavam obrigados a pagar os dízimos e primícias à Igreja, solicitando ainda
aos prelados das congregações regulares que encarregassem os religiosos sob sua
jurisdição a que procedessem de igual modo54. Provisão que torna claro um aspecto
que parece muito importante: a utilização da rede de pregadores para a difusão
e inculcação nas populações das mensagens oriundos do centro do governo da
diocese, amplificando assim a sua capacidade de implantação territorial.
Em 1607, o bispo de Coimbra D. Afonso de Castelo Branco emitiu uma
provisão pela qual ameaçava tolher a licença para pregar a todos aqueles que não
seguissem o modelo de pregação que detidamente apresentou55.
No ano de 1630, D. Jorge de Melo, antístite de Miranda, rogava aos pregadores
do bispado que exortassem os fiéis a, quando ouvissem um toque de sino que o
prelado ordenara se fizesse em todas as paróquias, se ajoelhassem em suas casas e
rezassem pelos agonizantes, lembrando-se «tambem que se am de ver naquella
terrivel hora da morte em que nam ha mais que gloria para sempre ou condenação
eterna (...)»56.
D. João Melo, presidindo aos destinos da diocese conimbricense, ordenou
uma pastoral, em 12 de Outubro de 1690, reconhecendo os inconvenientes de
haver párocos que, durante a Quaresma, iam pregar para fora das suas paróquias,
deixando-as e aos seus fiéis desamparados, pelo que proibia que durante aquela
época do ano estes clérigos saíssem a pregar fora das respectivas freguesias57. Postura
que deixa entender como alguns párocos/pregadores procurariam aumentar os
Ver Cathecismo ou doutrina christã e praticas spirituaes pera se ler nas parrochias deste nosso arcebispado
onde não ha pregaçam, Braga, Antonio de Mariz, 1564, fl. não numerado, antes do Proémio.
54
Cito o texto da provisão, cujo original se encontra na Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Évora (de
agora em diante sempre BPADE) códice 5312, a partir de Pinharanda Gomes, O arcebispo de Évora D. Teotónio
de Bragança (escritos pastorais), Braga, Ed. autor, 1984, 91-93.
55
Ver Archivio Segreto Vaticano (doravante ASV), Fondo Confalonieri, vol. 40, fl.126.
56
Cf. Arquivo da Diocese de Bragança/Miranda, Livro de capítulos de visita da freguesia de Santa Maria
Madalena de Urrós, sem cota, fl. 57v-58.
57
Ver Arquivo da Universidade de Coimbra (a partir de agora sempre AUC), Livro de pastorais da igreja de
Santa Justa (1690-1741), III/D, 1,3,5,238, fl. 9v.
53
18
Episcopado e pregação no Portugal Moderno: formas de actuação e de vigilância
seus proventos por via do sermão, mesmo que isso implicasse a quebra do preceito
da residência a que estavam obrigados. O bispo devia ser sensível a esta questão
das receitas obtidas na pregação e estava consciente das querelas que, por vezes,
estes pagamentos suscitariam. Por isso, na mesma carta pastoral, prescreve o modo
como as confrarias deviam eleger e pagar aos pregadores por ocasião da Quaresma.
Estas eleições deviam ser sempre presididas pelos párocos e, não se cumprindo
até 15 de Janeiro de cada ano, o bispo reservava-se o direito de ser ele a nomear o
pregador que efectuaria o sermão.
Nas ilhas do Açores, o bispo D. António Vieira Leitão teve que enfrentar o
laxismo com que os párocos e as abadessas dos mosteiros autorizavam a actividade
dos pregadores nas paróquias e nas igrejas dos mosteiros, pelo que, através de
provisão de 24 de Julho de 1710, mandou que uns e outras não consentissem
pregadores desprovidos de licença sua, devendo igualmente os ouvidores zelar
para que se cumprisse esta determinação58.
Algumas posturas dificilmente se extirpavam. Era o caso das pregações e
procissões celebradas durante a noite, repetidamente proibidas em várias dioceses
após o Concílio de Trento. Assim sucederia no arcebispado de Lisboa, pelo que o
patriarca D. Tomás de Almeida, por pastoral de 12 de Março de 1743, mandou
que o sermão da Paixão «se faça na manha da sexta feira santa, acabado de se
cantar o Evangelho delle, e que nas mais igrejas onde se costumava fazer sermão
na noite da mesma sexta feira se pregue na tarde a horas competentes e igualmente
se fechem as igrejas meya hora depois de se por o Sol»59.
A ofensiva anti-jesuítica de meados de Setecentos também ficou expressa na
pastoral episcopal. A 7 de Junho de 1758, D. José Manuel da Câmara, arcebispo
lisboeta, suspendeu todos os padres da Companhia de poderem confessar e pregar
no arcebispado60.
Os escassos exemplos aduzidos, não tendo qualquer pretensão de
exaustividade, para além de fornecerem dados úteis sobre a relação dos bispos
com a pregação e iluminarem melhor este universo, procuram chamar a atenção
para a premência de explorar este filão documental.
2. Bispos pregadores
Os bispos, para além de, como acaba de se demonstrar, regulamentarem a
actividade concionatória através das Constituições, provisões e cartas pastorais,
58
A pastoral está transcrita em Maria Fernanda Dinis Teixeira ENES, As visitas pastorais da matriz
de São Sebastião de Ponta Delgada (1674-1739), Angra do Heroísmo, Secretaria Regional de Educação e
Cultura, 1986, 223-224.
59
Cf. Colecção de pastoraes do Patriarcado (Miscelânea), fl. não numerado, pastoral 10 (o exemplar desta
colecção consultado encontra-se em Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, cota: 3-11-4-204).
60
Colecção de pastoraes do Patriarcado (Miscelânea), fl. não numerado, pastoral 23.
19
José Pedro Paiva
podiam ser eles próprios activos pregadores. Antes do Concílio de Trento
raramente se envolviam pessoalmente neste ministério, tal como não era vulgar
que administrassem outros sacramentos, incluindo o da ordem. O mais frequente
era que tivessem auxiliares que o fizessem em seu nome. Assim procediam
D. Jorge de Almeida, bispo de Coimbra (1482-1543) e o infante D. Afonso,
bispo de Évora (1523-1540). Em 9 de Novembro de 1499 o primeiro lançou
uma indulgência plenária por toda a diocese, destinada a recolher esmolas para
a erecção de uma Confraria de Nossa Senhora da Sé, a fim de, com as receitas
obtidas, dar maior dignidade ao culto da catedral. O magnífico altar-mor ainda
ali existente, obra realizada por Olivier de Gand e Jean d´Ypres, terá em boa parte
sido edificado com esses fundos61. Esta era, aliás, prática usual na Igreja de então.
É célebre a indulgência lançada pelo papa Leão X, destinada a reedificar a basílica
de S. Pedro, e que o dominicano Tetzel pregou em terras germânicas, episódio
usualmente associado à eclosão da dissenção luterana62. Para aqui importa notar
que a indulgência foi pregada na diocese de Coimbra por três pregadores enviados
pelo prelado, um dos quais, tal como consta da provisão episcopal, era o «bacharel
frei Tomás, nosso pregador»63.
De modo semelhante agia o filho de D. Manuel I, cardeal e arcebispo-bispo
D. Afonso. Quando, em 1537, empreendeu uma visita pastoral ao cabido da Sé
de Évora, decidiu iniciar o acto com um sermão confiado a Francisco Frias, «nosso
pregador», como se lhe referia64.
Que este era o procedimento vulgar infere-se ainda através de uma carta que
o rei D. João III escreveu ao cardeal D. Henrique, no ano de 1552, quando em
Trento se iam definindo normas que alterariam esta prática. Nessa missiva, entre
outros assuntos, o monarca recomendava ao seu irmão e arcebispo de Évora
que ele tivesse a seu serviço bons pregadores, bons visitadores, bons vigários e
oficiais de justiça65. E D. Henrique, por 1551-1552, chamara pregadores jesuítas
e dominicanos para pregarem pelos campos, entre os quais o célebre Luis de
Granada66. Alguns anos antes, em Dezembro de 1543, o arcebispo de Lisboa,
Sobre o magnífico altar-mor ver Francisco Pato de MACEDO, O retábulo-mor da Sé Velha de Coimbra in
Estudos sobre escultura e escultores do Norte da Europa em Portugal. Época Manuelina, (coordenação de
Pedro DIAS), Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997,
213-234.
62
Ver J. ROGIER, R. AUBERT e M. KNOWLES (dir.), Nouvelle histoire de l’Église, Paris, Seuil, 1968,
vol. 3, 59.
63
Cf. ANTT, Mitra Episcopal de Coimbra, maço 1, documento 2.
64
Cf. Arquivo do Cabido da Sé de Évora, Visita do cabido da Sé de Évora, no ano de 1537, CEC 5-X. Cito
a partir da publicação da fonte efectuada por Isaías da Rosa PEREIRA, Subsídios para a história da Igreja
Eborense Séculos XVI e XVII in Arquivos do Centro Cultural Português, 4 (1972), 187.
65
Ver IANTT, Colecção de S. Vicente, vol. 12, fl. 43-46.
66
Ver José Sebastião da Silva DIAS, Correntes de sentimento religioso em Portugal (séculos XVI a XVIII),
Coimbra, Universidade de Coimbra, 1960, tomo II, 492.
61
20
Episcopado e pregação no Portugal Moderno: formas de actuação e de vigilância
D. Fernando de Meneses Coutinho e Vasconcelos (1540-1564), em carta para o
mesmo D. João III, gabava-se de ter sido o primeiro, enquanto era ainda bispo de
Lamego, a enviar pela diocese «pregadores de verdade com os meus visitadores»67.
Prática que o seu sucessor lamecense, D. Manuel de Noronha, teria perpetuado,
e ainda em 1566 dava conta a D. João III de como aproveitava um religioso
dominicano, frei Francisco Vilaça, nesse seu serviço68.
O Concílio de Trento veio alterar este panorama. Ainda durante a sua primeira
fase (1545-1547), na sessão V, capítulo II, depois de se afirmar que a pregação do
Evangelho era a principal obrigação dos antístites, determina-se que «todos os
bispos, arcebispos, primazes e todos os mais prelados das igrejas, estejão obrigados
a pregar por si mesmos o Evangelho de Jesus Christo, não estando legitimamente
impedidos»69. Por então, houve bispos com actuação modelar e que foram fonte
de inspiração para tantos outros, os quais iniciaram o seu governo episcopal
precisamente com actividades de predicação, como foi o caso de Gabriele Palleoti,
no arcebispado de Bolonha, em 156670.
Está insuficientemente conhecida a actividade concionatória dos bispos
portugueses71. Mas não se duvide que os houve activos pregadores, tanto entre
os oriundos do clero regular, como secular. É até de admitir que alguns tivessem
alcançado a mitra, entre outros factores, como recompensa pelos dotes oratórios,
os quais, decerto, não deixaram de empregar na condição de bispos72.
O trinitário Manuel de Santa Luzia, ao narrar a biografia do seu correligionário
D. Frei Luís da Silva, sucessivamente bispo de Lamego (1677-1685), Guarda
(1685-1691) e Évora (1691-1703), num compreensível tom apologético, e
retomando tópicos característicos deste género de textos, principia por afirmar
Cf. Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Évora (de agora em diante sempre BPADE), Miscelanea com
várias cópias de cartas, cod. CIII/2-26, fl. 206v.
68
Ver José Sebastião da Silva DIAS, Correntes de sentimento religioso, tomo II, 492. Aqui se transcreve carta
de D. Manuel de Noronha para D. João III, de 12 de Abril de 1556.
69
Cito a partir de O sacrosanto e ecumenico Concílio de Trento em latim e portuguez, Lisboa, Francisco
Luiz Ameno e Simão Thaddeo Ferreira, 1786, Sessão 5, cap. 2 (Dos pregadores da palavra de Deos e dos
questores), tomo I, 85. O assunto voltou a ser reiterado na 3ª fase do Concílio (1562-1563), sessão XXIV, cap.
IV, de Reformatione, tomo II, 275-279.
70
Ver Paolo PRODI, Il cardinale Gabriele Paleotti (1522-1597), Roma, Edizioni di Storia e Letteratura,
1959;1967, vol. II, 75.
71
Ao invés, abundam estudos centrados sobre a actividade de bispos italianos no domínio da pregação,
principalmente no período pós-tridentino, ver, por exemplo: John W. O´MALLEY, Saint Charles Borromeo
and the Praecipium Episcoporum Munus: his place in the history of preaching in San Carlo Borromeo.
Catholic reform and ecclesiastical politics in the second half of the sixteenth century (direcção de John
HEDLEY and John B. TOMARO), Washington; London, The Folger Shakespeare Library, 1988; Paolo
PRODI, Il cardinale Gabriele Paleotti, sobretudo vol. II, 80-124; Massimo FIRPO, Vittore Soranzo vescovo
ed eretico. Riforma della Chiesa e Inquisizione nell´Italia del Cinquecento, Roma-Bari, Laterza, 2006, 258-268; Paola NESTOLA, I grifoni della fede. Vescovi-inquisitori in Terra d´Otranto tra ´500 e ´600, Galatina
(Lecce), Congedo Editore, 2008, 207-231 (onde se analisa a actuação de Braccio Martelli, bispo de Lecce).
72
Forneço alguns exemplos em José Pedro PAIVA, Os bispos de Portugal e do império 1495-1777, Coimbra,
Imprensa da Universidade de Coimbra, 2006, 377-78, 395 e 506.
67
21
José Pedro Paiva
que ele foi um «excelente pastor», pois, sendo bispo de Lamego, pregou em
todas as paróquias da diocese sendo sempre escutado com muita atenção73. Já no
século XVIII, e apenas chegado ao Maranhão, D. Frei Manuel da Cruz confessa
ter iniciado o seu governo da diocese com uma missão, durante a qual e ele e um
jesuíta pregaram alternadamente, fazendo o mesmo em visita pastoral iniciada
pouco depois74.
Era possível trazer à colação muitos outros exemplos semelhantes. E tal
não deveria espantar. É que não fora apenas Trento a determiná-lo. O próprio
arquétipo do bispo que se enraizou a partir da segunda metade do século
XVI, o qual tendeu a inspirar e enquadrar a actividade do episcopado desde
então, também valorizou esta dimensão apostólica dos prelados. Acresce que,
em Portugal, ele teve desde cedo a animá-lo e instigá-lo o luzeiro que foi a
actuação e a obra do arcebispo bracarense D. Frei Bartolomeu dos Márires,
nomeadamente o seu Stymulus pastorum (1565)75. Na impossibilidade de aqui
propor uma visão sistémica, ou sequer de elencar todos os bispos que mais
valorizaram esta função, socorramo-nos de um caso concreto, o qual, tomado a
título de exemplo, configura um desempenho que não foi seguramente único.
O eleito foi D. Afonso de Castelo Branco, prelado do Algarve (1581-1585)
e, posteriormente, de Coimbra (1585-1615), o qual pregava muito e em vários
locais76. Na Sé catedral, naturalmente, no Colégio da Companhia de Jesus,
em autos-da-fé inquisitoriais. Em 1614 o próprio, que deveria ter o cuidado
de anotar os sermões por si proferidos, confessa que nesse ano iria pregar na
catedral pela décima quinta vez no dia da purificação de Nossa Senhora77.
Anteriormente, no ano de 1602, contabilizara oito sermões por si feitos do
púlpito da igreja do colégio jesuítico78. Aos estrados dos autos-da-fé já tinha
subido seis vezes até 159679. E conhece-se ainda o texto de um sermão que
Cf. IANTT, Manuscritos da Livraria, vol. 619 e 619A, cap. 44, trata-se de Epitome cronologico de varoens
illustres religiosos Trinitarios dignos de eterna memoria pellas dignidades a que subirão por seus elevados
merecimentos (1760).
74
Ver Museu da Inconfidência (Ouro Preto, Brasil), Copiador de algumas cartas particulares do excelentíssimo
e reverendissimo senhor Dom frei Manuel da Cruz, bispo do Maranhão e Mariana (1739-1762), carta do bispo
para fr. Gaspar da Encarnação, Maranhão, 29 de Agosto de 1740, carta nº5 (cito a partir da transcrição
efectuada por Aldo Luiz LEONI, [Ouro Preto], [2004], texto policopiado. Muito agradeço a Patrícia Ferreira
dos Santos, doutoranda na Universidade de S. Paulo, o ter-me disponibilizado um exemplar).
75
Sobre o assunto remetemos para José Pedro PAIVA, Os bispos de Portugal e do império, ed. cit., 132-143.
O Stymulus foi publicado em versão bilingue, com introdução de Almeida Rolo, ver Bartolomeu dos MÁRTIRES,
Estímulo de pastores, Braga, Movimento Bartolomeano, 1981.
76
Para um melhor enquadramento do assunto sugere-se a consulta de José Pedro PAIVA, A diocese de
Coimbra antes e depois do Concílio de Trento: D. Jorge de Almeida e D. Afonso Castelo Branco in Sé Velha
de Coimbra. Culto e Cultura. Ciclo de conferências 2003 Coimbra, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 2005,
225-253.
77
Ver ASV, Fondo Confalonieri, 39, fl. 498-99 (carta de 21 de Janeiro de 1614 a Giovanbattista Confalonieri).
78
Ver ASV, Fondo Confalonieri, 39, fl. 107 (carta de 21 de Janeiro de 1602 a Giovanbattista Confalonieri).
79
Ver ASV, Fondo Confalonieri, 33, fl. 160 (carta de 6 de Novembro de 1596 a Fabio Biondo). Um destes
73
22
Episcopado e pregação no Portugal Moderno: formas de actuação e de vigilância
proferiu por ocasião da trasladação de um conjunto de relíquias80 da catedral
conimbricense para o Mosteiro de Santa Cruz.
O prelado, por norma, não escrevia o que perorava do púlpito. Em carta de
1596 compartilha com o seu interlocutor que se «tivera as pregaçois que tenho
feitas escritas fizera-se hum bom volume»81. Teria ainda o hábito de colher nos
livros de autores santos os argumentos por si espendidos, sendo muito caústico
com aqueles que gostavam de arvorar ideias pessoais: «eu nao costumo pregar
senão a doutrina dos Santos porque o bom que os pregadores dizem he seu e as
parvoices que muitas vezes ouvimos e dizemos são nossas»82.
Mas o mais eloquente testemunho do modelo de pregação por si seguido é uma
carta pastoral, datada de 9 de Fevereiro de 160783. Ela tinha como destinatários
os pregadores seculares e regulares, e parte da premissa de acordo com a qual a
pregação era um instrumento importantíssimo para a «salvação das almas». Por
conseguinte, na lógica argumentativa do prelado, exigiam-se pregadores com
qualidades e virtudes. E quais eram elas aos olhos do bispo conimbricense? «letras
com christandade, autoridade sem ambição e estilo puro e considerado, mas
também obras santas e vida exemplar». Assim munido, o pregador, não devia utilizar
o púlpito para ensinar «coisas novas e levianas», mas antes «autênticas, antigas e
conformes à doutrina dos santos». No fundo, devia observar a estrita ortodoxia
propalada pela Igreja, pelos apóstolos e pelos seus santos. Os exemplos de santos
e apóstolos, sobretudo S. Paulo, são apresentados como guias do pregador. Estes
deviam possuir três virtudes, de acordo com os ensinamentos de S. Paulo: «alegria
afervorada e caridosa com ousadia no que é proveitoso a encaminhar os homens ao
Céu; bom entendimento e prudência no saber escolher o bom e dar de mão o mau,
e ânimo pronto e disposto pera sofrer tudo pela honra de Deus e bem do próximo,
sermões foi dado à estampa, ver Manuel Augusto RODRIGUES, D. Afonso de Castelo Branco, estudante
da Universidade de Coimbra, bispo do Algarve e de Coimbra – a sua concio num auto de fé in Boletim do
Arquivo da Universidade de Coimbra, XV-XVI (1995-96), 1-71.
80
O texto do eloquente sermão foi publicado em Relaçam do solenne recebimento das santas reliquias que
forão levadas da See de Coimbra ao Real Mosteyro de Santa Cruz, Coimbra, Casa de Antonio Mariz, 1596,
fl. 58v-76v. Muito agradeço ao Doutor José Adriano Freitas de Carvalho a indicação deste texto e a generosa
oferta de uma cópia do exemplar de que é proprietário.
81
Cf. ASV, Fondo Confalonieri, 39, fl. 25 (carta de 20 de Setembro de 1596 a Giovanbattista Confalonieri).
O célebre arcebispo Carlo Borromeo fazia esquemas em árvore com a estrutura dos seus textos, ver Samuele
GIOMBI, La predicazione di San Carlo: fonti, metodo, stili in Carlo Borromeo e l´opera della «grande
riforma». Cultura, religione e arti del governo nella Milano del pieno Cinquecento (dir. de Franco BUZZI e
Danilo ZARDIN), Milano, Silvana Editoriale, 1997, 75. Já Gabriele Paleotti, que teria proferido mais de 700
sermões em vulgar e também latinos, por vezes faria esquemas, mas outras escreveria o texto integral, ver
Paolo PRODI, Il cardinale Gabriele Paleotti, sobretudo vol. II, 81-85.
82
Cf. Paolo PRODI, Il cardinale Gabriele Paleotti, ed. cit. Esta afirmação do prelado pode comprovar-se pelos sermões de sua autoria actualmente conhecidos, nos quais abundam citações de santos, ver, por exemplo,
o há pouco referido Relaçam do solenne recebimento das santas reliquias..., repleto de referências a Santo
Agostinho, S. Jerónimo, S. João Crisóstomo, S. Cipriano, S. Gregório, etc.
83
O original manuscrito, em tradução italiana, encontra-se em ASV, Fondo Confalonieri, 40, fl. 126.
23
José Pedro Paiva
sendo isto o principal e mais insigne na pregação, porque Cristo Nosso Senhor
não foi honrado do Padre Eterno por fazer milagres entre os homens mas para
sofrer desonras por amor deles».
Dito isto, e revelando conhecer a actividade concionatória que se realizava na
sua diocese, D. Afonso Castelo Branco afirma que muitos pregadores não seguiam
estes preceitos, enumerando algumas das falhas que mais regularmente seriam
cometidas, como dizerem mal uns dos outros, louvarem mais a alguns santos do
que a outros, exporem nas suas prédicas doutrina própria e não a recomendada
pelos padres da igreja e pelos santos. Por isso, para finalizar, determina que,
futuramente, todos os que não seguissem o padrão enunciado na pastoral seriam
proibidos de pregar nas igrejas do bispado e também nas dos mosteiros ou
conventos regulares, invocando para o efeito explicitamente jurisdição que lhe era
conferida pelo Concílio de Trento84.
Este era o programa de pregação do bispo de Coimbra. Conhecer outros,
inclusivamente através dos sermões que proferiram e ficaram impressos em letra
de forma, ajudará a definir melhor como se comportariam os bispos nos púlpitos.
3. Os tempos e os modos da pregação
Os tempos e as ocasiões da pregação estimulada pelos bispos eram frequentes,
criando tamanha densidade que a palavra do pregador e a visão dos púlpitos era um
exercício muitíssimo comum na vida dos fiéis. João Francisco Marques já disse, e
bem, que havia dois ciclos de pregação. Uma ordinária «confinada no calendário
litúrgico à própria do tempo desde o Advento ao último Domingo depois do
Pentecostes, com as celebrações dos mistérios de Cristo e da Virgem, e as festas
obrigatórias do santoral», e uma outra dita extraordinária, composta pelos sermões
de exéquias, gratulatórios, deprecatórios e penitenciais85.
Os antístites também foram activos estimuladores na pregação. Desde logo, na
celebração da missa, na fase designada por estação, a qual, como claramente explicou
o mesmo João Francisco Marques, se encontrava dividida em três partes. Na primeira,
deviam efectuar-se preces várias, na segunda avisos e anúncios tidos por necessários,
a terceira «era preenchida pela instrução que os pastores de almas deviam fazer aos
fiéis sobre as verdades e preceitos da religião»86. E muitas Constituições diocesanas
pós-tridentinas determinavam aos párocos para assim procederem87.
O que contrasta com tese defendida por alguma historiografia, segundo a qual a legislação tridentina, no
fundo, pouco teria modificado os privilégios de isenção da autoridade episcopal dos pregadores das ordens
regulares, como sustenta, por exemplo, Roberto RUSCONI, Predicatori e predicazione (secoli IX-XVIII) in
Storia d´Italia. Annali 4 (direcção de Corrado VIVANTI), Torino, Giulio Einaudi, 1981, 1000.
85
Cf. João Francisco MARQUES, O púlpito barroco português e os seus conteúdos doutrinários e sociológicos
– a pregação Seiscentista do Domingo das Verdades in Via Spiritus, 11 (2004), 111.
86
Cf. João Francisco MARQUES, Pregação, art. cit., 394.
87
Ver, por exemplo, Constituiçoes synodaes do bispado do Porto (1585), fl. 55v-57.
84
24
Episcopado e pregação no Portugal Moderno: formas de actuação e de vigilância
Festas religiosas, romarias, visitas pastorais, missões eram outras tantas
ocasiões propícias ao sermão, que assuntos da vida política do Reino também
podiam estimular. A este último respeito é bem conhecida e solidamente estudada
a parenética portuguesa do período filipino e dos primórdios da Restauração88.
Mas os bispos podiam pregar noutras circunstâncias da vida política. Assim o
fez, por exemplo, D. Manuel Afonso Guerra, bispo de Cabo Verde, em Lisboa,
por ocasião da vinda de D. Felipe II a Portugal, em 161989.
Situações extraordinárias no plano religioso também alimentaram este
campo. Na noite de 15 para 16 de Janeiro de 1630 ocorreu em Lisboa um
desacato praticado sobre o Santíssimo Sacramento que se encontrava na Igreja
de Santa Engrácia. Isso desencadeou forte reacção do arcebispo lisboeta,
D. Afonso Furtado de Mendonça. Logo a 18 do mesmo mês, promulgou uma
carta pastoral para condenar o acto e reforçar a adoração e respeito pelo culto da
hóstia consagrada. Nela, depois de verberar os «hereges» que teriam cometido
tão horrendo acto, e de realçar a importância deste culto, estipulou que se
repusesse o Santíssimo na igreja de Santa Engrácia com toda a solenidade, «para
maior confusão dos herejes». Ordenou ainda uma série de actos de desagravo
que deviam principiar por um otaviário na Sé catedral, a 20 de Janeiro, com
missa solene e uma pregação pela manhã, todos os dias até Domingo, dia 27 de
Janeiro. Ou seja, sete dias consecutivos de pregação. No dia 20, após a eucaristia
celebrada na catedral, far-se-ia uma procissão com todo o clero, religiões e
nobreza até Santa Engrácia, onde se iniciaria outro otaviário com missa solene e
pregação diária até Domingo, 3 de Fevereiro, data em que o arcebispo celebraria
em Santa Engrácia missa solene de pontifical. Isto é, mais um ciclo de sete
dias de pregação quotidiana. E desde esse dia em diante encomendava que em
todas as igrejas da cidade se expusesse com toda a «decencia, ornato e pompa» o
Santíssimo Sacramento, concedendo 40 dias de indulgência a todos os fiéis que
participassem nesta procissão, ouvissem as pregações e rezassem nas igrejas com
o Santíssimo exposto, pedindo ao Senhor «a conservação e exaltação da Santa Fé
Catholica e extirpação das heresias»90.
O sermão era acontecimento vulgar, banal, tanto mais sabendo-se que só na
Sé, por ordem dos bispos, eram quase uma rotina. Em Évora, por exemplo, o
Ver João Francisco MARQUES, A parenética portuguesa e a dominação filipina, Porto, Instituto Nacional
de Investigação Científica, 1986 e, do mesmo autor, A parenética portuguesa e a Restauração 1640-68: a
revolta e a mentalidade, Porto, INIC, 1989.
89
O qual foi prontamente dado à estampa: Sermon que Don Manuel Alfonso de Guerra, obispo de Santiago
de Caboverde, predicó al Rey nuestro señor, dia de Santiago, en la ciudad de Lisboa, en el monaterio de los
Santos de las comendadoras de Santiago que fue el primer sermon que su Magestad oyò en esta ciudad y su
entrada, Lisboa, Pedro Craesbeeck, 1619.
90
Cf. Colecção de pastoraes do Patriarcado (Miscelânea), fl. não numerado, pastoral 4 (o exemplar consultado
desta colecção encontra-se em Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, cota: 3-11-4-204).
88
25
José Pedro Paiva
arcebispo D. Alexandre de Bragança (1602-1608) promovia na catedral pregações
todos os domingos, festas e dias santos de guarda. Além disso, durante todo o
ciclo da Quaresma havia pregação todas as Quartas e Sextas-feiras, para o que a
mesa episcopal pagava esmolas e o arcebispo contratava pregadores de diversos
institutos religiosos91. De igual modo, devia haver sermões todos os domingos
nas igrejas paroquiais, tarefa que o bispo de Lamego, D. Frei Luís da Silva (16771685), assumia ser impraticável, por não haver pregadores para todas, pelo que
essa obrigação ficava a cargo dos párocos92.
Se os prelados contribuíam para alimentar a torrente sermonária, não
deixavam de propor os modos como se deviam efectuar as pregações. No fundo,
estas disposições também constituiriam fonte de aprendizagem e inspiração para
os pregadores - tal como os manuais de retórica, os breviários, os Evangelhos, os
textos de padres da Igreja e de santos - nos quais os próprios bispos também se
inspirariam para instruir os pregadores das suas dioceses.
Desde meados do século XVI que alguns antístites se empenharam nesta
tarefa. No arcebispado de Évora, por 1551, o cardeal D. Henrique teria mesmo
pedido a Luís de Granada que elaborasse um homiliário acessível aos párocos
menos cultos, onde se reunisse um conjunto de textos adaptados a serem lidos
aos fiéis nas missas de Domingo93. O dominicano solicitou, numa primeira fase,
ao seu correligionário frei Juan de la Cruz que o elaborasse. Tal deu origem aos
Treynta y dos sermones en los quales se declaran los mandamientos de la Ley, articulos
de fe y sacramientos con otras cosas provechosas (...) (1558). Numa segunda etapa, o
próprio Granada compôs o Compendio de Doctrina christãa (1559), onde incluíu
treze sermões já preparados para as principais festas do ano94.
Por sua vez, em Braga, pela mesma época, e apenas regressado do Concílio de
Trento, o arcebispo D. Frei Bartolomeu dos Mártires, também ele um dominicano,
tomou medidas idênticas, ao preparar e publicar o Cathecismo ou doutrina christã
(1564). No Proémio, explicitou os motivos instigadores desta obra. Invocando
Ver ASV, Congregazioni Concilio, Relationes Dioecesium, vol. 311, fl. 86v (relatório da visita ad limina
de Dezembro de 1605).
Ver Constituiçoes synodaes do Bispado de Lamego, 219.
93
Sigo Maria Idalina Resina RODRIGUES, Fray Luis de Granada y la literatura de espiritualidad en
Portugal (1554-1632), Madrid, Universidad Pontificia de Salamanca, 1988, 794. Anos depois, a partir de
1572, em Milão, também o famoso arcebispo Carlo Borromeo solicitava a Agostino Valier, bispo de Verona,
uma selecção de homilias dominicais que se pudessem publicar e, assim, servir de modelo inspirador ao clero,
e o mesmo arcebispo, no 3º concílio provincial de Milão (1573) ordenou umas Instructiones praedicationes
verbi Dei, que funcionou como pequeno tratado modelar da forma de pregar, medida semelhante à tomada
noutras dioceses italianas por vários prelados como Gian Matteo Giberti (Verona), Marcello Cervini
(Gubbio), ou Gabriele Paleotti (Bolonha). Ainda Borromeo, teria solicitado a Luis de Granada um conjunto
de sermões para o clero, tal como fez D. Henrique, ver Samuele GIOMBI, La predicazione..., art. cit., 71-73.
94
Para uma análise das temáticas e estratégias de argumentação e persuasão utilizadas pelo dominicano nos
sermões ver Maria Idalina Resina RODRIGUES, Frei Luís de Granada. Sermões para o povo português in
Via Spiritus, 11 (2004), sobretudo 34-43.
91
92
26
Episcopado e pregação no Portugal Moderno: formas de actuação e de vigilância
a autoridade de S. Bernardo, recordou que os «pastores de almas» estavam
obrigados a apascentar a grei com três modos de «pasto», a saber, oração, doutrina
e exemplo95. Isto dito, e revelando um profundo conhecimento da diocese que
comandava, lamentou o desconsolo da pregação no seu tempo, constatando como
a maior parte dos párocos eram negligentes, «e se alguns dizem algumas palavras,
sam de maneyra que nam pegam nem fazem fructo, nem edificam as consciencias,
nem acendem faisca algua de devaçam ou de bom proposito nos corações dos
ouvintes, antes tam frios e distrahidos se tornam acabada a missa como entraram
na ygreja». E prosseguiu considerando essa uma das situações mais lastimosas da
Igreja: «Esta he huma das cousas que se muyto deve chorar na Igreja de Deos,
mayormente na igrejas dos montes e logares onde nunca ou muy poucas vezes
ha pregaçam. Os fregueses das quaes nunca ouvem outra palavra de Deos, nunca
ouvem outra doutrina senão a que lhes diz seu cura ao Domingo»96.
Expôs, de seguida, o objectivo destas pregações: «alevantar os sentidos
distraidos», «despertar a memória para as coisas da salvação», «alumiar o
entendimento» e «aquecer a vontade no amor de Deus e de Jesus Cristo». No fundo,
o que os párocos deviam fazer na pregação, a seu juízo, não era discorrer sobre
grandes doutrinas ou conceitos, que nem eles nem os seus ouvintes entenderiam,
«mas huas doutrinas moraes, trazendo-lhe à memoria a paixam de Nosso Senhor
Jesu Christo, exortando-hos ao amor das vertudes e odio dos peccados, a temor
da morte, do juizo, do inferno e a esperança do Paraiso»97. Preceituário que,
como bem viu Jean Delumeau, assentava numa lógica que visava atemorizar as
consciências com a maldição do pecado e a dureza eterna e implacável dos castigos
que Deus cominaria aos pecadores, para depois as aliviar através da doçura do
discurso da salvação e das delícias de uma eternidade beatífica que aguardava
os justos no além98. Mas também linha que se inseria no preceituário de bispos
contemporâneos, como Borromeo e Paleotti, a qual preceituava uma pregação
mais moralística e devocional do que teológica ou polemizante99.
Foi com estes desideratos que Bartolomeu dos Mártires preparou este Catecismo,
o qual era composto por duas partes. Na primeira expunha-se a doutrina que os
párocos deviam ler/ensinar nos dias em que não houvesse sermão preparado na
Cf. Bartolomeu dos Mártires, Cathecismo ou doutrina christã, Braga, Antonio de Mariz, 1564, fl. não
numerado do Proemio.
96
Cf. Bartolomeu dos Mártires, Cathecismo ou doutrina christã, Braga, Antonio de Mariz, 1564, fl. não
numerado do Proemio.
97
Cf. Bartolomeu dos Mártires, Cathecismo ou doutrina christã, Braga, Antonio de Mariz, 1564, fl. não
numerado do Proemio.
98
Ver Jean DELUMEAU, La péché et la peur. La culpabilisation en Occident XIII-XVIII siécle, Paris, Fayard,
1983, sobretudo 369-547 e Jean DELUMEAU, Rassurer et protéger. Le sentiment de securité dans l´Occident
d´autrefois, Paris, Fayard, 1989, sobretudo, 33-398.
99
Ver Samuele GIOMBI, Dinamiche della predicazione cinquecentesca tra forma retorica e normativa religiosa in Cristianesimo nella Storia, XIII/1 (1992), 79-81.
95
27
José Pedro Paiva
segunda parte. Nesta, apresentavam-se 29 sermões já prontos para os curas lerem aos
fiéis nos dias preceituados do Advento, Quaresma, Ramos, Pentecostes, Purificação
de Nossa Senhora, Nascimento de S. João Baptista, etc. São breves práticas, que
durariam cerca de 10 a 15 minutos cada. Apesar de se dizerem «simples», todavia,
elas eram demasiado complexas para o auditório a quem se dirigiam, o qual era,
maioritariamente, composto por analfabetos. Entendo que poucos as perceberiam
integralmente, tanto pela substância, como até pela linguagem. Mas este era um
projecto que estava em clara sintonia com as directivas que neste domínio eram
seguidas em Itália por bispos com os quais o arcebispo bracarense mantinha trocas
epistolares, como eram Carlos Borromeo e Gabriele Palleoti, os quais defendiam
uma pregação simples, inspirada no Evangelho e frequente, a ser praticada pelos
párocos. Estes conheciam os fiéis e os seus vícios e, por isso, podiam instrui-los com
mais proveito do que os pregadores itenerantes das ordens regulares, cujo fruto sobre
a vida dos fiéis estes antístites consideravam ser escasso100.
A obra teve o maior sucesso, bem visível nas sucessivas edições que foram
saindo dos prelos. Algumas Constituições das dioceses, inclusivamente, como as
de Lisboa de 1640, prescreviam que se os párocos não tivessem capacidade para
pregar podiam ler aos fiéis um sermão do Catecismo101.
Mais tarde, durante a primeira metade do século XVIII, alguns bispos
ligados à corrente de renovação conhecida por jacobeia revigoraram o zelo da
pregação102. É certo que nem todos. A análise da vasta produção pastoral
de D. Frei Valério do Sacramento, bispo de Angra (1738-1755), não revela
qualquer particular cuidado com a pregação. Ao invés, muito com a confissão103.
Na linha, aliás, do que já havia sido notado em estudos realizados para Itália104.
Não foi esse o rumo de D. Miguel da Anunciação, bispo de Coimbra (17401779). Este, em longa pastoral de 14 de Outubro de 1741, a primeira por si
divulgada após aceder ao episcopado, insurgiu-se contra as galas retóricas e a favor
de uma pregação inspirada no Evangelho e nos Padres da Igreja, propugnando
que nos sermões dos santos o essencial era pregar as suas virtudes. Por isso
instava todos os pregadores, tanto seculares como regulares, a colocarem Cristo,
100
Ver Roberto RUSCONI, Predicatori e predicazione, art. cit., 1002 e, sobretudo, Paolo PRODI, Il cardinale
Gabriele Paleotti, ed.cit., vol. II, 91-93, onde se encontra carta do arcebispo de Milão para Paleotti na qual
estas directivas são enunciadas com toda a clareza.
101
Ver Constituições Synodaes (...) de Lisboa (1640), 284.
102
Sobre as características da corrente ver António Pereira da SILVA, A questão do sigilismo em Portugal
no século XVIII. História, religião e política nos reinados de D. João V e de D. José I, Braga, Tip. Editorial
Franciscana, 1964, 122-139 e Evergton Sales SOUZA, Jansénisme et réforme de l´Église dans l´empire
portugais 1640 à 1790, Paris, Centre Culturel Calouste Gulbenkian, 2004, 194-201.
103
A colecção das suas pastorais pode consultar-se em Susana Goulart COSTA, Viver e morrer religiosamente.
Ilha de São Miguel Século XVIII, Ponta Delgada, 2003 (tese de doutoramento em História apresentada à
Universidade dos Açores, vol. III (Apêndice documental), 36-99.
104
Ver Michelle MANCINO, Licentia confitendi, sobretudo 60 e 67.
28
Episcopado e pregação no Portugal Moderno: formas de actuação e de vigilância
o Cristo da Paixão, no centro da sua pregação, e a não a comporem «de periodos
artificiosos e affectadas clausulas, que fazendo consonancia aos ouvidos, não
penetrão os corações, mas de razões vivas e eficazes fundadas na Scriptura Sagrada
e autoridades dos Santos Padres, que alumeando os entendimentos e excitando
as vontades para o bem, movem os ouvintes aos gemidos, ao arrependimento
dos peccados, ao odio dos vicios, à pratica e exercicio da virtudes, argoindo
humas vezes, rogando outras, e outras reprehendendo com toda a prudencia
e doutrina conforme o ditame do Apostolo»105. No fundo, um programa bem
semelhante ao que D. frei Bartolomeu dos Mártires propusera, como se viu, ou
que Carlo Borromeu praticara em Milão106. Anos depois, em 13 de Agosto de
1751, em nova pastoral na qual aborda matéria da pregação, exorta a que esta
seja utilizada como instrumento de preparação dos fiéis para a boa recepção dos
sacramentos da confissão e da comunhão107.
Os códigos de pregação, não se duvide, também foram marcados pelas
directivas episcopais, aspecto ao qual não tem sido conferido o devido realce na
produção histórica.
4. Vigiar e castigar pregadores insubmissos
Na mais recente síntese sobre a aplicação da reforma católica em Portugal,
Federico Palomo, ao abordar o tópico da pregação, pertinentemente sublinhou
como, neste domínio, as medidas tomadas pelo episcopado visaram, por um lado,
reforçar os dispositivos de vigilância sobre os pregadores e suas competências, e
por outro (como se tem também demonstrado no presente estudo) assegurar que
nas igrejas paroquiais os párocos pregassem durante as homilias, dotando-os de
instrumentos que os auxiliassem nesta tarefa108.
A vigilância da actuação dos pregadores por parte dos bispos, tal como a
afirmação da importância da sua pregação pessoal, estiveram no centro das
decisões tomadas pelos conciliares tridentinos em matéria de pregação. Os decretos,
de facto, determinaram competir aos prelados inspeccionar se os párocos
Cf. AUC, Livro de pastorais da igreja de Santa Justa (1690-1741), III/D, 1, 3, 5, 238, fl. 37-37v. Para uma
análise mais ampla da pastoral do bispo ver Manuel Augusto RODRIGUES, As preocupações apostólicas
de D. Miguel da Anunciação à luz das suas cartas pastorais, in Separata das Actas do Colóquio “A mulher
na sociedade portuguesa”, Coimbra, [s.n.], 1985 e João E. Pimentel LAVRADOR, Pensamento teológico
de D. Miguel da Anunciação. Bispo de Coimbra (1741-1779) e renovador da diocese, Coimbra, Gráfica de
Coimbra, 1995.
106
Para uma análise mais detalhada do modelo do sermão praticado por Borromeu ver Samuele GIOMBI,
La predicazione..., art. cit., 75-77.
107
Ver João E. Pimentel LAVRADOR, Pensamento teológico, 188-189.
108
Ver Federico PALOMO, A contra-reforma em Portugal, ed. cit., 78. A mesma proposta, um pouco mais
desenvolvida em Federico PALOMO, Fazer dos campos escolas excelentes. Os jesuítas de Évora e as missões do interior em Portugal (1551-1630), Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian; Fundação para a Ciência
e a Tecnologia, 2004, 293-298.
105
29
José Pedro Paiva
pregavam aos domingos e festas solenes aos seus fiéis, prevendo, inclusivamente,
a possibilidade de poderem retirar aos negligentes uma porção do seu benefício
para o dar a outrem que por ele exercitasse esta incumbência109. Estipularam ainda
ser obrigação prelatícia verificar se os ministros da palavra, mesmo os regulares,
«pregam erros» ou até heresias e, fazendo-o, poderiam privá-los de confessar e
proceder contra eles «conforme o direito»110. Na guerra de palavras com o mundo
protestante, os púlpitos eram entendidos como lugar decisivo de comunicação.
Não só para alimentar na vontade e verdadeira fé os fiéis católicos, como para
combater o dissídio e as heresias protestantes. Ainda que isso devesse ser ministério
confiado aos mais aptos e celebrado com a máxima prudência.
Não foram apenas as normas conciliares a pressionar o episcopado. A Coroa,
de igual modo, em especial nos momentos de fractura política, percebeu o relevo
da parenética e reclamou aos bispos apertada vigilância. Em 20 de Abril de
1580, numa época nevrálgica para a questão da sucessão dinástica em Portugal,
a Junta de governadores do Reino escreveu cartas a todos os prelados, pedindolhes que fizessem respeitar as decisões tomadas em cortes, e que prevenissem
gestos imprudentes de apoio a qualquer candidato ao trono, reclamando especial
alerta sobre pregadores111. E muitos tê-lo-ão cumprido. D. Frei Bartolomeu
dos Mártires, a 11 de Maio desse ano, emitiu provisão pela qual proibiu que
os pregadores nos sermões dessem «ocasiões a escandalos», tomando partido
por algum dos candidatos112. Na mesma conjuntura, Cristóvão de Moura, um
dos mais activos representantes de D. Felipe II, informava-o de que pedira ao
arcebispo de Lisboa, D. Jorge de Almeida (1569-1585), para ele repreender um
religioso que dizia dos púlpitos que quem morresse combatendo os castelhanos
tinha destinado o Céu113. E no centro político havia quem percebesse bem o poder
de sedição que podia estar associado à palavra dos pregadores. Em 1637, durante
o ciclo da integração de Portugal na monarquia hispânica, e precisamente numa
altura de grande agitação popular e contestação à governação filipina, o Duque de
Olivares expressava em consulta ao monarca que «os pregadores são os caudilhos
de todas as sedições do mundo»114.
Ver O sacrosanto e ecumenico Concílio de Trento, tomo I, 87.
Cf. O sacrosanto e ecumenico Concílio de Trento, tomo I, 89. Esta matéria da jurisdição dos bispos sobre
os regulares foi plano de acesa disputa em Trento, tendo-se ali confrontado duas linhas. Uma defensora do
reforço dos poderes episcopais e outra que procurava preservar o espaço de autonomia jurisdicional das
ordens religiosas, questão atentamente examinada em Giuseppe ALBERIGO, I vescovi italiani al Concilio di
Trento (1545-1547), Firenze, G. C. Sansoni, 1959, 291-335.
111
Ver João Francisco MARQUES, A parenética portuguesa e a dominação filipina, ed. cit., 46.
112
Cf. João Francisco MARQUES, A parenética portuguesa, ed. cit., 323.
113
Carta de 9 de Maio de 1580, já referida por José Maria de Queirós VELOSO, O interregno dos governadores
e o breve reinado de D. António, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1953, 76.
114
Cito a partir de Fernando NEGREDO DEL CIERRO, Teoria política y discurso eclesiástico. Una
visión desde la pastoral barroca in De Re Publica Hispaniae. Una vindicación de la cultura política en los
109
110
30
Episcopado e pregação no Portugal Moderno: formas de actuação e de vigilância
É certo que teria havido antístites menos escrupulosos, passivos e laxistas na
inspecção da actividade dos pregadores. Em 1580, por exemplo, os cónegos do
cabido de S. Tomé, denunciaram à Inquisição de Lisboa o bispo D. Martinho de
Ulhoa (1578-1592), acusando-o, entre outras graves queixas, que ele concedera
licença de pregar ao seu vigário geral, o qual, no dizer dos capitulares, não «tinha
letras», ignorava o latim e mal sabia ler115.
Mas abundam exemplos de prelados que responderam activamente ao que
deles se reclamava. Apesar da dificuldade da tarefa, quanto mais não fosse pela
amplitude territorial de algumas dioceses.
Em 1543, ainda antes de Trento, portanto, alguns, mais informal e
pontualmente, já o fariam. Em Dezembro desse ano, o arcebispo lisboeta
D. Fernando de Meneses Coutinho e Vasconcelos teve mesmo que explicar ao
rei porque proibira um religioso agostinho, do Convento da Graça de Lisboa, de
pregar na cidade, uma vez que quem lhe encomendara os sermões fora o próprio
monarca. Explicou não ter sido sua intenção afrontar D. João III, quisera apenas
saber o que pregava o tal frade, e porque isso lhe não foi esclarecido, tomara a
decisão de o proibir de pregar116.
D. José de Melo, arcebispo de Évora (1611-1633), prelado muito activo neste
campo, mandou imprimir uma pastoral, datada de 15 de Outubro de 1629,
proibindo todo e qualquer pregador de actuar no arcebispado sem sua licença.
Para se assegurar do seu efectivo cumprimento, determinou que todos os anos
o escrivão da câmara eclesiástica elaborasse um rol das pessoas que possuíam
licença para pregar válida, o que demonstra a existência de mecanismos activos
para vigiar os pregadores e, simultaneamente, a proliferação de casos anómalos
que o prelado desejava evitar117.
No mesmo arcebispado, desta vez um prelado ligado à já referida corrente
da jacobeia, D. Frei Miguel de Távora (1740-1759), promulgou uma pastoral,
em 1 de Abril de 1746, na qual afirmava ter pessoalmente feito «hum rigoroso
e universal exame» de todos os párocos, pregadores e confessores, «a fim de
desterrar dos púlpitos e confessionarios a ignorancia que tão perniciosa he em
os ministros da Igreja»118.
E havia até modos mais rigoristas, como o praticado pelo carmelita descalço
reinos ibéricos en la primera modernidad (direcção de Francisco José ARANDA PEREZ e José Damião
RODRIGUES), Madrid: Silex Ediciones, 2008, 271 (tradução minha).
115
Cito a partir de António BAIÃO, A Inquisição em Portugal e no Brazil. Subsídios para a sua história,
Lisboa, Of. Tip. – Calçada do Cabra, 7, 1906, 238.
116
Ver BPADE, Miscelanea com várias cópias de cartas, cod. CIII/2-26, fl. 205v-206, fólios contendo cópia
da missiva do rei que o repreende e da resposta do prelado.
117
BPADE – Pastorais e provisões de bispos de Évora D. Alexandre (1603-1608) e D. José de Melo (1611-33), códice CIX/2-9, fl. não numerado.
118
Cf. ASV, Archivio della Nunziatura Apostolica in Lisbona, vol. 21 (3), fl. 38.
31
José Pedro Paiva
D. Frei João da Cruz, bispo de Miranda (1750-1756), o qual anulou todas as
licenças de pregar emitidas pelos seus predecessores, exigindo o reexame dos
pregadores por si ou pelos seus ministros119.
As licenças atribuídas aos pregadores na sequência destes exames deviam
ser ciosamente guardadas pelos seus titulares. Não só para fazer prova da sua
legitimidade para pregar nesta ou naquela diocese, como até para demonstrar
excelsas competências. O futuro bispo do Funchal, o franciscano D. Frei José
de Santa Maria de Saldanha (1690-1696), por exemplo, incluiu no seu processo
consistorial, destinado a ser provido como bispo, o registo da autorização de um
superior da sua religião para pregar, e todas as licenças de bispos que o tinham
autorizado a fazê-lo por várias dioceses do Reino120. O que é outro indício
demonstrativo da vigilância episcopal.
E não se duvide que a ostentação destas licenças conferia, objectivamente,
um estatuto de legitimação ao seu titular. Um curandeiro açoriano, procurou
argumentar no Santo Ofício que o seu modo de curar «endemoninhados» não era
proibido, porque, certo dia, o vigário da sua terra o vira actuar e lhe dissera que,
como era confessor e pregador aprovado, podia atestar que nada de errado fazia121.
Como já foi evidenciado para o caso italiano, nem todos os bispos se
empenharam por igual nesta tarefa, mas alguns teriam criado mecanismos para
registar os exames efectuados e as licenças passadas122. Em Viseu, pelo menos
no tempo de D. João Manuel (1609-1625), existia um livro de Registos no
qual, entre outras, eram anotadas as licenças exaradas aos pregadores123. Na
diocese vizinha de Coimbra, o bispo D. João de Melo (1684-1704) forjou na
década de 90 de Seiscentos um sistema para o fazer, que originou um livro
onde se registavam todos os exames efectuados, bem como as licenças emitidas,
contendo registos desde 1693 a 1698. Trata-se de um códice de cerca de 500
fólios, que se presume semelhante a outros, apesar de até ao presente não ter
encontrado mais nenhum (nem em Coimbra, nem noutras dioceses do Reino),
e que se afigura fonte preciosíssima para conhecer como se fazia, de facto, a
vigilância episcopal sobre os pregadores. O termo de abertura nele lavrado é
119
Ver Arquivo Distrital de Bragança, Livro dos capítulos de visita da paróquia de Alvites, Caixa 7, Livro 70,
fl. não numerado com traslado de carta pastoral de 20 de Abril de 1741.
120
Ver ASV, Archivio della Nunziatura Apostolica in Lisbona, vol. 57 (1), fl. 18.
121
Ver IANTT, Inquisição de Lisboa, processo 4782, fl. não numerado da sessão de confissão. O réu era
Amaro Fernandes e foi sentenciado em auto de 1660.
122
Di-lo Michelle MANCINO, Licentia confitendi, sobretudo 19, tese que retoma em Michelle MANCINO,
La Congregazione dei Vescovi e Regolari e le licenze di predicazione nell´Italia post-tridentina. A proposito
di alcuni casi del 1588 in Campania Sacra, 32 (2001) 119-132 (Agradeço a indicação deste estudo a Paola
Nestola).
123
Ver Arquivo Distrital de Viseu, Livro de Registos, nº565/720, por exemplo, fl. 33 (aqui se reporta licença
passada ao padre António Nunes, em 14 de Dezembro de 1618). Muito agradeço ao mestre João Rocha Nunes
a indicação desta fonte, a qual, para esta pesquisa, não foi explorada exaustivamente.
32
Episcopado e pregação no Portugal Moderno: formas de actuação e de vigilância
muito claro a propósito dos seus objectivos: «Neste livro se han-de lansar os
exames dos clerigos que vierem examinar-se para pregadores ou confessores,
com assento da qualidade de seus exames, se fizeram exames com conhecida
sciencia ou sufficientes pera effeito que pertendem, tempo que se lhe concede de
aprovação e não se lhe poderão dar prorogas senão pelo Senhor Bispo Conde e
as que não forem dadas por elle as reserva para a sua Mesa do Despacho, que só
ahi, a vista dos exames lansados neste livro, se vera se se deve conseder proroga
a quem a pedir»124.
Os registos nele exarados encontram-se ordenados em quatro grandes
núcleos, um relativo à cidade e os restantes aos três arcediagados em que se
dividia a diocese (Vouga, Seia e Penela). Em cada uma destas partes havia
uma organização por paróquias. Durante os cerca de cinco anos cobertos, foi
efectuado o impressionante número de 1408 exames, tendo sido atribuídas 658
licenças de confessar, 636 cartas de cura (incluindo licenças para ecónomos ou
párocos encomendados) e 116 de pregar. Ressalta desde logo a enorme diferença
entre o número de confessores e pregadores, os quais, frequentemente, eram a
mesma pessoa. Disparidade natural e expectável, pois a quantidade de confissões
a efectuar - dado o facto de toda a população estar obrigada a confessar-se pelo
menos uma vez por ano - reclamava enorme contingente de confessores.
Os dados apurados demonstram que relativamente às 343 freguesias com
registos, se emitiram 116 licenças, o que representa uma taxa de enquadramento
de um pregador autorizado para cada 2.93 paróquias. Sem dúvida uma
excelente rede de cobertura do território, pois a ela havia ainda que adicionar os
pregadores das congregações religiosas, que não aparecem registados neste livro,
criando a dúvida de saber se estariam dispensados por terem exame feito pelos
superiores das religiões, ou se esse registo se efectuaria num outro códice que
actualmente já não se encontra no espólio preservado. A distribuição geográfica
não era absolutamente uniforme. Por norma, havia apenas um pregador
oriundo de cada freguesia, mas algumas, como Sangalhos ou Pombeiro da Beira
tiveram cinco. Note-se ainda, que nas terras onde havia abundância de casas
de ordens religiosas, como Aveiro, Montemor-o-Velho ou Gouveia, apesar de
serem localidades populosas, tinham muito poucos ou nenhuns pregadores.
No livro anotavam-se todos os exames para pregadores a que se submetiam os
clérigos seculares, incluindo os de vigários, priores ou curas, demonstrando que a
posse de um benefício de cura de almas não significava, automaticamente, licença
para pregar aos fiéis125.
Cf. AUC, Livro que ha-de servir para se lançarem os pregadores e confessores, III/D, 1, 4, 5, 46, fl. 1.
Veja-se, por exemplo, o exame feito em 3 de Novembro de 1694 ao padre António de Seixas Quaresma,
que era vigário de Arrifana de Poiares, a quem se concedeu licença para pregar por tempo indeterminado,
AUC, Livro que ha-de servir para se lançarem os pregadores e confessores, III/D, 1, 4, 5, 46, fl. 263.
124
125
33
José Pedro Paiva
Os exames eram sempre realizados em Coimbra, usualmente com a presença
pessoal do bispo e, na maioria esmagadora das vezes, efectuados pelos «padres de
moral» para o efeito designados pelo prelado. Mais raramente, podiam ministrálos desembargadores do Auditório episcopal ou até padres jesuítas126.
As classificações destas provas, que nem sempre eram registadas, tinham três
níveis: «suficiencia», «bom exame» e «com louvor», existindo proporcionalidade
entre esta escala e o prazo de validade das licenças atribuídas. De facto, não era
vulgar que uma licença fosse dada sem limite temporal, o que denota a tentativa
da parte do prelado de ter sempre os pregadores debaixo de observação, para poder
verificar se mantinham as qualidades requeridas. O período da licença oscilava entre
seis meses, por vezes com condicionantes, até tempo indeterminado. Na freguesia de
Valezim, por exemplo, foi aprovado para pregar o padre Belchior Lopes, mas apenas
por seis meses, «com a condição de que dentro em seis meses venha a exame para
confessar»127. Já o prior de Sazes de Lorvão foi «aprovado para pregar enquanto se lhe
não mandar o contrario e fez bom exame»128. Por isso, neste ciclo de cinco anos, há
casos de indivíduos que foram examinados e aprovados por três vezes, como sucedeu
ao padre João Fernandes, do Ameal, aprovado em 24 de Setembro de 1694 por
seis meses, em 6 de Junho de 1696 por um ano e, finalmente, em 25 de Junho de
1698, por dois anos129. Significa isto, obviamente, que o prelado (pessoalmente ou
por intermédios dos seus ministros) conhecia quem subia aos púlpitos na diocese.
No limite, e esse aspecto deve ser sublinhado, podia reprovar-se. As reprovações
eram raras, mas sucediam, como se comprova pelo seguinte averbamento: «O padre
Christovam de Fernandes de Oliveira, de Oliveira do Bairro veo a exame para
haver de confessar e pregar e em Mesa foi examinado pelos padres de Moral e por
elles foi reprovado. Coimbra, 3 de Novembro de 1694»130. Tal como a licença, a
reprovação não era interdito ilimitado no tempo: «O padre Manuel Simoes Rabasco
da freguesia de Gouvea veo a exame para haver de pregar e na Mesa do Despacho
foi examinado pelos reverendos padres mestres de Moral e por elles foi achado com
menos sufficiencia por hora e que espere por outra occasiam. Coimbra, 28 de Abril
de 1694»131. Cerca de um ano depois, o mesmo clérigo submeteu-se a nova avaliação
e foi aprovado por um ano para pregar, licença que renovou em Abril de 1695, dessa
vez por dois anos.
Este livro permite ainda comprovar como algumas das normas estipuladas em
Constituições das dioceses eram observadas, nomeadamente no tocante a qualidades
34
126
Para o primeiro caso ver, por exemplo, AUC, Livro que ha-de servir para se lançarem os pregadores e
confessores, III/D, 1, 4, 5, 46, fl. 295 e para o segundo fl. 177.
127
Cf. AUC, Livro que ha-de servir para se lançarem os pregadores e confessores, III/D, 1, 4, 5, 46, fl. 311.
128
Cf. AUC, Livro que ha-de servir para se lançarem os pregadores e confessores, III/D, 1, 4, 5, 46, fl. 253.
129
Cf. AUC, Livro que ha-de servir para se lançarem os pregadores e confessores, III/D, 1, 4, 5, 46, fl. 420v.
130
Cf. AUC, Livro que ha-de servir para se lançarem os pregadores e confessores, III/D, 1, 4, 5, 46, fl. 195v.
131
Cf. AUC, Livro que ha-de servir para se lançarem os pregadores e confessores, III/D, 1, 4, 5, 46, fl. 329.
Episcopado e pregação no Portugal Moderno: formas de actuação e de vigilância
que o pregador devia reunir, como por exemplo idade mínima e graduação prévia
numa universidade, como no registo seguinte: «O reverendo Antonio Coelho de
Moura, prior da Igreja de Santa Comba de Cea, veo a exame para haver de pregar;
e por constar nam haver cursado em faculdade nenhuma não foi examinado»132.
Exigiam-se pregadores bem instruídos.
Por fim, note-se que a formação académica dos protagonistas da oratória sacra
tinha implicações nas matérias que poderiam pregar do ambão. No fundo, nem
todos tinham autorização para perorar sobre qualquer assunto. Aos canonistas
estavam vedadas certas prédicas, como se verifica, por exemplo, através deste
interessante registo, no qual se alude, igualmente, ao requisito da idade: «O padre
Manuel Nunes Marques, da freguesia de Galizes, formado em canones, veo a
exame para confessar e pregar, presente Sua Illustrissima, foi examindao pelos
padres mestres de moral e por elles foi aprovado para confessar e pregar por tempo
de anno e meyo, e podera pregar os sermoins que sam premitidos aos canonistas
que sem embargo não tem 40 anos que tambem podera confessar mulheres, vista
sua capacidade. Coimbra, 25 de Novembro de 1693»133.
Não restam quaisquer dúvidas de que entre o episcopado, sobretudo pós
tridentino, se vigiou a pregação e os pregadores. E prevaricando estes, havia formas
de os punir? Isto é, os bispos castigavam, de facto, os insubmissos? A resposta a esta
questão reclamaria uma análise dos processos dos auditórios episcopais. Infelizmente,
esses núcleos documentais perderam-se e não se encontram disponíveis para a maioria
das dioceses portuguesas134. Mais uma vez se procede a partir de raros e poucos indícios.
No dia 14 de Junho de 1764, o padre Manuel Rodrigues Trovão, vigário de
Cadima (diocese de Coimbra), cumprindo missão que lhe estava especialmente
encomendada nas Constituições sinodais e que o vigário geral da diocese lhe
teria recordado, escreveu uma carta para o promotor do Auditório Eclesiástico:
«Nesta minha freguesia de Cadima, no lugar do Zambujal, na segunda Dominga
de Quaresma proxime paçada, forão pregar sem licença o padre Fernando
Mendes, da freguesia de Arazede, de manha, e o padre Manuel Rodrigues de
Figueiredo, de Portunhos, de tarde, aonde ouve concurso de homens e molheres
que sahirão da cappela muitas horas depois da noute; e como são sacerdotes que
Cf. AUC, Livro que ha-de servir para se lançarem os pregadores e confessores, III/D, 1, 4, 5, 46, fl. 368.
Cf. AUC, Livro que ha-de servir para se lançarem os pregadores e confessores, III/D, 1, 4, 5, 46, fl. 393.
134
Em algumas, como na de Coimbra, há exemplares dispersos e ainda não totalmente inventariados no
AUC. Felizmente, em algumas dioceses do Brasil, estes fundos foram bem preservados e permitirão fazer
pesquisas da maior relevância para se perceber a actuação da justiça episcopal no Portugal Moderno.
Actualmente, Pollyana Mendonça, aluna de doutoramento na Universidade Federal Fluminense, prepara
o seu doutoramento com documentação do Auditório Episcopal do Maranhão e Patrícia Ferreira Santos,
doutoranda na Universidade de S. Paulo, aproveita espólio semelhante relativo à diocese de Mariana. O único
estudo disponível que permite sondar a actividade efectiva de um tribunal episcopal é João Rocha NUNES,
Crime e castigo: “Pecados públicos” e disciplinamento social na diocese de Viseu (1684-1689) in Revista de
História da Sociedade e da Cultura, 6 (2006), 177-213.
132
133
35
José Pedro Paiva
pregarão sem licença que me não mostrarão e nem eu fui sabedor deste facto
senão depois de feyto, e nem as suas doutrinas fructuozas aos [ou]vintes, por
não serem sacerdotes de bom exemplo, ponho na lembrança de Vossa Merce
este cazo»135.
Com base nesta denúncia o promotor levou o caso aos desembargadores do
Auditório. Estes, logo no dia seguinte, mandaram notificar os dois acusados para
irem a Coimbra apresentar ao provisor do bispado a sua licença de pregadores,
cominando-lhes um prazo de dez dias, sob pena de serem suspensos. O mesmo
vigário de Cadima que os denunciara foi encarregado desta missão e, em 3 de
Setembro de 1764, procedeu à diligência. Todavia, a 12 de Dezembro de 1764,
os dois padres ainda não tinham aparecido para mostrar as licenças, pelo que
o promotor apresentou nova queixa aos juízes, os quais ordenaram a abertura
de um processo judicial, a 16 de Dezembro, concedendo aos dois réus um
prazo de seis dias para alegarem a sua defesa. O vigário de Cadima de novo os
notificou pessoalmente, em Abril de 1765, mas os réus nunca compareceram
perante os juízes do Auditório Episcopal, apesar de serem notificados outras
vezes sob a ameaça de privação de licença de pregar e suspensão das ordens. Em
consequência, cerca de 4 anos após o início do processo, em Março de 1768,
o promotor pediu aos juízes a condenação dos réus com a pena de suspensão
das ordens clericais que tinham. Não é possível apurar se a pena foi de facto
cumprida pelos dois insubmissos pregadores.
Este não é o único caso conhecido de tentativa da autoridade episcopal
para punir pregadores irreverentes. No ano de 1611, também em Coimbra, o
bispo D. Afonso de Castelo Branco perseguira o frade franciscano observante
Cristóvão Carneiro. O prelado recebera uma queixa dos padres da Companhia
de Jesus, os quais alegavam que este franciscano nas suas prédicas «falava mal»
dos jesuítas, causando escândalo entre os estudantes da cidade, tendo chegado
ao limite de, numa pregação na capela da Universidade, perante os lentes da
Academia, ter deturpado o sentido de alguns passos das Sagradas Escrituras
para melhor ajustar os seus propósitos ao vilipêndio da Companhia. Perante
isto, depois de o vigário geral ter aberto um processo no qual foram ouvidas
várias testemunhas, D. Afonso de Castelo Branco proibiu-o de pregar na
diocese. O franciscano não desarmou. Abalou para Salamanca, ali mandou
imprimir o sermão que proclamara na capela da Universidade, retirando ao
texto as injúrias contra os jesuítas e, acintosamente, dedicou o livro ao prelado
conimbricense. Além disso, reclamou da sentença do bispo de Coimbra para o
Tribunal da Legacia, em Lisboa, e ali lhe foi dada razão. O bispo de Coimbra,
Cf. AUC, Processo contra os padres Fernando Mendes e Manuel Rodrigues de Figueiredo, III/D, 1, 6, 2,
7, doc.15, fl. 1. Todos os dados revelados abaixo se reportam a esta mesma fonte.
135
36
Episcopado e pregação no Portugal Moderno: formas de actuação e de vigilância
agastado, escreveu então uma carta ao seu agente em Roma (através da qual se
conhece este episódio), para que se avisassem alguns cardeais do sucedido, com
o propósito de no centro romano, finalmente, conseguir travar o franciscano
prevaricador136. Mais uma vez, perdura a notícia da dificuldade que os bispos
tinham em se fazer obedecer.
Se o religioso franciscano recorrera ao Tribunal da Legacia Apostólica
para se furtar às punições fulminadas pelo bispo, nos inícios do século XVIII,
correligionários seus do Funchal, para além do recurso ao papa, queixaram-se ao
rei da «perseguição» que lhes movia o bispo D. José de Sousa Castelo Branco
(1698-1722): «Recorre a Vossa Magestade o padre frei Jacinto da Esperança,
costodio provincial da Ordem de S. Francisco da Ilha da Madeira, por si e em
nome dos religiosos da mesma Ordem, da notoria força e violencia com que os
oprime o reverendo bispo da dita Ilha, D. Jozeph de Souza Castel Branco, a qual
consiste que estando os religiosos da dita Ilha de posse por virtude da aprovação do
mesmo reverendo bispo de confessarem e pregarem nos quatro conventos de que
consta a prelatura delle suplicante, sem cauza ou motivo algum, o dito reverendo
bispo os privou de confessar e pregar, querendo fossem outra vez a exame», o
que tivera notórios prejuízos na reputação dos franciscanos e nos proventos que
retiravam desta actividade137. Os franciscanos recorreram para o Papa, mas D. José
de Sousa Castelo Branco não lhes recebeu a apelação, no que violaria o Direito,
pois estaria obrigado a subordinar-se ao recurso apostólico. Na exposição feita
ao monarca, alegavam a seu favor, entre outros aspectos, que tendo o antístite já
examinado todos os frades e dando-lhes licença para confessar e pregar, não podia,
posteriormente, revogar essa autorização sem justa causa, fundada no modo
como eles procederiam na confissão ou pregação. Além disso, não podia, como
fez, suspender todos os frades do Convento da Calheta, em geral, pois não era
crível, sustentavam, que todos fossem criminosos. De igual modo, fazia força aos
religiosos dos outros conventos, ao ter determinado que nos restantes três da Ilha
só um frade pudesse confessar e pregar. Acrescentavam ainda que a única razão
invocada pelo bispo para os suspender fora o facto de eles não terem comparecido
ao exame que lhes pretendera fazer.
Os três episódios invocados abrem uma janela sobre uma paisagem até hoje
praticamente ignorada, permitindo formular algumas hipóteses analíticas. É
incontornável que houve bispos que dispuseram de meios e vontade para punir
os pregadores insubordinados à sua jurisdição em matéria de pregação e, nalguns
casos castigaram-nos. Afigura-se igualmente verosímil que nem sempre foi fácil aos
Ver ASV, Fondo Confalonieri, 39, fl. 442 (carta de 20 de Setembro de 1611 a Giovanbattista Confalonieri).
Cf. IANTT, Manuscrito da Livraria nº 2576, fl. 22. O processo integral, que aqui se reconstitui, prolonga-se até ao fl. 31.
136
137
37
José Pedro Paiva
prelados fazerem-se obedecer. Em terceiro lugar, os punidos tinham à sua disposição
recursos de apelo, para a Santa Sé e para a Coroa, que embaraçavam, de facto, a
aplicação da justiça episcopal. Mas qual foi o padrão dominante? O bispo que
vigiava e castigava os delinquentes? Ou um universo de pregação desgovernado,
onde a autoridade episcopal era habitualmente desrespeitada? Não é possível,
naturalmente, a partir dos dados disponíveis, retirar conclusões seguras sobre os
níveis de conformidade da submissão ao poder dos bispos.
Acresce que para além dos casos reportados, não era uniforme a consciência que
ao tempo tinham a propósito deste assunto os que com ele de mais perto lidavam.
Entre os próprios agentes da justiça eclesiástica havia quem possuísse a noção de que
nada acontecia a quem proferisse palavras mal soantes ou heréticas dos púlpitos.
Nos meados do século XVII, altura em que, como acima se viu, as Constituições
diocesanas se apuraram em matéria de regulação da pregação, o procurador do padre
Manuel de Morais, defendendo-o numa causa corrente no Juízo da Legacia, em
Lisboa, pelo facto de o seu constituinte ter proferido num sermão palavras injuriosas
sobre o Papa, sustentava que, naquele tempo, os pregadores recorrentemente diziam
proposições heréticas e dissonantes «e nem por isso elles padecem alguma afronta
nem são accusados, e so se lhes adverte que dizem mal, e quando muito os senhores
inquisidores mandão chamar ao tal pregador (...) e conhecendo o erro o mandão
para sua Casa sem castigo algum»138. À luz deste argumento a capacidade punitiva
de bispos e inquisidores sobre os agentes da pregação era muito débil.
Sensivelmente pela mesma altura, o jesuíta António Vieira, submetido a
interrogatório inquisitorial, defendia-se do que o acusavam, dizendo que não tinha
por culpa aludir nos seus textos às Trovas Bandarra, célebre sapateiro de Trancoso
que nos meados do século XVI fora condenado pela Inquisição de Lisboa, porque,
dizia, era vulgar «neste Reino todos os pregadores [invocarem as Trovas], à vista
e sem proibição alguma dos prelados eclesiásticos»139. Ora, por aqui, ao invés da
avaliação feita pelo procurador acima referido, pode supor-se que se neste caso da
vigilância sobre a invocação das Trovas do Bandarra havia liberalidade por parte dos
bispos, noutros, eles estariam alertas e activos.
5. Em diálogo com a Inquisição
Alguns dos episódios trazidos à colação realçaram que a vigilância sobre os
pregadores e o sermão implicavam não só os bispos como também o Tribunal
do Santo Ofício. Por um lado, porque se os pregadores proferissem heresias, isso
era um delito que ficava sob a alçada da Inquisição, e os bispos, por norma, não
138
139
38
Cf. ASV, Archivio della Nunziatura Apostolica in Lisbona, vol. 13 (2), fl. 161.
Cf. IANTT, Inquisição de Coimbra, processo 1664, fl. 29v.
Episcopado e pregação no Portugal Moderno: formas de actuação e de vigilância
os julgariam nos seus auditórios140. Por outro lado, porque o facto de para pregar
e confessar num território ser requerida uma autorização episcopal, era matéria
que podia colidir com a actividade inquisitorial, abrindo um campo de potencial
polémica entre bispos e inquisidores141.
Apesar de o assunto nunca ter merecido detida atenção por parte dos
estudiosas da Inquisição, e de esse não ser o objectivo do presente estudo, é
inquestionável que ela também estava alerta142.
Mas a Inquisição respeitava os limites da sua intervenção, reconhecendo as
competências episcopais. Assim se explica a ocorrência a seguir relatada. No ano de
1613 os inquisidores de Lisboa receberam umas denúncias oriundas do Algarve, que
implicavam, entre outros, um rapaz que tinha sido preso pelo bispo, alegadamente
por dizer ter caido ao mar perto da Ilha Terceira, onde permanecera durante três
dias, até que Nossa Senhora realizara um milagre, pegando-lhe por um braço e
recolocando-o numa embarcação. Na sequência disso, o rapazinho, dizendo possuir
licença do bispo de Angra, começou a fazer pregações, durante as quais oferecia
a beijar a doentes e sãos que o escutavam e procuravam o braço pelo qual Nossa
Senhora supostamente o salvara. Regressando ao Reino, continuou no mesmo
procedimento, até ter sido preso pelo bispo de Faro. Pois perante esta história, os
inquisidores deram um parecer que revela na perfeição como respeitavam os limites
da sua jurisdição: «pregar com licença sem ter ordens e fingir-se ser o do milagre e
dar o braço a beijar dizendo que saravão os que lhe tocavão, pertence ao ordinario, e
que se pode responder ao bispo que nestas cousas faça com o preso o que lhe parecer
140
Para uma visão global sobre os sentidos e modalidades de cooperação entre o episcopado e a Inquisição
em Portugal remeto para José Pedro PAIVA, Os bispos e a Inquisição portuguesa (1536-1613) in Lusitania
Sacra, 2º série, XV (2003), 43-76.
141
Em algumas dioceses do Sul de Itália houve intensa colaboração na vigilância dos pregadores das ordens
regulares entre a Congregação Romana do Santo Ofício e alguns bispos, como foi bem explicado em Paola
NESTOLA, Tra centro e periferia: le lettere di Braccio Martelli alla Congregazione del Sant´Ufficio (15581560) in Dino LEVANTE (direcção de), «Colligite fragmenta» Studi in memoria di Mons. Carmine Maci,
Campi Salentina (Lecce), Centro Studi Mons. Carmine Maci, 2007, sobretudo 115-119.
142
Para além de vários processos nos quais se privaram réus da Inquisição de pregar, fizeram-se muitas
diligências para apurar a correcção dos sermões proferidos por alguns pregadores. A este respeito é muito
fértil o recurso à série de Cadernos de Promotor. Ver, a título exemplificativo, o sumário contra um padre de
Oliveira de Azeméis, por ter proferido proposições erróneas e escandalosas num sermão, no ano de 1737,
IANTT, Inquisição de Coimbra, Livro 376, fl. 374-424. Em texto com cerca de uma década, Giovanni Romeo
assinalava que a historiografia sobre a Inquisição nunca se tinha preocupado em analisar a relação entre
esta instituição e a pregação. O panorama não se alterou desde então e o seu texto continua a ser um raro
exemplo, no qual já se propunha, com acerto, que a análise devia incidir sobre as estratégias da Inquisição
para vigiar os eventuais abusos e excessos dos pregadores, o apoio que estes forneceram à actuação do
Tribunal e ainda a utilização dos seus fundos para recriar/reconstruir a história “vivida” da pregação. Escapou
a Romeo a questão das implicações que o vigilância da pregação poderia ter nas relações com outros poderes,
nomeadamente o episcopal, aspecto que aqui, sumariamente, se aflora, sem que isso apouque o excelente e
inovador texto de Giovanni ROMEO, Predicazione e Inquisizione in Italia dal Concilio di Trento alla prima
metá del Seicento in La predizazione in Italia dopo il Concilio di Trento (direcção de Giacomo MARTINA e
Ugo DOVERE), Roma, Edizioni Dehoniane, 1996, 207-242.
39
José Pedro Paiva
porque a Inquisição não toma conhecimento disso»143.
A existência destes dois poderes com jurisdição neste campo gerava dúvidas e
situações ambíguas, como sucedeu com o arcebispo de Lisboa D. Miguel de Castro
(1586-1625). Ele, em 12 de Fevereiro de 1605, escreveu para a Congregação do
Santo Ofício, em Roma, expondo a situação. Na sequência de um perdão geral
concedido pelo papa aos cristãos-novos portugueses, no ano de 1604, entre os
libertos encontrava-se o padre João Nunes, cristão-novo e prior de S. Pedro de Torres
Novas, o qual estava preso há 3 anos na Inquisição. Posto em liberdade, o arcebispo
teve dúvidas se o devia autorizar a exercer o seu ofício de cura de almas, dando
sacramentos e pregando aos fiéis, apesar de todos saberem na sua terra que ele era
cristão-novo e estivera preso na Inquisição. Prudentemente, entretanto, teria pedido
ao prior para ele não exercitar mais o seu ministério, até chegarem informações
de Roma. Mas este recorreu ao inquisidor geral, como executor do perdão geral,
alegando que tinha direito a ir curar as almas, e assim o fez. Em face disso D. Miguel
de Castro decidiu suspendê-lo de poder administrar sacramentos e pregar144.
O facto mais interessante por mim detectado a propósito deste diálogo entre
a Inquisição e o episcopado suscitado por questões relativas à pregação teve por
protagonista o já referido arcebispo de Évora, D. José de Melo. Tudo se iniciou
em 1630 e motivou troca de correspondência entre os inquisidores do Tribunal
da Inquisição de Évora, por um lado, o inquisidor geral, D. Francisco de
Castro, e o secretário do Conselho Geral, por outra parte. A partir destas trocas
epistolares é viável reconstitui-lo145. D. José de Melo, na sequência de problemas
com os jesuítas, deixou de lhes conceder licenças para confessarem e pregarem
na sua arquidiocese. Mas, como era habitual, o Santo Ofício queria servir-se
dos padres do Colégio da Companhia de Jesus de Évora para desempenharem
uma função que, normalmente, lhes era confiada, isto é, confessarem os
penitentes e pregarem doutrina aos reconciliados nos autos da fé146. Ora,
perante a circunstância de não terem licença do arcebispo, os inacianos não
o podiam legitimamente fazer. O inquisidor geral, muito lamentou o facto e
pediu aos inquisidores de Évora que tentassem convencer o arcebispo a dar-lhes
autorização para fazerem este serviço. Isso não deve ter resultado, pelo que os
ministros eborenses do Tribunal da Fé teriam requerido uma intervenção papal,
Cf. Conselho Geral do Santo Ofício, livro 97 (Correspondência da Inquisição de Lisboa e de Évora),
fl. não numerado, carta 1.
144
Ver Conselho Geral do Santo Ofício, livro 426, fl. 272-272v.
145
Ver IANTT, Inquisição de Évora, Livro 37, 5-5v, 69 e 70.
146
Sobre a relação dos jesuítas com a Inquisição ver o imprescindível estudo de Giuseppe MARCOCCI,
Inquisição, jesuítas e cristãos-novos em Portugal no século XVI in Revista de História das Ideias, 25 (2004),
247-326. Ao contrário, é pobre e revela inadmissíveis lacunas e desconhecimento José Eduardo FRANCO
e Célia Cristina da Silva TAVARES – Jesuítas e Inquisição: cumplicidades e confrontações, Rio de Janeiro,
EdUERJ, 2007.
143
40
Episcopado e pregação no Portugal Moderno: formas de actuação e de vigilância
na sequência da qual se teria obtido uma licença especial para os jesuítas serem
examinados, não pelo arcebispo, mas por outros oficiais. D. José de Melo reagiu
energicamente, em carta para os inquisidores, na qual transparece que, apesar de
querer manter boas relações e respeitar o Tribunal da Fé, não estava disposto a
ceder nesta polémica que envolvia os jesuítas: «me he forçado mandar noteficar
ao Doutor Manuel do Valle e ao licenciado Sebastião de Affonseca Homem e
ao licenciado Antonio de Vasconcellos que se não intrometão em examinar aos
padres da Companhia para confessar e pregar e para ordens; e perque tenho
tanto respeito a esse Santo Tribunal e a todos os ministros delle como he resão,
não quis executar o que me he forçado fazer, sem primeiro dar conta a Vossas
Merces nesta Meza, como por esta faço, para que saibão que he a nececidade
tal que me obriga a fazer cousa tão encontrada com o desejo que tenho de tudo
servir e favorecer as cousas do Santo Officio e seus ministros e para que Vossas
Merces, se lhes parecer, signifiquem a estes ministros que considerem o que
fasem e o em que os padres os metem, donde entendo que os não poderão tirar
a paz e salvo»147.
Eis mais um exemplo de como os bispos não estiveram passivos relativamente
à actividade dos pregadores, e como, em simultâneo, a vigilância por eles
exercida exigia um diálogo com a Inquisição, o qual, podia suscitar questões de
nem sempre fácil resolução.
6. Ruídos na comunicação dos pregadores
A regulamentação determinada e a vigilância exercida pelo episcopado sobre
a multidão de pregadores, se introduziu alguma ordem e domínio sobre este
corpo, não impediu excessos e abusos. O mecanismo da emissão das licenças, as
normas sinodais, provisões e pastorais, as eventuais suspensões ou punições de
alguns ministros do púlpito não erradicou diversas formas de prevaricação por
parte pregadores, com a agravante de que, frequentemente, alguns utilizaram
formas de comunicação e abordaram conteúdos que introduziam perniciosos
ruídos na percepção das suas mensagens, distorcendo, objectivamente, a substância
da matéria do sermão.
Uma das consequências destas práticas foi que entre os fiéis houvesse quem
desconfiasse do que se dizia do ambão, que percebesse algumas das estratégias
utilizadas por quem dele perorava, e, consequentemente, não interiorizasse a
mensagem desejada. Não se pode presumir que os ouvintes eram uma espécie
de tábuas rasas, incultos, ignorantes, abúlicos e amorfos, nas quais os pregadores
impregnavam doutrina a seu bel-prazer148. Apesar de um dos maiores vultos da
147
148
Cf. IANTT, Inquisição de Évora, Livro 37, fl. 70.
A noção de que os aldeões estavam disponíveis para aceitar tudo o que lhes era imposto pelos detentores
41
José Pedro Paiva
oratória sacra portuguesa o presumir, pelo menos quando pensou a relação dos
missionários com os índios brasileiros. No sermão do Espírito Santo (1657), antes
da partida para o Amazonas de uma missão de jesuítas, disse-o com impressionante
vigor e beleza literária: «Concedo-vos que esse índio bárbaro e rude seja uma
pedra; vede o que faz em uma pedra a arte. Arranca o estatuário uma pedra dessas
montanhas, tosca, bruta, dura, informe; e depois que desbastou o mais grosso,
toma o maço e o cinzel na mão e começa a formar um homem, primeiro membro
a membro, e depois feição por feição, até à mais miúda. Ondeia-lhe os cabelos,
alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca, avulta-lhe as
faces, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe as mãos, dividelhe os dedos, lança-lhe os vestidos; aqui desprega, ali arruga, acolá recama; e fica
um homem perfeito, e talvez um santo, que se pode pôr no altar»149.
Mas esta não era, com toda a certeza, a realidade dos rústicos do Reino,
a quem os missionários de interior chegaram a classificar como «indios de
cá»150. Disso se podiam dar múltiplos testemunhos. No ano de 1701, Manuel
Pires, lavrador, casado, de 40 anos de idade e morador na freguesia de Parada
(diocese de Viseu), foi acusado numa visita pastoral. A sua culpa era sustentar
publicamente que Cristo não padecera na Paixão tanto como apregoavam
os pregadores dos púlpitos, como ele tantas vezes ouvira. No seu pensar, os
ministros da palavra proferiam esses exageros apenas com a finalidade de «meter
maior terror» a quem os escutava e, assim, melhor os convencer151.
É de admitir que este lavrador já teria presenciado cenas semelhantes à que
um familiar do Santo Ofício, de Manteigas, na Serra da Estrela, denunciou à
Inquisição, no ano de 1612. No seu sugestivo depoimento disse que durante
uma procissão dos Passos, as quais eram comuns em muitos lugares das Beiras,
costumava haver um sermão sobre a Paixão de Cristo. Naquele ano, o pregador
que o dissera naquela localidade serrana fora frei João do Deserto. Este, para
tornar o mais real possível o cenário que pretendia descrever aos seus ouvintes
decidiu dramatizar o acto. Assim, na altura em que, após ter relatado os
sofrimentos que Cristo sofrera para remir os homens pecadores disse as palavras
«Ecce Homo, estava posto sobre o altar que fica a mao direita respondendo a
entrada [da igreja], hum homem todo nu, somente huma toalha cingida sobre
do poder (de qualquer poder) e que vivam sem qualquer sentido estratégico, foi há muito bem desconstruída.
Ver, a este respeito, o magnífico estudo de Giavanni LEVI, L’Eredità immateriale. Carriera di un esorcista
nel Piemonte del Seicento, Torino, Giulio Einaudi, 1985, sobretudo o capítulo 2.
149
Cf. António Vieira, Sermoens, terceira parte, Lisboa, Miguel Deslandes, 1683, 419-420.
150
Federico Palomo demonstrou bem como esta consciência esteve na base do fortíssimo impulso das
chamadas missões de interior na Época Moderna, em particular das jesuíticas, ver Federico PALOMO, Fazer
dos campos escolas excelentes, ed. cit., em especial 429.
151
Cf. IANTT, Inquisição de Coimbra, Livro 694, fl. 240-243 (trata-se de um traslado da visita pastoral da
diocese de Viseu que foi remetido para a Inquisição de Coimbra).
42
Episcopado e pregação no Portugal Moderno: formas de actuação e de vigilância
as partes verendas [sic], e todo entrapalhado com tinta vermelha, as mãos atadas
diante, entre elas huma cana, na cabeça huma coroa de silva, coberto o rosto
com huma cabeleira, hum Cristo representava; ficava coberto com hum lençol
ou pano branco e per duas pontas e duas varas atado estava. Querendo pois
o padre pronunciar Ecce Homo, mamdou que se acendessem duas tochas,
hera hora de meio dia pouco mais ou menos, e sendo acesas as pronunciou,
e abaixando-se a cobertura pareceu aquela solene figura». Pode imaginar-se a
reacção da multidão que escutava o frade, e o familiar que se tem seguido,
narra-a, com idêntica vivacidade à que o pregador quis conferir ao seu Cristo da
Paixão: «ouve muita grita na gente, muito bater de peitos e muitos lhe pedirão
perdão de pecados e tudo o mais que nestes Passos quando se mostra hum
Cristo acontece, e neste tempo fez o padre suas exclamações o que julguei por os
meneios, que a vox não se deixava entender com a grita da gente que era muita
e ficou sobressaltada com o engano do altar»152. Ou seja, este ouvinte, percebeu
bem qual era a estratégia do pregador. Comover até ao limite para depois
transmitir a sua mensagem, deixando-a fortemente impregnada nos espíritos
que o escutavam. Mas também lhe topou o embuste, como alguns outros seus
conterrâneos, pois, como o mesmo diz, o figurante que representou o Cristo da
Paixão durante o sermão «depois hia tangendo na procissão huma bastarda e foi
conhecido por os entretalhos que da tinta nas pernas levava».
Seria esta consciência a causa justificativa para que muitos fiéis faltassem
ao dever de irem escutar os pregadores, como se queixavam missionários
franciscanos de Brancanes em 1741? Contava um deles que no Advento daquele
ano se realizaram em Setúbal mais de 40 sermões, «e me parece que ainda que
se pregaram 400 não bastariam para dobrar estes corações duros, não porque
nao tinha força para isso a palavra de Deos, mas porque a não vão ouvir, pois
constando esta terra de mais de tres mil almas de sacramentos e pregando-se
em todas as freguesias desta, em nenhuma se chegarião a ver 500 pessoas ao
sermão e sem temeridade creio que huma grande parte da gente não ouviu um
só sermão»153.
Tanta norma, tanta regulação, bispos e inquisidores activos e vigilantes,
pregadores em abundância. Em simultâneo, após séculos de aplicação desta
parafernália de supervisão e de dezenas de milhar de sermões pronunciados,
152
Cf. IANTT, Inquisição de Coimbra, Livro 290, fl. não numerado. Estas reacções dos auditórios eram
provocadas pelas estratégias dos pregadores, como por exemplo o jesuíta Inácio Martins, já bem estudado,
ver Federico PALOMO e Marie Lucie COPETE, Des carêmes aprés le carême. Stratégies de conversion et
fonctions politiques de missions interieures en Espagne et au Portugal (1540-1650) in Revue de synthèse, 4e
série, 2-3 (1999), 373.
153
Cf. IANTT, Manuscritos da Livraria nº 852, p. 219 (trata-se de uma Crónica de Brancanes, em dois tomos,
escrita por frei João de Jesus Maria).
43
José Pedro Paiva
ainda havia queixas de que os fiéis nem sequer iam à pregação e que, no geral,
muitos permaneciam ignorantes a respeito da palavra de Deus. Que intrigante
universo era este? Ou porque teriam esta consciência alguns homens da Igreja
nos meados do século XVIII?
José Pedro Paiva
Universidade de Coimbra
Centro de História da Sociedade e da Cultura
Abstract:
This article focuses on a topic to which historiography, national and
international, has not been paying too much attention: the relation between
bishops and preaching. Despite the lack of documental sources available,
we will try to, through the multiple signs at disposal, cast some light on how
Portuguese bishops, during Modern Era, regulated and watched over the
activity of thousands of preachers that used the sermon to spread God’s word.
Furthermore, we will try to check on the performance of some bishops as
preachers, setting the profile of that intervention.
44
Los Avisos para la muerte de
Luis Ramírez de Arellano1
En continuidad con la tradición anterior, la consideración de la muerte sirvió
en el siglo XVII como motivo de meditación sobre la finitud del hombre,
la caducidad de las glorias mundanas y la conveniencia de ajustar la vida a los
preceptos divinos y eclesiásticos para afrontar satisfactoriamente el juicio divino
que tras ella se había de seguir; en definitiva, como acicate para un «bien vivir».
Pero, además, se estimó provechoso que el cristiano – y no solo los sacerdotes
que habían de asistir en los últimos momentos, con sus estrategias para lograr la
óptima disposición del moribundo, sus consideraciones y plegarias, y los demás
ritos establecidos para la ocasión – supiera cómo debía comportarse en trance tan
decisivo, donde se podía jugar la salvación o el castigo para toda la eternidad2.
En este contexto de aprendizaje personal a «bien morir» se sitúan los Avisos para
la muerte, una colección de poemas recopilada por Luis Ramírez (o Remírez) de
Arellano, publicada por primera vez en 1634, aunque quizás compuesta algunos
años antes, y con una historia editorial que, aun con diversa intensidad, abarcó
casi doscientos años3.
La colección propiamente dicha, excluidos dos poemas en preliminares, la
conforman, en la primera edición, treinta composiciones poéticas que representan,
con intención modélica, la oración que un moribundo dirige a Cristo crucificado.
1
Este trabajo responde a las líneas de investigación sobre Poesía del Siglo de Oro desarrolladas al amparo del
Programa Ramón y Cajal, cofinanciado por el Ministerio de Educación y Ciencia. Agradezco, por otra parte,
a Víctor Infantes que guiara mi atención hacia esta colección poética.
2
Francisco Gago Jover (ed.), Arte de bien morir y Breve confesionario, [Palma de Mallorca], Olañeta,
1999; Antonio Rey Hazas (ed.), Artes de bien morir. Ars moriendi de la Edad Media y del Siglo de Oro,
Madrid, Eds. Lengua de Trapo, 2003; Rebeca Sanmartín Bastida, Arte de morir: la puesta en escena
de la muerte en un tratado del siglo XV, Madrid, Iberoamericana / Vervuert, 2006; Víctor Infantes, Las
Danzas de la Muerte. Génesis y desarrollo de un género medieval (siglos XIII-XVII), Salamanca, Universidad
de Salamanca, 1997, 330-331.
3
Avisos para la muerte. Escritos por algunos ingenios de España. A la devoción de Bernardo de Oviedo
Secretario de su Majestad, y de los Descargos de los Señores Reyes de Castilla. Recogidos y publicados
por Don Luis Remírez de Arellano, Madrid, Viuda de Alonso Martín, a costa de Alonso Pérez, 1634. Salvo
indicación contraria, cito por esta edición, modernizando – al igual que en los demás títulos y textos de la
época – grafías y puntación. Para la fecha de composición véase la nota siguiente.
45
Inmaculada Osuna
Si se atiende a lo afirmado por el compilador en la Dedicatoria, los poemas
respondieron a una iniciativa piadosa por parte de Bernardo de Oviedo, según la
cual, los ingenios debían escribir poemas con los que «ensayarse a morir» (h. 8r).
Nos encontramos, pues, no ante una colección facticia en la que el compilador,
según su criterio, tomó de aquí y de allá composiciones con el denominador común
de la preparación para una muerte cristiana, sino ante el registro – quizás selectivo4
– de una programada acción conjunta por parte de varios escritores, siguiendo
mecanismos sociales de producción poética similares a los que por esos años se
estaban desarrollando en justas y academias; más aún, frente a los procedimientos
de abierta convocatoria de las justas, la identidad del promotor y de los ingenios
participantes en la iniciativa parece apuntar a un contexto académico o cuasiacadémico, de participación restringida y convocatoria privada. Ya Edward M.
Wilson, en su estudio del poema de Calderón incluido en el poemario, señalaba
cómo «es curioso encontrar juntos en el tomito tantos versos sobre los Novísimos
escritos por los poetas cortesanos, tantas veces llamados frívolos por la crítica del
siglo XIX, de la primera mitad del reinado de don Felipe el Grande»5. En efecto,
a pesar de las actuales limitaciones biográficas para muchos, el elenco de autores
sugiere un entorno cortesano relativamente reconocible, pese a las notables
diferencias de edad e incluso de orientaciones estéticas.
Buena parte de ellos se ganaron la popularidad literaria a través de los
escenarios. Es el caso del ya anciano Lope de Vega, que moriría un año después de
salir a la luz la colección, o el de Calderón, en plena carrera teatral ascendente en
los años treinta. Pero no son los únicos: por entonces también se habían sumado
José Pellicer de Ossau y Tovar se refiere a su participación en la iniciativa de la siguiente manera:
«Última línea de la Vida, y Avisos para la muerte, en tres romances. Imprimiolos Don Luis Ramírez de
Arellano, el de la feliz memoria, con otros que compusieron varones grandes a este argumento, en el año
propio de 1630, y después se han hecho diversas ediciones» (Biblioteca formada de los libros y obras
públicas de don Josef Pellicer de Ossau y Tovar, Valencia, Jerónimo Vilagrasa, 1671, f. 16r-16v). A su
nombre solamente aparece en el impreso un extenso romance; salvo que los demás figuren con otra autoría,
hay que entender que para el impreso no se seleccionó más que uno. En cuanto al año referido, Antonio
Rodríguez-Moñino, Manual bibliográfico de Cancioneros y Romanceros (siglo XVII) (coord. Arthur
L. F. Askins), vol. III, Madrid, Castalia, 1977, nº 176, considera, en atención a este testimonio, que «no
parece posible dudar de esta edición [de 1630] ». Lo cierto es que por ahora no hay mayor constancia de
la misma: aunque no decisivo, resulta sintomático el hecho de que los preliminares legales más tempranos,
con frecuencia transmitidos a ediciones posteriores que no requerían nuevos trámites, no sean los de esa
supuesta princeps de 1630, sino los que se adecuan perfectamente por fechas a la primera edición conocida
(aprobación de Valdivielso y privilegio en octubre de 1633; erratas y tasa en enero de 1634). Como hipótesis,
cabe interpretar que la fecha de 1630 dada por Pellicer se refiera a cuando «compusieron» los romances y
no cuando «imprimiolos don Luis Ramírez de Arellano», si bien la inmediata conexión temporal con que
continúa el período («y después... ») resulta un tanto forzada en esta interpretación. La datación de los poemas
anterior a 1633 parece confirmada por una recopilación poética manuscrita de Gabriel de Henao (ms. 4095
BNE; Gabriel de Henao, Rimas, ed. de Carmen Riera, Valladolid, Fundación Jorge Guillén, 1997), con
dedicatoria firmada en Madrid a 12 de febrero de 1631, donde se incluye el romance recogido en los Avisos.
5
Edward M. Wilson, Un romance ascético de Calderón: «Agora, Señor, agora...», in Boletín de la Real
Academia Española, LII (1972), 79-105 (la cita, en 80).
4
46
Los Avisos para la muerte de Luis Ramírez de Arellano
o estaban próximos a sumarse al desarrollo urbano y comercial del teatro sacro o
profano Luis Vélez de Guevara, Antonio Mira de Amescua, Francisco de Rojas
Zorrilla o Felipe Godínez. José de Valdivielso estaba destacando en el ámbito del
auto sacramental, aunque su fama se sustentaba asimismo en dos libros poéticos
de tema religioso, uno de orientación lírica, el Romancero espiritual (1607), otro
en la línea del poema épico hagiográfico, la Vida de San José (1612). Antes de
1630, el joven Juan Pérez de Montalbán, fiel discípulo y amigo de Lope de Vega,
había empezado a dar a la imprenta muestras de su polifacética producción, con
una colección de relatos breves (Sucesos y prodigios de amor, 1624) y una novela
hagiográfica (Vida y purgatorio de San Patricio, 1627), aparte de un poema
mitológico, el Orfeo en lengua castellana (1624), cuya auténtica autoría viene
siendo discutida desde su misma publicación, bajo la sospecha de ser, en realidad,
obra de Lope. Gabriel de Bocángel, ya bibliotecario del Cardenal Infante don
Fernando, había publicado una de sus obras, las Rimas y prosas (1627). García de
Salcedo Coronel tenía por entonces impreso un volumen de Rimas (1627) y una
edición y comentario del Polifemo de Góngora (1628). El prolífico José Pellicer
ya se atribuía el cargo de Cronista de Castilla y León, y había publicado algunos
poemas, opúsculos históricos o panegíricos y, también él, un comentario del poeta
cordobés (Lecciones solemnes a las obras de don Luis de Góngora, 1630). Otro poeta
destacado, Juan de Jáuregui, aparece asimismo en los Avisos para la muerte con
sendas composiciones para antes de la Confesión y de la Comunión, si bien su
ubicación en preliminares, y la indicación de que se incluyeron por afinidad con
el tema abordado, hacen suponer que no procedían de la iniciativa que generó la
colección, sino que se añadieron a posteriori6.
Junto a estos, otros autores hoy nos resultan casi desconocidos, entre ellos el
propio colector. Este, aparte de algunos poemas sueltos, dejó tras de sí la reputación
de una extraordinaria memoria; como «el de la gran memoria» lo cita Valdivielso
en la aprobación de los Avisos (h. 6r), y es que, según atestigua Cristóbal Suárez de
Figueroa, era capaz aun de aprender una comedia entera tras haberla presenciado
en solo tres ocasiones7. También otros parecen haber formado parte del mundillo
6
Pueden verse ahora publicadas en Juan de Jáuregui, Poesía, ed. de Juan Matas, Madrid, Cátedra, 1993,
nº 102-103; según información del editor, los poemas aparecen también en el Ms. &.III.33 del Monasterio
de El Escorial, f. 101-104, un manuscrito misceláneo tardío (s. XIX) que también recoge la silva y los dos
sonetos de la colección.
7
Cristóbal Suárez de Figueroa, Plaza universal de todas Ciencias y Artes, Madrid, Luis Sánchez,
1615, f. 237. Aunque este autor lo menciona como natural Villaescusa de Haro, José Antonio Álvarez
y Baena lo recoge en su diccionario de ilustres madrileños; según informa, fue «hijo de Juan Ramírez
de Arellano, Secretario de los Condes de Lemus [...] y de doña Luisa Garibay su esposa. Criose desde niño
en la casa del Cardenal Arzobispo de Toledo D. Bernardo de Sandoval y Roxas, que le estimó mucho, y le
hizo su Secretario y Mayordomo, empleo en que también sirvió al Duque de Lerma D. Francisco Gómez
de Sandoval y al Conde de Aguilar» y «escribió también: Memorial de la Casa de los Señores de Macintos,
apellido Velázquez» (Hijos de Madrid ilustres en santidad, ciencias, armas y artes [1789-1791], ed. facs.,
47
Inmaculada Osuna
literario madrileño de la época. De hecho, bastantes nombres vuelven a aparecer
en otras celebraciones colectivas próximas en el tiempo. Baste recordar dos
colecciones que tienen en común, aparte de algunos de sus participantes, un
contexto cortesano bastante inmediato, con el propio monarca como centro, bien
personalmente, bien a través de la simbología espacial del Palacio Real.
La primera de ellas es el Anfiteatro de Felipe el Grande (Madrid, Juan González,
1631). Remite el libro a las fiestas celebradas en octubre de 1631, en las que
un espectáculo de lucha de fieras culminó con la intervención del propio rey,
quien con un tiro de arcabuz mató al toro vencedor. Entre la propaganda y la
adulación, la acción del rey, hiperbólicamente contemplada en términos heroicos,
se convierte en objeto de un centenar de poemas recogidos en el opúsculo por
José Pellicer8. La extensa nómina de autores, encabezada por la nobleza de título
en las personas del Príncipe de Esquilache, el Marqués de Alcañices, el Conde de
Coruña y el Marqués de Jabalquinto, posiblemente desdibuja las concomitancias
con los más modestos Avisos para la muerte, pero, aparte de otra coincidencia
editorial sobre la que volveré más adelante, no parece irrelevante el hecho de que
dieciséis de los treinta autores que escriben para los Avisos estén presentes aquí9.
También merecen recordarse los Elogios al Palacio Real del Buen Retiro escritos
por algunos ingenios de España (Madrid, Imprenta del Reino, 1635)10, donde se
celebraba el nuevo Palacio, pronto convertido en centro de no pocas diversiones
cortesanas, entre las que no iban a faltar ni las veladas poéticas, como la Academia
burlesca celebrada dos años más tarde, en la que intervienen unos cuantos autores
presentes en los Avisos, ni las representaciones teatrales cortesanas, con Calderón a
la cabeza11. El impreso recoge una treintena de poemas, y entre sus autores, once
Madrid, 1973, vol. III, 411-412).
8
Hay ed. facsímil de Antonio Pérez Gómez, La fonte que mana y corre..., Cieza, 1974. Sobre la mitificación
del monarca en la obra, véase Francisco J. Díez de Revenga, Monarquía y mito en la España del Siglo de
Oro: el Anfiteatro de Felipe el Grande, in El mito en el teatro clásico español (coord. Francisco Ruiz Ramón
y César Oliva), Madrid, Taurus, 1988, 196-202.
9
Son: Alfonso de Batres, Gabriel Bocángel y Unzueta, Pedro de Bolívar y Guevara, Pedro Calderón de la
Barca, Gaspar de la Fuente Vozmediano, Antonio de Huerta, Antonio de León, Antonio Mira de Amescua,
José y Antonio Pellicer, Juan Pérez de Montalbán, Gabriel de Roa, Francisco Rojas Zorrila, José de Valdivielso,
Lope de Vega y Luis Vélez de Guevara.
10
La recopilación fue realizada por Diego de Covarrubias y Leyva. Hay ed. de Antonio Pérez y Gómez,
Valencia, Tipografía Moderna, 1949.
11
La Academia burlesca se conserva manuscrita y fue editada por primera vez por Alfred Morel-Fatio,
Académie burlesque célébrée par les poètes de Madrid au Buen Retiro en 1637, in L’Espagne au XVIe et
au XVIIe siècle, Heilbronn, Henninger Frères, 1878, 603-676); ahora hay también edición de M.ª Teresa
Julio, Madrid, Iberoamericana / Vervuert, 2007. Luis Vélez de Guevara fue el presidente, Alfonso de
Batres, secretario, y Francisco Rojas, fiscal; aparte de estos, vuelven a encontrarse otros autores presentes en
los Avisos: Juan Navarro, Gaspar de la Fuente Vozmediano, Felipe Godínez, Antonio de Medina y Fonseca,
Antonio y José Pellicer, Juan Pérez de Montalbán, Luis Ramírez de Arellano, Gabriel de Roa, Pedro Rosete
Niño y José de Valdivielso. Para la significación del Palacio del Buen Retiro como lugar de esparcimiento del
rey y su corte y como plataforma para la imagen de monarca protector de las artes, véase Jonathan Brown
y John H. Elliott, Un palacio para el rey. El Buen Retiro y la Corte de Felipe IV, ed. revisada y ampliada,
48
Los Avisos para la muerte de Luis Ramírez de Arellano
figuran en los Avisos, entre ellos el mismo Ramírez de Arellano12.
La complejidad del mundo literario madrileño en un momento en que la
Corte se consolidaba como espacio excepcional de producción y mecenazgo
impide reconocer en estas concomitancias de autores una auténtica relación
coherente y estable de grupo. El gran número de ingenios atraídos por estas
posibilidades sociales y literarias y las vicisitudes cambiantes de sus relaciones
personales conforman un entramado aún poco estudiado en su conjunto,
salvo en sus polarizaciones en torno a sonadas polémicas literarias como la
desatada entre los admiradores de Góngora y los «poetas llanos» estéticamente
identificados con Lope. Pero amistades y enemistades no siempre fueron
abiertas y definidas y, en el mismo espacio poético de los Avisos para la muerte,
junto con Lope y amigos suyos próximos, como José de Valdivielso o Pérez de
Montalbán, coinciden destacados comentaristas y defensores gongorinos, como
Pellicer y Salcedo Coronel. Por otra parte, los datos dispersos sobre la llamada
Academia de Madrid tampoco dan pie a hipótesis firmes en torno a su posible
vinculación con los ingenios de los Avisos, si bien varios de ellos (Lope, Pellicer,
posiblemente Vélez de Guevara, Batres, Rojas Zorrilla, Rosete Niño y Antonio
de Huerta), parece que estuvieron en el algún momento relacionados con ella13.
En resumidas cuentas: los autores presentes en la colección, o al menos
una proporción bastante significativa, participaban de un mundo cortesano
con aspiraciones literarias que ya se había concretado en varios casos en una
trayectoria, dilatada o incipiente, de publicación. A diferencia de lo que ocurre
en el Anfiteatro de Felipe el Grande, están ausentes los grandes títulos nobiliarios,
aunque no algunos representantes de una nobleza más modesta, como el
propio compilador, a quien Suárez de Figueroa menciona como «hijo de nobles
padres»14. Además, pueden resultar de interés las sucintas identificaciones que
en algunos casos proporcionan las rúbricas de los poemas en el impreso, con su
función de «carta de presentación» inmediata ante el lector. Significativamente,
la colección aparece encabezada por los autores con un cargo eclesiástico
declarado. En primer lugar, Lope de Vega, en cuyo círculo de amistades se
encuentran varios de los ingenios participantes; sin duda, se trata de una figura
de interés en la colección por su específico peso literario, pero además hay que
Madrid, Taurus, 2003, con particular referencia en 209-213 a las fiestas de 1637, de las que formó parte la
Academia burlesca.
12
Son: Gaspar de la Fuente Vozmediano, Felipe Godínez, Antonio de Medina Fonseca, Antonio Pellicer,
José Pellicer, Juan Pérez de Montalbán, Luis Ramírez de Arellano, Gabriel de Roa, Pedro Rosete Niño, José
de Valdivielso y Luis Vélez de Guevara. Como puede apreciarse, los nombres vuelven a coincidir en gran
medida con los que participan conjuntamente en los Avisos y en otros eventos poéticos como el Anfiteatro de
Felipe el Grande (véase nota nº 8) y la Academia burlesca del Buen Retiro.
13
José Sánchez, Academias literarias del Siglo de Oro español, Madrid, Gredos, 1961, 46-100.
14
Cristóbal Suárez de Figueroa, Plaza universal, ed.. cit., f. 237.
49
Inmaculada Osuna
considerar la particular influencia que pudieron haber ejercido sus Soliloquios,
poco antes vueltos a publicar con adiciones, en la conformación poética de los
Avisos. Aquí Lope aparece caracterizado en la rúbrica por su hábito de San Juan,
distinción de concesión papal que había recibido pocos años antes. Le siguen
fray Diego Niseno, «Provincial de la sagrada Orden de san Basilio el Magno»,
Antonio Mira de Amescua, «Arcediano de la santa Iglesia de Guadix», y José de
Valdivielso, «Capellán de honor del Serenísimo señor Infante Cardenal».
A partir de aquí, y empezando por Juan Pérez de Montalbán, hijo del librero
que durante años fue beneficiario efectivo del privilegio para la publicación del
libro, los autores recogidos solo ocasionalmente son mencionados con algún tipo
de distinción social o profesional – pero ya nunca eclesiástica –, tal vez porque
poco podían aducir, aparte de algún título académico o el tratamiento de «don».
Con todo, aun en esos pocos casos, pueden señalarse algunos cargos que hoy
identificaríamos con la administración del Estado (un relator en el Real Consejo
de Indias, un abogado de los Reales Consejos) y otros de carácter palaciego, bien
en relación directa con el Palacio Real (así, un «criado de Su Majestad»), bien
del entorno del Cardenal Infante (su bibliotecario, su caballerizo); además, el
promotor de la iniciativa, caracterizado por Valdivielso en el prólogo como «un
espíritu desengañado, un cortesano advertido y un filósofo cristiano» (h. 9r), se
crió en el círculo del arzobispo de Toledo don Bernardo Sandoval y Rojas, como
el propio Valdivielso y, según Álvarez y Baena, también el recopilador. Por lo
demás, se sabe que, entre tales ingenios, los hay eclesiásticos (el propio Pérez
de Montalbán, Felipe Godínez o Francisco Quintana, por citar solo algunos
ejemplos distintos de los ya aludidos), pero asimismo seglares, como Calderón,
aún no ordenado, José Pellicer, Gabriel de Henao – mencionado como Caballero
de la Orden de Santiago –, Francisco de Rojas Zorrilla, etc.
Estas consideraciones de índole social, aunque someras e incompletas,
no parecen irrelevantes para ilustrar las connotaciones de socialización que se
ciernen sobre la propuesta espiritual que da cuerpo al argumento del libro. La
poesía religiosa, aparte de su componente devoto – del que no tenemos por qué
prescindir –, también sirve para relacionarse socialmente, para hacerse visible
en un determinado entorno literario e incluso para ubicarse cerca de los focos
del poder. La parcial coincidencia de autores con colecciones poéticas colectivas
relacionadas con circunstancias festivas es un indicio más de cómo los temas
religiosos comparten, sin fisuras ni exclusiones, y a veces indistintamente, los
espacios de la socialización poética que propicia la vida ciudadana barroca, y en
este caso, de manera más concreta, la vida cortesana.
Quizás no sea ocioso volver a recordar los Soliloquios de Lope de Vega.
Inicialmente compuestos en 1612, tras el ingreso de Lope en la Orden Tercera
50
Los Avisos para la muerte de Luis Ramírez de Arellano
de San Francisco, y normalmente interpretados como fruto inmediato de la
crisis espiritual del autor, fueron remodelados para una nueva publicación,
que tuvo lugar en 1626. Así resume Hugo Lezcano Tosca ese cambio de
circunstancias vitales: «En 1626, la situación ha cambiado. Lope ha dejado de
publicar obras religiosas, su vida personal es objeto de críticas y escándalos, y ha
mantenido acaloradas disputas contra los culteranos. Los Soliloquios, dirigidos a
Inés de Zúñiga, se presentan como una obra religiosa con la que Lope pretende
ganarse el favor de la familia Olivares»15. En esta línea, Lezcano Tosca destaca el
contraste entre los paratextos de la versión de 1612, de índole «penitencial», con
el protagonismo de la Orden Tercera, y los de 1626, en los que se manifiestan
las aspiraciones de integración cortesana de Lope, de manera evidente con la
dedicatoria a la esposa del Conde Duque de Olivares, más indirectamente en el
prólogo, a través de temas como la envidia, la maledicencia y la murmuración16.
Más adelante volveré sobre esta dicotomía entre paratextos de significación social
y paratextos devotos a propósito de los cambios en las dedicatorias de los Avisos
para la muerte, pero ahora lo que me interesa extraer de ejemplo tan próximo en
el tiempo, protagonizado por uno de los autores recogidos en los Avisos e incluso
con un tipo de poesía tan afín a la de esta colección, es ese componente social, a
veces incluso vinculado a precisas aspiraciones en la Corte, que puede subyacer
bajo poemas tan aparentemente desligados de afanes mundanos.
Por lo demás, la conjunción de lo individual y lo colectivo que supone
la formulación personal del tema por parte de cada autor y su programada
reincidencia a lo largo de la colección se manifiesta en sintonía evidente con
la piedad contrarreformista, con esa pretendida síntesis de la época entre la
experiencia religiosa interior y una proyección social que, más allá de ritos
nucleares y en esencia colectivos como la eucaristía, multiplica las manifestaciones
públicas a través de fiestas, procesiones, rezos colectivos, etc. Tal síntesis, aquí
de naturaleza literaria, puede traspasarse fácilmente a más concretos niveles
biográficos. Piénsese, por ejemplo, en cómo determinadas congregaciones
religiosas funcionaron de facto en la vida madrileña, no solo como cauce de
aspiraciones espirituales, sino también como espacio propicio para las relaciones
sociales y profesionales. Por ello, tal vez sea pertinente recordar – aunque
limitaciones documentales impidan precisar en qué proporción y, por tanto,
con qué posible incidencia en la espiritualidad reflejada en la colección – que
varios de los autores representados en los Avisos para la muerte pertenecieron a
este tipo de formaciones, abiertas tanto a clérigos como a seglares: así, Lope de
15
Hugo Lezcano Tosca, Los Soliloquios de Lope de Vega: paratexto, género, intertextualidad y edición
crítica, Madrid, Universidad Autónoma de Madrid, 2004, 31.
16
Hugo Lezcano Tosca, Los Soliloquios., ed. cit., 11-49.
51
Inmaculada Osuna
Vega, quien entre 1609 y 1611 pasó a formar parte de las congregaciones de
Esclavos del Santísimo Sacramento del Oratorio de Olivar, del Oratorio del
Caballero de Gracia y de la Orden Tercera de San Francisco17; o Luis Vélez de
Guevara, también en el Oratorio del Olivar18; o Bocángel, secretario en 1633 de
la Esclavitud del Caballero de Gracia19; o Pérez de Montalbán, ese mismo año
«discreto» de la Orden Tercera franciscana20...
Asimismo, la identidad de los autores interesa para un aspecto de cierta
trascendencia con respecto a las prácticas de espiritualidad reflejadas en el libro.
La colección se presenta como registro de un acto devoto que se transmite desde
el peticionario a los poetas participantes, pero también como modelo para un
receptor mucho más amplio a raíz de su divulgación fuera del círculo inicial
mediante la imprenta. Se trata, desde luego, de una propuesta de devoción apta
para laicos, sin afán totalizador, en tanto que bastante delimitada desde el punto
de vista argumental, y sin las connotaciones de otros modelos de meditación
y oración que reflejan hábitos monacales, como la liturgia de las Horas, o que
requieren o al menos aconsejan el apartamiento de los quehaceres cotidianos,
como los propios Ejercicios Espirituales ignacianos, con los que quizás estos
poemas estén parcialmente relacionados21. Pero, además, en la colección los
laicos no solo aparecen como objeto de adiestramiento, sino también como
parte activa y casi en pie de igualdad con los autores que pueden presentar el aval
del ministerio eclesiástico. Frente al tratado sistemático, lo que encontramos es
una serie de poemas, de textos ejemplares, con unas indicaciones de autoría (y,
en paralelo, de autoridad) en las que la distinción entre eclesiásticos y seglares
no está marcada y, en consecuencia, no parece ser decisiva.
Lógicamente, las limitaciones son evidentes. Los preliminares legales,
garantes de ortodoxia, están firmados en la colección original por sendos
Américo Castro y Hugo A. Rennert, Vida de Lope de Vega (1562-1635) [1919], Salamanca, Anaya,
1969, 186, 189 y 192.
18
Juan Pérez de Guzmán, La Esclavonía del Santísimo Sacramento, in La Ilustración española y
americana, 1881, nº XXXI, 107.
19
Trevor J. Dadson, The Genoese in Spain: Gabriel Bocángel y Unzueta (1603-1658). A Biography,
Londres, Tamesis, 1983, 40.
20
Cristóbal Pérez Pastor, Bibliografía madrileña, vol. III, Madrid, Tipografía de la Revista de Archivos,
Bibliotecas y Museos, 1907, 452.
21
«Del cual apartamiento se siguen tres provechos principales, entre otros muchos: el primero es que en
apartarse el hombre de muchos amigos y conoscidos, y asimismo de muchos negocios no bien ordenados, por
servir y alabar a Dios nuestro Señor, no poco meresce delante su divina majestad; el segundo, estando ansí
apartado, no teniendo el entendimiento partido en muchas cosas, mas poniendo todo el cuidado en sola una, es
a saber, en servir a su Criador y aprovechar a su propia ánima, usa de sus potencias naturales más libremente,
para buscar con diligencia lo que tanto desea; el tercero, cuanto más nuestra ánima se halla sola y apartada, se
hace más apta para se acercar y llegar a su Criador y Señor, y cuanto más así se allega, más se dispone para
rescibir gracias y dones de la su divina y suma bondad» (San Ignacio de Loyola, Ejercicios espirituales,
in Obras, ed. de Ignacio Iparraguirre, Cándido de Dalmases y Manuel Ruiz Jurado, Madrid, BAC, 1991
(5ª ed. revisada y corregida), 227 (modernizo grafías).
17
52
Los Avisos para la muerte de Luis Ramírez de Arellano
eclesiásticos, ambos, por cierto, próximos al círculo de Lope: el jesuita Francisco
Macedo y José de Valdivielso, precisamente uno de los poetas que participan
en la iniciativa22. Mucho más significativamente, es el propio Valdivielso, y
no el compilador, el que suscribe el Prólogo, quedando así en manos de un
clérigo – y por añadidura aprobante legal de la obra – la carga doctrinal que este
conlleva a propósito de la dialéctica vida-muerte y la eficacia de vivir teniendo
presente tal final. Quizás tampoco sea ajena a esta moderada ostentación clerical
la ya citada anteposición de las composiciones pertenecientes a autores con
dignidad eclesiástica destacable. Pero nada de ello resta validez al hecho de que
los poemas, entendidos como oraciones modélicas, proceden tanto de clérigos
como de seglares.
En este sentido, parece también significativo el Acto de Contrición en prosa
que cierra el volumen, puesto que, al margen de cuestiones de autoría – que no se
especifican –, el encabezamiento del texto solamente insiste en relacionarlo con
las prácticas devotas de Carlos V. Dice literalmente la rúbrica: Acto de contrición,
con protestación de la Fe, que el Emperador Carlos Quinto nuestro Señor, que esté
en el cielo, hacía delante de un Crucifijo todas las noches, antes de recogerse. Más
adelante volveré sobre las relaciones de concomitancia o complementariedad
del texto con los poemas. Lo que ahora me interesa subrayar es el hecho de que
se recurra para su legitimación religiosa a una figura laica en vez de a alguna
autoridad eclesial, abonada por la ordenación sacerdotal cuando menos, o
por la santidad reconocida por la Iglesia cuando más. Valga el contraste con
la recopilación de oraciones que incluye el jesuita Juan Bautista de Poza en su
Práctica de ayudar a bien morir. En agrupaciones específicas, entre otras, de
actos de contrición, de esperanza, de confesión y profesión de fe o de oraciones
a la hora de la muerte, se recogen piezas diversas, siempre en prosa, algunas sin
indicación de autoría y, por tanto, sin más aval expreso que el del autor del libro
– pero sacerdote éste –, aunque también muchas singularizadas y autorizadas
por santos, por el Sacerdotal Romano, o, si acaso, extraídas o formadas a partir
de pasajes seleccionados de las Escrituras23. En ninguna de ellas, como sí ocurre
Sobre los firmantes de preliminares legales de carácter censor en libros costeados por Alonso Pérez, Anne
Cayuela ha señalado cómo «la elección casi sistemática de unos cuantos individuos deja percibir una
connivencia entre autores y censores y quizás entre censores y editores»; ese es el caso de Valdivielso y su
aprobación de los Avisos (Alonso Pérez de Montalbán. Un librero en el Madrid de los Austrias, Madrid,
Calambur, 2005, 53-54). De hecho, en ellos aparecen otros redactores de aprobaciones para libros del mismo
editor: Juan Pérez de Montalbán, Juan de Jáuregui y Diego Niseno (Anne Cayuela, Alonso Pérez de
Montalbán. Un librero, ed. cit., 53-55).
23
Remito a Práctica de ayudar a bien morir... agora nuevamente añadido [sic] muchos ejemplos de Santos.
Décima impresión, Barcelona, Sebastián de Cormellas, 1647, con una gama más amplia de oraciones que la
edición de Madrid, Andrés de Parra, 1629, f. 61v-110v. El libro tercero de tal edición ampliada (f. 94r-143v)
«Contiene los Actos de Contrición, agradecimiento, resignación y otras virtudes, y las Oraciones de Santos
y Escrituras para la última enfermedad, y pueden servir para la vida»; al igual que en la edición de 1629, el
22
53
Inmaculada Osuna
aquí, la autoridad de la oración se apoya en la vida – por muy modélica que fuera
– de un laico no canonizado. Sin duda, estaría presente en cualquier lector del
momento el valor ejemplar de la institución monárquica, y por consiguiente la
posibilidad de reconocer en un rey un modelo de muerte cristiana, tal como, de
hecho, la sociedad barroca, a través de crónicas, relaciones de honras y túmulos
se encargó de potenciar. En el caso de Carlos V, su abdicación y subsiguiente
retiro en el Monasterio de Yuste hasta su muerte debieron de dotar a la imagen
modélica de unos contornos religiosos incluso más precisos24. Pero, además,
no hay que descartar que la elección de la figura de un rey en los Avisos para la
muerte estuviera en relación con el modelo cortesano que posiblemente animó,
en su origen, a la colección.
Tras la publicación de la obra en Madrid, en 1634, la aceptación fue
inmediata. En palabras de Edward M. Wilson, «la cantidad pasmosa de
reimpresiones de este libro de versos demuestra claramente el éxito, no de una
antología poética, sino de un manual de devoción»25. La minuciosa labor de
catalogación de Antonio Rodríguez-Moñino, con ejemplares a la vista de casi
todas las ediciones hasta hoy localizadas y el acopio de otras noticias de diversas
procedencias, permite reconstruir en buena medida esa historia editorial, cuyo
inicio quizás no deba remontarse más atrás de esa edición madrileña de 163426.
autor señala: «heme contentado con poner algunas pocas oraciones, y esas tomadas de los Santos y Escrituras,
porque tengan mayor autoridad» (94v).
24
Véase, por ejemplo, Javier Varela, La muerte del rey. El ceremonial funerario de la monarquía
española (1500-1885), Madrid, Turner, 1990, 35-39. De hecho, el acto de contrición, con escasas y no muy
significativas variantes desde el punto de vista léxico, estaba ya recogido por fray Prudencio de Sandoval
en el capítulo «Virtud católica y cristiana del Emperador» de su biografía del rey (Historia de la vida y hechos
del Emperador Carlos V, ed. de Carlos Seco Serrano, vol. III (BAE, LXXXII), Madrid, Atlas, 1956, 566).
25
Edward M. Wilson, Un romance ascético de Calderón, art. cit., 80. En contrapartida, la difusión
manuscrita no parece haber sido tan intensa; aunque haría falta un rastreo sistemático para afirmarlo sin
reservas, puede resultar ilustrativo el exiguo balance a partir del Catálogo de manuscritos de la Biblioteca
Nacional con poesía en castellano de los siglos XVI y XVII (coord. Pablo Jauralde, Madrid, Arco /
Libros, 1998-2007), con información de los manuscritos 153 a 12.000 de dicha biblioteca: solo aparecen,
dispersos, los romances de Juan Pérez de Montalbán (mss. 7741 y 11010), Lope de Vega (ms. 10540) y
Gabriel de Henao (ms. 4095 y 3889). Por su parte, el Catálogo de pliegos sueltos poéticos de la Biblioteca
Nacional. Siglo XVII (M.ª Cruz García de Enterría y Julián Martín Abad (dir.), Madrid, Biblioteca
Nacional, 1998), pese a constatar la difusión en tal formato de composiciones semejantes, no incluye ningún
poema de la colección original; del romance de Calderón, según estudia Edward M. Wilson, Un romance
ascético de Calderón, art. cit., existió una versión más extensa que la incluida en los Avisos, inédita hasta el
siglo XVIII, que circuló suelta a partir de 1757. Para los poemas añadidos a la colección primitiva también se
conocen casos de difusión en pliego suelto en el siglo XVII; por ejemplo, el romance de Alonso Chirino
y Bermúdez, Motivos de alcanzar la misericordia divina en el artículo de la muerte, Madrid, Julián de
Paredes, 1649 (aquí acompañado de unas décimas cuya primera estrofa se incluye en una de las ediciones
barcelonesas de 1636 y en la sevillana de 1697), y Granada, Imprenta Real por Baltasar de Bolíbar, 1663,
o el poema de Sor Violante do Céu (véase Isabel Morujão, Incidências de «Esperança Mística» num
Solilóquio de Soror Violante do Céu «Para a Agonia da Morte», in Os «últimos fins» na cultura ibérica dos
sécs. XV a XVIII, Oporto, Instituto de Cultura Portuguesa, 1997, 205-235).
26
La descripción de las distintas ediciones puede encontrarse en Antonio Rodríguez-Moñino, Manual
bibliográfico, ed. cit., vol. III, nº 176-207 (473-542).
54
Los Avisos para la muerte de Luis Ramírez de Arellano
En ella figuraba ya el privilegio por diez años concedido al compilador, Luis
Ramírez de Arellano, y a lo largo de ese período, las ediciones realizadas en
Madrid, todas ellas respetuosas con la composición original del volumen,
estuvieron financiadas por Alonso Pérez, librero de gran olfato comercial, que
sustentó numerosos impresos de Lope de Vega y su círculo, aparte de los de su
propio hijo, Juan Pérez de Montalbán27.
En esa edición de 1634, el cuadernillo de preliminares incluye, primero,
una cita de Séneca en el vuelto de la portada; a continuación una tabla del
contenido, ejemplo de la preocupación editorial por la claridad que Anne
Cayuela ha destacado en este librero28, y también muestra de su sentido
comercial, pues enseguida deja a golpe de vista la impresionante nómina de esos
ingenios que, genéricamente, ya publicitaba la portada; después, se encuentran
los preliminares legales, entre ellos las aprobaciones mencionadas; les sigue la
dedicatoria del compilador al promotor de la iniciativa29, y luego el prólogo
de José de Valdivielso; por último, cierran los preliminares dos poemas de Juan
de Jáuregui con el siguiente encabezamiento: Dos oraciones muy devotas para
antes de la Confesión y sagrada Comunión, escritas a imitación de otras de san
Buenaventura. Por su parte, la colección poética propiamente dicha está formada
mayoritariamente por romances, veintisiete en total (dos de ellos heptasilábicos,
es decir, endechas), y entre estos, sin agrupación discriminada, solo una silva y
dos sonetos se salen de la tendencia general. El libro lo cierra el Acto de contrición
en prosa ya citado.
Así pues, aparte de obligaciones legales y convenciones proemiales de
dedicatoria y prólogo, el contenido específicamente religioso aparece conformado
por un núcleo central de composiciones de notable uniformidad métrica y
sintomática identidad temática (el encabezamiento del primer poema puede
valer por todos: «Hablando con un Cristo en las agonías de la muerte») y dos
elementos complementarios, antepuesto uno, pospuesto el otro. Los poemas para
antes de la confesión y de la comunión introducen un componente sacramental,
sin duda apoyado en su común protagonismo en el ritual de la agonía junto con el
específico de la unción de enfermos, pero además, por su sentido de purificación
previa, comparten estos con los poemas de la colección el carácter penitencial;
en cierto modo, aportan un matiz eclesial que compensa la relativa autonomía
con que, en los poemas, el alma del moribundo accede al perdón por medio de
Sobre esta figura esencial en el activo panorama literario y editorial del momento en la Corte puede verse
ahora el libro de Anne Cayuela citado en nota nº 21.
28
Anne Cayuela, Alonso Pérez de Montalbán. Un librero, ed. cit., 46.
29
«Estos desengaños de nuestra mortalidad y avisos de lo que somos, que a la devoción de v.m. han escrito
ingenios tan dignos de laureles inmortales, he querido que tengan por su protector en la estampa al mismo que
alcanzaron por dueño en el asunto» (h. 7v-8r).
27
55
Inmaculada Osuna
la contrición y a Cristo mismo a través de la contemplación o de la inminente
muerte; con ellos, además, se potencia la faceta de devoción frecuente, y no
exclusiva para el momento de la agonía, que en definitiva propone la colección.
Por su parte, el Acto de contrición con protestación de la fe entra en relación de
afinidad y complementariedad con los poemas de la colección por varios
motivos: por una parte, coincide con estos en su relación con el ritual de la
muerte, en el carácter penitencial y, en este caso concreto, en una precisión
que el encabezamiento se preocupa de detallar, la de la oración expresamente
realizada delante de la imagen de un crucifijo; por otra parte, la protestación
de la fe cubre de manera específica una de las virtudes teologales en las que el
moribundo debía perseverar, en cierto modo más desatendida que la esperanza y
la caridad en los poemas, al menos en su formulación más directa y desarrollada.
En 1644, apenas expirado el privilegio de diez años, volvió a editarse
en Madrid la colección, con licencia a favor de Luis Ramírez de Arellano,
igualmente a costa de Alonso Pérez, y por Francisco García, Impresor del
Reino30. Con todo, volvió a solicitarse otro privilegio a beneficio de Alonso
Pérez, esta vez por cuatro años, según consta en otra nueva edición madrileña,
que salió a la luz ya en 1648. Poco antes había muerto el librero, y quedaban
aún en sus almacenes 1.600 ejemplares de la colección31. En esta edición de
1648, el apego a la composición original del libro seguía siendo notable, pero no
absoluto. Al menos en el ejemplar consultado, no aparece el Acto de contrición,
aunque sí figura en la tabla32. Además, la antigua dedicatoria fue cambiada por
otra, tal vez por defunción de los implicados: ahora esta venía firmada por el
impresor y estaba dirigida al licenciado Antonio de León – León Pinelo, el
conocido autor de los manuscritos Anales de Madrid y de numerosas obras de
tema americanista –, persona que cumplía aún dos de las características del
primitivo dedicatario: su vinculación con la iniciativa (en este caso como poeta
participante) y el desempeño de un cargo en la administración (el de relator del
Real Consejo de Indias).
El privilegio atañía solo al reino de Castilla, y fuera de él la colección no
tardó en iniciar su andadura editorial, desde las prensas de Valencia (1634),
Es la única edición actualmente localizada que Rodríguez-Moñino no reseña. Posteriormente la documenta,
entre otros, Justa Moreno Garbayo, La imprenta en Madrid (1626-1650), Madrid, Arco/Libros, 1999,
nº 2702. Entre los preliminares, solo varían los de carácter estrictamente administrativo: la nueva suma de
la tasa se fecha en Madrid, 29 de octubre de 1644, y procede del oficio de Agustín de Arteaga; la licencia
aparece firmada por el mismo a 24 de octubre, la fe de erratas, por Francisco Murcia de la Llana, un día antes.
31
Anne Cayuela, Alonso Pérez de Montalbán. Un librero, ed. cit., 303. Posiblemente por ser la última
edición madrileña en vida del librero, los atribuye la autora a la de Francisco García, 1644 (ed. cit., 225-226).
32
Se trata del BNE 7/108641. Según la tabla, el Acto de contrición debía figurar en el f. 126v; ahí acaba, en
efecto, el último poema, pero no se aprovecha el espacio en blanco para comenzar el texto, ni tampoco hay
reclamo que haga suponer que comenzara – aun así, en contra de lo indicado en la tabla – en el folio siguiente.
30
56
Los Avisos para la muerte de Luis Ramírez de Arellano
Barcelona (1636, 1637) y, sobre todo, Zaragoza (1637, 1640, 1648, 1657,
1665)33. A partir de la década de los cincuenta, expirados ya los privilegios,
se sumaron Sevilla, donde la colección se imprimió en varias ocasiones (1652,
1660, 1697)34, y también, con menor vigor, Lisboa (1659) y Alcalá (1671). En
realidad, solo a partir de 1660 las ediciones empezaron a espaciarse, hasta casi
desaparecer en las tres últimas décadas del XVII; en el XVIII no hubo más que
dos (1772 y 1777), y por último, una en 1832.
Tal proliferación con frecuencia trajo cambios. Entre los más anecdóticos
está la desaparición de la cita de Séneca en la segunda mitad del siglo, salvo en
las ediciones zaragozanas y alguna recuperación ya del siglo XVIII, sin duda
condicionada por la edición de la que copiaba. En realidad, aunque todas
las anteriores a 1652 parecen haberla interpretado como parte integrante de
la colección, pudo ser una «marca» relativamente externa a esta. La inercia de
la copia de ediciones anteriores y la aureola moral de Séneca posiblemente se
aunaron para su repetida inclusión. Pero el hecho es que el texto no sugiere
conexión particular con el contenido del libro: «Non est quod mireris animum
meum: adhuc de alieno liberalis sum. Quare autem alienum dixi? Quidquid
bene dictum est ab ullo, meum est»35. Con todo, su análoga presencia en el
Anfiteatro de Felipe el Grande convierte hoy en día a esa cita en sugerente muestra
de la proximidad de ambos impresos, bien a través del entorno de producción o
compilación de los poemas, bien por los cauces estrictamente editoriales.
Por otra parte, la expiración del privilegio hizo que las ediciones se
multiplicaran, llegando a salir incluso varias en un mismo año en Madrid a
cargo de distintos impresores y libreros. Esto, aunado a la necesaria renovación
con el paso del tiempo, se tradujo en una diversificación de las dedicatorias.
La tendencia inicial de elegir destinatarios de relevancia profesional quedó
modificada primero con la elección de un miembro de la nobleza, el Marqués
del Fresno, ya en la edición sevillana de 1652 y también en una de las de Madrid
165936. Con ello se debilitaba la conexión intrínseca entre el contenido del libro
Para más detalles, véase el Apéndice.
Antonio Rodríguez-Moñino (Manual bibliográfico, ed. cit., nº 187) supone una edición sevillana
de 1648, basándose en la muy anterior datación de la licencia otorgada a Nicolás Rodríguez que figura en
su edición de Sevilla, 1660; tal licencia está fechada en Madrid a 16 de octubre de 1647, y además, la suma
de la tasa y la fe de erratas lo están también en Madrid, a 27 y 24 de marzo de 1648 respectivamente. Con
todo, la hipótesis deja algunos interrogantes: en la edición sevillana de 1652, del mismo impresor, la suma
de la licencia y la de la tasa están sin fecha, pero la de la fe de erratas es de 24 de mayo de 1652; resulta,
pues, extraño, que la de 1660 retome la de 1648, y no la de esta posterior; además, las fechas indicadas en los
preliminares legales de 1660 coinciden sospechosamente con los de la edición de Madrid, Julián de Paredes,
1648, que concedía privilegio (no licencia, como en la edición sevillana) a Alonso Pérez de Montalbán.
35
«No tienes por qué admirar mi generosidad; me muestro hasta ahora liberal con el patrimonio ajeno. Mas,
¿por qué lo califiqué de ajeno? Todo cuanto está bien dicho por alguien, me pertenece» (trad. de Ismael Roca
Meliá, Madrid, Gredos, 1986, 162).
36
La edición sevillana parece resentirse de alguna anomalía al respecto: el dedicatario aparece en la portada,
33
34
57
Inmaculada Osuna
y la identidad del dedicatario. Así, la dedicatoria de dicha edición madrileña,
firmada por su impresor, Andrés García de la Iglesia, apenas si echa mano sino
de varios tópicos sobre la costumbre, entre quienes imprimen – y nótese el
género que, como al desgaire, se menciona – «algún tratado», «de consagrarle
a la sombra de algún Príncipe» (h. 3r). El razonamiento deriva en el elogio del
marqués como modelo de conjunción de nobleza heredada y virtud adquirida,
y la única referencia específica al libro consiste en argumentar – con total
convencionalismo y contra toda evidencia, a tenor de las múltiples ediciones –
la necesidad de «protección» que requiere su materia: «Tan mal recibidos juzgo
los avisos de la muerte, en el olvido de los mortales, que solamente la sombra
del Mecenas que elijo puede suavizar tanta amargura, con que por este camino
aseguran estos avisos grata audiencia en los oídos más olvidados de materia de
tanta importancia» (h. 3v).
Por los mismos años se pasó de los dedicatarios de relevancia social a otros
de significación religiosa, como San Juan de Dios o la Virgen María; y como
ligera variación, en la edición de Madrid 1672, el General de la Orden de
San Juan de Dios. Los derroteros devocionales de la colección acabaron, así,
imponiéndose también en este espacio, aunque con elecciones particulares que
parecen independientes del preciso tema del libro, pues solo la última, la de
1672, apela a la relación entre este y la vocación hospitalaria – y por tanto
cercana a la enfermedad y la muerte – de la Orden de San Juan de Dios.
Aparte de la supresión del Acto de contrición, ocasional a veces, pero sistemática
en las ediciones zaragozanas, o la introducción de algún otro texto, como la
Meditación muy provechosa, sintetizada en breves sentencias, con articulación
conceptual clara y estructuras paralelas mnemotécnicas de peculiar disposición
gráfica, el otro gran grupo de modificaciones se produjo en torno al corpus
poético de la colección. Ya ocurrió en las tempranas ediciones barcelonesas de
1636 y 1637, con la adición de uno o dos poemas, entre ellos un romance en
catalán, signo de interés comercial por adaptar el producto, aunque fuera de
manera tan reducida, a un público distinto.
A partir de 1652 el volumen de adiciones tendió a aumentar ligeramente.
En todo caso, esta ampliación no resultó demasiado dispar en las diferentes
ediciones. Varias, entre ellas todas las madrileñas conocidas desde 1652 a 1672,
añadieron un bloque invariable de cinco romances y un poema en décimas; en
la última de ellas se incluían, como novedad, tres poemas más de un religioso
pero no hay texto de dedicatoria en el libro, al menos en los dos ejemplares consultados, RAE RM 4803 y
BNE R/2846 (este último sin los preliminares completos). En la edición de Madrid, Andrés García de la
Iglesia, 1659, sí aparece el texto de la dedicatoria firmado por el impresor. Quizás de nuevo haya que pensar
en alguna edición desconocida, posiblemente madrileña (pero a diferencia de las de 1652 de la Imprenta
Real y de Julián de Paredes, con dedicatoria al Marqués del Fresno), a la que copiaría la sevillana de 1652.
58
Los Avisos para la muerte de Luis Ramírez de Arellano
de la orden de San Juan de Dios. La edición de Lisboa 1659 no se sumó a estas
adiciones, pero aportó otras que supusieron una tímida aceptación de ingenios
propios (de hecho algunos poemas están en portugués), de manera análoga a lo
que había sucedido en la edición barcelonesa de 1637; además, mostraba otra
adición que no se sabe si remonta a alguna edición española perdida: la inclusión
en preliminares de cuatro Soliloquios de Lope de Vega. Por su parte, la inclusión
de un poema de la Condesa de Paredes, junto con otros presentes en la edición
lisboeta, en la tardía edición de 1832 sugiere la hipótesis de alguna impresión
desconocida del siglo XVII que ya lo recogiera, quizás esa «octava edición» del
libro salida en 1659, hoy desconocida, a la que remite la nota del editor.
Con todo, las adiciones no fueron tan amplias como para desdibujar por
completo la recopilación original, e incluso en algún caso los poemas añadidos
al cuerpo de la colección aparecieron precedidos de la explícita marca «Fin de
los Avisos»37. Tampoco parece que se hicieran premeditadas «mutilaciones» en el
corpus poético original. En la edición sevillana de 1697 se suprimieron los dos
sonetos, pero quizás haya que atribuirlo a inconvenientes materiales, ya que el
reducido formato de algunas ediciones en doceavo o dieciseisavo, entre ellas esta,
obligaban a un cambio de tipos o a desastrosas composiciones tipográficas para
los poemas endecasilábicos. Así pues, la colección mantuvo cierta estabilidad
a pesar de su dilatada vida editorial, como si hubiera adquirido una identidad
propia que las ocasionales ampliaciones, a modo de adaptación a nuevas épocas
y nuevas geografías, no llegaron a anular.
Esta pervivencia, frente a tantos otros volúmenes colectivos de poesía
religiosa – piénsese por ejemplo en las numerosísimas justas poéticas de tema
religioso nunca reimpresas en la época –, dice mucho de la superación de su
originario carácter circunstancial para convertirse en un verdadero libro para la
oración. Los poemas allí reunidos no solo tuvieron el acierto de no transparentar
el acontecer concreto que les dio origen, solo desvelado en una dedicatoria y
prólogo a veces omitidos, sino que además mostraron tal indefinición en las
vicisitudes del yo poético moribundo reflejado que no debió de ser difícil que
devotos o directores espirituales vieran en ellos un instrumento provechoso.
Ya la dedicatoria de Luis Ramírez de Arellano permite deducir lo que
podríamos considerar como «instrucciones de uso». Cuando este elogia la actitud
37
Así sucede al menos en una de las dos ediciones de Barcelona, 1636 (Antonio Rodríguez-Moñino,
Manual bibliográfico, ed. cit., nº 181), antes del Consuelo del alma contrita, y en la de Sevilla, 1697, antes
del romance de Alonso Chirino (su licencia remite, sin concretar año, justo a una edición barcelonesa;
casi todos los textos añadidos al volumen original se hallan en la otra edición barcelonesa de 1636, que no
he podido consultar, pero su distribución es distinta y, según la descripción de Rodríguez-Moñino
(Manual bibliográfico, ed. cit., nº 182), no incluye el romance a la Virgen de la edición sevillana). En la
edición valenciana de 1772 la indicación de «Fin de los avisos» se sitúa detrás de los poemas añadidos, para
separarlos de los poemas de Jáuregui, emplazados al final.
59
Inmaculada Osuna
de quien propuso la composición de estos poemas y desvela el razonamiento que
le guió en tal iniciativa, está de paso proyectando sobre los lectores una adecuada
metodología de recepción que, desde luego, supera la mera lectura. En tales
términos lo expresa:
«y en ellos [en los poemas, calificados como “desengaños de nuestra
mortalidad”] pretendo yo que el mundo vea lo que cuida v.m. de aquella
postrera agonía, pues porque sea más fácil entonces, la va disponiendo (no
digo templando) en la dulzura de las Musas, para que acostumbrado el labio
a repetir estas ternuras, en aquella hora tremenda, acompañado del corazón,
no extrañe la carne la conformidad ni el golpe.»
(h. 8r-8v)
El sentido de adiestramiento y reiteración también reaparece en algunos
momentos del prólogo de Valdivielso a propósito de la conveniencia de una
asidua meditatio mortis, de fomentar «la conversación con la muerte, que es más
espantable cuando viene toda junta» (h. 12r), sobre la base de que, «supuesto
que no se puede vivir dos veces, es gran acuerdo, pues se puede morir muchas,
hacerlo para acertar una, meditando sus males y su bienes» (h. 12r). Hacia el
final del prólogo, otro pasaje retoma esa idea de «ensayo» reiterado:
«Esta dotrina importante tanto, ejecuta y enseña este bien quisto talento
[i. e.: el dedicatario], pautando en la vida las líneas para la última della [...],
y ensayando el papel de mortal [...], tantas veces, que no le deje de acertar en
el teatro del lecho, amparado del favor divino, que es quien le ha inspirado
estas acertadas piedades y estos cristianos aciertos.» (h. 13r-13v)
Sin que pueda hablarse de un «fetichismo» de la palabra exacta – de hecho
superado por la propia variación de formulaciones que supone cada poema –, y
con el reconocimiento de la complementariedad entre oración vocal y oración
mental que desliza la mención de «labio» y «corazón» en el pasaje de Ramírez
de Arellano, no pasa desapercibida la íntima relación que se establece en ambos
pasajes entre palabras fijadas en la memoria y una buena muerte. A ello se
suma la alusión a formas literarias, ya sea en términos reales o metafóricos: en
la dedicatoria, con la pragmática función de «la dulzura de las Musas», que de
alguna manera ajusta al contexto el dulce et utile tan manido en la justificación
de la poesía, y en el prólogo, con los tópicos de la vida como libro o como
representación. Incluso en este último caso, en el que las referencias son
alegóricas, hay una precisa remisión a las composiciones – Pellicer se refiere a las
escritas por él justo como «Última línea de la Vida, y Avisos para la muerte, en
60
Los Avisos para la muerte de Luis Ramírez de Arellano
Tres Romances» –, concebidas estas como las últimas palabras – a su vez, actos:
de contrición, de esperanza, de amor a Dios – que han de concluir ese libro de
la vida personal o que, tras su constante ensayo, deben brotar, como propias, en
el lecho de muerte, teatro último de la representación de la vida.
La propuesta espiritual que suponen esos poemas resulta bastante definida
y homogénea. También en ello la reiteración, lejos de considerarse perniciosa,
parece un valor añadido, posiblemente paralelo al de la repetida lectura y casi
memorización. Lógicamente, puede advertirse variación de matices, pero hay
una básica coincidencia situacional, de inspiración netamente cristocéntrica: un
yo moribundo se dirige en estilo directo a Cristo crucificado.
En casi todos los poemas afloran referencias explícitas o suficientemente
reconocibles a propósito del momento de la agonía. No hay, pues, una
ambigüedad situacional que permita leer esos versos como oración
intercambiable a otros contextos meditativos o penitenciales; por supuesto, ello
no impide su utilización como devoción habitual: simplemente hace imposible
leerlos al margen de la consideración, individual, no abstracta, de la muerte.
Abundan, a tal fin, las fórmulas que acentúan la precisa temporalidad, a veces
desde el primer verso, perfilando la situación comunicativa de partida: ahora,
antes de que el «yo» pierda el don de la palabra – la palabra externa, por el
entorpecimiento de la lengua, o la interna, por pérdida de la conciencia –, es el
momento de dirigirse a Dios.
Esa precisión temporal se combina en bastantes casos con alusiones a los
síntomas físicos y anímicos con que se manifiesta la agonía. En unos poemas
donde, como se verá más adelante, las notas patéticas de la Pasión de Cristo están
relativamente atenuadas, no deja de contrastar la atención que algunos poetas
dedican al deterioro físico personal, sin duda en conexión con las meditaciones
propuestas en algunos tratados de oración, como se ve, por ejemplo, en fray
Luis de Granada:
«Mira también aquellos postreros accidentes de la enfermedad, que son como
mensajeros de la muerte, cuán espantosos son y cuán para temer. Levántase el
pecho, enronquécese la voz, muérense los pies, hiélanse las rodillas, afílanse las
narices, húndense los ojos, párase el rostro difunto, y la lengua no acierta ya
a hacer su oficio, y finalmente, con la prisa del ánima que se parte, turbados
todos los sentidos, pierden su valor y su virtud. Mas, sobre todo, el ánima es la
que allí padece mayores trabajos, porque está batallando y agonizando, parte
por la salida, y parte por el temor de la cuenta que se le apareja. Porque ella
naturalmente rehúsa la salida, y ama la estada, y teme la cuenta.»38
38
Fray Luis de Granada, Tratado de la oración y meditación, ed. de Cristóbal Cuevas, ed. cit., 733.
61
Inmaculada Osuna
En tal línea de minucioso detalle puede destacarse el largo período inicial
del romance de José Pellicer, que durante unos ciento veinte versos aborda la
descripción de los síntomas físicos de la agonía y aun se extiende a los efectos
anímicos y el escenario que rodea a esta. Valgan de ejemplo solo algunos versos:
«Antes, Señor, que la muerte
con el sangriento cuchillo
violentamente desate
el vital estambre mío;
antes que a su airado soplo,
que ya contemplo vecino,
la débil llama se apague
de aqueste humano pabilo;
antes que, caduco el labio
o embargados los sentidos
de ardiente fiebre, padezca
riesgo mayor el juicio;
antes, pues, que quede el alma
en más eficaz peligro,
y confisque las potencias
o el letargo o el delirio;
ya que cerca de cadáver
en trágica lid me miro,
luchando con la agonía
del último parasismo;
del mundo desahuciado,
neutral entre muerto y vivo,
ya retirado los pulsos
y los miembros casi fríos;
yerto y cárdeno el semblante,
tasado el aliento y tibio,
la respiración cansada,
el corazón encogido;
quebrados, Señor, del rostro
los dos animados vidros,
los dos cristales vivientes,
los dos humanos zafiros;
62
Los Avisos para la muerte de Luis Ramírez de Arellano
la voz ya descuadernada,
y la faz con desaliño,
a la luz de parda antorcha,
formando pálidos visos;
sin uso el tacto en las manos,
y mustio aquel indistinto
color, que púrpura y nieve
fue de mi edad al principio;
enmarañado el cabello,
que pudo, en crespos anillos,
ser vanidad del cuidado
y empeño del artificio.
[...]
quiero, en la breve distancia
que me concede de alivio
este de nuestras miserias
achaque mortal preciso,
aprovechar los instantes,
ya que tan mal he vivido
que guardé para este aprieto
la enmienda de tantos vicios.»
Sin llegar a tales extremos, también pueden hallarse pasajes de cierto
detenimiento en los poemas de Gabriel de Roa, José de Valdivielso, Calderón,
Vélez de Guevara, Bocángel, Alfonso de Batres...
Incluyen asimismo los poemas una serie de tópicos religiosos exclusivos
de ese momento, como la conciencia de proximidad al juicio particular del
alma o la fórmula por la que el moribundo, en eco de las palabras de Cristo,
encomienda su alma a este. A su vez, las expresiones de contrición no inciden
de manera explícita, en coherencia con la propia circunstancia, en una de
sus condiciones necesarias, el propósito de enmienda, proyección de futuro
inadecuada al momento. De ahí que la firme conversión deba expresarse como
optación con respecto a un pasado inamovible (así, en Rojas Zorrilla: «¡Oh,
quién hubiera vivido / con alma tan temerosa / (¡oh Jesús!), como si en ti /
no hubiera misericordia!», f. 66v); lo contrario, proponer la enmienda como
hipótesis en caso de que la muerte se pospusiera, podría incluso entrar en
colisión con la actitud que las artes moriendi pautan para una muerte cristiana: la
paciente aceptación de la agonía, cuyo sufrimiento inicia la purga de las culpas,
63
Inmaculada Osuna
y la consideración tanto de la vanidad del deseo de prolongar la vida como de las
ventajas de morir ya en gracia de Dios sin dar más ocasión al pecado.
Quizás no se les escapó a algunos autores el componente de artificiosidad
o convencionalismo que conllevaba esa «composición de lugar», auténtica
teatralización donde el yo se veía a sí mismo en el centro del ritual de la muerte,
no solo en virtud de la ficción poética, sino también, supuestamente, en el
ejercicio de imaginación o memoria que entrañaba la práctica real de devoción.
De hecho, en algunos poemas se anuló la ambigüedad entre el yo poético que se
expresaba y el (posible) yo biográfico del autor, distanciando el discurso en estilo
directo en una tercera persona, un «moribundo» innominado. Sin embargo,
pocos se valieron de este recurso, que al fin al cabo mermaba la impresión de
inmediatez y patetismo39.
También se percibe el convencionalismo de los poemas en la caracterización
del yo poético. De hecho, una de las paradojas que recorrerá el planteamiento
de los textos es la dialéctica entre lo individual de la experiencia reflejada
por una parte (es decir: la del enfrentamiento personal y en solitario ante
la muerte, la de la interpelación íntima a Dios) y, por otra parte, el sentido
colectivo de su plasmación, como modelo compartido por varios autores y,
a su vez, no particularizado, teóricamente asumible por un lector ideal que
se vería identificado en cada uno de los textos. En efecto, los poemas evitan
el detalle biográfico. El yo se refiere a sus muchos pecados, pero ninguno se
concreta; muy rara vez se puede sospechar la precisa naturaleza de estos, como
cuando en el romance de Juan Navarro de Espinosa, aparte de referencias más
vagas como la confianza en «glorias humanas», las «mal miradas ofensas» y los
«livianos apetitos», se evoca algún pecado que, perdidos los bríos de la juventud,
únicamente puede cometerse con el deseo («Ya que, de la edad cansado, / al
pecar faltaron bríos, / desfrenando deseos / malogré vuestros avisos», f. 101v).
Tampoco se explicitan circunstancias como rango social, estado civil,
condición clerical o laica... En medio de la radical intimidad que se conforma
en la comunicación entre moribundo y Cristo, muy pocos poetas incluyen otras
presencias mundanas a su alrededor, posiblemente de nuevo en coherencia con
los dictados de las artes moriendi que en familiares y amigos, en vez de un apoyo
o consuelo, veían más bien un potencial factor de distracción o distorsión en
medio de las debidas devociones del agonizante, cuando no, como en el Ars
Aparece, sin embargo, en el poema inicial, de Lope de Vega: «Cercado de congojas, / mortales parasismos, /
cuidado de los muertos, / descuido de los vivos, / llegado de su vida / al último suspiro, / así le dijo un hombre
/ a Cristo Crucifixo» (f. 1r-1v). De nuevo se acude a él, con marcas explícitas al inicio y al final, en el romance
de Francisco Quintana (f. 31r-31v y 35r); en el de Antonio de León, el poema parece discurrir por los cauces
habituales del discurso en primera persona, pero en el remate se revela la perspectiva externa: «Esto a un
Cristo le decía / un alma contrita y tierna, / que de su pena o su gloria / iba a escuchar la sentencia» (f. 43v).
39
64
Los Avisos para la muerte de Luis Ramírez de Arellano
moriendi medieval, un objeto de la tentación de avaricia, entendida como «la
mucha ocupación de las cosas temporales et exteriores»40. En los Avisos, esas
escasas alusiones se tiñen de indirecta reprensión moral, como en el poema
de Ramírez de Arellano cuando se declara «que todos me desconfían / y que
ninguno me adula» (f. 109v), o por el contrario remiten a la mal entendida
piedad de quienes ocultan al moribundo la gravedad de su situación, como en
el romance de Gabriel Bocángel: «Ya (si los hay) los amigos / me buscan para
no hallarme, / de lo que ignoran me informan / y me esconden lo que saben»
(f. 79v).
Solo la prolijidad de José Pellicer ofrece una escena familiar, quizás más
positiva, pero igualmente inútil para el agonizante, cuando evoca el «amparo»
de parientes y amigos, «aquella fiel ternura / y aquel piadoso cariño / con que
nos llora oficioso / el afecto de los hijos; / aquel coronar el lecho, /observando
doloridos / entre angustias y sufragios, / legales o antiguos ritos» (f. 119v).
Esta parquedad biográfica no fue constante, aunque sí notablemente
extendida, en ese casi subgénero de tema penitencial que se fue conformando,
con cierto éxito, en años posteriores. Baste recordar uno de los romances
portugueses que se incorporaron en la edición lisboeta de los Avisos, el de Sor
Violante do Céu, donde el yo poético, a semejanza de la autora, se manifestaba
en su género femenino y como profesa de los tres votos monásticos41. Sin
embargo, ni siquiera la afloración del sujeto femenino se adoptó siempre con
naturalidad: aparte de otros testimonios sueltos del género, el romance de la
Condesa de Paredes – en la edición decimonónica de los Avisos, pero, como
se ha dicho, con posible antecedente de mediados del XVII – opta por la más
inclusiva enunciación en masculino42. En definitiva, los poemas, en vez de
abarcar una tipología diversificada, solo ofrecieron ejemplo, premeditadamente
o no, de un determinado paradigma de muerte, en la práctica necesitado de
adaptación personal: sujeto masculino, de estado no definido, con pecados no
especificados, en medio de una muerte presumiblemente no repentina y con el
crucifijo a la vista.
Arte de bien morir, ed. cit., 111.
Hay estudio de dicho poema en Isabel Morujão, Incidências de «Esperança Mística», art. cit.
42
«Romance de un pecador, tomando el Crucifijo para morir», in Avisos para la muerte. Colección de
romances a Cristo Crucificado, compuestos a competencia por varios ingenios de fines del siglo 16, Madrid,
Imprenta de D. M. de Burgos, 1832, 273-276. El poema fue también impreso, junto con otros de la autora, en
la obra póstuma de fray Agustín de Jesús María, publicada por Pedro Vidal de Flores y Sabedra, Vida
y muerte de la Madre Luisa Magdalena de Jesús, religiosa carmelita descalza en el convento de San Josef de
Malagón, y en el siglo, doña Luisa Manrique de Lara, Excelentísima Condesa de Paredes, Madrid, Antonio
de Reyes, 1705, 243-246); muy posiblemente, de allí lo tomó Manuel Serrano y Sanz, Apuntes para
una biblioteca de escritoras españolas desde el año 1401 al 1833, t. II [BAE, nº 270, Madrid, Sucesores de
Rivadeneyra, 1903], Madrid, Atlas, 1975, 33-34.
40
41
65
Inmaculada Osuna
Junto con estos elementos explícitamente mortuorios los poemas
desarrollaron con reiteración una amplia gama de motivos en torno a la
penitencia y la esperanza en la salvación que bien podían compartirse con
otros contextos ascéticos. De nuevo, la remisión a los Soliloquios de Lope
resulta casi inevitable, como precedente genérico tan cercano. Sin los detalles
fúnebres de los Avisos, la portada de las distintas ediciones de la versión inicial,
la de los Cuatro Soliloquios, los presenta como hechos por el autor «arrodillado
delante de un Crucifijo», acompañados de «llanto y lágrimas»43. La afinidad
de los poemas de los Avisos con tales Soliloquios es patente tanto en aspectos
de formalización literaria como en contenido. En ambos casos, se suele optar
por una enunciación llana en apariencia y convencionalmente espontánea,
aun cuando en algunos poemas de los Avisos se llegue a mayor complicación
y ornamentación. A ello ayuda también el metro, el octosílabo de sabor
tradicional, articulado en combinaciones sencillas, redondillas en el caso de
Lope, y romance en la mayoría de los poemas de los Avisos. La inmediatez del
estilo directo y el lenguaje marcadamente emocional, a menudo salpicado de
interrogaciones, invocaciones, exclamaciones, van parejos a la adaptación de los
modelos espirituales en cuya tradición se insertan, entre ellos los soliloquios y
meditaciones atribuidos a San Agustín y los salmos penitenciales44. Imágenes y
motivos concretos coinciden en los Soliloquios de Lope y en los romances de los
Avisos, de tal modo que buena parte de los ya señalados por Ricard, Hatzfeld,
Serés o Lezcano Tosca a propósito de aquellos o de algunos sonetos de las Rimas
Sacras pueden reencontrarse sin dificultad en estos45.
Una buena síntesis del contenido oracional de ese moribundo ideal que
actualizan los Avisos puede verse en los dos versos finales, correspondientes
al momento de la expiración, del romance de Gabriel Bocángel: «pequé,
pésame, confieso, / confío, creo; ¡ayudadme!» (f. 80r). La primera tríada remite
claramente al itinerario de la penitencia: reconocimiento de haber pecado, dolor
por los pecados y confesión; la segunda, a las virtudes de la esperanza, la fe
y quizás también, pero de manera más desdibujada en forma de petición de
Una relación de dichas ediciones, en Hugo Lezcano Tosca, Los Soliloquios de Lope de Vega, ed. cit.,
396-397; incluye portada de la edición de Lisboa, 1620, a partir de Francisco Vindel, Manual gráfico-descriptivo del bibliófilo hispanoamericano (1475-1856), tomo X, Madrid, 1931, 92.
44
Aparte de la citada tesis de Hugo Lezcano Tosca, puede verse ahora, del mismo autor, El género del
soliloquio en la literatura hispánica (desde San Agustín a Lope de Vega), Madrid, Universidad Autónoma
de Madrid, 2006.
45
Robert Ricard, El tema de Jesús crucificado en la obra de algunos escritores españoles de los siglos XVI
y XVII, in Estudios de literatura religiosa española, Madrid, Gredos, 1964, 227-245; Helmut Hatzfeld,
Los «Soliloquios amorosos de un alma a Dios» de Lope de Vega, in Estudios sobre el Barroco, Madrid,
Gredos, 1973, 376-388; Guillermo Serés, Temas y composición de los Soliloquios de Lope, in Anuario
Lope de Vega, I (1996), 209-227; Hugo Lezcano Tosca, Los Soliloquios de Lope de Vega, ed. cit.,
especialmente 206-394.
43
66
Los Avisos para la muerte de Luis Ramírez de Arellano
ayuda, la caridad. No hay que olvidar tampoco aquí las advertencias de las artes
moriendi, que recordaban los peligros espirituales que acechaban al moribundo,
identificados en la tradición medieval con las tentaciones contra la fe y la
esperanza y con las de impaciencia, vanagloria y avaricia, aunque lógicamente
estas fueran sistematizadas y adaptadas de formas distintas en las numerosas
reformulaciones posteriores.
Los poemas de los Avisos, con un mayor acento en los componentes afectivos
del discurso, insistieron poco en la ratificación formularia de las verdades de fe,
por mucho que con frecuencia las expresaran de manera implícita, especialmente
en lo relativo a la figura de Cristo. De ahí, posiblemente, la idoneidad de incluir
en el libro un texto como el Acto de contrición con protestación de la fe, que
respondiera a esa función básica dentro del ritual de la buena muerte, ya que,
como observa, por ejemplo, fray Juan de Salazar en su Arte de ayudar y disponer
a bien morir a todo género de personas, el demonio, incapaz ante el estado del
moribundo de tentar con pecados como la gula, la soberbia, la ira, la lujuria o la
avaricia, lo hacía en puntos de fe46.
Por el contrario, las otras dos virtudes teologales, el amor (aquí, sobre todo,
amor a Dios) y la esperanza, son objeto de una especial atención. El itinerario
de la penitencia, con la insistente declaración de culpa y de un dolor que se
exterioriza en las lágrimas del pecador – de nuevo las circunstancias de la
agonía explican la insistencia en la contrición y no en la confesión sacramental
propiamente dicha –, enlaza con ambas virtudes: con la esperanza, porque,
junto con la misericordia divina, la actitud humilde y penitente del yo debía
generar confianza en su salvación; con el amor a Dios, porque en él se fundaba
el acto de perfecta contrición. Aquí tal acto de contrición aparece con frecuencia
expresado en sus términos más precisos de dolor de los pecados, no por miedo
al castigo o deseo de la gloria, sino por ser ofensa contra Dios, un Dios que no
necesitaría ser «poderoso» o «rico» para ser amado y con respecto al cual la culpa
del hombre es ingratitud:
«Por ser quien sois, porque os amo
lloro tan arrepentido,
no por interés del premio,
no por temor del castigo.
Porque sois un Dios tan bueno,
Fray Juan de Salazar, Arte de ayudar y disponer a bien morir a todo género de personas, Roma, Carlo
Vulliet, 1608, 85-86. Tal planteamiento no es, sin embargo, unánime; baste recordar el Arte de bien morir
medieval, que antepone la tentación relativa a la fe (ed. cit., 87-88), tras la cual, entre otras, aparecen las de
vanagloria y avaricia.
46
67
Inmaculada Osuna
que para ser muy querido
os sobra lo poderoso,
no era menester lo rico.»
(Felipe Godínez, f. 28v)
«Pésame, gran Dios, de todas [las ofensas],
no porque ellas me destruyan,
ni los castigos se acerquen,
ni las coronas se huyan.
Por ser contra vos me pesa,
porque os adoro me turban,
por ser vos quien sois me ofenden,
por ser mi dueño me apuran.» (Alonso de Alfaro, f. 43v)
«No es el rigor lo que temo,
ni la constante entereza
de tu juicio soberano
es lo que más me amedrenta.
Lo que mi cabello eriza,
lo que mi espíritu aqueja,
lo que mi voz entorpece,
y mi valor desalienta,
es el horror de mi culpa,
que tantas veces me acuerda
que fue a tantos beneficios
villanamente grosera.» (Antonio de Huerta, f. 70r)
«O ya que viví, tan breve
fuera el término primero,
que apenas se interpusiera
la cuna a mi monumento;
no porque entre sus temores
dure el ánimo, inquieto
de tu piedad, siendo poco
mi maldad para su extremo,
por excusar, sí, tu ofensa,
y que mis ingratos yerros
68
Los Avisos para la muerte de Luis Ramírez de Arellano
no hubieran desconocido
las piedades de tu pecho.»
(Salcedo Coronel, f. 73r)
En este contexto doctrinal hay que entender la casi sistemática elusión en los
poemas de la evocación plástica y efectista del infierno – y aun en esos pocos casos,
tras su recuerdo se indica lo imperfecta que espiritualmente resulta su consideración47
–, así como el paradigma tranquilizador que se proyecta sobre el moribundo, en
conformidad con el difícil equilibrio que las artes moriendi establecían entre la
cristiana esperanza en la salvación y la vanagloria de sentirse digno de ella48.
Sería prolijo detallar los conceptos y formulaciones en los que se ramifican
estos temas de la penitencia, la expresión del amor a Cristo y la esperanza
en su misericordia. Una rápida y no exhaustiva enumeración llevaría por
motivos como el reconocimiento de la infinitud de los pecados; la conciencia
personalizada de haber crucificado a Cristo con ellos; la ingratitud del hombre;
la aplicación personal de la parábola del Hijo Pródigo; la contrición y la petición
de clemencia; el llanto del yo y la sangre de Cristo que sirven para lavar las
culpas; la dialéctica entre justicia y misericordia; la deuda del hombre pagada por
Cristo, y otras muchas razones en las que fundar la esperanza en su clemencia...
Como ejemplo de la reincidencia y variabilidad que un motivo
concreto puede encontrar a lo largo de la colección seleccionaré solo uno, la
contemplación del cuerpo de Cristo en la cruz, normalmente no plasmada de
manera sistematizada. Ya se ha dicho: la presencia física de un crucifijo formaba
parte de la escenografía ideal de la muerte cristiana; objeto penitencial por
excelencia, en el trance de la agonía se convertía además en motivo de empatía
por identificación en el dolor y la muerte. De manera sintomática, también
en este tipo poemas que recreaban la invocación del moribundo su presencia
material pasó a aparecer ya no solo en algún que otro verso, en alusión más veces
implícita que explícita, sino en los propios encabezamientos, casi como marca
distintiva que permitiría al lector situarse dentro de la tradición genérica que
posiblemente los Avisos para la muerte ayudaron a conformar. En los Avisos, la
rúbrica inicial indica: «Hablando con un Cristo en las agonías de la muerte»; «un
Cristo» y no «Cristo». En varios poemas posteriores es posible encontrarse con
De este modo, Luis Ramírez de Arellano se detiene en esa contemplación («mazmorra entre niebla eterna»,
«horrible gruta», «bóvedas ardientes», «incendio», «pálido reflejo / de llamas sin luz alguna», «horror»,
«daño», «miedo», f. 108r), para luego advertir: «Mas, ¡ay! ¿Qué ignorancia estaba / en mis congojas oculta /
cuando el miedo del infierno / sólo, Señor, me atribula? / Las iras vuestras, Dios mío, / son las que el sentido
ofuscan, / sólo el ofenderos sólo / es justo que me confunda» (108v).
48
Por ejemplo, en el Arte de bien morir, ed. cit., 93-97 y 105-110.
47
69
Inmaculada Osuna
la ambigüedad de «hablando con Cristo crucificado» o «a Cristo crucificado»;
pero también con la precisión: «Exclamación de un alma a los pies de un santo
crucifijo», o «hablando con un santo Cristo», etc.49
Una sutil línea recorre el camino que va desde la visión real del crucifijo a la
contemplación espiritual con el cuerpo de Cristo como centro de consideraciones
devotas. Algunos críticos han recordado, a propósito de algunos poemas de
Lope o del romance de Calderón aquí incluido, el Coloquio que los Ejercicios
Espirituales ignacianos proponen al inicio de la primera semana, eminentemente
purgativa:
«Imaginando a Cristo nuestro Señor delante y puesto en cruz, hacer un
coloquio, cómo de Criador es venido a hacerse hombre y de vida eterna a
muerte temporal, y así a morir por mis pecados. Otro tanto mirando a mí
mismo lo que he hecho por Cristo, lo que hago por Cristo, lo que debo
hacer por Cristo, y así, viéndole tal, y así colgado en la cruz, discurrir por lo
que se ofreciere.»50
Aparte de las cuestiones de contenido, quizás interesen también las
inmediatas indicaciones sobre el tono que debía adoptarse:
«El coloquio se hace propriamente, hablando, así como un amigo
habla a otro o un siervo a su señor, cuándo pidiendo alguna gracia,
cuándo culpándose por algún mal hecho, cuándo comunicando sus cosas y
queriendo consejo en ellas.»51
Desde luego, no pasa desapercibido cómo el jesuita Francisco Macedo, en la
aprobación de los Avisos, se refiere a su asunto como «los últimos coloquios de
un piadoso cristiano» (h. 5r), optando así por un término bastante marcado en
la tradición ignaciana y, en consecuencia, asimilando los poemas a sus prácticas
devotas. No se puede descartar que bajo el claro éxito de los Avisos hubiera
precisas corrientes de devoción como las jesuíticas, aunque, en todo caso, no
Valgan solo unos cuantos ejemplos: A Cristo crucificado, un pecador arrepentido, en la hora de la muerte,
afectos cristianos: dedícalos a la sacratísima Virgen... un humilde devoto, Sevilla, [s. n.], 1669; Gabriel
Álvarez de Toledo Pellicer, Afectos de un moribundo hablando con Cristo crucificado, Sevilla,
Juan Francisco de Blas, [s.a.], Sevilla, Juan Francisco de Blas, [s.a.] y Madrid, Francisco de Villadiego, 1701;
Antonio López de Mendoza, Métricos gemidos de un pecador contrito que a la hora de la muerte
invoca a Cristo en la Cruz, Granada, Raimundo de Velasco y Valdivia, 1682; Antonio de la Concepción
Béjar y Figueroa, Exclamación de un alma a los pies de un santo crucifijo en todo tiempo, Granada,
Imprenta Real de Francisco Sánchez, 1663; Martín de Carvajal y Pacheco, Afectos de un pecador,
hablando con un santo Cristo, Granada, Baltasar de Bolíbar, 1663.
50
San Ignacio de Loyola, Ejercicios espirituales, ed. cit., 238.
51
San Ignacio de Loyola, Ejercicios espirituales, ed. cit., 238 (modernizo grafías).
49
70
Los Avisos para la muerte de Luis Ramírez de Arellano
debieron de ser exclusivas, como muestran las ediciones relacionadas en su
dedicatoria con la orden de San Juan de Dios. Aun así, tanto el abanico temático
propuesto en los Ejercicios ignacianos como las evidentes diferencias de tono allí
señaladas, desde la igualitaria relación amistosa a la jerárquica, no explican la
concreta selección y recurrencia de motivos ni la relativa homogeneidad tonal
que los Avisos para la muerte presentan en su conjunto. Las fuentes pudieron ser
múltiples y, a la sazón, bastante mezcladas entre sí, e incluso limadas o matizadas
en puntos potencialmente conflictivos; además, en última instancia, las prácticas
usuales en las academias literarias incluían la precisión, a veces minuciosa y
realizada ex professo, de los motivos que debían incluir los poemas propuestos,
razón por la cual siempre hay que tener cautela a la hora de pretender hallar un
antecedente que dé cuenta sistemática de todos los matices comunes en estas
composiciones, que previsiblemente se forjaron en un contexto académico.
Por todo ello, si a continuación cito algunos tratados de oración o de ayuda a
bien morir, no es con una intención de filiación, sino como ilustración de unas
sugerencias documentadas en la época y con las cuales los poemas de los Avisos
para la muerte unas veces contrastan y otras muestran afinidad.
Salvo por lo ya dicho a propósito de la profesión de fe, un pasaje incluido
en las obras de Ludovico Blosio puede servir para aproximarnos al motivo de la
contemplación de Cristo crucificado:
«El que estuviere para morir [...] persevere firme y sencillamente en la
santa fe católica de la Iglesia, y confíe más en los merecimientos de Jesu
Cristo nuestro Salvador que en los suyos proprios. Y acordándose de su muy
amarga pasión y muerte, y de aquella caridad inefable que le movió a sufrir
cosas tan afrentosas, y poniéndola delante de los ojos del alma, procure
unir su espíritu, alma y cuerpo, al espíritu, alma y cuerpo del mismo Señor.
Derríbese y anéguese con todos sus pecados y negligencias en sus llagas
abiertas, y en el profundísimo piélago de su misericordia inmensa. Ofrézcase
a sí mismo a Dios como hostia viva a gloria del mismo Señor, para sufrir
con paciencia por su muy agradable voluntad, de puro amor, todo el trabajo
de la enfermedad, y aun de la misma amargura de la muerte, y finalmente
todas las penas que el Señor le quisiere enviar, así en el tiempo como en la
eternidad.»52
La transición desde la consideración de la Pasión de Cristo al anegamiento
de tintes casi místicos en sus llagas resulta afín a esa concentración de los poemas
52
Ludovico Blosio, Institución espiritual («Adición sacada de las obras de San Juan Taulero y de otros
padres»), in Obras... traducidas por fray Gregorio de Alfaro, Sevilla, Juan de León, 1598, 47.
71
Inmaculada Osuna
de los Avisos en el motivo de la crucifixión. Frente al desarrollo secular de una
poesía de la Pasión basada en composiciones de articulación narrativa o en
ciclos de romances sacros que, con sentido «historial», van yuxtaponiendo sus
distintos episodios – lógicamente, con paralelismos evidentes en los tratados
de oración –, la memoria de la Pasión queda aquí reducida a la imagen del
crucificado. Si hay algún recuerdo de otro momento de la Pasión es casi siempre
por las secuelas físicas en forma de heridas que el moribundo contempla. Con
semejante concentración en la comunicación hombre-Cristo, pocas veces la
interpelación se desplaza hacia otras figuras religiosas, como la Virgen, y en una
parquedad y un sentido de intimidad semejantes a los que se observaban con
respecto a familiares y amigos, aún más rara o fugazmente se remite a los demás
protectores celestiales, como santos y ángeles.
Incluso el tipo de contemplación del cuerpo de Cristo dista de las frecuentes
visiones de gran patetismo que recrean la crueldad y el ensañamiento de los
fautores de la Pasión, como puede verse repetidamente, por citar solo algunos
casos concretos de los siglos XVI y XVII, en fray García de Cisneros, fray Luis
de Granada, Antonio de Molina o Pedro de Salazar53.
Los factores emotivos se orientan más bien a una contemplación simbólica,
que podemos encontrar sistematizados, por ejemplo, en Ludovico Blosio, el
beato Juan de Ávila o, como puede apreciarse en el pasaje siguiente, de nuevo
Antonio de Molina:
«Y por eso quiso quedarse de esta manera, inclinada la cabeza, y que
su Imagen, delante de la cual hacemos oración, se pinte así: la cabeza
inclinada, los ojos bajos, para mirarnos, los brazos abiertos, para recibirnos
y abrazarnos, los pies enclavados, para esperarnos, el corazón traspasado y
descubierto, para mostrarnos el amor que nos tiene, las llagas abiertas, para
que tengamos en ellas nido y refugio donde nos esconder y puertas hartas
por donde entrar; y finalmente, para que todos sus miembros, aun después
de muerto, nos estén diciendo el amor que nos tiene.»54
Por ejemplo, para la escena de la crucifixión, desde sus preparativos tras la llegada al Gólgota: fray García
de Cisneros, Compendio breve de ejercicios espirituales (utilizo la edición de Salamanca, Simón de
Portonariis, 1571, f. LXVr-LXVIr); fray Luis de Granada, Tratado de la oración y meditación, (utilizo
edición de Amberes, Viuda de Martín Nucio, 1559, f. 56v-59r, y edición moderna de Cristóbal Cuevas, en
Obras castellanas, II, Madrid, Biblioteca Castro, 1997, 77-81); Antonio de Molina, Ejercicios espirituales
de las excelencias, provecho y necesidad de la oración mental, Burgos, 1614, 803-815; Pedro de Salazar,
Ejercicios de la vida espiritual, para que el cristiano se prepare para el juicio particular que tiene Dios de
hacer con él a la hora de la muerte, Nájera, Juan de Mongastón, 1616, f. 167r-172v.
54
Antonio de Molina, Ejercicios espirituales, ed. cit., 830. Para las formulaciones de Juan de Ávila, fray
Diego de Estella y Baltasar Gracián, entre otras menos desarrolladas, véase Robert Ricard, El tema de
Jesús crucificado, art. cit., 228-230; como señala en addenda, la imagen responde a una tradición anterior
que ya aflora en uno de los soliloquios auténticos de San Buenaventura (art. cit., 244-245). Para Ludovico
53
72
Los Avisos para la muerte de Luis Ramírez de Arellano
Sin embargo, las conclusiones meditativas a propósito de los castigados miembros
de Cristo y de su posición en la cruz podían acumularse en multitud de sentidos
complementarios. Baste el ejemplo de la inclinación de la cabeza en Pedro de Salazar:
«Y considera que, en la Cruz, se inclinó su cabeza a la parte derecha,
para que la cabeza de nuestras almas, que es la intención, siempre se incline
a las cosas de las virtudes, y no a la mano siniestra de los vicios; y también
inclinó su cabeza para hacer reverencia a su eterno Padre en el fin de su vida
y despedirse de su Madre santísima; y para llamarnos a todos los pecadores,
para recibir dél sus infinitas misericordias. Y para darnos a entender que,
como el fiel del peso y balanza siempre se inclina donde hay mayor peso, así
se inclinó la cabeza de Cristo, que es el fiel de la Cruz, y sus merecimientos
a la mano derecha, para darnos ha entender que pesan más los méritos de la
Pasión de Cristo que todos los pecados del mundo juntos.»55
No es de extrañar, pues, que en las variaciones sobre un mismo tema que
suponen los poemas de los Avisos para la muerte también esa percepción simbólica
de la imagen de Cristo, a veces incluso evocada con unos procedimientos de
metaforización que desdibujaban la crueldad, por ejemplo, con la idealización de
la sangre en rubíes o rosas, adquiriera matices distintos en torno a la idea central
de la misericordia divina.
De esta manera, la llaga del costado, en algunas interpretaciones fuente
sacramental, da aquí de beber al moribundo56, se convierte en su refugio57, o en
puerta de esperanza58; lava las manchas del pecado59, hace temer y sentir esperanza
al mismo tiempo – por su carácter de herida, como otras, causada por el yo, pero
también, precio pagado por Cristo para la salvación60 –, o permite ver la disposición
de Cristo61, o llama al pecador, con más eficacia que la ya impedida boca, pues está
Blosio, véase Institución espiritual, no poco provechosa a los que procuran la perfección de la vida; con
un ejercicio de oraciones devotas, en Obras, ed. cit., 129.
55
Pedro de Salazar, Ejercicios de la vida espiritual, ed. cit., f. 297r.
56
«Aliento de vuestra boca / es este espíritu mío, / que vos del pecho sacastes / cuando vuestro amor me hizo.
/ A esa llaga del costado / los labios agora aplico, / porque vuelto al mismo pecho / restaure su ser antiguo»
(Felipe Godínez, f. 26r-26v); «En este abierto costado / por donde mi fe os traslumbra / recto a las ofensas
siempre, / pero vengativo nunca, / pongo mi boca a beber / la gracia, el amor, por cuya / cicatriz Iglesia tanta
/ vertió la acerada punta» (Pedro Rosete Niño, f. 90v).
57
«Vuestro costado está abierto, / y de mi casa me arroja / la muerte; dadme en él casa, / porque viva en casa
propia» (Juan Pérez de Montalbán, f. 22r); «en ese costado herido / huyo a vos de vos, valedme» (Felipe
Godínez, f. 30v).
58
«A ese pecho, cuya puerta / siempre abierta, enjuta nunca, / el tesoro de la gracia / sin ocultalle le oculta»
(Alonso de Alfaro, f. 45v).
59
«Hechura soy desas manos: / esa fuente saludable / de vuestro costado sea / la que tantas manchas lave»
(Francisco de Olivares y Figueroa, f. 105v).
60
«Ese sangriento costado, / ese piélago divino, / en cuyas ondas se mezclan / la saña y el beneficio» (José
Pellicer de Tobar, f. 121r).
61
Véase cita del poema de Pedro Rosete en nota nº 55.
73
Inmaculada Osuna
más cerca del corazón62. La cabeza inclinada de Cristo está buscando si hay algo
más que pueda dar al hombre63, o lo está llamando64, o – de nuevo entre el temor
y la esperanza – está mirando el daño que le ha hecho el yo65, aunque quizás no:
quizás es una señal de aceptación o asentimiento que engendra esperanza en este66.
Desde luego, pasajes como estos podrían llevarnos a pensar en una intensa
espiritualidad personal, a veces de fuentes místicas, bastante matizadas, con
todo, por el inminente encuentro con Cristo tras la muerte. De haberlos
encontrado en un poema aislado y sin contexto, quizás nos hicieran fantasear
sobre las profundidades ascéticas de su autor. Aquí, vistos en serie, y sin duda
muy en contra de los objetivos deseados en el libro, hoy nos recuerdan lo que
también debieron de tener de convención literaria e instrumento de integración
social.
Apéndice: Tabla de ediciones localizadas.
Se añade * en las ediciones cuyos datos se toman exclusivamente de la
descripción de Antonio Rodríguez-Moñino (Manual bibliográfico de Cancioneros
y Romanceros (siglo XVII), coord. Arthur L. F. Askins, vol. III, Madrid, Castalia,
1977). Se prescinde de las ediciones (reales o hipotéticas) no localizadas que
figuran en dicho Manual bibliográfico: ¿Madrid? 1630; Zaragoza, 1634 y 1637;
Sevilla 1648; Barcelona 1656; Madrid 1659 («octava edición»); Madrid, 1772.
En la relación de preliminares se omiten los de carácter estrictamente legal, salvo
las aprobaciones originales, y también las referencias a grabados.
Inmaculada Osuna
Universidad Complutense de Madrid
«Cuyo divino costado, / de bárbaro aliento roto, / fue a un tiempo rigor y acierto, / fue a un tiempo dicha y
arrojo, / que, como de hacernos bien / estáis siempre deseoso, / y es el corazón de donde / manan los favores
todos, / juzgastes lejos la puerta / de la boca y, amoroso, / otra en el costado abristes, / porque salgan sin
estorbo» (José de Villalobos, f. 114r).
63
«Todo por mí lo habéis dado, / y aun, por si os queda otra cosa, / bajáis la cabeza al pecho / mirando a una
parte y otra; / y no hallando más que darme, / permitís que un hasta os rompa / las entrañas, franqueando /
glorias que el alma atesora» (Gabriel de Roa, f. 41r-41v).
64
«¡Oh, qué elocuente silencio! / (bien que es formidable estilo / el llamar con la cabeza / un muerto desde el
suplicio)» (Gabriel de Henao, f. 55v).
65
«Mas vos, mientras que mi vida / satisface o restituye, / el pecho os miráis, de quien / tantas piedades producen, / inclinando la cabeza, / o por veros cómo os puse, / o por concederme más / señas en que me asegure»
(Alfonso de Batres, f. 99r).
66
«¿No me perdonas, Señor? / Mas la pregunta es impropia, / que quien baja la cabeza / ya está diciendo que
otorga» (Francisco de Rojas Zorrilla, f. 67r-67v).
62
74
Z1640
M1639
B1637*
B1636*
B1636
M1634
V1634
M1635
(Séneca)
Cita
Se: Sevilla.
Falta aprobación
de Valdivielso,
pero no la del P.
Macedo.
Añade una
décima.
Observaciones
M: Madrid.
Poemas
(Juan de
Jáuregui)
Li: Lisboa
Prólogo
B: Barcelona.
Dedicatoria
Al: Alcalá.
aprobaciones
(F. Macedo y J.
de Valdivielso)
Tabla y
preliminares
Originales
V: Valencia.
Romances
Sonetos
Z: Zaragoza
Silva
Consuelo del
alma contrita
y romance
de Rafael
Nogués (en
catalán).
Romance
Consuelo del
alma contrita.
Romance
de Alonso
Chirino.
Según descripción de
RodríguezMoñino, no
incluye el
Consuelo del
alma contrita.
Poemas
añadidos
COLECCIÓN poética
Colección original
Tras el Acto de
contrición, una
Meditación muy
prouechosa.
(en prosa)
Acto de
CONTRICIÓN
Los Avisos para la muerte de Luis Ramírez de Arellano
75
76
Dedicatoria
a Antonio de
León.
Observaciones
Dedicatoria a
San Juan de
Dios, firmada
por el librero
(Juan de Valdés).
Prólogo
M1652
(Imprenta
Real)
Dedicatoria
Poemas
(Juan de
Jáuregui)
Falta aprobación
de Valdivielso,
pero no la del P.
Macedo.
aprobaciones
(F. Macedo y J.
de Valdivielso)
Tabla y
Z1648*
M1648
M1644
(Séneca)
Cita
preliminares
Originales
Romances
Silva
Sonetos
Cinco
romances (Fr.
Juan de Ayala
Fajardo,
Francisco
Bernardo
de Quirós,
Antonio
de Castilla,
Francisco Pérez de Amaral, Álvaro
Cubillo);
poema en
décimas
(Bartolomé
de Salazar y
Luna).
Poemas
añadidos
COLECCIÓN poética
Colección original
Figura en la
tabla, pero no
en el ejemplar
consultado (BNE
7/108641).
(en prosa)
Acto de
CONTRICIÓN
Inmaculada Osuna
M1659*
(María de
Quiñones)
(Andrés
García)
M1659
Z1657
Se1652
M1652*
(Julián de
Paredes)
(Séneca)
Cita
Se: Sevilla.
Dedicatoria a
San Juan de
Dios, del librero
(Juan de Valdés)
Dedicatoria al
Marqués del
Fresno, del
impresor.
Acto de contrición
en preliminares.
En portada
aparece como
dedicatario el
Marqués del
Fresno, pero
los ejemplares
carecen de
dedicatoria.
Falta aprobación
de Valdivielso,
pero no la del P.
Macedo.
Dedicatoria a
la Virgen, del
impresor (Julián
de Paredes).
Observaciones
M: Madrid.
Poemas
(Juan de
Jáuregui)
Li: Lisboa
Prólogo
B: Barcelona.
Dedicatoria
Al: Alcalá.
aprobaciones
(F. Macedo y J.
de Valdivielso)
Tabla y
preliminares
Originales
V: Valencia.
Romances
Sonetos
Z: Zaragoza
Silva
Cinco
romances
y poema
en décimas
(=M1652).
Cinco
romances
y poema
en décimas
(=M1652).
Cinco
romances
y poema
en décimas
(=M1652).
Cinco
romances
y poema
en décimas
(=M1652).
Poemas
añadidos
COLECCIÓN poética
Colección original
(en prosa)
Acto de
CONTRICIÓN
Los Avisos para la muerte de Luis Ramírez de Arellano
77
78
Li1659
(Séneca)
Cita
aprobaciones
(F. Macedo y J.
de Valdivielso)
Tabla y
Dedicatoria
Prólogo
preliminares
Originales
Poemas
(Juan de
Jáuregui)
La licencia alude
a ed. de Barcelona 1656, hoy
desconocida.
Incluye Tabla
de contenido y
cuatro Soliloquios
de Lope de Vega
Observaciones
Romances
Silva
Sonetos
Romance
de Alonso
Chirino
(=B1636).
Poemas de
Antonio Barbosa Bacelar,
José de Faria
Manoel (3
poemas, dos
de ellos en
portugués),
Alonso de
Alcalá y
Herrera, Sor
Violante do
Ceo (portugués) y Antonio Coello.
Una octava y
su glosa.
Poemas
añadidos
COLECCIÓN poética
Colección original
(en prosa)
Acto de
CONTRICIÓN
Inmaculada Osuna
Al: Alcalá.
Li: Lisboa
M: Madrid.
Se: Sevilla.
Al1671
Observaciones
Dedicatoria a
la Virgen, del
librero (Juan de
San Vicente).
Poemas
(Juan de
Jáuregui)
Falta aprobación
de Valdivielso,
pero no la del P.
Macedo.
Prólogo
Z1665
B: Barcelona.
Dedicatoria
Se1660
aprobaciones
(F. Macedo y J.
de Valdivielso)
Tabla y
Solo contiene
un poema de
Jáuregui, sin
autoría.En
portada aparece
como dedicatario Antonio
de León, pero
no hay texto de
dedicatoria.
(Séneca)
Cita
preliminares
Originales
V: Valencia.
Romances
Sonetos
Z: Zaragoza
Silva
Cinco
romances
y poema
en décimas
(=M1652).
Poemas
añadidos
COLECCIÓN poética
Colección original
(en prosa)
Acto de
CONTRICIÓN
Los Avisos para la muerte de Luis Ramírez de Arellano
79
80
Observaciones
Se1697
Prólogo
Prólogo de Valdivielso visiblemente reducido.
Acto de contrición
en prosa, en
preliminares.
Añade Meditación muy provechosa, y una décima
(=B1636),
además de un
romance a la
Virgen. Tabla, al
final del libro.
Dedicatoria
Poemas
(Juan de
Jáuregui)
M1672
aprobaciones
(F. Macedo y J.
de Valdivielso)
Tabla y
Dedicatoria del
librero (Santiago
Martín Redondo) a Fr. Francisco de San Antonio, General de
la Orden de San
Juan de Dios.
(Séneca)
Cita
preliminares
Originales
Romances
Silva
Sonetos
Romance
de Alonso
Chirino
(=B1636).
Cinco
romances
y poema
en décimas
(=M1652).
Tres poemas
más de Ayala
Fajardo y
uno de José
Martínez de
la Puente.
Poemas
añadidos
COLECCIÓN poética
Colección original
(en prosa)
Acto de
CONTRICIÓN
Inmaculada Osuna
M1832
B1777*
V1772
(Séneca)
Cita
-
Se: Sevilla.
Prólogo del
editor (menciona
una «octava
edición» de
1659, hoy desconocida). Tabla,
al final del libro.
Los poemas de
Jáuregui, al inicio
del texto.
Acto de contrición y tabla de
contenido, en
preliminares.
Los poemas de
Jáuregui, tras el
texto.
Observaciones
M: Madrid.
Poemas
(Juan de
Jáuregui)
Li: Lisboa
Prólogo
B: Barcelona.
Dedicatoria
Al: Alcalá.
aprobaciones
(F. Macedo y J.
de Valdivielso)
Tabla y
preliminares
Originales
V: Valencia.
Romances
Sonetos
Z: Zaragoza
Silva
Cinco
romances
y poema
en décimas
(=M1652).
Poemas de
Jáuregui.
Consuelo del
alma contrita
y romance
de Rafael
Nogués
(catalán)
Los poemas
de Jáuregui y
cuatro Soliloquios de Lope
de Vega, al
inicio del
texto. Tras
la colección
original, el
Consuelo del
alma contrita,
los poemas
en castellano
incluidos en
Li1659, otro
de la Condesa de Paredes,
y una octava
y su glosa
(ambas en
Li1659).
Poemas
añadidos
COLECCIÓN poética
Colección original
(en prosa)
Acto de
CONTRICIÓN
Los Avisos para la muerte de Luis Ramírez de Arellano
81
Inmaculada Osuna
Abstract:
Avisos para la muerte (1634), compiled by Luis Ramírez de Arellano, gathers,
along with other complementary materials (among these, two prayers written
in verse for before confession and before communion, and an act of contrition
in prose), thirty poems that are presented as models for prayers addressed to
a crucified Christ in the moment of his death. These poems emerge from a
group initiative in which notable poets from the Madrid court took part, poets
such as Lope de Vega, Pedro Calderón de la Barca, José de Pellicer, José de
Valdivielso, Luis Vélez de Guevara, Juan Pérez de Montalbán and Francisco
de Rojas Zorrilla. My article examines the social context in which this poetic
collection is born, the composition of the book, its successful publishing history
throughout two centuries as well as the reiterative representation in the poems
of particular meditatio mortis topics (the staging of agony; the expression of
repentance, love for Christ and hope for his mercy; and the contemplation of
Christ’s body on the cross).
82
EJERCICIOS Y PENITENCIA EN
LA OBRA DE TOMÉ DE JESUS
El presente trabajo se inserta en una investigación más amplia en torno a
los agustinos en Portugal durante el siglo XVI y especialmente en relación con
el religioso castellano-portugués fray Luis de Montoya1. En esta ocasión nos
proponemos abordar a su discípulo portugués más significativo: Tomé de Jesús
y, más en concreto, de su obra principal, los Trabalhos de Jesus2. El tema elegido
no es, evidentemente, la única clave para acercarnos a esta obra, pues no se
trata propiamente de literatura penitencial3. Pero pensamos que dicho ángulo
puede ser un modo adecuado de acercamiento a este libro, pues ofrece algunos
ejes fundamentales del mismo. Al mismo tiempo, recurriremos a otros autores
espirituales, fundamentalmente sus contemporáneos del siglo XVI y sobre todo
Ignacio de Loyola, por algunas analogías que en seguida comentaremos4.
1. La significatividad de un clásico olvidado
Sin duda, Fr. Tomé es uno de los escritores espirituales tradicionalmente más
conocido de entre los portugueses, pero además Trabalhos de Jesus es la obra de la
literatura lusa clásica más editada fuera de Portugal5. Publicada póstumamente en
dos partes (1602 y 1609), pronto fue objeto de numerosas traducciones. Así, ya
1
Véase nuestro reciente libro Luis de Montoya, un reformador castellano en Portugal, Guadarrama,
Ed. Agustiniana, 2008.
2
Trabalhos de Iesu [...] por Fr. Thome de Iesu da ordem dos Eremitas de S. Agostinho da prouincia de
Portugal catiuo em Berberia, Lisboa, Pedro Craesbeeck – Vicente Álvares, 1602-1609, 2 vols.; hay sendos
ejemplares de la primera edición de ambos volúmenes en la Biblioteca General de la Universidad
de Salamanca (sign. BG 8167 / 8168), que significativamente pertenecieron al Colegio de los Jesuitas.
Citamos los textos por la última edición portuguesa, que data de 1951 (Porto, Lello & Irmão, 2 vols.). Para
no multiplicar las notas, ofrecemos las citas de esta obra en el cuerpo principal del texto: volumen y página.
3
Podemos recordar aquí el estrictamente coetáneo Compendium Spiritualis Doctrinae (1582) de Bartolomeu
dos Mártires, obra que – inspirándose sobre todo en san Bernardo y san Buenaventura – dedica toda la
primera parte a la virtud «da mortificação e da purificação dos vícios». En este sentido, pueden ser aplicables
a Tomé gran parte de las reflexiones de José Adriano de Freitas Carvalho, O contexto da espiritualidade
portuguesa no tempo de Fr. Bartolomeu dos Mártires, O.P. (1514-1590), in Bracara Augusta, 42 (Braga
1990), 101-131.
4
Podríamos decir incluso que, para la elaboración de este trabajo, en algunos momentos hemos utilizado los
textos ignacianos a manera de palimpsesto.
5
Cf. Francisco Leite de Faria, Difusão extraordinária do livro de Frei Tomé de Jesus, in Anais da Academia
Portuguesa da História. IIª série, 28 (Lisboa 1982), 163-234.
83
Eduardo Javier Alonso Romo
en 1620 fue traducida al castellano por Cristóvão Ferreira de Sampaio y, siglo y
medio después, en 1763, fue versionada mucho mejor por el P. Enrique Flórez6.
Todavía vigente hace un siglo como lectura espiritual, como lo demuestran las
sucesivas reediciones, hoy han cambiado los gustos y las modas y este sabroso
libro ha quedado como un clásico olvidado – al igual que tantos otros –, tanto en
Portugal como en España, de modo que está descatalogado desde hace décadas
y se hace un tanto difícil conseguir un ejemplar. En la misma línea, desde la
perspectiva de los estudios sobre este autor y su obra, en las últimas décadas han
aparecido relativamente pocas novedades7.
Como es bien sabido, Fr. Tomé de Jesús, o de Andrade (1529-1582/1583)8
nació en Lisboa. Educado desde niño en Coimbra por Luis de Montoya9, éste
le envió a Lisboa para hacer el noviciado, cuando el joven quiso ingresar en la
Orden de san Agustín; y en la capital portuguesa profesó Fr. Tomé el 27 de mayo
de 154810. Regresa a Coimbra, a fin de completar sus estudios y, más tarde, Montoya
le confía el delicado oficio de maestro de novicios, escribiendo entonces unas
«Costumbres del noviciado» a partir de los consejos de su maestro11. Tomé tuvo a
Montoya por prelado durante 21 años, como él mismo declara12.
Posteriormente Fr. Tomé fue prior del convento de Penafirme (1574) y
visitador de la provincia agustiniana portuguesa. Como capellán del ejército, Fr.
Tomé acompañó al rey D. Sebastião de Portugal en su malograda expedición a
Marruecos, quedando cautivo tras la batalla de Alcácer Quibir (4 de agosto de
1578). Según la tradición más o menos hagiográfica, el religioso agustino habría
renunciado al rescate que ofrecieron por él sus hermanos para sostener la fe de sus
compañeros de cautiverio. De este modo, fallecería en Marruecos a finales de 1582
Hemos consultado también la traducción castellana de Enrique Flórez en 4 vols.: Trabajos de Jesus, escritos
en portugues por el V.P. Fr. Tomé de Jesus, del Órden de San Agustin, estando preso i cautivo en Berberia
(Madrid, Hija de Ibarra, 1808). El Apostolado de la Prensa (Madrid) reeditó la traducción en 1902 y otra vez
en 1922.
7
Destacan varios trabajos de José Augusto Mourão y en especial su libro Sujeito, Paixão e Discurso:
Trabalhos de Jesus, Lisboa, Vega, 1996.
8
Sobre Tomé de Jesus y su obra, véanse: José Adriano de Carvalho, Tomé de Jesus, in Antologia de
Espirituais Portugueses, Lisboa, IN-CM, 1994, 353-396; Carlos Alonso, Thomas de Jésus (de Andrade), in
Dictionnaire de Spiritualité, Paris, Beauchesne, 1932-1995, 17 vols.: XV, 830-833; Isabel Morujão, Tomé de
Jesus (Frei), in Biblos. Enciclopédia das Literaturas de Língua Portuguesa – 5, Lisboa, Verbo, 2005, cols.
454-459; Eulogio Pacho, El apogeo de la Mística Cristiana. Historia de la Espiritualidad Clásica Española,
Burgos, Ed. Monte Carmelo, 2008, 1129-1131.
9
Sabemos que Montoya también había educado en Lisboa a un hermano de Fr. Tomé: Diogo de Paiva
de Andrade (1528-1575), que más tarde sería sacerdote secular, célebre teólogo del Concilio de Trento y
defensor de la Compañía de Jesús.
10
No profesó, por tanto, el 27 de marzo de 1544, como se ha venido afirmando; cf. C. Alonso, Las profesiones
religiosas en la provincia de Portugal durante el período 1513-1631, in Analecta Augustiniana, 48 (1985),
331-389.
11
Las llamadas Costumes do noviciado, texto perdido, unas veces atribuido a Fr. Luis y otras a Fr. Tomé.
Cf. E. J. Alonso Romo, Luis de Montoya, 71-72.
12
T. de Jesus, Trabalhos de Jesus, I, 176.
6
84
EJERCICIOS Y PENITENCIA EN LA OBRA DE TOMÉ DE JESUS
o a comienzos del año siguiente. Pues bien, durante este tiempo de cautividad el
agustino compuso la obra Trabalhos de Jesus, de un modo un tanto misterioso, si
atendemos a sus palabras de que lo compuso «sem nenhuma ajuda de livros, e sem
nenhum uso de escrever coisas desta matéria» (I, 32)13.
Esta obra, en la que predomina lo devocional – de hecho, contiene muchos
elementos para un tratado sobre la verdadera devoción –, sobre lo doctrinal, ha
sido considerada una de las cumbres de la espiritualidad portuguesa: «No tiene
rival en ninguna literatura desde el punto de vista místico, como desahogo de los
afectos tiernos del corazón al contemplar la vida y pasión de Jesucristo», en frase
de Ignacio Monasterio14. Este mismo autor relaciona la obra de Tomé de Jesús con
los coetáneos Nombres de Cristo (1583) del también agustino Fr. Luis de León:
«Ambos autores han dejado estampada su personalidad literaria en su
respectiva obra. La teología no puede alcanzar expresión más adecuada
ni elevarse a mayor altura que en Los Nombres de Cristo, ni las efusiones
del místico han logrado llegar al grado de perfección a que el autor de Los
trabajos de Jesús, ni en las respectivas literaturas hay nada comparable a esas
dos joyas inmortales [...]. Las dos son contemporáneas y tuvieron origen muy
parecido; en las cárceles inquisitoriales de Valladolid fue engendrado el gran
pensamiento de Los Nombres de Cristo, y en las mazmorras de Berbería y a la
luz que entraba por las rendijas, redactada la segunda.»15
En una amplia carta dedicatoria, fechada el 8 de noviembre de 1581, el autor
ofrece su obra a la nación portuguesa. En este texto preliminar vemos cómo los
Trabajos se destinan a consolar al autor, a sus compañeros de cautiverio y, en
general, a toda la nación portuguesa, «no tempo daquelas grandes tribulações da
jornada de África». En todo caso, el autor tiene como posibles destinatarios tanto
a seglares piadosos como a religiosos y sacerdotes. Ello sitúa esta obra dentro de
la vanguardia de autores peninsulares del siglo XVI que postulan la extensión al
laicado de la oración mental y de los ejercicios de la vida contemplativa16.
13
En aquel mismo contexto se fraguó el Cancioneiro chamado de D. Maria Henriques de Francisco da Costa
(1533-1591), compuesto por textos religiosos y propios del cautiverio: ed. por Domingos Maurício G. dos
Santos, Lisboa, Agência Geral do Ultramar, 1956. Cf. Zulmira C. Santos, Teatro português em Marrocos
no tempo de Filipe II: o testemunho do Cancioneiro de D. Maria Henriques, in Via Spiritus, 5 (Porto 1998),
75-105.
14
Ignacio Monasterio, Místicos Agustinos Españoles, 2ª ed., R.M. de El Escorial, Ed. Agustiniana, 1929,
I, 133.
15
I. Monasterio, Místicos Agustinos Españoles, I, 134; cf. 135-136. También presenta juntos a ambos
autores agustinos P. Pourrat, La spiritualité chrétienne, Paris, Lecoffre, 1943-1944, 4 vols.: III, 180-186.
Véase la reciente edición preparada por Javier San José Lera: De los nombres de Cristo, Barcelona, Galaxia
Gutenberg, 2008.
16
Véase Pedro Vilas Boas Tavares, Beatas, inquisidores e teólogos. Reacção portuguesa a Miguel de Moli-
85
Eduardo Javier Alonso Romo
El grueso de la obra está compuesto por cincuenta trabajos de Cristo, más
dos capítulos a manera de apéndice: «Do lado que foi aberto ao Señor» y «Da
compañía que o Senhor faz a todos os atribulados». Los cincuenta trabajos se
dividen en dos partes. La primera consta de veinticinco capítulos y «trata dos
trabalhos que Cristo Nosso Senhor passou desde a hora que foi concebido até
o dia de sua sacratíssima Paixão»; mientras que la segunda «resume os trabalhos
da Paixão do Senhor em outros vinte e cinco» (I, 35). Ahora bien, a lo largo del
libro encontramos otras materias más heterogéneas: desde glosas de oraciones y
salmos17, a unas reglas para vivir cristianamente entre toda clase de personas18.
La encarnación y la humanidad de Cristo es el centro de su doctrina
espiritual, por ello su base son los evangelios, a los que recurre constantemente.
De ahí arranca la contemplación de los misterios de la vida de Cristo, pero
siempre desde la perspectiva vivencial. Como es natural, especial atención dedica
a contemplar la pasión, crucifixión y muerte del Señor, en línea con la corriente
espiritual que venía de la Baja Edad Media19, y que culmina precisamente en el
siglo XVI20.
Con un estilo que, en algunos momentos nos puede recordar la vigorosa
pluma de Fr. Luis de Granada21, sin duda su fuente principal son los evangelios,
leídos y meditados con intensa piedad desde sus primeros años de vida religiosa.
Tal vez se sirviera de la Vita Christi de Ludolfo de Sajonia («el Cartujano»)22;
asimismo habría que afinar la posible influencia de otras obras medievales muy
difundidas en aquellos tiempos, como los Ejercicios sobre la vida y pasión de
nos, Porto, CIUHE, 2005, 22-27. Cf. Melquiades Andrés, Historia de la mística de la Edad de Oro en España
y América, Madrid, BAC, 1994, 67.
17
Glosa del padrenuestro y del avemaría (Trabalhos, I, 57-58); o del salmo 23 (II, 202-203).
18
Trabalhos, I, 302-304. En aquel tiempo proliferaban en la literatura espiritual las listas o avisos, como modo
pedagógico de ofrecer consejos prácticos: desde los escritos por Montoya a los avisos pseudo-teresianos,
pasando por las Reglas de Juan de Ávila, las de Tomás de Villanueva o las de Alonso de Orozco. Sería muy
interesante establecer una comparación sistemática entre los diferentes textos.
19
Cf. Daniel de Pablo Maroto, Espiritualidad de la Baja Edad Media, Madrid, Ed. de Espiritualidad, 2000,
434-437.
20
Véase José Adriano de Carvalho, Evolução na evocação de Cristo sofrente na Península Ibérica (1538-1630), in Homenaje a Elías Serra Ràfols, La Laguna, Universidad de la Laguna, 1970, II, 45-70. Los autores
aquí comentados son Bernardino de Laredo, Juan de Ávila, Luis de Granada, Teresa de Ávila, Diego de
Estella, Juan de los Ángeles, Rodrigo de Deus, Alonso Cabrera, Luis de la Puente, Luis de la Palma y Diogo
Monteiro. Cf. Robert Ricard, El tema de Jesús crucificado en la obra de algunos escritores españoles de
los siglos XVI y XVII, in Estudios de literatura religiosa española, Madrid, Gredos, 1964, 227-245; Juan
Esquerda Bifet, Introducción a la doctrina de san Juan de Ávila, Madrid, BAC, 2000, 183-197.
21
Véase, por ejemplo, la «Contemplación de la Pasión del Señor» del dominico granadino, en su célebre
Libro de oración [1554], ed. de Teodoro H. Martín, Madrid, BAC, 1999, 207-300; cf. Carlos López-Fe,
El lenguaje afectivo en las «Meditaciones de la Pasión», de fray Luis de Granada, in Fray Luis de Granada.
Su obra y su tiempo, Granada, Universidad de Granada, 1993, I, 207-230.
22
Puede verse la reciente reedición realizada en la colección Monumenta Historica Societatis Iesu – Nova
series, Madrid – Roma, Universidad P. Comillas – Institutum Historicum S. I., 2010. Cf. Rogelio García
Mateo, El misterio de la vida de Cristo en los «Ejercicios» ignacianos y en el «Vita Christi» Cartujano.
Antología de textos, Madrid, BAC, 2002.
86
EJERCICIOS Y PENITENCIA EN LA OBRA DE TOMÉ DE JESUS
Jesucristo del Pseudo-Taulero o las Meditaciones de la vida de Cristo del PseudoBuenaventura. Este tipo de literatura culminará, ya en el siglo XVII, con las
obras de Luis de la Puente y Luis de la Palma.
Insertos en esta larga tradición de contemplación de la Pasión de Cristo23,
nuestra percepción actual podría achacar cierto dolorismo a los Trabajos en la
apelación continua a la sensibilidad del lector24:
«Olha, alma, a crueldade com que pegam no Senhor, e o mandam
estender sobre a Cruz, e a mansidão com que a tudo obedece! Como tomam
a medida para os buracos, e o pregam sem nenhuma piedade pelas partes
mais sensitivas, que são os nervos, com duríssimos e grossos cravos de ferro;
e se podes, sente a grandeza daquelas imensas dores; e se não sabes sentir,
deseja-o, e pede ao Senhor que to conceda, porque padeças no coração o
que ele com tanto amor padeceu em seu sacratíssimo corpo. Abrandai,
suavíssimo Jesus, a dureza deste coração» (II, 255).
Ahora bien, además de la advertencia de no caer en juicios anacrónicos,
debemos tener presente la prioridad concedida al amor sobre el sufrimiento.
Es decir, al mirar el dolor, se quiere subrayar el amor que hay detrás25. Para el
autor, la auténtica vida espiritual es la que enseña Cristo desde la Cruz: «Porque
crucificado consagrou a mortificação do desordenado amor de toda a coisa
abaixo de Deus; a total entrega a sua divina vontade [...]. Amar padecendo
e padecer amando» (II, 284). En la misma línea encontramos una especie de
himno al amor verdadero que Fr. Tomé sitúa tras la presentación de Jesús en el
templo:
«Ensinai-me, Senhor, a lei deste amor. Não se força o amor com medo
de penas, mas se é puro e verdadeiro, acha-vos, Deus meu, tamanho, tão
merecedor de tudo, que todo deseja de se desfazer em vos servir. Acha as
leis poucas e as obrigações delas pequenas, porque o amor a tudo obriga, e
nada deixa fora, porque tudo acha pouco e nada, para a divina grandeza que
ama» (I, 186).
Cf. Mário Martins, A filiação espiritual de Frei Tomé de Jesus, in Brotéria, 42 (Lisboa 1946), 666-672.
Un poco al modo de la película La Pasión (2004), dirigida por Mel Gibson. Véanse, en todo caso las atinadas
reflexiones de M.ª Clara Luccheti Bingemer, La Pasión según Mel Gibson: Una lectura en confrontación con
la Tercera Semana de los Ejercicios, in Manresa, 76 (Madrid 2004), 289-298.
25
Cf. António Camões Gouveia, Dor e Amor em Frei Tomé de Jesus, in Estudos em homenagem a João
Francisco Marques, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2001, II, 45-64.
23
24
87
Eduardo Javier Alonso Romo
2. Los Trabalhos de Jesus como método de ejercicios
Los Trabalhos de Jesus son una obra de carácter eminentemente ascético y
“ascesis” significa precisamente ‘ejercicio’. Ahora bien, hay algunos elementos que
acercan este libro más concretamente al género de los ejercicios espirituales – en
cuanto método pedagógico –. Para aclarar este punto vamos a confrontarlo con
un libro concreto: los Ejercicios de san Ignacio de Loyola, como el título más
representativo de una larga tradición textual26.
De hecho es bastante esclarecedor anotar algunas analogías entre la obra
escrita por Tomé de Jesús y los Ejercicios espirituales ignacianos27. En este sentido
el profesor José Adriano de Carvalho, tras mencionar algunas posibles influencias,
subraya las afinidades del libro de Fr. Tomé con los Ejercicios espirituales de san
Ignacio: el contemplar cada «trabajo» de Jesús como actual y realmente presente,
la idea de la necesidad de ejercitarse para ser instrumentos de la voluntad de Dios,
y especialmente cierta metodología de ejercicios28. Asimismo, es significativo el
hecho de que buena parte de las traducciones de su obra a otras lenguas haya sido
realizada por jesuitas29.
No tenemos ninguna noticia de que Fr. Tomé realizara la experiencia de los
ejercicios ignacianos, pero es posible que los realizara en alguna de sus modalidades
y, en todo caso, pudo llegarle su influencia a través de su maestro, Luis de Montoya,
buen amigo de san Ignacio y de la Compañía. Debemos destacar también que el
agustino lisboeta estuvo bastante relacionado con el dominico Fr. Luis de Granada
– otro buen amigo de los ignacianos –30. Por otra parte, hay que contar sobre todo
con las fuentes comunes y con una semejante atmósfera espiritual.
Vale la pena recordar aquí la definición ignaciana de los «ejercicios»:
Citamos los Ejercicios espirituales de san Ignacio con las siglas EE, seguidas de la numeración
correspondiente según la división interna del libro. Seguimos la edición preparada por Cándido de Dalmases,
2ª ed., Santander, Sal Terrae, 1990.
27
Sobre el género de los ejercicios puede verse Maria Lucília Gonçalves Pires, Para uma leitura intertextual
de «Exercícios Espirituais» do Padre Manuel Bernardes, Lisboa, INIC, 1980, 17-45; los autores referidos
son san Buenaventura, Santa Gertrudis, el Pseudo-Taulero, Tomás de Kempis, García de Cisneros, Nicolás
Esquio, san Ignacio, Tomás de Villacastín y Antonio de Molina. Cf. “Exercises Spirituels”, en Dictionnaire
de Spiritualité, IV/II, 1902-1933.
28
J. A. de Carvalho, Tomé de Jesus, art. cit., 357. También José Augusto Mourão contempla la obra de Fr. Tomé
como pedagogía de ejercicios: Sujeito, Paixão e Discurso, ed. cit., 171-180 especialmente. Por otro lado,
nótese que también Ignacio hablaba de trabajos en el sentido de molestias y sufrimientos de Cristo; así en
EE, n.º 116, 1-2: «Considerar lo que hacen, así como es el caminar y trabajar, para que el Señor sea nacido en
suma pobreza y, a cabo de tantos trabajos de hambre, de sed, de calor y de frío, de injurias y afrentas, para
morir en cruz; y todo esto por mí»; también EE, n.º 206
29
Cf. F. Leite de Faria, Difusão extraordinária do livro de Frei Tomé de Jesus, art. cit., 181-185.
30
Cf. M.ª Idalina Resina Rodrigues, Fray Luis de Granada y la literatura de espiritualidad en Portugal
(1554-1632), Madrid, UPSA-FUE, 1988, 887-893; José Augusto Mourão, Frei Luís de Granada e Frei Tomé
de Jesus: a hipótese intertextual, in Fray Luis de Granada, su obra y su tiempo, Granada, Univ. de Granada,
1993, II, 321-332.
26
88
EJERCICIOS Y PENITENCIA EN LA OBRA DE TOMÉ DE JESUS
«Por este nombre, ejercicios espirituales, se entiende todo modo de
examinar la conciencia, de meditar, de contemplar, de orar vocal y mental,
y de otras espirituales operaciones [...]. Todo modo de preparar y disponer
el ánima para quitar de sí todas las afecciones desordenadas y, después de
quitadas, para buscar y hallar la voluntad divina en la disposición de su vida
para la salud del ánima»31.
Pues bien, Fr. Tomé afirma que «todo género de exercícios santos e espirituais
se ordenam muito principalmente a fazer do homem um vivo instrumento sem
resistência da vontade de Deus em tudo» (I, 40)32.
La obra de Fr. Tomé serviría para realizar una especie de ejercicios espirituales
en la vida ordinaria: adaptaciones en el espíritu de la «anotación 19»33.
Corresponderían especialmente a la tercera semana34 y a la contemplación de
los misterios de la vida de Cristo (curiosamente un total de 51 escenas)35 de los
Ejercicios ignacianos. Los de frei Tomé serían unos ejercicios escritos-predicados,
o mejor, una predicación para ser leída, donde abundan los verbos y expresiones
apelativas para persuadir y mover. En este sentido, podríamos hablar de los
Trabalhos como parénesis espiritual36.
En cualquier caso, estamos ante «um texto auto-implicativo, de natureza
figurativa, que vive da alteridade e da presumível interlocução»37. Ahora bien, el
autor propone al lector varios niveles de cooperación textual, distinguiendo entre los
que lean la obra «só para aproveitar o tempo» y los que deseen realizar los ejercicios.
Para éstos es muy conveniente tener un director (I, 36). De hecho, para asegurar el
aprovechamiento espiritual de cualquiera, sería deseable ser guiado por un director
experimentado. Tras comentar la importancia de la figura del maestro de novicios,
señala: «Mas, porque não podem todos ser Religiosos, nem achar mestre a que se
cometam [...], sírvam-se para o modo de proceder em seus exercícios, da lição de
livros (se os acharem) que ponham em prática o exercício» (I, 48).
EE, n.º 1, 2-4.
En otros lugares Fr. Tomé utiliza esta expresión no aludiendo a su libro: «procurar com sacramentos e
espirituais exercícios» (I, 264).
33
Cf. EE, n.º 19, 1: «Al que estuviere embarazado en cosas públicas o negocios convenientes...» Por otra
parte, en el libro del agustino la composición de lugar viene integrada dentro de cada contemplación, lo que
en principio exige menos esfuerzo de la mente.
34
Recordemos que el objetivo de la tercera semana es sentir «dolor con Cristo doloroso, quebranto con Cristo
quebrantado, lágrimas, pena interna de tanta pena que Cristo pasó por mí» (EE, n.º 203). Cf. Peter-Hans
Kolvenbach, La Pasión según San Ignacio, in Decir... al «Indecible», Bilbao – Santander, Mensajero – Sal
Terrae, 1999, 91-100.
35
EE, n.º 261-312.
36
En relación con esto está también una estilística de la repetición, donde la reiteración viene expresada por
series acumulativas y casi machaconas; y, juntamente, una tendencia hacia lo superlativo y lo patético.
37
J. A. Mourão, Sujeito, Paixão e Discurso, ed. cit., 184. Aquí vale la pena recordar el análisis de Roland
Barthes sobre los Ejercicios ignacianos como texto múltiple: Sade, Fourier, Loyola, Paris, Seuil, 1971, 47-48.
31
32
89
Eduardo Javier Alonso Romo
A priori, se echaría en falta algo correspondiente a la cuarta semana, en torno
a la Resurrección, a manera de contrapunto de los «trabajos». No obstante, ésta
aparece anunciada en la «Despedida» de Jesús con que acaba el último de los
trabajos, rebosante de afectividad:
«Ide-vos, Senhor meu, a vosso Eterno Padre, que vos chama, vencei
com vossa morte a mesma morte, fazei já que daqui por diante seja doce
e saborosa, pois há-de ser cabo de nossas saudades, e nos há-de servir de
passamento para vos ir, amigo de minha alma, ver, e estar convosco para
sempre [...]. E não tardeis em tornar como prometestes. Encurtai o prazo
destes grandes três dias e noites [...]. Olhai, Senhor, a pena de que fica esta
alma ferida, e a esperança, que me deixais de vos ver em mim ressuscitado,
glorioso, imortal, formoso, suave, amoroso, perpétuo e único companheiro»
(II, 364).
Para este apartado de los Trabalhos como ejercicios conviene atender sobre
todo a la extensa doctrina que antepone el autor sobre «os frutos da consideração
dos trabalhos de Jesus»38. El esquema de cada «trabajo» es descrito por el propio
autor, ofreciendo una adaptación al momento espiritual en que se encuentre el
lector-ejercitante:
«Primeira, a história do trabalho do Senhor com alguma doutrina, que
sirva de lição com que a alma se vá recolhendo para entrar no exercício.
Depois, ponho o exercício na forma em que se pode fazer, enquanto não
chega a influência divina, porque quando ela se sente, é necessário ouvir
só ao Senhor e calar por então tudo o outro em si. Todos os exercícios têm
três pontos principais: humiliação do próprio conhecimento; entrega e
oferecimento de si com resignação nas mãos de Deus; e desejos da imitação
de Cristo» (I, 48).
Continua nuestro autor con un «Modo que há-de ter na hora do exercício»,
que de algún modo correspondería a las «adiciones ignacianas», es decir,
conductas y actitudes que disponen para hacer mejor los ejercicios. La primera
de estas ayudas – con resonancias agustinianas – es comenzar con un acto
detenido en que se tome conciencia de la presencia de Dios: «Chegada a hora
do exercício, lembre-se que tem a Deus trino e uno presente, ou dentro em seu
coração muito mais íntimo que seu interior [...]. Cuide e lembre-se dos mistérios
em que se exercitar, não como passados, senão como que se acha presente a eles
38
90
Trabalhos, I, 37-45.
EJERCICIOS Y PENITENCIA EN LA OBRA DE TOMÉ DE JESUS
(I, 55-56)»39. La clave es actualizar los misterios contemplados, «como si presente
me hallase» que diría Ignacio de Loyola40, aunque ya el Pseudo-Buenaventura
había insistido en contemplar «occulis cordis» en las Meditationes vitae Christi41.
Asimismo Montoya subrayaba también: «Es menester que, contemplando estos
sagrados misterios, así pensemos y hablemos, como si delante nuestros ojos
tuviésemos presentes a Jesucristo y a su bendita madre»42.
Continúa Fr. Tomé de Jesús, ofreciendo las siguientes pautas concretas:
«Entrando no exercício, recolhidos os sentidos interiores e exteriores
com a devida reverência, ao Senhor, que tem presente, faça o sinal da
Cruz e reze um Padre-nosso ao mesmo Senhor e uma Ave-Maria [...]; com
sentimento, indo-lhe o coração pelas palavras, levantando afectos e fervor.
Porque o que se exercita, há-de trabalhar por não perder tempo nenhum na
hora do exercício (I, 56)»43.
A continuación el lector-ejercitante ha de leer despacio y con atención uno
de los trabajos del Señor y la doctrina que en él hallare: «E se na lição se achar
movido, vá-se após o movimento que Deus lhe dá» (I, 58).
Se trataría de unos ejercicios para la reforma de vida44, no propiamente para la
elección de estado o vocación. Por ello, ofrece un conjunto de doce avisos, «assim
para mudança de vida, como para proceder neles». En el primer aviso recomienda
la práctica e las virtudes:
«Trabalhe por conhecer em si a que defeitos é mais inclinado, para se
armar contra eles e suas petições hão de ser contra eles muito contínuas e
pelas virtudes contrárias a seus vícios. Principalmente há-de pedir a Deus
sempre humildade e amor» (I, 49)45.
Especialmente sensato y pegado a la realidad es el segundo aviso – que
él remite a la autoridad de san Bernardo, pero que nos recuerda lo que poco
después escribirá san Francisco de Sales –:
Cf. EE, n.º 239, 1: «considerando a dónde voy y a qué»; cf. n.º 131 y 206.
Ejercicios espirituales, 114, 2.
41
«Se debe considerar uno como presente a todas y cada una de las cosas que sucedieron acerca de la cruz
del Señor, de la Pasión y de la crucifixión, y obrar en esto con afecto, diligencia, amor y perseverancia»; en
Obras de San Buenaventura. II, Madrid, BAC, 1946, 764-765.
42
L. de Montoya, Meditación de la pasión [1534], reeditada dentro de las Obras de los que aman a Dios,
Lisboa, João da Barreira, 1565:, f. 3v [ff. 1r-46v].
43
Cf. EE, n.º 75.
44
Cf. EE, n.º 189.
45
Cf. EE, n.º 24.
39
40
91
Eduardo Javier Alonso Romo
«Trabalhe por saber muito bem as obrigações de seu estado, e cumprir
com elas muito inteiramente e entender que isso é o que Deus dele quer. E
sobre este fundamento faça todos seus exercícios sem cortar pelas obrigações
do estado, tendo por certo o que diz S. Bernardo, que não contenta a Deus
tudo quanto lhe ofereceis, deixando aquilo que por obrigação lhe deveis.»
(I, 49)
Más adelante eleva el nivel de exigencia y recomienda, en la misma línea
del magis ignaciano: «busque sempre o mais perfeito, segundo a calidade de
seu estado; e coteje seu desejo com o que Cristo Nosso Senhor faria naquele
caso» (I, 50). Para el aprovechamiento interior es fundamental seguir un plan
de vida: «Trabalhe por ter vida ordenada e ocupada: porque a natureza regrada
e ordenada cria menos malícia e conhece-se melhor e acha o demónio menos
entrada para tentar» (I, 50).
Importante, asimismo, es el aviso sexto, que invita a una resignación positiva
y confiada en Dios, aunque sea «arrastrándose»:
«Tome da mão de Deus tudo o que na vida lhe suceder de gosto ou de
desgosto, e tudo quanto no mundo suceder de mal ou bem, e por tudo louve
sempre ao Senhor. E ainda que veja levantar em sua natureza sentimentos
contrários a este propósito e que por força e com força o levam a tristeza,
impaciência, alvoroço, ou qualquer outra alteração da humanidade, não
deixe de se tornar a Deus, ainda que seja como a rasto.» (I, 51)46
Siempre podrían encontrarse otras correspondencias textuales más o menos
directas47. Sin embargo, es evidente que en este caso – en comparación con los
Ejercicios ignacianos – el contenido viene marcado por las etapas de la vida de
Jesús, que no se prestan tanto a sistematizaciones o al ritmo progresivo más
adaptado al ejercitante. Y sobre todo, debemos recordar que – a diferencia de
la obra de Fr. Tomé – los Ejercicios ignacianos no son un libro de lectura, sino
más bien unas «fichas de trabajo» que el director ha de acomodar al ejercitante.
Cf. EE, n.º 237.
P. ej.: «Trabalhe sempre por buscar razões para defender os próximos» (I, 422); recuerda el «Prosupuesto»
ignaciano: «Todo buen cristiano ha de estar más pronto a salvar la proposición del prójimo que a condenarla»
(EE, n.º 22, 2).
46
47
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EJERCICIOS Y PENITENCIA EN LA OBRA DE TOMÉ DE JESUS
3. Sobre la tentación y el pecado
Por otra parte, se espera de los ejercicios un efecto terapéutico para las
enfermedades espirituales y una purificación interior48. En este sentido José
Augusto Mourão subraya «as invocações que Tomé de Jesus constantemente
faz às figuras do ‘médico’ e do ‘remediador’ da alma»49. Así se dirige a Jesús:
«Ó Médico de minhas misérias diviníssimo, esforçai minha fraqueza, para
quebrantar estas más inclinações» (I, 277).
En la obra hay una continua llamada a la conversión y la primera invitación
es la de conocer la propia miseria, lo cual supone una actitud básica de humildad.
Así Fr. Tomé comienza su obra advirtiendo los engaños de los que no siguen el
orden de las cosas espirituales, de modo que, «cuidando que o que sentem,
é o que dos santos lêen e ouvem, edificam telhados sem paredes e casa sem
alicerce, e com qualquer tentação caem e são enganados» (I, 38). El remedio
es no olvidar nunca que la clave de la vida espiritual está constituida por el
binomio mortificación y amor.
Para este apartado interesa mirar el trabajo XVI: «Da tentação ao Senhor
no deserto», donde se trata sobre todo de tentaciones «de segunda semana»
(siguiendo con la terminología ignaciana): pues el demonio suele «buscar
sempre para tentar ocasiões e conjunções e aparências de bem, com que faça
parecer virtude e necessidade o mal que comete» (I, 335). Continúa diciendo:
«Mas as almas que por seus pecados perderam o medo a seus vícios e gostam
deles, impropriamente se diz que são tentadas. Porque têm já dado ao Demónio
tanto senhorio em si, que não tem com eles batalha» (I, 335-336).
Por una parte, el enemigo es maestro en el arte de adaptarse: «trabalha por
conhecer a inclinação de cada um, boa ou má. E acomoda-se com fingidas
branduras» (I, 339). Por la otra, la dialéctica de la libertad humana está
radicalmente herida por la concupiscencia: «Não são menos vergonhosas e
para sentir as baixas e fracas justificações com que nos contentamos, para nos
havermos por isentos de grandes culpas, que elas mesmas». Y por ello: «Quão
leve parece no tempo do gosto da culpa, todo o mal que o homem aceita por
fazer sua vontade» (II, 215-216).
Para enfrentarse a las tentaciones ofrece dos consejos. El primero, «tenha
medo de toda a coisa a que se sentir muito inclinado e afeiçoado, ainda que pareça
boa» (I, 51-52)50. El segundo, «que não dê entrada voluntariamente a nenhum
pensamento de tentação, que o possa perturbar; mas logo no princípio resista,
Cf. Fernando Rivas Rebaque, Terapia de las enfermedades espirituales en los Padres de la Iglesia, Madrid,
San Pablo, 2008.
J. A. Mourão, Sujeito, Paixão e Discurso, ed. cit., 183.
50
Esto recuerda las «afecciones desordenadas», en relación con las cuales dice san Ignacio que el ejercitante
«debe afectarse al contrario»: EE, n.º 16, 4.
48
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Eduardo Javier Alonso Romo
com se encomendar, e oferecer ao Senhor [...]; se a tentação for importuna, dê
conta dela a algum servo de Deus [...]. E, sobretudo trabalhe por tirar toda a
ocasião de tentação» (I, 52). Más aún, Fr. Tomé afirma que el enemigo «menos
se desvela em que não seja a tentação conhecida, que em procurar a vitória» (I,
339). Se trataría de una formulación de la máxima «tentación dicha, tentación
vencida»51.
Más adelante, insiste en el valor de los defectos y faltas pequeñas: «Não
é ordinariamente o pecado muito costumado, ser desacompanhado doutros
tão maus ou piores, que dele nascem e a que abre porta e caminho [...]. Ao
menos nas religiões (onde se tem mais por ofício a reformação da alma) há
disto grandíssimas experiências, que não começam a perder sua observância por
graves devassidões, senão por leves relaxações» (I, 447-448).
Fr. Tomé termina estos avisos con dos notas: «nunca Deus dá trabalho nem
tentação, senão por medida, tanto quanto cada um pode com sua graça vencer
e aproveitar» (I, 54)52. La otra nota es «que se lembre, que tem a Deus presente
em todo o lugar e renove esta lembrança muito a miúdo, para que em todos os
negócios da vida com reverência e temor viva diante dos olhos do Senhor, que o
vê» (I, 55).
El tema del pecado se presenta como una ofensa a Dios, en duro contraste
con el amor de Cristo manifestado en sus sufrimientos. De ahí la invitación
constante a meditar en éstos y especialmente a contemplar la pasión. Por ello
llora su inconstancia y reincidencias con lamentos que parecen un eco de san
Agustín: «Ó miserável alma pecadora e mofina, que uma vez recebe a luz e torna
a cegar, e recebe o fogo do amor e torna a esfriar, recebe o perdão e torna a pecar
[...]. Tornou como porco ao lodo e como cão ao arrevesado» (I, 181).
El cuerpo es visto como enemigo y tirano desde cierto dualismo antropológico,
al que no será ajena la tradición agustiniana53. Lo mismo cabría decir de cierto
pesimismo al tratar del pecado y de las contradicciones del hombre o de los
dramáticos movimientos del corazón:
«O meu corpo e minha carne em mim é o maior e mais prejudicial
inimigo que tenho, em tudo me é contrário, a todo mal me inclina [...].
Está, Deus meu, este amor próprio dentro dos tutanos e entranhas deste
terreno homem, e quando cuido que me vejo e conheço, cotejando-me
Cf. EE, n.º 326.
Cf. EE, n.º 320.
Cf. también santa Teresa: «Este cuerpo tiene una falta, que mientras más le regalan, más necesidades
descubre [...]. Y creed, hijas, que en comenzando a vencer estos corpezuelos no nos cansan tanto»; Camino
de perfección, 11, 2 y 4. Utilizamos las Obras completas de santa Teresa de Jesús, ed. de Tomás de la Cruz,
Burgos, Ed. Monte Carmelo, 1984. Numeramos capítulo y párrafos según la división usual.
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EJERCICIOS Y PENITENCIA EN LA OBRA DE TOMÉ DE JESUS
convosco me acho dele mais preso. Comigo anda, comigo cresce, comigo
acompanha, em tudo se me mistura» (I, 122).
Un antídoto clásico para luchar contra las tentaciones ha sido siempre el
recuerdo de los sufrimientos de Jesús y, especialmente, de su pasión y su muerte.
Para Fr. Tomé, como para el autor de la Imitatio Christi, toda la vida de Jesús no
fue otra cosa que trabajos, esto es, cruz y martirio54. No hay que olvidar que la
lucha no sólo es una dinámica irrenunciable, sino que también es permanente,
puesto que las tendencias quedan siempre en el interior. Por ello, la vida cristiana
es guerra y martirio continuos55. De hecho, el hombre abandonado a sus propias
fuerzas se ve del todo impotente para la lucha, pues se siente como leproso56.
Ahora bien, es fundamental la guarda de los sentidos mediante una auténtica
reeducación y disciplina. Tomé insiste en ejercitar el dominio de los sentidos,
como puertas de la distracción y de las tentaciones: «Outras asperezas há mais
seguras e necessárias. Enfrear os sentidos, a língua, o ver, o ouvir, o conversar, a
ociosidade, a ira, as ocasiões de pecados, a própria vontade, o parecer próprio, o
apetite das coisas, a condição própria [...], e outras a este modo. As quais todas
se exercitam sem excesso, que não seja muito leve de emendar» (I, 269).
Se hace necesaria una reapropiación del propio cuerpo por medio de la
educación ascética y una cuidadosa vigilancia. El autor llega a pedir auxilio
contra su propia carne:
«Convertei a vosso serviço todos os distraídos sentidos e membros deste
inimigo corpo [...]. Que posso eu contra tal inimigo sem vosso esforço?
Deste-mo por companheiro, obrigaste-me a o manter e castigar [...]. Pregai,
Senhor, na vossa cruz minhas carnes com vosso temor; e desses vossos
trabalhos me dai a discrição, vontade e forças com que vós quereis que eu
o trate. Afastai e cerrai com vosso temor meus olhos [...]. Ponde guarda,
Senhor, e freio à minha língua» (I, 276-277).
Podemos decir, por tanto, que de los tres clásicos enemigos del alma (el
mundo, el demonio y la carne), frei Tomé presta especial atención al último.
Otras veces, sin embargo, le echa la culpa al demonio: «Não dorme este leão
infernal em me procurar males e perdas; todo mal me comete, em todo bem se
mistura, desde que nasci até hoje a toda coisa boa se atravessa, em me enganar
De imitatione Christi, lib. 2º, cap. XII, 7.
Cf. De agone christiano; en Obras de S. Agustín, XII-BAC, 476-525. Ver también De civitate Dei, lib. XIV,
c. 28; en Obras de S. Agustín, XVI-XVII-BAC, 985-986.
56
Trabalhos, I, 349.
54
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Eduardo Javier Alonso Romo
se desvela, e em buscar manhas e ardis para me vencer. Quando durmo, entre
sonhos me inquieta, e em acordando, já está alerta para não perder ponto [...].
Ora se me faz anjo de luz, ora se reveste em vossos dons, ora se transfigura
em aparências de virtude, ora toma a cor de minhas inclinações» (I, 352)57.
Y luego hay que contar con el mundo, injusto y seductor: «Este é o mundo,
servido, buscado, venerado e pelo qual, ordinariamente os homens de perdem,
o qual quanto mais velho vai sendo, maiores calos vai fazendo nesta sua má
condição, de perseguir e aborrecer os bons, e as virtudes, e justificar as vaidades,
e consagrar os vícios» (II, 158).
Entre los pecados capitales Tomé concede especial atención a la soberbia,
vista como el principal de todos ellos, aspecto éste en que sigue una larga
tradición. Desde la conciencia de que el hombre es fácilmente engañado por
su propio orgullo, pide por boca del pecador: «Quebrantai, Senhor, em minha
soberba. Porque presumo de mim e me tenho em muito [...]. Meu parecer
próprio cega-se, ora com afeição, ora com a mágoa, ora com a indignação, ora
com o apetite da vaidade, ora com a inveja, ora com o interesse e com outras
muitas inclinações, que nascem deste miserável e terreno homem» (I, 235).
4. Penitencia interior y penitencias exteriores
Ciertamente, la penitencia es una forma de ascesis y de ejercicio. Ahora
bien, tanto en el siglo XVI como en la actualidad, el término «penitencia» se
entiende en varios sentidos. Así, por ejemplo, el Diccionario de la Real Academia
Española ofrece ocho acepciones para esta polisémica palabra, entre las que
ahora destacamos dos (la primera, y la quinta):
1. f. Dolor y arrepentimiento que se tiene de una mala acción, o
sentimiento de haber ejecutado algo que no se quisiera haber hecho.
5. f. Acto de mortificación interior o exterior.
Por otro lado, aunque los tratadistas clásicos se esfuerzan por diferenciarlos58,
existe una gran proximidad semántica entre los conceptos de «penitencia» (en
alguna de sus acepciones) y «mortificación». Así, el verbo «mortificar» en su segunda
acepción y con uso pronominal es definido en el mismo Diccionario como: «Domar
las pasiones castigando el cuerpo y refrenando la voluntad». Y luego están otros
términos análogos como abnegación, sacrificio, renuncia o vencimiento propio59.
Cf. EE, n.º 332-334.
Cf. A. Tanquerey, Compendio de Teología Ascética y Mística, Paris, Desclée, 1930, 464-465 (definición de
penitencia) y 494-497 (concepto de mortificación).
59
Por otra parte estaría el sacramento de la penitencia, del que trataremos más adelante, siquiera brevemente.
Este sacramento se proyecta en la vida del creyente acentuando su carácter penitencial y de abnegación con
57
58
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EJERCICIOS Y PENITENCIA EN LA OBRA DE TOMÉ DE JESUS
Por su parte, nuestro autor define la mortificación como «uma total entrega
e geral renunciação da pessoa, e de todas suas coisas interiores, exteriores e
celestiais em Deus» (I, 40). Esta mortificación exige una batalla continua entre
la carne y el espíritu. Ante Cristo crucificado exclama:
«A obra maior, e a vós Senhor mais aceita, é amar, e o em que se mais
mostra é em padecer até morrer [...]. Não é mais santo quem tem mais
fervor, nem é mais justo quem é mais consolado; nem vos é mais aceite
quem está de vós com gostos visitado, se não está de todo crucificado. O
atribulado, perseguido, desamparado, crucificado de trabalhos de fora, e
cruzes e desamparos de dentro, calado sofrido, perseverando por amor, este
é o vosso amado» (II, 258).
En fin, Tomé comparte con otros autores del momento el convencimiento
de que la contemplación de sus sufrimientos de Jesús puede llevar al deseo de
compartir ese dolor, desde una amorosa compasión, de modo que los amigos
de Dios «mais trabalhos desejam passar na vida por amor deste Señor» (I,
41)60. De este modo, se avanza hacia una «penitencia activa». Se trata de la
paradoja y el escándalo de abrazar la cruz, pues el amor, «se muito dá, também
muito crucifica» (I, 41). Es una especie de redamatio o retorno de amor, como
forma de reparación del amor ofendido61. Es «la locura de la cruz», en que la
contemplación de Cristo como varón de dolores, llena el alma de compasión y
le lleva incluso al deseo de sufrir con Él.
Ahora bien, como buen hijo de san Agustín62, Fr. Tomé privilegia la
mortificación interior y la lucha de la voluntad ayudada por la gracia, pues
conoce que la verdad del hombre se juega en su intimidad; más aún, las
penitencias exteriores son sospechosas de ilusión, si no van acompañadas de
el sentido de «satisfacción» por los pecados.
60
Véase, p. ej., Tomás Álvarez, Cruz, in Diccionario de Santa Teresa, Burgos, Ed. Monte Carmelo, 2002,
189-194. En EE, n.º 197 encontramos: «Considerar cómo todo esto padece por mis pecados, etc.; y qué
debo yo hacer y padecer por Él». O también el célebre coloquio delante de Cristo crucificado: «lo que he
hecho por Cristo, lo que hago por Cristo, lo que debo hacer por Cristo» (EE, n.º 53, 2). Cf. Stefan Kiechle,
Kreuzesnachfolge. Eine theologisch-anthopologische Studie zur ignatianischen Spiritualität, Würzburg,
Echter, 1996.
61
Véase el reciente libro dirigido por Nurya Martínez-Gayol, Retorno de amor. Teología, historia y espiritualidad de la reparación, Salamanca, Eds. Sígueme, 2008. Destacamos especialmente a nuestro propósito
dos capítulos del mismo: N. Martínez-Gayol, Prehistoria de la espiritualidad reparadora. Patrística y Edad
Media, 123-179; y M.ª Jesús Fernández Cordero, Historia de la espiritualidad reparadora. Edad Moderna
y Contemporánea, 181-260.
62
San Agustín, Sermo 156, 9; en Obras de S. Agustín, XXIII-BAC, 470-471. En otro lugar, san Agustín dictamina: «En esto consiste el combate cristiano: en mortificar con el espíritu las obras de la carne», Sermón 335,
J, 2; en Obras de S. Agustín, XXV-BAC, 742.
97
Eduardo Javier Alonso Romo
una actitud de abnegación de la voluntad63. Así en el «Trabalho XII: Aspereza
da vida» encontramos que: «A principal parte da virtude da penitencia, que é
interior dor, e sentimento dos pecados cometidos contra Deus, e ódio deles, que
é obrigatória a todos os pecadores, nunca pode ter extremo nem excesso» (I,
264). En otro lugar indica que la clave está en la entrega de la voluntad propia:
«Muitos géneros de aspereza de vida há. Jejuns, vigílias, cilícios,
disciplinas, durezas de vestido e cama; e outras a este modo, as quais, às
vezes são necessárias, e às vezes obrigatórias, às vezes perigosas. Os que as
exercitam, saibam que são as menores neste género de virtude. E que se
tiram as forças evidentemente para cumprir as obrigações da lei de Deus
e do estado, ou se são feitas com parecer próprio voluntário sem sujeição
aos Padres espirituais, e a servos de Deus, que nisso podem dar conselho,
são mais repreensíveis que louváveis. Porque desta maneira exercitadas,
como têm excesso de vontade própria, acontece que por mais admiráveis no
exterior, geram soberba e mortificação pouca» (I, 269)64.
De este modo, por ejemplo, relativiza la práctica del ayuno, si no va
acompañada de auténtica sobriedad de vida y, sobre todo, «com mortificação
dos vícios e exercício de interiores virtudes» (I, 329). Diríamos también que
Tomé privilegia la mortificación pasiva frente a las mortificaciones activas, por
aquello que decía santo Tomás de que resistir es más difícil que atacar65. No
obstante, también es preciso adelantarse, reprimiendo la sensualidad y domando
el cuerpo a través de la penitencia. Por ello afirma que la verdadera imitación de
Cristo es la de quienes:
«não esperam ver-se nas tentações, pecados e perigos, para depois fazerem
penitência: mas atalham com a mortificação de seus corpos a malícia que
neles pelo pecado de Adão, e que nascemos, reina, que se não levante contra
a lei de Deus, e a alma [...]. Privam-se de coisas lícitas, para que gema o
corpo pelo que lhe é devido, e se contente quando disso lhe for dado o
necessário, para que assim se descuide de pedir outras coisas não lícitas e
más» (II, 173).
Para ver el caso ignaciano, léase el precioso artículo de José García de Castro, «El lento camino de la
lúcida entrega (Itinerario personal de Ignacio de Loyola hacia la abnegación)», Manresa, 73 (2001), 333-355.
En este sentido, vale la pena recordar la famosa carta de san Ignacio a los estudiantes de Coimbra: Ignatii
Epistolae. I, Madrid, MHSI, 1903, 507.
64
Santa Teresa dirá: «No guardamos unas cosas muy bajas de la Regla – como el silencio, que no nos ha de
hacer mal – [...], y queremos inventar penitencias de nuestra cabeza»; Camino de perfección, 10, 6.
65
Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, 2-2, q.123, a.6
63
98
EJERCICIOS Y PENITENCIA EN LA OBRA DE TOMÉ DE JESUS
Fr. Tomé sabe que en cuestiones de penitencias externas o corporales no es
posible dar una norma fija y universal para todos: «Em caso de dúvida, é mais
seguro em coisas pender mais à parte da aspereza, que da relaxação» (I, 267).
Extractamos sus consejos al respecto:
«I. Cuidado de governar a vida por necessidade, e não por apetite, e
trabalhar por conhecer as verdadeiras necessidades da natureza, ou do estado.
II. Viver com cuidado de conhecer bem as inclinações más do corpo, e
com mais medo e receio usar das cosas a que ele é mais inclinado.
III. Ter olho ao aproveitamento espiritual da alma, para cuidar sempre
que faz menos do que pode.
IV. Examinada bem, como temos dito, a qualidade dos vícios em que
mais cai, ou a que mais é inclinado, conforme a isso usar do género de
aspereza que é mais própria para emenda e freio deles» (I, 267-268).
En cualquier caso, siempre son necesarias moderación y prudencia, para no
dejarse llevar por fervores indiscretos o inoportunos deseos de emulación:
«Aviso aqui a todos de uma geral tentação de todos os cristãos, que lêem
ou ouvem as vidas dos santos grandes penitentes, e que com isso se movem
a algum desejo de se salvar. Estes pela maior parte pasmam daqueles grandes
extremos, aos quais se entendem de si que nunca hão-de chegar, e com isto
dizem, que como se hão-de salvar, estando tão longe daquilo? É género de
tentação com que o Demónio arreiga mais o descuido de emendar a vida.
Pelo qual devem saber que não é lícito querer imitar os santos naqueles
grandes extremos» (I, 270-271)66.
El pecador pide, por boca del autor, ayuda para caminar por un itinerario de
penitencia que le purifique de sus pecados, terminando con una frase de sabor
agustiniano67: «Dai-me, Senhor, que ame toda a criatura que me der algum trabalho,
pois é instrumento de ser minha culpa castigada. Dai-me que toda a tribulação me
seja saborosa, para por ela vos satisfazer por meus pecados [...]. Dai-me que tanto
ame a penitência e a busque, como amei a culpa [...]. Aqui queimai, aqui cortai,
aqui açotai, aqui não perdoeis nada, para que para sempre me perdoeis» (I, 278).
Recuérdense los deseos emuladores de Íñigo de Loyola tras su conversión: Autobiografía, n.º 7.
«Hic ure, hic seca ut in aeternum parcas»; se trata de una exclamación atribuida desde antiguo a san
Agustín, pero que no aparece escrita en sus obras conservadas.
66
67
99
Eduardo Javier Alonso Romo
En algunos momentos María Magdalena es presentada como modelo de
penitente: «Na hora que a Madalena pecadora vos chorou a esses pés, e os
abraçou, logo ficou com título de amadora, logo em vossa casa teve a melhor
parte, logo subiu a ungir vossa cabeça» (I, 278)68.
En otros momentos aparece un Fr. Tomé crítico con los religiosos faltos de
espíritu ascético de obediencia y de pobreza69; por eso encontramos diversos
avisos dirigidos especialmente a los consagrados70. De cualquier modo, la
penitencia ha de ser un elemento fundamental a lo largo de la vida de todo
cristiano, siempre necesitada de purificación: «Porque a maior parte dela é
povoada de culpas e defeitos, tanto havemos mister para chorar o mal cometido,
e limpar o que nos impede a entrada do céu, como para com boas obras merecêlo» (I, 382)71.
En otro orden de cosas, Fr. Tomé piensa que la penitencia supone una cierta
madurez: «A experiência ensina que na idade de mancebos, até com os anos
e discurso das coisas quebrarem, pouquíssimos são os verdadeiros penitentes;
porque são muito contados os que deveras aborrecem suas inclinações más e
culpas» (I, 264-265).
5. La ascesis de la oración
Siguiendo en la línea de la penitencia interior, hay un aspecto – en plena consonancia
con la metodología de ejercicios – que requiere particular atención y es la praxis oracional
como modo de penitencia. Es decir, que no sólo la ascesis y el ejercicio de las virtudes
ayudan a la oración, sino que ésta en sí misma es una práctica penitencial.
Así, al contemplar la flagelación del Señor, afirmará con rotundidad: «É a
oração coisa que o corpo pior sofre, e a troco dela tomaria antes açoites. Porque
na mental oração, os sentidos, a vaidade de seus pensamentos (que é a coisa
em que mais se desenfada) e suas inclinações estão aferrolhadas; e da oração sai
a alma com mais cuidado sobre ele» (II, 174). De este modo la mortificación
interior complementa la exterior domesticando la imaginación, que ha de
ponerse al servicio de la memoria de Cristo. Más pormenorizado había sido en
otro capítulo anterior al tratar de la mortificación interior:
Ver también Trabalhos, I, 63 y 411. Sobre la poesía portuguesa de los siglos XVI-XVIII, véase Luís de Sá
F ardilha, Maria Madalena: lágrimas, amor e culpa, in Via Spiritus, 2 (1995), 7-46. Recuérdese aquí
La conversión de la Magdalena del también agustino Pedro Malón de Echaide, libro escrito hacia 1580 y, por
tanto, estrictamente coetáneo de los Trabalhos de Jesus. Cf. Jorge Aladro Font, Pedro Malón de Echaide
y La conversión de la Magdalena (Vida y obra de un predicador), Pamplona, Gobierno de Navarra, 1998.
69
Cf. D. Brass, Some Erasmian Influences in the Work of Frei Thomé de Jesus, in Aufzätze zur portugieschen
Kulturgeschichte, 13 (Münster 1974-1975), 92-116.
70
P. ej.: Trabalhos, I, 229-231, 250-251, etc.
71
Sobre el tema de las lágrimas, véase especialmente el «Trabalho V: Lágrimas de Deus nascido por nossos
pecados» (I, 124-138). Sobre este motivo en la lírica religiosa: Isabel Morujão, As lágrimas do Menino Jesus:
entre a doutrina e a poesia, in Via Spiritus, 2 (1995), 131-167.
68
100
EJERCICIOS Y PENITENCIA EN LA OBRA DE TOMÉ DE JESUS
«Outra aspereza da vida soberana é a continuação do recolhimento
interior e contínua oração [...]; para ela se devem poupar as forças corporais.
Averiguado é por todos os Santos e experimentados, que a contínua oração
é a mais rigorosa e áspera penitência que se dá ao corpo. Tanto, que aquele
grande servo de Deus Frei Luís de Montóia, que me criou, dava por remédios
a seus súbditos para fazer facilmente e sem trabalho todas as obras de virtude
e todas as obras da religião, que quando o corpo ou a vontade recusasse
cumprir algumas delas, lhe desse por partido que havia de estar em oração
todo o tempo que havia de gastar naquela obra; porque sente tanto o freio da
oração, que pelo escusar, aceitará todo outro trabalho» (I, 269-270).
Esto es, la práctica oracional puede resultar en sí misma ardua y difícil.
Y la razón de ello es que exige una total atención: «na oração cativam-lhe
os pensamentos, que é a coisa em que a natureza mais se desenfada e alarga
tomando-lhe residência de seus apetites e desordens, prendem-lhe a vontade
que se não afeiçoe ao que deseja» (I, 270)72.
Sin embargo, la oración tiene la gran ventaja de que puede ser hecha por
todos, independientemente de sus circunstancias particulares: «Prouvesse a
Deus que quisessem todos os amigos de fazer penitência, seguir esta; porque
tirariam todos os proveitos que desejam. Seguramente aconselho a todos os que,
por obrigação de estado, ou achaques de fraqueza natural, não podem com
outras corporais asperezas, que se dêem ao exercício da oração» (I, 270).
A continuación habla de algo análogo a las mociones de desolación y
consolación – por seguir con la terminología ignaciana –. Fr. Tomé sabe, como
Ignacio, que el enemigo trabaja para que acortemos la oración73: «Quando se
achar duro e seco no exercício, leve o exercício ao cabo o melhor que puder,
porque não sairá sem fruto, ainda que o não sinta». Otras veces, en cambio,
el camino se recorre con facilidad: «Mas quando sentir que lhe dá o Senhor
brandura de coração, e que tem disposição para se deter nas coisas, não passe
do que o inflamar e enternecer, enquanto lhe dura aquela faísca [...]: porque
assoprando-a, pode vir a ser viva brasa, e crescer em chama de amor, com que
faça Deus na alma a mudança desejada e a obra que se pretende» (I, 54)74.
Es sugestivo comparar estas palabras con la de Teresa de Jesús: Moradas primeras, 1, 6-7. Desde la
perspectiva ignaciana véase Pascual Cebollada, Venir al medio. La Adición décima y la ascesis en los
Ejercicios espirituales [82-90], in Manresa, 69 (1997), 137: «La oración contiene una dosis de lucha, de
incomunicación, de aburrimiento, de dispersión y distracción, de sensación de pérdida de tiempo... que invita
a abandonarla. Sin embargo, la permanencia en esas situaciones, con la confianza previa en que ese es un
medio capital de encuentro con Dios, es algo que requiere una ascesis».
73
En ese caso el ejercitante ha de sobrepasar ligeramente el tiempo marcado, «porque no sólo se avece a
resistir al adversario, más aun a derrocalle»; EE, n.º 13, 2.
74
EE, n.º 76, 3: «en el punto en el cual hallare lo que quiero, ahí me reposaré, sin tener ansia de pasar adelante
72
101
Eduardo Javier Alonso Romo
El ideal sería vivir en oración continua, integrada en la vida, a modo del
«contemplativo en la acción»75:
«Trabalhe muitas vezes entre dia por se oferecer ao Senhor: louvar seu
santo nome e sua glória; chamá-lo em sua ajuda; dizer-lhe palavras brandas
[...], para ir sustentando sempre, e lançando lenha no fogo [...]; porque
muitas vezes lhe acontecerá dar-lhe Deus, estando descuidado, o que lhe
negou na hora da oração, para que veja que tudo se deve a ele e não a nosso
trabalho e com isto acende nosso amor, humilhando nossa soberba» (I, 54)76.
De diversas maneras insiste Fr. Tomé en la misma idea: «Quem com as
penitências dos santos se não atreve, um conselho singularíssimo tem para
castigo e freio de seu corpo, que é obrigá-lo a se ocupar em coisas que limpam
a alma a chegam a Deus. Que são o uso dos sacramentos e a oração interior.
Porque com isto não vive tanto sem freio e conta; e na oração o fazem estar preso
e cativo, e ser sua malícia conhecida» (II, 173-174).
6. Examen y confesión
Frei Tomé de Jesus tiene una perspectiva globalizante, que pretende abarcar
toda la existencia. Así lo demuestra nuestro agustino en el «Modo que se há-de
ter no exercício do exame cuotidiano», dividido en trece puntos y que de alguna
manera resume gran parte de lo que venimos diciendo; por lo cual nos permitimos
transcribirlo íntegramente77:
«1. Ter contínua guarda em seu coração, para não deixar por vontade fazer
nele detença, pensamento, desejo, ou coisa que possa ofender os olhos de
Deus.
2. Trazer muitas vezes à sua memória que tem a Deus presente, para o
louvar e adorar com amor e reverência.
3. Não deixe passar nenhum defeito interior, nem exterior, sem logo
secretamente com dor e pesar dele, pedir humildemente perdão ao Senhor.
4. Não se determine em nenhuma coisa que a alma deseje, conselho ou
negócio, sem primeiro se encomendar a Nosso Senhor, para acertar com sua
vontade, conforme ao tempo que para isso tiver.78
hasta que me satisfaga».
75
Feliz expresión del P. Jerónimo Nadal para caracterizar el modo ignaciano de encontrar a Dios en todas
las cosas.
76
Cf. EE, n.º 322, 4: «... y porque en cosa ajena no pongamos nido».
77
Este «exame cuotidiano» recuerda lo que Ignacio escribió para el «Examen general de conciencia»: EE,
n.º 32-42.
78
Este punto está cerca de la “sólita oración preparatoria” de Ignacio: “que todas mis intenciones, acciones y
102
EJERCICIOS Y PENITENCIA EN LA OBRA DE TOMÉ DE JESUS
5. Enfrear os sentidos, principalmente a língua, para que se não espalhe
por coisas, de que a razão não saiba dar conta.
6. Fazer aos próximos de qualquer qualidade que sejam, tudo quanto bem
puder e alargar nisto a vontade de maneira que antes falte a possibilidade, que
ela.
7. Não sofrer no coração por muito pequeno espaço rancor, ou desgosto
do próximo, sem pelejar contra ele encomendando-o ao Senhor.
8. Não sofrer em sua alma pecado sem ter dele particular dor, e buscarlhe remédio de confissão, principalmente se for mortal, o mais depressa que
puder.
9. Ter conta com os particulares exercícios e devoções e inspirações, que
Nosso Senhor lhe der, para não deixar de os cumprir por tibieza. E acudir com
levantamento da sua alma ao Senhor, quando e em qualquer parte que sentir,
que Deus por interior movimento tira por ela.
10. Ter conta com as coisas a que é mais inclinado, assim más como boas,
para trazer sempre o freio na mão do temor de Deus, para fugir de toda a
ocasião de mal e pecado, e ordenar-se em tudo, como cumpre a glória de Deus
e bem da sua alma.
11. Não ser atado a seu próprio parecer e vontade, mas folgar de fazer
antes a vontade alheia que a sua, no que não for ofensa de Nosso Senhor.
12. Não presumir de si, nem fazer as coisas de seu estado por estima de
sua pessoa, mas pelo que cumpre à honra e glória de Deus; nem desestimar
ninguém por culpas que nele veja; e todo o bem que em si vir, humilhar-se
como de alheio; nem se antepor a nenhuma pessoa, por imperfeita que seja.
13. Dar graças a Deus por tudo o que suceder no mundo, e tomar tudo
como da sua mão e muito mais as coisas particulares que a ele lhe tocam» (I,
61-62).
Se trata, como vemos, de mantener una actitud alerta y vigilante en todos
los ámbitos, desde los más externos, al corazón como centro integrador de la
persona. Esta atención a las faltas cotidianas que se intentan superar debe ser
una actitud constante para poder reorientar las inclinaciones pecaminosas. Así,
después de tratar de la importancia de la guarda de los sentidos corporales, subraya
la necesidad de examinarse sobre ello: «Aqui o que se exercita, se acuse a Deus das
particulares coisas corporais, em que vè que mais relaxadamente vive, e que mais
o corpo lhe pede, e que são mais ocasião de culpas, ou demasias que distraem e
cativam o coração» (I, 277).
Nuestro autor señala que, además de los propósitos generales, el lectorejercitante debe tener «outros particulares, conforme ao estado que tem, uns
operaciones sean puramente ordenadas en servicio y alabanza de su divina majestad” (EE, nº 46).
103
Eduardo Javier Alonso Romo
para cumprir bem com suas obrigações, outros para reformar em si os defeitos
quotidianos, outros para cortar ocasiões que sucederem, que podem impedir o
aproveitamento da alma, outros para ajudar a alma mais aproveitar, outros para
regimento de seus negócios e ocupações ordinárias», etc. (I, 62)79.
Podríamos decir que, junto a actitudes generales, hay aquí una ascética del
detalle, que busca la abnegación de las pequeñas cosas de cada día. Esto nos
recuerda a lo que el mismo Tomé de Jesús había escrito en la Vida de su maestro,
Luis de Montoya: «E geralmente em todas as cousas piquenas e grandes buscava
meios para se conservar a memoria de Deos continua e com que impedissem
a distraição e exercitarem a mortificação e rigor da observancia da orde»80. En
este sentido de la atención a las cosas pequeñas daba ejemplo el propio Luis de
Montoya en los propósitos que hacía para sí mismo, y que son transcritos por
Tomé de Jesus81. Y en otro lugar, hablando también de la formación que Montoya
– modelo de hombre mortificado, según el testimonio ignaciano82 – daba a sus
religiosos, comenta:
«Quisera aqui por a instrução com que começava a insinar os noviços;
mas, por evitar prolixidade, sumariamente digo que toda he fundada em
muita renunciação do amor <desordenado> das criaturas e muita onião do
amor de Deos, em avisos de trocar cada cousa da vida por outras de Deos, em
ter por herança o ceo, em muita occupação do tempo, em muita mortificação
dos sentidos, em muita limpeza d’alma e muito cuidado della, muito zelo da
observancia da hordem, e da aspereza e rigor no tratamento do corpo» 83.
Digamos ahora unas palabras sobre el sacramento de la penitencia.
Comencemos señalando que en la primera mitad del siglo XVI asistimos a una
cierta crisis de este sacramento84. Después vendrá el Concilio de Trento con sus
clarificaciones doctrinales85.
Cf. EE, n.º 24-26.
Tomé de Jesus, Vida do padre frey Luis de Montoya, ff. 47r-47v. Manuscrito conservado en Arquivo Distrital de Braga, con la signatura Ms. 91. En la actualidad estamos preparando una edición del mismo para la
revista Archivo Agustiniano (Valladolid) en dos partes: vols. 93 (2009) y 94 (2010).
81
T. de Jesus, Vida do padre frey Luis de Montoya, ff. 9r-14v y 24r-27v, especialmente.
82
Así lo trasmite Luís Gonçalves da Câmara: «Quando el Padre [Ignacio] habla de la oración, siempre parece
que presupone las pasiones muy domadas y mortificadas [...]; hablando de un buen religioso que él conoce,
y diciendo yo que era de mucha oración, el Padre mudó y dixo: “Es hombre de mucha mortificación”»
La identidad del buen religioso es precisada después por el mismo autor en su glosa en portugués: «Este
era o Padre frey Luis de Montoya, reformador e provincial da ordem de S. Agostinho neste reyno, o qual,
yndo a Roma a hum seu capitolo geral, conversou particularmente N. P. Ignacio, e se confessou com elle
geralmente»; Fontes Narrativi-I, Roma, MHSI, 1943, 644 y 646.
83
T. de Jesus, Vida do padre frey Luis de Montoya, f. 20r.
84
Cf. P. Gervais, «Pénitence et liberté chrétienne. Luther et Ignace de Loyola», Nouvelle Revue Théologique,
129 (Bruxelles 2007), 529-544.
85
El Concilio de Trento dedicó doce artículos de la sesión XIV (1551) a definir la penitencia como sacramento.
Cf. P. Adnès, Pénitence, in Dictionnaire e Spiritualité, XII/1, 943-1010; Maria de Lurdes Correia Fernandes,
Do manual de confessores ao guia de penitentes : orientações e caminhos da confissão no Portugal
79
80
104
EJERCICIOS Y PENITENCIA EN LA OBRA DE TOMÉ DE JESUS
A lo largo de la obra no son muchas las alusiones directas a la confesión
sacramental. Al principio del itinerario nuestro agustino recomienda: «Trabalhe
o que se quer aproveitar, por mudar a vida, satisfazendo a Deus pelo passado,
com pura e geral confissão” (I, 49). Y ello por una razón muy simple, como dirá
después: «importa muito para que a alma quando se chegar à oração, não ache em
sua consciência remordimento de coisa fresca que lhe cause pejo» (I, 53).
El agustino trata de la contrición en el contexto de la praxis penitencial y
señala: «Não deve ninguém de cuidar de si que tem alcançado esta virtude, se
o conhecimento do pecado não tira a ocasião dele; ou se a confissão dele não
é inteira; ou se a faz a confessores, de que se cuida que os não entenderão; ou
que terão mais brandura [...]; muito menos se o arrependimento e confissão não
enfreia a soltura e inclinação aos pecados» (I, 264).
Asimismo, encontramos varios consejos dirigidos a los confesores, postulando
una actitud de benevolencia hacia el penitente que ayude en la labor de «obstetricia
espiritual» – por utilizar la expresión de Jean Delumeau86: «É este grande exemplo
para curar chagas alheias entender primeiro a quanto chega o entendimento do
pecador, e sofrer-lhe as imperfeições que ele não entende em si, nem está capaz de
entender o mal delas. E provocá-lo a lhe parecer bem a virtude com brandura, e
não mostrar fastio, nem asco de suas fraquezas» (I, 366). Y ello es especialmente
importante cuando se trata de preparar a bien morir: «Daqui aprendam todos os que
confessam, ou acompanham mortos, a não os espantar com medo dos pecados; mas
esforçá-los a se descuidar deles, depois de contritos e confessados» (II, 360).
7. Algunas reflexiones finales
Por un lado, la obra de Tomé de Jesus se trata de un itinerario ascético de
configuración personal con Cristo doliente, dentro de la orientación cristológica de
la escuela agustiniana de espiritualidad87. Por otra parte, diríamos que estamos ante
una terapia espiritual escrita desde la experiencia actual de la cruz. Cristo paciente
aparece como ejemplo supremo, cuya entrega ha de suscitar una respuesta paralela
en el orante. Él es el estímulo de todas las virtudes, y en particular de la paciencia,
la mansedumbre, la obediencia, la pobreza, la humildad y el silencio. El otro polo
del pecado y la penitencia humanas sería la misericordia divina representada en el
corazón de Jesús. De hecho, frei Tomé es un precursor de esta devoción en Portugal88.
pós-Trento, in Via Spiritus, 2 (1995), 47-65.
86
Jean Delumeau, La confesión y el perdón [1990], Madrid, Alianza, 1992, 25-36. Véase, del mismo autor,
Le Péche et la peur, Paris, Fayard, 1983. Desde una perspectiva filosófica vale la pena leer Paul Ricoeur,
Finitud y culpabilidad, Madrid, Taurus, 1969.
87
Cf. José Luis Hervás, Entrañados en Cristo. La mística teología de fray Luis de León, Pamplona,
Universidad de Navarra, 1996.
88
Véase el primer apéndice: «Do lado que foi aberto ao Senhor» (II, 369-380).
105
Eduardo Javier Alonso Romo
En principio Tomé no nos habla de heroísmos utópicos – como tampoco
de fenómenos místicos extraordinarios –, prefiriendo quedarse en un nivel más
«realista». Según el profesor Silva Dias, la obra se sitúa sobre todo en la llamada
vía purgativa, entrando un poco en la iluminativa89.
Por otra parte, la obra representa moderación y equilibrio en tiempos de
emulación penitencial90. En este sentido podemos recordar aquí la cuestión de las
posibles conexiones de Fr. Tomé de Jesus con la reforma de los agustinos recoletos,
esto es, la cuestión de su supuesto intento de organizar una congregación de
recoletos en Portugal hacia 1565 – más de veinte años antes de la fundación de
los Agustinos Recoletos en España. Tradicionalmente se ha venido afirmando que
dicho intento fue animado por Montoya, pero que quedó frenado tras la muerte
del agustino belmonteño al no ser apoyado por el general Cristóbal de Padua,
con lo cual fracasaría dicha iniciativa91. Sin embargo, no hay ningún documento
de esos años que testimonie tal intento de reforma que, por lo demás, dejaría un
tanto comprometido el éxito de la acometida por Villafranca y Montoya92.
Ahora bien, todavía hoy – hemos de reconocer – sabemos muy poco de la
verdadera biografía de Tomé de Jesus (o de Andrade)93. Además, la obra contiene
muy pocas alusiones directas a sí mismo y a su situación de cautivo. Por ello, al no
conocer su intimidad personal, podemos suponer – pero no afirmar – que muchas
de las paginas del libro tienen un eco autobiográfico94.
José Sebastião da Silva Dias, Correntes de sentimento religioso em Portugal, Coimbra, Universidade de
Coimbra, 1960, I, 333.
Eulogio Pacho, El apogeo de la Mística Cristiana, ed. cit., 824-826. Cf. Fernando R. de la Flor, La
península metafísica, Madrid, Biblioteca Nueva, 1999, 123-155.
91
La noticia procede de A. de Meneses, «Vida de Fr. Tomé de Jesús», 7-8; así es recogida, p. ej., por Ángel
Martínez Cuesta, Historia de los Agustinos Recoletos, Madrid, Ed. Augustinus, 1995, 170. Años después
Aleixo de Meneses se mostrará interesado por los recoletos; cf. C. Alonso, Alejo de Meneses, osa, arzobispo
de Goa y de Braga (+1617), amigo de los agustinos recoletos, in Recollectio, 2 (1979), 260-273. No obstante,
los agustinos descalzos – también llamados Grilos – sólo entrarían en Portugal en 1664, con el apoyo de la
reina Luisa de Guzmán. Cf. Saturnino López, Orígenes de los agustinos descalzos en Portugal, in Archivo
Agustiniano, 51 (1961), 229-253; 52 (1962), 95-131 y 247-268; Pedro Augusto Ferreira – Ángel Martínez
casado, Agustinos Descalzos de Portugal [1907], in Recollectio, 29-30 (2006-2007), 191-271.
92
David Gutiérrez es categórico cuando afirma: «Es falso que Tomé intentase fundar en su patria la
“recolección” agustiniana. La documentación del siglo XVI ignora por completo el hecho; la portuguesa
presenta a fr. Tomé como discípulo predilecto de Montoya; y éste, en su frecuente correspondencia epistolar
con los superiores de Roma, aparece siempre fidelísimo al centro de la Orden, no introduciendo en la
provincia portuguesa otras novedades que las aprendidas en Castilla [...]. Por ello, al consignar dicha noticia,
los historiadores mejor informados se lavan las manos con un ut ferunt, como hace Herrera, Alphabetum, II,
446, o presentan contra ella serias dificultades, como hace Ossinger, 467»: en Ascéticos y místicos agustinos
de España, Portugal e Hispanoamérica, 169, nota 65.
93
Así Isabel Morujão escribe: «São escasos e pouco credíveis os dados biográficos sobre Frei Tomé de Jesus.
As referências do seu biógrafo, Frei Aleixo de Meneses [...], mais inscritas na intenção hagiográfica do que
na exigência biográfica, revelaram-se imprecisas», Tomé de Jesus (Frei), art. cit., 454.
94
Suponemos que su experiencia se reflejaría mejor en su correspondencia epistolar con superiores
y familiares. Una muestra de ello la encontramos en su carta del 27 de noviembre de 1582 editada por
Alberto Feio, Um inédito de Frei Tomé de Jesus, in Boletim da Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de
89
90
106
EJERCICIOS Y PENITENCIA EN LA OBRA DE TOMÉ DE JESUS
Reiteramos finalmente que, en líneas generales, Trabalhos de Jesus se sitúa
sobre todo en el dominio de la ascética, con una señalada vertiente moralista,
subrayando la facultad de los sufrimientos para acrisolar al hombre. Esto no
excluye la feliz sorpresa de ciertos vuelos místicos, visibles especialmente en el
lenguaje con que se dirige a Cristo95. Terminamos, pues, con estas encendidas
palabras de entrega total en el amor, tomadas del capítulo XXVII, tras comentar
la traición de Judas:
«Aceito-vos, bom Jesus, por todo meu bem. Abraço-vos por único meu
tesouro; e quero-vos por toda minha bem-aventurança; e daqui me despeço
de toda a outra coisa. A quem vós não bastais, vida da minha alma, que pode
desejar que lhe satisfaça? [...]. Vinde bom Jesus a esta alma, amemo-nos,
possuamo-nos, e conversemo-nos para sempre sem apartamento, reinai vós
em mim e eu viva sempre em vós» (II, 30)96.
Eduardo Javier Alonso Romo
Universidad de Salamanca
Abstract:
The present essay aims at approaching the classic Trabalhos de Jesus,
posthumous work of the Augustinian friar of sixteenth century Tomé de Jesus,
through a perspective of exercises of penance, inside the most extended field of
the spiritual exercises. Questions are analysed like the methodology, the prayer
practices and of spiritual discernment, the dualism between inner penitence
and exterior penitences, as well as the advices to break down the temptations,
and the uses for the examination of conscience and the confession. The author
is placed in relation with other peninsular authors of that time specially saint
Ignatius of Loyola.
Braga, 1 (Braga 1920), 133-139. Evidentemente la comparación resulta más fácil en el caso de otros autores
contemporáneos que sí cuentan con textos propiamente autobiográficos (Ignacio de Loyola, Teresa de Jesús,
etc.).
95
Por otra parte, al menos en términos cristianos, no puede haber mística sin ascética.
96
Cf. Enarraciones sobre los Salmos, 31, 5; en Obras de S. Agustín, XIX-BAC, 390-391.
107
108
Vidas e ilustrações de Santas penitentes
desnudas, no deserto e em peregrinação,
no Flos Sanctorum de 1513
Já anteriormente me referi, nesta revista, ao Flos Sanctorum em linguagem
português, editado a 15 de Março de 1513, em Lisboa, pela parceria Hermão de
Campos e Roberto Rabelo (a seguir: FSlp.Lis.1513).1 Dediquei-me então à análise
da Oração de Jesus no Horto, colocada na primeira secção desta obra, a Paixão.2
Nessa ocasião, referi também uma tradução castelhana do mesmo texto, que terá
sido publicada pouco tempo antes.3
Via Spiritus, nº 14 (2007), 66 e passim.
Sobre as origens das ilustrações desta parte do FSlp.Lis.1513 fiz uma comunicação em Braga, no IV
Congresso Internacional de Cister em Portugal e na Galiza, em 2 de Outubro de 2009. Devido ao número
limitado de páginas admitido no artigo para as Actas, não pude enviar o texto desta comunicação para
publicação.
3
Foi sobre as origens das ilustrações dessa obra em castelhano que me vi obrigado a escrever o artigo para
as Actas do referido IV Congresso Internacional de Cister em Portugal e na Galiza, pelas razões aduzidas
na nota anterior. Guarda-se na Biblioteca Britânica (Bristish Library) (abrev. BL), em Londres, um exemplar
com a tradução ilustrada da Paixão de Cristo do Monotessaron de Jean de Gerson para castelhano, cujas
estampas já tinham sido descritas, em alemão (sem reproduções, mas com as dimensões), por Martin KURZ,
no Handbuch der iberischen Bilddrucke des XV. Jahrhunderts, Leipzig, Karl W. Hiersemann, 1931, 143,
nº 295. Dez anos depois deste guia de Kurz, publicava Francisco VINDEL, em El Arte Tipográfico en España
durante el Siglo XV, Madrid, Ministerio de Asuntos Exteriores – Dirección General de Relaciones Culturales,
1945-51, 8 vols., vol. VIII: Dudosos de lugar de impresión, adiciones y correcciones a toda la obra, 335348, um facsímile deste exemplar da BL. Na altura da entrega do artigo para as Actas desse IV Congresso
Internacional..., não tinha ainda contactado com a Biblioteca Pública de Boston (Boston Public
Library) (abrev. BPL), onde se guarda outro exemplar com o mesmo texto em castelhano. Enquanto uns
catálogos atribuem o exemplar de Boston à mesma edição que o de Londres, outros há que o põem em dúvida.
Até hoje nenhum europeu que escreveu sobre o assunto viu o exemplar de Boston. Quero agradecer a Sean
P. Casey, do Rare Books & Manuscripts Department da Boston Public Library, a gentileza de me ter enviado
fotocópias de um texto da publicação More Books: the Bulletin of the Boston Public Library, 6th. Series,
vol. XVII (1942), 416-420, que começou a projectar um raio de luz sobre o caso. Consultas posteriores a
este bibliotecário e o envio da reprodução das estampas do exemplar londrino, levaram à confirmação de que
se trata de uma variante editorial do mesmo texto, com o mesmo número de xilogravuras, mas estampadas
uma só vez cada, ao contrário do que acontece no exemplar londrino, em que algumas das entalhaduras são
impressas duas ou mais vezes, como indico no texto das Actas do referido IV Congresso Internacional..., no
prelo. O exemplar da BPL acaba de ser colocado online, talvez devido às minhas consultas –<http://www.
archive.org/details/lapassiondeleter00biel>. O leitor interessado pode agora facilmente fazer o cotejo entre
as duas versões.
1
2
109
Fr. António-José de Almeida, O.P.
Desta vez, apresento três legendas incluídas na primeira parte da segunda
secção, o Flos Sanctorum propriamente dito. Esta secção está subdividida em duas
partes: a primeira, a que Félix Cabasés4 chama «Ano Cristão»; e uma segunda,
constituída pelas legendas «extravagantes».
O móbil para a abordagem da presente temática foi a tentativa de identificação
de uma figura feminina deitada seminua, existente num fragmento de pintura
mural recentemente descoberto na igreja de Nossa Senhora de Balsamão, em
Chacim, concelho de Macedo de Cavaleiros, em Trás-os-Montes (fig. 1)5, durante
as obras de restauro começadas a 14 de Abril de 2008.6
A 3ª sessão dos Encontros de Literatura Medieval, realizada no Centro de
Literatura Portuguesa da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, em 27
de Novembro de 2009, e em particular a conferência proferida por José Aragüés7,
veio ao encontro de nalgumas hipóteses que já tinha formulado.
Como no anterior artigo publicado nesta revista, conjugo duas abordagens,
uma relativa aos textos e outra, às ilustrações. Desta vez, como se trata de três
textos, a secção relativa às ilustrações será subdividida em três, seguindo cada uma
delas o texto da respectiva legenda.
O texto do Flos Sanctorum de 1513 será comparado com o de duas das edições
sobreviventes em castelhano, precisamente as que, no estado actual das edições
ecdóticas, foram publicadas antes e depois da versão portuguesa. Refiro-me à
Leyenda de los santos da British Library (ca. 1499-1500) (a seguir: Ls.Bur.1499)8
e à Leyenda de los santos (que vulgarmente Flos Sanctorum llaman) de Loyola (ca.
1520-21) (a seguir: Ls.Sev.1520-21). Assim poder-se-ão apreciar os acrescentos
introduzidos. Segui a divisão dos textos estabelecida por Félix Cabasés, traduzindo,
de forma livre, os títulos-resumo por ele elaborados. Para mais fácil leitura,
coloquei em itálico as secções de texto em discurso directo. Também coloquei em
negrito as frases que quis destacar. Sublinhei, as notas inercalares explicativas de
Cabasés, dentro de parêntesis rectos [ ].
4
Félix Juan CABASÉS S.J., na edição de: B. IACOPO da VARRAZZE O.P., Leyenda de los Santos (que
vulgarmente Flos Santorum llaman), Madrid, Universidad Pontificia de Comillas – Institutum Historicum
Societatis Iesu (MHSI, series nova, 3), 2007 (ISBN 978-84-8468-225-7).
5
Agradeço a Basileu Pires, sacerdote da Congregação dos Marianos, o envio de fotografias das pinturas murais,
tanto de quando foram descobertas (da sua autoria) como depois da intervenção de consolidação, limpeza
e conservação de Joaquim Inácio Caetano (da autoria deste último). Agradeço também a Joaquim Caetano
a permissão em publicar aqui duas dessas fotos da sua autoria, assim como informações complementares,
enviadas por correio electrónico (email).
6
Notícia aparecida na página http://www.brigantia.pt, de 10 de Julho de 2008: <http://www.brigantia.pt/
index.php?option=com_content&task=view&id=631&Itemid=2>
7
José ARAGÜÉS ALDAZ (Universidad de Zaragoza), La Leyenda de los Santos: Perspectivas de estudio.
8
A tradução castelhana do relato da Paixão do Monotessaron de Jean de Gerson acima referida foi colocada
antes deste texto, formando com ele um só volume.
110
Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação,
no Flos Sanctorum de 1513
No que diz respeito às ilustrações, debruçar-me-ei de modo particular sobre
as estampas semelhantes às que ilustram o FSlp.Lis.1513, procurando estabelecer
a sua possível origem noutras xilogravuras estampadas fora da Península Ibérica,
mais precisamente em Lião do Ródano (Lyon sur Rhône), em França. Mas também
procurarei na produção xilográfica alemã possíveis influências sobre a família de
imagens lioneso-ibérica, e em especial sobre as ilustrações com traços sui generis
do FSlp.Lis.1513.
Dentro de cada um dos três partados em que dividi este artigo, veremos as
imagens, não só as que ilustram o texto português e os castelhanos com que o
cotejei, mas todo um conjunto delas que foram estampadas na Península Ibérica.
Citaremos ainda exemplos germânicos e lioneses relaciondas com estas, quer no
que diz respeito à proveniência de matrizes ou modelos, quer ainda por causa
de semelhanças ou elementos que nos ajudem a comprender pormenores nelas
existentes.9
De modo particular, veremos, através tanto dos textos literários como dos
iconográficos, como a nudez pode ser sinal de penitência.
Os livros analisados são os seguintes10:
Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Leben der Heiligen, Augsburg, Günther
Zainer, 25 Outubro 1471 (Winterteil); 27 Abril 1472 (Sommerteil). (abreviatura:
LdH.Aug.1471-72)11
Esta segunda parte do presente artigo vem na sequência do apartado com o mesmo tema na 3ª parte da
minha tese de doutoramento em História da Arte: Fr. António-José de ALMEIDA, O.P., IMAGENS DE
PAPEL. «O Flos Sanctorum em linguagem português», de 1513, e as edições quinhentistas do de Fr. Diogo
do Rosário O.P. – A problemática da sua ilustração xilográfica, Porto, Universidade do Porto –Faculdade de
Letras, 2005 [ed. policopiada], 335-337 (Sta. Maria Madalena), 413-415 (Sta. Maria Egipcíaca) e 483-484
(Santos Coroados). Desenvolvo aqui a investigação que então encetei.
10
Quando exista reprodução completa das imagens estampadas, coloco em rodapé as referências aos álbuns
ou aos URLs, onde elas se podem encontrar. Vejam-se os artigos publicados por José ARAGÜÉS ALDAZ, no
que respeita às edições espanholas. Tendencias y realizaciones en el campo de la Hagiografía en España (con
algunos datos para el estudio de los legendarios hispánicos), in Actas de XVIII Congreso de la Asociación
de Archiveros de la Iglesia de España, (Orense, del 9 al 13 de septiembre e 2002), ed. Agustín HEVIA
BALLINA, Oviedo, Asociación de Archiveros de la Iglesia en España, vol. I – Memoria Eccesiae, XXIV
(2004), 441-560; Para el estudio del Flos Sanctorum Renascentista (I): la conformación de un género, in
Homenaje a Henri Guerrero. La hagiogafía entre historia y literatura en la España de la Edad Media y el
Siglo de Oro, ed. M. VITSE, Madrid, Iberoamericana, 2005, 97-147. À lista que este investigador apresenta,
acrescento 3 exemplares, devidamente referenciados. Para as edições portuguesas, veja-se a minha tese de
doutoramento em História da Arte, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto: Fr. AntónioJosé de ALMEIDA O.P., IMAGENS DE PAPEL. «O Flos Sanctorum em linguagem português», de 1513, e as
edições quinhentistas do de Fr. Diogo do Rosário O.P. – A problemática da sua ilustração xilográfica, Porto,
2005 [Texto policopiado], esp. 65-191, com descrição das imagens e sua reprodução (em formato reduzido).
Espero a oportunidade de poder publicar álbuns com as imagens elencadas.
11
Albert SCHRAMM, Der Bilderschmuck der Frühdrücke (begründet von Albert Schramm, fortgeführt von
der Kommission für den Gesamtkatalog der Wiegendrucke), Leipzig, 1920-1923 + Stuttgart, Hiersemann,
1924-1943 (a seguir, a abreviatura: Schramm), vol.2, nos. 1-128; Walter L. STRAUSS (ed. geral), The
Illustrated Bartsch, [New York], Abaris Books, <© 1979-2001> (a seguir, a abreviatura: TIB), vol.80, 62-76.
9
111
Fr. António-José de Almeida, O.P.
Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Leben der Heiligen, Ausgsburg, Johann
Bämler, 20 Março 1475 (Winterteil); 12 Agosto 1475 (Sommerteil). (abreviatura:
LdH.Aug.1475)12
Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Leben der Heiligen. Sommer – und Winterteil,
Nürnberg, Johann Sensenschmidt, 28 Julho 1475. (abreviatura: LdH.Nür.1475)13
Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Légende dorée, Lyon sur le Rosne, Nicolas
Philippe et Marc Reynaud, [1477-78]. (abreviatura: Ld.Lyo.1477-78)14
Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Leben der Heiligen. Winter- und Sommerteil,
Urach, Conrad Fyner, 12 Novembro 1481. (abreviatura: LdH.Ura.1481)15
Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Leben der Heiligen. Winter- und Sommerteil,
Reutlingen, Johann Otmar, 12 Março 1482. (abreviatura: LdH.Reu.1482)16
Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Leben der Heiligen: Sommerteil, Augsburg,
Johann Schönsperger, 2 Dezembro 1482. (abreviatura: LdH.Aug.1482)17
Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Légende dorée, Lyon, Mathieu Husz & Pierre
Hongre, 1483 [e 1484]. (abreviatura: Ld.Lyo.1483)18
Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Leben der Heiligen, Augsburg, Johann
Schönsperger, 10 Janeiro 1485 (Winterteil); 8 Junhoo 1475 (Sommerteil).
(abreviatura: LdH.Aug.1485)19
Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Leben der Heiligen, Köln, Ludwig von Renchen,
21 Julho 1485 (1. Teil); 31 Outubro 1485 (2. Teil). (abreviatura: LdH.Köl.1485)20
Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Legenda aurea sanctorum, Lyon, Mathias
Huss, 20 Julho 1486. (abreviatura: LaS.Lyo.1486)21
Schramm, vol. 3, nos. 229-354; TIB, vol.80, 258-286.
Schramm, vol.18, nos. 12-117; TIB, vol.80, 367-404.
14
<http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k111287q.image.r=voragine.langPT.f10.vignettesnaviguer>.
15
Schramm, vol. 9, nos. 63-279; TIB vol. 83, pp. 71-97; <http://inkunabeln.digitale-sammlungen.de/
Exemplar_H-16,1.html>.
16
Schramm, vol. 9, nos. 686-805 (Winterteil); TIB, vol.83, 370-391 (Winter- und Sommerteil).
17
TIB, vol.83, 464-484.
18
<http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k52514j.image.r=voragine.langPT.f5.vignettesnaviguer>.
19
TIB, vol.85, 143-165.
20
Schramm, vol. 8, nos. 544-691; TIB vol. 85, pp. 123-141.
12
13
21
112
Estampas aguareladas (<http://gallica2.bnf.fr/ark:/12148/btv1b2200010q>).
Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação,
no Flos Sanctorum de 1513
Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Heiligenleben. Sommerteil, Augsburg, Anton
Sorg, 1 Agosto 1486. (abreviatura: LdH.Aug.1486)22
Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Leben der Heiligen, Augsburg, Johann
Schönsperger, 3 Julho 1487 (Winterteil); 31 Agosto 1487 (Sommerteil).
(abreviatura: LdH.Aug.1487)23
Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Legenda aurea sanctorum, Lyon, Mathias
Huss, 20 Julho 1487. (abreviatura: LaS.Lyo.1487)24
Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Leben der Heiligen. Sommer- und Winterteil,
Lübeck, Steffen Arndes, 23 Junho 1488. (abreviatura: LdH.Lüb.1488)25
Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Heiligenleben, Augsburg, Anton Sorg, 24 Novembro
1488 (Winterteil); 4 Dezembro 1488 (Sommerteil). (abreviatura: LdH.Aug.1488)26
Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Leben der Heiligen, Nürnberg, Anton
Koberger, 5 Dezembro 1488. (abreviatura: LdH.Nür.1488)27
Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), [Flos sanctorum romançat], [Lyon, Johannes
Trechsel?, ca. 1490-94?]. (abreviatura: FsR.Lyo.1490)
Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Flos sanctorum romançat, Barcelona, Joan
Rosenbach, 1 Fevereiro 1494. (abreviatura: FsR.Bar.1494)28
Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Leben der Heiligen: Sommerteil, Augsburg,
Johann Schönsperger, 17 Julho 1494. (abreviatura: LdH.Aug.1494)29
Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Leyenda de los Santos, [Burgos, Juan de
Burgos, ca. 1497 ou 1499-1500]. – (texto). (abreviatura: Ls.Bur.1499)30
Schramm, vol. 4, nos. 2410, 2414-2515; TIB vol. 85, 305-316.
TIB, vol.86, 55-57.
24
Exemplar incompleto: <http://bibliotecadigitalhispanica.bne.es/R/AATCIKDB78614G6SFT3HHR18NJK95U3EUJVRG39B7VVIXBQGVC-06241?func=results-jump-full&set_entry=000009&set_
number=000030&base=GEN01>.
25
Schramm, vol. 11, nos. 1-222; TIB, vol. 86, 88-113.
26
Schramm, vol. 4, nos. 2516-2737; TIB vol. 86, 342-366.
27
Schramm, vol. 17, nos. 56-314; TIB, vol. 86, 153-240; <http://daten.digitale-sammlungen.de/~db/0002/
bsb00027260/images/>.
28
<http://bibliotecadigitalhispanica.bne.es/view/action/singleViewer.do?dvs=1248469475339~84
8&locale=pt&search_terms=LEGENDA%20AUREA&adjacency=N&application=DIGITOOL3&frameId=1&usePid1=true&usePid2=true>.
29
<http://daten.digitale-sammlungen.de/~db/0002/bsb00027721/images/index.html?seite=4>
30
Agradeço a Cristina Sobral o ter-me facultado fotocópias desta obra.
22
23
113
Fr. António-José de Almeida, O.P.
Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Flos sanctorum em linguagem português,
Lisboa, Hermão de Campos & Roberto Rabelo, 15 Março 1513. – texto.
(abreviatura: FSlp.Lis.1513)31
Fr. Gonzalo de OCAÑA O.S.H., Flos sanctorum, Zaragoza, Jorge Coci, 26 Abril
1516. (abreviatura: Fs.Zar.1516)
Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Leyenda de los Santos, [Sevilla, Juan de Varela,
ca. 1520-21]. – (texto). (abreviatura: Ls.Sev.1520-21)32
Fr. Pedro de la VEGA O.S.H., Flos sanctorum, Zaragoza, Jorge Coci, 25 Set. 1521
(Iª parte) - 25 Jan. 1533 (IIª parte). (abreviatura: Fs.Zar.1521-33)33
Fr. Pedro de la VEGA O.S.H., Flos sanctorum, Sevilla, Juan Cromberger, 1540.
(abreviatura: Fs.Sev.1540)34
Fr. Pedro de la VEGA O.S.H., Flos sanctorum, Zaragoza, Jorge Coci, 1541.
(abreviatura: Fs.Zar.1541)35
Fr. Pedro de la VEGA O.S.H., Flos sanctorum, Zaragoza, Bartolomé de Nágera,
1548. (abreviatura: Fs.Zar.1548)
Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Leyenda de los Santos, Toledo, Juan Ferrer,
1554. (abreviatura: Ls.Tol.1554)36
Fr. Pedro de la VEGA O.S.H., Flos sanctorum, Alcalá de Henares, Juan de Brocar,
20 Outubro 1558. (abreviatura: Fs.Alc.1558)37
<http://purl.pt/12097/4/>.
Félix Juan CABASÉS S.J., edição de: B. IACOPO da VARRAZZE O.P., Leyenda de los Santos (que
vulgarmente Flos Santorum llaman).
33
Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (abrev. BGUC): J.F.-Gabinete-4-9. Faltam os fólios iniciais,
incluindo a folha-de-rosto, e os fólios CCI e CCII. Título na base de dados: [Epistola prohemial / de fray
Pedro de la Vega...en el libro que es intitulado vida de nuestro redemptor Jesu Christo y de sus santos]. Edição
internacionalmente desconhecida, mas referida no Catálogo da Biblioteca, I - Sécs. XV-XVII, Coimbra, Liceu
Normal de D. João III, 1969, Séc. XVI, 80, nº 291. Completei os dados fornecidos por esta obra, fruto da
observação pessoal do exemplar.
34
Biblioteca Nacional de España, Madrid (abrev. BnE): R/13032 – Proveniência: «Da Companhia de Jesus
Collegio de Portalegre Livraria Publica» (indicação a tinta, ao fundo do fólio xv r., o 2º deste exemplar).
35
O exemplar da BnP, Lisboa: RES. 848 A., contém no f. 448 vº, ao fundo, a tinta, a seguinte informação de
proveniência: «Liuro da Cartuxa de Sacla cæli de... Rmo. Sr. D. Theotonio de Bragança| Arcebispo de Ebora
fundador da mesma casa lhes fes doação.»
36
Agradeço o envio das páginas desta obra relacionadas com o presente trabalho por parte de José Aragüés.
Consulta online em: <http://daten.digitale-sammlungen.de/~db/bsb00001412/images/>.
37
Reprodução da maior parte das estampas deste livro em: María Ángeles SANTOS QUER, La Ilustración en
los Libros de la Imprenta de Alcalá en el siglo XVI. Introducción y catálogo, Madrid, Fundación Universitaria
31
32
114
Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação,
no Flos Sanctorum de 1513
Fr. Pedro de la VEGA O.S.H., Flos sanctorum, Alcalá de Henares, Andrés Angulo,
1566. (abreviatura: Fs.Alc.1566)38
Fr. Diogo do ROSÁRIO O.P., História…dos Santos, Braga, António de Mariz,
1567. (abreviatura: Hs.Bra.1567)39
Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Leyenda de los Santos, Sevilla, Juan Gutiérrez,
1568. (abreviatura: Ls.Sev.1568)
Fr. Pedro de la VEGA O.S.H., Flos sanctorum, Sevilla, Juan Gutiérrez, 1568-69.
(abreviatura: Fs.Sev.1568-69)
Fr. Pedro de la VEGA O.S.H., Flos sanctorum, Sevilla, Juan Gutiérrez, 1572.
(abreviatura: Fs.Sev.1572)
Fr. Diogo do ROSÁRIO O.P., História…dos Santos, Coimbra, António de Mariz,
1577. (abreviatura: Hs.Coi.1577)
Fr. Pedro de la VEGA O.S.H., Flos sanctorum, Medina del Campo, [Francisco del
Canto], 1578. (abreviatura: Fs.Med.1578)40
Fr. Pedro de la VEGA O.S.H., Flos sanctorum, Sevilla, Fernando Díaz, 1580.
(abreviatura: Fs.Sev.1580)
Alonso de VILLEGAS, Flos Sanctorum, Iª Parte. Zaragoza, Simón de Portinariis,
1585. (abreviatura: FsVill.Zar.1585)
Fr. Diogo do ROSÁRIO O.P., História…dos Santos, Lisboa, António Ribeiro,
1585. (abreviatura: Hs.Lis.1585)
Fr. Diogo do ROSÁRIO O.P., Flos Sanctorum… Lisboa, Baltasar Ribeiro, 1590.
(abreviatura: FsRos.Lis.1590)
Española, 2003 (ISBN 84-7392-524-6), 564-573, figs. 228-300.
38
Exemplar único conservado em biblioteca privada, dado a conhecer por Marta CASTILLO BAROJA,
Estudio de los grabados «Flos sanctorum» de Pedro de la Vega (Alcalá: Andrés Angulo, 1566): un ensayo de
catalogación de contenidos iconográficos, Salamanca, Universidad de Salamanca - Facultad de Traducción
y Documentación, 1995 (Memoria de diplomatura). Reproduz todas as estampas deste livro, as quais são as
mesmas da edição anterior (1558), embora lhe faltem algumas, mercê de o referido exemplar se encontrar
truncado.
39
20 estampas deste livro foram reproduzidas em D. MANUEL II (rei de Portugal), Livros Antigos
Portugueses – 1489-1600 – da Biblioteca de Sua Majestade Fidelíssima, London, Maggs Bros, 1929-1935
(reedição anastática: Braga, APPACDM, 1995), vol. III, (Suplemento), 717-720.
40
Agradeço o envio das páginas desta obra com imagens relacionadas com o presente trabalho por parte de
José Aragüés.
115
Fr. António-José de Almeida, O.P.
1. Santas no deserto:
Já anteriormente se falou nesta revista das duas santas mulheres que se
tornaram o símbolo do eremitismo – Santa Maria Madalena e Santa Maria
Egipcíaca41. Aqui trancreverei somente o texto do Flos Sanctorum de 1513
(FSlp.Lis.1513)42 a respeito de cada uma delas, acompanhado de alguns poucos
comentários em ordem à secção dedicada à ilustração das suas legendas, que é o
objecto principal do presente artigo.
1.1. Santa Maria Egipcíaca (*ca.344 - †421)43
1.1.1. O texto:
Maria era uma meretriz de Alexandria, que se converte à porta da Basílica do
Santo Sepulcro em Jerusalém e vai para o deserto realizar a penitência dos seus
maus hábitos. O texto de Fra Iacopo da Varazze O.P. (*ca.1228 - †1298) é uma
versão muito abreviada da vida da Santa escrita por S. Sofrónio I de Jerusalém
(*ca.550/60 - †638)44.
(1.) [O abade Zózimo encontra Maria no deserto]45
«[f. 56 d]
Anta maria de egypto que era dita molher muy pecadora viueo
em o deserto quorẽta & seis ãnos & hũ abade que chamauã zozimas
[S]
41
María Isabel BARBEITO CARNEIRO, Mujeres eremitas y penitentes. Realidad y ficción, in Via spiritus
9 (2002) 185-215. esp. «II) Las dos mujeres símbolo del eremitismo», 191-199: «II.1. María Magdalena»,
191-196; «II. 2. María Egipciaca», 197-199 – <http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/3480.pdf>. Ver
também: Ana Maria [e Silva] MACHADO, A representação do pecado na hagiografia medieval: heranças
de uma espiritualidade eremítica, Coimbra: [s.n.], 2006 [Documento electrónico] (Tese de doutoramento em
Línguas e Literaturas Modernas, especialidade Literatura Portuguesa, Faculdade de Letras da Universidade
de Coimbra), 2006, Cap. V – As Vidas de Santas penitentes e o diálogo da luxúria: Mª Egipcíaca, 547562 (protagoniza o tipo da prostituta-penitente, 547) e Mª Madalena, 562-583; Carlos Alberto VEGA, El
transformismo religioso. La abnegación sexual de la mujer en la España medieval, Madrid, Pliegos, © 2008,
D.L. 2009 (ISBN 978-84-96045-62-0), esp. 24 (est.2: «Santa María Magdalena»), 51(est.3: «Santa María
Egipciaca»), 182-200: «Las Santas velludas: la dialéctica entre narrativa e iconografía».
42
Salvo no caso do terceiro texto, em que faltam as primeiras páginas este exemplar, pelo que as reconstruo,
transcrevendo o texto em castelhano que figura na Ls.Bur.1499.
43
Sobre esta Santa ver: Ana Maria e Silva MACHADO, Tradição, movência e exemplaridade na vida de
Santa Maria Egipcíaca: subsídios para o estudo da hagiografia medieval portuguesa Coimbra, [s.n.],
1988 [Texto policopiado] (Tese de mestrado em Literatura Portuguesa, apresentada à Faculdade de Letras
da Universidade de Coimbra), esp. 102-137; Cristina Maria Matias SOBRAL, Santa Maria Egipcíaca em
Alcobaça: edição crítica das versões medievais portuguesas da lenda de Maria Egipcíaca, Lisboa, [Colibri],
1991 (Tese de mestrado em Literatura Portuguesa, apresentada ao Departamento de Literaturas Românicas,
da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa).
44
Ver o texto completo, lido, no Rito Bizantino, durante o ofício do Grande Cânon de Santo André de Creta,
na quinta-feira da quarta semana da Grande Quaresma. – <http://www.pagesorthodoxes.net/saints/marieegyptienne.htm#mir >, ou <http://orthodoxie.typepad.com/files/sophrone_vie_de_ste_marie_legyptienne.
pdf>. (traduções em francês).
45
Divisão e títulos de Félix Juan CABASÉS, S.J., na edição de: B. IACOPO da VARRAZZE, O.P., Leyenda
de los Santos (que vulgarmente Flos Santorum llaman). Os títulos foram traduzidos por mim.
116
Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação,
no Flos Sanctorum de 1513
nõ podẽdo passar o rio de jordã46 foyse pera huũ grãde hermo47 a ver
se por vẽtura pode[f. 57 a, est. (77x69 mm.) (Fig.4)]ria passar por
ally: ou se acharia alguũ scõ homẽ: & vio hũa cousa negra & ãdaua
espijda & queymada da quẽtura do sol: & logo zozimas começou
d’ correr de pos ella muy aa pressa. & ella disse. zozimas porque me
persegues: perdoame porque eu nõ te posso ver sem vergõha porque sõ
molher & estou nuua mas dame ho teu manto cõ que me cubra porque
te possa veer sem vergõha. & elle ouuĩdo esto ouue medo & deulhe o
mãto48 & lãçouse a seus pees d’lla: & rogoulhe que lhe desse a sua
bẽçã & ella disse. padre tu me deues dar a tua porque es sacerdote:49 &
elle veẽdo que sabia seu nome & seu officio marauilhouse muyto:
& rogaualhe afincadamẽte [= com empenho] que o bẽzesse: & ella
disse. beẽto seja d’s que remio nossas almas. & ella alçãdo as maãos
ao çeeo & rogãdo a d’s vioa alçar huũ couado da terra & o velho50
duuidouse por vẽtura era diabo51 & fazia oraçõ & ella disse. perdoete
d’s que cuidas que soõ diabo & som malher[sic].»
(2.) [Maria começa a contar a sua vida a Zózimo: Mulher
pública que compra com o corpo a passagem para Jerusalém]
«E entõ zozimas conjuroua por d’s que disesse sua vida: & disse ella. perdoame
padre que se eu te cõtar mĩha fazẽda [= caso] espãtarteas de my & fugiras
d’ my como de serpẽte & as tuas orações se espãtariã com as minhas
palauras & cõ minhas çugidades. pero dirtey[sic] minha fazẽda porque
vejas quãto ama d’s aos pecadores. primeiramẽte eu naçi no egypto: &
auẽdo doze ãnos vimme a alexãdria. & .xvij. ãnos andey no mũdo como
molher publica & nũca foy homẽ que eno meu corpo negasse cõprindo os
deleytos [f. 57 b] maaos da carne∙ & eu estando em alexãdria vy huũs
46
Tanto na estampa do FSlp.Lis.1513 como nas da Ls.Bur.1499 ou da Ls.Sev.1520-21, como nas das outras
edições da Legenda áurea que vi, quer lionesas quer ibéricas, não se vê nenhum rio. Este aparece sim nas
estampas alemãs e suas cópias ibéricas posteriores.
47
O contraste, entre a zona de floresta densa de onde o abade Zózimo provém e a zona árida do outro lado do
rio, é bem patente nas estampas germânicas.
48
Umas imagens ilustrativas parecem referir-se ao momento do diálogo antes do monge lançar a capa à Santa.
Na verdade, a Santa, de costas voltadas para o monge, só volta a cabeça na direcção dele. Ela cobre muitas
vezes a zona púbica com uma das mãos e faz um gesto de aviso com a outra, ou tapa com esta última um dos
seios. Porém, raramente o monge traz manto, contrariando o texto literário. Habitualmente, ele enverga uma
cogula, veste coral, ou túnica com capelo.
49
Trata-se, pois, de um hieromonge, i.e monge ordenado sacerdote.
50
Contradição com a imagem, que mostra um frade novo.
51
A levitação é, pois, um sinal contraditório. Muitas estampas, entre as quais a do FSlp.Lis.1513, parece
referir-se a este momento, dado a Santa ter as mãos juntas sobre o peito, em contradição com o texto literário,
mas em consonância com as imagens da Assunção de NªSª e da Elevação de Sta. Mª Madalena, como
veremos. A atitude do monge, com as mãos abertas, nessas mesmas estampas pode interpretar-se como sinal
de espanto.
117
Fr. António-José de Almeida, O.P.
homẽs que entrauã em huũa naue pera hyr a jherusalẽ em romaria: &
rogueylhes muy afficadamẽte que me deixassem hir la. E pedindome o
marinheiro que lhe desse algũa cousa por que me leuasse na naue asi
como os outros & eu lhe disse. jrmão nõ tẽho que vos dar senõ este meu
corpo: & assi me reçeberom na naue. ca por o nauio ouuerõ meu corpo.»
(3.) [Não pode entrar para adorar a cruz e arrependese diante de uma imagem da Virgem, promentendo-lhe
abandonar o mundo]
«E quando cheguey a jheruslẽ vym aa porta da ygreja cõ os outros
pera adorar a cruz: & nõ veẽdo quẽ o fazia empuxauame & nom me
deixaua entrar dẽtro: & esto prouey tres vezes & nõ pude entrar dentro:
& os outros todos entrauã dẽtro sem embargo alguũ. E eu quãdo esto
vy começey a chorar & ferir meos pectos: & olhey & vy estar fora da
ygreja hũa ymagẽ de sctã maria: &| &[sic] começey a derogar cõ muytas
lagrimas que me guanhasse perdõ de meus pecados & que me deixasse
adorar a cruz: & prometylhe de desemparar [= abandonar] o mũdo &
que viuiria ẽ castidade.»
(4.) [Adora a cruz, compra três pães, uma voz diz-lhe que
atravesse o Jordão, fá-lo, e está ali 47 anos, primeiro tentada
durante 17 anos, e depois em paz]
«E acabada minha oraçõ leuãteyme: & foyme pera as portas da ygreja &
emtrey cõ os outros dẽtro & adorey a sctã vera cruz: & deume huũ homẽ
tres dinheiros: & comprey tres pães:52 & ouuy huũa voz que me disse se
passares a [sic] jordã seras salua: & logo passey o rio jordã53 & vymme
a este deserto onde morey quorẽta & sete ãnos54 que nũca vy homẽ do
mundo: & aquelles tres pães que trouxe comigo endureçerõ assi como
pedra: & durarõme dez & sete ãnos comẽdo d’lles pouco & pouco. &
as minhas vestiduras grãde tẽpo que som perdidas. & em os .xvij. ãnos
primeiros fuy aqui tentada da carne. mas ja grande tẽpo ha que o nõ
Os três pães serão o atributo iconográfico de Santa Maria Egipcíaca, nas suas representações icónicas. Ver,
v.g., a estátua da Santa na fachada da igreja de Saint Germain l’Auxerrois, em Paris (França): <http://www.
panoramio.com/photo/19045422>.
53
Não sem antes se deter, segundo S. Sofrónio, na igreja de S. João Baptista, erigida no local do Baptismo
do Senhor, onde a Egipcíaca reza e logo desce ao Jordão onde banha o rosto e as mãos lavando-se de seus
pecados nas suas águas santificadas pela imersão nelas do sagrado corpo do Salvador. Depois recebe a
Sagrada Comunhão na igreja do Precursor. Nesta nrrativa abreviada, salta-se esse episódio, que nos será útil
na hora de interpretar o fresco de Balsamão.
54
12+17+46/47=75 ou 76 anos tinha então a Santa. Ora, em contradição com este dado, ela ela parece sempre
como uma jovem nas imagens.
52
118
Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação,
no Flos Sanctorum de 1513
som: nẽ soffro tentaçom nenhũa: ante tomo grande alegria cõ os anjos:55
& rogote que rogues d’s por my. E zozimas quãdo esto ouuio louuou a
d’s pllo [sic] que ouuira d’sta sua serua.»
(5.) [A pedido de Maria, Zózimo ao fim de um ano leva-lhe
a comunhão. Maria pede-lhe que volte no ano seguinte]
& disse ella. rogote que a quinta feyra da çeea que venhas ca:& traze o corpo de d’s:
& vijnrey a ty & o tomarey da tua mão: ca despois que aqu vym nunca
comũguey. E zozimas tornouse a seu moesteiro. & a cabo de huũ
ãno quãdo veo a quinta feyra da çeea tomou o corpo de d’s & veo
aa ribeyra do rio: & vio da ou[f. 57 c]tra parte hũa molher fazendo
o signal da cruz. E andou a molher sobre as hondas do rio atee
que chegou ao velho. E elle quando esto vio marauilhouse muyto
& deitouse na terra & quislhe beyjar has maãos & os pees com
grãde humildade: & disse ella. olha nõ faças porque teẽs o corpo de d’s
contijgo & es sacerdote: & rogote padre que no outro ãno que queyras
tornar a visitarme: & ella comũgou logo & fez ho signal da cruz &
passou o rio como primeiro pera o hermo. E o velho tornouse a seu
moesteyro:
(6.) [Volta Zózimo e encontra-a morta. Uma mensagem
escrita indica-lhe a data da morte e que a enterre]
& veo o outro ãno a aquelle mesmo lugar. & achoua morta & começou de
chorar: & nõ ousou de ha tocar: & disse antresy: eu que farey deste
corpo. enterraloya & ey medo que lhe pese. & cuydãdo esto: vio aa
sua cabeça letras de ouro escriptas que deziã assy. zozimas enterra
ho corpo de maria. & da o poo aa terra: & roga a d’s por my que me
mandou sahir deste mũdo ho segundo dia de abril: emtõ cõheçeo ho
velho que quãdo tomou ho corpo de d’s & se tornou ao deserto que
logo se ella sayo deste mundo: & o deserto que andou zozimas em
trinta dias todo o ella ãdou em huũ:
(7.) [Um leão cava a sepultura, e Zózimo enterra-a]56
& querẽdo o velho cauar a terra pera fazer a coua nõ podia. mas
vyo huũ lyom que se vinha a elle muy mãso: & dise [sic] zozimas ao
lyõ. mãdote da parte de d’s que caues a coua pera emterrar esta molher:
que eu nõ posso cauar que som velho & nõ tenho com que. E logo o
Ponto de contacto com a vida de Maria Madalena no ermo, como veremos.
A este episódio se refere uma imagem que ilustra uma edição castelhana deste texto (Ls.Sev.1568, f. 56 d) e
em algumas edições do Flos Sanctorum de Fr. Pedro de la Vega O.S.H., como veremos adiante.
55
56
119
Fr. António-José de Almeida, O.P.
lyõ começou a cauar a coua: & quando a acabou foyse seu caminho
como cordeiro mãso. E o velho louuou o nome de d’s & tornouse
pera seu57 moesteiro.»
O texto é o mesmo nas três edições cotejadas.
1.1.2. As ilustrações:
A origem próxima da nossa ilustração (fig. 4) parece estar numa xilogravura
estampada na edição da Legenda aurea acabada de imprimir a 20 de Julho de
1486, na cidade francesa de Lião (Lyon), por Mathias Huss ou Huzs (LaS.
Lyo.1486), ilustrando a legenda 54 (ver fig. 2). Nela se vê um santo frade,
envergando um hábito semelhante ao dos Frades Menores, com o capuz sobre a
cabeça, encontrando-se com uma santa mulher nua, com as costas voltadadas para
ele, só virando a cabeça na direcção do santo homem. Este enverga uma túnica
cingida por uma corda e um capelo por cima; a ela cai-lhe comprida cabeleira
pelos ombros. Numa paisagem formada por três montículos, vê-se no do meio
uma alta árvore com três copas, separando visualmente os dois seres humanos.
Enquanto a santa tem as mãos juntas, ao jeito de oração, o santo tem--nas um
pouco afastadas, como que espantado.
A mesma entalhadura foi reestampada na Península ibérica, em Barcelona, na
edição da mesma obra na sua tradução em catalão, saída dos prelos de Joan Rosenbach,
a 1 de Fevereiro de 1494 (FsR.Bar.1494, f. CXXIIII [sic, aliás 104] a) (fig. 2).
Esta xilogravura parece-nos que terá influenciado directamente uma série delas
que surgem em outras obras e aparentadas entre si. Refiro-me à que encontramos
na edição em castelhano da mesma obra, cujo único exemplar que chegou até nós
se conserva na British Library (BL), em Londres (Ls.Bur.1499, f. 74 c) (fig.3),
mas sem dados tipográficos; à que ilustra edição em português do mesmo texto,
impressa em Lisboa em 1513 (FSlp.Lis.1513, f. 57 c) (fig. 4); e a uma que ilustra
outro texto, da autoria do monge jerónimo Fr. Pedro de la Vega, saída em Sevilha,
em 1540 (Fs.Sev.1540, f. 221 b) (fig. 5), da qual deriva a xilogravura que será
impressa nas duas primeiras edições da compliação em português organizada pelo
frade dominicano Fr. Diogo do Rosário, realizadas pelo impressor António de
Mariz (fig. 6), respectivamente em Braga em 1567 (Hs.Bra.1567, I, f. 197 d –
Sta. Mª Egipcíaca; e II, 168 c – “S. Hilarion.”) e em Coimbra em 1577 (Hs.
Coi.1577, I, f. 212 d). Ainda na movência desta família de estampas está a que
ilustra a edição da Legenda áurea em castelhano cujo único exemplar sobrevivente
se conserva na Archivo Histórico de Loyola (Ls.Sev.1420-21, f. 57v.) (fig. 7).
Dada a qualidade da xilogravura estampada em Sevilha em 1540 (Fs.Sev.1540,
57
120
“sen”, no texto – gralha clara do tipógrafo.
Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação,
no Flos Sanctorum de 1513
f. 221 b) (fig. 5), parece-me ter sido esta entalhada antes da impressa no exemplar
da BL (Ls.Bur.1499) (fig. 3). Esta edição sem dados tipográficos é atribuída pelos
especialistas à oficina burgalesa de Juan de Burgos e datável à volta de 1497 ou
1499--1500. Sabemos que Juan de Burgos tem o hábito de, no seguimento de
Fradique de Basileia, copiar as obras com êxito comercial saídas da oficina de
Paulo Hurus, sediada em Saragoça58. Ora as duas primeiras edições em castelhano
da Legenda áurea, hoje perdidas, saem com poucos anos de intervalo (em 1490 e
1492) dos prelos saragoçanos de Paulo Hurus59, o que indica a sua aceitação por
parte do público e a sua procura.60 Parece-me que o jogo de matrizes a que pertencia
a citada estampa impressa na oficina de Juan Cromberger em 1540 em Sevilha
(Fs.Sev.1540) (fig. 5) deve ter sido entalhado na oficina de Paulo Hurus, tendo
deixado esta oficina saragoçana por volta de 1497, data em que uma xilogravura
pertencente seguramente a este jogo é impressa na oficina sevilhana de Meinado
Ungut e Estanislao Polono. Refiro-me à entalhadura que representava S. Francisco,
modificada para representar S. Boaventura, e que foi estampada na folha-de-rosto
do Solilóquio de S. Boaventura, acabada de imprimir nesses prelos sevilhanos a
30 de Novembro desse ano de 1497.61 De todas as formas, o referido jogo de
matrizes, com imagens referentes aos Santos, não é estampado em Saragoça, na
oficina que foi de Paulo Hurus e então dirigida por Jorge Coci, quando em 1516
sai da referida oficina saragoçana uma nova colectânea de textos hagiográficos,
da autoria do monge jerónimo Fr. Gonzalo de Ocaña (Fs.Zar.1516), ilustrada,
na IIª parte da obra, pela estampagem de xilogravuras com a largura da página,
provenientes da oficina de Anton Koberger, em Augsburgo (LdH.Aug.1488) 62.
58
Emilia COLOMER AMAT, El Flos Sanctorum de Loyola y las distintas ediciones de la Leyenda de los
Santos. Contribución al Catálogo de Juan de Varela de Salamanca, in Analecta Sacra Tarraconensia. Revista
de Ciències Historicoeclesiàstiques, vol. 72 (1999), 109-142, esp. 122.
59
José ARAGÜÉS ALDAZ, Trayectoria editorial de la Leyenda de los Santos: primeros apuntes, in
Homenaje a Claude Chauchadis, en prensa/no prelo, [1.4.] Las primeras ediciones zaragozanas, no texto e
nas notas 10-14. Confirmando a intuição de Cristina SOBRAL, Eremitas orientais na Leyenda de los Santos
(Burgos, 1499) e no Flos Sanctorum (Lisboa, 1513), in Actas del XII Congreso de la Asociación Hispánica de
Literatura Medieval (Cáceres, 25-29 de Setembro de 2007) no prelo, 1-2 e 10, os documentos descobertos por
Miguel Ángel PALLARÉS, na obra e páginas citadas na nota a seguir. Agradeço a José Aragüés e a Cristina
Sobral o terem-me facultado os textos acima citados, antes da sua publicação.
60
Mais precisamente, a 1ª ed. é vendida a 8 de Janeiro de 1490, sendo a 2ª ed. encomendada a 7 de Março
de 1492 – Miguel Ángel PALLARÉS JIMÉNEZ, La imprenta de los incunables de Zaragoza y el comercio
internacional del libro a finales del siglo XV, Zaragoza, Institución «Fernando el Católico» (C.S.I.C.), 2003
(ISBN 978-84-7820-854-8), 104-105, 114-117.
61
Talvez nessa mesma oficina sevilhana de Meinado Ungut & Estanislao Polono se tenha realizado a
modificação da xilogravura representando S. Luís de França, em ordem a ilustrar outro rei (veja-se Fr.
António-José de ALMEIDA, O.P., As imagens de Santos Dominicanos e Franciscanos impressas no Flos
Sanctorum em linguagem português, Lisboa 1513, in Actas do III Congreso Internacional El Franciscanismo
en la Península Ibérica, Ciudad Rodrigo – Guarda, 2009 (no prelo, texto já paginado), 9 e fig. 17; 12 e fig. 31.
62
Estas serão copiadas em Portugal nas ed.s de 1585 e 1590 do Santoral de Fr. Diogo do Rosário e não nas
ed.s desta obra impressas por António de Mariz, que copia Fs.Sev.1540. O que disse a respeito da tranferência
das matrizes saragoçanas para Sevilla diz somemente respeito como disse às que representam os Santos e
121
Fr. António-José de Almeida, O.P.
As estampas das xilogravuras entalhadas em Saragoça seriam, pois, copiadas
pelas entalhadas em Burgos, com menos qualidade técnica e impressas na mesma
cidade, possivelmente numa edição hipotética saída dos prelos de Fradique de
Basilea por volta de 1473 e depois na saída da oficina de Juan de Burgos à roda de
1499-1500, da qual se conserva um exemplar em Londres (Ls.Bur.1499).
A árvore que se vê ao centro das composições lioneso-ibéricas que acabámos de
analisar nada tem que ver com a árvore do paraíso, mas provém de uma redução
da floresta à frente da qual, nas mais antigas composições alemãs ilustrando o
episódio do encontro, é colocado S. Zózimo (LdH.Augsb.1471-72, S., f. 5 b;
LdH.Augsb.1475, f. 3 c; LdH.Aug.1475, fol. 11v). Na estampa lionesa da
Ld.Lyo.1477-78 (image 209 a), essa floresta é reduzida a 3 árvores, que enquadram
os dois santos personagens, uma ao meio, separando-os, e mais uma de cada lado.
Serão somente duas as árvores na xilogravura estampada na Ld.Lyo.1483 (rosto e
f. l iii a), uma separando os personagens e a outra agora só do lado da Santa. E o
número fixar-se-á em uma na LaS.Lyo.1486 (legenda 54) (ver fig. 2), aquela que
está, na minha opinião, na origem das executadas na Península ibérica analisadas
(figs. 5, 3, 4 e 6). Aliás, a árvore visualmente divisória está colocada mais atrás
dos personagens, só se colocando veradeiramente entre eles na estampa da
Ls.Sev.1520-21 (f. 57 v) (fig. 7). Há sim influência iconográfica da folha com que
os protoparentes cobrem os genitais depois da queda no caso de algumas estampas
alemãs (LdH.Augsb.1471-72, S., f. 5 b; LdH.Nür.1475, f. 3 c; LdH.Ura.1481, f.
4 r.; LdH.Reu.1482, S., fig. 3; LdH.Aug.1486, f. 7 r.; LdH.Lüb.1488, S., f. 4 r.;
LdH.Aug.1492, f. 6 r.), em que a Santa cobre a zona púbica com uma folha, o que
não aparece nas xilogravuras lioneso-ibéricas.
Pode surpreender o leitor actual o facto de parecer haver contradição entre
o texto e as imagens no que diz respeito à idade dos personagens63, mas não
nos devemos esquecer que, para a mentalidade medieval, os santos deviam ser
representados com o aspecto que teriam aquando da ressurreição universal. Ora,
segundo uma convenção geralmente admitida, os mortos ressuscitarão no último
são estampadas na IIª parte de ambos os Santorais espanhóis (o Flos Sanctorum propriamente dito) e não no
que concerne as da Paixão. As do ciclo da Paixão não vieram para Sevilha, mas ficaram em Saragoça, onde
serão estampadas nas ed.s de 1516, 1541 e 1548, segundo o que pude apurar até ao momento. Temos provas
de que pelo menos algumas entalhaduras da Paixão permaneceram em Saragoça até 1548, onde são utilizadas
por Bartolomé de Nágera, que fica à frente da oficina inaugurada por Paulo hurus. Refiro-me às xilogrvuras
representando o Ecce Homo e a Ida para o Calvário, pela primeira vez estampadas no Tesoro de la Pasión de
Andrés de Eli, em 1494, quando a oficina saragoçana era dirigida ainda pelo seu fundador, Paulo Hurus.
A Ida para o Calvário parece ter sido copiada na entalhadura estampada na ed. de Burgos de 1493 da Paixão
do Monotessaron, a que me referi atrás, na nota 3, em ambas as variantes (BL, 14ª est., f. [B] iij c; BPL, 9ª est.,
f. [B] iij a). Como afirmo no artigo que redigi para as Actas do IV Congresso Internacional sobre Cister em
Portugal e na Galiza, 1-3 Out. 2009, a xilogravura burgalesa deve ter copiado uma outra que foi estampada
na oficina saragoçana entre 1492 e 1494, o mais provável na 1ª ed.da Leyenda de los Santos.
63
Carlos Alberto VEGA, em El transformismo religioso. La abnegación sexual de la mujer en la España
medieval, Madrid, Pliegos, © 2008, D.L. 2009 (ISBN 978-84-96045-62-0), 196.
122
Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação,
no Flos Sanctorum de 1513
dia com o aspecto da idade perfeita de trinta anos, a idade de Jesus Cristo quando
triunfou da morte.64 Só esporadicamente no Renascimento e sistematicamente
no Barroco contra-reformista, é que se assiste, em nome do decoro, a uma
adequação mais estreita com o texto das vidas dos santos e a sua representação
iconográfica. Porém, a tradição iconográfica tem muita força, e mesmo nessas
épocas encontramos exemplos de discrepância entre texto literário e representação
iconográfica. Um caso célebre é o da representação do mártir S. Sebastião, em que
o remoçamento de que foi objecto no Renascimento, mercê da sua comparação
com Cristo, se prolongou até aos nossos dias.65
A partir de 1516, surge uma outra forma de representar o episódio, devido
à impressão em Saragoça (Fs.Zar.1516, f. 168 v) de uma xilogravura (fig. 8)
estampada anteriormente em Nuemberga (LdH.Nür.1488, f. 3 v), que terá
posteridade na Península ibérica até finais do século.
O outro episódio desta legenda figurado em ilustrações de Santorais sevilhanos
do final da década de 60 de Quinhentos (fig. 9) é o da sepultura (Ls.Sev.1568, f.
56 d; Fs.Sev.1568-69, est. dir., nos f. 258 r. – ilustrando Sto. Onofre – e f. P iiij
r. – ilustrando Sta. Maria Madalena; Fs.Sev.1572, II, f. 89 vº, est. dir.), em que
figuram, lado a lado, a tentativa de Zózimo e a escavação do leão.
1.2. Santa Maria Madalena 66
1.2.1. O texto:
Sob o nome de Maria Madalena67 acolhem-se três personagens evangélicas.
A estas se vem juntar uma quarta, fruto da contaminação da história de Santa
64
«convención admitida por los teólogos e impuesta a los artistas», segundo Louis RÉAU, Iconografía del
arte cristiano, tomo 1: Iconografía de la Biblia, vol. 2: Nuevo testamento, Barcelona, Ediciones del Serbal
1996 (ISBN 84-7628-189-7), 764.
65
Karim RESSOUNI-DEMIGNEUX, Saint Sébastien, [Paris], Éditions du Regard, D.L. 2000 (ISBN
2-84105-118-8), 29-35.
66
Sobre esta Santa ver: Lilia SEBASTIANI, Tra/Sfigurazione. Il personaggio evangelico di Maria di
Magdala e il mito della peccatrice redenta nella tradizione occidentale, Brescia, Queriniana, © 1992 (ISBN
88-399-0958-3); Helena (Maria Duarte Freitas Mesquita) BARBAS, Imagens e sombras de Santa Maria
Madalena na literatura e arte portuguesas, Lisboa, [s.n.], 1997, 2 vols. (Tese de doutoramento em Estudos
Portugueses, Universidade Nova de Lisboa [Texto policopiado]; Christiane NOIREAU, Marie Madeleine,
Paris, Éditions du Regard, 1999 (ISBN 2-84105-106-4); Katherine Ludwig JANSEN, The Making of the
Magdalen: Preaching and Popular Devotion in the Later Middle Ages, Princeton (New Jersey), Princeton
University Press, 2000 (ISBN13: 978-0-691-08987-4); Andréia Cristina Lopes Frazão da SILVA & Carolina
Coelho FORTES & Fabrícia Angélica Teixeira de CARVALHO & Maria Cristina Correia Leandro PEREIRA
& Shirlei Cristiane Araújo FREITAS, Vida de Santa Maria Madalena – Texto Anônimo de Século XIV, Rio
de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Agosto 2002 – <http://www.scribd.com/doc/6676161/
Vida-de-Santa-Maria-Madalena-Texto-Anonimo-de-Seculo-XIV>; Helena [Maria Duarte Freitas Mesquita]
BARBAS, Madalena – História e Mito, Lisboa, Ésquilo – Edições e Multimédia, Maio de 2008 (ISBN 972989-8092-29-8).
67
Ou “Magdanela”, como aparece no nosso texto.
123
Fr. António-José de Almeida, O.P.
Maria Egipcíaca – a da penitente da Santa Bauma68, a gruta na Provença onde
ela se recolhe em contemplação.
Apesar de só interessar aqui a abordagem da fase da vida eremítica de Santa
Maria Madalena, não quis deixar de apresentar neste artigo o texto total da
legenda, na qual a referida fase precede o epílogo, formado por dois episódios
ligados ao seu culto.
I – Figura compósita, extraída dos Evangelhos:
[FSlp.Lis.1513, f. 103 a (fig.12)]
(1.) [Linhagem, possessões e vida de Maria, Lázaro e Marta]
«[S]Ancta maria Magdanela ouue este sobrenome de huũ castello
seu que chamã magdalo. & foy fidalga & vinha de linhagẽ de
reys: & a seu padre chamauam syro: & a sua madre eucharia. E
esta & lazaro seu jrmaão & sua jrmaã martha auiam por herdade
este castello em magdalo: que he huũa legoa de genezareth &
bethania que he çerca de jherusalem. E partirõno em tal maneira
que Maria ouue magdalo: õde despois foy chamada magdanela.
& a lazaro a parte de jherusalem. & a martha bethania. E a
magdanela seguindo sempre a vontade de seu corpo.69 & lazaro
o feito da caualleria [=vida militar]. E martha que era mais
entendida enderẽçaua ha fazenda & herdade de sua jrmaã & de
seu jrmaão.70 & daua aos caualleiros [=soldados] de su jrmaão
todo o que auiam mester. Pero desque jhesu christo subio aos
çeeos venderom todo o que auiã & poserõ o preço ante os pees
dos apostollos.»
(2.) [Madalena converte-se em pecadora, mas encontra Jesus
em casa de Simão e Jesus perdoa-lhe os pecados]
«E a magdanela como era rica & fre |[f. 103 b]mosa seguia a võtade
do corpo & tãto mais71 se daua ao amor do mundo em maneyra
que perdeo seu nome proprio & chamarõlhe pecatrix. Mas jhesu
christo andado pregando pollo mũdo, ella polla graça do spiritu
sancto veo a casa de symõ leproso sabendo que pousaua hy jhesu
Utilizarei o nome em occitano Santa Bauma, que em francês se diz Sainte Baume.
À semelhança do que a Egipcíaca diz de si mesma.
Também na Ls.Sev.1520-21: «e de su Hermano» (ed. CABASÉS, 2007, p. 339 a). Espressão que falta em
Ls.Burgos.1499.
71
Também na Ls.Sev.1520-21: «e tanto más» (ed. CABASÉS, 2007, p. 339 a). Expressão que falta em
Ls.Burgos.1499.
68
69
70
124
Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação,
no Flos Sanctorum de 1513
christo: & porque era tã pecadora nõ ousou pareçer ante as caras
dos justos. & posese nas espaldas delles: & lançouse aos pees d’
jhesu christo cõ lagrimas de seus olhos & alimpoulhos cõ seus
cabellos & vntoulhos com huũ ynguẽto preçioso. Ca os homẽs de
aquella terra por razõ de queẽtura que he muy grãde vsam banhos
& ynguentos. E cuydaua symõ antre sy. Se este fosse propheta nõ
consentira que esta molher o tocasse. E nosso senhor reprehendeo de
justiça soberbosa & perdou[sic] a ella seus pecados.»
(3.) [Particularidades que adornam Madalena]
«E esta he a magdanela a quẽ deos fez tanta graça & lhe mostrou
tanto amor: & tirou della sete diabos & foy muyto sua familiar.
& fezea sua hospeda. & quis que fosso[sic] no caminho sua
procuradora. & a escusou do phariseu que dizia que ella era nõ
limpa: & de sua jrmaã que lhe chamaua vagarosa [=preguiçosa]:
& de judas que lhe chamaua gastadora. & veẽdoa chorar chorou
com ella. & por amor della resuscitou a lazaro que auia quatro
dias que estaua no moymento. E por amor della deu saude a
martha sua jrmaã que auia sete annos que corria della sangue.
& por seu mereçimento quis que marçelha seruidora de sua
jrmaã disesse[sic] estas palouras[sic] tam sanctas & tam doçes.
bemauenturado he o vẽtre que te geerou. E esta foy a primeira que
começou a fazer penitẽçia nomeada: & esta fez primeiramente o
vnguento pera jhesu[sic] christo: & ella nunca se delle partio. E
quãdo jhesu christo resurgio a ella apareçeo primeyramete: & a
fez preegadora cõ os apostollos.»
II – Em Marselha, pregadora:
(4.) [Madalena com os irmãos e outros cristãos são expulsos
pelos judeus numa nave que Deus guia até Marselha.
Madalena converte os habitantes locais]
«E despois que jhesu christo subio aos çeeos arramarõ os apostollos
por todo o mundo a pregar a palaura de deos. E a aquelle tẽpo
era cõ os apostollos sam maximino que era huũ dos setenta &
dous discipollos de jhesu christo: a este encomẽdou sam pedro
apostollo a scã maria magdanela. & o sam maximino & a
magdanela & lazaro & martha & sua seruidora: & çelidonio que
naçera çego: ao qual nosso senhor jhesu christo a[f. 103 c]lumiou
cõ os outros christaãos. & poserõnos os judeus em hũa naue por
125
Fr. António-José de Almeida, O.P.
que morressem no mar. E guiondoos deos vierõ a marsilha &
nõ achando nenguẽ que os quisesse reçeber estauã fora em huũ
portal que era de huũ tẽplo da gente daquella terra. E veẽdo sctã
maria magdanela que a gente de aquella terra hyã pera sacrificar e
honrrar os ydollos: leuãtouse rijndo [“e pagada [=ufana], e con su
cara risueña,”72] & cõ palauras & a lingoa doçe faziaos leixar ho
sacrificio dos ydollos: & preegaualhes fortemẽte73 de jhesu christo.
& marauilhauãse todos de sua fermosura & da sua eloquẽçia de
suas palauras74 tam doçes. Ca boca que beyjara os pees de jhesu
christo cõuinha que mais doçemẽte preegase a palaura de d’s que
as outras.»
III – A maravilhosa história do governador/‘príncipe’, sua mulher e filho:
(5.) [Madalena impede que o príncipe da terra e sua
mulher sacrifiquem aos ídolos, prega-lhes Jesus Cristo, e em
sucessivas aparições compele-os a que ajudem os pobres]
«& despois desto veo o principe da prouinçia de aquella terra que
era muy rico & vinha a sacrificar os ydolos elle & sua molher por
tal que ouuessem filho: mas sancta maria magdanela os estoruou
do[sic] adorar os ydollos75. & lhes pregou fortemente de jhesu
christo. E de hy a poucos dias apareçeo a magdalena aa molher d’
aquelle prinçipe & disselhe. Porque leixas morrer de fame & de frio
os proues de d’s auendo vos tã grandes riquezas & ameaçauaa se ho nõ
disesse a seu marido. Outra noyte lhe apareçeo dizendolhe essa mesma
razom: & elle reueo em poco. & outra noyte apareçeolhes sctã maria
magdanela76 a ambos muy asanhudamente & muy yrada. & assi
vinha açesa que pareçia que ardia a casa & disselhe. Tirãno membro
de sathanas dormes cõ tua molher serpentina: que te nõ quis dizer o que
lhe eu mandei. E tu ẽmijgo da cruz estas folgãdo cheo de riquezas: leyxas
pereçer de fame os sctõs de d’s & jazes em teu paço emuolto de pãnos de
seda. & vees os proues desconsolados: & nenhuũ bem lhes fazes.»
Acrescento só na Ls.Sev.1520-21 (ed. CABASÉS, 2007, 340 a).
Também na Ls.Sev.1520-21: «fuertemente» (ed. CABASÉS, 2007, 340 a). Advérbio que falta em
Ls.Burgos.1499.
74
Também na Ls.Sevilla.1520-21: «e de la su palabra» (ed. CABASÉS, 2007, 340 a). Expressão que falta
em Ls.Burgos.1499.
75
Também na Ls.Sevilla.1520-21: «ydolos» (ed. CABASÉS, 2007, 340 a). Palavra que falta em
Ls.Burgos.1499, onde só figura o pronome.
76
Também na Ls.Sevilla.1520-21: «sancta María Magdalena» (ed. CABASÉS, 2007, 340 a). O nome não está
expresso em Ls.Burgos.1499.
72
73
126
Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação,
no Flos Sanctorum de 1513
(6.) [O príncipe e a mulher, atemorizados falam com
Madalena, a cujo Deus pedem um filho. Madalena obtémno]
«& acordarõ ambos com grãde medo tremẽdo. & disselhe a molher.
Senhor que faremos? Disselhe elle. Milhor he que façamos o que ella
manda: que nõ cayamos na yra de d’s que ella preega. & porende
reçebiã os proues: & reçeberõ a elles em sua casa &77 dauãlhes
o que auiã mester. E hũa vez disse este prinçipe a sctã maria
magdanela. Tu cuidas de defender esto que preegas? & ella disse.
Posso o defender [f. 103 d] assy como cousa prouada & affamada.
&78 por os milagres de cada dia: & polla pregaçam de meu mestre sam
pedro que esta em roma. & disse o prinçipe. Nos queremos79 fazer
ho que tu mãdares: se tu nos ganhares do teu d’s que ajamos filho. E
disse magdanela. esso rogarey a d’s. & logo rogou a d’s por elles. &
de hy a poucos dias conçebeo a dona.»
(7.) [O príncipe quer encontrar Pedro em Roma e a sua
mulher, embora grávida, consegue que a leve consigo]
«E o marido queria hyr a roma a sam Pedro por prouar se era
verdade ho que preegaua sancta maria magdanela de jhesu christo.
& quãdo esto ouuio a molher disse a seu marido. Senhor tu cuydas
de hyr sem my. d’s nunca o queyra que eu contigo quero hyr. & se tu
folgares [=descansares] eu folgarey. & disse elle. Molher senhora esto
no pode seer que tu estas prenhe: & no mar ha muytos perigos & tu
ligeiramente [=facilmente] poderas pereçer. & por esto ficaras em tua
casa & teeras cuydado de nossos beens. E ella [muy afincadamente80]
chorãdo lançouse a seus pees. & acabou ho que quis com seu
marido.»
(8.) [Madalena faz-lhes o sinal da cruz sobre o ombro. A nave
sofre uma tempestade, a mulher dá à luz e morre, ninguém
pode amamentar o menino e os marinheiros querem lançar
o cadáver ao mar]
Também na Ls.Sevilla.1520-21: «en su casa recibieron, e» (ed. CABASÉS, 2007, 340 b). Em Ls.Burgos.1499
não se fala que recebessem os pobres em sua casa.
78
Também na Ls.Sevilla.1520-21: «e afamada, e» (ed. CABASÉS, 2007, 340 a). Expressão que falta em
Ls.Burgos.1499.
79
Também na Ls.Sevilla.1520-21: «queremos» (ed. CABASÉS, 2007, 340 a). Verbo que falta em Ls.Bur.1499.
80
Expressão adverbial só existente nos textos catelhanos, Ls.Bur.1499 e Ls.Sev.1520-21 (ed. CABASÉS,
2007, 340 b).
77
127
Fr. António-José de Almeida, O.P.
«E ha magdanela fezlhes ho signal da cruz nos hombros.81 por que
ho diaboo nõ lhes empeçesse [=fizesse mal]. E carregarom hũa naue
do que auiam mester. & encomẽdaromse a d’s & foromse. E elles
andando huũ dia & hũa noyte pollo mar: começouse de leuantar o
mar & fazer82 grande tormenta: em maneira que ho vento era muy
rijo. E a dona muy quebantada da tormenta do mar83 & começou de
auer grandes doores: & pario huũ filho: & ella morreo. & o menino
buscaua as tetas da madre. & choraua porque nom achaua que
mamar. E seu marido começou d’ chorar & dizia. Ay mezquinho que
sera de mĩ que minha molher he morta & a criãça perderseha. porque
nom acha que mamar: & dizia Ay mezquinho desejey auer filho & perdi
a madre & a elle. & disserõ os marinheiros. Lãçemos ho corpo no mar
ante que pereçamos aqui todos: ca emquanto aqui esteuer nunca çessaria
a tẽpestade: & tomãdo o corpo pera o lãçar no mar disse o marido.
Ay d’s po me mesura se a mi nõ queres perdoar: aue piedade deste menino
que chora: & esperay hũ pouco.»
(9.) [O príncipe consegue desembarcar o cadáver da mulher
numa ilha, põe o menino sobre o corpo da mãe, cobre-os com
um manto, invoca Maria Madalena e parte]
«E em dizendo esto apareçeo huũ outeyro de hũa ylha. & rogou
aos marinheiros que leuassem la o corpo: & elles nom queriã mas
pollo preço que lhes deu leuarõ o cor[f. 104 a]po & o poserõ em
aquelle outeyro. E quando vio que nom auia hy logar pera cauar
coua: pos o corpo a hũa parte do outeyro & escõdeo & cobrio com
seu manto: & pos o menino sobre as tetas da madre & disse. O sancta
maria magdanela porque vieste a marsilha pera acreçentar a minha
mezquindade & a minha perda: mais valera nõ começar este caminho.
& agora maria magdanela encomendo ao teu d’s & a ty minha molher
& este filho que ouue por teu rogo. & se o teu84 d’s he poderoso acordese
da alma da madre & por ho teu rogo faça que nõ pereça a criatura. &
cobrio o corpo & o menino cõ o manto85 [& cõ mucho pesar dexolos
alli:]86 & entrou na naue.»
Trata-se de um sinal visível, como a seguir se verá, semelhante ao que os peregrinos usavam na Idade Média
e donde veio o designativo de «cruzados».
82
Também na Ls.Sev.1520-21: «de ayrar el mar, e fazia» (ed. CABASÉS, 2007, 341 a). Expressões que
faltam em Ls.Bur.1499.
83
Também na Ls.Sev.1520-21: «e del mar» (ed. CABASÉS, 2007, 341 a). Precisão que falta em Ls.Bur.1499.
84
«tem», no texto – gralha clara do tipógrafo.
85
Também na Ls.Sev.1520-21: «E cubrió el cuerpo y el niño con el manto», (ed. CABASÉS, 2007, 341 b).
86
Entre o texto que aparece na Ls.Bur.1499, em vez do anterior, que aparece tanto no FSlp.Lis.1513 como na
81
128
Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação,
no Flos Sanctorum de 1513
(10.) [Pedro recebe o príncipe que conta tudo. Consola-o. e
leva-o a Jerusalém onde permanece dois anos. Ao regressar,
vai parar ao monte onde deixou a mulher e o filho e
desembarca alí]
«E vijndo a roma sayo sam pedro a reçebello veendolhe o signal da
cruz no hombro:87 & preguntoulhe dõde era: ou onde hya. E elle
contoulhe todo quãto lhe aconteçera. & disselhe sam pedro| d’s te de
paz & bem sejas vijndo creeste cõselho muy bõ. & nõ te pese se tua molher
dorme & o menino folga [=descansa] cõ ella: que d’s he poderoso de dar
dooẽs a quẽ elle quer & despois tirarlhos. & despois que lhos tira darlhos:
& mudar o teu choro em prazer. & sam pedro o leuou a jherusalẽ &
mostroulhe todos os lugares por onde jhesu xpisto andou. & onde
fez milagres: & onde morreo. & onde sobio aos çeeos: & o enformou
bem na ley de jhũ xpisto88. & esteue la dous ãnos & despois entrou
na naue: & começou de tornar pera sua terra. E hindo pollo mar quis
d’s assy ordenar que vierõ por aquelle outeyro onde estaua a molher
& o menino. & rogou aos marinheiros & deulhes preço & forom la.»
(11.) [Encontra o menino vivo, protegido por Maria Madalena,
e pede-lhe que ressuscite a mãe]
«E sancta maria magdanela guardou o menino & estaua saão. E como
algũas vezes hya a ribeira do mar & jugaua cõ as pedrinhas como
he costume dos meninos assi o achou o padre ao menino jugando
a ribeira do mar. E o padre quando vio ho menino marauilhouse
muyto que poderia ser aquello que andaua assi jugando: & saltou da
naue a terra: & o menino ouue medo como cousa que nũca vira corria
pera as tetas da89 sua madre: & meteose sob o mãto della. & o padre
chegouse a ella90 & achou que mamaua as tetas da madre: & tomou
o menino nos braços & dise. O senhora sancta maria magdanela quã
bẽ an[f. 104 b]dãte eu seria se minha molher resuscitasse. E bẽ sey eu &
o creo de todo em todo que tu criaste o menino dous annos & o guardaste
nesta pena. & pois que tu esto fizeste: bem assi como guardaste a criatura:
bẽ assi podes tornar a madre viva,»
Ls.Sev.1520-21 (ed. CABASÉS, 2007, 341 b).
87
O tal sinal ou insígnia que Maria Madalena lhe tinha colocado.
88
Também na Ls.Sev.1520-21: «de Jesu Xristo» (ed. CABASÉS, 2007, 341 b). Precisão que falta em
Ls.Bur.1499.
89
Também na Ls.Sev.1520-21: «las tetas de» (ed. CABASÉS, 2007, 342 a). Precisão que falta em Ls.Bur.1499.
90
Também na Ls.Sev.1520-21: «se a ella,» (ed. CABASÉS, 2007, 342 a). Precisão que falta em Ls.Bur.1499.
129
Fr. António-José de Almeida, O.P.
(12.) [Ressuscita a mãe e esta conta haver feito com Madalena
a mesma peregrinação que tinha feito o pai com S. Pedro]
«E ajnda elle nõ acabaua91 d’ dizer estas razões quando acordou
a molher & disse. O senhora sctã maria magdanela como fostes
piadosa no tempo de minha pressa. ca tomaste officio de parteira.
& em quãtas cousas eu ouue mester: tu fizeste officio de serua. &
ouuindo esto o marido marauilhouse muyto: & disse. Minha
molher muyto amada es viua: & ella disse. Certamẽte viua som:
& agora venho da romaria que tu veens. & bem assi como sam
pedro leuou a ty a jherusalẽ: & te mostrou todos os lugares de jhesu
xristo: onde morreo| onde foy enterrado: onde sobio aos çeeos| Em essa
mesma maneira foy cõmigo a senhora sctã maria magdanela. & me
acõpanhou: & me mostrou todos os lugares que tu andaste de maneira
que nõ falleçeo [=faltou] nẽhuũ delles.»
(13.) [O príncipe, com a mulher e o filho, regressam a
Marselha, onde encontram Madalena a pregar. Convertemse, fazem Lázaro bispo de Marselha e Maximino bispo de
Aquis]
«E emtõ o peregrino tomou sua molher cõ o minino: & entrou
na naue cõ grãde alegria. & a pouco tempo chegarõ a marselha &
acharõ a sctã maria magdanela que preegaua cõ os discipollos &
lançarõse a seus pees cõ muytas lagrimas: & cõtarõ quanto lhes
acõteçera. & baptizouos sam maximo. Emtõ fizerõ em marsilha
ygrejas aa hõrra de jhũ xpisto. & destruyrõ todos os tẽplos dos
ydolos. & fizerõ sam lazaro bispo de aquelle logar & vierõ aa
cidade de aquis [= Aquae Sextiae, Aix-en-Provence]. & por muytos
milagres cõuerterõ aquelle pouoo todo a fe de jhũ xpisto: & foy
hy bispo sam maximino.»
IV – Vida Contemplativa, na Santa Bauma:
(14.) [Madalena retira-se para o ermo durante trinta anos,
onde todos os dias Deus a alimenta com manjares celestiais]
«& d’spois sctã maria magdanela por estar maiç[sic] em contẽpraçã
91
130
«acabana», no texto – gralha clara do tipógrafo.
Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação,
no Flos Sanctorum de 1513
92
foyse pera o hermo:93 & em este logar nẽ auia solaz de aguas nẽ
de heruas: nẽ de aruores.94 E ally esteue trinta annos.95 & nosso
snõr a fartaua cada dia de seus mãjares celestiaes. & cada dia a
alçauã os anjos da terra sete vezes: & ouuia cõ suas orelhas cãtares
gloriosos dos anjos no çeeo: & despois punhãna em seu logar. &
nõ tinha cuydado de comer outros manjares terreaes.»
(15.) [Um sacerdote, que fez a cela ali perto, viu como
Madalena era levada ao céu e devolvida à terra]
«E huũ saçerdote desejando de fazer vida apartada: fez hũa çella
açerca de aquelle logar a doze estados [=estádios, medida de
comprimento]. E huũ dia abrio96 nosso [f. 104 c] senhor [Dios]97
os olhos deste sacerdote & vio magnifestamente [sic]98 os anjos
descender em aquelle logar onde moraua scã maria magdanela &
a alçauã no aar: & a cabo da ora traziãna a seu logar cõ cantares
muy doçes.99 E querendo este sacerdote saber a verdade desta
visom tã grãde: encomendouse a d’s & foyse a esse logar cõ grãde
atreuimẽto: & chegouse a ella quãto seria huũ lançou[sic] de
pedra. & começarõlhe de tremer as pernas & todo o corpo cõ
o grande medo. & nõ podia chegar a aquelle logar porque lho
defendia a fraqueza da alma & do corpo. & elle100 entendeo que
aquelle sacramẽto era celestial: que homẽ do mũdo nõ podia la
chegar:
(16.) [Madalena revela ao sacerdote quem é ela e pede que
anuncie a S. Maximino que em breve será levada ao seu
oratório]
Não se fala de penitência. Mas sabemos como todo este episódio é decalcado da legenda de Sta. Maria
Egipcíaca – Lilia SEBASTIANI, Tra/Sfigurazione. Il personaggio evangelico di Maria di Magdala e il mito
della peccatrice redenta nella tradizione occidentale, Brescia, Queriniana, © 1992 (ISBN 88-399-0958-3),
249.
93
A Madalena vai para o ermo não para fazer penitência, mas para contemplar.
94
Era, pois, um lugar deserto.
95
Não se fala no texto que estivesse nua. A nudez deve ser contaminação com a história de Sta. Maria
Egipcíaca e sinal de estado paradisíaco, como se pode inferir da estampa de Koberger (fig. 14).
96
«obrio», no texto – gralha clara do tipógrafo.
97
acrescento só no texto de Loyola, Ls.Sev.1520-21 (ed. CABASÉS, 2007, 343 a).
98
tanto aqui como na Ls.Sev.1520-21 (ed. CABASÉS, 2007, p. 343 a), contrariamente à Ls.Bur.1499, que
tem «manifiestamẽte».
99
Ver ilustração deste episódio, v.g., na estampa de Alberto Dureiro (http://bibliotecadigitalhispanica.bne.es/
view/action/singleViewer.do?dvs=1262115034949~773&locale=pt_PT&DELIVERY_RULE_ID=10&fram
eId=1&usePid1=true&usePid2=true).
100
Existência do pronome só na Ls.Bur.1499 e aqui, não figurando na Ls.Sev.1520-21 (ed. CABASÉS, 2007,
343 a).
92
131
Fr. António-José de Almeida, O.P.
& disse. Escõjurote por jesu xpisto que me digas se es homẽ ou
outra criatura & que digas de ty a verdade. & disselho tres vezes:
& respõdeo a magdanela & disselhe. Chegate mais ca açerca &
poderas saber a verdade de quãto pregũtas de mi. & chegouse a meyo
espaço. & disselhe a magdalena [sic]. Acordaste do euãgelho que
fala aquella maria pecatrix chamada que lauou os pees do saluador
cõ lagrimas de seus olhos: & alimpiulhos cõ seus cabellos & merçeo
auer perdõ de seus pecados.101 & disse o sacerdote acordome: & mais
ha de trinta annos que esso aconteçeo: & disse a magdalena[sic]. Eu
som aquella. & trinta ãnos ha que estou em este logar que nunca o
soube homẽ do mundo. & assi como viste hontẽ assi me alçã os anjos
de terra cada dia sete vezes: & ouço cãtares muy doçes no çeo cõ estas
minhas orelhas| E porque d’s me quiz mostrar que eu ey asinha [=em
breve] de sahyr deste mundo. Uay a sam maximino & dizelhe que o
primeiro dia de domingo que vem que entre elle soo em oraçam: em
aquelle tẽpo que se sooe leuãtar aas matinas & acharmeha hy por
seruiço dos anjos. E o saçerdote ouuio sua voz como voz de anjo:
& foy asinha a sam maximino & recõtoulhe todo.
(17.) [Maximino encontra Madalena no seu oratório entre
anjos, dá-lhe a comunhão, e Madalena morre e é enterrada]
E sam maximino foy muj alegre & agradeceo a d’s: & a hora
que lhe foy dicto entrou em oraçã & vio estar a sancta maria
magdanela no coro dos anjos. & estaua alçada de terra altura de
dos[sic] couados em meyo dos anjos & tinha as mãos alçadas ao
çeeo. & sam maximino duuidãdo de chegar a ella.102 chamouo
ella: & disse. Padre chega[f. 104 c]te a my & nõ fugas da tua filha.
& elle chegãdo vio resprandeçer a cara della tam fortemẽte: que
melhor se poderia olhar o rayo do sol que a sua cara. E chamada
toda a clerizia & aquelle saçerdote ja dicto tomou o corpo de
d’s & comungou a magdanela de maão do bispo cõ muytas
lagrimas. & lançandose ante o altar. sayolhe a alma do corpo &
foyse ao parayso. & despois que se ella finou tã grãde odor ficou
no oratorio sete dias cõtinuamẽte que quãtos hy estauã tantos
se marauilhauã de aquelle odor. E este corpo sctõ enterrou sam
maximino muyto hõrradamente cõ muytas espeçias103:
Madalena identifica-se com a pecadora perdoada em casa de Simão Malato (=Leproso).
Mais uma vez, como no caso da Egipcíaca, a levitação é motivo de temor por parte do sacerdote.
Assim também aparece na Ls.Sev.1520-21 (ed. CABASÉS, 2007, 343 b), contrariamente ao que acontece
na Ls.Bur.1499, onde se lê: «cõ muchas osequias».
101
102
103
132
Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação,
no Flos Sanctorum de 1513
Epílogo
(18.) [O abade do mosteiro feito pelo duque da Borgonha
manda buscar as relíquias de Madalena a Aix. Um monge
encontra-as no meio das ruínas e leva-as para o mosteiro]
& aconteçeo que dom giraldo duque de bregonia nõ podendo
auer filho de sua molher daua104 quãto tinha aos proues. & fazia
muytas ygrejas & fez huũ moesteiro. E ho abade de aquelle
moesteiro mãdou a huũ seu mõje que fosse aa cidade de aquis
[= Aix-en-Provence]: & que trouxesse das reliquias de scã maria
magdanela. & vijndo este monje a aquella cidade achoua destruyda
dos mouros: & achou por vẽtura huũ sepulcro em que jazia o
corpo da magdanela segũdo que mostraua o sepulcro que era
de marmore. E tinha ha sua estorea entalhada marauilhosamẽte
nelle: & fezeo de noyte quebrar & tomou de hy as reliquias &
leuouas105. E essa noyte apareçeo a magdanela ao mõje dizẽdolhe
que nõ ouuesse medo: mas que acabase o que começara. &
quando tornou a seu moesteiro ãte d’ mea legoa nõ podia de hy
mouer as reliquias ẽ nenhũa maneira atee que veo o abade com
os mõjes a reçeber as requias [sic] cõ grãde hõrra & procissam.
(19.) [Um cavaleiro devoto de santa Maria Madalena
ressuscita para se confessar]
Outrosi huũ caualleiro que cada anno soya vijr ao sepulcro de
sctã maria magdanela: & matarõno ẽ hũa batalha: & seus parẽtes
faziã por elle grãde doo & diziã assi. Sãta maria magdanela
como lexaste morrer o teu deuoto sem penitẽçia & sem cõfissom. E
marauilhandose todos leuãtouse o corpo subpitamẽte & chamou
huũ sacerdote: & confessouse & comũgou & finouse logo.»
1.2.2. As ilustrações:
Praticamente toda esta legenda está pintada a fresco por Giotto di Bondone
na capela da Madalena, na Basílica inferior de S. Francisco, em Assis106: 1. A ceia
em casa do fariseu, 2. A ressucitação de Lázaro, 3. Noli me tangere, 4. Viagem a
Marselha e milagre da família do governador, 5. A Madalena eremita na gruta
chamada Santa Bauma, 6. Madalena elevada todos os dias da Santa Bauma
«dana», no texto – gralha clara do tipógrafo.
«a su ostal» [ou «ostial»], acrescentam os textos castelhanos, Ls.Bur.1499 e Ls.Sev.1520-21 (ed.
CABASÉS, 2007, 344 a), respectivamente.
106
<http://www.gliscritti.it/gallery2/v/assisigiottomaddalena/>
104
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Fr. António-José de Almeida, O.P.
para rezar com os anjos, 7. Madalena transportada pelos anjos para receber a
comunhão de S. Maximino.
Contrariamente ao que acontece com a ilustração da legenda analisada
anteriormente, a de Santa Maria Egipcíaca, a de Santa Maria Madalena não é
sempre ilustrada pela imagem do episódio figurado no nosso FSlp.Lis.1513
(f. 103 a) (fig. 12), o do Arrebatamento da Santa ao céu pelos anjos, o que não
quer dizer que ela não tenha tido popularidade, como veremos.
No que diz respeito à ilustração da legenda de Santa Maria Madalena no
FSlp.Lis.1513, penso que a origem próxima da imagem está também, como no
caso anterior, numa xilogravura da LaS.Lyo.1486, a que ilustra a legenda 89 (ver
fig. 10). Quatro anjos elevam a Santa, que, neste caso, tem o corpo todo coberto
por pêlos. O facto não é narrado na legenda desta santa, mas a propósito de
Santa Inês, Virgem e Mártir,107 quando esta é despida para ser levada a um
bordel, por não querer sacrificar aos ídolos: «E leuãdoa espida foy logo cuberta
de cabellos assy como de vestiduras:» (FSlp.Lis.1513,f. 31 c). Esta entalhadura
será reestampada no FsR.Bar.1494, no fólio CLXXIX [sic, aliás 157] a (fig. 10),
e no rosto do Apologeticus pro vnica Maria Magdalena, escrito por Fr. Baltasar
Sorió O.P., e impresso em Saragoça, por Jorge Coci, em 1521108. A presença
desta xilogravura na oficina fundada por Paulo Hurus parece ir no sentido da
confirmação da hipótese que formulei de as entalhaduras do jogo de que ela faz
parte, de origem lionesa, terem servido de modelo às entalhadas nessa oficina
saragoçana e estampadas nas primeiras edições, perdidas, da Leyenda de los
Santos (1490 e 1492). Em 1521 já não devia haver em Saragoça o jogo dessas,
pelo que Jorge Coci se viu obrigado recorrer a uma mais antiga. Isto parece
confirmar a minha hipótese de se ter vendido para Sevilha, por volta de 1497,
o jogo de matrizes xilográficas saragoçanas. Aliás, algumas xilogravuras lionesas
estampadas na LaS.Lyo.1486 reaparecem em 1492 em Saragoça ilustrando a
Aurea Expositio Hymnorum, saída do prelo de Paulo Hurus a 26 de Janeiro desse
ano, sendo a seguir impressas no FsR.Bar.1494. Não sei se foram estampadas
na nova edição da Aurea Expositio Hymnorum que Paulo Hurus faz sair da sua
oficina saragoçana por volta de 1495, mas o certo elas serão reestampadas nessa
oficina na edição terminada a 1 de Janeiro de 1520, quando estava à frente dela
Jorge Coci. Por isso não é de admirar que no ano seguinte uma outra xilogravura
pertencente ao mesmo jogo lionês, a da Madalena, seja aqui reimpresso.
Da xilogravura da Elevação da Madalena pelos anjos impressa hipoteticamente
em Saragoça em 1490 e 1492, e reestampada, segundo penso, no Fs.Sev.1540,
C. VEGA, El transformismo religioso, pp. 151-152 e 182.
Francisco VINDEL, Manual Gráfico-Descriptivo de Bibliófilo Hispano-Americano (1475-1850). Madrid:
[F. Vindel], 1930-34, 12 vols., vol. VI, 191, nº 2.893.
107
108
134
Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação,
no Flos Sanctorum de 1513
no fólio 303 d (fig. 13) terão derivado as entalhaduras estampadas tanto na
Ls.Bur.1499 (f. 133 c) (fig. 11) como no FSlp.Lis.1513 (f. 103 a) (fig. 12).
Esta última, porém, contém um pormenor ausente das anteriores. Refiro-me
à presença de rochas aos lados, na metade inferior da composição, atrás dos
anjos de baixo e sob os de cima. Donde provirão estes elementos? Julgo que da
entalhadura com este tema estampada na Crónica de Nuremberga, impressa nesta
cidade alemã em 1493, não só em alemão mas também em latim109, uma vez
que a entalhadura estampada na célebre Leben der Heiligen (ver fig. 14)110, onde
o autor da xilogravura da Crónica se parece ter inspirado, saída da mesma oficina
uns anos antes, em 1488, só apareceu em alemão e também porque aí a Santa
é representada completamente nua, ao contrário da nossa estampa. Com isto
não quero ser apodítico, pois o «Mestre do Vespasiano»111 pode ter ascendência
alemã ou pode muito bem ter visto esta obra na casa de algum mercador alemão
residente em Lisboa, embora não tenha chegado até nós nenhum exemplar desta
obra conservada no território português, ao contrário da Crónica de Nuremberga
em latim112. Lembremos que Valentim Fernandes, o impressor da História de
mui nobre Vespasiano113, é alemão e também o é Hermão de Campos, uma vez
que que era de bom tom, nessa época, aportuguezar os nomes. Até pode ter
visto as duas composições. Seja como for, este pormenor denota uma atenção à
novidade por parte do entalhador lisboeta.
O elemento das rochas começa a aparecer na xilogravura alemã em 1481,
no Leben der Heiligen impresso nesse ano em Urach, por Conrad Fyner
(LdH.Ura.1481, S., f. 105 r) logo seguido pelo volume estival do Leben der
Heiligen, acabado de imprimir emAugsburgo, por Johann Schönsperger, a 2 de
Dezembro do ano seguinte (LdH.Aug.1482, S., f. 165 v). Tanto nestes como
no LdH.Aug.1488 (ver fig. 14), Maria Madalena sai da gruta, a «Santa Bauma»
provençal. Na estampa da Crónica, no local, entre rochas, sobre o qual paira a
Santa existem construções.
Embora em Espanha, através da reimpressão da entalhadura de Ausgburgo,
esta cena vá reaparecendo na ilustração dos Santorais (fig. 14)114, ela desaparece
Ver <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/5/50/Schedelsche_Weltchronik_d_108.jpg>.
Reproduzo somente a imagem da direita de uma estampa dupla, com filete exterior único, e por isso
unificante das duas imagens. Ver estampa total, v.g., em: Schramm, vol. 17, nº 113; TIB, vol. 86, 173,
2ª imagem da página; <http://daten.digitale-sammlungen.de/~db/0002/bsb00027260/images/index.
html?seite=151>.
111
Assim baptizei o autor das entalhaduras do FSlp.Lis.1513.
112
Como é o caso do Inc. 205, da Biblioteca Pública Municipal do Porto (abrev. BPMP)
113
[Estoria de Muy nobre Vespasiano emperador de roma], Lisboa, Valentino de Morávia [=Valentim
Fernandes], 20 Abril 1496.
114
Isso acontece na oficina de Saragoça, até 1548. Mas também essa xilogravura alemã é copiada, em espelho,
na oficina complutense de Juan de Brocar, e estampada no Fs.Alc.1558, f. 312 r. Neste caso, a Madalena da
Elevação angélica está coberta por abundantes cabelos.
109
110
135
Fr. António-José de Almeida, O.P.
deste género literário em Portugal. Só reaparecerá, segundo as minhas
investigações, na oficina lisboeta de Marcos Borges e possivelmente na de
António Álvares (fig. 15). Neste caso, o entalhador toma como modelo a célebre
estampa xilográfica de Alberto Dureiro (Albrecht Dürer), entalhada por volta
de 1504-05,115 em que aparecem porém seis anjinhos, ao contrário da lisboeta.
Esta aparece na primeira página de um folheto impresso em Lisboa, por Marcos
Borges, intitulado Summario das Indulgencias, Priuilegios, Conseruatorias,
Indultos, Fauores, Letras & Graças, Spirituaes & Temporaes, concedidas (...)
aos irmãos & Confrades da irmádade & cõfraria de Sancta Maria Magdalena,
instituyda na Parrochial Ygreja da (...) Magdalena (...) de Lixboa (...), depois
de 1579116; e será reestampada também em Lisboa, seguramente por [António
Álvares], no ano de 1600 no Itinerario da Terra Sancta... do franciscano Fr.
Pantaleão de Aveiro, no fólio [XII] depois das «taboadas»117.
Uma imagem variante deste episódio é aquela em que figura a Santa deitada
encostada ao tronco de uma árvore, as mãos postas e com um crucifixo junto
dela, ouvido o cantar de três anjos (Ls.Sev.1568, f. 109 a; Fs.Sev.1568-69, f.
209 v, est. dir. – ilustrando Sta. Mª Egipcíaca; Fs.Sev.1572, II, f. 188 r, est. esq.)
(fig. 16).
Embora sejam representados como ilustrações dos Santorais ibéricos do séc.
XVI outros dois episódios da legenda desta Santa, o da Pecadora em casa da
Simão118 e o do Noli me tangere (Fs.Med.1578, II, f. 168 v., est. da dir.), não me
deterei neles aqui. De entre as imagens icónicas da Santa, que também ilutram
alguns deste livros, convém destacar, por causa da sua repercussão, aquela
TIB, vol. 10, 121 (141); Friedrich W. H. HOLLSTEIN, German engravings, etchings and woodcuts ca
1400-1700, Roosendaal & Amsterdam, Koninklijke van Pool & Menno Hertzberger, 1954? –, vol. 7, 192;
GRABADOS ALEMANES de la Biblioteca Nacional (siglos XV-XVI), Madrid, Ministerio de Educación y
Cultura – Biblioteca Nacional, © e D.L. 1997, 2 tomos, t. I (ISBN 84-8156-147-9), 277, cat. nº 467 –
<http://bibliotecadigitalhispanica.bne.es/view/action/singleViewer.do?dvs=1262115034949~773&locale=
pt_PT&DELIVERY_RULE_ID=10&frameId=1&usePid1=true&usePid2=true>.
116
Madrid, Colecção Particular. A 1ª página deste folheto foi reproduzida na revista Reales Sitios, Año XL,
nº 157 (3er. trimestre de 2003), 47. Agradeço ao proprietário a possibilidade de ver este folheto, através de
Fernando Bouza Álvares, que gentilmente o transportou para a sala de leitura da Biblioteca do Palácio Real
de Madrid, onde o pude estudar, com alguma altenção, por algumas horas.
117
Trata-se de uma estampa de página. Alberto FEIO, Obras desconhecidas ou imperfeitamente descritas
impressas em Portugal no século XVI, Braga, Tip. do Arquivo Distrital, 1955, 16, identifica-a erroneamente
como tratando-se de «a Assunção da Virgem». Claro que as duas representações iconográficas estão
aparentadas, e a representação da Assunção de Nossa Senhora deve ter influído na da Elevação da Madalena.
118
Nos mesmos em que aparece a Elevação angélica da Madalena, e ao lado desta. A xilogravura representando
a Pecadora em casa da Simão, aberta na oficina complutense de Juan de Brocar, já tinha sido estampada,
em 1522, na obra de Fr. Antonio de Aranda de Duero O.F.M., Loores de la Virgen nuestra Señora... sobre
la exposicion de las siete palabras que esta virgen hablo: conforme alo que los Euãgelistas escriuẽ cõ la
aplicaciõ de cada uno de los siete dones... (título abreviado: De las siete palabras de la Santísima Virgen Nra
Señora), f. 133 – Blanca GARCÍA VEGA, El grabado en el libro español. Siglos XV-XVI-XVII (Aportación
a su estudio con los fondos de las bibliotecas de Valladolid), Valladolid, Institución Cultural Simancas, 1984,
2 tomos. (ISBN 84-505-0092-3), t. I, fig. 144, e t. II, 12, nº 43.
115
136
Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação,
no Flos Sanctorum de 1513
em que ela é representada de pé junto da Santa Bauma, segurando um livro
na direita e o vaso de perfumes na esquerda (Ls.Tol.1554, f. xciiii. [sic, aliás
104] (n8) c; Fs.Med.1578, II, f. 168 v., est. da esq.; FsVill.Zar.1585, f. 193 d;
Hs.Lis.1585, f. 266 c; FsRos.Lis.1590, f. 246 c). Também deixo para posterior
artigo a análise pormenorizada destas imagens, evocando-as aqui tão somente
para indicar que a que analisei não é a única.
2. Santos em peregrinação:
As três mulheres e um homem da história dos Quatro Santos Coroados Peregrinos.
2.1. O texto:
Este texto substitui, relatando a vida dos Quatro Santos Coroados
Peregrinos, nas edições em castelhano e português, um outro em que se
fala e Quatro Santos Coroados Escultores. Por faltar no exemplar único em
português (FSlp.Lis.1513), conservado na Biblioteca Nacional de Portugal
(abrev. BnP), em Lisboa, a primeira parte da legenda, reproduzi-la-ei a partir do
texto em castelhano (Ls.Bur.1499), conservado na British Library, em Londres;
continuando em português, numa segunda parte, logo que o texto aparece no
exemplar da Biblioteca Nacional de Portugal.
«De vn cauallero & de su muger| & de su fijo: & de como fuerõ llamados
los quatro coronados [Ls.Bur.1499, f. 208 c]» [FSlp.Lis.1513, f. 163, no cimo, o
título corrente: “Dos quatro coroados.”]
(1.) [Um cavaleiro moribundo pede ao seu mau filho que
lhe prometa que, depois que ele morra, nunca dormirá
debaixo do mesmo tecto que sua mãe]
«[U]N cauallero auia ẽ vna cibdat que tenia vna muger d’ stã vida:
& tenian vn fijo malo: & soberuio: & beodo: [e mal enseñado,]119
pero no a culpa d’ su padre∙ & vino el padre ha adolecer del mal
dela muerte∙ & cõ temor de morir llamo a su fijo: & dixo∙ Fijo
ruegote: que tu ayas la bẽdiciõ de dios: & la [Ls.Bur.1499, f. 208 d
(fig. 11)] mia: que me prometas vn dõ: que te quiero demãdar∙ &
dixole el fijo∙ señor qual quiera cosa que me mãdardes fare [yo] d’
grado: por hauer vuestra gracia[, e vos seré obediente]∙ [E] dixole el
padre: [Pues] ruegote[, fijo,] que quando dios me ouiere leuado deste
mũdo que jamas duermas so vn techo cõ tu madre: & enesto faras
119
Texto acrescentado em Ls.Sev.1520-21. São muitos, como veremos, os acrescentos esclarecedores que a
edição sevilhana faz. Esses acrescentos foram colocados por mim entre parêntesis rectos.
137
Fr. António-José de Almeida, O.P.
seruicio a dios: & cobraras la mi bẽdiciõ∙ [Y] dixo el fijo: [¿]como
padre[? E] mi madr’ no tiene otro fijo sino a mi: & despues de vos
ydo deste mũdo quien la seruira: & onrrara mejor que yo en120 todas
las cosas segũ dios mãda121∙ E dixo el padre: el señor la proueera d’la
su misericordia [e del su bien]∙ porẽde otorgame lo que te demãdo| el
fijo otorgole lo que le pedia: & dixo∙ padre cũplase la tua volũtad∙»
(2.) [O filho vai-se embora, volta à sua aldeia para um
casamento, é retido em casa por sua mãe, embriagado viola-a
e deixa-a grávida]
«& el padre finado: & sepultado: el fijo por cumplir el mãdado
d’l padre partiose dẽde para vn lugar: que quedo de su padre∙
E a cabo de tiempo en aquella cibdade a dõde fino su padre [e
morava su madre]: faziã vnas bodas vnos sus pariẽtes del moço: &
fuerõlo a cõbidar: que veniese a ellas a les fazer hõrra: ca hera muy
plazẽtero [hombre]: & vino a ellas: & estuuo alli fasta la noche∙ &
el estãdo cenando cõla madre [en la noche]: acordosele la postura
[= pacto] que pusiera cõ su padre: & dixo ala madre∙ Señora quiero
me yr para mi posada: que [f. 209 a] no quiero dormir aqui esta
noche. E dixo entonces la madre: fijo no es tiempo que partas de
aqui a tal hora: ca no sabes quien te quiere mal ni biẽ: porende fuelga
[= descansa] & toma plazer: E tãto porfio cõel que ouo de quedar:
& como estaua cõ mucha vianda: & cõ vino: & el plazer delas
bodas: & el echado en su cama: leuãtose de noche & fuese para
la cama d’ su madre: & por fuerca & a pesar d’ su madre ouo que
auer cõella: ẽ manera que ella quedo preñada d’l [ca nunca pudo
se defender]| tal yua cõel vino: & conel diablo que le ayudaua enel
mal: & cõtra la postura de su padre∙»
(3.) [O jovem percebe o que fez, abandona tudo o
que possui e vai para Roma onde muda de costumes, e
coloca-se como mordomo de um cardeal]
«E ala mañana leuãtose [e vio] & entẽdio como el diablo lo auia
engañado E desamparo [= abandonou] todo lo suyo: & dio
consigo en roma al papa para auer penitencia se sus pecados cõ
grãd dolor de su coracon & alla comẽco d’ pẽsar & dezia∙ quando
mi padre era viuo yo era harto soberuio & fazia mucho mal: & cõ mi
120
121
138
«eu», no texto – gralha clara do tipógrafo.
«mãdo», no texto – gralha clara do tipógrafo.
Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação,
no Flos Sanctorum de 1513
padre & cõ mis pariẽtes passaua cõ[=obtinha]lo que queria mas agora
que soy en tierras agenas conuieneme de ser humildoso∙ ca si quiero
fazer locura no me lo cõsentirã: cada vn gallo cãta en su muradal
[=muladar]∙ & llegose luego a vn cardenal delos mas priuados
d’l papa: & como lo vio el cardenal muy sotil: & biẽ fablado: &
buen seruidor: & leal: fizolo su camarero & mayordomo: & fiauã
del quanto auia enla casa∙ E todos los dela corte lo queriã biẽ: &
lo conosciã por [muy] leal & bueno∙ E era muy allegado al papa:»
(4.) [Passa-se muito tempo, e o jovem confessou todos
os pecados menos aquele. Sua mãe conta reservadamente
toda a história à filha nascida da violação, que tem
já 17 anos, e põem-se de acordo em ir a Roma fazer
penitência]
«& auia grãd tiempo que estaua enla cibdad: & aun que cõfessaua
muchos pecados nũca cõfessaua este∙ E vino a morir el cardenal
cõ quiẽ viuia∙ Eneste medio la madre del pario vna fija dela qual
era preñada quando el se fuera a roma∙ E auiendo ya la moça
∙xvij∙ años que entendia ya∙ fablo la madre cõella en poridad
[=segredo]: & cõtole el pecado en que cayera: & cõto’gelo segun
suso [=acima] es dicho: & dixo ala fija∙ [f. 209 b] Uamos a roma a
tomar penitencia de nuestros pecados que son malos & feos∙ & dixo
la moca∙ Señora vamos a dõde vos mandardes∙»
(5.) [Vão parar à mesma pousada que o filho, e não se
reconhecem. O filho enamora-se da filha e irmã, casa-se
com ela, tem uma filha dela, e vivem assim outros 17
anos]
«E tomarõ amas su camino para roma:122 & llegãdo alla pregũtãdo
por el meson: por acaso fueron a posar en casa de su fijo: & no se
conoscieron unos a otros∙ E aquella moça era fermosa: & d’ buen
parecer: & estãdo ay algunos dias [en aquella casa]: el mãcebo se
pago (=agradou-se’) [mucho] dela moça: & dixo a su madre que
gela diese en casamiẽto: & que le daria muchas joyas & muchos
bienes| E dixo la dueña∙ Fijo por dios no querays fazer escarnio d’
nos: ca mugeres somos de alta sangre aun que estamos agora asi:
por que nos somos venidas aqui por fazer penitẽcia de nuestros
pecados∙ & dixo el mãcebo∙ señora no hos lo digo por escarnio sino
122
Esta frase está ausente em Ls.Sev.1520-21.
139
Fr. António-José de Almeida, O.P.
de verdad: & buscad vn clerigo que nos despose∙ E vino el clerigo:
& desposolos: & fizierõ luego sus bodas: & ouo enella vna fija: en
aquella que era su fija & su muger: & su hermana∙ E asi durarõ
eneste pecado otros ∙xvij∙ años [que nasciera esta otra hija que
hiziera en Roma]∙»
(6.) [A mãe pede ao filho que a apresente ao Papa, a
quem agora serve, para se confessar. A sua confissão é
tão clamorosa que o filho a escuta, reconhece a mãe e
chora]
«E a cabo destos diez y siete años: dixo la dueña a aquel su fijo∙
Fijo vos que soys tã allegado123 al papa tened por biẽ de me presentar
ante el: por que nos quiera oyr de penitẽcia∙ Ca despues que el
cardenal con quien viuia murio: tomolo el papa para si por las
bondades que enel auia| & leuolas[sic] luego ante el papa∙ E ella
comẽco a confesar sus pecados: & por fazer grand reuerẽcia a
dios comenco a dar muy grãdes bozes: contando al papa todo
quanto le auia cõtecido d’ comienco d’ su peccado: en manera d’
confession| & el mãcebo su fijo[, como estava un poco apartado,]
oyo todo quanto dezia su madre al papa: por lo qual conoscio ser
ella su madre & tomo grãd pesar [por ello,] por que auia [puesto
e] añadido mal sobre mal: & peccado sobre peccado: & lloro
mucho d’ sus ojos con grand cõtricion & gemido d’ su coracõ∙»
(7.) [Mãe e filho, depois de se reconhecerem, voltam
ao Papa e este impõe-lhes que os quatro vão em
peregrinação a Santiago, nus da cintura para cima e
se morrerem pelo caminho dá por perdoados os seus
pecados. Eles partem]
«[Ls.Bur.1499, f. 209 c: “E despues que se cõfeso la buena dueña
vinose para su fijo y su yerno∙ & el apartola: & dixole∙ digo vos
por cierto: que yo soy vuestro fijo: & vos soys mi madre: & aquella
que yo tengo por muger: es mi hermana: & mi fija∙ E auiẽdo su
consejo tornarõse luego enese momẽto al papa a cõfesarse todos∙
E el papa oyẽdolos mãdoles en nõbre de penitẽcia entẽdiendo sus
grandes peccados: & muy suzios: & feos: que se fuesen todos
quatro en romeria a sant|tiago: desnudos dela cinta arriba: &
que si muriesen enel camino: que los daua por perdonados: &
123
140
«alledado», no texto – gralha clara do tipógrafo.
Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação,
no Flos Sanctorum de 1513
absueltos: d’ todos sus peccados. & ellos partierõ luego de rroma
para yr su romeria:»
(8.) [Na volta da dura romaria/peregrinação, chegam
a uma aldeia onde um homem acolhia por caridade os
peregrinos, mas tinha uma mulher bêbeda]
«& los de la cibdad quando los uierõ asi desnudos: fueron
marauillados: mayormẽte por ser tan allegados al papa: & salierõ:
& fuerõse su camino [a su romería] por grãdes nieues: & frios: &
aguas∙ E ala tornada de su romeria: veniẽdo por el camino adicha
tomolos la noche en vna aldea: enla qual moraua vn ombre [bueno
muy] rico que acogia alos pobres por amor de dios: por complir
las obras de misericordia∙ E este buen ombre tenia vna muger muy
amiga del vino: que cada dia se embriagaua: & entrãdo los romeros
por el aldea muertos de frio: & [muy] cansados∙ & aquella muger
estãdo biẽ beoda: cõ otras sus bezinas: dixo por los romeros∙ Uedes
aqui donde vienẽ quatro diablos muy feos: & ellos preguntãdo por el
meson: amostrarõles la casa deste buẽ õbre: & fuerõ alla: & dixeron
ala muger que les diese posada: por amor sde ihũ xpõ∙»
(9.) [A mulher bêbeda insulta-os, mas chega o marido que
a obriga a acolhê-los. O marido ausenta-se, e ela encerra-os
numa pocilga molhada]
«& ella mostroles mala volũtat con su vino: maldiziẽdolos [de su
boca] ∙ & las vezinas d’ziãle que los acogiese: que asi fazia su marido:
& nũca lo quiso fazer: ni pudieron conella∙ E estãdo asi allego el buẽ
honbre: & dixo a su muger que los acogiese: & [f. 209 d] que les diese
d’ comer: & los pusiese ala lũbre: & ella metiolos [FSlp.Lis.1513, f.
163 a] em casa com maa võtade. & o boõ homẽ foyse folgar cõ seus
vizinhos & amigos124. & elle tardãdo muyto que nõ tornou a sua casa
a maa molher nõ fez nada do que seu marido lhe mãdara nẽ lhes deu
nẽhũa consollaçõ & os fez emtrar em hũa pocilga de porcos que estaua
toda molhada & os ẽçarrou dentro cõ chaue125:»
(10.) [Os romeiros/peregrinos fazem oração, a mulher bêbeda
vai-se deitar e o marido tem que entrar em casa pelo telhado]
124
Texto que também aparece na Ls.Sev.1520-21: «con sus amigos e vezinos» (ed. CABASÉS, 2007, 534 b);
não figurando na Ls.Bur.1499. Trata-se de um acrescento explicativo, como os que vimos atrás, na transcrição
que fiz do texto da Ls.Bur.1499.
125
Também na Ls.Sev.1520-21: «y encerrólos dentro con llave» (ed. CABASÉS, 2007, 534 b); mas não na
Ls.Bur.1499.
141
Fr. António-José de Almeida, O.P.
«E os romeyros como entrarom mortos de fryo & molhados foyse
cada huũ delles a seu canto da pocilga fazer sua oraçã a d’s. E tomãdo
todo en paciẽcia & por saluar suas almas. & elles bẽ emcerrados
foyse a maa molher deytar em sua cama. & quãdo veeo seu marido
chamou aa porta. & ella de como estaua cõ vinho nõ ouuia chamar
nẽ respondeo. & ajũtarõse todos os vizinhos ao chamado que elle
fazia empero ella nõ acordou atee que emtrarõ cõ escadas pollo
telhado. & foyse ho boõ homẽ deytar na cama cõ sua molher. & ella
cõ o vinho que estaua nella nũca sentyo nada.»
(11) [Passada a meia-noite, o marido pergunta pelos
romeiros, a mulher diz-lhe que os fechou na pocilga, vai o
marido libertá-los e encontra-os mortos]
«E passada a mea noyte ho boõ homẽ pregũtou pollos romeyros en
que logar jaziã126. respõdeo ella quaes romeyros. respõdeo o boõ homẽ.
Aquelles que estauã aqui a nocte que te mãdey apousentar nõ te lẽbra. &
quando se acordou disse que os metera na pocilga dos porcos. & disse
ho boõ homẽ. O falsa treedora. E leuantouse logo & tomou as chaues
& foy apressa quãto pode & abriolhes & chamouos & nõ respõderõ &
emtrou cõ hũa cãdea que leuaua & achouos mortos cada huũ a seu cãto
com as maãos juntas contra o ceeo & hos giolhos fincados. E quãdo os
vyo o boõ homẽ começou de se carpir mujto sobre elles porque assy
morrerõ & en tal logar & tomou [‘consigo muy’]127 grande pesar &
tristeza128.»
(12.) [Enquanto o bom homem pensa como enterrá-los
aparece-lhe um anjo, que o manda levá-los a Roma ao Papa
num carro de bois]
«E quãdo amanheceeo poseos ẽ huũ leyto pera os enterrar & lhes
fazer honrra. E passouse assy este dia & elle dormindo em sua cama
cuydaua como & em que maneyra lhes desse sepulturas & veo o anjo
de d’s a elle dizendolhe que ẽ maneyra nenhũa do mũdo emterrasse
ẽ aquelle logar onde elle cuydaua. mas que os leuasse ẽ seus boys &
ẽ seu carro aa cidade de roma: & os apresentasse ao papa & que os
leuariã129 sem trabalho nẽhuũ.»
«jazia», no texto – gralha clara do tipógrafo.
Entre [‘’] as palavras acrescentadas no texto de Ls.Sev.1520-21 ao português.
Também na Ls.Sev.1520-21: «e tomó consigo muy gran pesar e tristeza» (ed. CABASÉS, 2007, p. 535 a);
mas não na Ls.Bur.1499.
129
«lenariã», no texto – gralha clara do tipógrafo.
126
127
128
142
Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação,
no Flos Sanctorum de 1513
(13) [Quando se aproxima de Roma, todos os sinos tocam
por si próprios. O Papa apercebe-se de que morreu um santo,
e não no encontrando em Roma saem para fora e encontram
o bom homem que traz os corpos. Apresenta-os ao Papa e
conta a história da sua morte]
«E quãdo chegou cõ elles a roma polla graça de d’s to-[f. 163 b]
dos os sinos se tangerõ por sy mesmos. ca em aquelle tẽpo quãdo se
finaua alguũ homẽ sancto ou vinha de fora logo se tangiã hos sinos
por graça de d’s. E quãdo o papa ouuyo os sinos emtẽdeo que algũ
sancto homẽ era finado na cidade: & nõ o achãdo dentro mãdou
sayr fora & que pregũtassem porque se tãgiam os sinos. & logo sayrõ
fora & virom aquelle boõ homẽ que trazia aquelles sanctos corpos
em seu carro com seus bois. E emtrou polla cidade atee que chegou
aos paaços do papa. & apresentou os sanctos ante o papa como lhe
mãdara o anjo E disse o boõ homẽ ao papa. Senhor estes santos homẽs
morrerõ em minha casa. tal nocte & cõtoulhe todo por ordẽ como
elles morrerom»
(14.) [Uma voz anuncia ao Papa que se trata dos quatro
penitentes enviados a Santiago, e que eram santos.
Descobrem--nos e acham-lhes as cabeças coroadas com
coroas de ouro e pedras preciosas]
«E estãdo nesto ouuio o papa hũa voz do ceo que lhe disse que
aquelles erã hos homẽs que elle emviara em penitẽcia a santiago
nuus da cintura pera cima & como erã sanctos diante de d’s polla
penitẽcia que tomarõ & acabarõ nella com boõa contriçã. E o papa
quãdo esto ouuyo elle & os cardeaes & outros homẽs de boõa vida
que estauã hy tirarõ hos sctõs do carro muy onestamẽte cõ grãde
procissam & os descobrirõ & acharõ que tinha cada huũ d’lles hũa
coroa de ouro na cabeça cõ pedras preciosas & cheyrauã como
sanctos. E por esta razã os chamarõ quatro coroados.»
(15.) [O Papa sepulta-os, e prediz ao bom homem que,
quando regressar a casa, os diabos lhe levarão a mulher, pelo
que não valerá a pena oferecer sufrágios por ela]
«& o papa os sepultou por sua maão hõrradamente cada huũ em seu
muymento & aos cardeaes & aaquelle boom homẽ que hos trouxe
em seu carro logo ho papa os absolueo de todos seus peccados.
E disse ho papa ao boõ homẽ que quãdo chegasse a sua casa que
emtrando polla porta que logo morreria sua molher & que lhe
143
Fr. António-José de Almeida, O.P.
leuariã os diabos o corpo & a alma no fundo do inferno & lhe
mãdou que nom fizesse bem nẽhuũ pola sua alma ca nõ lhe prestaua
[=ajudava] nada porque morria em peccado mortal & sem cõfissom|
pois nõ ouuera misericordia dos proues que menos a averia d’s della.
Ca assy o diz sancto agostinho. que o que nõ he misericordioso nõ
merece misericordia.»
(16.) [Regressado o bom homem a casa, os diabos levam-lhe
a mulher e ele acaba a vida em boas obras]
«E o boõ homẽ foyse com seus boys & cõ seu carro. & como ẽtrou
polla porta d’ sua casa: logo morreo sua molher. E vyo elle & outros
que hy estauã ao tempo da morte que hos diabos leuarõ a [f. 163 c]
sua alma cõ muy grãde fedor & arroydo ao ĩferno. E o boõ homẽ
ajnda des pois polo que vyo dos homẽs sanctos & das honrras que
ouuerõ por maão do papa & dos sinos que ouuio tãger & de como
hya absolto de seus pecados: & de como vyo hijr a alma d’ sua
molher cõ os jmijgos maaos se atee hy fez bẽ por serviço de d’s
muyto mais fez de hy adiãte & acabou bẽ sua vida ẽ serviço de d’s.»
2.2. As ilustrações:
Finalmente, analisemos a estampa que ilustra a legenda dos Quatro Santos
Coroados Peregrinos, expiando a relação incestuosa, que o homem, primeiro sob
os efeitos do vinho e depois sem o saber, manteve com duas das três mulheres (a
mãe estuprada e a filha-esposa), sendo a terceira (a filha-neta) vítima inocente.
Ao contrário das anteriores, não existe modelo próximo para esta composição.
Também, diferentemente dos casos anteriores, as mulheres só estão nuas da
cintura para cima, como no fresco de Balsamão. Na verdade, como referi antes
da transcrição do texto, a legenda que vem na Legenda Áurea é totalmente
diferente, embora com o mesmo nome.130 Na Legenda Áurea fala-se dos Quatro
Santos Coroados Escultores, Mártires.131
Dada a substituição do texto, as ilustrações que aparecem nas edições
lionesas referem-se, naturalmente, à legenda dos Quatro Escultores, só existindo
ilustrações adequadas à nova legenda nas edições em castelhano e em português
da Legenda Áurea, com uma excepção, que reputo de grande importância, como
veremos.
130
Sobre esta substituição e sua posteridade no romance de cordel (pliego suelto) está a trabalhar José Aragüés
Aldaz.
131
[Beato Fr.] TIAGO de VORÁGINE [O.P.], Legenda Áurea (trad. portuguesa do original latino de António
Maia da ROCHA, a partir da ed. crítica de Giovanni Paolo MAGGIONI), Porto, Livraria Civilização Editora,
1 Novembro 2004 (ISBN 972-26-2127-0), 2 tomos, t. II, 262 (8 de Novembro).
144
Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação,
no Flos Sanctorum de 1513
Só chegaram até nós duas estampas dos Quatro Peregrinos que se
assemelhariam à que foi estampada seguramente no nosso FSlp.Lis.1513, as
estampadas na Ls.Bur.1499 (f. 208 d) e no Fs.Sev.1540 (f. 462 a).
O livro que habitualmente serve de inspiração ao entalhador das xilogravuras
representando Santos estampadas no Fs.Sev.1540, e, por sua vez, copiadas
pelas que são impressas na Ls.Burgos.1499, é, como vimos, a LaS.Lyo.1486.
Ora a estampa que ilustra a legenda 140 dessa edição lionesa (ver fig. 17),
corespondente aos Quatro Santos Coroados, representa os Quatro Escultores,
como era de esperar. Esta mesma entalhadura será reestampada na edição da
Legenda áurea em catalão saída em Barcelona, a 1 de Fevereiro de 1494, da
oficina de Joan Rosenbach (FsR.Bar.1494), ilustrando a mesma legenda dos
Quatro Escultores (fig. 17).
Ora o que é curioso é que essa mesma legenda dos Quatro Escultores,
incluída na compilação de Fr. Pedro de la Vega, seja ilustrada, na edição
sevilhana de 1540 realizada por Juan Cromberger (o Fs.Sev.1540), por uma
estampa representando os Quatro Peregrinos (fig. 19), semelhante à que ilustra
a Ls.Burgos.1499 (fig. 18). Este facto insólito mais reforça a minha hipótese
de que o jogo de xilogravuras utilizado por Juan Cromberger nesta edição de
1540 tenha sido entalhado para uma edição anterior à Ls.Bur.1499 e que esta
tenha copiado. Ora, dado que Juan de Burgos costuma copiar edições de Paulo
Hurus, tudo leva a crer que essa obra anterior copiada em Burgos tenha sido
uma das que saíram dos prelos saragoçanos de Paulo Hurus em 1490 e 1492 e
das quais não subsiste qualquer exemplar. Essa estampa xilográfica seria muito
semelhante, se não a mesma, que foi estampada em Sevilha, em 1540 por Juan
Cromberger (fig. 19).
A utilização da imagem dos Santos Pergrinos para ilustrar a legenda
dos Santos Escultores, uma história que nada tem a ver com os personagens
representados, parece-me poder corroborar a hipótese que formulo de que Juan
Cromberger utilizou nesta edição um jogo de matrizes xilográficas abertas uns
50 anos antes em Saragoça, na oficina de Paulo Hurus. Como sabenos, não era
rara a longa sobrevivência do material iconográfico, como se pode comprovar
pela reutilização comprovada de uma metalogravura entalhada em Colónia e
utilizada uns 50 anos depois em Sevilha por [Juan] Varela e Juan Cromberger132
Clive GRIFFIN, Los Cromberger. La historia de una imprenta del siglo XVI en Sevilla y Méjico, Madrid,
Ediciones de Cultura Hispánica, 1991 (ISBN 84-7232-621-7), 236 e 257. Na1ª referência, 236, nota 19, cita
James P[atrick] R[onaldson] LYELL, Early Book Illustration in Spain, London, Grafton & Cº Coptic House,
1926, 168 = IDEM, La Ilustración del Libro Antiguo en España (edição, prólogo e notas de Julián MARTÍN
ABAD), Madrid, Ollero y Ramos, 1997 (ISBN: 84-7895-067-2.), 214. Na 2ª referência, cita Arthur M. HIND,
An introduction to a history of woodcut with a detailed survey of work done in the fifteenth century, New
York, Dover Publications, 1963, I, 194.
132
145
Fr. António-José de Almeida, O.P.
Como acontecia com a imagem de Santa Maria Egipcíaca, também o modelo
saragoçano(?)/sevilhano e burgalês é copiado pela entalhadura estampada na
Ls.Sev.1520 (fig. 20), cujo único exemplar se conserva em Loyola, no fólio 169v.
O entalhador de xilogravuras da oficina sevilhana de Juan Varela, possivelmente
já para a edição, perdida, de 1511, deve ter copiado livremente as estampas
saragoçanas impressas numa das edições da Leyenda de los santos saídas dos prelos
de Paulo Hurus, entre as quais estaria o modelo da presente estampa. Não nos
esqueçamos que as xilogravuras relativas à Paixão de Cristo que figuram na edição
conhecida de Juan Varela da Leyenda de los Santos, a de 1520-21 (Ls.Sev.1520-21),
segue muito de perto, simplificando-as, as que são estampadas nas obras saídas dos
prelos da oficina saragoçana, algumas das quais não serão retomadas por Fradique
de Basileia nas suas impressões de 1493 (?). Estas xilogravuras do ciclo da Paixão
impressas por Juan de Varela estarão na origem, por sua vez, de muitas das ainda
mais simplificadas entalhadas pelo ‘Mestre do Vespasiano’ para o FSlp.Lis.1513133.
Posteriormente à impressa na Ls.Sev.1520-21, só conheço duas estampas
xilográficas com este tema. São as que ilustram a Ls.Tol.1554, no fólio 165 b
(fig. 21); e a Ls.Sev.1568, no fólio 173 b (fig. 22). Nelas, os quatro personagens
estão figurados caminhando, e não parados como nas anteriores. Na primeira, eles
chegam a um povoado; na segunda, rezam o rosário, pelo caminho, no campo.
Conclusões
O texto do FSlp.Lis.1513 parece estar entre o da Ls.Bur.1499 e o da
Ls.Sev.1520-21, surgindo nele já muitos dos acrescentos explicativos desta última
edição. É particularmente interessante o caso dos acrescentos realizados na legenda
dos Santos Coroados Peregrinos.
Quanto às ilustrações do FSlp.Lis.1513 e suas congéneres anteriores da
Ls.Bur.1499 formulo a hipótese de elas derivarem de um modelo comum que
teria sido impresso nas primeiras edições da tradução da obra do Beato Jacobo
de Vorágine O.P. em castelhano, da autoria de Fr. Gauberto Fabricio de Vagad
O. Cist., realizadas em Saragoça, na oficina de Paulo Hurus, em 1490 e 1492,
das quais não sobrevieram nenhuns exemplares. As xilogravuras aí impressas
terão sido adquiridas pela oficina sevilhana de Meinado Ungut e Estanislao Polono
133
Esta é uma hipótese que me surgiu quando preparava este texto, devido a ter tido acesso pela primeira
vez à visualização da totalidade das estampas incluídas no exemplar de Loyola (Ls.Sev.1520-21), mercê da
publicação de Félix Cabasés S.J. Na verdade, muitas das soluções adoptadas pelo «Mestre do Vespasiano»
parecem ter nestas xilogravuras sevilhanas a sua origem, possivelmente já estampadas na edição perdida
de 1511. À análise pormenorizada e mais detida das estampas do ciclo da Paixão do FSlp.Lis.1513 espero
consagrar uma publicação num futuro próximo, retomando o que encetei, debravando o terreno, como nela
precisamente afirmo, na minha tese de doutoramento: Fr. António-José de ALMEIDA O.P., Imagens de
Papel..., 238-290.
146
Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação,
no Flos Sanctorum de 1513
por volta de 1497. Daí terão passado para a posse dos Cromberger, herdeiros
dessa oficina, e estampadas por Juan Cromberger na edição de 1540 do livro
chamado Vida de Jesu Cristo y de sus Santos compilado por Fr. Pedro de la Vega
O.S.H. (Fs.Sev.1540). Efectivamente, o herdeiro da oficina saragoçana de Paulo
Hurus, Jorge Coci, imprimiu, em 1516 a primeira de muitas edições da referida
compilação de Fr. Gonzalo Ocaña O.S.H., prior do Mosteiro de Santa María
de la Sisla, perto de Toledo (Fs.Zar.1516), continuada por Fr. Pedro de la Vega,
da mesma Ordem. Ora nessas edições, embora apreçam xilogravuras relativas
à Paixão já anteriormente estampadas em obras dessa oficina, como o Tesoro
de la Pasión de Andrés de Eli (1494) e a Viaje de la Tierra Santa de Bernhard
von Breydenbach (1498), copiadas em Burgos, Sevilha e Lisboa, das ilustrações
relativas aos Santos copiadas mais de perto em Burgos e Lisboa não aparece
nenhuma. Elas foram substituídas pela estampagem de um jogo de xilogravuras
oblongas, algumas duplas, provindas da oficina de Anton Koberger em
Nuremberga, sendo pois dispensável o jogo de entalhaduras que anteriormente
terá sido impresso na capital aragonesa. Mas a reimpressão, em 1521, por Jorge
Coci, de uma xilogravura representando a Elevação angélica de Santa Maria
Madalena de origem lionesa levou-me a perguntar se essa reutilização de uma
matriz antiga não estar ligada ao facto de nessa altura o jogo de xilogravuras de
Santos, estampadas nas primeiras edições saragoçanas da Leyenda de los Santos,
mais pequenas, não teria já desaparecido da oficina. Essa matriz lionesa pode
muito bem ter ido lá parar provindo de Barcelona, onde encontramos a sua
estampagem em data anterior. O curioso está em ela ter sido modelo da que
terá sido entalhada em Saragoça e passado depois a Sevilha, sendo estampada
no Fs.Sev.1540.
Resumindo a minha tese sobre o jogo de matrizes xilográficas representando
os Santos estampadas no Fs.Sev.1540. Estas xilogravuras teriam sido entalhadas
em Saragoça, na oficina se Paulo Hurus, por um hábil entalhador contratado
por este impressor. Passo a chamá-lo «Mestre do Flos Sanctorum (de 1450)».
Teriam sido estampadas nas duas primeiras edições (perdidas) da Leyenda de
los Santos (abrev. LS) impressas em Saragoça, na referida oficina tipográfica de
Paulo Hurus, em 1490 e 1492. Teriam sido copiadas em Burgos, na oficina
de Fadique de Basilea e eatampadas primeiro na edição (hipotética) de 1493
da mesma LS, e dpois na da ca. 1499-1500, realixada por Juan de Burgos (?),
existente na BL. Entretanto, o jogo de matrizes dos Santos do Mestre entalhador
saragoçano teriam passado para Sevilha, para a oficina de Meinardo Ungut e
Estanislao Polono134, e de que Jacobo Cromberger será herdeiro, tendo passado
134
Estabelecidos nessa cidade desde a segunda metade do ano 1490 – B. GARCÍA VEGA, El grabado en el
libro español..., t. II, ed. cit., 105.
147
Fr. António-José de Almeida, O.P.
para seu filho Juan, que empreende a impressão desse FS renascentista, mas
com estampas xilográficas seguramente entalhadas para e impressas primeiro
numa LS. Parece corroborar esta minha hipótese a estampagem no rosto de
um livro saído desta oficina sevilhana em 1512, quando era dirigida por Jacobo
Cromberger, da xilogravura representando S. Jerónimo (WC:26)135, que será
reestampada no Fs.Sev.1540 (f. 413 d)136.
O «Mestre do Vespasiano», cujas estampas da Estoria de Vespasiano (Lisboa,
1496), donde lhe provém o nome, tinham sido copiadas três anos depois em
Sevilha, por Pedro Brun, em 1499,137 inspirou-se grandemente para o cilclo da
Paixão em xilogravuras estampadas por Juan varela (em 1511?), na sua edição da
LS, mas não no que diz respeito aos Santos, em que se inspira nas estampadas
por Juan Cromberger em 1540. Um exemplar de uma das edições da LS de
Saragoça deve ter existido em Sevilha, copiada na oficina de Juan Varela muto
de perto no que diz respeito ao ciclo da Paixão, mas nem tanto quanto aos
Santos. Por certo, Juan Varela encomendou o trabalho de entalhe das matrizes
por ele usadas a dois entalhadores diferentes, dada a urgência em imprimir
livros com figuras em Granada, onde esteve, ao serviço de D. Fr. Hernando de
Talavera O.F.M, arcebispo dessa cidade recém conquistada, de 1504 a 1508,
deslocando-se várias vezes a Sevilha. As xilogravuras impressas em 1511 na sua
edição da LS podem ter sido entalhadas antes da relação que estabeleceu, em
1508, com Jacobo Cromberger, o patriarca dos Cromberger de Sevilha, quando
comprou a meias com ele umas casas em Sevilha. Casará a filha Inés como neto
de Jacobo e filho de Juam Cromberger, Jácome Cromberger.138
Seja como for, Juan Cromberger estampará em 1540 as xilogravuras
entalhadas, segundo creio, em Saragoça, por volta de 1490, para ilustrar a LS. Só
assim se explica a estampagem da entalhadura dos Santos Coroados Peregrinos
para ilustras a legenda dos Santos Coroados Escultores. Não estampa a xilogravura
icónica de S. Francisco de Assis que faria parte desse jogo de matrizes, mas uma
Estigmatização do Santo de Assis, que é repetida para ilustrar as legendas de
outros Santos frades franciscanos. Quanto à estampa ilustrativa da legenda de S.
Luís rei de França, esta vem com as flores-de-lis do manto desbastadas, coisa que
Sigla utilizada por Clive GRIFFIN, The Cromberger of Seville. History of a Printing and Merchant
Dynasty, Oxford, Clarendon Press, 1988, Appendix 3, Microfichas, *1331.
136
Refiro-me ao Speculum ecclesie cum multis additionibus, da autoria do Beato Hugo de San Caro O.P.,
acabado de imprimeir em Sevilha, por Jacobo Cromberger, a 17 de Dezembro de 1512. – <http://fama.
us.es/search~S5*spi?/cA+336%2F015/ca+336+015/1,1,1,E/l856~b1518555&FF=ca+336+015&1,1,,1,0/
startreferer//search~S5*spi/cA+336%2F015/ca+336+015/1,1,1,E/frameset&FF=ca+336+015&1,1,/
endreferer/>.
137
Artur ANSELMO, Les Origines de l’imprimerie au Portugal. Braga, Barbosa & Xavier, Février 1983, 409.
138
Julián MARTÍN ABAD, Los primeros tiempos de la imprenta en España (c. 1471-1520), Madrid,
Ediciones del Laberinto, © e DL 2003 (ISBN 84-8483-086-1), 57.
135
148
Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação,
no Flos Sanctorum de 1513
não aconteceu nas cópias impressas na Ls.Bur.1499 e no FSlp.Lis.1513.
Esta é uma hipótese de trabalho, que pode ser confirmada ou infirmada por
investigações posterores.
Ao falar aqui do Fs.Sev.1540 e das suas relações com as xilogravuras
entalhadas em Saragoça na oficina aí estabelecida por Paulo Hurus, não posso
deixar de referir uma imagem que faz parte das minhas pesquisas actuais139.
Nesta obra figura a estampagem de uma entalhadura, representando uma
Trindade trifacial com scutum fidei rodeada pelo tetramorfo (fig. 24), que é
cópia muito fiel (das mesmas dimensões, 88x66 mm.) de uma outra estampada
pela 1ª vez na oficina de Paulo Hurus em 1494 (fig. 23a), como noticiei no
meu artigo para as Actas do IV Congresso Internacional de Cister em Portugal e na
Galiza, realizado em Braga e Oseira nos dias 1,2 e 3 de Outubro de 2009. Essa
entalhadura reestampada, quando a oficina já está dirigida por Jorge Coci, na
1ª edição do Flos Sanctorum renascentista140, em 1516 (88x66 mm.) (fig. 23b),
mas será substituída por outra (fig. 26) na 2ª edição desta obra, de 1521 (Fs.
Zar.1521-33, Iª parte, fol. 109), que depois será reimpressa em todas as edições
saragoçanas desta obra – estampa bastante mais pequena (63x41 mm.), pelo
menos até à edição de 1548 (BnP). Na 1ª edição da Iª Parte do Flos Sanctorum
de Villegas será estampada uma entalhadura (fig. 25) copiada da que foi impressa
na oficina saragoçana desde Paulo Hurus em 1494 a 1516, já por Jorge Coci,
mas de dimensões um tudo nada mais pequenas (82x61).
A figura de mulher deitada, despida da cintura para cima, que foi desoberta
na igreja do santuário de Balsamão (fig. 1), parece poder identificar-se com uma
santa penitente, dado o tipo de penitência medieval consignado na legenda dos
Santos Coroados e o costume de representar as Santas Marias penitentes
(a Egipcíaca e a Madalena) na posição alongada, no interior de uma gruta.
A representação da Madalena só coberta só com um manto tapando o corpo da
cintura para baixo é comum nos finais do século XVI. Vejam-se, por exemplo,
dois casos, em que ela assim aparece, embora não deitada, como no fresco
basamanense: em Portugal, a tela (207x134 cm.) que Francisco Venegas, (?1594) pintou a óleo, por volta de1590, óleo sobre tela para a Igreja da Graça,
em Lisboa141; e, na vizinha Espanha, os dois relevos em madeira dourada
«A representação de Deus uno e trino», tema do programa de investigação de pós-doutoramento que
desenvolvo actualmente, mercê de uma bolsa concedida para o efeito pela Fundação para a Ciência e a
Tecnologia.
140
Assim designa José ARAGÜÉS ALDAZ os Flores Sactorum compilados pelos monges jerónimos
Fr. Gonzalo de Ocaña e Fr. Pedro de la Vega, em Tendencias y realizaciones en el campo de la Hagiografía
en España, art. cit., e em Para el estudio del Flos Sanctorum Renacentista (I), art. cit.
141
Reproduçaão, v. g., em: MONJAS DOMINICANAS do LUMIAR (coord.)) Monjas Dominicanas:
presença, arte e património em Lisboa, Lisboa, Alétheia Editores, Dezembro de 2008, 141; e em: <http://
www1.ci.uc.pt/artes/6spp/imagens/venegas_madalena1.jpg>.
139
149
Fr. António-José de Almeida, O.P.
e policromada (116x58x5, cada um), atribuídos a Juan de Arriaga o Artega,
do último quatel do séc. XVI, existentes na igreja paroquial de San Miguel
Arcángel, em Caltojar (Sória)142.
No caso da Egipcíaca, a tradição manuscrita de Alcobaça refere a dádiva do
manto por parte de S. Zózimo, no qual a Santa se envolveu143:
«E logo [Zozimas] desvistyo huũ pano mui velho que trazia e lançoulho [a Mª Egipcíaca], cõ a face tornada a outra parte. E ella tomou-o
e cingê-o arredor de sy, assy como pôde, e cobryo a parte necessarya do
corpo e teve mentes ao santo homẽ (...)» (Versão V – Alcobacense
CCLXVI/Livraria 2174)
«E el [Zozimas], com a face atras tornada emviou-lhe huũ pano muyto
velho que tragia vestido com que cobrisse sua vergonça. Ella tomou-o
e cingê-o arredor de sy e cobryo a parte necessaria de seu corpo. E teve
mẽtes ao sancto homẽ (...)» (Versão W – Alcobacense CCLXX/
Livraria 771)
Formulo aqui a hipótese de se tratar de Santa Maria Egipcíaca, a santa
penitente no deserto, devido à intercessão de Nossa Senhora, a quem a nossa
ermida é dedicada, e a quem a nossa santa constantemente invocava, no meio
das tentações.
Transcrevo, em seguida, a belíssima oração que Maria Egipcíaca dirigiu
a Nossa Senhora, representada no ícone colocado no átrio da Basílica da
Anástasis144, em Jerusalém:
«Sainte Vierge, qui donna sa chair à Dieu le Verbe, je sais, je
sais qu’il est indécent qu’une femme aussi impure et vicieuse
contemple ton icône, Vierge très Sainte et pure, à toi, qui a
préservé ton corps et ton âme de toute impureté et de toute
souillure. Vicieuse comme je le suis, je dois à juste titre inspirer
la colère et la répulsion à ta pureté. Si, comme je l’ai entendu
dire, Dieu, qui naquit de toi, s’est fait homme pour amener les
142
Catálogo da exposição Paisaje interior, Soria, Las Edades del Hombre, 2009, 415, cat. nº 105, (comentário
de Ana CASTRO SANTAMARÍA, 415-417).
143
Cristina SOBRAL, Santa Maria Egipcíaca em Alcobaça (tese Mestrado), ed. cit., 1991, 101 e 159,
respectivamente.
144
Conhecida no Ocidente como Basílica do Santo Sepulcro, que engloba a colina do Calvário e a Rotunda
do Túmulo Vazio.
150
Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação,
no Flos Sanctorum de 1513
humains au repentir, viens en aide à une femme solitaire, qui ne
peut attendre d’aide de personne. Ordonne que l’entrée de l’église
me soit ouverte, ne me prive pas de la possibilité de contempler la
Croix sur laquelle fut cloué en chair Dieu que tu mis au monde
et sur laquelle il versa son Sang pour mon rachat. Ordonne que
me soit rendue possible la sainte prosternation devant la Croix.
Je t’invoque comme sûre garante devant Dieu, ton Fils, que je
ne souillerai plus jamais ce corps par un accouplement honteux,
mais, sitôt que j’aurai vu la Sainte Croix de ton Fils, je renoncerai
au monde et à tout ce qu’il contient et me retirerai là où tu me
l’ordonneras et me conduiras, Sainte Garante de mon salut».145
Lembremos que Santa Maria Egipcíaca recebeu a Eucaristia como viático
na Quinta-feira de Endoenças e morreu na Sexta-feira Santa. Se o nicho na
parede, que a figura feminina tem à frente da cabeça, é o vestígio de um sacrário
parietal, como Joaquim Inácio Caetano suspeita, então este seria mais um dado
a corroborar a minha hipótese. Uma versão próxima dos textos encontrados nos
manuscritos alcobacenses146, mais longos que a legenda breve recolhida pelo
Beato Jacobo de Vorágine O.P., pode muito bem ter sido do conhecimento dos
cistercienses transmontanos e essa narrativa ter chegado ao encomendante dos
frescos balsamanenses.
No conjunto afrescado que se conserva junto da cabeçeira da igreja de Nossa
Senhora de Balsamão, do lado o Evangelho (fig. 27), S. João Baptista apondando
o Cordeiro de Deus seria, segundo esta hipótese, uma «figura de convite» sobre
o sacrário, lembrando a comunhão que Maria Egipcíaca recebeu na igreja
dedicada a esse santo nas margens do rio Jordão, antes de se adentrar no deserto,
e o eremita ao lado do Precursor seria São Zózimo, que encontrou a Santa no
deserto e lhe levou a sagrada comunhão, como viático.
Não posso deixar de referir aqui o fresco de Assis, na basílica inferior de
S. Francisco, na capela de Santa Maria Madalena, o nº 5, em que é figurado o
encontro de um eremita com uma santa mulher numa cova, identificada como
Santa Maria Madalena, mas que mais lembra a vida de Santa Maria Egipcíaca.147
Madalena é, pois, também uma forte candidata, mesmo que confundida com a
Egipcíaca, tanto mais que ela foi objecto da pregação dos Mendicantes148, como
145
Trascrevo a tradução em francês do texto de S. Sofrónio de Jerusalém – <http://www.pagesorthodoxes.net/
saints/marie-egyptienne.htm#mir>.
146
Cristina (Maria Matias) SOBRAL, Santa Maria Egipcíaca em Alcobaça: edição crítica das versões
medievais portuguesas da lenda de Maria Egipcíaca, Lisboa, [Colibri], 1991. Tese de mestrado em Literatura
Portuguesa, apresentada ao Departamento de Literaturas Românicas, da Fac. de Letras da Univ. de Lisboa.
147
<http://www.gliscritti.it/gallery2/v/assisigiottomaddalena/eremita.jpg.html>
148
Katherine Ludwig JANSEN, The Making of the Magdalen: Preaching and Popular Devotion in the Later
151
Fr. António-José de Almeida, O.P.
é o caso desta série na igreja inferior do Sacro Convento dos Franciscanos, em
Assis. Além disso, os Frades Pregadores (Dominicanos) têm-na como padroeira
da Santa Pregação e da Teologia, invocando-a nos seus textos litúrgicos próprios,
à semelhança do que acontece na Igreja Oriental, como a «Apóstola dos
Apóstolos». No Milagre de Soriano, ela acompanha Nossa Senhora, juntamente
com Santa Catarina de Alexandria, padroeira da Filosofia e da Ciência Cristã.
E na mentalidade popular ocidental as duas santas confundiram-se desde muito
cedo.
Quanto à iconografia dos outros dois personagens (S. João Baptista e
o Eremita), espero poder consagrar-me a eles mais pormenorizadamente
num futuro artigo. Avanço no entanto aqui algumas hipóteses, por etarem
relacionadas com a possível identificação da figura feminina.
Fr. António-José de Almeida, O.P.
Investigador de Pós-Doutoramento (Universidades de Estrasburgo e do Porto)
Bolseiro da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia
Investigador do CITCEM
Middle Ages, Princeton (New Jersey), Princeton University Press, 2000 (ISBN13: 978-0-691-08987-4).
152
Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação,
no Flos Sanctorum de 1513
Figuras
1
Fig. 1 - Igreja de Nossa Senhora de Balsamão, Chacim (Macedo de Cavaleiros),
Mulher deitada (foto Joaquim I. Caetano)
2
3
4
6
5
7
Santa Maria Egipcíaca
Fig. 2 - Flos sanctorum Romançat, Barcelona, Joan Rosenbach, 1 Fevereiro 1494, f. CXXIIII [sic,
aliás 104] a.
Fig. 3 - Leyenda de los Sanctos, [Burgos, Juan de Burgos, c.1499], f. 74 c.
153
Fr. António-José de Almeida, O.P.
Fig. 4 - Flos sanctorum em linguagem português, Lisboa, Hermão de Campos & Roberto Rabelo,
15 Março 1513, f. 57 c.
Fig. 5 - Fr. Pedro de la VEGA, O.S.H., Libro que es llamado vida de Jesu christo y de sus sanctos,
Sevilla, Juan Cromberger, 1540, f. 221 b.
Fig. 6 - Fr. Diogo do ROSÁRIO, O.P., História…dos Santos, Braga, António de Mariz, 1567, II,
168 c – “S. Hilarion.”
Fig. 7 - Leyenda de los Santos: que vulgarmente Flossanctorum llaman, [Sevilla, Juan Varela de
Salamanca, ca. 1520-1521], f. 57v.
8
9
Fig. 8 - Fr. Gonzalo de OCAÑA, O.S.H., La vida y pasión de nuestro señor Jesu Cristo, y las
historias de las festividades de su santísima madre con las de los santos apóstoles, mártires,
confesores, y vérgines, Zaragoza, Jorge Coci, 26 Abril 1516, [II], f. 168 v.
Fig. 9 - Leyenda de los Santos: que vulgarmente Flos Sanctorum llaman, Sevilla, Juan Gutierrez,
1568, f. 56 d.
Sta. Maria Madalena
Fig. 10 - Flos sanctorum Romançat, Barcelona, Joan Rosenbach, 1 Fev. 1494, CLXXIX [sic, aliás
f. 157] a.
Fig. 11 - Leyenda de los Santos, [Burgos, Juan de Burgos, ca. 1499], f. 133 c.
Fig. 12 - Flos sanctorum em linguagem português, Lisboa, Hermão de Campos & Roberto Rabelo,
15 Março 1513, f. 103 a.
Fig. 13 - Fr. Pedro de la VEGA, O.S.H., Libro que es llamado vida de Jesu christo y de sus sanctos,
Sevilla, Juan Cromberger, 1540, f. 303 d.
Fig. 14 - Fr. Pedro de la VEGA, O.S.H., La vida de nuestro señor iesu cristo, y de su sanctissima
madre, y de los otros sanctos, segun la orden de sus fiestas, Zaragoza, George Coci
Aleman, 1541, f. 288 r., est. dir. (reestampagem de LdH.Aug.1488, S., f. 72 r)
154
Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação,
no Flos Sanctorum de 1513
10
11
12
13
14
Fig. 15 - Fr. Pantaleão de AVEIRO, O.F.M., Itinerario da Terra Sancta... (Lisboa, [António Álvares],
1600, f. [XII] depois da ‘taboadas’.
Fig. 16 - Leyenda de los Sanctos: que vulgarmente Flos Sanctorum llaman, Sevilla, Juan Gutierrez,
1568, f. 109 a.
16
15
155
Fr. António-José de Almeida, O.P.
Quatro Santos Coroados
17
18
19
20
Fig. 17 - Flos sanctorum Romançat, Barcelona, Joan Rosenbach, 1 Fev. 1494, f. CCLXXXVII [sic,
aliás 265] a (reestampagem da xilogravura impressa na Legenda aurea sanctorum,
Lyon, Mathias Huss, 20 Julho 1486, legenda 160).
Fig. 18 - Leyenda de los Santos, [Burgos, Juan de Burgos, ca. 1499], f. 208 d.
Fig. 19 - Fr. Pedro de la VEGA, O.S.H., Libro que es llamado vida de Jesu christo y de sus sanctos,
Sevilla, Juan Cromberger, 1540, f. 462 a.
Fig. 20 - Leyenda de los Santos: que vulgarmente Flossanctorum llaman, [Sevilla, Juan Varela de
Salamanca, ca. 1520-1521], f. 169v.
21
156
22
Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação,
no Flos Sanctorum de 1513
Fig. 21 - Leyenda de los Sanctos: que vulgarmente Flos Sanctorum llaman. Agora de nueuo
corregida..., Toledo, Juan Ferrer, 1554, f. 165 b.
Fig. 22 - Leyenda de los Sanctos: que vulgarmente Flos Sanctorum llaman, Sevilla, Juan Gutiérrez,
1568, f. 173 b.
Santíssima Trindade trifacial
23a
23b
24
25
26
Fig. 23a - Andrés de ELI, Tesoro de la Pasión, Zaragoza, Paulo Hurus, 1494.
Fig. 23b - Fr. Gonzalo de OCAÑA, O.S.H., La vida y pasión de nuestro señor Jesu Cristo, y las
historias de las festividades de su santísima madre con las de los santos apóstoles,
mártires, confesores, y vérgines, Zaragoza, Jorge Coci, 26 Abril 1516, [I], f. 90 a.
Fig. 24 - Fr. Pedro de la VEGA, O.S.H., Libro que es llamado vida de Jesu christo y de sus sanctos,
Sevilla, Juan Cromberger, 1540, f. 134 a.
Fig. 25 - Alonso de VILLEGAS, Flos Sanctorum, Iª Parte, Zaragoza, Simon de Portinariis, 1585,
f. 53 d.
Fig. 26 - Fr. Pedro de la VEGA, O.S.H., Flos Sanctorum, Zaragoza, Bartolomé de Nágera, 1548,
f. 127 a.
157
Fr. António-José de Almeida, O.P.
27
Fig. 27 - Balsamão, Chacim (Macedo de Cavaleiros),
Visão geral da zona afrescada sobrevivente
(foto Joaquim I. Caetano)
ABSTRACT:
The attempt to identify a recumbent, half-naked female figure, which was
recently discovered in a wall painting in the Church of Our Lady of Balsamão,
in Chacim (Macedo de Cavaleiros, Trás-os-Montes), prompted the author of
this paper to investigate the lives and illustrations of penitent naked female
saints on Legendaries printed in Europe during the 15th and 16th centuries,
with particular reference to the Iberian Peninsula, and specifically to the Flos
Sanctorum em lingoagem portugues, printed in Lisbon at 1513. In them there
are two kinds of naked female saints linked with penitential forms of life: those
that lived in desert or uninhabited places (such as Saint Mary of Egypt or
Saint Mary Magdalene), but also those that had went on pilgrimage (the three
women of the Iberian legend of the Four Crowned Saints).In connection with
his current subject of research, the author takes this opportunity of publishing
also the results of his recent research in the field of prints illustrating the trifacial
Holy Trinity holding the scutum fidei, and surrounded by the Evangelical
tetramorph.
158
La noble penitencia: caballeros y damas
penitentes en la literatura profana
de los siglos XV y XVI
Bien es sabido que la literatura profana de los siglos XV y XVI se nutre
de motivos populares más o menos reconocibles, procedentes de ámbitos muy
diversos. En la narrativa de ficción resulta particularmente interesante observar
que algunas de las aventuras más características se elaboran sobre modelos que
formaban parte del universo propio del discurrir vital de figuras ligadas, de
uno u otro modo, al ámbito espiritual y que, a esas alturas, formaban ya parte
ineludible del imaginario ejemplar dentro de la moral cristiana. Son muchos los
casos en los que podemos rastrear modelos de comportamiento y situaciones
afines al universo espiritual, sin que esto signifique, necesariamente, que los
autores compusieran sus ficciones atendiendo exclusivamente a esos modelos.
Hay que pensar, más bien, en arquetipos narrativos comunes a diferentes épocas
y tradiciones literarias, o - lo que resulta mucho más plausible y no invalida
la explicación anterior - en una hábil reutilización de motivos que se sabía
resultaban efectivos; una suerte de catálogo inmediato de hechos extraordinarios
y maravillosos, que excitarían la fantasía de los lectores, pero que no implicaban
una dependencia directa. Sin embargo, parece fuera de toda duda que tanto los
autores como los lectores eran conscientes de estas evidentes relaciones, y de que
eran utilizadas para resaltar un cierto paralelismo entre ambas situaciones1.
Como ya indicamos en otra ocasión, los motivos bíblicos resultan particularmente fructíferos para la
elaboración de la ficción narrativa; no en vano, el ideal de caballería y la esencia de la función caballeresca
se formuló básicamente sobre modelos bíblicos de comportamiento. Véase María Isabel TORO PASCUA, La
Biblia en la literatura de ficción en la Edad Media, in Gregorio del Olmo Lete (dir.), La Biblia en la literatura
española. I/1. Edad Media. El imaginario y sus géneros. Madrid, 2008, 237-270. No podemos olvidar que
la mayoría de los esquemas narrativos de la Biblia responden a patrones míticos en los que se desarrollan
conflictos universales, no exclusivos de este texto; muchos de ellos se repiten en la literatura, bien por influjo
directo del relato bíblico, bien merced al conocimiento popular o folclórico del patrón narrativo. Véanse los
trabajos de Northrop FRYE, History and Myth in the Bible, in The Literature of Fact, New York, 1976 y, con
un desarrollo más amplio del tema, The Great Code. The Bible and Literature, New York, 1982.
1
159
María Isabel Toro Pascua
Por este camino, no resulta extraño que algunos personajes de estas narraciones
se transfiguren en penitentes. Si bien la función de este argumento es muy diferente
según el contexto narrativo al que nos acerquemos, es posible establecer una suerte
de tipología en la que podemos diferenciar los distintos usos y funciones de este
motivo en la prosa de ficción de los siglos XV y XVI, atendiendo, por un lado, al
espacio y las circunstancias en que se desarrolla la penitencia y, por otro, al papel que
tal argumento desempeña en el cañamazo estructural de la narración.
En primer lugar, nos las habemos con aquellos casos en los que la penitencia
se desarrolla en el contexto de una peregrinación. Lejos de combinarse ambos
argumentos (el penitencial y el de la peregrinación, como parecería lógico),
vemos que el primero de ellos sirve, únicamente, como punto de partida con el
que justificar el segundo; esto es, la penitencia que debe soportar el personaje
al comienzo de la historia es utilizada, exclusivamente, como punto de partida
sobre el que se asienta toda la estructura itinerante de la narración, narración
ajena en su desarrollo posterior a los motivos propios de la penitencia, que
desaparece por completo de la historia. Las calamidades y los sufrimientos que
habrá de soportar el protagonista son interpretados en un contexto totalmente
diferente: el de la demostración de la nobleza arquetípica dentro de los
parámetros caballerescos y, en ningún caso, espirituales. En definitiva, son las
pruebas típicas impuestas al héroe, o a la heroína, en el relato de caballerías. En
estos casos, además, la penitencia, voluntaria o no, suele ser injusta para quien la
cumple, puesto que con ella purga un pecado que no ha cometido.
En segundo lugar, encontramos la penitencia que se desarrolla en lugares
cerrados e inhóspitos. Al contrario de lo que sucedía en el caso anterior, el
argumento penitencial se utiliza aquí como desenlace último de la historia,
casi a modo de deus ex machina que se impone inevitablemente como único
medio a través del cual es posible resolver los acontecimientos narrados. En estos
contextos, la penitencia es siempre impuesta (ya sea por el mismo Dios o ya sea
por otros actantes de la historia) y responde al merecido castigo exigido por
la rupura de un férreo código de comportamiento que desestabiliza de forma
absoluta el orden caballeresco, orden que solo puede ser restablecido a través de
la penitencia, en una suerte de justicia narrativa final.
Por último, en algunas obras el motivo penitencial se desarrolla en el
apartamiento del desierto, considerado en la literatura religiosa no solo como
lugar de contemplación y de realización del contemptus mundi, sino también
en el hábitat idóneo para el fortalecimiento espiritual mediante la resistencia
a las fuerzas del mal en una suerte de ascesis personal; tema que, desde luego,
se imbrica de forma directa con la figura del ermitaño2. En la prosa de ficción,
2
160
Véase, entre otros, Daniel DE PABLO MAROTO, Historia de la espiritualidad cristiana, Madrid, 1990, 76.
La noble penitencia: caballeros y damas penitentes en la literatura profana
de los siglos XV y XVI
sin embargo, lejos de pretensiones espirituales de este tipo, el argumento queda
reducido a un simple motivo que no incide de forma directa en el cañamazo
estructural de la historia, como sí sucede en los dos casos antes señalados,
sino que se suma a otros tantos, de procedencia muy diversa, para reproducir
arquetipos de comportamiento que contribuyen únicamente a la caracterización
del caballero como perfecto enamorado que, solo temporalmente y de forma
voluntaria, adquiere el disfraz propio del penitente.
1. La penitencia como peregrinación. Inicio del itinerario narrativo
Dentro de este primer tipo nos encontramos con situaciones muy diversas, si
bien todas ellas responden, en última instancia, a los motivos previos, y siempre
injustos, que abocan al personaje al estado penitencial.
Uno de estos motivos es la existencia de una falsa acusación, de manera
que el argumento penitencial se imbrica, además, con otros motivos de origen
bíblico, como el de las mujeres acusadas de mantener relaciones antes o fuera
del matrimonio (Deut 22,20-21), y la petición de someterse a una ordalía para
librarse de esas acusaciones, como la relatada en Num 5, 11-28, a la que también
se somete María en el Protoevangelio de Santiago 16,2 y en el Evangelio del
Pseudo Mateo, 12, 3.
Entre los textos en los que esta utilización resulta evidente contamos con la
Historia de la reina Sebilla, obra que procede de una gesta francesa, la Chanson
de Sebille, en la que se relatan las peripecias de la esposa de Carlomagno tras
ser acusada de adulterio y desterrada de la corte3. Aunque en este caso las
implicaciones con el contexto más estríctamente espiritual pudieran resultar
muy claras, lo cierto es que el motivo de la penitencia solo explica el inicio de la
ficción novelesca y permite que esta discurra por los derroteros de la ejemplaridad
caballeresca y cortesana al uso, si bien la insistencia en esta ejemplaridad
permitió la lectura de la obra como relato edificante, e incluso casi hagiográfico,
tal y como parece indicar la inclusión de la versión manuscrita en el códice h-I-13 de
la Biblioteca del Escorial, una suerte de antología de nueve relatos entre los que
se cuentan las vidas de Santa María Egipciaca, Santa María Madalena o Santa
Marta. En todo caso, el siglo XVI vuelve a reinterpretarla dentro de un grupo de
relatos caballerescos, y, como tal, ha sido editado recientemente; no en vano, su
aspecto edificante, más allá incluso de la tantas veces mencionada ejemplaridad
caballeresca, queda bastante atenuado a la luz de los parámetros narrativos que
guían toda la novelita4.
La obra circuló en castellano, por lo menos, desde el siglo XIV (conservamos una versión manuscrita bajo
el título Noble cuento del emperador Carlos Maynes y de la reina Sebilla, su mugier), y fue editada en seis
ocasiones entre c.1500 y 1623,
4
Véase la introducción a esta obra y la edición de la misma de Nieves BARANDA, Historias caballerescas
3
161
María Isabel Toro Pascua
El argumento comienza ya con la falsa acusación de adulterio que el grotesco
y lascivo enano lanza contra la reina Sebilla, después de que esta haya rechazado
sus requerimientos de amores; requerimientos que, incluso, conducen al malvado
personaje a meterse, impunemente, en la cama de la reina dormida para ser
sorprendido así por el propio Carlomagno. A partir de este momento, los
acontecimientos se precipitan: Sebilla es condenada a morir en la hoguera, momento
en el que descubre ante todos que está encinta del rey, con lo que la pena de muerte
es aplazada hasta el nacimiento de la criatura. La reina será entonces desterrada y
obligada a hacer penitencia durante una larga peregrinación que le conducirá hasta
Hungría, donde pare y cría a su hijo, cuyo destino será el de restituir la honra de su
madre mediante el ejercicio bélico al mando de un poderoso ejército renunido por
el emperador de Constantinopla, padre de Sebilla, y el Papa.
«E quando esto oyeron los ricos hombres, ovieron gran plazer y
agradesciérongelo mucho. Dixo el rey:
­– Dueña, por aquel Señor que es en trinidad, porque me avedes
escarnescido, que si vos oviéssedes muerto a mi padre y a mi madre y a
todo mi linage, no vos haría mal, que tal es mi voluntad. Mas vos salid de
mi tierra, que si de mañana en adelante en ella vos hallo, por la cristiandad
que yo tengo, yo vos haré destruir, que no vos valgan quantos en el mundo
son.
Dixo la reina:
– Señor, ¿dó irá esta cativa quando de vos se partiere?, que yo no
sé el camino ni el sendero.
– Dueña, no sé qué será de vos, mas de hazerlo vos conviene y
Dios vos guiará según que vos merescedes.
El rey acató enderredor de sí y vido un cavallero en que se fiava
mucho y muy leal y muy bueno, de buenas maneras y buen cavallero
d’armas, que llamavan Auberín de Mondiser, e dixo el rey:
– Auberín de Mondiser, ir vos conviene con esta dueña hasta
que sea fuera del monte y, después que la sacáredes, irse ha por el gran
camino derechamente para el apostólico de Roma y manifestarse ha de
sus pecados, y tomará dellos penitencia, que mucho fue errada quando se
echó con el enano.
del siglo XVI, Madrid, 1995. Nuestras citas del texto están tomadas de esta edición, por lo que solo indicaré
la página entre paréntesis.
162
La noble penitencia: caballeros y damas penitentes en la literatura profana
de los siglos XV y XVI
Dixo Auberín de Mondiser:
– Señor, yo haré vuestro mandado.»5
Pese a este inicio de la historia, tras el mandato de Carlomagno y la partida
de la reina, los acontecimientos se centran en las desventuras que la noble Sebilla
ha de sufrir en su itinerario, sin que en ningún momento vuelva a aparecer la
esfera temática penitencial, ni aún la de la peregrinación. Por el contrario, el
anónimo autor nos cuenta la traición de Macaire, que mata al caballero Auberín,
y la fidelidad de Baruquel como nuevo acompañante de la dama tras encontrarla
perdida en el monte junto al perro de Auberín, también fiel en todo momento
a Sebilla. Tras el nacimiento de Luis, el hijo de Carlomagno y su injustamente
acusada esposa, el relato discurre a través de los preparativos de la batalla final,
en la que el orden en la corte de Carlomagno quedará finalmente restituido.
En este sentido, es importante destacar el capítulo 14, en el que aparece el
esperado y acostumbrado ermitaño de este tipo de obras; sin embargo aquí, a
pesar de las clarísimas referencias a los tópicos más manidos en la configuración
de este personaje, incluso con connotaciones eucarísticas, muy lejos de
convertirse en consejero espiritual del joven infante o de la propia reina que
parte de su casa como peregrina penitente, decide abandonar su vida eremítica
tras treinta años de absoluto apartamiento para dedicarse de lleno a la hazaña
bélica. El episodio evita, en todo momento y de forma explícita, los aspectos
edificantes o ejemplarizantes que el propio motivo colocaba tan fácilmente en la
pluma del autor, y lo hace, además, en un giro brusco que desvía de forma muy
llamativa el papel del ermitaño en el devenir de la historia:
«Y tanto que llegaron a la hermita, vieron la casa del hermitaño
y la puerta, que era muy pequeña, y a la entrada avía una campanilla
colgada en una finiestra. Y Baruquel tocó la campanilla y el hermitaño
que estava en oración maravillóse mucho quando oyó llamar, porque
muy gran tiempo avía que estava allí en aquel desierto y nunca en
aquel tiempo avía visto ni oído persona alguna, sino las bestias fieras
que por aí andavan. Por lo qual fue muy turbado pensando que era
alguna tentación del diablo. Empero tornó en sí y encomendóse a Dios
y a Sancta María su madre, a quien era muy devoto, y salió fuera [...]
Y luego el hermitaño entró en su celda y sacó un pan de ordio y de
avena, y no lo quiso partir con su cuchillo, mas partiólo con las manos
y hizó dél quatro partes y dio a cada uno la suya. Y quando ovieron
5
Noble cuento del emperador Carlos Maynes y de la reina Sebilla, su mugier, 426.
163
María Isabel Toro Pascua
comido, la reina Sebilla llegóse al hermitaño y començó a fablar con él,
y dixo:
– Señor, consejadme, que mucho lo he menester.
El hermitaño le dixo:
– Dueña, ¿de dónde sois y de qué tierra venís?6
La reina cuenta entonces su historia, ante lo cual la respuesta del ermitaño no
deja lugar a dudas con respecto a este desplazamiento que venimos comentando:
« – Dueña, vos sois mi sobrina y no pongáis en ello dubda. Pero yo vos
diré qué hagáis: conviene que vos holguéis aquí y yo iré al apostólico
de Roma y darle he desto querella y contarle he todo vuestro fecho,
y él porná sentencia de descomunión sobre Carlos si vos no quisiere
recebir. Y después iré a vuestro padre el emperador a contarle todo
esto, y hazerle he llegar sus huestes y iremos a guerrear a Francia. E si
Carlos no vos quisiere recebir, no le fallecerá guerra, en manera que lo
echemos de la tierra con deshonra. Y quiérome partir desta hermita y
tornarme he al siglo a traer armas, y el trabajo que hasta aquí rescebí,
todo lo quiero dexar y pugnar en vos tornar en vuestro reino.»7
Parece claro que la penitencia impuesta al comienzo de esta pieza no es
más que un motivo con el que incidir en la injusticia cometida contra la
protagonista, infiriendo a la narración una simple referencia que funciona
como recurso conmovedor ante los receptores, pero que no se integrará, en
ningún momento, en la estructura narrativa posterior8.
Noble cuento del emperador Carlos Maynes y de la reina Sebilla, su mugier, 427.
Noble cuento del emperador Carlos Maynes y de la reina Sebilla, su mugier, 428.
No solo es una falsa acusación la que provoca la necesidad penitencial; en otras ocasiones es la obligación
de purgar un pecado heredado. Es lo que nos encontramos en una obra anterior al período del que aquí nos
ocupamos, el Libro del caballero Zifar, escrita hacia 1330-1340 (véase Juan Manuel CACHO BLECUA,
Los problemas del Zifar, in El caballero Zifar. Códice de París, ed. Francisco Rico y Rafael Ramos,
Barcelona, 1996, 55-94). El libro narra la historia de Zifar y su familia que, como castigo por los pecados de
su antepasado, el rey Tared, arrastran una maldición: en concreto, ningún caballo le dura más de diez días.
Agobiados por su situación, abandonan el reino de Tarta, en la India, e inician un largo peregrinar en un
intento por buscar un futuro mejor para él y sus hijos a través del sacrificio personal y de las continuas veces
que Dios le pondrá a prueba y que Zifar aceptará con cristiana resignación. Bien es verdad que, en este caso,
la narración sí discurre por derroteros cercanos a los de la hagiografía, y que no en vano presenta muchas
similitudes con la vida de san Eustaquio; y también lo es que el relato entero puede incluso interpretarse como
una Biblia en miniatura (véase María Isabel TORO PASCUA, La Biblia en la literatura de ficción en la Edad
Media, ed. cit., 249-252). Pero no podemos pasar por alto el hecho de que en la novela todo esto se asienta
sobre un motivo añadido que sirve de arranque inicial y que no podemos obviar: la necesidad, de nuevo, de
6
7
8
164
La noble penitencia: caballeros y damas penitentes en la literatura profana
de los siglos XV y XVI
2. La penitencia en lugares cerrados e inhóspitos. Desenlace narrativo
Por lo que se refiere al segundo de los tipos establecidos, hay que destacar
que, también en estos casos, nos las habemos con una forma de ejemplificación
edificante dentro de los tópicos caballerescos y al margen de principios espirituales.
La penitencia, en definitiva, se impone sobre elementos ficcionales ajenos del todo
a un pretendido sentido espiritual del personaje o de la propia historia narrada;
bien al contrario, nos pone de manifiesto los principios de comportamiento
exigidos por el código del honor, dentro de los cuales la penitencia no es más que
un castigo necesario, aun en los casos en los que vaya acompañada también del
arrepentimiento y de la misericordia divina.
Este motivo es parte integrante fundamental en el desenlace de la historia
del rey don Rodrigo, tal y como nos es narrada en la Crónica del rey don Rodrigo,
conocida también como Crónica sarracina, tradicionalmente atribuida a Pedro del
Corral y fechada hacia 1430. Se trata, en realidad, de una fabulación novelesca
sobre el cañamazo histórico que proporcionaba la leyenda de la pérdida de
España, por lo que nos encontramos con que la primitiva historia de don Rodrigo
y la Cava se ha convertido en todo un relato de caballerías9.
Tal y como nos narra la leyenda aquí recogida, el conde don Julián, gobernador
de Ceuta, había dejado a su hija Florinda, o Cava, al cuidado de don Rodrigo; este
pronto siente una pasión irrefrenable por la muchacha que, finalmente, le lleva a
violarla; Florinda se queja a su padre, quien, para vengarse de la afrenta recibida,
abre el paso a los musulmanes y con ello les permite la invasión de la península. La
pérdida de España se convierte así en el castigo por el pecado de lujuria cometido
por el rey, pecado que tendrá que limpiar mediante una dura penitencia; primero,
con su deambular solitario por la tierra perdida, en la que sobrevive gracias al
alimento que le proporciona un simple pastor, y, después, con el castigo impuesto
por Dios a través de un santo ermitaño: el rey debe ser encerrado en un sepulcro
junto con una serpiente que comenzará a devorarle por los órganos sexuales,
símbolo de la lujuria que originó la desgracia del reino, hasta causarle la muerte.
La leyenda sobre la penitencia y muerte del rey Rodrigo nació en el siglo XIV a
restablecer el código de conducta caballeresco, aunque sea en la órbita de la caballería cristiana, a través de
las penas impuestas por Dios y de la mortificación personal del protagonista; por mucho que la esfera más
puramente penitencial no se haga explícita y se carguen las tintas en la caracterización del personaje como
el perfecto cristiano, lo cierto es que, al menos por lo que respecta al discurrir narrativo, toda la actuación de
Zifar responde a la necesidad de limpiar los pecados, no purgados en su momento, del rey Tared.
9
Téngase en cuenta que en la contrucción de todo ese mundo fantástico los elementos procedentes del ámbito
religioso jugaron un papel muy importante, pues proporcionaron motivo de inspiración para muchas de sus
aventuras. En buena medida, el personaje del rey don Rodrigo está construido sobre los modelos de David
y Salomón: como ellos, llevó a su reino a las más altas cimas de su prosperidad; como ellos, su grandeza lo
condujo a la soberbia y sus impulsos libidinosos acabaron apartándolo del buen camino, y, como ellos, sus
últimos años de vida estuvieron marcados por el arrepentimiento y la misericordia de Dios (María Isabel
TORO PASCUA, La Biblia en la literatura de ficción en la Edad Media, ed. cit., 254.
165
María Isabel Toro Pascua
raíz del descubrimiento de la tumba del soberano en Viseo; pronto fue recogida en
diversos textos históricos de los siglos XIV y XV, hasta llegar a la Crónica sarracina,
de donde se extendió hasta el romancero. En cualquier caso, las connotaciones
penitenciales surgidas de esta leyenda no permiten más que considerar el texto de
la Crónica como un ejemplo que añadir al corpus literario que gira en torno a la
caída de príncipes, dentro del más típico didactismo medieval, pero ajeno a una
espiritualidad efectiva y práctica y, por supuesto, a los principios devocionales al
uso.
El ámbito de la ficción sentimental también se hace eco de esta utilización
del argumento penitencial en algunos de sus especímenes, como la Penitencia de
amor, de Pedro Manuel de Urrea10. La obra, publicada por vez primera en 1514
y reeditada en 1516, nos relata el enamoramiento de Darino hacia la inflexible
Finoya; tras una insistencia desesperada, a través de una serie de cartas que hace
llegar a la dama a través de su fiel criado Renedo, el caballero consigue por fin una
cita con ella, cita en la que, en un giro inesperado y bastante brusco, se transforma
en una especie de Calisto desaforado que termina forzando a la, hasta entonces,
doncella. Esta transgresión del código sentimental conducirá, sin remedio,
al merecido castigo impuesto por el padre de Finoya, de acuerdo con la ley de
Escocia tal y como había aparecido en otra ficción sentimental, Grisel y Mirabella,
de Juan de Flores, según la cual el mayor culpable de un delito debía ser castigado
a muerte, mientras que el que tuviera menos culpa había de sufrir el destierro11.
Tras un debate de generosidad entre los dos enamorados, el rey Nertano, padre
de la dama, muestra su lado más piadoso y decide encerrar a los dos amantes
en sendas torres, haciendo correr la fama de que Finoya ha muerto y Darino,
desesperado, ha decidido terminar sus días vagando por el mundo.
«Nertano ¿Esto era lo que yo de ti esperava, hija? Ya es perdido el
nombre, pues no as guardado los hechos y dichos de tu madre; el día
que perdiste su condición, perdiste su sangre. No meresces que te hable
con amor, pues que te as regido sin cordura. Por el amor de padre no
te puedo matar, y por amar la virtud no puedo estar sin castigarte; si
castigo no te diera, el coraçón me reventara. Pues que tú as dexado de ser
Hay que precisar que, aunque haya calificado esta obra como ficción sentimental, nos encontramos en
realidad ante una pieza híbrida, en la que se utilizan tanto el género epistolar característico de los relatos
sentimentales que siguen la estela de la Cárcel de amor, de Diego de San Pedro, como el diálogo propio del
género celestinesco, en una especie de debate ideológico inserto en la propia obra que, finalmente, se dirime
con una clara defensa del ideal sentimental sobre el celestinesco. De este asunto me ocupo por extenso en
mi edición del Cancionero de Pedro Manuel de Urrea, Zaragoza, 2010; mis citas al texto proceden de esta
edición.
11
Véase Barbara MATULKA, The novels of Juan de Flores and their European Diffusion. A Study in
Comparative Literature, Nueva York, 1931, 181-184.
10
166
La noble penitencia: caballeros y damas penitentes en la literatura profana
de los siglos XV y XVI
hija, yo dexaré de ser padre, con el justo desamor que tu malvada vileza
merece. El coraçón alterado no çuffre muchas palabras. Tomá vosotros
a Darino y a estos dos criados suyos; sallí vosotras, vellacas donzellas,
que todos ternéys el pago de la vellaquería y la penitencia del pecado
y trayción. Vení acá todos. Sin ningún detenimiento ni alborote seréys
puestos e[n] presión, donde acabaréys la miserable vida que os queda.
En la torre de mano derecha estaréys vós, Finoya, con vuestras donzellas;
y vosotros tres tené cuydado del secreto regimiento que se á de hazer. Y
vós, Darino, estaréys en la torre de mano yzquierda; y vosotros ternéys
cargo de la manera que se á de regir. No he querido daros muerte a
vos, hija, porque el coraçón no me lo á çuffrido; y a vos, Darino, no he
querido mataros, por que penéys más. La fama que se porná ha de ser
que Finoya, mi hija, es muerta, y assí le haremos las honrras; y de Darino
se dirá que se á ydo al cabo del mundo: unos creerán que por veer tierras;
otros, que de desesperado se á ydo por la muerte de mi hija, que ya
sabían que la quería. Vamos, que ello será tan secreto quanto traydor.»12
Por muy prometedor que parezca el título, es evidente que solo el desenlace
ejemplar permite justificar la rúbrica con la que se encabeza la obra entera. La
penitencia se impone como castigo, justo y merecido, por el mal proceder de los
protagonistas que, de nuevo, rompen el código de comportamiento requerido;
nada distinto a lo que hemos visto en relación con el rey don Rodrigo, si bien,
en este caso, el código es sentimental más que caballeresco y alejado de cualquier
implicación pretendidamente histórica, por lo que la ejemplaridad no transciende
más allá del propio relato amoroso, sin las consecuencias que el pecado de un
rey, del que deriva la pérdida de todo un reino, puedan tener con respecto a un
pretendido didactismo.
3. La penitencia en el yermo. Motivo temporal
Por último, en la literatura ficcional en prosa nos las habemos con un
tipo de penitencia desarrollada en el desierto y utilizada como simple motivo
caracterizador, y no estructural, que convierte al personaje en penitente de
amor. A diferencia del de los auténticos penitentes arrepentidos, que lo son por
devoción religiosa, el del enamorado es un estado de soledad causal, no una
actitud de espíritu. Mientras que los primeros fueron llevados o impulsados
por el espíritu de Dios al yermo, el penitente enamorado es voluntarioso,
si bien seguirá en su proceder los parámetros religiosos como modelos de
comportamiento, en un intento de adaptar la forma de vida espiritual a su
12
Pedro Manuel de URREA, Penitencia de amor.
167
María Isabel Toro Pascua
particular penitencia amorosa13. El tema, por lo tanto, podría relacionarse con
el tópico literario de la llamada religio amoris, de amplia fortuna en la literatura
amorosa de los siglos XV y XVI, tanto en prosa como en verso14.
En las letras españolas es suficientemente conocido el caso de Amadís de
Gaula, que se torna ermitaño porque su amada, la princesa Oriana, se enoja
con él. Bajo el nombre de Beltenebros lleva una vida melancólica de penitente,
acentuadamente religiosa, pero fundamentada exclusivamente en la penitencia
amorosa que el rendido servidor ofrece arrepentido a su dama. Llama la atención
la discreción y escrupulosidad con que el narrador castellano vigila y censura las
extravagancias de su héroe, sin ocultar en ningún momento que únicamente
son cuidados pasajeros y vanos, y no una devoción anténtica, los que sustentan
su huída del mundo y el ascetismo del caballero desesperado, y, lo que es más
importante, lo hace a través de un ermitaño auténtico que sirve de confesor y
consejero a Amadís durante su temporal retiro:
«Amadís se apeó y puso las armas en tierra, y desensilló el cavallo y
dexóle pascer por la yerva; y él desarmóse y hincó los inojos ante el
buen hombre, y començóle a besar los pies. El hombre bueno lo tomó
por la mano, y alçáncolo lo hizo sentar cabe sí y vio cómo era el más
fermoso cavallero que en su vida visto havía; pero viole descolorado y
las fazes y los pechos bañados en lágrimas que derramava, y ovo dél
duelo dixo:
- Cavallero, parece que havéis gran cuita, y si es por algún pecado
que ayáis hecho y estas lágrimas de arrepentimiento dél os vienen, en
buena hora acá naçistes; mas si vos la causa algunas temporales cosas,
que según vuestra edad y hermosura por razón no devéis ser muy
apartado dellas, membradvos de Dios y demandalde merced que vos
traya a su servicio.
Recuérdese que en el ámbito caballeresco europeo el caso arquetípico es el de Lancelot, quien, tras la
muerte del rey Arturo y el ingreso de Ginebra en un convento, decide convertirse en ermitaño penitente; pese
a su nueva condición, la devoción que siente por la reina es absoluta y dura hasta la muerte, buscada por
él mismo tan solo seis semanas después de recoger el cadáver de su amada y sepultarlo junto al de Arturo.
14
Son varios los autores que, en mayor o menor medida, se han ocupado del estudio de la religio amoris en la
literatura española; entre otros, pueden verse María Rosa LIDA, La hipérbole sagrada en la poesía castellana
del siglo XV, in Revista de Filología Hispánica, 7 (1945), 121-130; reed. en su Estudios sobre la literatura
española del siglo XV, Madrid, 1977, 291-309; Michael E. GERLI, La «religión del amor» y el antifeminismo
en las letras castellanas del siglo XV, in Hispanic Review, 49 (1981), 65-86; Francisco CROSAS LÓPEZ,
La religio amoris en la literatura medieval, in La fermosa cobertura. Lecciones de literatura medieval,
Pamplona, 2000, 101-128; y María Isabel TORO PASCUA, La Biblia en la poesía de cancionero, en
Gregorio del Olmo Lete (dir.), La Biblia en la literatura española, ed. cit., 125-172.
13
168
La noble penitencia: caballeros y damas penitentes en la literatura profana
de los siglos XV y XVI
Y alçó la mano y bendíxole y díxole:
– Agora dezid todos los pecados que se os acordaren.
Amadís assí lo fizo, diziéndole toda su hazienda, que nada faltó. El
hombre bueno le dixo:
- Según vuestro entendimiento y el linaje tan alto donde venís, no os
devríades matar ni perder por ninguna cosa que vos aveniesse, cuanto
más por hecho de mugeres, que se ligeramente gana y pierde, y vos
consejo que no paréis en tal cosa mientes y vos quitéis de tal locura que
no hagáis por amor de Dios, a quien no plaze de tales cosas, y ahun
por la razón del mundo se devría hazer, que no puede hombre ni deve
amar a quien no le amare.
- Buen señor - dixo Amadís -, yo soy llagado a tal punto, que no
puedo bevir sino muy poco, y ruégoos, por aquel Señor poderoso cuya
fe vos mantenéis, que vos plega de me llevar con vos este poco tiempo
que durare, y havré con vos consejo de mi alma; pues que ya las armas
ni el cavallo no me hazen menester, dexarlo he aquí y iré con vos de
pie, haziendo aquella penitencia que me mandades; y si esto no hazéis,
erraréis a Dios, porque andaré perdido por esta montaña sin hallar
quien me remedie.
El bueno hombre, que lo vio tan apuesto y de todo coraçón para hazer
bien, díxole:
- Ciertamente, señor, no conviene a tal cavallero como vos sois que
assí se desampare, como si todo el mundo le falleçiesse, y muy menos
por razón de muger [...]
- Buen señor - dixo Amadís -, yo no vos demando consejo en esta
parte, que a mí no es menester, mas demándovos consejo de mi alma
y que os plega de me llevar con vos; y si lo no hizierdes, no tengo otro
remedio sino morir en esta montaña. [...]
El hombre bueno gelo otorgó mucho contra su voluntad.»15
15
Garci RODRÍGUEZ DE MONTALVO, Amadís de Gaula (1508), edición de Juan Manuel CACHO BLECUA, Madrid, 1987, vol. I, 704-707.
169
María Isabel Toro Pascua
Este sufrimiento de Amadís, viviendo como Beltenebros (y, por extensión el
de otros personajes afines que reproducen la misma situación), fue perfectamente
entendido por Gil Vicente, quien lo dramatizó en una pieza suficientemente
conocida, la Tragicomedia de Amadís. No con intención didáctica, sino
únicamente con picardía, sitúa frente a la seriedad algo pedante del anacoreta
la desesperación aniquiladora del enamorado. Pero, para él, tanto o tan poco
valor tiene la soledad del uno como la del otro, y tan falta de devoción auténtica
es la del primero como el segundo, como podemos comprobar en el único de
los parlamentos en los que se hace referencia a la espiritualidad penitencial.
Aproximadamente por la misma época y casi en el mismo tono, un anónimo
autor dejaba al descubierto lo exagerado del comportamiento de Amadís,
narrado por medio de una serie de excesos que terminan, incluso, con la
destrucción absoluta del que fue, en tiempos, el más leal amador. He aquí los
textos:1617
ERMITAÑO Padre nuestro en las afrentras
de los penosos tormentos,
reza porque no los sientas,
que los muchos pensamientos
piden infinitas cuentas.
Dellas pide Satanás,
dellas los vanos sentidos,
con las unas llorarás
y con las otras darás
dos mil sospiros perdidos.
Las otras cuentas escuras
de las membranças passadas
que de passar son muy duras
serán blandas y seguras
con estas cuentas rezadas.
AMADÍS
Escusado fuera tomar
estas cuentas que no cuento,
que tantas tengo de dar
que me quedan por contar
porque sin cuenta las cuento.
Y las que dará a Oriana
a Dios, que sabe lo cierto,
serán cuentas sin concierto,
En la selva está Amadís,
el leal enamorado;
tal vida estaba haciendo
cual nunca hizo cristiano.
Cilicio trae vestido
a sus carnes apretado;
con disciplinas destruye
su cuerpo más delicado.
Llagado de las heridas,
y en su señora pensando,
no se conoce en su gesto,
según lo trae de delgado.
De ayunos y de abstinencias
andaba debilitado;
la barba trae crecida,
d’este mundo se ha apartado:
las rodillas tiene en tierra,
y en su corazón echado,
con gran humildad os pide
perdón si había errado.
Al alto Dios poderoso
por testigo ha publicado,
y acordándosele había
del amor suyo pasado,
16
Gil Vicente, Tragicomedia de Amadis, in Compilaçam de todas las obras, Lisboa, 1562, f. CXLIII (ed. facs.,
Lisboa, 1928).
17
Romancero General, edición de Agustín DURÁN, Madrid, 1945, vol. I, 185.
170
La noble penitencia: caballeros y damas penitentes en la literatura profana
de los siglos XV y XVI
porque yo no sé qué gana
quien su siervo dexa muerto.
ERMITAÑO
Este es otro atabio
que pertenece al bivir:
perdona, hermano mío,
porque avéis d’ir a pedir
por la calma y por el frío16.
que así le derribó
de su sentido y estado.
Con estas grandes pasiones
amortecido ha quedado
el más leal amador
que en el mundo fue hallado17.
Pero, sin duda alguna, quien mejor supo extraer la esencia un tanto
estrafalaria de Beltenebros, hasta verterla en episodio cómico, fue Miguel de
Cervantes en su capítulo 26 de la primera parte del Quijote. Allí, el caballero
manchego se esfuerza en recordar exactamente los pasos que debe seguir para
remedar lo más fielmente posible el comportamiento de quien en ese momento
le sirve de modelo; la ironía cervantina lleva incluso a que su personaje se
entregue a la penitencia solitaria aun sin haber sido desdeñado por la dama y,
por ende, sin ni siquiera tener un motivo para hacerlo; su decisión únicamente
es debida al convencimiento de que Amadís fue un enamorado más juicioso que
Roldán y, por lo tanto, es a él a quien debe imitar para demostrar su devoción
por Dulcinea. En el pasaje, como podemos comprobar, no solo brillan por
su ausencia los condicionantes religiosos, sino que incluso desaparecen por
completo los de tipo amoroso que normalmente llevaban a tal estado en los
libros de caballerías. De algún modo, Cervantes pone al descubierto, como otras
tantas veces hace a lo largo de su magna obra, los mecanismos narrativos propios
de los libros de caballerías con el único fin de desarticularlos, o contrahacerlos,
desde su misma génesis; en esta ocasión, lo inadecuado de la traslación desde
el contexto penitencial religioso al amoroso literario es el procedimiento que
utiliza como forma de parodia e incluso, si cabe, como forma de manifestar
lo excesivo de la situación creada mediante la puesta en paralelo del caballero
enamorado con el penitente arrepentido.
« - [...] veo que Amadís de Gaula, sin perder el juicio y sin hacer
locuras, alcanzó tanta fama de enamorado como el que más, porque
lo que hizo, según su historia, no fue más de que por verse desdeñado
de su señora Oriana, que le había mandado que no pareciese ante su
presencia hasta que fuese su voluntad, de que se retiró a la Peña Pobre
en compañía de un ermitaño, y allí se hartó de llorar y de encomendarse
a Dios, hasta que el cielo le acorrió en medio de su mayor cuita y
necesidad. [...] Viva la memoria de Amadís, y sea imitado de don
Quijote de la Mancha en todo lo que pudiere, del cual se dirá lo que
del otro se dijo, que si no acabó grandes cosas, murió por acometellas;
y si no soy desechado ni desdeñado de Dulcinea del Toboso, bástame,
171
María Isabel Toro Pascua
como ya he dicho, estar ausente della. Ea, pues, manos a la obra: venid
a mi memoria, cosas de Amadís, y enseñadme por dónde tengo de
comenzar a imitaros. Mas ya sé que lo más que él hizo fue rezar y
encomendarse a Dios; pero ¿qué haré de rosario, que no lo tengo?»18
A partir de ese momento, nuestro caballero, ajeno a los principios del
verdadero penitente, aún del verdadero penitente enamorado, se dedicará a
llenar el campo con sus suspiros, llamando «a los faunos y silvanos de aquellos
bosques, a las ninfas de los ríos, a la dolorosa y húmida Eco, que le respondiese,
consolasen y escuchasen», hasta que, al cabo, el ahora llamado Caballero de la
Triste Figura casi termina, en palabras del propio Cervantes, «tan desfigurado
que no le conociera la madre que lo parió»19.
En resumen, vemos que el motivo de la penitencia se revela como un recurso
literario muy fértil en el ámbito de la literatura profana de los siglos XV y XVI,
y más concretamente cuando de ficción caballeresca y sentimental hablamos,
géneros que nos ofrecen muchos más ejemplos de los que hemos traído a estas
páginas. Este tópico se presenta de diversas maneras en estas obras, pero en todos
los casos parece responder a procedimientos o patrones literarios muy concretos,
siempre relacionados con el propio desarrollo del motivo, tales como el espacio
en que se desenvuelve la penitencia (la peregrinación, el espacio cerrado o el
yermo), y con la función que desempeña en la estructuración narrativa del relato
entero: desde la simple mención caracterizadora que incide en la formación
del arquetipo del héroe caballeresco (que se resuelve en el yermo) hasta la
implicación absoluta en el andamiaje narrativo, bien como desencadenante de
la historia (permitiendo el itinerario bajo el aspecto de una peregrinación) o
bien como desenlace final con el que se resuelve toda la acción narrada (en
cuyo caso, la penitencia se desarrolla en lugares cerrados e inaccesibles). Sea
como fuere, la finalidad última del tópico no es otra que la de insistir en el
necesario cumplimiento del código caballeresco o sentimental, imprimiendo a
Miguel de CERVANTES, Primera parte del ingenioso caballero don Quijote de la Mancha (1605), edición
dirigida por Francisco RICO, Barcelona, 1998, cap. XXVI, 291.
Miguel de CERVANTES, Primera parte, ed. cit., 293 y 294. En todos los argumentos a los que nos venimos
refiriendo, el caballero o la dama se transfiguran en penitentes sin salir de la esfera original en la que se origina
el personaje. Muy distinto es el caso que encontramos en otros textos, como, siguiendo la estela cervantina,
La Galatea, en la que el penitente de amor termina convertido de manera absoluta a su nueva vida. En este
texto, se produce un desplazamiento desde la vida de penitencia esencialmente amorosa a la vida eremítica
penitencial, puesto que el desengaño de amor es únicamente el punto de partida, el motivo inicial que conduce
al apartamiento, desapareciendo , o al menos pasando a un segundo plano, en el posterior desarrollo vital del
protagonista. La explicación resulta obvia, puesto que ya no se trata de desarticular, parodiar o contrahacer
un género concreto, y, por ende, los tópicos o motivos de los que tanto se había abusado, sino de integrar en
un nuevo contexto elementos que, en este caso, sí permitían la translación al contexto espiritual de todo el
discurrir narrativo.
18
19
172
La noble penitencia: caballeros y damas penitentes en la literatura profana
de los siglos XV y XVI
veces un marcado didactismo, pero sin ningún tipo de pretensiones espirituales o
devocionales de más hondo calado.
María Isabel Toro Pascua
Universidad de Salamanca
Colaboradora do CITCEM
ABSTRACT:
The motif of penance reveals itself as a very fruitful literary resource in the
field of secular literature of the XV and XVI centuries, especially in chivalrous
and sentimental fiction. This topic presents itself in different ways in all these
works, but in all cases seems to respond to very specific literary procedures or
patterns, always related with the development of the motif, such as the space
in which the penance takes place, and with the function that it maintains in
the narrative structuring of the whole account. In all the cases, the last purpose
of this topic is nothing less but to insist on the necessary observance of the
chivalrous or sentimental code, imprinting sometimes a strong didacticism,
however with no kind of significant spiritual or devotional claims.
173
174
A Contra-Reforma em Portugal 1540-1700,
Federico Palomo, Lisboa, Livros Horizonte, 2006, 130 p.
Nota crítica à obra
Da leitura do último título de Federico Palomo, A Contra-Reforma em Portugal
1540-1700, julgaríamos à partida estar diante de uma obra que recuperasse o
conceito de Gegenreformation cunhado por Johan Stephan Pütter. Assim não é.
«Incorporado plenamente no vocabulário historiográfico, servimo-nos dele sem
qualquer intenção de atribuir-lhe o sentido ideológico e controversístico que
teve no passado. Tão-pouco o usamos com o intuito de colocar o acento em
determinados aspectos da Igreja pós-Tridentina – aqueles que caracterizaram a
luta antiprotestante – face aos que resultaram das suas aspirações de reforma»1.
O autor utiliza como grandes conceitos operativos os termos ‘disciplinamento
social’ e ‘confessionalização’, considerando-os produtivos para a «compreensão
alargada dos processos e fenómenos de natureza religiosa e eclesiástica que
tiveram lugar no Portugal dos séculos XVI e XVII»2. Como é sabido, os referidos
conceitos têm vindo, de certa forma, a trazer alguma renovação aos estudos de
história religiosa portuguesa, pelo menos desde os anos 80, muito sob o influxo
da historiografia italiana. Pensamos, nomeadamente, em Paolo Prodi e Palomo
del Barrio.
Traçando brevemente a genealogia dos conceitos, Palomo avoca Gerhard
Oestreich3 como o primeiro a falar de disciplinamento social, o que punha a
tónica nos factores de natureza humana, social e cultural, numa historiografia
política e institucional até então pouco aberta à sua consideração. Por outro lado,
esta ‘disciplina’ seria o elemento comum de um conjunto de processos políticos,
religiosos, sociais e culturais, liderados e postos em movimento ‘a partir de cima’
pelas elites.
Valerá a pena recordar que Oestreich estava fundamentalmente preocupado
com a centralização do poder por parte de monarcas absolutistas. Segundo o
Federico PALOMO, A Contra-Reforma em Portugal 1540-1700, Lisboa, Livros Horizonte, 2006, 10.
Federico PALOMO, A Contra-Reforma [...], ed. cit., 11.
Trata-se, como se sabe, de Gerhard OESTREICH, Strukturprobleme des europäischen Absolutismus, in
Geist und Gestald des frühmodern Staates, Berlin, Duncker & Humblot, 1969, 179-197.
1
2
3
175
Maria Helena Queirós
mesmo, a própria disciplina social teria sido uma das vitórias do absolutismo.
Sob o signo da auctoritas, da temperantia, da constantia e da disciplina, um grupo
de homens de Estado teria tomado o modelo da antiga Roma e, inspirando-se
na República e Império Romanos, ‘desteologizou’ os conflitos confessionais,
eliminando, eventualmente, as causas do próprio conflito. O triunfo do estado
absolutista seria, obviamente, o triunfo da política sobre a religião4. Crucial foi
também que em todo este processo o indivíduo tenha aprendido a interiorizar a
disciplina, numa relação que pressupõe aceitação da autoridade do soberano e das
leis do Estado e não imposição. A isto voltaremos.
A este propósito, cremos que Palomo poderia ter remontado a Max Weber
para desvelar um pouco mais a história e contornos do conceito de disciplina
social. Recordemos a distinção que faz entre Herrschaft (dominação) e Disziplin
(disciplina). Se o primeiro seria a probabilidade de encontrar obediência a uma
ordem de determinado conteúdo entre certas pessoas, o segundo comporta
a probabilidade de encontrar obediência para uma ordem por parte de um
conjunto de pessoas que, graças a certas atitudes enraizadas, seja imediata, simples
e automática. Toda a questão está, pois, na legitimação da disciplina, baseada em
consentimento e consenso alargado. Coerção seria um conceito insuficiente e que
pouco espelharia do fenómeno5.
Nos anos 70, com os trabalhos de Wolfgang Reinhard e Heinz Schilling,
passou a aplicar-se o conceito de disciplinamento às diferentes confissões religiosas,
sublinhando as relações muito próximas entre instituições religiosas e poder
político ao longo dos séculos XVI e XVII. Para o primeiro, Reforma protestante
e Contra-Reforma Católica têm em comum um mesmo processo denominado
‘confessionalização’, que teria tido como consequência a formação de grupos
confessionais homogéneos através de instrumentos de disciplinamento6.
Deixando de parte alguns aspectos da teorização de Reinhard e Schilling,
importa, contudo, salientar que, ao arrepio de Oestreich, não foi o estado
absolutista que ‘desteologizou’ o conflito confessional; o conflito confessional
entre protestantes e católicos introduziu teologia na formação político-social.
Como afirma lapidarmente Po-Chia Hsia, «La edad moderna no fue una
época de desteologización, sino más bien de enorme teologización en forma de
confesionalización7.» Retomaremos este ponto.
O estudo divide-se em 3 capítulos: «As Bases da Confessionalização Católica
4
Cf. Ronald Po-Chia HSIA, Disciplina social y catolicismo en la Europa de los siglos XVI y XVII, in
Manuscrits. Revista d’història moderna, número 25 (2007), 31.
5
Cf. Ronald Po-Chia HSIA, Disciplina social y catolicismo [...], art. cit., 31.
6
Foi Ernst Walter Zeeden – de quem Reinhard foi discípulo – o primeiro, nos anos 60, a notar a similitude
entre luteranismo, catolicismo e calvinismo e seu desenvolvimento em paralelo.
7
Ronald Po-Chia HSIA, Disciplina social y catolicismo [...], art. cit., 33.
176
A Contra-Reforma em Portugal 1540-1700, | Federico Palomo, Lisboa, Livros Horizonte,
2006, 130 p. | Nota crítica à obra
em Portugal: os Poderes»; «Conduzir as Condutas. Formas e Instrumentos de
Difusão do Discurso Religioso» e «Entre a Comunidade e o Sujeito. A Igreja e
as Populações do Antigo Regime. Devoções – Práticas – Comportamentos –
Heterodoxias». No primeiro, o autor analisa os dois poderes (Coroa e Igreja)
sobre os quais terá assentado a confessionalização da sociedade portuguesa. A
monarquia apoiava as directrizes uniformizadoras emanadas de Trento (15451563) como meio de aumentar a sua própria influência nos assuntos do foro
eclesiástico. Destaca-se a possibilidade de intervenção nos processos de eleição
dos bispos e dos provinciais e ordens sob a sua jurisdição. Por outro lado, com
a integração da Inquisição (1536) na administração, a Coroa viu aumentada a
sua capacidade de intervenção no controlo de potenciais focos de heterodoxia.
Quanto ao poder eclesiástico, este repousava em três tipos de instituições:
bispados, Inquisição e ordens. No que toca aos bispos, Palomo realça o papel
desempenhado pela paróquia depois do Concílio de Trento como ‘sucedâneo’
do poder régio dada a sua ampla presença no território. Esta ideia é muito
enfatizada. Não admira, pois, que a instrução dos curas tivesse sido um dos
objectivos primordiais da reforma, pese embora a disseminação de seminários
se tivesse produzido bastante mais tarde (séculos XVIII e XIX). Saem também
clarificadas obrigações de bispos; a visita pastoral erige-se em método por
excelência de controlo: do território, dos fiéis e dos próprios prelados.
Quanto à Inquisição, segundo Palomo, o cardeal D. Henrique foi o principal
obreiro do seu funcionamento entre 1540 e 1578. Aponta como seus objectivos
maiores a perseguição a potenciais focos de heresia e o controlo/censura de
escritos.
No que toca às ordens, a sua intensa acção apostólica e assistencial terá sido
responsável por um forte disciplinamento da população.
O segundo capítulo, «Conduzir as Condutas. Formas e Instrumentos de
Difusão do Discurso Religioso», põe todo o seu enfoque nos mecanismos
coercivo-punitivos (disciplinamento) e persuasivos (confessionalização) que
terão contribuído para a divulgação das directivas de Trento. São apontados
os recursos icónico-visuais como grandes fautores de divulgação doutrinária,
capazes de comover – e mover – os fiéis. O autor aborda a literatura didáctica
e espiritual, as práticas de leitura e a instrução como elementos daquilo que
o autor considera uma homogeneização doutrinal. Lembra a generalização
da catequese, obrigatória a partir de 1564, e o carácter decisivo da pregação
na doutrinação. Por fim, o autor chama a atenção para o papel das missões
do interior na transmissão da fé católica e na administração da confissão, que
se tornou «o instrumento mais poderoso da acção desenvolvida pela Igreja
177
Maria Helena Queirós
do período moderno»8, verdadeiro elemento de domínio sobre a povoação,
gradualmente tendendo para um aspecto mais consolador.
No terceiro capítulo, «Entre a Comunidade e o Sujeito. A Igreja e as
Populações do Antigo Regime. Devoções – Práticas – Comportamentos
– Heterodoxias», Palomo pesa, por assim dizer, os resultados do discurso da
Igreja portuguesa sobre as práticas enraizadas quotidianas dos crentes. Ou talvez
melhor: «a existência de dinâmicas e articulações entre a persistência de práticas
e comportamentos tradicionais e bem enraizados nas populações [...]» face-aface com «o progressivo avanço do personalismo religioso e moral defendido
pelo discurso pós-tridentino9.» Põe em relevo a coexistência da transformação
de imagens em objectos de uma religiosidade votiva local com os grandes
modelos devocionais difundidos pela Igreja: Cristo e a Virgem. Frequentemente
produziu-se um certo choque com as autoridades eclesiásticas, que se depararam
com um forte atrito entre as populações, na tentativa de circunscrever/travar
peregrinações a santuários locais fora da sua jurisdição ou celebrações de carácter
votivo.
Depois de Trento, como é consabido, o modelo de santidade passa a
enfatizar um sem-número de virtudes cristãs. A este propósito, o autor não
esquece a questão da santidade fingida. Aborda, claro está, a acção da Igreja
contra as práticas judaizantes, o Islão, os cristãos-novos e a feitiçaria. Por
fim, são abordadas as alterações introduzidas por Trento aos sacramentos do
baptismo e do matrimónio e como estes terão influído numa certa atenuação
do corporativismo horizontal característico das sociedades de Antigo Regime.
A obra de Federico Palomo pretende ser uma «visão breve e de conjunto sobre
[o catolicismo moderno no contexto português dos séculos XVI e XVII]10», no
que toca à metrópole. Este objectivo é cumprido rigorosamente, fazendo jus,
aliás, à tipologia de em que se insere: a Colecção Temas de História de Portugal.
Fundada sobre aqueles dois conceitos, oferece uma visão de conjunto até agora
inexistente – tanto quanto sabemos – na historiografia portuguesa.
Enferma, contudo, de dois males, o segundo derivando do primeiro. Por um
lado, Palomo refere-se, na Introdução, à necessidade de matizar certos aspectos
da teorização alemã11, mas a verdade é que, ao longo da obra, nunca o faz. Deste
problema, que começa por ser de coerência científica, deriva um outro que será
Federico PALOMO, A Contra-Reforma [...], ed. cit., 15.
Federico PALOMO, A Contra-Reforma [...], ed. cit., 129.
10
Federico PALOMO, A Contra-Reforma [...], ed. cit., 10.
11
«É preciso frisar, no entanto, que o quadro de interpretação que decorre destas duas categorias também
não deixou de suscitar controvérsias, em particular no que diz respeito à eficácia dos dispositivos que
desenvolveram os diferentes grupos e poderes empenhados em tais processos. Neste sentido, a escala de
análise é, certamente, um elemento a ter em consideração, dado que obriga, muitas vezes, a introduzir matizes
[...]» (Federico PALOMO, A Contra-Reforma [...], ed. cit., 13).
8
9
178
A Contra-Reforma em Portugal 1540-1700, | Federico Palomo, Lisboa, Livros Horizonte,
2006, 130 p. | Nota crítica à obra
o da pouca sustentabilidade de uma tal concepção aplicada ao caso português.
Assim, para o conhecimento da realidade política, religiosa e social
portuguesa, embora admitamos a utilidade12 dos conceitos de confessionalização
– este, contudo, de escassa aplicação – e disciplinamento – o que, de resto,
também notou Palomo13 –, é forçoso introduzir-lhes importantes salvaguardas.
Isto mesmo já foi observado noutro lugar. São elas:
1. embora admitindo como válida a constatação de que os caminhos seguidos
pelas diversas confissões tivessem tido rumos idênticos, isso não anula o facto
de que no seio do Cristianismo se criaram duas vias distintas – profundamente
distintas – do ponto de vista religioso e cultural e que, por conseguinte, a noção
de confessionalização não explica na íntegra, no que é o núcleo de questão, a
realidade político-religiosa que se viveu na Europa moderna;
2. esconde que no interior de cada uma das confissões não houve total
homogeneidade e que há diferenças que devem relativizar a ideia de uma
coerência integral de cada confissão. Para simplificar, é evidente que o
catolicismo português não foi absolutamente igual ao de Espanha e ao da
península itálica;
3. não reconhece que os processos de inculcação da doutrina e da norma,
isto é, de educação e de disciplinamento, não foram absolutamente idênticos
no campo católico e no campo protestante. E as distinções foram muitas vezes
decisivas, como, por exemplo, a espectacularização dos ritos e das devoções que
marcaram o universo católico, ou no modo e forma de acesso ao texto bíblico e
a outros livros doutrinais, que no mundo católico condicionaram que a maior
parte da povoação adoptasse uma religião que prescindiu a leitura directa e
pessoal do texto sagrado, ao passo que, nas regiões afectas à Reforma, houve
uma maior interiorização e intelectualização da fé;
4. presta pouca atenção à religiosidade e aos comportamentos da povoação,
dando por boa a noção de que toda a prática religiosa vem determinada de
cima para baixo, das elites para os fiéis. Esta leitura não facilita a compreensão
Neste pressuposto, considera-se que, ao contrário do que vinha sendo tradicionalmente defendido, Reforma
e Contra-Reforma teriam tido mais aspectos em comum do que diferenças. Destacam-se a definição clara da
doutrina de cada confissão; a difusão e o reforço de novas normas; a propaganda e a prevenção da contrapropaganda; a interiorização da nova ordem através da educação; o disciplinamento dos adeptos da confissão;
a aplicação de um ritual próprio; o impacto na linguagem pelo uso regular de nomes do Antigo Testamento
ou de santos. Cf. José Pedro PAIVA, El Estado en la Iglesia y la Iglesia en el Estado. Contaminaciones,
dependencias y disidencia entre la monarquía y la Iglesia del reino de Portugal (1495-1640), in Manuscrits.
Revista d’història moderna, número 25 (2007), 47. O autor, tomando como ponto de partida a panorâmica
traçada por um dos livros mais recentemente publicados sobre a aplicação do conceito de confessionalização,
repassa as propostas de Headley em John Headley, J. Hillerbrand, Anthony J. Papalas,
Confessionalization in Europe, 1555-1700. Essays in honor and memory of Bodo Nischam, Burlington,
Ashgate, 2004.
13
Federico PALOMO, A Contra-Reforma [...], ed. cit., 10-14 e 30-55.
12
179
Maria Helena Queirós
das especificidades de manifestações de origem não-letrada, do hibridismo
de crenças e práticas religiosas, nem dos fluxos de comunicação entre esferas
socioculturais distintas.
A verdade é que não há consenso quanto a considerar quem terá sido o
agente fundamental da disciplina social, se o indivíduo, se a comunidade, se
o clero, se o Estado. Para as comunidades rurais de Berna, na Confederação
Helvética, Heinrich Richard Schimdt parece ter chegado à conclusão do papel
preponderante da comunidade. Por seu turno, Christa Müller, no seu estudo do
vizinho Tirol, conclui pela acção repressiva do Carnaval por parte do estado da
Contra-Reforma. Para Harm Klueting, é o indivíduo que tem o papel decisivo
na cristianização da sociedade através da autodisciplina. Outros vêem-no na
disciplina social14.
Mais delicadas são as implicações entre a dimensão política e a
confessionalização. Cai por terra parte da proposta de Headley, quando aplicada
a Portugal. Segundo o mesmo, a confessionalização teria provocado um reforço
interno e externo das unidades territoriais; contribuído para o disciplinamento
e para a ‘homogeneização’ dos súbditos, constituindo-se baluarte da afirmação
do poder político; estimulado a amplitude da intervenção dos Estados sobre a
Igreja e, especialmente, sobre os seus recursos materiais. Ora, como se sabe, no
caso português, as fronteiras físicas do reino e a própria identidade ‘confessional’
(incluindo o aspecto mítico que associava a fundação do reino a um milagre
divino) estavam definidas antes da Época Moderna. Por outro lado, um dos
riscos desta proposta é sugerir que terá sido possível construir uma sociedade
absolutamente homogénea e disciplinada, sendo que uma das consequências
dos limites das políticas de doutrinação foi a ignorância da generalidade da
população e mesmo do clero. Quanto ao último ponto, este parece encerrar
uma visão limitada pois não enuncia a reversibilidade do princípio, ou seja,
se é verdade que se assistiu a um reforço da intervenção do Estado na Igreja,
também o inverso o foi. Na expressiva formulação de Paolo Prodi, foi um
período de «teologização da política» e «politização da religião»15. A este aspecto
nos referimos já.
Acresce que tal concepção parece supor que tal processo só se iniciou na
«época da confessionalização» quando tem raízes mais remotas. Com efeito,
é na Idade Média que se devem buscar as raízes da disciplina social. Segundo
Dilwyn Knox, terá tido origem na rotina monástica, aplicada ao mundo laico,
através da Devotio Moderna e de Erasmo16. Outros estudiosos inclinam-se
Cf. Ronald Po-Chia HSIA, Disciplina social y catolicismo [...], art. cit., 35.
Citado por Vincenzo LAVENIA, L’infamia e il perdono. Tributi, pene e confessione nella teologia morale
della prima età moderna, Bolonia, Il Mulino, 2004, 31.
16
Cf. Ronald Po-Chia HSIA, Disciplina social y catolicismo [...], art. cit., 33.
14
15
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A Contra-Reforma em Portugal 1540-1700, | Federico Palomo, Lisboa, Livros Horizonte,
2006, 130 p. | Nota crítica à obra
pelas comunidades urbanas tardo-medievais do Sacro Império Romano como
focos originários da disciplina social17; por uma Frankfurt do século XVI, em
que a adopção do luteranismo terá fortalecido a disciplina social18; ou ainda a
cidade imperial de Espira, também luterana19. Em qualquer um destes casos,
um consenso fundamental entre população e instituições em torno da noção
de bem comum foi decisivo para a interiorização da disciplina. Por outro lado,
este processo configura aquilo que Neumann considerou ser «disciplinamento
horizontal», distanciando-se da preeminência do Estado sobre o cidadão da
teorização de Oestreich.
E ainda a assinalar o facto de conceber a Igreja e o Estado como duas
entidades independentes e com fronteiras estanques. Na verdade, «excluyendo
ciertos aspectos obvios (por ejemplo, el rey no podía celebrar sacramentos y
los obispos no promulgaban edictos reales), Iglesia y Estado eran cuerpos que
no tenían competencias perfectamente delimitadas y estancas, esto es, que no
poseían una frontera definida que circunscribiese los ámbitos de actuación
de cada uno20». Paiva defende21 que esta diluição de fronteiras, esta «osmose»
se fazia de três formas essenciais: partilha e disputa de recursos materiais e
pessoas, sobreposição de competências jurisdicionais e circulação de princípios
doutrinais.
São vários os exemplos de influência do Estado sobre a Igreja, como o são os
da intervenção da Igreja no Estado. Enunciamos alguns dos mais importantes:
eleição de bispos e arcebispos, clérigos com benefícios capitulares, abades de
mosteiros e párocos (relacionado com o direito de Padroado); apropriação de
benefícios materiais da Igreja (colocação de clientelas em certos benefícios
eclesiásticos), Bula da Cruzada e subsídios obtidos a partir das rendas das igrejas
e contribuições do clero, entre outros privilégios; interferência no governo da
Igreja, como imposição de preceitos de actuação aos bispos, manutenção de
funcionários em tempo de Sé Vaga, impedimento de dar posse de benefícios
eclesiásticos a certos indivíduos, patrocínio real à criação de ordens e reforma
de outras, organização da geografia eclesiástica, repreensões aos bispos por
impedirem certas ordens de missionar na diocese, intervenção dos monarcas
Gérald Chaix, por exemplo, estudou o caso de Colónia, nos finais do século XV. Apud Ronald Po-Chia
HSIA, Disciplina social y catolicismo [...], art. cit., 34.
18
Caso estudado por Anja Johann apud Ronald Po-Chia HSIA, Disciplina social y catolicismo [...], art. cit., 34.
19
Sobre ela se debruçou Hubert Neumann. Apud Ronald Po-Chia HSIA, Disciplina social y catolicismo [...],
art. cit., 34 e 35.
20
José Pedro PAIVA, El Estado en la Iglesia [...], art. cit., p. 50. Aqui reside o centro da sua tese, a qual,
aliás, já vinha explicitada no verbete A Igreja e o poder in História Religiosa de Portugal, Lisboa, Círculo
de Leitores, vol. II, 135-185.
21
À semelhança de Domínguez ORTIZ, em Regalismo y relaciones Iglesia-Estado en el siglo XVII in Historia
de la Iglesia en España. La Iglesia en la España de los siglos XVII-XVIII (dir. Ricardo García-Villoslada),
Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 1979, 73-121.
17
181
Maria Helena Queirós
na resolução de conflitos. Quanto à intervenção da Igreja sobre o Estado, basta
pensar na aceitação da participação de clérigos nas actividades do centro político;
no reconhecimento e a defesa de muitos privilégios da Igreja; na interferência
régia nos assuntos eclesiásticos e na capacidade de penetração através da rede
paroquial.
Não resistimos a ler aqui uma frase do beneditino Juan de Salazar (1619),
que bem pode espelhar o que acabamos de dizer: «También es cierto que
quien tiene [las cabezas] sujetas y rendidas y obedientes al superior [...] son los
hombres doctos y eclesiásticos, en especial los religiosos y predicadores [...],
predicando ellos continuamente al pueblo que es voluntad de Dios obedecer a
los reyes»22. Evocando Paolo Prodi, diríamos «disciplina da alma, do corpo e da
sociedade»23. Por amplificação, se a vontade do rei é a vontade de Deus, a Igreja
será, obviamente, o intermediário. Liminarmente, para se obter o favor de Deus
é necessário estar de bem com a Igreja.
São diversas as funções em que o Estado se serviu do clero. Lembremos a
concessão de cargos na governação e órgãos centrais (conselho do rei, Conselho
de Estado, Desembargo do Paço, secretários, pregadores e capelães da Capela
Real, confessores régios), a utilização do saber e da pastoral e a fundamentação
teórico-doutrinal da legitimação do regime, do rei e das políticas. De salientar
ainda a presença dos eclesiásticos em certos rituais políticos (aclamações,
entradas régias, recepções etc.) e a implicação do clero ao serviço da Coroa no
terreno militar. Trata-se de um domínio das consciências, de rituais, de estéticas,
de comportamentos. Neste ponto, contudo, vale a pena ir um pouco mais além.
Esta presença dos prelados nas cerimónias régias é já um elemento que configura
o carácter sagrado da monarquia.
Sem disciplina social não parece ter sido de todo possível a confessionalização
católica: «Fue el creciente poder del Estado moderno en general, y no sólo del
Estado católico en particular, lo que permetió la renovación del catolicismo24».
Serão cinco os traços gerais da disciplina social e confessionalização católica na
Europa central: a substituição de oficiais protestantes por católicos; a chamada
de jesuítas à educação; o disciplinamento do Clero pelo aparelho de Estado; a
repressão da oposição estamental e dos levantamentos populares; o exílio de
dissidentes protestantes.
Se entre os processos de disciplinamento protestante e católico se divisa um
substrato comum, não são, contudo, despiciendas as diferenças entre ambos.
Eloquente é, por exemplo, que os pastores tenham sido reduzidos ao estatuto de
Citado a partir de José Pedro PAIVA, El Estado en la Iglesia [...], art. cit., 52.
Paolo PRODI, Disciplina dell’anima, disciplina del corpo e disciplina della società tra medioevo ed età
moderna, Bolonia, Il Mulino, 1994.
24
Ronald Po-Chia HSIA, Disciplina social y catolicismo [...], art. cit., 36.
22
23
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A Contra-Reforma em Portugal 1540-1700, | Federico Palomo, Lisboa, Livros Horizonte,
2006, 130 p. | Nota crítica à obra
funcionários (ou, pelo menos, de politicamente subordinados), face a um clero
católico que devia uma dupla lealdade ao monarca e ao Papa. Estes clérigos
são homens políticos que dão uma visão apostólica da sua acção política. Não
poderá deduzir-se isso mesmo das palavras do beneditino Fr. Juan de Salazar25?
Facilmente se compreende onde residia o cerne dos conflitos de jurisdição:
se o Papa reivindicava a suprema autoridade espiritual e eclesiástica, já o
monarca invocava o chamamento divino. Às palavras do beneditino Juan de
Salazar, poderíamos contrapor as de Bartolomé Torres: «Los Príncipes, en
cuanto príncipes, en alguma manera son curas de almas. Quiero decir que no
basta que rijan y gobiernen en paz la República, sino son obligados cuanto es en
sí a trabajar para hacer buenos y virtuosos a los súbditos26.»
No caso português, é manifesta, a partir de 1495, «una evidente política
de la Corona tendente a aumentar su poder frente a la Iglesia, tanto a nivel
interno como en el plano de las relaciones con la Santa Sede»27, plasmando-se
na transferência a exclusiva competência do rei da eleição dos bispos de todas
as dioceses do reino, o mesmo acontecendo com os abades dos mosteiros; no
domínio das ordens militares, tornando-se os reis seus Grãos-Mestres; na obtenção
de rendas das igrejas para aplicação na expansão; na interferência do rei na reforma
das ordens religiosas; na aquisição de privilégios especiais para a Capela Real e seus
capelães; no direito de padroado nos territórios do império ultramarino.
Aqui reside uma lacuna na obra de Palomo. É certo que não se propôs estudar
a realidade ultramarina, mas cingir-se exclusivamente à metrópole parece um
escopo demasiado estreito dado o carácter de eleição de toda a problemática do
Padroado português para a análise das relações Estado-Igreja.
Por volta de 1640, ter-se-á iniciado «un período de cerca de 30 años caracterizado
por el alejamiento de la Corona de la Santa Sede, debido al hecho de que el papado
no reconocía la nueva dinastía instaurada por el golpe político del 1 diciembre
de 164028». Como se sabe, desta situação resultou uma grave crise para a Igreja
portuguesa ao impedir a nomeação de novos bispos. Muitas Sedes Vacantes, portanto.
É evidente o impacto na vida dos fiéis e no relacionamento das duas instituições,
num momento-chave de fortalecimento da legitimação da nova dinastia. Duas
datas que marcam dois panoramas bem diferentes. Segundo Paiva, em inícios do
século XVII, a Coroa intensifica a restrição da jurisdição eclesiástica; no entanto, «la
Teria muito interesse fazer-se um estudo sobre a legitimação doutrinal através da parenética (se existiu,
de todo, para o caso português), por exemplo, destas lógicas místico-políticas ou religioso-políticas e que,
face ao tradicional quadro das três vias – via apostólica, via política e via mista – configuraria esta última.
Este estudo poderia, aliás, aferir da aplicabilidade e alcance dos próprios conceitos de confessionalização e
disciplinamento entre nós e das constantes/variantes contra-reformísticas em todo o mundo católico.
26
Citado a partir de Ronald Po-Chia HSIA, Disciplina social y catolicismo [...], art. cit., 38.
27
José Pedro PAIVA, El Estado en la Iglesia [...], art. cit., 46.
28
José Pedro PAIVA, El Estado en la Iglesia [...], art. cit. 47.
25
183
Maria Helena Queirós
contaminación y los lazos de dependencia creados eran más fuertes y tejieron una
trama de interpenetraciones entre el Estado y la Iglesia que no fue quebrantada por
los enfrentamientos conocidos29».
Nas razões do êxito da Reforma Católica, face a um suposto fracasso da
protestante30, encontramos factores que matizam a grande relevância dada a
confessionalização e disciplinamento e consequente necessidade de distinguir bem
as suas singularidades, em contexto protestante e em contexto católico. A aceitação
de práticas e costumes tradicionais, incorporando-os e ratificando-os; a utilização de
todos os meios ao alcance, desde a imprensa ao teatro ou à pintura; a simplificação
dos conteúdos teológicos, adoptando «una fe de dos pistas», uma dirigida ao povo
simples e outra ao clero parecem ser traços que, se, por um lado, fazem visível o êxito
da Reforma Católica, por outro, a diferenciam da protestante31.
No mesmo sentido parece caminhar a teorização de William Christian. Embora
divirja quanto à consideração de êxito ou fracasso da Reforma Católica, o seu conceito
de ‘religiosidade local’ traz à sede da discussão dois tipos de Catolicismo: um da
Igreja Universal, baseado nos sacramentos, na liturgia e calendário romanos e cujo
intermediário é o clero; e um Catolicismo, por assim dizer, local, feito de lugares,
imagens e relíquias e cujo intermediário são os santos espalhados por todo o território.
A teorização de Christian, admitindo embora a depuração de alguns costumes e a
eliminação de certos aspectos contraditórios com Roma, considera escassos os efeitos
da Reforma, que mal terá logrado alterar os costumes das populações arreigadas a uma
religião conservadora e de cor local. O conceito por si cunhado vem pôr um travão
ou, pelo menos, suavizar o peso – que, frequentemente, parece excessivo – que se
tem atribuído a um entendimento da Reforma Católica como processo de controlo e
mudança, ou seja, de disciplinamento social e de confessionalização.
Gostaríamos ainda de trazer à colação o contributo de Ignasi Terricabras, que fala
na necessidade de se substituir a concepção de êxito/fracasso da Reforma tout court por
uma formulação que conjugue outras variáveis, sintetizada numa formulação tipo:
os locais onde houve êxitos ou fracassos e as datas em que os mesmos se deram. Por
outro lado, também consideramos pertinentes as suas observações na revisão que faz
do conceito de religiosidade local. São três os aspectos que aponta:
- o questionar do suposto carácter local de um Cristianismo pré-Tridentino que
encontra, ao cabo, tantas semelhanças de lugar para lugar;
- o entendimento das concepções de religiosidade local e tridentina como
interactuantes e não opostas ou disjuntivas;
José Pedro PAIVA, El Estado en la Iglesia [...], art. cit. 55.
Oportunamente nos referiremos aos critérios de consideração de êxito/fracasso.
Apresentamos conclusões de Geoffrey Parker a partir de Ignasi Fernández TERRICABRAS, Éxitos y
fracasos de la Reforma católica. Francia y España (siglos XVI-XVII), in Manuscrits. Revista d’història
moderna, número 25 (2007), 130 e 131.
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A Contra-Reforma em Portugal 1540-1700, | Federico Palomo, Lisboa, Livros Horizonte,
2006, 130 p. | Nota crítica à obra
- o problematizar de um suposto carácter socialmente uniforme do conceito de
religiosidade local.
Trabalhos recentes vêm enfatizar isto mesmo. Recordamos o contributo de Anne
Bouzon que, para Beauvais, realça a Reforma Católica como mecanismo de resposta
às aspirações dos fiéis e não somente de repressão vindo das elites para as classes abaixo.
Parece ser de um encontro de vontades e aspirações entre bispos e fiéis que resulta o
êxito da Reforma. Já em Cuenca, o programa de catequização respondia às aspirações
dos fiéis, motivo na base do seu êxito. E também já foi notado como os eclesiásticos
não são voz única no processo de renovação religiosa, necessitando para tal de suporte
financeiro32.
Assim, terá sido «o peso da geografia física e humana33» o factor determinante
do triunfo/fracasso da Reforma Católica neste ou naquele lugar. Entenda-se:
de um lado êxito, em zonas planas, com importantes vias de comunicação;
de outro, a inércia ou imutabilidade, em zonas montanhosas, escassamente
povoadas e com pouco trato comercial34. Definido o Catolicismo pós-Tridentino
como uma «parrochially-grounded institution35», o seu sucesso medir-se-ia no
estabelecimento de uma «prática paroquial uniforme», que quebrasse os velhos
laços clientelares e de parentesco fundados na Idade Média. Julgamos, pois,
produtiva a perspectiva de Terricabras fundada sobre a conjugação de três
factores que corporizam a permeabilidade ao exterior de determinado local e
consequente êxito da Reforma: relevo plano, rede urbana e economia mercantil.
Como nota final, A Contra-Reforma em Portugal é uma boa leitura,
sobretudo, na nossa opinião, para quem começa o seu adentramento na História
da Reforma Católica, fazendo-o de uma perspectiva que realça o ponto de vista
da História Cultural. Também relevante é o facto de, ao longo das suas páginas,
nos deixar um avultado número de reptos à investigação, pois vai elencando
uma série de campos de estudo por desbravar entre nós. Na inexistência de
estudos que permitissem avançar mais o nosso estado de conhecimento, o autor
refere o trabalho a fazer.
De notar ainda que a não-referenciação/não-citação de fontes (pouco
comparece e, quando tal acontece, nunca aparece a página) coarcta o trabalho
do investigador ou mero curioso. Trata-se de uma opção justificada em sede de
Introdução, é certo; no entanto, resulta sempre ‘movediço’ ler afirmações de
Cf. Ignasi Fernández TERRICABRAS, Éxitos y fracasos de la Reforma católica [...], art. cit., 145.
Ignasi Fernández TERRICABRAS, Éxitos y fracasos de la Reforma católica [...], art. cit., 146.
34
Servimo-nos das conclusões de M. VENARD, Réforme protestante, Réforme catholique dans la province
d’Avignon – XVIème siècle, Paris, Éditions du Cerf, 1146, que citamos a partir de Ignasi Fernández
TERRICABRAS, Éxitos y fracasos de la Reforma católica [...], art. cit., 148.
35
J. BOSSY, The Counter-Reformation and the People of Catholic Europe, in Past and Present, 47 (Maio
1970), 53. Citado a partir de Ignasi Fernández TERRICABRAS, Éxitos y fracasos de la Reforma católica
[...], art. cit., 148.
32
33
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Maria Helena Queirós
outrem sem respectiva indicação de fonte.
Consideramos ter interesse para o investigador por trazer os conceitos de
confessionalização e disciplinamento ao estudo da Contra-Reforma em Portugal.
Por outro lado, como senão, traça uma panorâmica sobre a Contra-Reforma
que, por generalista, encontra sempre aplicabilidade ao estudo da política e da
religião em Portugal na Época Moderna. Peca por não prever as limitações da
aplicação dos conceitos para o caso português.
Os matizes a introduzir à teorização alemã de que fala Palomo são, como
vimos, imperceptíveis ao longo do seu estudo. Nesta nota crítica, pretendemos
evidenciar isso mesmo, repassando brevemente alguns dos estudos que fazem
a história da questão e bem assim fazendo um pouco a revisão da literatura à
luz dos mais recentes contributos, colocando alguns pontos nevrálgicos frente
a frente. Mantendo-se, embora, a pertinência dos conceitos de disciplinamento
social e confessionalização e verificados os limites da sua aplicabilidade ao
contexto português, cremos evidenciada a sua precariedade enquanto categorias
de análise e o muito que há a ganhar na conjugação de aproximações teóricas.
Maria Helena Queirós
Investigadora do CITCEM
[email protected]
186
VARIA
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NA ELEGIA DE CAMÕES
«O POETA SIMÓNIDES, FALANDO»
Num dos seus escritos sobre «Théorie poétique et esthétique», Paul Valéry
deixou dito o seguinte: «Un poète – ne soyez pas choqué de mon propos –
n’a pas pour fonction de ressentir l’état poétique: ceci est une affaire privée.
Il a pour fonction de le créer chez les autres». E acrescentava logo a seguir:
«L’inspiration est, positivement parlant, une attribution gracieuse que le lecteur
fait à son poète...»1. E noutro escrevia: «Le meilleur ouvrage est celui qui garde
son secret le plus longtemps. Pendant longtemps on ne se doute même pas
qu’il a son secret», para cinco páginas depois opinar: «La littérature oscille entre
l’amusement, l’enseignement, la prédication ou propagande, l’exercice de soi-même, l’excitation des autres»2. Este ângulo de aproximação à obra de arte
literária tem em vista o campo da subjectividade que ela transporta do autor e
convoca no leitor, exigindo, naturalmente deste, um saber adequado ao estatuto
da obra, o que valida, por sua vez, o papel que cabe ao receptor – costumes
detectáveis, expectativas imagináveis, estados psicológicos – na configuração
da obra como objecto que comunica; embora partindo e sobretudo visando
realidades distintas, práticas e teóricas, poderia recordar-se que, vinte séculos
antes, também a retórica assumira a consciência da atenção que o orator devia
conceder à percepção daquilo que ia no espírito do auditor3. No Renascimento
foi praticamente impossível arredar da teorização poética essas matrizes oriundas
da retórica, as quais se entendiam subjacentes a toda a enunciação literária.
No espaço já largamente plurissecular da coisa literária em Portugal, a obra
camoniana é, com certeza, um dos melhores exemplos desse segredo poético
Paul VALÉRY, Oeuvres, I, edição de Jean Hytier, «Bilbliothèque de la Pléiade», Paris, 1957, 1321.
Paul VALÉRY, Oeuvres, II, 562, 567.
3
Era o que todos podiam ler em Cícero, por ex. nas Tusculanae disputationes, I,XXVI,64. Quanto à oscilação
evocada por Valéry, anotar-se-á que ela implica a sua pressuposição de que não é possível constranger a
exegese de um texto a um só sentido, ficando ele, o texto, uma vez publicado, à disposição das necessidades
dos leitores para uma correlativa diversidade de leituras (Oeuvres, «Au suget du Cimetière marin», ed. cit.,
I, 1507), o que equivale a duvidar da possibilidade do exercício de uma hermenêutica do sensus litteralis
apoiada na pressuposição do sentido único ou da intenção do autor. Dessa liberdade se serviu Faria e Sousa,
entre muitos outros. Vale a pena evocar, por retoricamente paradigmáticas, as diferenças de estratégia
estilística captáveis nos escritos do Pe. António Vieira; Ana Paula BANZA, A «retórica cativa de Vieira»:
dos Sermões à Representação, in Românica, nº 17, Lisboa, 2008, «Vieira», 19.
1
2
189
Jorge A. Osório
a que aludia o poeta francês do início do século passado. Sem identificar o
ponto de vista valériano de que um poeta visa também criar nos outros – leia-se,
nos leitores – o estado poético com uma observação de incidência estritamente
sociológica, a asserção parece cair como uma luva em Camões, pese embora a
fortíssima sensação em contrário, ou seja, pese a enorme pressão que o seu texto
poético exerce sobre o leitor no sentido de o dever ler como confissão de um
estado poético.
Uma das facetas mais intrigantes do segredo escondido na obra camoniana,
e com particular acuidade na parte lírica, tem a ver com a memória, porque por
ela se atravessam as questões ligadas à sua pessoa histórica, à intencionalidade
semântica dos seus escritos, em suma à sua figura4. Importa não perder de vista
esta dimensão da ostentação que o enunciante poético faz de si mesmo, a par das
estratégias que desenvolve para agarrar também o seu leitor, como bem evocam
passos como os seguintes:
«Chegai, desesperados5, para ouvir-me
e fujam, os que vivem de esperança
ou aqueles que nela se imaginam,
porque Amor e Fortuna determinam
de lhe darem poder para entenderem,
à medida dos males que tiverem» (Canção X)
ou
«A quem darei queixumes namorados6
do meu pastor queixoso namorado,
a branda voz, suspiros magoados,
a causa porque na alma é magoado?
De quem serão seus males consolados?
Quem lhe fará devido gasalhado?» (Écloga V)
Um dos pontos mais obscuros na apreensão do autor Camões tem a ver com aquilo que possa ou deva ter
sido a sua contribuição autoral para a institucionalização da sua figura, quer pela maneira como pode ter
orientado a leitura – a legenda – dos seus discursos, lírico e épico, quer pela imagem que, mesmo em sua vida,
mas certamente na fase subsequente ao regresso do Oriente, os comentadores e biógrafos começaram a erguer
a seu respeito, pondo o acento tanto na infelicidade pessoal e na injustiça do tratamento de que terá sido alvo,
como na superioridade moral, muito à luz de um senequismo difuso, do vate sobre a realidade da pátria. Essa
lenda perduraria e permanece vigorosa.
5
Os desesperados de amor como destinatários eleitos, vistos nomeadamente como potenciais beneficiários
da mensagem lírica, eram tema comum na poesia de cancioneiro, como o denuncia a abordagem da cantiga
de Fernão da Silveira, «Para os desesperados / gram conforto he saber / que ham certo de morrer», no
Cancioneiro Geral de Resende (Ed. de Álvaro Júlio da Costa Pimpão e Aida Fernanda Dias, vol. I, Coimbra,
1963, nº 219, 229).
6
É retoma do primeiro verso dos tercetos da dedicatória de Boscán à Duquesa de Soma das suas Obras, o
qual, por sua vez, retoma o «Cui dono lepidum novum libellum» de Catulo, I, 1.
4
190
NA ELEGIA DE CAMÕES «O POETA SIMÓNIDES, FALANDO»
Nos versos citados pode o leitor captar duas coisas: por um lado a figura de uma
voz que se oferece como detentora de um saber credenciado em matéria de tristezas;
por outro lado, a insinuação da empatia – a confluência do exercice e da excitation
de que falava Valéry – que esse discurso poético buscava accionar no seu espírito.
Quer isto dizer que o enunciado lírico camoniano manifesta ou epifaniza
uma exclusiva realidade sentimental interior, ancorada a uma sinceridade
existencial que seria a condição sine qua non da sua materialidade? Nada menos
seguro. As palavras de Paul Valéry em cima transcritas têm também valia neste
ponto: a literatura pode ter funções diversificadas; faltou-lhe dizer ainda que
pode ter motivações directas diversificadas7.
Na verdade, sendo o poeta a sua obra e as suas circunstâncias, há que ter
em conta que, na época em que foi dado a Camões viver e poetar, fazer versos
reportava-se em larga medida a uma actividade marcada por circunstâncias de
conviviabilidade – grupos sociais, círculos culturais – ou mesmo de dependência
institucional8, o que objectivamente nada tinha, nem tem, de desmerecedor.
Mas essa circunstância tem um outro alcance significativo, aliás em consonância
com as afirmações de Valéry utilizadas nas primeiras linhas em cima: é que pode
tornar mais evidente a presença do leitor nos versos do poeta, no sentido de que
o poema enunciado pode incluir uma antecipação da excitação que haveria de
provocar no espírito do seu leitor. O mecanismo era bem conhecido da teoria e
da retórica oratória: estar atento à admiração do receptor, fosse ouvinte ou fosse
leitor.
Qualquer leitor da lírica camoniana tem a nítida percepção da importância
que a memória ocupa como elemento da construção do pensamento poético
e do discurso que o enforma e veicula. Não se trata de um ponto de vista
filosófico, naquilo que haveria de racionalizante e globalizante, envolvente de
uma ontologia própria do homem, mas trata-se da visão que, na instância do
hic et nunc do enunciado poético, corresponde a uma voz particular, a um eu
que, nos momentos mais fortes do discurso poético, se mostra ou se apoia na
biografia; ou numa biografia... poética...9.
Mas não façamos confusões: a memória não funciona em Camões como
o mero registo de coisas inscritas no passado que se reporta à entidade da
primeira pessoa que responde pelo enunciado poético. Não se pode comparar
A inspiração camoniana seria bem a attribuition gracieuese que os leitores desde cedo começaram
a fazer à son poète, usando a expressão de Paul Valéry. Por isso, importa sublinhar que uma das facetas
mais significativas dos estudos camonianos do séc. XX consistiu precisamente em levar a cabo o que se
poderia dizer, usurpando uma expressão de Hans-Georg Gadamer, um progressivo refinamento da nossa
possibilidade de compreensão da obra do poeta.
8
Hélio J. S. ALVES, A propósito do soneto O dia em que eu nasci e do seu autor, in Estudos. Para Maria
Idalina Rodrigues, Maria Lucília Pires, Maria Vitalina Leal de Matos, Lisboa, 2007, 263.
9
Rita MARNOTO, Camões. Quem é quem, in Sete Ensaios Camonianos, Coimbra, 2007, 107s.
7
191
Jorge A. Osório
com o papel que Jean-Jacques Rousseau lhe atribuiria no início da II Parte das
suas Confessions: «L’objet de mes confessions est de faire connoître exactement
mon intérieur dans toutes les situations de ma vie. C’est l’histoire de mon âme
que j’ai promise»10. Mais: para Rousseau a memória tinha por função retracer
uniquement les objets agréables, já que a sua imagination effarouchée só lhe fazia
antever de cruels souvenirs.
Não era essa nem podia ser a atitude de Camões; o âmbito semântico
da palavra tinha raízes longínquas no pensamento antigo, a começar pela
epistemologia platónica, pela psicologia aristotélica e pelas reflexões do
estoicismo romano, passando pela função que a evocação do passado pessoal
desempenhava na expressão lírica românica, desde a petrarquiana até à da
cultura cortês.
Por outro lado, e antes de avançar mais, importa ainda anotar que no
Renascimento se procurou aprofundar uma ideia de memória não propriamente
numa perspectiva de natureza psicológica, mas mais como arte da memória
ou da mnemónica, numa concepção que tinha muito de projecção visual do
saber, o que conduziu aos esforços como o representado pelo Teatro da memória
de Giulio Camillo, numa arrumação arquitectónica das coisas conhecidas,
ou seja da scientia, onde se buscava disponibilizar, de forma ágil e eficiente,
a enciclopédia dos saberes. Explorava-se ou procurava-se tirar proveito das
potencialidades semânticas do enlace significativo que se entendia existir entre
a palavra e a imagem, no interior de um espaço como, por exemplo, uma folha
de papel; o êxito de um modo de expressão de base poética como o emblema
– que a impressão tipográfica dos textos enormemente facilitava, se bem que
não a tivesse inventado – manifestação dessa ambição11. A memória tinha a
ver com algo que se podia ver, para onde se podia remeter o observante ou
o leitor, ajudando, desse modo, a fortalecer a força significativa dos meios de
comunicação artística, num processo que se avizinhava do conceito de prazer
em Aristóteles, radicado fundamentalmente na mimesis12.
Les Confessions, éd. intégrale... par Ad. Van Bever, T. II, Paris, sd, 74-75.
Lina BOLZONI, La chambre de la mémoire. Modèles littéraires et iconographiques à l’âge de l’imprimerie,
Genebra, 2005.
12
O passo mais evidente da Poética é 1448b; parece legítimo apelar a essa definição de poesia a propósito
da situação mental produzida pelo enunciado poético de Camões (pelo menos no campo da intencionalidade)
na medida em que o leitor, em quem o poeta considera implícito o saber letrado e quiçá uma experiência
sentimental adequada – o tormento amoroso, ampliado até aos limites do existencial, era inerente a um estado
cultural e social em que se podia rever, ao menos no plano idiossincrático, quem o lia – poderia encontrar o
deleite interiorizado que o texto era suposto suscitar nele. No fundo, trata-se de um tópico gerado pelo modelo
do «Voi ch’ascoltate in rime sparse il suono» do soneto I de Petrarca. Mas a poesia construía-se também com
retórica e no quadro de uma ideia de criação que dependia da imitatio, mais ou menos servil ou genialmente
alusiva conforme os casos; Camões imitou Petrarca – que poeta lírico da época não o pretendeu fazer? –, mas
não em tudo; por exemplo, a metáfora do caminho, que tanta força tem no italiano e que Garcilaso de La Veja
também usa, surge em Camões – enfatizando uma verdade biográfica – substituída pela viagem marítima
10
11
192
NA ELEGIA DE CAMÕES «O POETA SIMÓNIDES, FALANDO»
Há três décadas, em 1980, Christopher Lund publicou um conjunto de
pequenas histórias, do tipo de anedotas, relacionadas com o ambiente do paço
régio, com figuras da aristocracia e da casa real portuguesa relativas, na sua
grande maioria, aos reinados de D. João III e de D. Sebastião13. Do ponto
de vista da organização do enunciado, essas historietas, apresentadas como
autenticamente históricas – mediante procedimentos correntes, um dos quais
é a nomeação dos intervenientes como pessoas que haviam realmente existido e
de que havia ficado memória facilmente reconhecida –, organizam-se em torno
do dito, enquadrado num feito que oferece uma referencialidade exofórica: o
evento é, assim, mostrado ao leitor à maneira do apophtegma de larguíssima
tradição tanto clássica como cristã14. Só que no apotegma existe a intenção e
a pretensão de transmitir ou de inculcar uma lição de natureza doutrinária ou
moral, aspecto que, no caso destas anedotas e de outras também já publicadas15,
não constitui marca especial.
Na verdade, o manuscrito da Biblioteca do Congresso em Washington que
Christopher Lund utilizou pertence a um tipo de escritos que foi bastante mais
usual ao longo dos séculos XV-XVIII do que os exemplos conservados poderão
sugerir, certamente porque o terramoto de 1755, entre outras causas claro,
fez desaparecer muitos outros que se encontravam nas livrarias de palácios e
casas senhoriais na capital do reino, onde a nobreza mais importante se havia
fixado para estar perto do poder régio. Tratava-se de colecções de histórias ou
notícias organizadas por curiosos, por pessoas que desempenharam funções na
administração régia ou nobre, como secretários e escrivães, por elementos de
casas fidalgas, colecções essas que serviam para guardar lembranças de sucessos,
de acções e atitudes, ou seja um saber que, exigindo o domínio da letra, ganhava
valor e força pelo facto de se tornar memória e de se revestir de um inestimável
interesse arquivístico16. É fácil imaginar a mais valia que, por exemplo, uma
perigosa para o Oriente, ou como na Elegia II, «Aquela que de amor descomedido», pela imagem do andar
solitário e vagaroso «ao longo de ũa praia saüdosa» (238).
13
Anedotas portuguesas e memórias biográficas da corte quinhentista. Istorias e ditos galantes que sucederão
e se disserão no Paço, ed. de Christopher C. Lund, Coimbra, 1980.
14
Neste conjunto o sujeito narrador surge na 1ª pessoa – de Rui Lourenço de Távora – em 10 casos; mas, no
conjunto de 127, a grande maioria depende de uma 3ª pessoa, como é corrente nos apotegmas.
15
Ditos portugueses dignos de memória. História íntima do século XVI, ed. de José Hermano Saraiva, Lisboa,
s.d.
16
O coleccionismo, além de uma necessidade de custódia de um saber de fundo sobretudo literário e histórico
− nesse sentido de Paul Ricoeur de história como «guardiã do passado dos homens» −, denunciava também
um generalizado por esses tempos, sobretudo entre a aristocracia mais esclarecida: coleccionar inscrições
antigas, vestígios arquitectónicos, relíquias de um passado que emergia materialmente na forma de ruínas;
coleccionar frases de teor moralizante, ditos, sentenças; coleccionar poesia, em cancioneiros; coleccionar
para saber, para adquirir ou reforçar o prestígio social da família e dos seus indivíduos, para apoiar a educação
das suas gerações mais novas; coleccionar livros, com um apreço particular pelo livro manuscrito; Ana Isabel
193
Jorge A. Osório
família nobre poderia retirar do facto de manter em arquivo a memória dos
feitos, das funções, dos conselhos, etc. de elementos seus anteriores: além do
prestígio, era a força política dessa vantagem que interessava17.
Conforme Christopher Lund confessa, foi o facto de no manuscrito existir
um núcleo de historietas centradas na figura de Luís de Camões que chamou
a sua atenção. Trata-se de um conjunto não muito extenso de oito anedotas
em que o poeta aparece como interveniente; é óbvio que não se pode garantir
a fidelidade histórica destes eventos menores – aquilo que João de Barros
designava de «cascalho da história» –, nem isso terá consequências graves para
o que aqui importa.
Essas historietas projectam a imagem de um Camões, provavelmente antes
do período indiano18, jovial, galanteador e amigo do companheirismo e do
convívio, como era típico do modo de vida da fidalguia de menos posses por
aqueles tempos. O verso d’ Os Lusíadas tantas vezes citado «Nũa mão sempre a
espada e noutra a pena»19 é com frequência utilizado para sintetizar essa imagem,
não se tendo em conta que o seu significado era muito mais profundo, além de
retomado certamente de Garcilaso de La Veja, cuja biografia de fidalgo-poetamilitar oferecia a Camões sugestões de similitude que lhe eram familiares através
das leituras atentas que fez da sua obra20.
BUESCU, A persistência da cultura manuscrita em Portugal nos séculos XVI e XVII, in Ler História, 45,
Lisboa, 2003, maxime 44.
17
Por exemplo, ainda em meados do séc. XVIII o 2º marquês de Valença, D. Francisco de Portugal, fazia
imprimir em 1745 em Lisboa duas Instruções dirigidas aos dois filhos mais velhos, fundadas em saber letrado
e experiência política, para lhes inculcar – ostentando-o, se bem que para um restrito grupo de «parentes
e amigos» – a consciência de uma dignitas própria de homens tão «ilustres» e «cavalheiros» como lhes
competia ser; José Adriano de Freitas CARVALHO, As Instrucções de D. Francisco de Portugal, Marquês
de Valença, a seus filhos. Um texto para a Jacobeia?, in Península. Revista de Estudos Ibéricos, 1, Porto,
2004, 319.
18
Como jovem pagem assistiu à tomada de Túnis pela armada de Carlos V, certamente integrado na comitiva
do infante D. Luís.
19
Lus., VII, 79.
20
Não era difícil ler Garcilaso em Lisboa, já que, para além de cópias manuscritas, no mesmo ano, 1543,
da primeira edição das suas obras no volume das de Boscán, saía em Lisboa uma igual; o conhecimento de
Garcilaso é perceptível em muitos locais da Lírica de Camões; para o passo em causa há que apontar para a
Elegia II, A Boscán, e para os vv. 94-99. Do mesmo modo, para a figura do poeta com a espada numa mão e a
pena na outra, que Camões define num terceto da sua Elegia VII, A Dom Leonis Pereira, – «Nũa mão livros,
noutra ferro e aço, / a ũa rege e ensina, a outra fere; / mais co saber se vence que co braço» (Luís de CAMÕES,
Rimas, ed. Costa Pimpão, 2ª ed., Coimbra 1994, 254 , 255; é a edição aqui utilizada) – se pode evocar o v.
40 da Égloga III, Tirreno, Alzino «tomando ora la espada, ora la pluma». Talvez valha a pena anotar que o
tópico em causa bastante vai para além de um simples confronto letras / armas, tão vulgar na koine humanista, e inscreve-se mais profundamente numa noção de autor que deve ser afinada para o contexto cultural
(ideológico, literário) de uma época que, preocupando-se imenso com a ideia de estabilidade – ordenação das
coisas e dos saberes, acolhimento imperativo de normas e códigos inerentes a géneros –, só por aproximação
poderia enfrentar o acto de escrever no quadro do individualismo a que o leitor europeu de acostumou desde
o séc. XVIII e que o leva a transpor muitas das vezes sem grandes cuidados a sua visão para épocas que não
podiam laborar no mesmo modo de pensar. Michel FOUCAULT, em O que é um autor? (trad. port., 6ª ed.,
Lisboa, 2002), deixou algumas questões pertinentes para esta problemática.
194
NA ELEGIA DE CAMÕES «O POETA SIMÓNIDES, FALANDO»
Quanto ao tipo de composições em verso que servem, nas anedotas em
causa, para exemplificar essa faceta cortês de Camões, há que ter em conta que
todos os versos aí documentados como exemplos da sua enorme capacidade
para improvisar, própria do galanteio em ambientes de corte ou próximos
dele, em Lisboa ou em Goa, são heptassílabos de arte menor, ou seja versos de
redondilha da tradição dos cancioneiros de finais do séc. XV e do início do séc.
XVI, como, entre nós, o Cancioneiro Geral de Garcia de Resende21. É o caso
das anedotas sobre o tratamento do mote «Perdigão perdeu a pena» (p. 167), ou
do mote «Coifa de Beirame» (p. 170), ou das trovas endereçadas a duas Damas
que estavam a uma janela; em situações desse tipo Camões não utiliza o verso
decassilábico de modelo italiano nem formas estróficas ou de poemas de herança
imitativa das literaturas antigas22.
Do conjunto de anedotas camonianas há duas – CV, p. 171-2; CVII, p.
174 – que nos podem ser úteis. Na primeira conta-se que em casa de António
Pinto, também poeta e prosador com bastantes escritos e fama ao tempo, mas
que é mal conhecido, respeitado pelo próprio Camões a ponto de que só a
ele «reconhecia […] hũa serta excellencia, de man.ra q[ue] em sua prezença
naõ ouzava m.tas vezes fazer versos», era costume reunirem-se vários homens
curiosos de literatura (certamente mais de poesia do que de prosa), entre os
quais «hũ homẽ q[ue] prezumia de poeta repentino, e fazia m.to maos verços».
Camões várias vezes «trovou […] com elle de repente em competência só por ter
ocaziaõ de rir, e zombar das parvoices q[ue] dizia». O homem, porém, mostrouse tão incomodativo, que certa tarde, entrando em casa do próprio Camões
e começando a desafiá-lo em provocação com trovas «taõ fora de caminho»,
o poeta teve de o despachar com uma sarcástica trova centrada em torno da
equivocidade da palavra macho.
Na segunda anedota referida dá-se uma cena similar: numa outra tarde,
estando também em casa (que portanto era também ponto de reunião), Camões
recebeu um escrito enviado por uma dama que ele galanteava, perguntandolhe o significado de beijos a que «chamavam beijos tristes»; como estivesse
então ocupado, com certeza não com trabalhos domésticos ou manuais, coisa
imprópria de fidalgos, pediu a António Ribeiro Chiado, no momento ali
presente, que se encarregasse da trova de resposta23.
21
Aníbal Pinto de CASTRO, Camões e a tradição poética peninsular, in Actas da IV Reunião Internacional
de Camonistas, Ponta Delgada, 1984, 133.
22
Isabel Adelaide ALMEIDA, Camões e a poesia de arte menor, in Lírica Camoniana. Estudos diversos,
Lisboa, 1996, 27.
23
A questão do ou dos círculos literários em que se moveu Camões – os adversários, os admiradores e
protectores – não é conhecida com rigor; Maria Vitalina Leal de MATOS, Os poetas do século XVI: relações
literárias, in Magnum miraculum est homo. José Vitorino de Pina Martins e o Humanismo, Lisboa, 2008, 39.
195
Jorge A. Osório
O que interessa aqui apontar, a propósito destas duas anedotas – e não
importa discutir a verdade dos relatos –, é a imagem que nos fica de um Camões
que, para lá da fama de improvisador em verso, estava muitas vezes ocupado, ou
seja, concentrado em alguma actividade de natureza intelectual, como seriam
leituras ou o trabalho criativo da escrita. Os narradores das anedotas não o
dizem – nem isso lhes interessava –, mas nada impede que iluminemos a sua
figura com esta luz24.
A verdade é que Camões não foi insensível à enorme capacidade expressiva
e expositiva do decassílabo, mais do heróico do que do sáfico. Nas Rimas
usou-o para os registos mais sérios, cultos, eruditos ou de pendor confessional,
inscrevendo aí reflexões, sentenças, sugestões biográficas e mitológicas,
aproveitando o espaço mais aberto que ele lhe oferecia. Nele escreveu as Elegias,
agrupadas na III Parte.
É bem sabido que a elegia cristalizou de certo modo o sentido de
«lamentação», na linha de uma presunta função originária de querimonia. A
afirmação, de forma alguma isenta de provocação, que os elegíacos eróticos
faziam da sua differentia no ambiente literário e poético da Roma do séc. I
a.C. indiciava um caminho que, ao lado daquilo que Horácio expressava
entender pelo trabalho do poeta doctus, disponibilizava a vantagem, caucionada
pelo Ovídio dos Tristia sobretudo, de oferecer uma modalidade de expressão
lamentosa relacionada com um sofrimento individualizado, muito embora, sob
a influência do julgamento de Quintiliano, o Sulmonense fosse tido como mais
«lasciuus» do que Tibulo ou Propércio25. A lição destes auctores apontava para
a elegia como género que possibilitava a evocação de um passado biográfico
cujo crédito dependia essencialmente daquilo que o enunciador dizia de si
mesmo, por exemplo sobre os amores sofridos, actuando sobre o leitor com
frequência mediante a convocação de pormenores concretos de natureza pessoal
– mas não se perca de vista o quadro de uma fictio, não totalmente isenta de
função retórica –, relativos a um passado de que se lembram detalhes como
locais geográficos ou mesmo notas eróticas íntimas, o que, como é fácil ver,
favorecia imenso a sinceritas que dava ênfase ao lamento da tristeza26. O tipo
Essa imagem de um Camões concentrado no trabalho poético parece adequar-se mais à poesia pertencente
aos géneros maiores, que pressupõem um saber literário e letrado muito grande; Maria do Céu FRAGA, Os
Géneros Maiores na Poesia Lírica de Camões, Coimbra, 2003. Ocorre evocar aqui a Sátira II de André Falcão
de Resende «A Luiz de Camões», imbuída de uma tonalidade mirandina, contra os «que, desprezando os
doutos, gastam o seu em truhães», aos quais de opõe a imagem do poeta que despreza riquezas e honrarias,
mas que gasta a sua «honra, fazenda, tempo e tudo» «em bom uso e honesto estudo» (vv. 79-81); Américo
da Costa RAMALHO, Camões e os seus contemporâneos e Ainda Camões e alguns contemporâneos seus, in
Camões no seu tempo e no nosso, Coimbra 1992.
25
Arturo R. ALVAREZ HERNÁNDEZ, Horacio, la elegía, los elegíacos, in Euphrosyne, XXIII, Lisboa,
1995, 43.
26
É bem sabida a insistência de Ovídio na sinceridade daquilo que escrevera em verso antes do exílio no
24
196
NA ELEGIA DE CAMÕES «O POETA SIMÓNIDES, FALANDO»
de enunciado em metro que subliminarmente a que esta orientação poética se
reportava era o discurso épico, definido como um canto proclamador de feitos
bélicos empolgantes, com versos de seis pés dactílicos; só que, ao vincar como
suporte da deriva temática – cantar não a guerra e o seu herói, como na Eneida,
mas o amor e o eu infeliz, o me miserum – uma diferença métrica entre os versos
ímpares e os versos pares, a elegia aparecia, tal como a programava Ovídio na
primeira dos Amores, a emular a gravidade constante do ritmo épico27. Era o
dístico elegíaco (hexâmetro / pentâmetro), que não deixou de ter influência
sobre a poesia românica em terza rima usado na Divina Commedia de Dante,
impondo-se depois como metro próprio da elegia no período renascentista e
maneirista, especializando-se, de certo modo, o género no elogio fúnebre e
no tratamento da lamentação amorosa28. Isto falando do género canónico, já
que o termo designou também poesias em modalidade epistolar ou em verso
tradicional, o que decorre da capacidade de variação do sentido de elegia29.
Sobre a elegia clássica – sua origem, características, temáticas –, no séc. XVI
condensavam-se as definições e explicações que no fundo provinham dos topoi
da tradição literária anterior – colhidos sobretudo em Quintiliano, mas também
sob a influência dos pontos de vista de Horácio –, como sucede em Francesco
Robortello ou em Júlio César Escalígero30. Era, no fundo, um género elevado
mercê das temáticas e problemáticas que podia acolher, da métrica utilizada, das
sugestões que podia instituir com estratégias discursivas observáveis em poetas
clássicos como Horácio. Coisa que se coadunava bem com aquela imagem de
poeta ocupado de que falam as anedotas citadas.
Comecemos, pois, pela leitura do longo 1º período da Elegia «O Poeta
Simónides, falando»31:
Ponto. Entre uma larga bibliografia, Walter de MEDEIROS, A Lua negra do Poeta, in Humanitas, XXXVXXXVI, Coimbra, 1983-1984, 87.
27
Amores, I, 1,1-5, onde reescreve a abertura da Eneida: «Arma graui uiolentaque bella parabam / edere,
materia conueniente modis. / Par erat inferior uersus; risisse Cupido / dicitur atque unum surripuisse pedem».
28
Vítor Aguiar e SILVA, A elegia na Lírica de Camões, in A lira dourada e a tuba canora: novos ensaios
camonianos, Lisboa, 2008, 164.
29
Inserida num complexo sistema de literatura de propaganda, as poesias fúnebres geradas em torno de
Padres Jesuítas foram também, às vezes, designadas como elegias tristes; para uma visão actualizada da
problemática, José Adriano de Freitas CARVALHO, Vida e morte de Inácio Martins SJ. (1531-1598), o Santo
Mestre da Cartilha, in Poesia e hagiografia, Porto, 2008.
30
Pedro CORREA, Escalígero em la obra literaria y erudita de F. de Herrera, in Ágora. Estudos Clássicos em
debate. Júlio César Escalígero, 9.1, Aveiro, 2007, maxime 369-71. A problemática revestia-se de uma enorme
importância pelas questões que levantava sobre a relação entre os antigos e os modernos e as consequências
daí resultantes para a teorização poética; Belmiro PEREIRA, Antigos e Modernos: o humanismo norteeuropeu nas retóricas peninsulares do séc. XVI, in Península, ed. cit., 5, 2008, 93s; Des arts de prêcher à
la rhétorique sacrée: la prédication au Portugal pendant la Renaissance, in Ágora, ed. cit., 10, 2008, 81s.
31
A primeira edição de 1595 já colocara esta Elegia em primeiro lugar da Parte III, disposição que foi seguida
pela edição de 1598 e é adoptada por editores como Costa Pimpão. Mas, pelas referências nela constantes
a eventos indianos de 1553 – elegia marítima lhe chamaram –, parece claro que não foi a primeira em data,
197
Jorge A. Osório
«O Poeta Simónides, falando
ao capitão Temístocles, um dia,
em cousas de ciência praticando,
ũa arte singular lhe prometia,
que então compunha, com que lhe ensinasse
a se lembrar de tudo o que fazia;
onde tão sutis regras lhe mostrasse
que nunca lhe passasse da memória
em nenhum tempo as cousas que passasse».
Vejamos o período seguinte:
«Mas o capitão claro, cujo intento
bem diferente estava, porque havia
as passadas lembranças por tormento,
Ó ilustre Simónides! (dezia)
Pois tanto em teu engenho te confias
Que mostras à memória nova via,
Se me desses ũa arte que em meus dias
Me não lembrasse nada do passado,
oh! quanto milhor obra me farias!».
Temos dois longos períodos, de extensão igual. Sendo o verso uma frase que
se organiza em obediência a factores que estão para lá da sintaxe gramatical, como
sejam os constrangimentos do ritmo, a distribuição das tónicas e das átonas, a
própria rima e a sua relação com a unidade gramatical da frase, verificamos
aqui uma enorme e bem sugestiva aproximação do enunciado ao registo da
prosa quase familiar, sobretudo no primeiro período32: temos, na sequência do
o que levou outros editores, como já antes fizera Faria e Sousa, a adoptar uma ordenação distinta: Maria de
Lourdes SARAIVA, Lírica completa, III, Lisboa, 2002, 154; no Cancioneiro de Luís Franco Correia a ordem
destas três primeiras elegias está invertida: esta é a terceira do conjunto com que se inicia esta colectânea
manuscrita quinhentista, registando a sua epígrafe que «tem muito poca mudanca» (fl. 4r). Mesmo tendo
em conta a nossa total ignorância sobre o Parnaso que o poeta teria praticamente organizado quando viajou
de regresso a Lisboa – e uma «secreta e doida esperança» de o encontrar consumiu camonistas como Vítor
Aguiar e SILVA, Retrado do Camonista quando Jovem (Com Alguns Pingos de Melancolia), in Luiz Vaz de
Camões Revisitado, coord. de José Augusto Cardoso Bernardes, «Santa Barbara Portuguese Studies», VII,
Santa Barbara, 2003, 377 –, há que considerar que as Rimas impressas obedecem a uma organização pensada;
no caso das elegias, notar-se-á que as três primeiras se sintonizam com a ideia de que o afastamento da terra
natal e da mulher amada (a inspiração ovidiana da 2ª e da 3ª está patente logo no 1º verso) motiva uma poética
da memória de conotação lamentosa e, por isso, elegíaca, com a imagem também ovidiana do exilado cujo
sofrimento é fortemente agudizado pelo seu afastamento em terra estranha.
32
Importaria, talvez, anotar que o passo em causa, na sua categoria de enunciado propositadamente orientado
por parâmetros de uma poética, pode querer evidenciar, a problemática em torno deste verso longo, cujas
características o aproximavam do hexâmetro latino, mas que, face a este, se revelava mais difícil, na medida
em que, segundo escrevia Lorenzo de’ Medici no «Proemio» ao seu Comento de’ miei sonetti, «perché nella
198
NA ELEGIA DE CAMÕES «O POETA SIMÓNIDES, FALANDO»
enunciado, um sujeito, Simónides, um predicado, prometia, um complemento
directo, ũa arte singular, a que se juntam outras informações complementares
que dão consistência ao relato, nomeadamente o dativo lhe, que se reporta ao
destinatário da fala para visar o interesse suposto pelo sujeito. Como marca do
enunciado narrativo até temos o indicador temporal um dia; faltou só indicar o
lugar. A narração é da responsabilidade de uma terceira pessoa, mas o período
seguinte, explorando as potencialidades do registo narrativo, incorpora uma fala
em discurso directo, que, para além da creditação daí decorrente, dramatiza
também um pouco o relato, evidenciando a intenção opinativa que está
subjacente ao recurso a esta anedota por parte do autor. A acentuar este aspecto,
que é importante na economia da estratégia que preside ao desenvolvimento do
poema33, temos o realce trazido pela adversativa mas à cabeça do verso inicial
desse segundo período. Trata-se de um procedimento que Camões utiliza com
alguma frequência, o que patenteia uma actuação discursiva que marca com
alguma ênfase o seu discurso lírico e que reside numa séria preocupação em
solidificar uma estrutura argumentativa capaz de fundamentar a meditação
analítica que o percorre.
No caso presente, estes dois períodos iniciais, tanto pela mudança do
discurso indirecto para o directo, como pela advertência contrastiva e aditiva
do mas, instituem, logo na abertura, uma oposição intensificada de pontos de
vista que deixa o leitor em suspenso sobre o que é que o poeta iria retirar de tal
anedota, como se se tratasse do tema de um sermão.
Temos assim que a força ilocutória das duas primeiras frases da Elegia
decorre não só da sua estrutura enunciativa, mas também de um factor de ordem
retórica, que é a anedota em si mesma e a autoridade de que se faz portadora por
ser um exemplo de origem clássica, já que provém de Plutarco e era por demais
conhecida na cultura antiga e humanista34.
lingua nostra, oltre a’ piedi che piú tosto per natura che per altra regola è necessario servare ne’ versi, concorre
ancora questa difficultà delle rime, la quale, come sa chi l’ha provato, disturba molte e belle sentenzie, né
permette si possino narrare com tanta facilità e chiarezza» (Tutte le opere, a cura de Paolo Orvieto, I, Roma,
1992, 371); o tópico da alegada falta do ritmo no decassílabo, que para muitos a tornavam mais prosa do
que propriamente verso (Lorenzo o regista: «si potrebbono fare molti verso contenenti undici sillabe sanza
aver suono di versi o alcun’altra differenzia dalla prosa»), era bem conhecido nos meios peninsulares, como
documentam, entre outros, Boscán, Sá de Miranda ou as abordagens paródicas no contexto de uma polémica
entre antigos e modernos.
33
Sobre a complexidade da estrutura formal e semântica do poema, V. Aguiar e SILVA, A lira dourada, ed.
cit., 174-177.
34
Nas Vidas paralelas; Petrarca utilizou-a no de Secretis, I, VIII. A importância de Plutarco na cultura tem
sido imensa ao longo dos séculos; os estudos dedicados ao autor e à sua obra nos últimos anos são claro
testemunho: por exemplo Os Fragmentos de Plutarco e a recepção da sua obra, in Humanitas, LV, Coimbra,
2003. O tema da memória ocupou um lugar central na reflexão filosófica e literária; não só Simónides, mas
também Hípias inventaram artes mnemónicas que circularam nas referências culturais, fundamentando uma
longa tradição letrada – filosófica e retórica – respeitante à organização e sistematização do saber que vai
199
Jorge A. Osório
Qual é o problema evidenciado nesse primeiro segmento do poema? É a
questão da utilidade da memória, não na dimensão histórica, nem na perspectiva
exaltatória e apologética da epopeia, mas na perspectiva individual, que era a
que interessava ao poeta: focalizar a atenção do leitor no seu caso pessoa35.
Como se aludiu mais atrás, o tema da memória era para Camões um tema algo
obsessivo, que ele articula com o sentido da experiência vivida, na dimensão de uma
biografia que mistura o plano do histórico com o plano da sua projecção ideal e
subjectiva, que comanda as atitudes de expressão poética36. Na verdade, o enunciado
lírico mostrava-se como execução de um discurso elaborado no quadro de uma
linguagem que radicava no modelo petrarquista, embora mantivesse esquemas da
tradição cortês cancioneiril, tornando-se o texto o veículo de uma articulação com o
leitor buscada pelo autor, na medida em que, entre outros factores, este pressupunha
que aquele – idealmente os desesperados – tinha visto, e por isso conhecia, tanto o
que eram as formas de expressão dessa tradição quanto os temas em que ela insistia
e que autorizava, no quadro de uma imitação petrarquista que já foi designada
como uma «espécie de self service emocional, disponível para a expressão de todas as
modulações sentimentais de uma alma requintada e sensível»37.
Um dos sinais da importância que o lexema memória detém é o facto de, quando
utilizado, surgir, as mais das vezes, em rima com história, como sucede no primeiro
período da Elegia, ou então com glória ou com vitória38. Deve notar-se que este
procedimento nada tem de muito especial na poesia quinhentista: no Cancioneiro
Geral encontramos muitas articulações destas palavras em posição de rima; aquilo
que se torna saliente em Camões é a densidade semântica que ele concede à palavra,
forçando o leitor a situar-se dentro da relação quase de sinonímia entre memória e
história, entendidas estas como o conteúdo de uma biografia figurada em termos
poéticos.
passar por Cícero e desembocar, nos dois séculos e meio do renascimento humanista, no forte aproveitamento
pedagógico dos Jesuítas; Margarida MIRANDA, Persuadir pela palavra e pela imagem: «memoria», in
Boletim de Estudos Clássicos, 48, Coimbra, 2007, 127; para uma visão actualizada da problemática ligada
à evangelização jesuíta, José Adriano de Freitas CARVALHO, Vida e morte de Inácio Martins SJ., art. cit.,
135s.
35
Perspectiva que Francisco Manuel de MELO evocaria no início da sua Epanaphora tragica segunda, 1627,
156.
36
Ter-se-á em consideração que a perspectiva imposta pelo discurso lírico não podia coincidir com a ideia
de memória como espaço organizado dos saberes apropriados ao orador equacionada por Cícero (ex. de
Oratore, II, 354), pelo que, se fosse permitido especular um pouco, nos poderíamos interrogar se ao espírito
de algum leitor não ocorreria a ideia de que, ao usar esta anedota sobre Temístocles, o autor não estaria a
atetizar a possibilidade (teórica) de a memória das coisas biográficas se compatibilizar com a lógica do teatro
dos saberes.
37
Rita MARNOTO, Sete Ensaios, ed. cit., 51.
38
O termo comporta um semantismo direccionado para a ideia da transitoriedade da condição humana –
maxime do poeta –, não na dimensão religiosa do contemptus mundi, mas, por via neo-platónica não totalmente
arredada dele, a qual se evidencia na rima memória / glória / transitória da Elegia III, «O Sulmonense Ovídio,
desterrado» (241).
200
NA ELEGIA DE CAMÕES «O POETA SIMÓNIDES, FALANDO»
Ora não deixa de merecer anotação que o termo memória surja uma única
vez nesta Elegia, em posição de rima, no local referido39, quando a anedota
incide expressamente sobre a problemática da relação entre as armas e as letras,
neste sentido de que estas conservam a memória ou a fama daquelas ao longo
dos tempos. É que o autor não está preocupado nem com a natureza histórica
da cena, nem com o valor do seu possível significado doutrinário ou filosófico.
O que o preocupa é a lição extraível, pelo menos no plano da dinamização de
um poema lírico, para o campo pessoal, individual, próprio do eu que gere
a enunciação40. Em Camões a memória é muito a lembrança (muitas vezes
no plural intensificador lembranças) de incidência pessoal, não no sentido
da narrativa autobiográfica, mas só – e era quanto bastava em poesia – na
perspectiva da sugestão psicológica, naquilo que se poderia dizer uma psicologia
amorosa, para a distinguir de outros campos psicológicos de então, como seriam
os relacionados com vivências espirituais religiosas, comportamentos devotos ou
de outra natureza. De facto, nesta Elegia I o termo que nos vai surgir mais vezes
é precisamente esse de lembrança/s, em vez de memória41.
Impõe-se, por conseguinte, observar como o autor vai actuar nos dois
segmentos subsequentes que é possível identificar no poema; isto é, a estratégia
expositiva e retórica que vai seguir para consolidar a sua interpretação ad seipsum
da historieta relatada no início. Mas antes de avançar importa sublinhar que
existe, no texto, a marca de um destinatário, que seria também o dedicatário
do poema, um «Senhor» referido duas vezes, muito provavelmente D. António
de Noronha, elemento que inculca no leitor a ideia de que estamos diante de
um texto dirigido a um alocutário na forma de epístola, de acordo, aliás, com o
permitido pela uariatio do género elegíaco42.
Comecemos por chamar a atenção para as partículas que iniciam os
primeiros versos do grupo seguinte de tercetos: que e se; no segmento final do
poema voltaremos a encontrar uma actuação similar. Trata-se de um conjunto
Sem ser nessa posição, mas de qualquer momo na segunda parte do verso, aparece também no sintagma
«memórias tristes» no plural, o que não sucede quando o lexema é palavra-rima.
40
O conjunto de questões relacionadas com a faculdade da memória, nomeadamente a sua localização no
cérebro (entendia-se que na parte posterior, como receptáculo da informação oriunda da zona frontal, onde
está a faculdade superior do ver, no sentido amplo de ‘observar, contemplar, adquirir saber pela experiência
ou pela leitura’), foi assunto de uma larga literatura científica, sobretudo nos meios italianos. As relações do
tema com os estudos médicos e anatómicos eram óbvias e por essa via também englobavam a questão do
amor, sua origem, natureza, consequências, remédios e terapias; Lina BOLZONI, La chambre de la mémoire.
Modèles littéraires et iconographiques à l’âge de l’imprimerie, trad. franc., Genebra, 2005.
41
Com as Elegias II e III a aprofundarem essa reflexão sobre a custódia do passado individual, temos no início
da Parte III das Rimas de 1595 um conjunto de poemas dedicados à problemática da memória.
42
Neste quadro, a elegia podia também revestir-se de uma função consolatória, apresentando-se como
epístola, de que é exemplo, entre outros casos, a Elegia III de Peto de Andrade CAMINHA, A Antonio
Ferreira Na morte de Maria Pimentel sua mollher, in Poezias de… mandadas publicar pela Academia Real
das Sciencias, Lisboa, 1791, 123.
39
201
Jorge A. Osório
de tercetos que instituem um tempo argumentativo no interior da Elegia e que,
apesar das aparências, é relativamente complexo. É que Camões tem de proceder
à transferência do ponto de vista do general Temístocles, famoso vencedor da
batalha das Termópilas43, que não envolvia razões de ordem amorosa na sua
recusa da arte singular que Simónides lhe propunha, para o domínio do amor
entendido como sofrimento inserto na biografia terrena do homem.
Comecemos por reter o seguinte: um raciocínio persuasivo é tanto mais
credível quanto mais são as contradições que ele consegue superar44, porque vai
ser útil observar por este ângulo os sete tercetos seguintes.
O primeiro do conjunto abre com esse que, que dá início a uma série anafórica
de se, conduzindo o leitor a conclusões formuladas mediante enunciados
interrogativos. Trata-se de uma estrutura frásica que Camões utiliza com alguma
frequência, sobretudo nas poesias sábias à maneira italiana. Do ponto de vista
da sua afirmação sonora, as partículas citadas são ténues: monossílabos átonos,
realçados no entanto pelo lugar de arranque do verso a que pertencem.
O que estabelece uma coordenação explicativa, assegurando a continuidade
expositiva com valor também de nexo causal, um pouco à semelhança do nam ou
do enim latinos, para, desse modo, reforçar a ligação com o segmento contíguo,
coisa que não deixava de ter interesse numa exposição bastante estruturada
em volta de um objectivo persuasivo. É como se esse que pretendesse forçar a
sugestão da resposta a uma virtual pergunta ‘então porquê?’, mediante o nexo
‘de facto’, ‘na verdade’, ‘com efeito’. Seguem-se sete tercetos, divididos em duas
sequências, em jeito de andamentos, concentrados na necessidade de dar solidez
a uma argumentação retórica. Com ela o poeta pretende garantir uma segurança
expositiva de que emane a pertinência da anedota narrada no começo da Elegia.
Essa estratégia evidencia-se nas frases condicionais iniciadas pelos se à cabeça
dos versos:
«Que, se é forçado andar por várias partes
buscando à vida algum descanso honesto,
que tu, Fortuna injusta! mal repartes;
e se o duro trabalho é manifesto
quer por grave que seja, há-de passar-se
com animoso esprito e ledo gesto;
[então]
O celebrado epitáfio destinado a evocar a memória dos gregos mortos nessa batalha (Frg. 92 DIEHL) foi
escrito de certeza por Simónides, conforme a crítica mais segura aceita.
Bice Mortara GARAVELLI, Manuale di Retorica, Milão, 1988, 30.
43
44
202
NA ELEGIA DE CAMÕES «O POETA SIMÓNIDES, FALANDO»
de que serve às pessoas alembrar-se
do que passou já, pois tudo passa,
senão de entristecer-se e magoar-se?»45.
Estamos diante de um implicação simples, do tipo se p então q, formulada,
porém, num enunciado poético: reconhecida a veracidade das condicionais –
no âmbito de uma doxa sobre a condição humana –, a resposta à pergunta
formulada só podia ser concordante.
Esquema idêntico acontece no segundo andamento desta argumentação:
«Se noutro corpo ũa alma se traspassa,
não como quis Pitágoras na morte,
mas como manda Amor na vida escassa;
e se este Amor no mundo está de sorte
que na virtude só dum lindo objecto
tem um corpo sem alma, vivo e forte;
onde este objecto falta, que é defecto
tamanho para a vida, que já nela
m’está chamando à pena a dura Alecto;
[então]
porque me não criara minha estrela
selvático no mundo, e habitante
na dura Cítia, ou na aspereza dela?».
As condicionais são também verdadeiras – no quadro de uma dada filosofia
do amor –, e o raciocínio implicativo é do mesmo tipo, com a diferença de que
a consequência solicitada pela interrogação pertence à categoria do impossibile,
na medida em que colide com a admissão da ideia de que o poeta, nascido no
reino de Portugal, num tempo bem determinado, pudesse ter nascido na «dura
Cítia», terra de transparente evocação dos dramas terríveis de Medeia. O efeito
poético é claramente potencializado pela evocação mitológica.
Mas antes de avançar é preciso observar o terceto em cima citado:
45
A figura da ratiocinatio surge aqui apoiada numa doxa desenhada a partir tanto de um saber clássico, como
de uma imagem que o poeta certamente fora dando de si mesmo nos círculos letrados, sobre o qual Wilhelm
STORCK compilou muitos dados, sem, no entanto, ser possível acompanhá-lo totalmente na ideia de que as
obras de Camões são a «fonte mais pura e mais abundante em datas sobre a vida do Poeta» (Vida e obras de
Luís de Camões, reimpressão de Lisboa, 1980, 328); que não dispomos de muito mais é verdade, mas fazer
delas um vidro transparente, sobretudo no tocante aos amores, é passada longa demais.
203
Jorge A. Osório
«onde este objecto falta, que é defecto
tamanho para a vida, que já nela
m’ está chamando à pena a dura Alecto».
Editores há – Costa Pimpão, Maria de Lurdes Saraiva, por exemplo – que
sinalizam graficamente os momentos de pausa que precedem e se seguem a este
terceto – pausas inerentes à delimitação dos tercetos, mas aqui também de certo
modo impostas pela acumulação argumentativa do enunciado – usando dois
pontos e vírgulas, quando conviria indicar ao leitor a ausência de solução de
continuidade neste segmento. Na verdade, o terceto anterior tinha enunciado
que a força ou virtude de um «lindo objecto» era tal que transformava um corpo
«vivo e forte» num «corpo sem alma» e o seguinte concluía o pensamento por
meio da interrogação mantida em suspenso desde muitos versos atrás.
Ora, se amenizarmos um pouco com vírgulas em vez de ponto e vírgula a
pausa inerente ao espaço entre tercetos46, vincamos esse seguimento sintáctico
(e se este Amor tem um corpo sem alma, vivo e forte, onde este objecto falta…
porque ma não criara minha estrela…?) que permite perceber que o onde
responde à questão ubi?, neste sentido de que, verificando-se, em algum lugar,
a falta desse objecto (Camões pressupõe que o leitor sabe o latim suficiente para
fixar o sentido de objecto e de defecto), verifica-se então a ausência da condição
necessária para o Amor, qual seja a presença do tal «lindo objecto»; nessas
circunstâncias o efeito é tal que se chega quase à loucura – «m’ está chamando
à pena a dura Alecto» –. Então, até do ponto de vista sintáctico, passa a ter
consistência a interrogação final.
Havemos de concordar que nesta zona da Elegia a sintaxe exige uma atenção
mais detalhada, como ainda acontece nos três tercetos seguintes:
«Ou no Cáucaso horrendo, fraco infante,
criado ao peito d’algũa tigre Hircana,
homem fora chamado de diamante;
porque a cerviz ferina e inhumana
não sometera ao jugo e dura lei
daquele que dá vida quando engana.
Ou, em pago das águas qu’estilei,
As que do mar passei foram de Lete,
Para que me esquecerão que passei.»
É a solução do texto nas edições de 1572 e de 1598, muito embora se devam ter em conta as práticas de
pontuação à época; no Canc. Franco Correia existe um sinal de pontuação, certamente uma vírgula, utilizado
três vezes nesta zona do poema.
46
204
NA ELEGIA DE CAMÕES «O POETA SIMÓNIDES, FALANDO»
A presença da disjuntiva ou obriga-nos a atentar na alternativa aí em jogo, que
prolonga as ondas de choque das referências clássicas dos loci horrendi do Cáucaso,
lugar do suplício do Prometeu agrilhoado, e da Hircânia famosa pelos tigres
ferozes, lá para as bandas do mar Cáspio47. Que hipóteses temos aí em presença?
Elas de certo modo respondem à pergunta deixada atrás: porque me não
criou minha estrela como um selvagem? E temos pela frente duas hipóteses a
considerar: ou aceitar que, caso tal se pudesse ter verificado, então esse sujeito
eu, se tivesse sido educado desde cedo («fraco infante») num local horrendo,
uma vez tornado homem maduro possuiria a dureza do diamante para resistir
à tal virtude ou força de um lindo objecto, ou seja ao Amor, sendo capaz de
não se submeter ao seu «jugo e dura lei»; mas estamos no reino do impossível!
Ou então encarar como segunda hipótese o entendimento de que as «águas
qu’ estilei», isto é as lágrimas choradas, equivaleriam, até por extensão («as que
no mar passei»), às do rio Lete, ou seja ao esquecimento. Coisa de igual modo
impossível. Por isso o terceto seguinte, aberto também por um que de matiz
causal, esclarece o leitor das razões dessa limitação, aquilo que constitui a marca
central da aporia camoniana:
«Que o bem que a esperança vã promete,
ou a morte o estorva, ou a mudança,
que é mal que ũa alma em lágrimas derrete».
Havemos de concordar que a metáfora é bastante poética, ainda que usada também
por outros: uma alma que se derrete em lágrimas. Isto quer significar o seguinte: sendo
irreal resistir ao Amor ou esquecê-lo, só duas situações ficam em cima da mesa: ou
a morte, que tudo estorva, ou a mudança (por exemplo, da alegria para a tristeza),
que derrete a alma em lágrimas! Assim pode o «Senhor» compreender o pensamento
sintetizado no terceto seguinte, «Já, Senhor, cairá como [i. é ‘compreenderá’] a
lembrança»; ou seja no tempo presente que é o do mal, a «lembrança [não usa
memória] do bem passado é triste e dura», porque nasce precisamente onde (no ponto
em que) morre a esperança, em virtude, como é óbvio, da ausência do lindo objecto.
No entanto, é preciso demonstrar ou fazer ver, visualizar em sentido aristotélico,
essa opinião que conduz o poema para uma nova fase, agora de tipo narrativo.
Na verdade, com o terceto «Soltava Éolo a rédea e liberdade» inicia-se uma
alongada sequência narrativa, arrumada em dois sectores: em primeiro lugar um
relato de natureza mitológica, apelando para o saber erudito do leitor, com a
intervenção do discurso directo no seu final para reforço da credibilidade:
47
Estes loci horrendi faziam parte do idiolecto elegíaco e como tal encontram-se na elegia amorosa romana.
205
Jorge A. Osório
«Eu, trazendo lembranças por antolhos
……………………………………….
dezia: – Ó claras Ninfas! Se o sentido
………………………………………
se, por ventura, fordes algũ’ hora
……………………………………….
nelas em verso heróico e elegante,
escrevei cũa concha o que em mim vistes:
pode ser que algum peito se quebrante».
São treze tercetos – que numa discreta nota da sua tradução da Vida e obras
de Luís de Camões, do grande camonista germânico que foi Wilhelm Storck,
Carolina Michaëlis designa como um «estudo»48, obviamente em sentido pictórico
ou musical – que desenvolvem a analogia entre a inquietação da travessia marítima
configurada no modelo mitológico e a perturbação interior nascida da ausência
que essa travessia provocava49.
Em segundo lugar, num esquema expositivo similar e de idêntica extensão,
surge uma narrativa assente na verdade biográfica garantida pela informação do
próprio poeta sobre o momento mais perigoso da viagem para a Índia, a passagem
do Cabo da Boa Esperança. No seu termo também se introduz o reforço persuasivo
do discurso directo, em forma de monólogo interior:
«……………………….. em mim dezia:
– Se algũa hora, Senhora, vos lembrasse,
nada do que passei me lembraria».
E vêm mais seis tercetos ainda com dados validados pela verdade histórica, numa
estratégia que também é usual em Camões: a reportagem de elementos referidos a
uma realidade que não pode ser discutida porque histórica – aqui a referência à
expedição contra o príncipe de Chembe, em finais de 1553, no Malabar, que ocupa
vinte versos – surge como argumento fundamentador de uma reflexão moralista:
«Vi quanta vaidade em nós se encerra»50.
No entanto, neste ponto, o leitor talvez haja perdido um pouco a anedota
inicial, sobre Temístocles. E com alguma razão. Na verdade, apesar de, no decorrer
Wilhelm STORCK, Vida e obras de Luís de Camões, ed.. cit., 514, nota *.
A propósito dos versos «O coro das Nereidas nos seguia», Faria e Sousa não resiste a uma das suas habituais
manifestações de encanto: «Cada verso es un pino de oro». No entanto, como é bem sabido, a capacidade de
evocar a tempestade marítima com todos os seus perigos, mesmo que num registo de imitação de attestatio
rei uisae, não dependia, em absoluto, de uma experiência realmente vivida no mar; os clichés literários eram
abundantes desde a Antiguidade.
50
A valorização moralista foi feita pelos biógrafos mais antigos; Manuel Severim de FARIA, Discursos
vários políticos, in Vida de Luís de Camões, ed. de Maria Leonor Soares Albergaria Vieira, Lisboa, 1999, 111.
48
49
206
NA ELEGIA DE CAMÕES «O POETA SIMÓNIDES, FALANDO»
dessa anedota, não se explicitarem em concreto os motivos por que o general
ateniense dispensava a oferta de Simónides, não era difícil inferir que eles residiriam
de preferência numa visão algo amargurada da sua experiência51. Camões impõe
uma deriva a esse sentimento, fazendo-o inflectir para o campo do sofrimento
individual provocado pela infelicidade amorosa, gerada pela ausência da dama
amada52. Para dar consistência argumentativa a isto e para, de um ponto de vista
da retórica de fundo aristotélico, realçar ou fazer ver com mais força essa dimensão,
usa o relato garantido por duas autoridades de credibilidade assegurada: a mitologia
e a sua própria experiência biográfica. É como se tivesse em mente demonstrar que
a historieta inicial continha uma valia particular, susceptível de sustentar de forma
eficaz uma expressão poética de orientação confessional.
Ora os dezassete últimos tercetos de Elegia conduzem o leitor para uma
conclusão que, embora permitindo recuperar o exemplo de Temístocles na alusão
aos inconvenientes do lembrar – afinal, o peso do seu dito merecia ser ponderado –,
não coincide exactamente com ele, porque o núcleo da mensagem já está deslocado:
o amor implica uma dimensão de dor e de sofrimento, que nem todos estão em
condições de experimentar. Importa observar como o poeta enlaça ou solda esse
final ao corpo do poema. Porque o que vem de seguida é a aemulatio de um passo
das Geórgicas de Virgílio53 e é necessário justificar este novo desenvolvimento.
Mas uma coisa não podemos esquecer: a estratégia do poeta visa instituir uma
exposição coesa, orientada para uma conclusão que, num género como o elegíaco,
não decorre de uma imposição formal – por exemplo de um número determinado
de versos ou de estrofes –, mas de uma lógica interna que, em teoria, atingirá o seu
objectivo quando houver a percepção de que o raciocínio e a argumentação que o
sustenta chegaram a um grau de eficácia e de perfectio entendido como satisfatório.
Merece com certeza a pena procurar vislumbrar algum sentido na convocação
virgiliana neste encerramento do poema, que a evidente intertextualidade torna
transparente:
«Felix qui potuit rerum cognoscere causas,
Atque metus omnes et inexorabile fatum
Subjecit pedibus, strepidumque Acheronis avari.
Fortunatus et ille deos qui novit agrestis…» (II, 490-3)
Apesar do prestígio alcançado na guerra contra os Persas, acabou por ser votado ao ostracismo, tendo-se
acolhido junto daqueles que havia vencido.
52
Há que ter em conta que o espaço poético – temas, imagens, relacionamentos, léxico, soluções frásicas,
intertextualidades, encadeamentos argumentativos, etc. – onde o poeta se movia impunha margens de
liberdade relativamente apertadas – a imitatio tinha de se fazer num quadro estreito –; bastaria convocar o
já citado Comento de Lorenzo de’Medici: «È comunemente natura degli amanti e pasto della amorosa fame
pensieri tristi e maninconici, pieni di lacrime e sospiri; e questo comunemente è nella maggiore allegrezza e
dolcezza loro» (ao soneto «Di vita il dolce lume fuggirei»), 382, aliás na linha das quaestiones relativas às
definições do amor que vinham desde os Problemata pseudo-aristotélicos.
53
Georg., II, 440s.
51
207
Jorge A. Osório
Há que anotar desde já o seguinte: nestes versos de Virgílio, já por diversos
autores postos em relação com o passo camoniano, colocam-se em pé de
igualdade – porque, embora de forma distinta, ambos coincidem no alheamento
das solicitações que, em linguagem cristã, se diriam mundanas – o poeta sábio,
«Felix qui potuit», e o homem do campo, «Fortunatus ille»; ambos, cada um à
sua maneira, mas em contraste com aqueles que buscam aventurosamente as
riquezas – «Sollicitant alii», v. 503 –, possuem meios para encarar sem medo o
avaro Aqueronte, ou seja a morte54. Como imitador criativo55, Camões dá uma
volta ao texto de fundo e desvia-o para o contexto instituído na Elegia.
Mas para que tudo funcionasse com eficácia e não se criasse a sensação de uma
mera adição de sequências sem articulação, era necessário instituir um nexo com
o enunciado precedente. Isso é feito mediante o terceto
“Que estes são os remédios verdadeiros
que para a vida estão aparelhados
aos que a querem ter por cavaleiros».
Vendo com atenção, temos aqui dois modos de assegurar o nexo necessário:
um de tipo gramatical, outro de natureza rimática, um posicionado no início
do verso, outro no seu final; mas ambos se conjugam na tarefa do enlaçamento
discursivo.
O primeiro reside no uso do que explicativo-causal, já atrás focado para um
local situado no começo do poema, e no valor anafórico oferecido pelo deíctico
estes que se projecta cataforicamente em direcção a remédios. O segundo
consiste no enlace de verdadeiros com cavaleiros por meio da rima, ou seja
mediante uma syntaxis que não é de natureza gramatical, mas que pode funcionar
complementarmente na poesia rimada. Que remédios eram esses aptos para
aqueles que escolhiam ser cavaleiros, isto é os fidalgos que ocupavam a vida no
trabalho – não só no exercício – das armas? Eram precisamente os perigos que o
António Cruz chamou a atenção para o facto de este passo vir acompanhado de «gravuras adequadas»
no exemplar da edição veneziana das Opera Vergiliana (1519) existente na livraria de Santa Cruz e por
isso disponível «ao tempo em que o Poeta estudava ou folgava em Coimbra» «Honesto estudo com longa
experiência misturado» (No quarto centenário da publicação de «Os Lusíadas»), in Revista da Faculdade de
Letras, Série Filologia, I, Porto, 1974, 11. «A cultura de Camões é séria, sólida, sedimentada», como frisou
Américo da Costa Ramalho, acrescentando: «Nada denuncia nela o autodidacta», antes alguém que, tendo
adquirido «os fundamentos do saber do seu tempo», não terá terminado um curso escolar, embora nunca
tivesse deixado de se cultivar «pela vida adiante»; Os estudos de Camões, in Anuário da Universidade de
Coimbra, Coimbra, 1980-1981, 41. Mesmo assim, haverá que ter em conta que o pensamento expresso na
Elegia I não era absoluto; na Elegia VI, «Que novas tristes são, que novo dano», o verdadeira sábio é definido
como aquele que «está seguro / de leves alegrias e de espanto / de dor, que turba da alma o licor puro» (Rimas,
ed. cit., 251).
55
O que constituía um conselho da Poética de Aristóteles: «o poeta deve, ele próprio, ser criativo e usar bem
os dados tradicionais» (1453b).
54
208
NA ELEGIA DE CAMÕES «O POETA SIMÓNIDES, FALANDO»
poeta havia exemplificado nos tercetos precedentes, de cuja autenticidade o leitor
não podia duvidar, porque históricos.
É nessa dimensão que ganha valor e força a comparação contrastiva entre os
cavaleiros e os lavradores convocada nos treze tercetos subsequentes:
«Oh! Lavradores bem-aventurados!
……………………………………
Dá-lhes a justa terra mantimento
………………………………….
Não vêm o mar irado, a noite escura»56,
versos que repousam num bem conhecido passo anterior do mesmo canto das
Geórgicas57, onde Virgílio, em registo utópico, desenha a visão desses lavradores
por demais felizes, para os quais a terra, longe das discórdias guerreiras, produz
o sustento fácil. Há que ter em conta, no entanto, que o pensamento de Virgílio
de forma alguma aponta para a ideia de que a felicidade do lavrador provenha
de uma natureza espontaneamente fecunda, que assegure por si só o sustento
necessário à vida; bem pelo contrário, este provém do trabalho, do labor contínuo
e esforçado, preenchido com as tarefas impostas circularmente pelo período anual,
numa persistência constante, adversa de acasos e arrebatamentos intempestivos;
daí o superlativo iustissima aplicada à terra arável. Claro que uma doxa moral
de fundo estóico autorizava o recurso aos lavradores como exemplo da pureza
idealizada pela tópica de uma mediocritas da idade do ouro, na medida em que
se podia deles dizer não ambicionarem as riquezas nem os luxos. São ditosos
porque com facilidade alcançam «as causas naturais de toda a cousa, / como se
gera a chuva e a neve fria; / os trabalhos do Sol, que não repousa…», na versão
de Camões58. Nada mais. Sublinhe-se, por isso, a insistência: o seu saber incide
só nas coisas naturais, reguladas, portanto sem sobressaltos nem ousadias59. Dito
Retomam-se os versos: «Sollicitant alii remis freta caeca ruuntque / in ferrum, penetrant aulas et limina
regum» (II, 503-4). É evidente que o leitor se depara aqui com a utilização do tema da tempestade, de fundo
clássico, mas que o poeta sempre soube envolver da sugestão de uma autenticidade advinda da possível
referência a uma experiência pessoal, certamente enfatizadora da verosimilhança.
57
Georg., II, 458ss, «O fortunatos nimium, sua si bona norint / agricolas», versos que conheciam uma vasta
tradição de aproveitamentos e interpretações.
58
Rimas, ed. cit., 237.
59
Embora na presente Elegia não seja objecto de atenção propositada, a ideia de instabilidade como marca da
condição humana e, por inclusão, da vida amorosa é tema focado diversas vezes na Lírica camoniana, com
recurso a algumas metáforas e algum léxico especializado pelo poeta para esse campo semântico; ou então
mediante evocações mitológicas portadoras da sugestão do movimento cíclico e oscilante que caracteriza o
sofrimento físico, como o mitos de Sísifo e de Tântalo; ora na sua Theologia Platonica Ficino insistia na
faceta tantálica da alma que se sente mal na vida terrena (Robert KLEIN, La forme et l’intelligible, Paris,
1970, 91-92), ideia que Camões também trabalha noutros locais. Faria e Sousa soube captar esse aspecto:
Isabel ALMEIDA, Para uma Arte da Memória: Baltasar Gracián e Manuel de Faria e Sousa, Leitores de
Camões, in Luiz Vaz de Camões Revisitado, ed. cit., 177, n. 61.
56
209
Jorge A. Osório
de outra maneira, os lavradores eram ditosos porque não conheciam as paixões; a
sua felicidade era precisamente a infelicidade do poeta, na exacta medida em que
significava a invalidade da dor e do sofrimento de que se alimentava a dialéctica
sobre o amor tratado na poesia lírica60.
É neste ponto que parece legítimo relembrar a questão suscitada inicialmente
com recurso a considerações de Paul Valéry: que sinais se poderão encontrar, nesta
zona final do poema camoniano, desse exercice de soi-même, dessa excitation des
autres, pólos entre os quais oscila a literatura como comunicação em que o agente
autoral pode querer antecipar ou condicionar leituras do agente ledor?
O que diz o poeta português? Que em oposição aos lavradores, os cavaleiros
são forçados a correr os riscos do mar, os perigos das guerras, a ausência da coisa
amada:
«Bem mal pode entender isto que digo
quem há-de andar seguindo o fero Marte,
que traz os olhos sempre em seu perigo».
A força incutida ao enunciado assenta na figura do paradoxo, denunciador
de um estranhamento suficientemente forte para o leitor se interrogar sobre o
pensamento subjacente aos versos citados. Isto decorre de um contraste que
não é só do foro semântico e sociológico – os lavradores face aos cavaleiros –,
mas também incide no domínio da poética. Na verdade, é notória a diferença
entre a extensão do passo referido aos cavaleiros – só um terceto – e a dedicada
ao decalque virgiliano61: 14 tercetos. Se do ponto de vista do sentido isso não
afectaria a interpretação do leitor coevo, de tal forma era transparente a relação
semântica do guerreiro com o sentido enunciado nos versos da Elegia, do ponto
de vista da poética intrínseca parece ser possível descortinar uma alusão que, para
além da sua actualidade, valoriza de certa maneira a mensagem final da própria
Elegia «O Poeta Simónides, falando». É que, demorando-se de maneira tão clara
na utilização do passo das Geórgicas, Camões parece querer sugerir que à poesia
lírica cabia participar de uma «retórica dos afectos»62, a qual, vazando em moldes
Haverá que notar que a problemática do labor face ao amor é bastante mais profunda em Virgílio e aponta
para o contributo que o primeiro pode dar na luta contra as paixões. Mas não se perca de vista o papel
decisivo de Pietro Bembo no reequacionamento da herança petrarquista para os autores quinhentistas; Rita
MARNOTO, Laura Bárbora, in Sete Ensaios, ed. cit, maxime, 33.
61
A influência de Virgílio em Camões foi enorme; Américo da Costa RAMALHO, Alguns aspectos da leitura
camoniana de Virgílio, in Camões no nosso tempo, ed. cit., 85.
62
Expressão que de certo modo caracteriza a abordagem de Escalígero à poesia (o que não implica o contacto
directo com os seus Poetices Libri Septem, editados em 1561, já depois da morte do autor); A. López EIRE,
Aproximación a la poética de Julio César Escalígero, in Ágora, 9.1, 2007, ed. cit., 11s. No século seguinte
a atenção concedida aos afectos, no campo filosófico e retórico, manifesta-se de forma evidente, por ex. em
Vieira; Isabel ALMEIDA, Vieira: questões de afectos, in Românica, 17, 2008, ed. cit., 103.
60
210
NA ELEGIA DE CAMÕES «O POETA SIMÓNIDES, FALANDO»
consagrados uma matéria que é essencialmente reportada ao foro íntimo do poeta
como amador, não podia ser desmerecedora do estatuto de um discurso elevado.
Não seria isto responder implicitamente a hipotéticas interrogações sobre
o estatuto desta espécie de heroicização em registo lírico de problemas do foro
interior da condição enamorada do poeta, suas inquietações doloridas, seus
dissídios63? Acaso não seria esta uma forma de convocar no leitor culto e erudito
a problemática que envolvia o estatuto da poesia lírica, face à ausência de um
adequado enquadramento por parte da teoria poética antiga, questão que ganhou
enorme acuidade sobretudo após os estudos de Francesco Robortello sobre a
Poética de Aristóteles? E não seria também uma maneira de sublinhar a ideia de
que o canto lírico, se realizado em registo elevado – hoc est em moldes italianos –
epifanizava uma dimensão heróica, não directamente no sentido épico-narrativo,
mas, mercê precisamente de um possível paralelismo com a função celebrativa da
epopeia, pela capacidade não só de fazer ver (mostrar, sugerir imaginativamente)
a densidade sentimental da condição enamorada do poeta, mas também de a
proclamar, cantando-a e, como tal, celebrando-a64?
Por isso mesmo é pertinente perguntar: mas então a memória? De facto, não
será de todo descabido anotar alguma debilidade na estrutura interna desta Elegia
I; o leitor poderia mesmo perguntar: afinal, a que propósito vinha a anedota inicial
sobre Temístocles? Qual a sua relação com o desfecho do poema?
O poeta não tem esquecida a quaestio inicial, sobre a qual incidiu a reflexão
que dá forma a esta Elegia, a saber: não se pode – não se deve – requerer a
memória como um teatro onde, ainda que devidamente arrumadas, se acumulem
as coisas referentes a um passado sabido – recorde-se o terceto «em cousas de
ciência praticando» –, mas deve-se – e pode-se – fazer força para que ela seja vista
antes como uma não lembrança; daí o «este excelente dito ponderado» do oitavo
terceto. O peso sentencioso das palavras de Temístocles revela como o poeta tem
subentendido (talvez porque ao tempo da escrita desta Elegia tivesse já definido
o seu idiolecto) que a poesia – a lírica, claro – se alimentava da dor, da reflexão
sobre o sofrimento amoroso, assimilado este à condição humana na perspectiva
cristã, agudizada pela ausência (da amada, em terra estranha); o meu duro canto
do penúltimo terceto – que no fundo se alimenta da equivalência das passadas
lembranças ao tormento do quinto terceto – emerge, sem paradoxo grave, como
solução sujeita ainda assim a uma condição mais do caso irreal do que do real: «se
para tristes há tão leda sorte!».
Rita MARNOTO, Fragmentação e dissídio, in O Petrarquismo português do Renascimento e do
Maneirismo, Coimbra, 1997, 509. Esta problemática que facilitou a confusão entre a herança cancioneiril e
cortês com a imitada dos italianos; Rita MARNOTO, Petrarca em redondilha, in Sete Ensaios, ed. cit., 78s.
64
Maria Vitalina Leal de MATOS, O Canto na poesia épica e lírica de Camões. Estudo da isotopia
enunciativa, Paris, 1981.
63
211
Jorge A. Osório
Todavia, e antes de acabar, é preciso escavar um pouco mais fundo no
significado desta zona final do poema. Na verdade, a diferença entre os cavaleiros
e os lavradores remete ainda para um terreno que, pertencendo à poética, não
deixa também de se colorir de marcas sociológicas. Basta colocar a seguinte
interrogação: essa tão calma, se bem que laboriosa, felicidade dos lavradores,
que fama ou glória lhes podia oferecer?65. Só os cavaleiros, mercê das proezas e
perigos guerreiros, eram merecedores da função enaltecedora e celebrativa que a
poesia proporcionava66. Ora era facílimo articular feitos de armas e sua fama com
sofrimentos de amor e sua celebração em verso67; bastaria fazer intervir o factor
ausência da mulher amada. Com referências directas a circunstâncias históricas
da sua biografia, Camões, no quadro da poética petrarquista – e bembista – que
manuseia genialmente, fazia-se exemplo de tudo isto68.
Bem poderia alguém proclamar aos brados a sensatez do dito de Temístocles:
o poeta amador, o fidalgo cavaleiro, o «bicho da terra tão pequeno» não estaria em
condições de lhe prestar atenção69. É que as memórias do general ateniense não
possuíam a densidade significativa do sofrimento de um amador. Este, na hora da
enunciação poética, abastecia-se largamente dos ingredientes do cancioneiro de
Petrarca, a começar pelo soneto prologal – «Voi ch’ascoltate in rime sparse il suono»
– endereçado a quantos ouviam os suspiros de um poeta que, exprimindo-se em
ritmos variados, se confessa temeroso da ufania epifântica que o verso culto lhe
proporcionaria, preferindo recolher-se ao aconchego da interioridade selecta, «onde
sovente / di me medesimo meco mi vergogno», para concluir «che quanto piace al
mondo è breve sogno». Razão tinha Camões para não querer ser incomodado por
um versejador que só dizia parvoíces ou pela pergunta de uma dama sobre beijos
tristes, como relatam as anedotas referidas no início destas considerações.
Camões usa as palavras de Virgílio, mas não está atento nem interessado no significado político que a
celebração do labor do agrícola tinha em tempos de Octávio Augusto.
66
Diogo Ramada CURTO, A cultura política, in História de Portugal, dir. José Mattoso, vol. 3, «No Alvorecer
da Modernidade», Lisboa, 1993, 118s. Visão divergente da fama e honra manifesta, por exemplo, António
Ferreira, que não era fidalgo nem cavaleiro, enaltecendo um heroísmo – que é mais uma resistência de cariz
moral – fundado na liberdade que as letras proporcionavam. Mas não tenhamos ilusões: a superioridade
da cavalaria como categoria ideal, enraizada na mentalidade aristocrática desde os tempos medievais,
permanecia activa e actuante no plano da projecção ideal, e mesmo virtual, em pleno tempo renascentista,
graças – e não de todo: apesar de... – ao mais habitual contacto com a literatura clássica (a não confundir
propriamente com o ponto de vista humanista...).
67
Os meios relacionados com a cortesania estavam encharcados, por contacto directo ou não, das ficções
romanescas de cavalaria, em boa medida vassalas de modelos guerreiros de fundo antigo.
68
Aníbal Pinto de CASTRO, Camöes, Poeta pelo mundo em pedaços repartido, in Boletim da Sociedade de
Geografia, Lisboa, 1980.
69
Poderia, quiçá, anotar-se que, limitando-se à anedota, Camões deixa de parte a evocação ciceroniana da
figura de Temístocles como exemplo daquelas grandes almas, como Epaminondas e ele próprio, que são
impulsionadas de um «quoddam augurium futurorum» nelas existentes e facilmente revelável, mesmo
involuntariamente; Tusc. disp., I, XIV, 33.
65
212
NA ELEGIA DE CAMÕES «O POETA SIMÓNIDES, FALANDO»
Uma nota final se impõe. A imagem de Camões recolhido em sua casa, todo
ocupado no estudo – num certo sentido de honesto estudo – e na reflexão, que
implicavam necessariamente os livros, tal qual a anedota citada no-lo descreve,
corresponderia a uma verdade mais histórica do que poética que os contemporâneos
entenderiam com facilidade70. Anotar-se-á, no entanto, que a tradição posterior
não pintou Camões como homem de scriptorium rodeado de livros, como foi a
imagem de Petrarca, mas mais tendencialmente como o poeta genial com uma
estatura existencial e moral que sofrera com a incompreensão dos homens71. O
pendor reflexivo, tocado de uma tristeza emocionadamente meditativa já não
restritamente amorosa, que em boa parte da Lírica e em segmentos da Épica se
capta72, forneceu a base para uma abordagem da sua poesia onde a excitation des
autres não ficou restringida a esses desesperados solicitados na Canção X, antes se
estendeu a outros horizontes certamente não sonhados pelo poeta73. Mal podia ele
imaginar que, séculos depois, se haveria de duvidar muitas vezes da sua figura de
«poeta aplicado e diligente, que cultiva o seu engenho no estudo e na meditação»74!
Jorge A. Osório - Universidade do Porto
ABSTRACT:
This article reflects on the importance of «memory» in the text «O poeta
Simónides, falando», relating it with the lyrical performances of Camões and
with multiple aspects of his biography.
Certamente sensíveis àquela «tão particular vibração sentimental» e àquele «amargor de ausência que
converte o amor em padecimento», usando as palavras de Costa Pimpão na «Introdução» à edição cit. das
Rimas, tendo, porém, em conta a observação feita por V. Aguiar e SILVA, A lira dourada, ed. cit., 211.
71
Isto em nada impedia nem o domínio de um saber letrado de fundo enciclopédico, nem a percepção do
sentimento de «um indesmentível orgulho pessoal» detectável n’Os Lusíadas (e não só); Isabel ALMEIDA,
«Este nosso Camões»: Os Lusíadas […] Commentados pelo Licenciado Manoel Correa (1613), in Estudos,
ed. cit., 341; tal consciência emerge subliminar dos conhecidos versos «Nem me falta na vida honesto estudo,
/ Com longa experiência misturado» (Lus., X.154). Embora não tendo usado as armas da família a que
pertencia (Martim de ALBUQUERQUE, As armas de Camões (O «Livro antigo dos reis de armas» e o «Livro
da guarda roupa dos Reis de Portugal»), in Revista da Universidade de Coimbra, XXXI, Coimbra, 1985,
553), não deixa de haver em Camões, particularmente no poema épico, uma sensível consciência aristocrática
(Jorge de SENA, A estrutura de «Os Lusíadas» e outros estudos camonianos e de poesia peninsular do século
XVI, Lisboa, 1970, «Primeira parte»).
72
A melancolia de Camões: Vítor Manuel Aguiar e SILVA, Camões: labirintos e fascínios, Lisboa, 1994, 209.
73
Um bom exemplo está certamente em Gomes LEAL, A fome de Camões, ed. de José Carlos Seabra Pereira,
Lisboa, 1999.
74
Maria Helena da Rocha PEREIRA, O «Honesto estudo» de Camões, in Camoniana varia, Coimbra, 2007, 8.
No séc. XIX, desde o Camões garrettiano, que encerra com a cena de forte sentimentalismo da morte do poeta,
em noite formosa de lua «clara e brilhante», a deixar pistas para o tema do finis patriae, até ao Génio enaltecido
por Gomes Leal, passando pela síntese de Antero de Quental – «Camões foi antes um homem mais feliz do que
um homem desgraçado» –, muitas leituras se puderam fazer; no séc. XX, um Camões como poeta da raça ou da
diáspora comunitária e de outras projecções vivenciais reflecte outras leituras; mas serão todas hermeneuticamente
possíveis?
70
213
214
Recensões
TORRES Olleta, M. Gabriela, Redes iconográficas – San Francisco
Javier en la cultura visual del Barroco. Pamplona: Universidad de Navarra, Iberoamericana e Verwuert, 2009, Biblioteca Áurea Hispânica, 57,
ISBN 978-84-8489-453-7 (Iberoamericana) e ISBN 978-3-86527-466-3
(Verwuert), 869 pp., 469 illustr.
A obra da historiadora de arte e iconógrafa navarra Maria Gabriela
Torres Olleta, Redes iconográficas – San Francisco Javier en la cultura visual del
Barroco, constitui a tese impressa do seu doutoramento defendido em 2008 na
Universidad de Navarra, Departamento de Património. Foi esta obra antecedida
por longos anos dedicados à investigação e à publicação de fontes manuscritas
inéditas relativas a S. Francisco Xavier.
Esta obra de notável fôlego (869 páginas) e profusamente ilustrada (469
ilustrações) consta de cinco partes principais, antecedidas por nota preliminar
(pp. 9- 10) e prefácio (pp. 11-12) e seguidas por bibliografia (pp. 451-483) e
ilustrações (pp. 487-869).
Inicia Torres Olleta por justificar no prefácio a expressão redes iconográficas,
devido ao facto dos vários aspectos da iconografia de Francisco Xavier (formação,
evolução e influência) se interrelacionarem entre si dum modo complexo, através
de caminhos diversos e porventura difíceis de precisar. Neste sentido, a partir
da análise comparativa entre o texto e a imagem, é objectivo da autora estudar
«las principales conformaciones iconográficas, identificar sus motivos, explicar
los temas representados y los detalles y atributos que constituyen los modelos y
la tipología del santo.» (p. 11).
Torres Olleta divide a sua obra em quatro partes intituladas respectivamente
«El corpus textual: Introdución a las fuentes escritas» (pp. 13-100), «Vidas
ilustradas y series pictóricas» (pp. 101-267), «Las Relaciones de Fiestas: El Santo
en el ámbito celebrativo» (pp. 269-357), «Iconografía Javeriana y la Mirada
Emblemática» (pp. 359-414) e ainda uma quinta parte «Tipología iconográfica
215
Cristina Osswald
de San Francisco Javier» (pp. 415-450). Torres Olleta segue, assim, uma
metodologia essencialmente descritiva de cada uma das diferentes tipologias,
consistindo obviamente a quinta e última parte nas conclusões resultantes da
sua minuciosa análise dos materiais textuais e iconográficos de São Francisco
Xavier.
Citando autores antigos ou autores contemporâneos, no primeiro capítulo
«El corpo textual», Torres Olleta justifica com toda a propriedade sete
principais tipologias documentais, que são respectivamente: a) «Las cartas y
escritos javerianos», pp. 15-19; b) «Las vidas», pp. 20-38; c) «Procesos y bula
de canonización», pp. 38-46; d) «Las Relaciones de Milagros», pp. 46-59; e)
«Sermones», pp. 59-88; f ) «Textos Devocionales», pp. 88-100; Afirma ainda
que decidiu dedicar às festas um capítulo especial, devido às suas características
(p. 15). Mesmo dum modo sintético, Torres Olleta deveria ter referido de
seguida as razões para esta decisão.
No que se refere às cartas e escritos de Xavier, Torres Olleta começa pela
citação do P. António Vieira, segundo o qual «muitas estátuas de S. Francisco
foram esculpidas, muitas imagens foram pintadas, muitas estampas foram
impressas, mas em nenhuma foi retratado mais ao natural nem mais ao vivo
do que em suas cartas.» (p. 15). Adequa-se esta citação particularmente bem
ao seu contexto, pois, como correctamente observado por Torres Olleta, os
diferentes tipos de cartas (cartas de interesse geral, cartas privadas ou «hijuelas»,
com assuntos administrativos (instruções), «las páginas que mejor pudieron
reflejar la personalidad del santo y cronológicamente los primeros textos que
proporcionan una información substancial para los primeros hagiógrafos más
tempranos.» (p. 17).
Nas subcapítulo das vidas, após contextualizar as hagiografias de S.
Francisco Xavier no contexto pós-tridentino, gostaríamos de salientar o facto
de Torres Olleta analisar os muito interessantes relatos hagiográficos tratando
um determinado aspecto, como, por exemplo, S. Francisco Príncipe do mar (p.
23). Segue-se e muito bem a referência a várias obras individuais. Discordamos,
no entanto, da introdução da Vida de Inácio de Loyola pelo P. de Rivadeneira
(pp. 25-26) e da Crónica da Companhia de Jesus no Oriente pelo P. Alessandro
Valignano nas vidas de Xavier (pp. 30-32).
Quando analisa os processos e a bula de canonização (pp. 38-46), Torres
Olleta salienta e exemplifica o valor iconográfico desta documentação. Pensamos,
no entanto, que teria sido interessante se a autora tivesse referido personalidades
e instituições fundamentais na criação desta documentação, também do
ponto de vista iconográfico, tais como a Coroa Portuguesa e depois Ibérica
ou o jesuíta Alessandro Valignano. Apreciamos, pelo contrário, o facto de, nas
216
RECENSÕES
«Relaciones de milagros» Torres Olleta apontar com toda a clareza os problemas
desta mesma documentação, tais como a abundância de milagres atribuídos a
Xavier e a sua pouca fiabilidade (p. 47). Integra e exemplifica Torres Olleta de
modo brilhante os sermões na cultura barroca muito baseada na íntima relação
entre a palavra e a imagem (pp. 59-88). Nos textos devocionais Torres Olleta
analisa diferentes tipos textos relativos a Xavier (indulgências e graças papais,
constituições de congregações xaverianas, novenas), tendo como pano de fundo
o facto desta tipologia textual espelhar a religiosidade contemporânea e, com
isso, ser determinantes na percepção da santidade e das suas manifestações
plásticas. (p. 88). Pensamos, de novo, que teria sido mais correcto referir as
cartas jesuítas do Japão no item das cartas em vez do item “varia” (pp. 94-100).
Aliás, Torres Olleta não dá qualquer justificação para colocar as cartas neste
item que contem duas tipologias distintas da primeira: Histórias Orientais e
informações de missões (pp. 95-99). Dada a importância desta tipologia na
Historiografia da Companhia de Jesus, teria sido interessante fazer uma maior
exploração da importância da mesma documentação para o estudo da figura S.
Francisco Xavier.
A segunda parte «Vidas ilustradas y series pictóricas» (pp. 101-267)
constitui, do nosso ponto de vista a melhor iconografia de Javier até ao momento
realizada, reflectindo a grande profundidade e o grande rigor característicos da
pesquisa iconográfica e da análise comparativa entre texto e imagem, aos quais
Torres Olleta nos habitou ao longo dos anos, e que inclui autores desde Lucena
a Schurhammer. Devemos ainda referir que Torres Olleta comprova a relação
de vidas javerianas com vidas de outros santos jesuítas, como a Vida de Javier
(1798) pelo P. Gaspar Juárez e o Compendio de la Vita di San Luigi Gonzaga
pelo italiano Michele Puccinelli (1792), (p. 158-163). Finalmente, este capítulo
compreende a descrição de todos os principais ciclos de gravuras e pinturas, estes
últimos localizados desde o Chile (Série do Convento do Carmen de Santiago
do Chile, pp. 221-225) até aos ciclos da capela funerária de Goa (pp. 259-267).
A terceira parte dedicada às festas hagiográficas, como indica o título «Las
relaciones de fiestas: el santo en el ámbito celebrativo» (pp. 269-357) começa pela
enumeração dos elementos constituindo a sua estrutura, ou seja, fogo de artifício,
música, sinos, procissões e sermões, carteis, pintura, escultura e toda a gama
decorativa efémera de tecidos, iluminação e mesma ourivesaria, seguindo-se uma
igualmente interessante referência à dimensão político-religiosa expressa pelas
personagens dos desfiles processionais (subcapítulo «Religión y sociopolítica»,
pp. 292-297), ao «Triunfo de los santos» (pp. 297-303), cuja análise é, aliás,
particularmente difícil pela inexistência dum programa sistemático (p. 302).
Obviamente, é obrigatória a menção aos majestosos e luxuosos carros triunfais
217
Cristina Osswald
(subcapítulo «Los carros triunfales», pp. 303-312 descritos, entre outros textos,
com grande pormenor, pelos relatos das festas de Inácio de Loyola e Francisco
Xavier em Portugal. Na sua análise iconográfica dos carros triunfais, Torres Olleta
considera temáticas principais a alegoria (subcapítulo «Los acompañamientos y
el triunfo alegórico», p. 312), os acontecimentos históricos, bíblicos e os santos
(subcapítulo «Las constelacions históricas y bíblicas, y el santoral», pp. 312320), alegorias de continentes, países, regiões e partes do mundo percorridas ou
influenciadas pelos dois primeiros santos jesuítas Inácio de Loyola e Francisco
Xavier (subcapítulo «Las cuatro partes del mundo y otras alegorías geográficas»,
pp. 321-328), o triunfo da «verdadeira» fé católica ou da Igreja Católica,
tendo, de novo, Inácio de Loyola e Francisco Xavier, como protagonistas sobre
a heresia (subcapítulo «Los dos ejércitos y el triunfo de los santos», pp. 328341), os quatro elementos significando a totalidade do universo (subcapítulo
«Otros varios conjuntos alegóricos. La mitología a lo divino», pp. 341-348),
a decoração efémera dos espaços exteriores, pelos quais passavam as procissões
(subcapítulo «El escenario exterior y las arquitecturas efímeras», pp. 348-357).
No quarto capítulo intitulado «Iconografía Javeriana y la mirada emblemática»
(pp. 359-414) Torres Olleta começa e bem por referir a importância das
realizações visuais mostradas pelos carros e arquitecturas efémeras das festas
hagiográficas, de textos, das alusões a emblemas e dos hieróglifos poéticos ou da
oratória sagrada. Pois, os jesuítas foram, sem dúvida, principais cultores deste
género artístico, como demonstra exemplarmente a publicação de emblemática
Imago Primi Saeculi pela Imprensa de Antuérpia em 1640 para comemorar os
primeiros cem anos da fundação da Companhia de Jesus (pp. 361-370). Torres
Olleta analisa ainda as incompreensivelmente pouco trabalhadas vidas de santos
no subcapítulo «Vidas de santos en emblemas: casos y rastros javerianos» (pp.
370-373) e o uso de emblemas nas festas hagiográficas no subcapítulo «Los
emblemas en las fiestas hagiográficas: carros procesionales y certames», pp. 373414). Antes de nos debruçar-mos sobre o último capítulo, na nossa opinião,
Torres Olleta deveria ter acentuado mais os vários contextos religiosos e sem ser
(por exemplo, o contexto educativo-pedagógico), que determinaram a realização
de emblemática, inclusive através de, pelo menos, um subcapítulo.
O quinto e último capítulo intitulado «Tipología iconográfica de San
Francisco Javier» (pp. 415-450), que naturalmente reúne e sintetiza as
principais ilações extraídas dos capítulos anteriores, aponta, como principais
iconografias de Xavier, a interessantíssima «vera efiggies espiritual: el corazón
y sus consolaciones», pp. 415-430; enquanto «patrono y abogado» de cidades
e causas, pp. 431-433. Trata Olleta da relação entre as principais devoções e
iconografias jesuítas em Portugal nos subcapítulos «Javier y la Trindad», pp.
218
RECENSÕES
433-435; «Javier y Cristo», pp. 435-438; «Javier y el Sagrado Corazón de Jesus»,
pp. 438-442; «Javier y la Virgen», pp. 443-448; e «La Muerte» (pp. 449-450).
Para terminar, gostaríamos de chamar a atenção para uma bibliografia muito
equilibrada, em termos de tamanho e distribuição entre bibliografia primária
e secundária. De igual modo, esta obra tem um estatuto especial nos estudos
iconográficos de Francisco Xavier, pela recolha de material visual, tanto a nível
de quantidade, como variedade e distribuição geográfico-cultural. Em resumo, a
obra de Maria Gabriela Torres Olleta é o mais importante estudo de iconografia
de S. Francisco Xavier até ao momento realizado, consistindo a sua abordagem
exemplo a ser seguido pelos autores de estudos de iconografia de santos.
Cristina Osswald
Investigadora de Pós-Doutoramento (UM/UNICAMP, Brasil e
UNED, Madrid)
Bolseira da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia
Investigadora do CITCEM
219
220
RECENSÕES
ARCANGELI, Letizia, PEYRONEL, Susanna (a cura di) – Donne di potere
nel Rinascimento. Roma: Viella, 2008, 831 pp.
Como resultado da recolha das actas de um colóquio realizado na
Universidade de Milão, em Novembro de 2006, o presente volume, organizado
por Letizia Arcangeli e Susanna Peyronel, apresenta-nos um conjunto de
estudos sobre o poder (ou não poder) político feminino num âmbito definido
do ponto de vista cronológico (o Renascimento), social (a aristocracia),
territorial e institucional (os estados regionais, principados ou reinos italianos),
tentando assim revalorizar uma dimensão importante que tem vindo a ser,
paulatinamente, considerada não só pela história política, mas também pela
história económica, social e cultural.
A consideração de que esta dimensão da «donna politica» é menos conhecida
e tratada do que a da «donna religiosa» permitiu às responsáveis pela publicação
deste volume realçar o seu contributo para o (re)conhecimento dos papéis de
relevo político no seio da esfera pública – organização de cortes e academias,
participação na luta política, governação como regentes – que certas mulheres
(princesas, senhoras de pequenos estados autónomos, familiares de papas ou de
cardeais, feudatárias), a par de seus pais, irmãos, maridos, filhos ou sobrinhos,
desempenharam.
O volume encontra-se dividido em três partes: I- «Tra famiglie e patrimoni:
ricchezze materiali e immateriali»; II- «Reti di potere e spazi di corte femminili»;
III- «Donne e potere politico».
A primeira parte abarca sete estudos. O primeiro estudo, da autoria de
Stanley Chojnacki e intitulado «At Home and Beyond: Women’s Power in
Renaissance Venice» (pp. 25-43), analisa alguns casos de senhoras pertencentes
à elite veneziana que exerceram o poder e as circunstâncias que o tornaram
possível, realçando que o Renascimento foi, nesta cidade, um período de
expansão dos direitos das mulheres.
Evelyn Welch, no seu artigo «Women in Debt: Financing Female Authority
in Renaissance Italy» (pp. 45-65), aborda o envolvimento das mulheres no
complexo sistema de crédito da época, salientando que o seu poder financeiro
221
Paula Almeida Mendes
constituía um importantíssimo corolário da sua influência política e social.
«Il potere delle gentildonne: l’esempio di Barbara di Brandenburgo e
Paula Gonzaga» (pp. 67-87) foi objecto de tratamento no estudo de Christina
Antenhofer. A Autora coloca no centro da sua análise duas senhoras, Bárbara
de Brandenburgo (que, aos onze anos, veio da Alemanha para a corte de
Mântua, onde casou com Ludovico Gonzaga, futuro segundo marquês de
Mântua) e Paula Gonzaga (que, em 1478, aos quinze anos, partiu para Lienz,
no condado de Gorizia, para contrair matrimónio com o conde Leonhard di
Gorizia), respectivamente mãe e filha, pois «tutte e due sono testimoni di un
Rinascimento “multiculturale”, nel senso che com il loro matrimonio avevano
superato zone culturali e di lengua» (p. 67). Christina Antenhofer tenta mostrar
como estas senhoras assumiram e criaram poderes numa grande variedade
de formas, quer fosse o seu papel no seio da família, quer fosse um poder de
carácter mais individual, resultante de estratégias diversas: enquanto Bárbara se
apresenta influente como matrona, Paula é mais subtil e utiliza redes sociais,
tais como os irmãos, o marido, o rei e o arquiduque de Áustria, para defender
os seus interesses.
Laura Casella, no seu estudo «Donne aristocratiche nel Friuli del
Cinquecento tra strategie familiari e conflitti di fazione» (pp. 89-128), sublinha
o papel das mulheres na vida social de Friuli, entre o século XV e o final do
século XVI, tentando, deste modo, reconstruir uma insuspeitada e eficaz rede
parental e económica que ultrapassa fronteiras e que une famílias pertencentes à
nobreza imperial e famílias artesãs e mercantis.
No seu artigo «Lucrezia Borgia, imprenditrice nella Ferrara rinascimentale»
(pp. 129-143), Diane Ghirardo traça-nos um perfil desta senhora muito
diferente do que nos foi legado pela tradição e pela historiografia, marcado,
sobretudo, pela traição e pelo recurso a meios como o veneno para alcançar os seus
objectivos, sublinhando, deste modo, a sua faceta de «imprenditrice di sucesso,
capace e all’avanguardia» (p. 143), enquanto mulher que agia directamente, por
iniciativa própria e procurando o seu próprio interesse económico.
O estudo de Francine Daenens, «Debiti e crediti di una gentildonna :
Isabella Sforza» (pp. 145-167), apoia-se no percorrer de uma grande quantidade
de escrituras notariais relativas aos negotij de Isabella Sforza, tentando, assim,
reconstruir o retrato privado desta senhora sine viro nec agnatis, «envolvida» na
«teia» mais vasta de conflitos e interesses do duque de Milão e da autoridade
pontifícia, e que teve uma visibilidade pouco comum no complexo mapa
familiar e político da Itália renascentista.
O estudo de Federica Ambrosini sobre «Una vedova genovese nella Padova
del Cinquecento: Caterina Sauli da Passano» (pp. 169-191), que encerra a
222
RECENSÕES
primeira parte do volume, apresenta-nos o retrato de uma mulher de carácter
e determinação fortes, cujo poder e dinâmica eram dispendidos essencialmente
na realização de um projecto em todos os sentidos heterodoxo e gerido com
completa autonomia, não só porque este consistia em tornar a sua casa um ponto
de encontro e de ligação de um grupo de heterodoxos, mas também porque
respondia, sobretudo, a uma exigência interior exclusivamente sua, o qual a
Autora define como «un esercizio del potere¸dunque, anomalo, avventuroso,
inebriante da un lato, dall’altro non privo di risvolti pesanti e amari» (p. 191).
A segunda parte, composta por onze estudos, abre com o artigo de Simona
Feci, «Signore di curia. Rapporti di potere ed esperienze di governo nella Roma
papale (meta XV-metà XVI secolo)» (pp. 195-222), o qual se debruça sobre a
relação entre as mulheres e o poder, em Roma, entre o pontificado de Sisto IV
e o de Paulo III, mostrando que as senhoras que alcançavam uma posição de
prestígio e de influência pertenciam à família do papa, mas que esta era, todavia,
«una posizione opaca, per la mancanza di un ruolo pubblico e di una funzione
legittima e per la presenza di una corte “al maschile”, in cui la trasmissione del
potere avviene in forma electtiva e il sovrano non ha una consorte com cui
spartirlo, né figli che lo ereditino» (p. 195).
Benedetta Borello, no seu estudo «Protezioni di donne. Mogli aristocratiche
e patriziato cittadino (Gubbio, Roma, Siena XV-XVI secolo)» (pp. 223-245),
realça o topos da protecção e a sua perfeita sintonia com os mecanismos de
patronage, deixando claramente entrever a dinâmica das relações entre a
aristocracia e aqueles que solicitavam a sua intervenção.
Por sua vez, Nadia Covini, no seu estudo «Tra patronage e ruolo politico:
Bianca Maria Visconti (1450-1468)» (pp. 247-280), analisa o papel
desempenhado por esta senhora, que era duquesa de Milão, o qual «fu construito
attorno alle potenzialità connesse alla sua nascita e appartenenza alla nobiltà
milanese» (p. 280). Dispensando protecções e recomendações, fazendo da sua
domus um lugar de sociabilidade e de agregação, a duquesa de Milão procurou
sempre estabelecer e manter relações com a aristocracia de várias cidades e com
as maiores casas senhoriais, «cogliendo l’opportunità di fare da tramite com
ambienti di nobili e notabili che non avevano pienamente accettato l’avvento
della nuova dinastia sforzesca» (p. 280).
O artigo de Franca Leverotti, intitulado «Lucia Marliani e la sua famiglia: il
potere di una donna amata» (pp. 281-311), incide sobre o caso desta senhora,
amante de Galeazzo Maria Sforza, duque de Milão, que este havia «comprado»
ao marido por quatro mil ducados, mas que, durante os dois anos em que
desempenhou este «papel», conseguiu utilizar esta importante posição para, de
algum modo, ajudar a sua família de origem.
223
Paula Almeida Mendes
O estudo de Angelantonio Spagnoletti, «Donne di governo tra sventura,
fermezza e rassegnazione nell’Italia della prima meta del ‘500» (pp. 313-332),
apresenta-nos alguns casos de princesas italianas que exerceram o poder político
entre o final de Quatrocentos e a primeira metade de Quinhentos, sublinhando
não só a sua influência como regentes com direito de escolha do sucessor, como
também as transformações que se verificaram no sistema dinástico italiano
durante as guerra de Itália e nos anos do governo de Carlos V.
O casamento de D. Beatriz de Portugal, filha do rei D. Manuel, com Carlos
II, duque de Sabóia, celebrado em 1521, e o grupo de damas portuguesas que
acompanhou a infanta é objecto de tratamento no interessante e sugestivo
estudo de Alessandro Barbero e Thalia Brero, intitulado «Genre et nationalité
à la cour de Béatrice de Portugal, duchesse de Savoie (1521-1538)» (pp. 333360). Os Autores realçam não só a oportunidade oferecida a D. Beatriz para
desenvolver um papel político autónomo em relação ao marido e ao sogro, mas
também o modo como utilizou o seu poder para proteger os interesses dos seus
compatriotas (sobretudo das damas), preocupando-se com as suas questões
imobiliárias e o seu dote, tentando fazê-las desposar os melhores partidos
do ducado, reflectindo, assim, a existência de uma verdadeira solidariedade
feminina.
O estudo de Elisa Novi Chavarria, intitulado «Reti di potere e spazi di corte
femminili nella Napoli del Cinquecento» (pp. 361-374), analisa os casos de duas
senhoras napolitanas, Roberta Carafa e Maria de Aragão, que tiveram um papel
activo nos círculos humanistas de Nápoles «della prima età spagnola» (p. 361),
na medida em que estiveram presentes na vida artística, política e cultural da
capital do reino, nas «capitais» dos respectivos feudos e, no caso da «Aragonesa»,
assumindo também uma dimensão «internacional» do poder, como mulher do
governador de Milão e como governadora do ducado de Benevento.
Dorit Raines, no seu estudo «La dogaressa erudita. Loredana Marcello
Mocenigo tra sapere e potere» (pp. 375-404), analisa o caso emblemático de
uma mulher que evitava, pelo menos em parte, a lógica plurissecular veneziana
que reservava à «dogaressa» o papel de consorte, mãe e patrona perfeita e que
lhes impedia o desempenho de «funções de estado» e que veio a tornar-se um
autêntico «ícone do poder».
O artigo de Alison A. Smith, «Women and Political Sociability in Late
Renaissance Verona: Ersilia Spolverini’s Elogio of Chiara Cornaro» (pp. 405415), tem como objecto de tratamento o elogio que, em 1596, uma senhora
pertencente à nobreza de Verona, Ersilia Spolverini, publicou, em louvor da
mulher de um capitão veneziano, Chiara Cornaro, realçando que este facto só
foi possível graças ao articulado sistema de sociabilidade política da elite, que
224
RECENSÕES
se desenvolveu em Verona e em outras cidades do estado veneziano, ao longo
do século XVI, o qual propiciou um conjunto de oportunidades para mulheres
que, como Ersilia, aproveitavam o seu acesso a redes «informais» de influência
para alcançarem prestígio cultural e uma certa distinção pública.
O estudo de Sara Cabibbo sobre «Percorsi del potere femminile fra Italia e
Spagna: il caso di Vittoria Colonna Enriquez (1558-1633)» (pp. 417-443) apoiase na análise de um conjunto de cartas relativas a esta senhora, filha mais nova
de Marco Antonio Colonna, herói de Lepanto e vice-rei da Sicília, e duquesa
de Medina di Rioseco, evidenciando a extrema flexibilidade que caracterizava
a sua adaptação às mais diversas circunstâncias, a capacidade em aproximarse do centro do poder através dos canais reservados às senhoras de corte na
Espanha de Filipe II e de Filipe III, a perseverança em alcançar a fortuna da
sua Casa, que se manifesta também na administração do património siciliano
da família Enriquez, culminando na fundação da cidade de Vittoria, exemplo
de «refeudalização» da ilha, sucedido à sombra do domínio dos Áustrias, mas
também expressão da vontade da duquesa em deixar traços do seu papel nesta
empresa.
A segunda parte encerra com o estudo de Vittoria Fiorelli sobre «Una
viceregina napoletana della Napoli spagnola: Anna Carafa» (pp. 445-462). Anna
Carafa, filha de Antonio, duque de Mondragone, e de Elena Aldobrandini,
mulher de Ramiro Guzmán, duque de Medina de las Torres e vice-rei de
Nápoles, herdeira de um vasto património de terras e de palácios e depositária
de privilégios e prerrogativas, graças ao casamento com um estrangeiro, tornarse-á a primeira vice-rainha napolitana da Nápoles espanhola, um papel que lhe
deu a proeminência absoluta, alcançada através do mais alto cargo institucional
do reino.
A terceira parte, constituída por onze estudos, abre com o artigo de
Christine Shaw sobre «Bartolomea Campofregoso: A Woman’s Claim to Power
in Fifteenth-Century Genoa» (pp. 465-479), que realça as qualidades pessoais
e o carácter extraordinário desta mulher do poder local que, após a morte do
marido, Pietro Campofregoso, doge de Génova entre 1450 e 1458, tornou-se
não só uma voz influente nos conselhos políticos da família Campofregoso, mas
também na vida pública da cidade.
O artigo de Marco Folin, «La corte della duchessa: Eleonora d’Aragona
a Ferrara» (pp. 481-512), mostra-nos que, apesar do silêncio das fontes, as
princesas poderiam ter, em certos casos, um papel no governo que não era
suplementar, de suporte ao príncipe ou, quando muito, de regência em caso
de vazio de poder. Por outro lado, este estudo de caso coloca em evidência
uma das marcas distintivas do matronage feminino: o apoio numa rede de
225
Paula Almeida Mendes
relações não só humanas e políticas, mas também artístico-culturais, de natureza
essencialmente extra-local e que se caracterizavam pela expansão para outros
Estados, favorecidas pelas relações familiares da linhagem de origem.
O estudo de Cesarina Casanova, intitulado «Mogli e vedove di condottieri in
area padana fra Quattro e Cinquecento» (pp. 513-534), incide sobre a questão
das alianças matrimoniais neste território italiano.
Elena Papagna, no seu artigo «Tra vita reale e modelo teórico: le due
Costanze d’Avalos nella Napoli aragonese e spagnola» (pp. 535-574), debruçase sobre a vida de duas senhoras homónimas, tia e sobrinha, procurando assim
compreender os papéis femininos em Nápoles, no período de transição entre
a época aragonesa e a espanhola. A Autora conclui que cada uma das Avalos
parece, efectivamente, personificar um modelo feminino difuso: a mais velha,
ou seja, a tia, pode ser considerada uma espécie de transposição feminina do
conhecido paradigma humanista e masculino do indivíduo valoroso nas armas
e engenhoso nas letras, parecendo encarnar a virago idealizada por Jacob
Burkhardt, que exaltou as qualidades viris das grandes damas renascentistas; a
mais jovem, a sobrinha, parece personificar o topos da mal-casada, que procurava
refúgio na escrita e na religião, a qual era o único meio de oferecer um sentido e
uma finalidade transcendente às mortificações da vida quotidiana e de conferir
dignidade à esposa devota e casta.
O estudo de Gabriella Zarri sobre «Caterina Cibo duchessa di Camerino»
(pp. 575-593), neta, por via materna, de Lorenzo, o Magnífico, analisa a sua
regência em Camerino, conduzida, entre 1527 e 1535, em nome da filha de
poucos anos, a qual foi anómala na época, enquanto concessão do papa Clemente
VII e estando ainda vivo o duque Giovanni Maria da Varano, mostrando, deste
modo, a política nepotística levada a cabo pelos pontífices, que beneficia os
filhos naturais e os familiares.
Letizia Arcangeli, no seu artigo «Un’aristocrazia territoriale al femminile.
Due o tre cose su Laura Pallavicini Sanvitale e le contesse vedove del parmense»
(pp. 595-653), aborda as consequências das guerras em Itália e do aumento
do número de viúvas, que deram origem a uma espécie de «feminilização»
temporária da aristocracia, pelo menos em algumas partes do território italiano,
ao longo do século XVI.
Rossana Sacchi, em «Caterina Bianca Stampa Petra e poi Lodrone» (pp. 655667), analisa o ofício administrativo desempenhado por esta senhora, enquanto
conservadora dos judeus em Milão, desde 1522 até à sua morte.
O estudo de Michele Cassese, intitulado «Giovanna e Maria d’Aragona:
due sorelle napoletane “doppio pregio ad una etade” e il rapporto con il potere
nel ‘500» (pp.669-707), realça as posições que estas duas irmãs assumiram em
226
RECENSÕES
diversas questões públicas e privadas, num período de particular mudança da
história do vice-reino de Nápoles.
O epistolário de Giulia Gonzaga é objecto de tratamento no estudo de
Susanna Peyronel, intitulado «I carteggi di Giulia Gonzaga» (pp. 709-742), no
qual a Autora apresenta-o como testemunho do papel desempenhado por esta
senhora em litígios jurídicos, na assídua frequência da corte e em estratégias
matrimoniais.
No seu artigo «Eleonora di Toledo e la gestione dei beni familiari: una
strategia economica?» (pp. 743-764), Bruce L. Edeslstein tenta reconstruir a
actividade económica empreendida pela duquesa de Florença, filha de D. Pedro
de Toledo, vice-rei de Nápoles, e mulher de Cosimo I de’Medici, mostrando que
esta não é um alter ego do marido, mas uma verdadeira coadjutora: representa,
com as suas próprias finanças, uma solução original e utiliza, simultaneamente,
os poderes públicos para aumentar os seus lucros e proveitos.
A terceira parte encerra com o estudo de Mónica Miretti, intitulado
«Mediazoni, carteggi, clientele di Vittoria Farnese, duchessa di Urbino»
(pp. 765-784), no qual a Autora apresenta esta senhora, segunda mulher
de Guidubaldo II Della Rovere, duque de Urbino, como detentora de uma
sensibilidade política e de uma capacidade de mediação pouco comuns e tanto
mais significativas na conjuntura histórica na qual vive (as décadas centrais do
Cinquecento), em que o marido é senhor de um pequeno ducado no centro de
Itália e procura, tal como muitos outros príncipes da península, projectá-lo na
órbita espanhola.
Por tudo isto, a vastidão de perspectivas e a diversidade de abordagens
apresentadas neste volume mostram, no seu conjunto, as imensas potencialidades
do estudo do activo papel das mulheres na sociedade e na política do
Renascimento italiano.
Paula Almeida Mendes
Estudante de Doutoramento (FLUP)
227
Crónica 2009
O grupo «Sociabilidades, práticas e formas do sentimento religioso» do
CITCEM desenvolveu as suas actividades de acordo com as seguintes linhas
orientadoras e temas de investigação:
1. Organização de seminários com uma periodicidade mensal em volta
do tema «A infância de Cristo (séculos XV-XVIII)».
Estas reuniões tiveram a participação de investigadores e especialistas do
CITCEM e de outras unidades de investigação, no quadro de uma colaboração
científica e pedagógica com a FLUP para a formação de estudantes de pósgraduação. Promovendo uma abordagem interdisciplinar, esta actividade
permitiu focar a temática em causa a partir de diferentes ângulos de análise,
contribuindo para diversificar e enriquecer a formação dos estudantes de pósgraduação e para obter um conhecimento mais completo e preciso do objecto
de estudo.
Os seminários foram distribuídos da seguinte forma:
20 de Fevereiro – César Freitas (CITCEM – UP) («Alexandre de Gusmão:
da literatura jesuíta de intervenção social – Estado da investigação»);
3 de Abril – Sara Augusto (Universidade de Coimbra) («A Escola de Belém
de Alexandre de Gusmão»);
24 de Abril – Antonio Castillo (Universidad de Alcalá de Henares – Madrid)
(«Escribir desde el convento: consideraciones sobre la práctica epistolar de las
monjas en el Siglo de Oro»);
15 de Maio – Agustì Boadas (Universitat Ramon Llull - Barcelona)
(«Filosofia de la ternura en el siglo XIV: el caso de los escotistas, Eiximenis y el
Monasterio de Pedralbes»);
29 de Maio – Jacobo Sanz Hermida (CITCEM – Universidade de
Salamanca) («El Tratado de la Infancia y Niñez de Christo de sor Hipólita de
Jesús Rocaberti (O.P.)»);
26 de Junho – Ana Costa (CITCEM – UP) («S. Francisco de Sales e a vida
devota em Portugal, sécs. XVII-XVIII – Estado da investigação»);
10 de Julho – Maria Idalina Rodrigues (CITCEM – Universidade de Lisboa)
(«Jornada do Menino Deos para o Egypto: tradição e inovação»);
17 de Julho – Helena Queirós (CITCEM – UP) («Apresentação do livro A
Contra-Reforma em Portugal de Federico Palomo»);
24 de Julho – João Carlos Serafim (CITCEM – UP) («A infância de Cristo
em Evangelicae Historiae Imagines de Jerónimo Nadal [S. J.]»);
25 de Setembro – Paula Almeida (CITCEM – UP) («Hagiografia, biografia
229
devota e espiritualidade em Portugal na Época Moderna (1500-1750) – Estado
da investigação»);
9 de Outubro – Maria Eugenia Diaz (CITCEM – Universidade de
Salamanca) («La infancia de Jesús en la literatura medieval española»);
27 De Novembro – Cristina Osswald (CITCEM – UP) («A companhia de
Jesus e a difusão da hagiografia e iconografia de Cristo na arte brasileira (XVIXVIII)»);
18 de Dezembro – José Adriano de Freitas Carvalho (UP) («A infância de
Cristo em Diogo Monteiro [S.J.]»).
2. Publicação dos resultados obtidos na revista «Via Spiritus».
3. Organização de um seminário internacional dedicado ao tema
«Espiritualidade e Corte», no dia 12 de Junho, durante o qual se procurou
conhecer o estado da arte no âmbito da investigação europeia, com a participação
de especialistas de Itália, França e Espanha. Este encontro científico revelou-se
um excelente meio para conhecer os métodos e resultados da investigação sobre
as cortes europeias dos séculos XVI-XVIII, através do testemunho directo de
alguns dos especialistas que a protagonizam. Em conexão com esta organização,
o grupo de investigação está empenhado na edição de fontes primárias para o
estudo desta temática em Portugal.
4. O grupo colaborou na organização do colóquio internacional sobre
«A expulsão da Sociedade de Jesus dos Territórios Portugueses (1759-1761)»
realizado em Lisboa, na Biblioteca Nacional, nos dias 19 e 20 de Outubro, no
qual também intervieram diversos dos elementos que o integram.
5. Epistolografia em Portugal no século XVII: desenvolvimento da
investigação que incide na correspondência dirigida por D. Vicente de Nogueira
ao Marquês de Niza, com a transcrição e fixação do texto das cartas.
6. Bibliotecas e leituras conventuais: publicação de vários catálogos de
livrarias conventuais, organizados no momento da exclaustração; estudo e
interpretação dos dados obtidos; elaboração e divulgação das conclusões,
visando a sua apresentação num futuro seminário.
Todos os colóquios e restantes actividades desenvolvidas tiveram divulgação
no exterior, nomeadamente junto de escolas e professores do ensino secundário,
oferecendo-lhes a possibilidade de acompanharem o desenvolvimento da
investigação na área específica em que o grupo desenvolve o seu trabalho, assim
como a oportunidade de, eventualmente, nela se envolverem também.
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