CONTENTS José Pedro Paiva preaching and bishops ..................................................................7 Inmaculada Osuna avisos para la muerte of luis ramírez de arellano ......43 Eduardo Javier Alonso Romo exercises and penance in tomé de jesus’ work ..................81 Fr. António-José de Almeida lives and illustrations of penitent naked female saints in the desert and on pilgrimage in the flos sanctorum of 1513 ....................................................................... 107 María Isabel Toro Pascua the noble penance: cavaliers and dames in secular literature of the xv and xvi centuries ........................... 157 Maria Helena Queirós “a contra-reforma em portugal 1540-1700”. critical note. ...................................................................................................................173 VARIA .....................................................................................................185 Jorge A. Osório camões’ lament «o poeta simónides, falando» ...............187 Reviews by cristina osswald, paula mendes ...........................................213 Abstracts in English at the end of each article. ÍNDICE Pregação e espaços penitenciais 1 – Episcopado e Pregação – José Pedro Paiva Este artigo visa abordar um tópico muito pouco considerado pela historiografia, tanto nacional, como internacional: a relação do episcopado com a pregação. Apesar da escassez das fontes documentais disponíveis, procurar-se-á, através dos múltiplos indícios disponíveis, lançar alguma luz sobre o modo como os bispos portugueses durante a Época Moderna regulamentaram e vigiaram a actividade dos milhares de pregadores que recorreram ao sermão para difundir a palavra de Deus. Para além disso, aferir-se-á a própria actuação de alguns antístites como pregadores, enunciando o perfil dessa intervenção. 2 – Los avisos para la muerte de Luis Ramírez de Arellano – Inmaculada Osuna Los Avisos para la muerte (1634), recopilados por Luis Ramírez de Arellano, recogen, junto con otros materiales complementarios (entre ellos, sendas oraciones en verso para antes de la confesión y de la comunión y un acto de contrición en prosa), treinta poemas que se presentan como modelo de oración dirigida a Cristo crucificado en el momento de la muerte. Los poemas proceden de una iniciativa colectiva en la que participan destacados poetas de la Corte madrileña como Lope de Vega, Pedro Calderón de la Barca, José Pellicer, José de Valdivielso, Luis Vélez de Guevara, Juan Pérez de Montalbán o Francisco de Rojas Zorrilla, entre otros. El presente artículo aborda el entorno social en que surge la colección poética, la composición del libro y su exitosa historia editorial a lo largo de dos siglos y la reiterativa representación en los poemas de determinados tópicos de la meditatio mortis (escenificación del momento de la agonía; expresión del arrepentimiento, del amor a Cristo y de la esperanza en su misericordia; contemplación del cuerpo de Cristo en la cruz). 3 – Ejercicios y penitencia en la obra de Tomé de Jesus – Eduardo Javier Alonso Romo O presente artigo pretende abordar os clássicos Trabalhos de Jesus, obra póstuma do frade agostinho quinhentista Tomé de Jesus, através duma perspectiva de exercícios penitenciais, dentro do campo mais alargado dos exercícios espirituais. Analisam-se questões como a metodologia, as práticas oracionais e de discernimento espiritual, a dualidade entre penitência interior e penitências exteriores, assim como os conselhos para vencer as tentações, e os usos para o exame de consciência e a confissão. Coloca-se o autor em relação com outros autores peninsulares daquele tempo, nomeadamente S. Inácio de Loyola. 4 – Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação, no Flos Sanctorum de 1513 – Fr. António-José de Almeida A tentativa de identificação de uma figura feminina deitada seminua, existente num fragmento de pintura mural recentemente descoberto na igreja de Nossa Senhora de Balsamão, em Chacim, concelho de Macedo de Cavaleiros, em Trás-os-Montes, levou o autor deste artigo a pesquisar as vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas em Legendários impressos na Europa nos séculos XV e XVI, especialmente na Península Ibérica, e de modo particular no Flos Sanctorum em linguagem português, impresso em Lisboa em 1513. Neles, há exemplos de dois tipos de santas desnudas, ligadas a formas de vida penitente: as que habitaram em lugares desertos ou desabitados (como Santa Maria Egipcíaca e Santa Maria Madalena), mas também de santas peregrinas (as três mulheres da legenda peninsular dos Quatro Santos Coroados). Relacionada com o seu actual projecto de pesquisa, o autor aproveita ente ensejo para publicar as suas mais recentes descobertas no domínio da estampa ilustrativa, na Península Ibérica, referentes à representação da Santíssima Trindade de tipo trifacial segurando o scutum fidei, rodeada pelo tetramorfo evangélico. 5 – La noble penitencia: caballeros y damas penitentes en la literatura profana de los siglos XV y XVI – María Isabel Toro Pascua El motivo de la penitencia se revela como un recurso literario muy fértil en el ámbito de la literatura profana de los siglos XV y XVI, y más concretamente en la ficción caballeresca y sentimental. Este tópico se presenta de diversas maneras en estas obras, pero en todos los casos parece responder a procedimientos o patrones literarios muy concretos, siempre relacionados con el propio desarrollo del motivo, tales como el espacio en que se desenvuelve la penitencia, y con la función que desempeña en la estructuración narrativa del relato entero. En todos los casos, la finalidad última del tópico no es otra que la de insistir en el necesario cumplimiento del código caballeresco o sentimental, imprimiendo a veces un marcado didactismo, pero sin ningún tipo de pretensiones espirituales o devocionales de más hondo calado. 6 – A Contra-Reforma em Portugal 1540-1700 – Maria Helena Queirós Nota crítica à obra. 7 – Varia Na elegia de Camões «O poeta Simónides, falando» – Jorge A. Osório Este artigo estuda a importância da «memória» na composição «O poeta Simónides, falando», relacionando-a com as práticas líricas de Camões e com múltiplos aspectos da biografia do poeta. 7 8 Episcopado e pregação no Portugal Moderno: formas de actuação e de vigilância1 Introdução O estudo da actividade do episcopado português no âmbito da pregação, na Época Moderna, não é tarefa fácil. Desde logo, porque a produção historiográfica prévia nesta matéria é praticamente nula2. Em segundo lugar, pela escassez de fontes que o consintam. Núcleos documentais da maior relevância para o concretizar, como as cartas pastorais, os registos das licenças para pregar emitidas pelos bispos, os processos dos auditórios episcopais, os sermões proferidos pelos antístites, rareiam, encontram-se dispersos, em séries muito truncadas e, por norma, mal catalogados nos arquivos. Mesmo o inventário das centenas de púlpitos ainda existentes em igrejas, e que poderiam fornecer utilíssimas informações, se encontra por fazer3. Daí que seja arriscado o exercício aqui proposto, pelo qual se intentará fornecer um quadro sistémico e sintético da matéria em análise, a partir dos fragmentários indícios disponíveis. Assume-se a dificuldade e o risco, com a exacta consciência das limitações dos caminhos percorridos e a impossibilidade de sustentar conclusões seguras relativamente a muitos dos aspectos que serão abordados. Era o ano de 1743. Já ia bem adiantado o século XVIII, quando chegou à Mesa da Inquisição de Coimbra uma denúncia contra um frade pregador, oriunda de Santo Tirso, próximo do Porto. O delator, para além de esclarecer que este religioso se fazia acompanhar por um músico, o qual tinha a finalidade de convocar pessoas para ouvirem os sermões, esclarece ainda que ele não escrevia o texto da pregação «dizendo asim tudo o que lhe vinha a cabeça». Pior, não difundia boa doutrina, pois, ainda nas palavras do denunciante, nas suas prédicas Este estudo foi elaborado no âmbito do Projecto de Investigação Sociedades, Poderes e Culturas: Portugal e os «Outros», do Centro de História da Sociedade e da Cultura da Universidade de Coimbra (FCT). Agradeço ao Prof. Doutor João Marques a leitura e comentários críticos que fez à versão inicial deste texto. 2 É disso testemunho a excelente síntese proposta por João Francisco MARQUES, Pregação in História Religiosa de Portugal (direcção de Carlos Moreira AZEVEDO), Lisboa, Círculo de Leitores, 2000, vol. II, 393-447, ou o que sobre a pregação se propõe na mais recente e bem elaborada síntese sobre a reforma católica em Portugal, Federico PALOMO, A contra-reforma em Portugal 1540-1700, Lisboa, Livros Horizonte, 2005, 77-81. 3 Uma boa utilização da análise dos púlpitos para a história da pregação pode ver-se em Nirit Ben-Aryeh DEBBY, The Renaissance pulpit: art and preaching in Tuscuny, 1400-1550, Turnhout, Brepols, 2007. 1 9 José Pedro Paiva «tudo sam flores, jardins, pinturas e fábulas de que se não tira proveito espiritual»4. Esta denúncia do pitoresco pregador, o qual já descobrira a capacidade atractora da música como forma de anúncio propagandístico de um evento público – como era um sermão –, para além de permitir iluminar interessantes facetas do complexo universo da oratória sacra no Portugal Moderno, podia suscitar a percepção de que este era um mundo desgovernado, no qual era ilimitada a margem de liberdade da avalanche de pregadores que enxameavam os púlpitos nas mais variadas ocasiões. Essa seria uma ideia errada. Se é certo que no Portugal de Setecentos, mais de duzentos anos depois de no Concílio de Trento (1545-1563) se ter determinado a atenta vigilância que os bispos deviam exercitar sobre os pregadores da palavra de Deus, ainda se topavam episódios deste género, não é menos verdade que os bispos não estiveram passivos. É disso que se tratará nas páginas seguintes. 1. Instrumentos normativos: Constituições diocesanas, provisões e pastorais Competia aos bispos a promulgação de directivas regulamentadoras da actividade dos pregadores nas dioceses. Neste domínio, encontram-se disposições tanto nas Constituições diocesanas como em provisões e cartas pastorais. As primeiras, também ditas Constituições sinodais, prescreviam normas que tinham uma dimensão mais estruturante e duradoura. Já as outras, de que não existe sequer um inventário exaustivo, estipulavam, habitualmente, medidas de cariz mais pontual, procurando acudir a aspectos com os quais os prelados se deparavam no exercício do seu múnus, e tinham uma dimensão mais pessoal, no sentido em que representavam as intenções específicas de um bispo. As Constituições promulgadas durante a primeira metade de Quinhentos são quase omissas a propósito da pregação e dos pregadores, denunciando a escassa importância conferida pelo episcopado, nesta fase, à divulgação da palavra divina por via do sermão5. Aquelas onde se descobrem espartanas menções ao assunto, como é o caso das da Guarda de 1500, Coimbra (1521), Viseu (1527) ou Lisboa (1536), limitam-se a proibir os designados «echacorvos», isto é, pregadores ambulantes, que difundiam indulgências e recolhiam esmolas, usualmente burlando os ouvintes, impondo-lhes a proibição de o fazerem sem apresentarem uma licença do bispo6. O que pode ser lido como uma manifestação do desejo de Cf. Instituto Arquivos Nacionais/Torre do Tombo (doravante sempre IAN/TT), Inquisição de Coimbra, Livro 383 (Caderno do Promotor), fl. 529-530. 5 Pode obter-se um elenco de toda a série de Constituições promulgadas na Época Moderna em José Pedro PAIVA, Constituições diocesanas in Dicionário de História Religiosa de Portugal, (direcção de Carlos Moreira AZEVEDO), Lisboa, Círculo de Leitores, 2000, vol. II, 9-15. 6 Ver Constituyçoes e estatutos feytos e ordenados novamente por ho mui reverendo senhor dom Pedro bispo da Guarda, Salamanca, [s.n.], 1500, constituição 58; Costituyçooes do bispado de Coimbra: feytas pollo muyto reverendo e magnifico senhor o señor dom Jorge d´Almeyda bispo de Coimbra conde D´Arganil, Braga, Pedro Gonçalves Alcoforado, 1521, constituição 80; Constituiçoes feytas por mandado do muito reverendo 4 10 Episcopado e pregação no Portugal Moderno: formas de actuação e de vigilância afirmação da autoridade do prelado no espaço que governava, sem revelar qualquer preocupação com a preparação e comportamentos dos pregadores, menos ainda com os conteúdos das prédicas. As primeiras Constituições a conferirem um pouco mais de atenção à regulação da pregação foram as de Coimbra, de 1548, ordenadas por D. João Soares e as de Viseu, de 1556, de D. Gonçalo Pinheiro. Em ambas, não só se proíbe a circulação de pregadores sem licença do bispo, como acontecia nas anteriores, mas exige-selhes um exame, por via do qual se devia apurar a sua «suficiência», impondo ainda aos párocos o dever de vigilância, por forma a não consentirem que nas suas igrejas pregasse quem não apresentasse licença do antístite ou do vigário geral7. Para além disso, explicita-se a condição especial dos pregadores das ordens regulares, os quais deveriam primeiramente mostrar ao bispo a permissão para pregar dos superiores da sua ordem religiosa, advertindo que não «concorram com os curas e pregadores do nosso bispado e o façam do prazimento delles», como se escreve nas de Viseu. Por fim, estipulam penas para os que não cumprissem estas normas, as quais podiam implicar prisão e confisco de todas as esmolas obtidas pelos pregadores na sua actividade. Posturas semelhantes encontram-se nas primeiras constituição elaboradas após o Concílio de Trento. Nas de Miranda, de 1565, onde se acrescenta ainda que os pregadores não deviam difundir dos púlpitos os «erros dos hereges», mesmo que fosse para os confutar8. E nas extravagantes do arcebispado de Lisboa (1569), ordenadas pelo cardeal D. Henrique, acrescenta-se uma norma onde se adverte para que a principal obrigação dos pastores de almas é pregar e ensinar a doutrina aos seus fregueses, para assim providenciar à sua salvação, pelo que obriga a todos os priores, reitores, vigários e curas do arcebispado a pregarem aos seus fiéis dominicalmente e em todos os dias santos, devendo «acomodar» os sermões às capacidades dos ouvintes9. Preocupação que, como de seguida se exporá, se veio a tornar omnipresente. Depois do Concílio de Trento, sobretudo no século XVII, em flagrante contraste com o panorama comum até então, é notório o aumento das disposições sobre pregação nas Constituições. Estas passaram a conter detalhadas normas, não só a propósito das licenças e necessidade de os párocos vigiarem localmente a actividade dos pregadores, mas também sobre as competências e códigos de conduta dos difusores do verbo divino no acto do sermão. Uma das primeiras a señor ho señor dom Miguel da Silva, bispo de Viseu, [s.l.], [s.n.], [1527], constituição 27 e Constituiçoes do Arcebispado de Lixboa, Lisboa, German Galharde Frances, 1537, título XXIIII, constituição primeira. 7 Ver Constituiçoes Synodaes do Bispado de Coimbra, Coimbra, João Barreira e João Alvares, 1548, fl. lxxxvii e lxxxvii verso e Constituiçoes synodaes do bispado de Viseu, Coimbra, João Alvares, 1556, fl. lxxii. 8 Ver Constituiçoes synodaes do Bispado de Miranda, Lisboa, Francisco Correia, 1565, fl. 7-7v. 9 Ver Constituiçoes extravagantes do Arcebispado de Lisboa, Lisboa, Antonio Gonsalves, 1569, fl. 13v. 11 José Pedro Paiva trilharem esta via foram as de Leiria, de 1601, ordenadas por D. Pedro de Castilho, onde se compilou um capítulo autónomo intitulado «Das qualidades e partes que ham-de ter os pregadores, e que ninguem pregue sem nossa licença»10. Já em 1589, mas não tão detidamente, também as Constituições de Portalegre, compiladas por ordem de D. frei Amador Arrais, dedicavam um capítulo específico à pregação11. Antes, as do Porto (1585) e Coimbra (1591), por exemplo, tinham mais larga produção normativa sobre pregação do que as anteriores a Trento, mas ainda na parte dedicada às obrigações dos párocos, não apresentando, portanto, como as leirienses, nenhum título específico e autónomo sobre a pregação12. As Constituições seiscentistas, respondendo ao apelo lançado em Trento, revelam uma grande preocupação da parte do episcopado relativamente à regulação da pregação. Nem todas, naturalmente, tiveram o mesmo grau de profundidade no tratamento do assunto, destacando-se pela sua prolixidade e zelo as da Guarda (1621 com 2ª edição em 1686), Braga (1639, impressas em 1697), Lisboa (1640, impressas a primeira vez em 1646) e Porto (1687, impressas em 1690)13. A análise que seguidamente se propõe procura apresentar as matérias afloradas, não as avaliando caso a caso, mas sim numa perspectiva de conjunto, ainda que dando conta do cariz específico de certas normas de algumas delas. O elenco das prescrições é imenso. Muitas Constituições, logo a abrir, lembram a disposição tridentina segundo a qual a pregação do Evangelho era uma das principais obrigações dos bispos14. Nas do Algarve, de 1674, promulgadas por D. Francisco Barreto II, para o reforçar, ainda se acrescenta que no próprio ritual de consagração episcopal era recordado aos bispos o dever de alimentarem as almas com a pregação evangélica15. Todas retomam a defesa da jurisdição episcopal em matéria de vigilância dos Ver Constituiçoes synodaes do bispado de Leiria, feytas e ordenadas em synodo pelo senhor D. Pedro de Castilho, Coimbra, Manuel D´Araujo, 1601, fl. 86v-87. 11 Ver Constituições sinodais de D. Frei Amador Arrais (1589), (Transcrição e notas por Tarsício Fernandes ALVES), [Portalegre], Cabido da Sé de Portalegre, 1999, 12: «Constituiçam 5ª que nam preguem, nem consintam pregar aos que não teem licença do prelado, e que os leigos não disputem da fee». Estas Constituições nunca foram impressas, senão nesta edição de 1999. O original manuscrito encontra-se no Arquivo do Cabido de Portalegre. 12 Ver Constituiçoes synodaes do Bispado de Coimbra, feytas e ordenadas em synodo pello Illustrissimo Senhor Dom Affonso de Castel Branco (...), Coimbra, Antonio de Mariz, 1591, 110 (cito a partir da edição de 1731) e Constituiçoes synodaes do bispado do Porto ordenadas pelo muyto illustre Reverendissimo Senhor Dom frey Marcos de Lisboa Bispo do dito bispado, Coimbra, Antonio de Mariz, 1585, fl. 55-57. 13 Ver Constituiçoes synodais do bispado da Goarda, Lisboa, Pedro Crasbeeck, 1621 (nas citações futuras segue-se a paginação da 2ª edição de 1686); Constituiçoes synodaes do arcebispado de Braga, Lisboa, Miguel Deslandes, 1697; Constituições Synodaes do arcebispado de Lisboa, Lisboa Oriental, Filippe de Sousa Villela, 1737 e Constituiçoes synodaes do bispado do Porto novamente feitas e ordenadas pelo illustrissimo e reverendissimo senhor Dom João de Sousa, Porto, Joseph Ferreira, 1690 (em citações futuras utilizarei a edição de Coimbra, Collegio das Artes da Companhia, 1735). 14 Ver, por exemplo, Constituiçoes synodaes do bispado do Porto (1687), 262-263. 15 Ver Contituiçoes synodaes do bispado do Algarve, Évora, Imprensa da Universidade, 1674, 317. 10 12 Episcopado e pregação no Portugal Moderno: formas de actuação e de vigilância pregadores, impondo que ninguém pudesse pregar sem licença escrita do bispo, e co-envolvendo os párocos na obrigação de denunciarem os incumpridores, aos quais se chegaram a prescrever pesadas penas (excomunhão, suspensão das ordens e prisão) sendo negligentes16. Nas de Viseu, de 1684, abre-se uma excepção a este preceito, esclarecendo que estavam isentos desta dispensa todos os pregadores que possuíssem uma autorização papal concedida à pessoa ou à congregação religiosa de que fizesse parte, o que demonstra que, apesar de tudo, era possível através de privilégios apostólicos contornar a suprema autoridade do bispo na sua diocese17. E nas de Elvas, de 1635, onde não há qualquer título específico sobre pregadores, ao contrário do habitual nas congéneres seiscentistas, autorizam-se os bispos espanhóis que pudessem vir a Portugal a pregar sem ter qualquer licença especial do antístete elvense18. Algumas Constituições, como as de Lisboa (1640), esclarecem sobre o prazo destas autorizações, as quais podiam ser temporárias ou de duração ilimitada no tempo, advertindo que pela sua emissão não se podiam cobrar quaisquer taxas a favor da chancelaria episcopal19. Ou seja, as licenças eram gratuitas, porventura como forma de evitar que os candidatos se tentassem eximir à sua obtenção, alegando os custos materiais do processo. Estas licenças para pregar não eram apenas exigidas aos clérigos seculares. Os membros das ordens ou congregações religiosas também necessitavam delas para poder pregar numa diocese20. Isso mesmo, aliás, tinha sido instituído já no longínquo Concílio de Viena (1311-1312), através do cânone Dudum a Bonifacio, pelo qual se determinava que os dominicanos e franciscanos para pregarem nas igrejas paroquiais necessitavam de uma autorização do antístite21. Mesmo que os regulares quisessem subir aos púlpitos nas igrejas dos seus conventos ou mosteiros, era-lhes exigido uma licença do seu superior, com a qual se deviam apresentar perante o bispo, pedindo-lhe a benção, conforme se determinara no Concílio Tridentino22. Todas previam penalizações para os prevaricadores, as quais se foram agravando com o decorrer do tempo. Assim, nas de Leiria (1601) aos infractores seria cominada multa de 10 cruzados e suspensão do consentimento de pregarem, mas as de Lisboa (1640) já falavam em excomunhão, suspensão das ordens, prisão e outras penas a arbítrio do arcebispo23. Ver Contituiçoes synodaes do Algarve, ed. cit., 317. Ver Constituiçoes synodaes do bispado de Viseu, Coimbra, Joseph Ferreyra, 1684, 6. 18 Ver Primeiras constituçoes sinodaes do bispado d’Elvas, Lisboa, Lourenço Craesbeeck, 1635, fl. 26. 19 Ver Constituições Synodaes (...) de Lisboa (1640), 221. 20 Ver, por exemplo, Constituiçoes synodais do bispado de Portalegre, Portalegre, Jorge Rodrigues, 1632, 4. 21 Ver Michelle MANCINO, Licentia confitendi. Selezione e controllo dei confessori a Napoli in età moderna, Roma, Edizione di Storia e Letteretura, 2000, 15. Agradeço a Paola Nestola a indicação deste livro. 22 Ver, por exemplo, Contituiçoes synodaes do bispado do Algarve, 318. 23 Ver Constituiçoes synodaes do bispado de Leiria, 87 e Constituições Synodaes (...) de Lisboa (1640), 220. 16 17 13 José Pedro Paiva Uma das grandes novidades em relação ao passado pré-tridentino são as prescrições relativas às qualidades e competências exigidas aos pregadores, explicitando-se os tipos de exames a que se deviam submeter para alcançarem as licenças que os habilitariam a pregar. Nas do Porto exigia-se, pelo menos, que o candidato fosse subdiácono24. Mas, neste aspecto, as do arcebispado de Braga (1639), ordenadas em sínodo por D. Sebastião de Matos Noronha, são exemplares25. Informam que para ser admitido a exame o candidato tinha que possuir idade mínima e, invocando disposíções do Concílio Provincial bracarense (1566) do tempo de D. Frei Bartolomeu dos Mártires, estipulam que só seriam conferidas licenças a quem fosse, pelo menos, bacharel em teologia ou cânones por Universidade aprovada, denunciando, deste modo, aturada preocupação com a preparação dos protagonistas da arte concionatória26. E as provas não seriam ligeiras. Em Braga tinham três componentes. Duas de doutrina e uma relativa ao apuramento das qualidades de vida e costumes dos examinandos. Sobre esta requeria-se-lhes idade «madura, inteireza de vida e costumes, prudencia, piedade e devoção»27. A competência doutrinal era aferida em duas avaliações distintas. Numa propunha-se ao candidato uma perícope do Evangelho, dava-se-lhe tempo para preparar um sermão, o qual devia ser proferido diante dos examinadores. Noutra teria que sustentar três conclusões de teologia sobre matérias diversas, podendo os examinadores colocar-lhe questões variadas sobre elas. A prova era exigente e disso havia consciência, pois termina-se este ponto das Constituições bracarenses acrescentando que com os pregadores conhecidos do arcebispo, examinados por outros antístites, ou regulares aprovados pelos seus superiores, não se «usará destes rigores»28. Estes exames deviam ser efectuados de preferência pelo bispo, ou pelo menos na sua presença, ou então pelo provisor ou quem o antístite escolhesse29. Tal sublinha o poder episcopal neste domínio, o que igualmente se comprova pela disposição que impunha aos pregadores efectuarem a profissão de fé nas mãos do bispo ou do vigário geral, antes de pregarem, conforme breve de Pio IV (1559-1565), que muitas relembravam30. E pode comprovar-se que, pelo menos em algumas dioceses isso foi cumprido, como sucedeu, por exemplo, na de Viseu, enquanto foi governada por D. Jorge de Ataíde (1568-1578)31. Ver Constituiçoes synodaes do bispado do Porto (1687), 264. Sobre a mesma matéria são igualmente detalhadas as Constituições Synodaes (...) de Lisboa (1640), 221 e as Constituiçoes synodais do bispado da Goarda, 221. 26 Ver Constituiçoes synodaes do arcebispado de Braga, 313. 27 Cf. Constituiçoes synodaes do arcebispado de Braga, 313. 28 Cf. Constituiçoes synodaes do arcebispado de Braga, 313. 29 Ver, a título de exemplo, Constituições Synodaes (...) de Lisboa (1640), 221. 30 Ver, por exemplo, Contituiçoes synodaes do bispado do Algarve, 319. 31 Veja-se o termo seguinte: «Profissao da fe que fes Frei Manuel da Anunciação para pregar neste bispado. 24 25 14 Episcopado e pregação no Portugal Moderno: formas de actuação e de vigilância Para além dos exames, as Constituições impunham códigos de conduta a quem, a partir do ambão, difundia a palavra de Deus. Eram usuais apetrechos do arquétipo definido a modéstia, gravidade, autoridade, prudência, moderação, espírito conciliador. Nas Constituições de Leiria (1601) ordenava-se que os pregadores fossem «circunspectos e advertidos», e nas da Guarda (1686), lembravase ainda como o «procedimento exemplar é o melhor modo de pregação»32. Já as de Lamego recomendavam que os pregadores, antes de iniciarem a sua oratória sacra, não fizessem vénias ou saudações a eclesiásticos presentes no auditório, a não ser a legados papais ou bispos33. Eram ainda frequentes os pedidos para os párocos serem tratados com toda a cortesia e sem qualquer desconsideração ou reprimenda pública, não dizendo nada que os pudesse desmerecer aos olhos dos fiéis34. A matéria e forma da pregação também foram objecto de regulamentação. Em geral, exigia-se brevidade e clareza do discurso, por forma a evitar o tédio e mal entendidos da parte dos ouvintes. Estes deviam ser estimulados pelos pregadores a praticar as virtudes cristãs, a fugir das ocasiões propícias a pecar, a confessar e a comungar nos tempos de preceito35. Além disso, quase todas colocavam interditos aos pregadores. Que se abstivessem de narrar historietas humanas, profanas e anedotas que provocassem o riso, ou que fundassem os seus argumentos em livros apócrifos e fábulas poéticas, devendo antes alegar em abono das suas palavras com a Bíblia, Padres da Igreja e autores santos36. A disputa de heresias, mesmo que fosse para as combater, era igualmente proibida. E, sendo absolutamente indispensável, tal devia ser feito com toda a clareza e prudência, para evitar dúvidas nos ouvintes entre a verdadeira doutrina católica e o erro37. Na mesma linha, interditava-se a discussão de questões difíceis dos mistérios da religião cristã, e ainda as críticas dos poderes eclesiásticos e seculares38. Por vezes, surgem normas mais pontuais, como é o caso Ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil quinhentos e setenta e oito anos, aos vinte e sete dias do mes de Janeiro do dito ano, nos Paços Pontificais da Quinta e couto do Fontelo, estando ahi o reverendo padre e illustrissimo Senhor Dom Jorge de Ataide, bispo de Viseu, ante ele fez a profissão de fee na forma do Sagrado Consilio tridentino e bula de Pio IV, frei Manuel da Anunciação, religioso egresso dos menores de S. Francisco, da Custodia do Porto, e lhe mandou Sua Reverendissima passar licença para pregar e confessar neste bispado (...) foram presentes Baltazar de Chaves, porteiro de Sua Reverendissa, e Antonio da Silva, escrivão da câmara», cf. Arquivo Distrital de Viseu, Livro de Colações, nº 262/321, fl. 54. Muito agradeço ao mestre João Rocha Nunes a indicação desta informação. 32 Cf. Constituiçoes synodaes do bispado de Leiria, 87 e Constituiçoes synodais do bispado da Goarda, 220 e 222. 33 Ver Constituiçoes synodaes do Bispado de Lamego feitas pelo Bispo D.Miguel de Portugal publicadas e aceitas no synodo que o dito senhor celebrou em o anno de 1639 e agora impressas por mandado do illustrissimo e reverendissimo senhor D. Frei Luis da Sylva, Lisboa, Miguel Deslandes, 218. 34 Ver Constituiçoes synodais do bispado da Goarda, 220 e 222. 35 Ver, por exemplo, Constituiçoes synodaes do arcebispado de Braga, 312. 36 Ver, por exemplo, Constituiçoes synodaes do bispado do Porto (1687), 266. 37 Ver, por exemplo, Constituiçoes synodaes do bispado de Viseu (1684), 6. 38 Ver, por exemplo, Constituiçoes synodaes do arcebispado de Braga, 312-313. 15 José Pedro Paiva de disposição das Constituições de Portalegre (1630), as quais, invocando breve do papa Gregório XV, de 1622, não autorizavam sermões contra a puríssima Concepção de Nossa Senhora39. Este programa baseava-se nas disposições canónicas, conciliares e em bulas e breves papais de aplicação em toda a Igreja católica, fontes que eram regularmente citadas nos textos das Constituições. Tal como S. Paulo, o apóstolo da palavra, expressamente invocado nas de Lisboa de 1640, por exemplo, para legitimar a disposição de que ninguém podia pregar o Evangelho por autoridade própria40. E, apesar de não serem expressamente citadas, dada a natureza jurídica das Constituições, é natural que os bispos seguissem as propostas de alguns autores consagrados, campo onde a produção foi abundantíssima, conhecendose cerca de 200 títulos de retórica eclesiástica saídos dos prelos entre os séculos XVI e XVIII41. João Francisco Marques já identificou os manuais por onde vulgarmente se aprendiam os preceitos da eloquência sagrada, numa abordagem onde é perceptível alguma evolução de padrões/modelos seguidos, percurso que não é possível analisar aqui. Eram eles o De arte rethorica libri tres ex Aristotele, Cicerone et Quintiliano praecipue deprompti (1562), do jesuíta Cipriano Soarez, a Ecclesiasticae retoricae, sive de ratione concionandi libri sex (1576), do domínico Luis de Granada, o De ratione concionandi (1576), de frei Diogo de Estella, as Instruções da pregação da palavra de Deus (vertido pra português em 1763), do cardeal e arcebispo de Milão, Carlos Borromeu, os Diálogos sobre a eloquencia em geral e do pulpito em particular (tradução portuguesa de 1761), do abade Fénelon42. Com maior ou menor grau de detalhe as Constituições enquadravam ainda uma grande variedade de aspectos relacionados com a pregação nas dioceses. Um deles eram os tempos em que deviam ocorrer, proibindo-se em quase todo o lado que houvesse pregações de noite ou em simultâneo com momentos em que o bispo pregasse na Sé catedral43. Nas de Lamego, constatando-se a impossibilidade de haver oradores suficientes para fazerem sermões dominicalmente nas igrejas paroquiais, prescreve-se que pelo menos se fizessem no dia do orago da Igreja44. Nas de Lisboa, por exemplo, muito cuidadosas neste plano, estabelecia-se a norma de haver sermão durante a celebração da Eucaristia e após leitura do Evangelho, na Sé catedral todos os domingos e dias santificados, e na época da Ver Constituiçoes synodais do bispado de Portalegre, 5. Ver Constituições Synodaes (...) de Lisboa (1640), 220. 41 Valores referidos em Roberto RUSCONI, Rhetorica ecclesiatica. La predicazione nell´età post-tridentina fra pulpito e biblioteca in La predizazione in Italia dopo il Concilio di Trento (direcção de Giacomo MARTINA e Ugo DOVERE), Roma, Edizioni Dehoniane, 1996, 34. 42 Ver João Francisco MARQUES, Pregação, art. cit., 401. 43 Ver Constituiçoes synodais do bispado de Portalegre, 5. 44 Ver Constituiçoes synodaes do Bispado de Lamego, 219. 39 40 16 Episcopado e pregação no Portugal Moderno: formas de actuação e de vigilância Quaresma todos os domingos, quartas e sextas-feiras O mesmo se cumprindo nas localidades maiores do arcebispado, como Setúbal, Torres Novas ou Santarém. Já nas terras menores haveria sermão obrigatoriamente nas festas maiores de Cristo e de Nossa Senhora, e nos restantes dias isso dependeria da disponibilidade dos fiéis para pagarem o pregador45. A respeito destes vencimentos, a norma era na catedral serem as despesas suportadas pelos bispos, nas restantes igrejas pelos fiéis ou pelas confrarias, devendo ser sempre respeitados os costumes ancestrais das localidades46. Para além dos tempos definia-se quem devia dizer os sermões. Sempre nas Constituições de Lisboa, estabelecia-se cumprir ao arcebispo definir quem pregaria na Sé e nas paróquias, devendo ser respeitados costumes locais, e instruíam-se os párocos a pregarem aos Domingos e dias santificados aos seus fregueses, por si próprios quando tivessem qualidades para tanto, ou pagando de seu próprio bolso a um pregador47. Sendo isto inviável, deviam os párocos ler sermões já previamente redigidos e insertos em livro preparado pelo arcebispo de Braga, D. Frei Bartolomeu dos Mártires48. Competia aos visitadores apurar se estes preceitos se cumpriam, como se lembra nas Constituições da Guarda, nas quais se ordenava ainda a necessidade de pregar aos presos nos locais onde houvesse cadeias públicas e a proibição de realizar sermões de exéquias sem especial autorização do bispo49. A vigilância dos visitadores era também lembrada em alguns manuais de visita, instruindo-os a verificarem se os párocos e restante clero possuíam licenças de confessar e pregar, e se os púlpitos das igrejas estavam do lado direito do altar50. De igual modo era vedada a pregação de indulgências sem idêntica licença especial do prelado51. A regulação do ministério do púlpito por parte dos bispos também se efectuou através da promulgação de provisões e pastorais. Em geral, estas importantíssimas fontes para o conhecimento da actividade episcopal estão praticamente ignoradas, não existindo sequer inventários das ainda conservadas nos arquivos52. Todavia, a consulta não sistemática de alguma dessa produção a que foi possível recorrer na pesquisa efectuada, permite perceber que também por esta via os bispos Ver Constituições Synodaes (...) de Lisboa (1640), 221-222. Ver Constituiçoes synodaes do bispado do Algarve, 319. 47 Ver Constituições Synodaes (...) de Lisboa (1640), 283-284. 48 Sobre este livro ver infra o capítulo 3 deste estudo. 49 Ver Constituiçoes synodais do bispado da Goarda, 222-223. 50 Ver Lucas de ANDRADE, Visita geral que deve fazer hum prelado no seu bispado apontadas as cousas porque deve perguntar e o que devem os parochos preparar para a visita, Lisboa, Of. de João da Costa, 1673, 37 e 57. 51 Ver Constituiçoes synodaes do bispado de Viseu (1684), 6. 52 Constitui rara excepção a abordagem de síntese relativa à produção pastoral, normas do seu registo e difusão pelos prelados açorianos, entre 1693 e 1812, em Susana Goulart COSTA, Viver e morrer religiosamente. Ilha de São Miguel Século XVIII, Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada, 2007, 46-61. 45 46 17 José Pedro Paiva procuraram disciplinar a pregação. Quer reiterando disposições nalguns casos já vertidas em textos das Constituições, quer promulgando outras, por norma de cariz mais conjuntural. Por provisão de 3 de Novembro de 1564, D. Frei Bartolomeu dos Mártires instituiu que todos os abades, reitores, vigários e capelães que não fossem doutos em Sagrada Escritura, teologia ou cânones, nos domingos e dias de guarda lessem aos seus fregueses um dos sermões que o arcebispo propunha no livro que acabava de publicar, intitulado Cathecismo ou doutrina christã (1564)53. D. Teotónio de Bragança, arcebispo de Évora, ordenava em Junho de 1590 que todos pregadores no exercício da pregação não deixassem de lembrar aos fiéis como estavam obrigados a pagar os dízimos e primícias à Igreja, solicitando ainda aos prelados das congregações regulares que encarregassem os religiosos sob sua jurisdição a que procedessem de igual modo54. Provisão que torna claro um aspecto que parece muito importante: a utilização da rede de pregadores para a difusão e inculcação nas populações das mensagens oriundos do centro do governo da diocese, amplificando assim a sua capacidade de implantação territorial. Em 1607, o bispo de Coimbra D. Afonso de Castelo Branco emitiu uma provisão pela qual ameaçava tolher a licença para pregar a todos aqueles que não seguissem o modelo de pregação que detidamente apresentou55. No ano de 1630, D. Jorge de Melo, antístite de Miranda, rogava aos pregadores do bispado que exortassem os fiéis a, quando ouvissem um toque de sino que o prelado ordenara se fizesse em todas as paróquias, se ajoelhassem em suas casas e rezassem pelos agonizantes, lembrando-se «tambem que se am de ver naquella terrivel hora da morte em que nam ha mais que gloria para sempre ou condenação eterna (...)»56. D. João Melo, presidindo aos destinos da diocese conimbricense, ordenou uma pastoral, em 12 de Outubro de 1690, reconhecendo os inconvenientes de haver párocos que, durante a Quaresma, iam pregar para fora das suas paróquias, deixando-as e aos seus fiéis desamparados, pelo que proibia que durante aquela época do ano estes clérigos saíssem a pregar fora das respectivas freguesias57. Postura que deixa entender como alguns párocos/pregadores procurariam aumentar os Ver Cathecismo ou doutrina christã e praticas spirituaes pera se ler nas parrochias deste nosso arcebispado onde não ha pregaçam, Braga, Antonio de Mariz, 1564, fl. não numerado, antes do Proémio. 54 Cito o texto da provisão, cujo original se encontra na Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Évora (de agora em diante sempre BPADE) códice 5312, a partir de Pinharanda Gomes, O arcebispo de Évora D. Teotónio de Bragança (escritos pastorais), Braga, Ed. autor, 1984, 91-93. 55 Ver Archivio Segreto Vaticano (doravante ASV), Fondo Confalonieri, vol. 40, fl.126. 56 Cf. Arquivo da Diocese de Bragança/Miranda, Livro de capítulos de visita da freguesia de Santa Maria Madalena de Urrós, sem cota, fl. 57v-58. 57 Ver Arquivo da Universidade de Coimbra (a partir de agora sempre AUC), Livro de pastorais da igreja de Santa Justa (1690-1741), III/D, 1,3,5,238, fl. 9v. 53 18 Episcopado e pregação no Portugal Moderno: formas de actuação e de vigilância seus proventos por via do sermão, mesmo que isso implicasse a quebra do preceito da residência a que estavam obrigados. O bispo devia ser sensível a esta questão das receitas obtidas na pregação e estava consciente das querelas que, por vezes, estes pagamentos suscitariam. Por isso, na mesma carta pastoral, prescreve o modo como as confrarias deviam eleger e pagar aos pregadores por ocasião da Quaresma. Estas eleições deviam ser sempre presididas pelos párocos e, não se cumprindo até 15 de Janeiro de cada ano, o bispo reservava-se o direito de ser ele a nomear o pregador que efectuaria o sermão. Nas ilhas do Açores, o bispo D. António Vieira Leitão teve que enfrentar o laxismo com que os párocos e as abadessas dos mosteiros autorizavam a actividade dos pregadores nas paróquias e nas igrejas dos mosteiros, pelo que, através de provisão de 24 de Julho de 1710, mandou que uns e outras não consentissem pregadores desprovidos de licença sua, devendo igualmente os ouvidores zelar para que se cumprisse esta determinação58. Algumas posturas dificilmente se extirpavam. Era o caso das pregações e procissões celebradas durante a noite, repetidamente proibidas em várias dioceses após o Concílio de Trento. Assim sucederia no arcebispado de Lisboa, pelo que o patriarca D. Tomás de Almeida, por pastoral de 12 de Março de 1743, mandou que o sermão da Paixão «se faça na manha da sexta feira santa, acabado de se cantar o Evangelho delle, e que nas mais igrejas onde se costumava fazer sermão na noite da mesma sexta feira se pregue na tarde a horas competentes e igualmente se fechem as igrejas meya hora depois de se por o Sol»59. A ofensiva anti-jesuítica de meados de Setecentos também ficou expressa na pastoral episcopal. A 7 de Junho de 1758, D. José Manuel da Câmara, arcebispo lisboeta, suspendeu todos os padres da Companhia de poderem confessar e pregar no arcebispado60. Os escassos exemplos aduzidos, não tendo qualquer pretensão de exaustividade, para além de fornecerem dados úteis sobre a relação dos bispos com a pregação e iluminarem melhor este universo, procuram chamar a atenção para a premência de explorar este filão documental. 2. Bispos pregadores Os bispos, para além de, como acaba de se demonstrar, regulamentarem a actividade concionatória através das Constituições, provisões e cartas pastorais, 58 A pastoral está transcrita em Maria Fernanda Dinis Teixeira ENES, As visitas pastorais da matriz de São Sebastião de Ponta Delgada (1674-1739), Angra do Heroísmo, Secretaria Regional de Educação e Cultura, 1986, 223-224. 59 Cf. Colecção de pastoraes do Patriarcado (Miscelânea), fl. não numerado, pastoral 10 (o exemplar desta colecção consultado encontra-se em Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, cota: 3-11-4-204). 60 Colecção de pastoraes do Patriarcado (Miscelânea), fl. não numerado, pastoral 23. 19 José Pedro Paiva podiam ser eles próprios activos pregadores. Antes do Concílio de Trento raramente se envolviam pessoalmente neste ministério, tal como não era vulgar que administrassem outros sacramentos, incluindo o da ordem. O mais frequente era que tivessem auxiliares que o fizessem em seu nome. Assim procediam D. Jorge de Almeida, bispo de Coimbra (1482-1543) e o infante D. Afonso, bispo de Évora (1523-1540). Em 9 de Novembro de 1499 o primeiro lançou uma indulgência plenária por toda a diocese, destinada a recolher esmolas para a erecção de uma Confraria de Nossa Senhora da Sé, a fim de, com as receitas obtidas, dar maior dignidade ao culto da catedral. O magnífico altar-mor ainda ali existente, obra realizada por Olivier de Gand e Jean d´Ypres, terá em boa parte sido edificado com esses fundos61. Esta era, aliás, prática usual na Igreja de então. É célebre a indulgência lançada pelo papa Leão X, destinada a reedificar a basílica de S. Pedro, e que o dominicano Tetzel pregou em terras germânicas, episódio usualmente associado à eclosão da dissenção luterana62. Para aqui importa notar que a indulgência foi pregada na diocese de Coimbra por três pregadores enviados pelo prelado, um dos quais, tal como consta da provisão episcopal, era o «bacharel frei Tomás, nosso pregador»63. De modo semelhante agia o filho de D. Manuel I, cardeal e arcebispo-bispo D. Afonso. Quando, em 1537, empreendeu uma visita pastoral ao cabido da Sé de Évora, decidiu iniciar o acto com um sermão confiado a Francisco Frias, «nosso pregador», como se lhe referia64. Que este era o procedimento vulgar infere-se ainda através de uma carta que o rei D. João III escreveu ao cardeal D. Henrique, no ano de 1552, quando em Trento se iam definindo normas que alterariam esta prática. Nessa missiva, entre outros assuntos, o monarca recomendava ao seu irmão e arcebispo de Évora que ele tivesse a seu serviço bons pregadores, bons visitadores, bons vigários e oficiais de justiça65. E D. Henrique, por 1551-1552, chamara pregadores jesuítas e dominicanos para pregarem pelos campos, entre os quais o célebre Luis de Granada66. Alguns anos antes, em Dezembro de 1543, o arcebispo de Lisboa, Sobre o magnífico altar-mor ver Francisco Pato de MACEDO, O retábulo-mor da Sé Velha de Coimbra in Estudos sobre escultura e escultores do Norte da Europa em Portugal. Época Manuelina, (coordenação de Pedro DIAS), Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997, 213-234. 62 Ver J. ROGIER, R. AUBERT e M. KNOWLES (dir.), Nouvelle histoire de l’Église, Paris, Seuil, 1968, vol. 3, 59. 63 Cf. ANTT, Mitra Episcopal de Coimbra, maço 1, documento 2. 64 Cf. Arquivo do Cabido da Sé de Évora, Visita do cabido da Sé de Évora, no ano de 1537, CEC 5-X. Cito a partir da publicação da fonte efectuada por Isaías da Rosa PEREIRA, Subsídios para a história da Igreja Eborense Séculos XVI e XVII in Arquivos do Centro Cultural Português, 4 (1972), 187. 65 Ver IANTT, Colecção de S. Vicente, vol. 12, fl. 43-46. 66 Ver José Sebastião da Silva DIAS, Correntes de sentimento religioso em Portugal (séculos XVI a XVIII), Coimbra, Universidade de Coimbra, 1960, tomo II, 492. 61 20 Episcopado e pregação no Portugal Moderno: formas de actuação e de vigilância D. Fernando de Meneses Coutinho e Vasconcelos (1540-1564), em carta para o mesmo D. João III, gabava-se de ter sido o primeiro, enquanto era ainda bispo de Lamego, a enviar pela diocese «pregadores de verdade com os meus visitadores»67. Prática que o seu sucessor lamecense, D. Manuel de Noronha, teria perpetuado, e ainda em 1566 dava conta a D. João III de como aproveitava um religioso dominicano, frei Francisco Vilaça, nesse seu serviço68. O Concílio de Trento veio alterar este panorama. Ainda durante a sua primeira fase (1545-1547), na sessão V, capítulo II, depois de se afirmar que a pregação do Evangelho era a principal obrigação dos antístites, determina-se que «todos os bispos, arcebispos, primazes e todos os mais prelados das igrejas, estejão obrigados a pregar por si mesmos o Evangelho de Jesus Christo, não estando legitimamente impedidos»69. Por então, houve bispos com actuação modelar e que foram fonte de inspiração para tantos outros, os quais iniciaram o seu governo episcopal precisamente com actividades de predicação, como foi o caso de Gabriele Palleoti, no arcebispado de Bolonha, em 156670. Está insuficientemente conhecida a actividade concionatória dos bispos portugueses71. Mas não se duvide que os houve activos pregadores, tanto entre os oriundos do clero regular, como secular. É até de admitir que alguns tivessem alcançado a mitra, entre outros factores, como recompensa pelos dotes oratórios, os quais, decerto, não deixaram de empregar na condição de bispos72. O trinitário Manuel de Santa Luzia, ao narrar a biografia do seu correligionário D. Frei Luís da Silva, sucessivamente bispo de Lamego (1677-1685), Guarda (1685-1691) e Évora (1691-1703), num compreensível tom apologético, e retomando tópicos característicos deste género de textos, principia por afirmar Cf. Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Évora (de agora em diante sempre BPADE), Miscelanea com várias cópias de cartas, cod. CIII/2-26, fl. 206v. 68 Ver José Sebastião da Silva DIAS, Correntes de sentimento religioso, tomo II, 492. Aqui se transcreve carta de D. Manuel de Noronha para D. João III, de 12 de Abril de 1556. 69 Cito a partir de O sacrosanto e ecumenico Concílio de Trento em latim e portuguez, Lisboa, Francisco Luiz Ameno e Simão Thaddeo Ferreira, 1786, Sessão 5, cap. 2 (Dos pregadores da palavra de Deos e dos questores), tomo I, 85. O assunto voltou a ser reiterado na 3ª fase do Concílio (1562-1563), sessão XXIV, cap. IV, de Reformatione, tomo II, 275-279. 70 Ver Paolo PRODI, Il cardinale Gabriele Paleotti (1522-1597), Roma, Edizioni di Storia e Letteratura, 1959;1967, vol. II, 75. 71 Ao invés, abundam estudos centrados sobre a actividade de bispos italianos no domínio da pregação, principalmente no período pós-tridentino, ver, por exemplo: John W. O´MALLEY, Saint Charles Borromeo and the Praecipium Episcoporum Munus: his place in the history of preaching in San Carlo Borromeo. Catholic reform and ecclesiastical politics in the second half of the sixteenth century (direcção de John HEDLEY and John B. TOMARO), Washington; London, The Folger Shakespeare Library, 1988; Paolo PRODI, Il cardinale Gabriele Paleotti, sobretudo vol. II, 80-124; Massimo FIRPO, Vittore Soranzo vescovo ed eretico. Riforma della Chiesa e Inquisizione nell´Italia del Cinquecento, Roma-Bari, Laterza, 2006, 258-268; Paola NESTOLA, I grifoni della fede. Vescovi-inquisitori in Terra d´Otranto tra ´500 e ´600, Galatina (Lecce), Congedo Editore, 2008, 207-231 (onde se analisa a actuação de Braccio Martelli, bispo de Lecce). 72 Forneço alguns exemplos em José Pedro PAIVA, Os bispos de Portugal e do império 1495-1777, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2006, 377-78, 395 e 506. 67 21 José Pedro Paiva que ele foi um «excelente pastor», pois, sendo bispo de Lamego, pregou em todas as paróquias da diocese sendo sempre escutado com muita atenção73. Já no século XVIII, e apenas chegado ao Maranhão, D. Frei Manuel da Cruz confessa ter iniciado o seu governo da diocese com uma missão, durante a qual e ele e um jesuíta pregaram alternadamente, fazendo o mesmo em visita pastoral iniciada pouco depois74. Era possível trazer à colação muitos outros exemplos semelhantes. E tal não deveria espantar. É que não fora apenas Trento a determiná-lo. O próprio arquétipo do bispo que se enraizou a partir da segunda metade do século XVI, o qual tendeu a inspirar e enquadrar a actividade do episcopado desde então, também valorizou esta dimensão apostólica dos prelados. Acresce que, em Portugal, ele teve desde cedo a animá-lo e instigá-lo o luzeiro que foi a actuação e a obra do arcebispo bracarense D. Frei Bartolomeu dos Márires, nomeadamente o seu Stymulus pastorum (1565)75. Na impossibilidade de aqui propor uma visão sistémica, ou sequer de elencar todos os bispos que mais valorizaram esta função, socorramo-nos de um caso concreto, o qual, tomado a título de exemplo, configura um desempenho que não foi seguramente único. O eleito foi D. Afonso de Castelo Branco, prelado do Algarve (1581-1585) e, posteriormente, de Coimbra (1585-1615), o qual pregava muito e em vários locais76. Na Sé catedral, naturalmente, no Colégio da Companhia de Jesus, em autos-da-fé inquisitoriais. Em 1614 o próprio, que deveria ter o cuidado de anotar os sermões por si proferidos, confessa que nesse ano iria pregar na catedral pela décima quinta vez no dia da purificação de Nossa Senhora77. Anteriormente, no ano de 1602, contabilizara oito sermões por si feitos do púlpito da igreja do colégio jesuítico78. Aos estrados dos autos-da-fé já tinha subido seis vezes até 159679. E conhece-se ainda o texto de um sermão que Cf. IANTT, Manuscritos da Livraria, vol. 619 e 619A, cap. 44, trata-se de Epitome cronologico de varoens illustres religiosos Trinitarios dignos de eterna memoria pellas dignidades a que subirão por seus elevados merecimentos (1760). 74 Ver Museu da Inconfidência (Ouro Preto, Brasil), Copiador de algumas cartas particulares do excelentíssimo e reverendissimo senhor Dom frei Manuel da Cruz, bispo do Maranhão e Mariana (1739-1762), carta do bispo para fr. Gaspar da Encarnação, Maranhão, 29 de Agosto de 1740, carta nº5 (cito a partir da transcrição efectuada por Aldo Luiz LEONI, [Ouro Preto], [2004], texto policopiado. Muito agradeço a Patrícia Ferreira dos Santos, doutoranda na Universidade de S. Paulo, o ter-me disponibilizado um exemplar). 75 Sobre o assunto remetemos para José Pedro PAIVA, Os bispos de Portugal e do império, ed. cit., 132-143. O Stymulus foi publicado em versão bilingue, com introdução de Almeida Rolo, ver Bartolomeu dos MÁRTIRES, Estímulo de pastores, Braga, Movimento Bartolomeano, 1981. 76 Para um melhor enquadramento do assunto sugere-se a consulta de José Pedro PAIVA, A diocese de Coimbra antes e depois do Concílio de Trento: D. Jorge de Almeida e D. Afonso Castelo Branco in Sé Velha de Coimbra. Culto e Cultura. Ciclo de conferências 2003 Coimbra, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 2005, 225-253. 77 Ver ASV, Fondo Confalonieri, 39, fl. 498-99 (carta de 21 de Janeiro de 1614 a Giovanbattista Confalonieri). 78 Ver ASV, Fondo Confalonieri, 39, fl. 107 (carta de 21 de Janeiro de 1602 a Giovanbattista Confalonieri). 79 Ver ASV, Fondo Confalonieri, 33, fl. 160 (carta de 6 de Novembro de 1596 a Fabio Biondo). Um destes 73 22 Episcopado e pregação no Portugal Moderno: formas de actuação e de vigilância proferiu por ocasião da trasladação de um conjunto de relíquias80 da catedral conimbricense para o Mosteiro de Santa Cruz. O prelado, por norma, não escrevia o que perorava do púlpito. Em carta de 1596 compartilha com o seu interlocutor que se «tivera as pregaçois que tenho feitas escritas fizera-se hum bom volume»81. Teria ainda o hábito de colher nos livros de autores santos os argumentos por si espendidos, sendo muito caústico com aqueles que gostavam de arvorar ideias pessoais: «eu nao costumo pregar senão a doutrina dos Santos porque o bom que os pregadores dizem he seu e as parvoices que muitas vezes ouvimos e dizemos são nossas»82. Mas o mais eloquente testemunho do modelo de pregação por si seguido é uma carta pastoral, datada de 9 de Fevereiro de 160783. Ela tinha como destinatários os pregadores seculares e regulares, e parte da premissa de acordo com a qual a pregação era um instrumento importantíssimo para a «salvação das almas». Por conseguinte, na lógica argumentativa do prelado, exigiam-se pregadores com qualidades e virtudes. E quais eram elas aos olhos do bispo conimbricense? «letras com christandade, autoridade sem ambição e estilo puro e considerado, mas também obras santas e vida exemplar». Assim munido, o pregador, não devia utilizar o púlpito para ensinar «coisas novas e levianas», mas antes «autênticas, antigas e conformes à doutrina dos santos». No fundo, devia observar a estrita ortodoxia propalada pela Igreja, pelos apóstolos e pelos seus santos. Os exemplos de santos e apóstolos, sobretudo S. Paulo, são apresentados como guias do pregador. Estes deviam possuir três virtudes, de acordo com os ensinamentos de S. Paulo: «alegria afervorada e caridosa com ousadia no que é proveitoso a encaminhar os homens ao Céu; bom entendimento e prudência no saber escolher o bom e dar de mão o mau, e ânimo pronto e disposto pera sofrer tudo pela honra de Deus e bem do próximo, sermões foi dado à estampa, ver Manuel Augusto RODRIGUES, D. Afonso de Castelo Branco, estudante da Universidade de Coimbra, bispo do Algarve e de Coimbra – a sua concio num auto de fé in Boletim do Arquivo da Universidade de Coimbra, XV-XVI (1995-96), 1-71. 80 O texto do eloquente sermão foi publicado em Relaçam do solenne recebimento das santas reliquias que forão levadas da See de Coimbra ao Real Mosteyro de Santa Cruz, Coimbra, Casa de Antonio Mariz, 1596, fl. 58v-76v. Muito agradeço ao Doutor José Adriano Freitas de Carvalho a indicação deste texto e a generosa oferta de uma cópia do exemplar de que é proprietário. 81 Cf. ASV, Fondo Confalonieri, 39, fl. 25 (carta de 20 de Setembro de 1596 a Giovanbattista Confalonieri). O célebre arcebispo Carlo Borromeo fazia esquemas em árvore com a estrutura dos seus textos, ver Samuele GIOMBI, La predicazione di San Carlo: fonti, metodo, stili in Carlo Borromeo e l´opera della «grande riforma». Cultura, religione e arti del governo nella Milano del pieno Cinquecento (dir. de Franco BUZZI e Danilo ZARDIN), Milano, Silvana Editoriale, 1997, 75. Já Gabriele Paleotti, que teria proferido mais de 700 sermões em vulgar e também latinos, por vezes faria esquemas, mas outras escreveria o texto integral, ver Paolo PRODI, Il cardinale Gabriele Paleotti, sobretudo vol. II, 81-85. 82 Cf. Paolo PRODI, Il cardinale Gabriele Paleotti, ed. cit. Esta afirmação do prelado pode comprovar-se pelos sermões de sua autoria actualmente conhecidos, nos quais abundam citações de santos, ver, por exemplo, o há pouco referido Relaçam do solenne recebimento das santas reliquias..., repleto de referências a Santo Agostinho, S. Jerónimo, S. João Crisóstomo, S. Cipriano, S. Gregório, etc. 83 O original manuscrito, em tradução italiana, encontra-se em ASV, Fondo Confalonieri, 40, fl. 126. 23 José Pedro Paiva sendo isto o principal e mais insigne na pregação, porque Cristo Nosso Senhor não foi honrado do Padre Eterno por fazer milagres entre os homens mas para sofrer desonras por amor deles». Dito isto, e revelando conhecer a actividade concionatória que se realizava na sua diocese, D. Afonso Castelo Branco afirma que muitos pregadores não seguiam estes preceitos, enumerando algumas das falhas que mais regularmente seriam cometidas, como dizerem mal uns dos outros, louvarem mais a alguns santos do que a outros, exporem nas suas prédicas doutrina própria e não a recomendada pelos padres da igreja e pelos santos. Por isso, para finalizar, determina que, futuramente, todos os que não seguissem o padrão enunciado na pastoral seriam proibidos de pregar nas igrejas do bispado e também nas dos mosteiros ou conventos regulares, invocando para o efeito explicitamente jurisdição que lhe era conferida pelo Concílio de Trento84. Este era o programa de pregação do bispo de Coimbra. Conhecer outros, inclusivamente através dos sermões que proferiram e ficaram impressos em letra de forma, ajudará a definir melhor como se comportariam os bispos nos púlpitos. 3. Os tempos e os modos da pregação Os tempos e as ocasiões da pregação estimulada pelos bispos eram frequentes, criando tamanha densidade que a palavra do pregador e a visão dos púlpitos era um exercício muitíssimo comum na vida dos fiéis. João Francisco Marques já disse, e bem, que havia dois ciclos de pregação. Uma ordinária «confinada no calendário litúrgico à própria do tempo desde o Advento ao último Domingo depois do Pentecostes, com as celebrações dos mistérios de Cristo e da Virgem, e as festas obrigatórias do santoral», e uma outra dita extraordinária, composta pelos sermões de exéquias, gratulatórios, deprecatórios e penitenciais85. Os antístites também foram activos estimuladores na pregação. Desde logo, na celebração da missa, na fase designada por estação, a qual, como claramente explicou o mesmo João Francisco Marques, se encontrava dividida em três partes. Na primeira, deviam efectuar-se preces várias, na segunda avisos e anúncios tidos por necessários, a terceira «era preenchida pela instrução que os pastores de almas deviam fazer aos fiéis sobre as verdades e preceitos da religião»86. E muitas Constituições diocesanas pós-tridentinas determinavam aos párocos para assim procederem87. O que contrasta com tese defendida por alguma historiografia, segundo a qual a legislação tridentina, no fundo, pouco teria modificado os privilégios de isenção da autoridade episcopal dos pregadores das ordens regulares, como sustenta, por exemplo, Roberto RUSCONI, Predicatori e predicazione (secoli IX-XVIII) in Storia d´Italia. Annali 4 (direcção de Corrado VIVANTI), Torino, Giulio Einaudi, 1981, 1000. 85 Cf. João Francisco MARQUES, O púlpito barroco português e os seus conteúdos doutrinários e sociológicos – a pregação Seiscentista do Domingo das Verdades in Via Spiritus, 11 (2004), 111. 86 Cf. João Francisco MARQUES, Pregação, art. cit., 394. 87 Ver, por exemplo, Constituiçoes synodaes do bispado do Porto (1585), fl. 55v-57. 84 24 Episcopado e pregação no Portugal Moderno: formas de actuação e de vigilância Festas religiosas, romarias, visitas pastorais, missões eram outras tantas ocasiões propícias ao sermão, que assuntos da vida política do Reino também podiam estimular. A este último respeito é bem conhecida e solidamente estudada a parenética portuguesa do período filipino e dos primórdios da Restauração88. Mas os bispos podiam pregar noutras circunstâncias da vida política. Assim o fez, por exemplo, D. Manuel Afonso Guerra, bispo de Cabo Verde, em Lisboa, por ocasião da vinda de D. Felipe II a Portugal, em 161989. Situações extraordinárias no plano religioso também alimentaram este campo. Na noite de 15 para 16 de Janeiro de 1630 ocorreu em Lisboa um desacato praticado sobre o Santíssimo Sacramento que se encontrava na Igreja de Santa Engrácia. Isso desencadeou forte reacção do arcebispo lisboeta, D. Afonso Furtado de Mendonça. Logo a 18 do mesmo mês, promulgou uma carta pastoral para condenar o acto e reforçar a adoração e respeito pelo culto da hóstia consagrada. Nela, depois de verberar os «hereges» que teriam cometido tão horrendo acto, e de realçar a importância deste culto, estipulou que se repusesse o Santíssimo na igreja de Santa Engrácia com toda a solenidade, «para maior confusão dos herejes». Ordenou ainda uma série de actos de desagravo que deviam principiar por um otaviário na Sé catedral, a 20 de Janeiro, com missa solene e uma pregação pela manhã, todos os dias até Domingo, dia 27 de Janeiro. Ou seja, sete dias consecutivos de pregação. No dia 20, após a eucaristia celebrada na catedral, far-se-ia uma procissão com todo o clero, religiões e nobreza até Santa Engrácia, onde se iniciaria outro otaviário com missa solene e pregação diária até Domingo, 3 de Fevereiro, data em que o arcebispo celebraria em Santa Engrácia missa solene de pontifical. Isto é, mais um ciclo de sete dias de pregação quotidiana. E desde esse dia em diante encomendava que em todas as igrejas da cidade se expusesse com toda a «decencia, ornato e pompa» o Santíssimo Sacramento, concedendo 40 dias de indulgência a todos os fiéis que participassem nesta procissão, ouvissem as pregações e rezassem nas igrejas com o Santíssimo exposto, pedindo ao Senhor «a conservação e exaltação da Santa Fé Catholica e extirpação das heresias»90. O sermão era acontecimento vulgar, banal, tanto mais sabendo-se que só na Sé, por ordem dos bispos, eram quase uma rotina. Em Évora, por exemplo, o Ver João Francisco MARQUES, A parenética portuguesa e a dominação filipina, Porto, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1986 e, do mesmo autor, A parenética portuguesa e a Restauração 1640-68: a revolta e a mentalidade, Porto, INIC, 1989. 89 O qual foi prontamente dado à estampa: Sermon que Don Manuel Alfonso de Guerra, obispo de Santiago de Caboverde, predicó al Rey nuestro señor, dia de Santiago, en la ciudad de Lisboa, en el monaterio de los Santos de las comendadoras de Santiago que fue el primer sermon que su Magestad oyò en esta ciudad y su entrada, Lisboa, Pedro Craesbeeck, 1619. 90 Cf. Colecção de pastoraes do Patriarcado (Miscelânea), fl. não numerado, pastoral 4 (o exemplar consultado desta colecção encontra-se em Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, cota: 3-11-4-204). 88 25 José Pedro Paiva arcebispo D. Alexandre de Bragança (1602-1608) promovia na catedral pregações todos os domingos, festas e dias santos de guarda. Além disso, durante todo o ciclo da Quaresma havia pregação todas as Quartas e Sextas-feiras, para o que a mesa episcopal pagava esmolas e o arcebispo contratava pregadores de diversos institutos religiosos91. De igual modo, devia haver sermões todos os domingos nas igrejas paroquiais, tarefa que o bispo de Lamego, D. Frei Luís da Silva (16771685), assumia ser impraticável, por não haver pregadores para todas, pelo que essa obrigação ficava a cargo dos párocos92. Se os prelados contribuíam para alimentar a torrente sermonária, não deixavam de propor os modos como se deviam efectuar as pregações. No fundo, estas disposições também constituiriam fonte de aprendizagem e inspiração para os pregadores - tal como os manuais de retórica, os breviários, os Evangelhos, os textos de padres da Igreja e de santos - nos quais os próprios bispos também se inspirariam para instruir os pregadores das suas dioceses. Desde meados do século XVI que alguns antístites se empenharam nesta tarefa. No arcebispado de Évora, por 1551, o cardeal D. Henrique teria mesmo pedido a Luís de Granada que elaborasse um homiliário acessível aos párocos menos cultos, onde se reunisse um conjunto de textos adaptados a serem lidos aos fiéis nas missas de Domingo93. O dominicano solicitou, numa primeira fase, ao seu correligionário frei Juan de la Cruz que o elaborasse. Tal deu origem aos Treynta y dos sermones en los quales se declaran los mandamientos de la Ley, articulos de fe y sacramientos con otras cosas provechosas (...) (1558). Numa segunda etapa, o próprio Granada compôs o Compendio de Doctrina christãa (1559), onde incluíu treze sermões já preparados para as principais festas do ano94. Por sua vez, em Braga, pela mesma época, e apenas regressado do Concílio de Trento, o arcebispo D. Frei Bartolomeu dos Mártires, também ele um dominicano, tomou medidas idênticas, ao preparar e publicar o Cathecismo ou doutrina christã (1564). No Proémio, explicitou os motivos instigadores desta obra. Invocando Ver ASV, Congregazioni Concilio, Relationes Dioecesium, vol. 311, fl. 86v (relatório da visita ad limina de Dezembro de 1605). Ver Constituiçoes synodaes do Bispado de Lamego, 219. 93 Sigo Maria Idalina Resina RODRIGUES, Fray Luis de Granada y la literatura de espiritualidad en Portugal (1554-1632), Madrid, Universidad Pontificia de Salamanca, 1988, 794. Anos depois, a partir de 1572, em Milão, também o famoso arcebispo Carlo Borromeo solicitava a Agostino Valier, bispo de Verona, uma selecção de homilias dominicais que se pudessem publicar e, assim, servir de modelo inspirador ao clero, e o mesmo arcebispo, no 3º concílio provincial de Milão (1573) ordenou umas Instructiones praedicationes verbi Dei, que funcionou como pequeno tratado modelar da forma de pregar, medida semelhante à tomada noutras dioceses italianas por vários prelados como Gian Matteo Giberti (Verona), Marcello Cervini (Gubbio), ou Gabriele Paleotti (Bolonha). Ainda Borromeo, teria solicitado a Luis de Granada um conjunto de sermões para o clero, tal como fez D. Henrique, ver Samuele GIOMBI, La predicazione..., art. cit., 71-73. 94 Para uma análise das temáticas e estratégias de argumentação e persuasão utilizadas pelo dominicano nos sermões ver Maria Idalina Resina RODRIGUES, Frei Luís de Granada. Sermões para o povo português in Via Spiritus, 11 (2004), sobretudo 34-43. 91 92 26 Episcopado e pregação no Portugal Moderno: formas de actuação e de vigilância a autoridade de S. Bernardo, recordou que os «pastores de almas» estavam obrigados a apascentar a grei com três modos de «pasto», a saber, oração, doutrina e exemplo95. Isto dito, e revelando um profundo conhecimento da diocese que comandava, lamentou o desconsolo da pregação no seu tempo, constatando como a maior parte dos párocos eram negligentes, «e se alguns dizem algumas palavras, sam de maneyra que nam pegam nem fazem fructo, nem edificam as consciencias, nem acendem faisca algua de devaçam ou de bom proposito nos corações dos ouvintes, antes tam frios e distrahidos se tornam acabada a missa como entraram na ygreja». E prosseguiu considerando essa uma das situações mais lastimosas da Igreja: «Esta he huma das cousas que se muyto deve chorar na Igreja de Deos, mayormente na igrejas dos montes e logares onde nunca ou muy poucas vezes ha pregaçam. Os fregueses das quaes nunca ouvem outra palavra de Deos, nunca ouvem outra doutrina senão a que lhes diz seu cura ao Domingo»96. Expôs, de seguida, o objectivo destas pregações: «alevantar os sentidos distraidos», «despertar a memória para as coisas da salvação», «alumiar o entendimento» e «aquecer a vontade no amor de Deus e de Jesus Cristo». No fundo, o que os párocos deviam fazer na pregação, a seu juízo, não era discorrer sobre grandes doutrinas ou conceitos, que nem eles nem os seus ouvintes entenderiam, «mas huas doutrinas moraes, trazendo-lhe à memoria a paixam de Nosso Senhor Jesu Christo, exortando-hos ao amor das vertudes e odio dos peccados, a temor da morte, do juizo, do inferno e a esperança do Paraiso»97. Preceituário que, como bem viu Jean Delumeau, assentava numa lógica que visava atemorizar as consciências com a maldição do pecado e a dureza eterna e implacável dos castigos que Deus cominaria aos pecadores, para depois as aliviar através da doçura do discurso da salvação e das delícias de uma eternidade beatífica que aguardava os justos no além98. Mas também linha que se inseria no preceituário de bispos contemporâneos, como Borromeo e Paleotti, a qual preceituava uma pregação mais moralística e devocional do que teológica ou polemizante99. Foi com estes desideratos que Bartolomeu dos Mártires preparou este Catecismo, o qual era composto por duas partes. Na primeira expunha-se a doutrina que os párocos deviam ler/ensinar nos dias em que não houvesse sermão preparado na Cf. Bartolomeu dos Mártires, Cathecismo ou doutrina christã, Braga, Antonio de Mariz, 1564, fl. não numerado do Proemio. 96 Cf. Bartolomeu dos Mártires, Cathecismo ou doutrina christã, Braga, Antonio de Mariz, 1564, fl. não numerado do Proemio. 97 Cf. Bartolomeu dos Mártires, Cathecismo ou doutrina christã, Braga, Antonio de Mariz, 1564, fl. não numerado do Proemio. 98 Ver Jean DELUMEAU, La péché et la peur. La culpabilisation en Occident XIII-XVIII siécle, Paris, Fayard, 1983, sobretudo 369-547 e Jean DELUMEAU, Rassurer et protéger. Le sentiment de securité dans l´Occident d´autrefois, Paris, Fayard, 1989, sobretudo, 33-398. 99 Ver Samuele GIOMBI, Dinamiche della predicazione cinquecentesca tra forma retorica e normativa religiosa in Cristianesimo nella Storia, XIII/1 (1992), 79-81. 95 27 José Pedro Paiva segunda parte. Nesta, apresentavam-se 29 sermões já prontos para os curas lerem aos fiéis nos dias preceituados do Advento, Quaresma, Ramos, Pentecostes, Purificação de Nossa Senhora, Nascimento de S. João Baptista, etc. São breves práticas, que durariam cerca de 10 a 15 minutos cada. Apesar de se dizerem «simples», todavia, elas eram demasiado complexas para o auditório a quem se dirigiam, o qual era, maioritariamente, composto por analfabetos. Entendo que poucos as perceberiam integralmente, tanto pela substância, como até pela linguagem. Mas este era um projecto que estava em clara sintonia com as directivas que neste domínio eram seguidas em Itália por bispos com os quais o arcebispo bracarense mantinha trocas epistolares, como eram Carlos Borromeo e Gabriele Palleoti, os quais defendiam uma pregação simples, inspirada no Evangelho e frequente, a ser praticada pelos párocos. Estes conheciam os fiéis e os seus vícios e, por isso, podiam instrui-los com mais proveito do que os pregadores itenerantes das ordens regulares, cujo fruto sobre a vida dos fiéis estes antístites consideravam ser escasso100. A obra teve o maior sucesso, bem visível nas sucessivas edições que foram saindo dos prelos. Algumas Constituições das dioceses, inclusivamente, como as de Lisboa de 1640, prescreviam que se os párocos não tivessem capacidade para pregar podiam ler aos fiéis um sermão do Catecismo101. Mais tarde, durante a primeira metade do século XVIII, alguns bispos ligados à corrente de renovação conhecida por jacobeia revigoraram o zelo da pregação102. É certo que nem todos. A análise da vasta produção pastoral de D. Frei Valério do Sacramento, bispo de Angra (1738-1755), não revela qualquer particular cuidado com a pregação. Ao invés, muito com a confissão103. Na linha, aliás, do que já havia sido notado em estudos realizados para Itália104. Não foi esse o rumo de D. Miguel da Anunciação, bispo de Coimbra (17401779). Este, em longa pastoral de 14 de Outubro de 1741, a primeira por si divulgada após aceder ao episcopado, insurgiu-se contra as galas retóricas e a favor de uma pregação inspirada no Evangelho e nos Padres da Igreja, propugnando que nos sermões dos santos o essencial era pregar as suas virtudes. Por isso instava todos os pregadores, tanto seculares como regulares, a colocarem Cristo, 100 Ver Roberto RUSCONI, Predicatori e predicazione, art. cit., 1002 e, sobretudo, Paolo PRODI, Il cardinale Gabriele Paleotti, ed.cit., vol. II, 91-93, onde se encontra carta do arcebispo de Milão para Paleotti na qual estas directivas são enunciadas com toda a clareza. 101 Ver Constituições Synodaes (...) de Lisboa (1640), 284. 102 Sobre as características da corrente ver António Pereira da SILVA, A questão do sigilismo em Portugal no século XVIII. História, religião e política nos reinados de D. João V e de D. José I, Braga, Tip. Editorial Franciscana, 1964, 122-139 e Evergton Sales SOUZA, Jansénisme et réforme de l´Église dans l´empire portugais 1640 à 1790, Paris, Centre Culturel Calouste Gulbenkian, 2004, 194-201. 103 A colecção das suas pastorais pode consultar-se em Susana Goulart COSTA, Viver e morrer religiosamente. Ilha de São Miguel Século XVIII, Ponta Delgada, 2003 (tese de doutoramento em História apresentada à Universidade dos Açores, vol. III (Apêndice documental), 36-99. 104 Ver Michelle MANCINO, Licentia confitendi, sobretudo 60 e 67. 28 Episcopado e pregação no Portugal Moderno: formas de actuação e de vigilância o Cristo da Paixão, no centro da sua pregação, e a não a comporem «de periodos artificiosos e affectadas clausulas, que fazendo consonancia aos ouvidos, não penetrão os corações, mas de razões vivas e eficazes fundadas na Scriptura Sagrada e autoridades dos Santos Padres, que alumeando os entendimentos e excitando as vontades para o bem, movem os ouvintes aos gemidos, ao arrependimento dos peccados, ao odio dos vicios, à pratica e exercicio da virtudes, argoindo humas vezes, rogando outras, e outras reprehendendo com toda a prudencia e doutrina conforme o ditame do Apostolo»105. No fundo, um programa bem semelhante ao que D. frei Bartolomeu dos Mártires propusera, como se viu, ou que Carlo Borromeu praticara em Milão106. Anos depois, em 13 de Agosto de 1751, em nova pastoral na qual aborda matéria da pregação, exorta a que esta seja utilizada como instrumento de preparação dos fiéis para a boa recepção dos sacramentos da confissão e da comunhão107. Os códigos de pregação, não se duvide, também foram marcados pelas directivas episcopais, aspecto ao qual não tem sido conferido o devido realce na produção histórica. 4. Vigiar e castigar pregadores insubmissos Na mais recente síntese sobre a aplicação da reforma católica em Portugal, Federico Palomo, ao abordar o tópico da pregação, pertinentemente sublinhou como, neste domínio, as medidas tomadas pelo episcopado visaram, por um lado, reforçar os dispositivos de vigilância sobre os pregadores e suas competências, e por outro (como se tem também demonstrado no presente estudo) assegurar que nas igrejas paroquiais os párocos pregassem durante as homilias, dotando-os de instrumentos que os auxiliassem nesta tarefa108. A vigilância da actuação dos pregadores por parte dos bispos, tal como a afirmação da importância da sua pregação pessoal, estiveram no centro das decisões tomadas pelos conciliares tridentinos em matéria de pregação. Os decretos, de facto, determinaram competir aos prelados inspeccionar se os párocos Cf. AUC, Livro de pastorais da igreja de Santa Justa (1690-1741), III/D, 1, 3, 5, 238, fl. 37-37v. Para uma análise mais ampla da pastoral do bispo ver Manuel Augusto RODRIGUES, As preocupações apostólicas de D. Miguel da Anunciação à luz das suas cartas pastorais, in Separata das Actas do Colóquio “A mulher na sociedade portuguesa”, Coimbra, [s.n.], 1985 e João E. Pimentel LAVRADOR, Pensamento teológico de D. Miguel da Anunciação. Bispo de Coimbra (1741-1779) e renovador da diocese, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 1995. 106 Para uma análise mais detalhada do modelo do sermão praticado por Borromeu ver Samuele GIOMBI, La predicazione..., art. cit., 75-77. 107 Ver João E. Pimentel LAVRADOR, Pensamento teológico, 188-189. 108 Ver Federico PALOMO, A contra-reforma em Portugal, ed. cit., 78. A mesma proposta, um pouco mais desenvolvida em Federico PALOMO, Fazer dos campos escolas excelentes. Os jesuítas de Évora e as missões do interior em Portugal (1551-1630), Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian; Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2004, 293-298. 105 29 José Pedro Paiva pregavam aos domingos e festas solenes aos seus fiéis, prevendo, inclusivamente, a possibilidade de poderem retirar aos negligentes uma porção do seu benefício para o dar a outrem que por ele exercitasse esta incumbência109. Estipularam ainda ser obrigação prelatícia verificar se os ministros da palavra, mesmo os regulares, «pregam erros» ou até heresias e, fazendo-o, poderiam privá-los de confessar e proceder contra eles «conforme o direito»110. Na guerra de palavras com o mundo protestante, os púlpitos eram entendidos como lugar decisivo de comunicação. Não só para alimentar na vontade e verdadeira fé os fiéis católicos, como para combater o dissídio e as heresias protestantes. Ainda que isso devesse ser ministério confiado aos mais aptos e celebrado com a máxima prudência. Não foram apenas as normas conciliares a pressionar o episcopado. A Coroa, de igual modo, em especial nos momentos de fractura política, percebeu o relevo da parenética e reclamou aos bispos apertada vigilância. Em 20 de Abril de 1580, numa época nevrálgica para a questão da sucessão dinástica em Portugal, a Junta de governadores do Reino escreveu cartas a todos os prelados, pedindolhes que fizessem respeitar as decisões tomadas em cortes, e que prevenissem gestos imprudentes de apoio a qualquer candidato ao trono, reclamando especial alerta sobre pregadores111. E muitos tê-lo-ão cumprido. D. Frei Bartolomeu dos Mártires, a 11 de Maio desse ano, emitiu provisão pela qual proibiu que os pregadores nos sermões dessem «ocasiões a escandalos», tomando partido por algum dos candidatos112. Na mesma conjuntura, Cristóvão de Moura, um dos mais activos representantes de D. Felipe II, informava-o de que pedira ao arcebispo de Lisboa, D. Jorge de Almeida (1569-1585), para ele repreender um religioso que dizia dos púlpitos que quem morresse combatendo os castelhanos tinha destinado o Céu113. E no centro político havia quem percebesse bem o poder de sedição que podia estar associado à palavra dos pregadores. Em 1637, durante o ciclo da integração de Portugal na monarquia hispânica, e precisamente numa altura de grande agitação popular e contestação à governação filipina, o Duque de Olivares expressava em consulta ao monarca que «os pregadores são os caudilhos de todas as sedições do mundo»114. Ver O sacrosanto e ecumenico Concílio de Trento, tomo I, 87. Cf. O sacrosanto e ecumenico Concílio de Trento, tomo I, 89. Esta matéria da jurisdição dos bispos sobre os regulares foi plano de acesa disputa em Trento, tendo-se ali confrontado duas linhas. Uma defensora do reforço dos poderes episcopais e outra que procurava preservar o espaço de autonomia jurisdicional das ordens religiosas, questão atentamente examinada em Giuseppe ALBERIGO, I vescovi italiani al Concilio di Trento (1545-1547), Firenze, G. C. Sansoni, 1959, 291-335. 111 Ver João Francisco MARQUES, A parenética portuguesa e a dominação filipina, ed. cit., 46. 112 Cf. João Francisco MARQUES, A parenética portuguesa, ed. cit., 323. 113 Carta de 9 de Maio de 1580, já referida por José Maria de Queirós VELOSO, O interregno dos governadores e o breve reinado de D. António, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1953, 76. 114 Cito a partir de Fernando NEGREDO DEL CIERRO, Teoria política y discurso eclesiástico. Una visión desde la pastoral barroca in De Re Publica Hispaniae. Una vindicación de la cultura política en los 109 110 30 Episcopado e pregação no Portugal Moderno: formas de actuação e de vigilância É certo que teria havido antístites menos escrupulosos, passivos e laxistas na inspecção da actividade dos pregadores. Em 1580, por exemplo, os cónegos do cabido de S. Tomé, denunciaram à Inquisição de Lisboa o bispo D. Martinho de Ulhoa (1578-1592), acusando-o, entre outras graves queixas, que ele concedera licença de pregar ao seu vigário geral, o qual, no dizer dos capitulares, não «tinha letras», ignorava o latim e mal sabia ler115. Mas abundam exemplos de prelados que responderam activamente ao que deles se reclamava. Apesar da dificuldade da tarefa, quanto mais não fosse pela amplitude territorial de algumas dioceses. Em 1543, ainda antes de Trento, portanto, alguns, mais informal e pontualmente, já o fariam. Em Dezembro desse ano, o arcebispo lisboeta D. Fernando de Meneses Coutinho e Vasconcelos teve mesmo que explicar ao rei porque proibira um religioso agostinho, do Convento da Graça de Lisboa, de pregar na cidade, uma vez que quem lhe encomendara os sermões fora o próprio monarca. Explicou não ter sido sua intenção afrontar D. João III, quisera apenas saber o que pregava o tal frade, e porque isso lhe não foi esclarecido, tomara a decisão de o proibir de pregar116. D. José de Melo, arcebispo de Évora (1611-1633), prelado muito activo neste campo, mandou imprimir uma pastoral, datada de 15 de Outubro de 1629, proibindo todo e qualquer pregador de actuar no arcebispado sem sua licença. Para se assegurar do seu efectivo cumprimento, determinou que todos os anos o escrivão da câmara eclesiástica elaborasse um rol das pessoas que possuíam licença para pregar válida, o que demonstra a existência de mecanismos activos para vigiar os pregadores e, simultaneamente, a proliferação de casos anómalos que o prelado desejava evitar117. No mesmo arcebispado, desta vez um prelado ligado à já referida corrente da jacobeia, D. Frei Miguel de Távora (1740-1759), promulgou uma pastoral, em 1 de Abril de 1746, na qual afirmava ter pessoalmente feito «hum rigoroso e universal exame» de todos os párocos, pregadores e confessores, «a fim de desterrar dos púlpitos e confessionarios a ignorancia que tão perniciosa he em os ministros da Igreja»118. E havia até modos mais rigoristas, como o praticado pelo carmelita descalço reinos ibéricos en la primera modernidad (direcção de Francisco José ARANDA PEREZ e José Damião RODRIGUES), Madrid: Silex Ediciones, 2008, 271 (tradução minha). 115 Cito a partir de António BAIÃO, A Inquisição em Portugal e no Brazil. Subsídios para a sua história, Lisboa, Of. Tip. – Calçada do Cabra, 7, 1906, 238. 116 Ver BPADE, Miscelanea com várias cópias de cartas, cod. CIII/2-26, fl. 205v-206, fólios contendo cópia da missiva do rei que o repreende e da resposta do prelado. 117 BPADE – Pastorais e provisões de bispos de Évora D. Alexandre (1603-1608) e D. José de Melo (1611-33), códice CIX/2-9, fl. não numerado. 118 Cf. ASV, Archivio della Nunziatura Apostolica in Lisbona, vol. 21 (3), fl. 38. 31 José Pedro Paiva D. Frei João da Cruz, bispo de Miranda (1750-1756), o qual anulou todas as licenças de pregar emitidas pelos seus predecessores, exigindo o reexame dos pregadores por si ou pelos seus ministros119. As licenças atribuídas aos pregadores na sequência destes exames deviam ser ciosamente guardadas pelos seus titulares. Não só para fazer prova da sua legitimidade para pregar nesta ou naquela diocese, como até para demonstrar excelsas competências. O futuro bispo do Funchal, o franciscano D. Frei José de Santa Maria de Saldanha (1690-1696), por exemplo, incluiu no seu processo consistorial, destinado a ser provido como bispo, o registo da autorização de um superior da sua religião para pregar, e todas as licenças de bispos que o tinham autorizado a fazê-lo por várias dioceses do Reino120. O que é outro indício demonstrativo da vigilância episcopal. E não se duvide que a ostentação destas licenças conferia, objectivamente, um estatuto de legitimação ao seu titular. Um curandeiro açoriano, procurou argumentar no Santo Ofício que o seu modo de curar «endemoninhados» não era proibido, porque, certo dia, o vigário da sua terra o vira actuar e lhe dissera que, como era confessor e pregador aprovado, podia atestar que nada de errado fazia121. Como já foi evidenciado para o caso italiano, nem todos os bispos se empenharam por igual nesta tarefa, mas alguns teriam criado mecanismos para registar os exames efectuados e as licenças passadas122. Em Viseu, pelo menos no tempo de D. João Manuel (1609-1625), existia um livro de Registos no qual, entre outras, eram anotadas as licenças exaradas aos pregadores123. Na diocese vizinha de Coimbra, o bispo D. João de Melo (1684-1704) forjou na década de 90 de Seiscentos um sistema para o fazer, que originou um livro onde se registavam todos os exames efectuados, bem como as licenças emitidas, contendo registos desde 1693 a 1698. Trata-se de um códice de cerca de 500 fólios, que se presume semelhante a outros, apesar de até ao presente não ter encontrado mais nenhum (nem em Coimbra, nem noutras dioceses do Reino), e que se afigura fonte preciosíssima para conhecer como se fazia, de facto, a vigilância episcopal sobre os pregadores. O termo de abertura nele lavrado é 119 Ver Arquivo Distrital de Bragança, Livro dos capítulos de visita da paróquia de Alvites, Caixa 7, Livro 70, fl. não numerado com traslado de carta pastoral de 20 de Abril de 1741. 120 Ver ASV, Archivio della Nunziatura Apostolica in Lisbona, vol. 57 (1), fl. 18. 121 Ver IANTT, Inquisição de Lisboa, processo 4782, fl. não numerado da sessão de confissão. O réu era Amaro Fernandes e foi sentenciado em auto de 1660. 122 Di-lo Michelle MANCINO, Licentia confitendi, sobretudo 19, tese que retoma em Michelle MANCINO, La Congregazione dei Vescovi e Regolari e le licenze di predicazione nell´Italia post-tridentina. A proposito di alcuni casi del 1588 in Campania Sacra, 32 (2001) 119-132 (Agradeço a indicação deste estudo a Paola Nestola). 123 Ver Arquivo Distrital de Viseu, Livro de Registos, nº565/720, por exemplo, fl. 33 (aqui se reporta licença passada ao padre António Nunes, em 14 de Dezembro de 1618). Muito agradeço ao mestre João Rocha Nunes a indicação desta fonte, a qual, para esta pesquisa, não foi explorada exaustivamente. 32 Episcopado e pregação no Portugal Moderno: formas de actuação e de vigilância muito claro a propósito dos seus objectivos: «Neste livro se han-de lansar os exames dos clerigos que vierem examinar-se para pregadores ou confessores, com assento da qualidade de seus exames, se fizeram exames com conhecida sciencia ou sufficientes pera effeito que pertendem, tempo que se lhe concede de aprovação e não se lhe poderão dar prorogas senão pelo Senhor Bispo Conde e as que não forem dadas por elle as reserva para a sua Mesa do Despacho, que só ahi, a vista dos exames lansados neste livro, se vera se se deve conseder proroga a quem a pedir»124. Os registos nele exarados encontram-se ordenados em quatro grandes núcleos, um relativo à cidade e os restantes aos três arcediagados em que se dividia a diocese (Vouga, Seia e Penela). Em cada uma destas partes havia uma organização por paróquias. Durante os cerca de cinco anos cobertos, foi efectuado o impressionante número de 1408 exames, tendo sido atribuídas 658 licenças de confessar, 636 cartas de cura (incluindo licenças para ecónomos ou párocos encomendados) e 116 de pregar. Ressalta desde logo a enorme diferença entre o número de confessores e pregadores, os quais, frequentemente, eram a mesma pessoa. Disparidade natural e expectável, pois a quantidade de confissões a efectuar - dado o facto de toda a população estar obrigada a confessar-se pelo menos uma vez por ano - reclamava enorme contingente de confessores. Os dados apurados demonstram que relativamente às 343 freguesias com registos, se emitiram 116 licenças, o que representa uma taxa de enquadramento de um pregador autorizado para cada 2.93 paróquias. Sem dúvida uma excelente rede de cobertura do território, pois a ela havia ainda que adicionar os pregadores das congregações religiosas, que não aparecem registados neste livro, criando a dúvida de saber se estariam dispensados por terem exame feito pelos superiores das religiões, ou se esse registo se efectuaria num outro códice que actualmente já não se encontra no espólio preservado. A distribuição geográfica não era absolutamente uniforme. Por norma, havia apenas um pregador oriundo de cada freguesia, mas algumas, como Sangalhos ou Pombeiro da Beira tiveram cinco. Note-se ainda, que nas terras onde havia abundância de casas de ordens religiosas, como Aveiro, Montemor-o-Velho ou Gouveia, apesar de serem localidades populosas, tinham muito poucos ou nenhuns pregadores. No livro anotavam-se todos os exames para pregadores a que se submetiam os clérigos seculares, incluindo os de vigários, priores ou curas, demonstrando que a posse de um benefício de cura de almas não significava, automaticamente, licença para pregar aos fiéis125. Cf. AUC, Livro que ha-de servir para se lançarem os pregadores e confessores, III/D, 1, 4, 5, 46, fl. 1. Veja-se, por exemplo, o exame feito em 3 de Novembro de 1694 ao padre António de Seixas Quaresma, que era vigário de Arrifana de Poiares, a quem se concedeu licença para pregar por tempo indeterminado, AUC, Livro que ha-de servir para se lançarem os pregadores e confessores, III/D, 1, 4, 5, 46, fl. 263. 124 125 33 José Pedro Paiva Os exames eram sempre realizados em Coimbra, usualmente com a presença pessoal do bispo e, na maioria esmagadora das vezes, efectuados pelos «padres de moral» para o efeito designados pelo prelado. Mais raramente, podiam ministrálos desembargadores do Auditório episcopal ou até padres jesuítas126. As classificações destas provas, que nem sempre eram registadas, tinham três níveis: «suficiencia», «bom exame» e «com louvor», existindo proporcionalidade entre esta escala e o prazo de validade das licenças atribuídas. De facto, não era vulgar que uma licença fosse dada sem limite temporal, o que denota a tentativa da parte do prelado de ter sempre os pregadores debaixo de observação, para poder verificar se mantinham as qualidades requeridas. O período da licença oscilava entre seis meses, por vezes com condicionantes, até tempo indeterminado. Na freguesia de Valezim, por exemplo, foi aprovado para pregar o padre Belchior Lopes, mas apenas por seis meses, «com a condição de que dentro em seis meses venha a exame para confessar»127. Já o prior de Sazes de Lorvão foi «aprovado para pregar enquanto se lhe não mandar o contrario e fez bom exame»128. Por isso, neste ciclo de cinco anos, há casos de indivíduos que foram examinados e aprovados por três vezes, como sucedeu ao padre João Fernandes, do Ameal, aprovado em 24 de Setembro de 1694 por seis meses, em 6 de Junho de 1696 por um ano e, finalmente, em 25 de Junho de 1698, por dois anos129. Significa isto, obviamente, que o prelado (pessoalmente ou por intermédios dos seus ministros) conhecia quem subia aos púlpitos na diocese. No limite, e esse aspecto deve ser sublinhado, podia reprovar-se. As reprovações eram raras, mas sucediam, como se comprova pelo seguinte averbamento: «O padre Christovam de Fernandes de Oliveira, de Oliveira do Bairro veo a exame para haver de confessar e pregar e em Mesa foi examinado pelos padres de Moral e por elles foi reprovado. Coimbra, 3 de Novembro de 1694»130. Tal como a licença, a reprovação não era interdito ilimitado no tempo: «O padre Manuel Simoes Rabasco da freguesia de Gouvea veo a exame para haver de pregar e na Mesa do Despacho foi examinado pelos reverendos padres mestres de Moral e por elles foi achado com menos sufficiencia por hora e que espere por outra occasiam. Coimbra, 28 de Abril de 1694»131. Cerca de um ano depois, o mesmo clérigo submeteu-se a nova avaliação e foi aprovado por um ano para pregar, licença que renovou em Abril de 1695, dessa vez por dois anos. Este livro permite ainda comprovar como algumas das normas estipuladas em Constituições das dioceses eram observadas, nomeadamente no tocante a qualidades 34 126 Para o primeiro caso ver, por exemplo, AUC, Livro que ha-de servir para se lançarem os pregadores e confessores, III/D, 1, 4, 5, 46, fl. 295 e para o segundo fl. 177. 127 Cf. AUC, Livro que ha-de servir para se lançarem os pregadores e confessores, III/D, 1, 4, 5, 46, fl. 311. 128 Cf. AUC, Livro que ha-de servir para se lançarem os pregadores e confessores, III/D, 1, 4, 5, 46, fl. 253. 129 Cf. AUC, Livro que ha-de servir para se lançarem os pregadores e confessores, III/D, 1, 4, 5, 46, fl. 420v. 130 Cf. AUC, Livro que ha-de servir para se lançarem os pregadores e confessores, III/D, 1, 4, 5, 46, fl. 195v. 131 Cf. AUC, Livro que ha-de servir para se lançarem os pregadores e confessores, III/D, 1, 4, 5, 46, fl. 329. Episcopado e pregação no Portugal Moderno: formas de actuação e de vigilância que o pregador devia reunir, como por exemplo idade mínima e graduação prévia numa universidade, como no registo seguinte: «O reverendo Antonio Coelho de Moura, prior da Igreja de Santa Comba de Cea, veo a exame para haver de pregar; e por constar nam haver cursado em faculdade nenhuma não foi examinado»132. Exigiam-se pregadores bem instruídos. Por fim, note-se que a formação académica dos protagonistas da oratória sacra tinha implicações nas matérias que poderiam pregar do ambão. No fundo, nem todos tinham autorização para perorar sobre qualquer assunto. Aos canonistas estavam vedadas certas prédicas, como se verifica, por exemplo, através deste interessante registo, no qual se alude, igualmente, ao requisito da idade: «O padre Manuel Nunes Marques, da freguesia de Galizes, formado em canones, veo a exame para confessar e pregar, presente Sua Illustrissima, foi examindao pelos padres mestres de moral e por elles foi aprovado para confessar e pregar por tempo de anno e meyo, e podera pregar os sermoins que sam premitidos aos canonistas que sem embargo não tem 40 anos que tambem podera confessar mulheres, vista sua capacidade. Coimbra, 25 de Novembro de 1693»133. Não restam quaisquer dúvidas de que entre o episcopado, sobretudo pós tridentino, se vigiou a pregação e os pregadores. E prevaricando estes, havia formas de os punir? Isto é, os bispos castigavam, de facto, os insubmissos? A resposta a esta questão reclamaria uma análise dos processos dos auditórios episcopais. Infelizmente, esses núcleos documentais perderam-se e não se encontram disponíveis para a maioria das dioceses portuguesas134. Mais uma vez se procede a partir de raros e poucos indícios. No dia 14 de Junho de 1764, o padre Manuel Rodrigues Trovão, vigário de Cadima (diocese de Coimbra), cumprindo missão que lhe estava especialmente encomendada nas Constituições sinodais e que o vigário geral da diocese lhe teria recordado, escreveu uma carta para o promotor do Auditório Eclesiástico: «Nesta minha freguesia de Cadima, no lugar do Zambujal, na segunda Dominga de Quaresma proxime paçada, forão pregar sem licença o padre Fernando Mendes, da freguesia de Arazede, de manha, e o padre Manuel Rodrigues de Figueiredo, de Portunhos, de tarde, aonde ouve concurso de homens e molheres que sahirão da cappela muitas horas depois da noute; e como são sacerdotes que Cf. AUC, Livro que ha-de servir para se lançarem os pregadores e confessores, III/D, 1, 4, 5, 46, fl. 368. Cf. AUC, Livro que ha-de servir para se lançarem os pregadores e confessores, III/D, 1, 4, 5, 46, fl. 393. 134 Em algumas, como na de Coimbra, há exemplares dispersos e ainda não totalmente inventariados no AUC. Felizmente, em algumas dioceses do Brasil, estes fundos foram bem preservados e permitirão fazer pesquisas da maior relevância para se perceber a actuação da justiça episcopal no Portugal Moderno. Actualmente, Pollyana Mendonça, aluna de doutoramento na Universidade Federal Fluminense, prepara o seu doutoramento com documentação do Auditório Episcopal do Maranhão e Patrícia Ferreira Santos, doutoranda na Universidade de S. Paulo, aproveita espólio semelhante relativo à diocese de Mariana. O único estudo disponível que permite sondar a actividade efectiva de um tribunal episcopal é João Rocha NUNES, Crime e castigo: “Pecados públicos” e disciplinamento social na diocese de Viseu (1684-1689) in Revista de História da Sociedade e da Cultura, 6 (2006), 177-213. 132 133 35 José Pedro Paiva pregarão sem licença que me não mostrarão e nem eu fui sabedor deste facto senão depois de feyto, e nem as suas doutrinas fructuozas aos [ou]vintes, por não serem sacerdotes de bom exemplo, ponho na lembrança de Vossa Merce este cazo»135. Com base nesta denúncia o promotor levou o caso aos desembargadores do Auditório. Estes, logo no dia seguinte, mandaram notificar os dois acusados para irem a Coimbra apresentar ao provisor do bispado a sua licença de pregadores, cominando-lhes um prazo de dez dias, sob pena de serem suspensos. O mesmo vigário de Cadima que os denunciara foi encarregado desta missão e, em 3 de Setembro de 1764, procedeu à diligência. Todavia, a 12 de Dezembro de 1764, os dois padres ainda não tinham aparecido para mostrar as licenças, pelo que o promotor apresentou nova queixa aos juízes, os quais ordenaram a abertura de um processo judicial, a 16 de Dezembro, concedendo aos dois réus um prazo de seis dias para alegarem a sua defesa. O vigário de Cadima de novo os notificou pessoalmente, em Abril de 1765, mas os réus nunca compareceram perante os juízes do Auditório Episcopal, apesar de serem notificados outras vezes sob a ameaça de privação de licença de pregar e suspensão das ordens. Em consequência, cerca de 4 anos após o início do processo, em Março de 1768, o promotor pediu aos juízes a condenação dos réus com a pena de suspensão das ordens clericais que tinham. Não é possível apurar se a pena foi de facto cumprida pelos dois insubmissos pregadores. Este não é o único caso conhecido de tentativa da autoridade episcopal para punir pregadores irreverentes. No ano de 1611, também em Coimbra, o bispo D. Afonso de Castelo Branco perseguira o frade franciscano observante Cristóvão Carneiro. O prelado recebera uma queixa dos padres da Companhia de Jesus, os quais alegavam que este franciscano nas suas prédicas «falava mal» dos jesuítas, causando escândalo entre os estudantes da cidade, tendo chegado ao limite de, numa pregação na capela da Universidade, perante os lentes da Academia, ter deturpado o sentido de alguns passos das Sagradas Escrituras para melhor ajustar os seus propósitos ao vilipêndio da Companhia. Perante isto, depois de o vigário geral ter aberto um processo no qual foram ouvidas várias testemunhas, D. Afonso de Castelo Branco proibiu-o de pregar na diocese. O franciscano não desarmou. Abalou para Salamanca, ali mandou imprimir o sermão que proclamara na capela da Universidade, retirando ao texto as injúrias contra os jesuítas e, acintosamente, dedicou o livro ao prelado conimbricense. Além disso, reclamou da sentença do bispo de Coimbra para o Tribunal da Legacia, em Lisboa, e ali lhe foi dada razão. O bispo de Coimbra, Cf. AUC, Processo contra os padres Fernando Mendes e Manuel Rodrigues de Figueiredo, III/D, 1, 6, 2, 7, doc.15, fl. 1. Todos os dados revelados abaixo se reportam a esta mesma fonte. 135 36 Episcopado e pregação no Portugal Moderno: formas de actuação e de vigilância agastado, escreveu então uma carta ao seu agente em Roma (através da qual se conhece este episódio), para que se avisassem alguns cardeais do sucedido, com o propósito de no centro romano, finalmente, conseguir travar o franciscano prevaricador136. Mais uma vez, perdura a notícia da dificuldade que os bispos tinham em se fazer obedecer. Se o religioso franciscano recorrera ao Tribunal da Legacia Apostólica para se furtar às punições fulminadas pelo bispo, nos inícios do século XVIII, correligionários seus do Funchal, para além do recurso ao papa, queixaram-se ao rei da «perseguição» que lhes movia o bispo D. José de Sousa Castelo Branco (1698-1722): «Recorre a Vossa Magestade o padre frei Jacinto da Esperança, costodio provincial da Ordem de S. Francisco da Ilha da Madeira, por si e em nome dos religiosos da mesma Ordem, da notoria força e violencia com que os oprime o reverendo bispo da dita Ilha, D. Jozeph de Souza Castel Branco, a qual consiste que estando os religiosos da dita Ilha de posse por virtude da aprovação do mesmo reverendo bispo de confessarem e pregarem nos quatro conventos de que consta a prelatura delle suplicante, sem cauza ou motivo algum, o dito reverendo bispo os privou de confessar e pregar, querendo fossem outra vez a exame», o que tivera notórios prejuízos na reputação dos franciscanos e nos proventos que retiravam desta actividade137. Os franciscanos recorreram para o Papa, mas D. José de Sousa Castelo Branco não lhes recebeu a apelação, no que violaria o Direito, pois estaria obrigado a subordinar-se ao recurso apostólico. Na exposição feita ao monarca, alegavam a seu favor, entre outros aspectos, que tendo o antístite já examinado todos os frades e dando-lhes licença para confessar e pregar, não podia, posteriormente, revogar essa autorização sem justa causa, fundada no modo como eles procederiam na confissão ou pregação. Além disso, não podia, como fez, suspender todos os frades do Convento da Calheta, em geral, pois não era crível, sustentavam, que todos fossem criminosos. De igual modo, fazia força aos religiosos dos outros conventos, ao ter determinado que nos restantes três da Ilha só um frade pudesse confessar e pregar. Acrescentavam ainda que a única razão invocada pelo bispo para os suspender fora o facto de eles não terem comparecido ao exame que lhes pretendera fazer. Os três episódios invocados abrem uma janela sobre uma paisagem até hoje praticamente ignorada, permitindo formular algumas hipóteses analíticas. É incontornável que houve bispos que dispuseram de meios e vontade para punir os pregadores insubordinados à sua jurisdição em matéria de pregação e, nalguns casos castigaram-nos. Afigura-se igualmente verosímil que nem sempre foi fácil aos Ver ASV, Fondo Confalonieri, 39, fl. 442 (carta de 20 de Setembro de 1611 a Giovanbattista Confalonieri). Cf. IANTT, Manuscrito da Livraria nº 2576, fl. 22. O processo integral, que aqui se reconstitui, prolonga-se até ao fl. 31. 136 137 37 José Pedro Paiva prelados fazerem-se obedecer. Em terceiro lugar, os punidos tinham à sua disposição recursos de apelo, para a Santa Sé e para a Coroa, que embaraçavam, de facto, a aplicação da justiça episcopal. Mas qual foi o padrão dominante? O bispo que vigiava e castigava os delinquentes? Ou um universo de pregação desgovernado, onde a autoridade episcopal era habitualmente desrespeitada? Não é possível, naturalmente, a partir dos dados disponíveis, retirar conclusões seguras sobre os níveis de conformidade da submissão ao poder dos bispos. Acresce que para além dos casos reportados, não era uniforme a consciência que ao tempo tinham a propósito deste assunto os que com ele de mais perto lidavam. Entre os próprios agentes da justiça eclesiástica havia quem possuísse a noção de que nada acontecia a quem proferisse palavras mal soantes ou heréticas dos púlpitos. Nos meados do século XVII, altura em que, como acima se viu, as Constituições diocesanas se apuraram em matéria de regulação da pregação, o procurador do padre Manuel de Morais, defendendo-o numa causa corrente no Juízo da Legacia, em Lisboa, pelo facto de o seu constituinte ter proferido num sermão palavras injuriosas sobre o Papa, sustentava que, naquele tempo, os pregadores recorrentemente diziam proposições heréticas e dissonantes «e nem por isso elles padecem alguma afronta nem são accusados, e so se lhes adverte que dizem mal, e quando muito os senhores inquisidores mandão chamar ao tal pregador (...) e conhecendo o erro o mandão para sua Casa sem castigo algum»138. À luz deste argumento a capacidade punitiva de bispos e inquisidores sobre os agentes da pregação era muito débil. Sensivelmente pela mesma altura, o jesuíta António Vieira, submetido a interrogatório inquisitorial, defendia-se do que o acusavam, dizendo que não tinha por culpa aludir nos seus textos às Trovas Bandarra, célebre sapateiro de Trancoso que nos meados do século XVI fora condenado pela Inquisição de Lisboa, porque, dizia, era vulgar «neste Reino todos os pregadores [invocarem as Trovas], à vista e sem proibição alguma dos prelados eclesiásticos»139. Ora, por aqui, ao invés da avaliação feita pelo procurador acima referido, pode supor-se que se neste caso da vigilância sobre a invocação das Trovas do Bandarra havia liberalidade por parte dos bispos, noutros, eles estariam alertas e activos. 5. Em diálogo com a Inquisição Alguns dos episódios trazidos à colação realçaram que a vigilância sobre os pregadores e o sermão implicavam não só os bispos como também o Tribunal do Santo Ofício. Por um lado, porque se os pregadores proferissem heresias, isso era um delito que ficava sob a alçada da Inquisição, e os bispos, por norma, não 138 139 38 Cf. ASV, Archivio della Nunziatura Apostolica in Lisbona, vol. 13 (2), fl. 161. Cf. IANTT, Inquisição de Coimbra, processo 1664, fl. 29v. Episcopado e pregação no Portugal Moderno: formas de actuação e de vigilância os julgariam nos seus auditórios140. Por outro lado, porque o facto de para pregar e confessar num território ser requerida uma autorização episcopal, era matéria que podia colidir com a actividade inquisitorial, abrindo um campo de potencial polémica entre bispos e inquisidores141. Apesar de o assunto nunca ter merecido detida atenção por parte dos estudiosas da Inquisição, e de esse não ser o objectivo do presente estudo, é inquestionável que ela também estava alerta142. Mas a Inquisição respeitava os limites da sua intervenção, reconhecendo as competências episcopais. Assim se explica a ocorrência a seguir relatada. No ano de 1613 os inquisidores de Lisboa receberam umas denúncias oriundas do Algarve, que implicavam, entre outros, um rapaz que tinha sido preso pelo bispo, alegadamente por dizer ter caido ao mar perto da Ilha Terceira, onde permanecera durante três dias, até que Nossa Senhora realizara um milagre, pegando-lhe por um braço e recolocando-o numa embarcação. Na sequência disso, o rapazinho, dizendo possuir licença do bispo de Angra, começou a fazer pregações, durante as quais oferecia a beijar a doentes e sãos que o escutavam e procuravam o braço pelo qual Nossa Senhora supostamente o salvara. Regressando ao Reino, continuou no mesmo procedimento, até ter sido preso pelo bispo de Faro. Pois perante esta história, os inquisidores deram um parecer que revela na perfeição como respeitavam os limites da sua jurisdição: «pregar com licença sem ter ordens e fingir-se ser o do milagre e dar o braço a beijar dizendo que saravão os que lhe tocavão, pertence ao ordinario, e que se pode responder ao bispo que nestas cousas faça com o preso o que lhe parecer 140 Para uma visão global sobre os sentidos e modalidades de cooperação entre o episcopado e a Inquisição em Portugal remeto para José Pedro PAIVA, Os bispos e a Inquisição portuguesa (1536-1613) in Lusitania Sacra, 2º série, XV (2003), 43-76. 141 Em algumas dioceses do Sul de Itália houve intensa colaboração na vigilância dos pregadores das ordens regulares entre a Congregação Romana do Santo Ofício e alguns bispos, como foi bem explicado em Paola NESTOLA, Tra centro e periferia: le lettere di Braccio Martelli alla Congregazione del Sant´Ufficio (15581560) in Dino LEVANTE (direcção de), «Colligite fragmenta» Studi in memoria di Mons. Carmine Maci, Campi Salentina (Lecce), Centro Studi Mons. Carmine Maci, 2007, sobretudo 115-119. 142 Para além de vários processos nos quais se privaram réus da Inquisição de pregar, fizeram-se muitas diligências para apurar a correcção dos sermões proferidos por alguns pregadores. A este respeito é muito fértil o recurso à série de Cadernos de Promotor. Ver, a título exemplificativo, o sumário contra um padre de Oliveira de Azeméis, por ter proferido proposições erróneas e escandalosas num sermão, no ano de 1737, IANTT, Inquisição de Coimbra, Livro 376, fl. 374-424. Em texto com cerca de uma década, Giovanni Romeo assinalava que a historiografia sobre a Inquisição nunca se tinha preocupado em analisar a relação entre esta instituição e a pregação. O panorama não se alterou desde então e o seu texto continua a ser um raro exemplo, no qual já se propunha, com acerto, que a análise devia incidir sobre as estratégias da Inquisição para vigiar os eventuais abusos e excessos dos pregadores, o apoio que estes forneceram à actuação do Tribunal e ainda a utilização dos seus fundos para recriar/reconstruir a história “vivida” da pregação. Escapou a Romeo a questão das implicações que o vigilância da pregação poderia ter nas relações com outros poderes, nomeadamente o episcopal, aspecto que aqui, sumariamente, se aflora, sem que isso apouque o excelente e inovador texto de Giovanni ROMEO, Predicazione e Inquisizione in Italia dal Concilio di Trento alla prima metá del Seicento in La predizazione in Italia dopo il Concilio di Trento (direcção de Giacomo MARTINA e Ugo DOVERE), Roma, Edizioni Dehoniane, 1996, 207-242. 39 José Pedro Paiva porque a Inquisição não toma conhecimento disso»143. A existência destes dois poderes com jurisdição neste campo gerava dúvidas e situações ambíguas, como sucedeu com o arcebispo de Lisboa D. Miguel de Castro (1586-1625). Ele, em 12 de Fevereiro de 1605, escreveu para a Congregação do Santo Ofício, em Roma, expondo a situação. Na sequência de um perdão geral concedido pelo papa aos cristãos-novos portugueses, no ano de 1604, entre os libertos encontrava-se o padre João Nunes, cristão-novo e prior de S. Pedro de Torres Novas, o qual estava preso há 3 anos na Inquisição. Posto em liberdade, o arcebispo teve dúvidas se o devia autorizar a exercer o seu ofício de cura de almas, dando sacramentos e pregando aos fiéis, apesar de todos saberem na sua terra que ele era cristão-novo e estivera preso na Inquisição. Prudentemente, entretanto, teria pedido ao prior para ele não exercitar mais o seu ministério, até chegarem informações de Roma. Mas este recorreu ao inquisidor geral, como executor do perdão geral, alegando que tinha direito a ir curar as almas, e assim o fez. Em face disso D. Miguel de Castro decidiu suspendê-lo de poder administrar sacramentos e pregar144. O facto mais interessante por mim detectado a propósito deste diálogo entre a Inquisição e o episcopado suscitado por questões relativas à pregação teve por protagonista o já referido arcebispo de Évora, D. José de Melo. Tudo se iniciou em 1630 e motivou troca de correspondência entre os inquisidores do Tribunal da Inquisição de Évora, por um lado, o inquisidor geral, D. Francisco de Castro, e o secretário do Conselho Geral, por outra parte. A partir destas trocas epistolares é viável reconstitui-lo145. D. José de Melo, na sequência de problemas com os jesuítas, deixou de lhes conceder licenças para confessarem e pregarem na sua arquidiocese. Mas, como era habitual, o Santo Ofício queria servir-se dos padres do Colégio da Companhia de Jesus de Évora para desempenharem uma função que, normalmente, lhes era confiada, isto é, confessarem os penitentes e pregarem doutrina aos reconciliados nos autos da fé146. Ora, perante a circunstância de não terem licença do arcebispo, os inacianos não o podiam legitimamente fazer. O inquisidor geral, muito lamentou o facto e pediu aos inquisidores de Évora que tentassem convencer o arcebispo a dar-lhes autorização para fazerem este serviço. Isso não deve ter resultado, pelo que os ministros eborenses do Tribunal da Fé teriam requerido uma intervenção papal, Cf. Conselho Geral do Santo Ofício, livro 97 (Correspondência da Inquisição de Lisboa e de Évora), fl. não numerado, carta 1. 144 Ver Conselho Geral do Santo Ofício, livro 426, fl. 272-272v. 145 Ver IANTT, Inquisição de Évora, Livro 37, 5-5v, 69 e 70. 146 Sobre a relação dos jesuítas com a Inquisição ver o imprescindível estudo de Giuseppe MARCOCCI, Inquisição, jesuítas e cristãos-novos em Portugal no século XVI in Revista de História das Ideias, 25 (2004), 247-326. Ao contrário, é pobre e revela inadmissíveis lacunas e desconhecimento José Eduardo FRANCO e Célia Cristina da Silva TAVARES – Jesuítas e Inquisição: cumplicidades e confrontações, Rio de Janeiro, EdUERJ, 2007. 143 40 Episcopado e pregação no Portugal Moderno: formas de actuação e de vigilância na sequência da qual se teria obtido uma licença especial para os jesuítas serem examinados, não pelo arcebispo, mas por outros oficiais. D. José de Melo reagiu energicamente, em carta para os inquisidores, na qual transparece que, apesar de querer manter boas relações e respeitar o Tribunal da Fé, não estava disposto a ceder nesta polémica que envolvia os jesuítas: «me he forçado mandar noteficar ao Doutor Manuel do Valle e ao licenciado Sebastião de Affonseca Homem e ao licenciado Antonio de Vasconcellos que se não intrometão em examinar aos padres da Companhia para confessar e pregar e para ordens; e perque tenho tanto respeito a esse Santo Tribunal e a todos os ministros delle como he resão, não quis executar o que me he forçado fazer, sem primeiro dar conta a Vossas Merces nesta Meza, como por esta faço, para que saibão que he a nececidade tal que me obriga a fazer cousa tão encontrada com o desejo que tenho de tudo servir e favorecer as cousas do Santo Officio e seus ministros e para que Vossas Merces, se lhes parecer, signifiquem a estes ministros que considerem o que fasem e o em que os padres os metem, donde entendo que os não poderão tirar a paz e salvo»147. Eis mais um exemplo de como os bispos não estiveram passivos relativamente à actividade dos pregadores, e como, em simultâneo, a vigilância por eles exercida exigia um diálogo com a Inquisição, o qual, podia suscitar questões de nem sempre fácil resolução. 6. Ruídos na comunicação dos pregadores A regulamentação determinada e a vigilância exercida pelo episcopado sobre a multidão de pregadores, se introduziu alguma ordem e domínio sobre este corpo, não impediu excessos e abusos. O mecanismo da emissão das licenças, as normas sinodais, provisões e pastorais, as eventuais suspensões ou punições de alguns ministros do púlpito não erradicou diversas formas de prevaricação por parte pregadores, com a agravante de que, frequentemente, alguns utilizaram formas de comunicação e abordaram conteúdos que introduziam perniciosos ruídos na percepção das suas mensagens, distorcendo, objectivamente, a substância da matéria do sermão. Uma das consequências destas práticas foi que entre os fiéis houvesse quem desconfiasse do que se dizia do ambão, que percebesse algumas das estratégias utilizadas por quem dele perorava, e, consequentemente, não interiorizasse a mensagem desejada. Não se pode presumir que os ouvintes eram uma espécie de tábuas rasas, incultos, ignorantes, abúlicos e amorfos, nas quais os pregadores impregnavam doutrina a seu bel-prazer148. Apesar de um dos maiores vultos da 147 148 Cf. IANTT, Inquisição de Évora, Livro 37, fl. 70. A noção de que os aldeões estavam disponíveis para aceitar tudo o que lhes era imposto pelos detentores 41 José Pedro Paiva oratória sacra portuguesa o presumir, pelo menos quando pensou a relação dos missionários com os índios brasileiros. No sermão do Espírito Santo (1657), antes da partida para o Amazonas de uma missão de jesuítas, disse-o com impressionante vigor e beleza literária: «Concedo-vos que esse índio bárbaro e rude seja uma pedra; vede o que faz em uma pedra a arte. Arranca o estatuário uma pedra dessas montanhas, tosca, bruta, dura, informe; e depois que desbastou o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão e começa a formar um homem, primeiro membro a membro, e depois feição por feição, até à mais miúda. Ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca, avulta-lhe as faces, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe as mãos, dividelhe os dedos, lança-lhe os vestidos; aqui desprega, ali arruga, acolá recama; e fica um homem perfeito, e talvez um santo, que se pode pôr no altar»149. Mas esta não era, com toda a certeza, a realidade dos rústicos do Reino, a quem os missionários de interior chegaram a classificar como «indios de cá»150. Disso se podiam dar múltiplos testemunhos. No ano de 1701, Manuel Pires, lavrador, casado, de 40 anos de idade e morador na freguesia de Parada (diocese de Viseu), foi acusado numa visita pastoral. A sua culpa era sustentar publicamente que Cristo não padecera na Paixão tanto como apregoavam os pregadores dos púlpitos, como ele tantas vezes ouvira. No seu pensar, os ministros da palavra proferiam esses exageros apenas com a finalidade de «meter maior terror» a quem os escutava e, assim, melhor os convencer151. É de admitir que este lavrador já teria presenciado cenas semelhantes à que um familiar do Santo Ofício, de Manteigas, na Serra da Estrela, denunciou à Inquisição, no ano de 1612. No seu sugestivo depoimento disse que durante uma procissão dos Passos, as quais eram comuns em muitos lugares das Beiras, costumava haver um sermão sobre a Paixão de Cristo. Naquele ano, o pregador que o dissera naquela localidade serrana fora frei João do Deserto. Este, para tornar o mais real possível o cenário que pretendia descrever aos seus ouvintes decidiu dramatizar o acto. Assim, na altura em que, após ter relatado os sofrimentos que Cristo sofrera para remir os homens pecadores disse as palavras «Ecce Homo, estava posto sobre o altar que fica a mao direita respondendo a entrada [da igreja], hum homem todo nu, somente huma toalha cingida sobre do poder (de qualquer poder) e que vivam sem qualquer sentido estratégico, foi há muito bem desconstruída. Ver, a este respeito, o magnífico estudo de Giavanni LEVI, L’Eredità immateriale. Carriera di un esorcista nel Piemonte del Seicento, Torino, Giulio Einaudi, 1985, sobretudo o capítulo 2. 149 Cf. António Vieira, Sermoens, terceira parte, Lisboa, Miguel Deslandes, 1683, 419-420. 150 Federico Palomo demonstrou bem como esta consciência esteve na base do fortíssimo impulso das chamadas missões de interior na Época Moderna, em particular das jesuíticas, ver Federico PALOMO, Fazer dos campos escolas excelentes, ed. cit., em especial 429. 151 Cf. IANTT, Inquisição de Coimbra, Livro 694, fl. 240-243 (trata-se de um traslado da visita pastoral da diocese de Viseu que foi remetido para a Inquisição de Coimbra). 42 Episcopado e pregação no Portugal Moderno: formas de actuação e de vigilância as partes verendas [sic], e todo entrapalhado com tinta vermelha, as mãos atadas diante, entre elas huma cana, na cabeça huma coroa de silva, coberto o rosto com huma cabeleira, hum Cristo representava; ficava coberto com hum lençol ou pano branco e per duas pontas e duas varas atado estava. Querendo pois o padre pronunciar Ecce Homo, mamdou que se acendessem duas tochas, hera hora de meio dia pouco mais ou menos, e sendo acesas as pronunciou, e abaixando-se a cobertura pareceu aquela solene figura». Pode imaginar-se a reacção da multidão que escutava o frade, e o familiar que se tem seguido, narra-a, com idêntica vivacidade à que o pregador quis conferir ao seu Cristo da Paixão: «ouve muita grita na gente, muito bater de peitos e muitos lhe pedirão perdão de pecados e tudo o mais que nestes Passos quando se mostra hum Cristo acontece, e neste tempo fez o padre suas exclamações o que julguei por os meneios, que a vox não se deixava entender com a grita da gente que era muita e ficou sobressaltada com o engano do altar»152. Ou seja, este ouvinte, percebeu bem qual era a estratégia do pregador. Comover até ao limite para depois transmitir a sua mensagem, deixando-a fortemente impregnada nos espíritos que o escutavam. Mas também lhe topou o embuste, como alguns outros seus conterrâneos, pois, como o mesmo diz, o figurante que representou o Cristo da Paixão durante o sermão «depois hia tangendo na procissão huma bastarda e foi conhecido por os entretalhos que da tinta nas pernas levava». Seria esta consciência a causa justificativa para que muitos fiéis faltassem ao dever de irem escutar os pregadores, como se queixavam missionários franciscanos de Brancanes em 1741? Contava um deles que no Advento daquele ano se realizaram em Setúbal mais de 40 sermões, «e me parece que ainda que se pregaram 400 não bastariam para dobrar estes corações duros, não porque nao tinha força para isso a palavra de Deos, mas porque a não vão ouvir, pois constando esta terra de mais de tres mil almas de sacramentos e pregando-se em todas as freguesias desta, em nenhuma se chegarião a ver 500 pessoas ao sermão e sem temeridade creio que huma grande parte da gente não ouviu um só sermão»153. Tanta norma, tanta regulação, bispos e inquisidores activos e vigilantes, pregadores em abundância. Em simultâneo, após séculos de aplicação desta parafernália de supervisão e de dezenas de milhar de sermões pronunciados, 152 Cf. IANTT, Inquisição de Coimbra, Livro 290, fl. não numerado. Estas reacções dos auditórios eram provocadas pelas estratégias dos pregadores, como por exemplo o jesuíta Inácio Martins, já bem estudado, ver Federico PALOMO e Marie Lucie COPETE, Des carêmes aprés le carême. Stratégies de conversion et fonctions politiques de missions interieures en Espagne et au Portugal (1540-1650) in Revue de synthèse, 4e série, 2-3 (1999), 373. 153 Cf. IANTT, Manuscritos da Livraria nº 852, p. 219 (trata-se de uma Crónica de Brancanes, em dois tomos, escrita por frei João de Jesus Maria). 43 José Pedro Paiva ainda havia queixas de que os fiéis nem sequer iam à pregação e que, no geral, muitos permaneciam ignorantes a respeito da palavra de Deus. Que intrigante universo era este? Ou porque teriam esta consciência alguns homens da Igreja nos meados do século XVIII? José Pedro Paiva Universidade de Coimbra Centro de História da Sociedade e da Cultura Abstract: This article focuses on a topic to which historiography, national and international, has not been paying too much attention: the relation between bishops and preaching. Despite the lack of documental sources available, we will try to, through the multiple signs at disposal, cast some light on how Portuguese bishops, during Modern Era, regulated and watched over the activity of thousands of preachers that used the sermon to spread God’s word. Furthermore, we will try to check on the performance of some bishops as preachers, setting the profile of that intervention. 44 Los Avisos para la muerte de Luis Ramírez de Arellano1 En continuidad con la tradición anterior, la consideración de la muerte sirvió en el siglo XVII como motivo de meditación sobre la finitud del hombre, la caducidad de las glorias mundanas y la conveniencia de ajustar la vida a los preceptos divinos y eclesiásticos para afrontar satisfactoriamente el juicio divino que tras ella se había de seguir; en definitiva, como acicate para un «bien vivir». Pero, además, se estimó provechoso que el cristiano – y no solo los sacerdotes que habían de asistir en los últimos momentos, con sus estrategias para lograr la óptima disposición del moribundo, sus consideraciones y plegarias, y los demás ritos establecidos para la ocasión – supiera cómo debía comportarse en trance tan decisivo, donde se podía jugar la salvación o el castigo para toda la eternidad2. En este contexto de aprendizaje personal a «bien morir» se sitúan los Avisos para la muerte, una colección de poemas recopilada por Luis Ramírez (o Remírez) de Arellano, publicada por primera vez en 1634, aunque quizás compuesta algunos años antes, y con una historia editorial que, aun con diversa intensidad, abarcó casi doscientos años3. La colección propiamente dicha, excluidos dos poemas en preliminares, la conforman, en la primera edición, treinta composiciones poéticas que representan, con intención modélica, la oración que un moribundo dirige a Cristo crucificado. 1 Este trabajo responde a las líneas de investigación sobre Poesía del Siglo de Oro desarrolladas al amparo del Programa Ramón y Cajal, cofinanciado por el Ministerio de Educación y Ciencia. Agradezco, por otra parte, a Víctor Infantes que guiara mi atención hacia esta colección poética. 2 Francisco Gago Jover (ed.), Arte de bien morir y Breve confesionario, [Palma de Mallorca], Olañeta, 1999; Antonio Rey Hazas (ed.), Artes de bien morir. Ars moriendi de la Edad Media y del Siglo de Oro, Madrid, Eds. Lengua de Trapo, 2003; Rebeca Sanmartín Bastida, Arte de morir: la puesta en escena de la muerte en un tratado del siglo XV, Madrid, Iberoamericana / Vervuert, 2006; Víctor Infantes, Las Danzas de la Muerte. Génesis y desarrollo de un género medieval (siglos XIII-XVII), Salamanca, Universidad de Salamanca, 1997, 330-331. 3 Avisos para la muerte. Escritos por algunos ingenios de España. A la devoción de Bernardo de Oviedo Secretario de su Majestad, y de los Descargos de los Señores Reyes de Castilla. Recogidos y publicados por Don Luis Remírez de Arellano, Madrid, Viuda de Alonso Martín, a costa de Alonso Pérez, 1634. Salvo indicación contraria, cito por esta edición, modernizando – al igual que en los demás títulos y textos de la época – grafías y puntación. Para la fecha de composición véase la nota siguiente. 45 Inmaculada Osuna Si se atiende a lo afirmado por el compilador en la Dedicatoria, los poemas respondieron a una iniciativa piadosa por parte de Bernardo de Oviedo, según la cual, los ingenios debían escribir poemas con los que «ensayarse a morir» (h. 8r). Nos encontramos, pues, no ante una colección facticia en la que el compilador, según su criterio, tomó de aquí y de allá composiciones con el denominador común de la preparación para una muerte cristiana, sino ante el registro – quizás selectivo4 – de una programada acción conjunta por parte de varios escritores, siguiendo mecanismos sociales de producción poética similares a los que por esos años se estaban desarrollando en justas y academias; más aún, frente a los procedimientos de abierta convocatoria de las justas, la identidad del promotor y de los ingenios participantes en la iniciativa parece apuntar a un contexto académico o cuasiacadémico, de participación restringida y convocatoria privada. Ya Edward M. Wilson, en su estudio del poema de Calderón incluido en el poemario, señalaba cómo «es curioso encontrar juntos en el tomito tantos versos sobre los Novísimos escritos por los poetas cortesanos, tantas veces llamados frívolos por la crítica del siglo XIX, de la primera mitad del reinado de don Felipe el Grande»5. En efecto, a pesar de las actuales limitaciones biográficas para muchos, el elenco de autores sugiere un entorno cortesano relativamente reconocible, pese a las notables diferencias de edad e incluso de orientaciones estéticas. Buena parte de ellos se ganaron la popularidad literaria a través de los escenarios. Es el caso del ya anciano Lope de Vega, que moriría un año después de salir a la luz la colección, o el de Calderón, en plena carrera teatral ascendente en los años treinta. Pero no son los únicos: por entonces también se habían sumado José Pellicer de Ossau y Tovar se refiere a su participación en la iniciativa de la siguiente manera: «Última línea de la Vida, y Avisos para la muerte, en tres romances. Imprimiolos Don Luis Ramírez de Arellano, el de la feliz memoria, con otros que compusieron varones grandes a este argumento, en el año propio de 1630, y después se han hecho diversas ediciones» (Biblioteca formada de los libros y obras públicas de don Josef Pellicer de Ossau y Tovar, Valencia, Jerónimo Vilagrasa, 1671, f. 16r-16v). A su nombre solamente aparece en el impreso un extenso romance; salvo que los demás figuren con otra autoría, hay que entender que para el impreso no se seleccionó más que uno. En cuanto al año referido, Antonio Rodríguez-Moñino, Manual bibliográfico de Cancioneros y Romanceros (siglo XVII) (coord. Arthur L. F. Askins), vol. III, Madrid, Castalia, 1977, nº 176, considera, en atención a este testimonio, que «no parece posible dudar de esta edición [de 1630] ». Lo cierto es que por ahora no hay mayor constancia de la misma: aunque no decisivo, resulta sintomático el hecho de que los preliminares legales más tempranos, con frecuencia transmitidos a ediciones posteriores que no requerían nuevos trámites, no sean los de esa supuesta princeps de 1630, sino los que se adecuan perfectamente por fechas a la primera edición conocida (aprobación de Valdivielso y privilegio en octubre de 1633; erratas y tasa en enero de 1634). Como hipótesis, cabe interpretar que la fecha de 1630 dada por Pellicer se refiera a cuando «compusieron» los romances y no cuando «imprimiolos don Luis Ramírez de Arellano», si bien la inmediata conexión temporal con que continúa el período («y después... ») resulta un tanto forzada en esta interpretación. La datación de los poemas anterior a 1633 parece confirmada por una recopilación poética manuscrita de Gabriel de Henao (ms. 4095 BNE; Gabriel de Henao, Rimas, ed. de Carmen Riera, Valladolid, Fundación Jorge Guillén, 1997), con dedicatoria firmada en Madrid a 12 de febrero de 1631, donde se incluye el romance recogido en los Avisos. 5 Edward M. Wilson, Un romance ascético de Calderón: «Agora, Señor, agora...», in Boletín de la Real Academia Española, LII (1972), 79-105 (la cita, en 80). 4 46 Los Avisos para la muerte de Luis Ramírez de Arellano o estaban próximos a sumarse al desarrollo urbano y comercial del teatro sacro o profano Luis Vélez de Guevara, Antonio Mira de Amescua, Francisco de Rojas Zorrilla o Felipe Godínez. José de Valdivielso estaba destacando en el ámbito del auto sacramental, aunque su fama se sustentaba asimismo en dos libros poéticos de tema religioso, uno de orientación lírica, el Romancero espiritual (1607), otro en la línea del poema épico hagiográfico, la Vida de San José (1612). Antes de 1630, el joven Juan Pérez de Montalbán, fiel discípulo y amigo de Lope de Vega, había empezado a dar a la imprenta muestras de su polifacética producción, con una colección de relatos breves (Sucesos y prodigios de amor, 1624) y una novela hagiográfica (Vida y purgatorio de San Patricio, 1627), aparte de un poema mitológico, el Orfeo en lengua castellana (1624), cuya auténtica autoría viene siendo discutida desde su misma publicación, bajo la sospecha de ser, en realidad, obra de Lope. Gabriel de Bocángel, ya bibliotecario del Cardenal Infante don Fernando, había publicado una de sus obras, las Rimas y prosas (1627). García de Salcedo Coronel tenía por entonces impreso un volumen de Rimas (1627) y una edición y comentario del Polifemo de Góngora (1628). El prolífico José Pellicer ya se atribuía el cargo de Cronista de Castilla y León, y había publicado algunos poemas, opúsculos históricos o panegíricos y, también él, un comentario del poeta cordobés (Lecciones solemnes a las obras de don Luis de Góngora, 1630). Otro poeta destacado, Juan de Jáuregui, aparece asimismo en los Avisos para la muerte con sendas composiciones para antes de la Confesión y de la Comunión, si bien su ubicación en preliminares, y la indicación de que se incluyeron por afinidad con el tema abordado, hacen suponer que no procedían de la iniciativa que generó la colección, sino que se añadieron a posteriori6. Junto a estos, otros autores hoy nos resultan casi desconocidos, entre ellos el propio colector. Este, aparte de algunos poemas sueltos, dejó tras de sí la reputación de una extraordinaria memoria; como «el de la gran memoria» lo cita Valdivielso en la aprobación de los Avisos (h. 6r), y es que, según atestigua Cristóbal Suárez de Figueroa, era capaz aun de aprender una comedia entera tras haberla presenciado en solo tres ocasiones7. También otros parecen haber formado parte del mundillo 6 Pueden verse ahora publicadas en Juan de Jáuregui, Poesía, ed. de Juan Matas, Madrid, Cátedra, 1993, nº 102-103; según información del editor, los poemas aparecen también en el Ms. &.III.33 del Monasterio de El Escorial, f. 101-104, un manuscrito misceláneo tardío (s. XIX) que también recoge la silva y los dos sonetos de la colección. 7 Cristóbal Suárez de Figueroa, Plaza universal de todas Ciencias y Artes, Madrid, Luis Sánchez, 1615, f. 237. Aunque este autor lo menciona como natural Villaescusa de Haro, José Antonio Álvarez y Baena lo recoge en su diccionario de ilustres madrileños; según informa, fue «hijo de Juan Ramírez de Arellano, Secretario de los Condes de Lemus [...] y de doña Luisa Garibay su esposa. Criose desde niño en la casa del Cardenal Arzobispo de Toledo D. Bernardo de Sandoval y Roxas, que le estimó mucho, y le hizo su Secretario y Mayordomo, empleo en que también sirvió al Duque de Lerma D. Francisco Gómez de Sandoval y al Conde de Aguilar» y «escribió también: Memorial de la Casa de los Señores de Macintos, apellido Velázquez» (Hijos de Madrid ilustres en santidad, ciencias, armas y artes [1789-1791], ed. facs., 47 Inmaculada Osuna literario madrileño de la época. De hecho, bastantes nombres vuelven a aparecer en otras celebraciones colectivas próximas en el tiempo. Baste recordar dos colecciones que tienen en común, aparte de algunos de sus participantes, un contexto cortesano bastante inmediato, con el propio monarca como centro, bien personalmente, bien a través de la simbología espacial del Palacio Real. La primera de ellas es el Anfiteatro de Felipe el Grande (Madrid, Juan González, 1631). Remite el libro a las fiestas celebradas en octubre de 1631, en las que un espectáculo de lucha de fieras culminó con la intervención del propio rey, quien con un tiro de arcabuz mató al toro vencedor. Entre la propaganda y la adulación, la acción del rey, hiperbólicamente contemplada en términos heroicos, se convierte en objeto de un centenar de poemas recogidos en el opúsculo por José Pellicer8. La extensa nómina de autores, encabezada por la nobleza de título en las personas del Príncipe de Esquilache, el Marqués de Alcañices, el Conde de Coruña y el Marqués de Jabalquinto, posiblemente desdibuja las concomitancias con los más modestos Avisos para la muerte, pero, aparte de otra coincidencia editorial sobre la que volveré más adelante, no parece irrelevante el hecho de que dieciséis de los treinta autores que escriben para los Avisos estén presentes aquí9. También merecen recordarse los Elogios al Palacio Real del Buen Retiro escritos por algunos ingenios de España (Madrid, Imprenta del Reino, 1635)10, donde se celebraba el nuevo Palacio, pronto convertido en centro de no pocas diversiones cortesanas, entre las que no iban a faltar ni las veladas poéticas, como la Academia burlesca celebrada dos años más tarde, en la que intervienen unos cuantos autores presentes en los Avisos, ni las representaciones teatrales cortesanas, con Calderón a la cabeza11. El impreso recoge una treintena de poemas, y entre sus autores, once Madrid, 1973, vol. III, 411-412). 8 Hay ed. facsímil de Antonio Pérez Gómez, La fonte que mana y corre..., Cieza, 1974. Sobre la mitificación del monarca en la obra, véase Francisco J. Díez de Revenga, Monarquía y mito en la España del Siglo de Oro: el Anfiteatro de Felipe el Grande, in El mito en el teatro clásico español (coord. Francisco Ruiz Ramón y César Oliva), Madrid, Taurus, 1988, 196-202. 9 Son: Alfonso de Batres, Gabriel Bocángel y Unzueta, Pedro de Bolívar y Guevara, Pedro Calderón de la Barca, Gaspar de la Fuente Vozmediano, Antonio de Huerta, Antonio de León, Antonio Mira de Amescua, José y Antonio Pellicer, Juan Pérez de Montalbán, Gabriel de Roa, Francisco Rojas Zorrila, José de Valdivielso, Lope de Vega y Luis Vélez de Guevara. 10 La recopilación fue realizada por Diego de Covarrubias y Leyva. Hay ed. de Antonio Pérez y Gómez, Valencia, Tipografía Moderna, 1949. 11 La Academia burlesca se conserva manuscrita y fue editada por primera vez por Alfred Morel-Fatio, Académie burlesque célébrée par les poètes de Madrid au Buen Retiro en 1637, in L’Espagne au XVIe et au XVIIe siècle, Heilbronn, Henninger Frères, 1878, 603-676); ahora hay también edición de M.ª Teresa Julio, Madrid, Iberoamericana / Vervuert, 2007. Luis Vélez de Guevara fue el presidente, Alfonso de Batres, secretario, y Francisco Rojas, fiscal; aparte de estos, vuelven a encontrarse otros autores presentes en los Avisos: Juan Navarro, Gaspar de la Fuente Vozmediano, Felipe Godínez, Antonio de Medina y Fonseca, Antonio y José Pellicer, Juan Pérez de Montalbán, Luis Ramírez de Arellano, Gabriel de Roa, Pedro Rosete Niño y José de Valdivielso. Para la significación del Palacio del Buen Retiro como lugar de esparcimiento del rey y su corte y como plataforma para la imagen de monarca protector de las artes, véase Jonathan Brown y John H. Elliott, Un palacio para el rey. El Buen Retiro y la Corte de Felipe IV, ed. revisada y ampliada, 48 Los Avisos para la muerte de Luis Ramírez de Arellano figuran en los Avisos, entre ellos el mismo Ramírez de Arellano12. La complejidad del mundo literario madrileño en un momento en que la Corte se consolidaba como espacio excepcional de producción y mecenazgo impide reconocer en estas concomitancias de autores una auténtica relación coherente y estable de grupo. El gran número de ingenios atraídos por estas posibilidades sociales y literarias y las vicisitudes cambiantes de sus relaciones personales conforman un entramado aún poco estudiado en su conjunto, salvo en sus polarizaciones en torno a sonadas polémicas literarias como la desatada entre los admiradores de Góngora y los «poetas llanos» estéticamente identificados con Lope. Pero amistades y enemistades no siempre fueron abiertas y definidas y, en el mismo espacio poético de los Avisos para la muerte, junto con Lope y amigos suyos próximos, como José de Valdivielso o Pérez de Montalbán, coinciden destacados comentaristas y defensores gongorinos, como Pellicer y Salcedo Coronel. Por otra parte, los datos dispersos sobre la llamada Academia de Madrid tampoco dan pie a hipótesis firmes en torno a su posible vinculación con los ingenios de los Avisos, si bien varios de ellos (Lope, Pellicer, posiblemente Vélez de Guevara, Batres, Rojas Zorrilla, Rosete Niño y Antonio de Huerta), parece que estuvieron en el algún momento relacionados con ella13. En resumidas cuentas: los autores presentes en la colección, o al menos una proporción bastante significativa, participaban de un mundo cortesano con aspiraciones literarias que ya se había concretado en varios casos en una trayectoria, dilatada o incipiente, de publicación. A diferencia de lo que ocurre en el Anfiteatro de Felipe el Grande, están ausentes los grandes títulos nobiliarios, aunque no algunos representantes de una nobleza más modesta, como el propio compilador, a quien Suárez de Figueroa menciona como «hijo de nobles padres»14. Además, pueden resultar de interés las sucintas identificaciones que en algunos casos proporcionan las rúbricas de los poemas en el impreso, con su función de «carta de presentación» inmediata ante el lector. Significativamente, la colección aparece encabezada por los autores con un cargo eclesiástico declarado. En primer lugar, Lope de Vega, en cuyo círculo de amistades se encuentran varios de los ingenios participantes; sin duda, se trata de una figura de interés en la colección por su específico peso literario, pero además hay que Madrid, Taurus, 2003, con particular referencia en 209-213 a las fiestas de 1637, de las que formó parte la Academia burlesca. 12 Son: Gaspar de la Fuente Vozmediano, Felipe Godínez, Antonio de Medina Fonseca, Antonio Pellicer, José Pellicer, Juan Pérez de Montalbán, Luis Ramírez de Arellano, Gabriel de Roa, Pedro Rosete Niño, José de Valdivielso y Luis Vélez de Guevara. Como puede apreciarse, los nombres vuelven a coincidir en gran medida con los que participan conjuntamente en los Avisos y en otros eventos poéticos como el Anfiteatro de Felipe el Grande (véase nota nº 8) y la Academia burlesca del Buen Retiro. 13 José Sánchez, Academias literarias del Siglo de Oro español, Madrid, Gredos, 1961, 46-100. 14 Cristóbal Suárez de Figueroa, Plaza universal, ed.. cit., f. 237. 49 Inmaculada Osuna considerar la particular influencia que pudieron haber ejercido sus Soliloquios, poco antes vueltos a publicar con adiciones, en la conformación poética de los Avisos. Aquí Lope aparece caracterizado en la rúbrica por su hábito de San Juan, distinción de concesión papal que había recibido pocos años antes. Le siguen fray Diego Niseno, «Provincial de la sagrada Orden de san Basilio el Magno», Antonio Mira de Amescua, «Arcediano de la santa Iglesia de Guadix», y José de Valdivielso, «Capellán de honor del Serenísimo señor Infante Cardenal». A partir de aquí, y empezando por Juan Pérez de Montalbán, hijo del librero que durante años fue beneficiario efectivo del privilegio para la publicación del libro, los autores recogidos solo ocasionalmente son mencionados con algún tipo de distinción social o profesional – pero ya nunca eclesiástica –, tal vez porque poco podían aducir, aparte de algún título académico o el tratamiento de «don». Con todo, aun en esos pocos casos, pueden señalarse algunos cargos que hoy identificaríamos con la administración del Estado (un relator en el Real Consejo de Indias, un abogado de los Reales Consejos) y otros de carácter palaciego, bien en relación directa con el Palacio Real (así, un «criado de Su Majestad»), bien del entorno del Cardenal Infante (su bibliotecario, su caballerizo); además, el promotor de la iniciativa, caracterizado por Valdivielso en el prólogo como «un espíritu desengañado, un cortesano advertido y un filósofo cristiano» (h. 9r), se crió en el círculo del arzobispo de Toledo don Bernardo Sandoval y Rojas, como el propio Valdivielso y, según Álvarez y Baena, también el recopilador. Por lo demás, se sabe que, entre tales ingenios, los hay eclesiásticos (el propio Pérez de Montalbán, Felipe Godínez o Francisco Quintana, por citar solo algunos ejemplos distintos de los ya aludidos), pero asimismo seglares, como Calderón, aún no ordenado, José Pellicer, Gabriel de Henao – mencionado como Caballero de la Orden de Santiago –, Francisco de Rojas Zorrilla, etc. Estas consideraciones de índole social, aunque someras e incompletas, no parecen irrelevantes para ilustrar las connotaciones de socialización que se ciernen sobre la propuesta espiritual que da cuerpo al argumento del libro. La poesía religiosa, aparte de su componente devoto – del que no tenemos por qué prescindir –, también sirve para relacionarse socialmente, para hacerse visible en un determinado entorno literario e incluso para ubicarse cerca de los focos del poder. La parcial coincidencia de autores con colecciones poéticas colectivas relacionadas con circunstancias festivas es un indicio más de cómo los temas religiosos comparten, sin fisuras ni exclusiones, y a veces indistintamente, los espacios de la socialización poética que propicia la vida ciudadana barroca, y en este caso, de manera más concreta, la vida cortesana. Quizás no sea ocioso volver a recordar los Soliloquios de Lope de Vega. Inicialmente compuestos en 1612, tras el ingreso de Lope en la Orden Tercera 50 Los Avisos para la muerte de Luis Ramírez de Arellano de San Francisco, y normalmente interpretados como fruto inmediato de la crisis espiritual del autor, fueron remodelados para una nueva publicación, que tuvo lugar en 1626. Así resume Hugo Lezcano Tosca ese cambio de circunstancias vitales: «En 1626, la situación ha cambiado. Lope ha dejado de publicar obras religiosas, su vida personal es objeto de críticas y escándalos, y ha mantenido acaloradas disputas contra los culteranos. Los Soliloquios, dirigidos a Inés de Zúñiga, se presentan como una obra religiosa con la que Lope pretende ganarse el favor de la familia Olivares»15. En esta línea, Lezcano Tosca destaca el contraste entre los paratextos de la versión de 1612, de índole «penitencial», con el protagonismo de la Orden Tercera, y los de 1626, en los que se manifiestan las aspiraciones de integración cortesana de Lope, de manera evidente con la dedicatoria a la esposa del Conde Duque de Olivares, más indirectamente en el prólogo, a través de temas como la envidia, la maledicencia y la murmuración16. Más adelante volveré sobre esta dicotomía entre paratextos de significación social y paratextos devotos a propósito de los cambios en las dedicatorias de los Avisos para la muerte, pero ahora lo que me interesa extraer de ejemplo tan próximo en el tiempo, protagonizado por uno de los autores recogidos en los Avisos e incluso con un tipo de poesía tan afín a la de esta colección, es ese componente social, a veces incluso vinculado a precisas aspiraciones en la Corte, que puede subyacer bajo poemas tan aparentemente desligados de afanes mundanos. Por lo demás, la conjunción de lo individual y lo colectivo que supone la formulación personal del tema por parte de cada autor y su programada reincidencia a lo largo de la colección se manifiesta en sintonía evidente con la piedad contrarreformista, con esa pretendida síntesis de la época entre la experiencia religiosa interior y una proyección social que, más allá de ritos nucleares y en esencia colectivos como la eucaristía, multiplica las manifestaciones públicas a través de fiestas, procesiones, rezos colectivos, etc. Tal síntesis, aquí de naturaleza literaria, puede traspasarse fácilmente a más concretos niveles biográficos. Piénsese, por ejemplo, en cómo determinadas congregaciones religiosas funcionaron de facto en la vida madrileña, no solo como cauce de aspiraciones espirituales, sino también como espacio propicio para las relaciones sociales y profesionales. Por ello, tal vez sea pertinente recordar – aunque limitaciones documentales impidan precisar en qué proporción y, por tanto, con qué posible incidencia en la espiritualidad reflejada en la colección – que varios de los autores representados en los Avisos para la muerte pertenecieron a este tipo de formaciones, abiertas tanto a clérigos como a seglares: así, Lope de 15 Hugo Lezcano Tosca, Los Soliloquios de Lope de Vega: paratexto, género, intertextualidad y edición crítica, Madrid, Universidad Autónoma de Madrid, 2004, 31. 16 Hugo Lezcano Tosca, Los Soliloquios., ed. cit., 11-49. 51 Inmaculada Osuna Vega, quien entre 1609 y 1611 pasó a formar parte de las congregaciones de Esclavos del Santísimo Sacramento del Oratorio de Olivar, del Oratorio del Caballero de Gracia y de la Orden Tercera de San Francisco17; o Luis Vélez de Guevara, también en el Oratorio del Olivar18; o Bocángel, secretario en 1633 de la Esclavitud del Caballero de Gracia19; o Pérez de Montalbán, ese mismo año «discreto» de la Orden Tercera franciscana20... Asimismo, la identidad de los autores interesa para un aspecto de cierta trascendencia con respecto a las prácticas de espiritualidad reflejadas en el libro. La colección se presenta como registro de un acto devoto que se transmite desde el peticionario a los poetas participantes, pero también como modelo para un receptor mucho más amplio a raíz de su divulgación fuera del círculo inicial mediante la imprenta. Se trata, desde luego, de una propuesta de devoción apta para laicos, sin afán totalizador, en tanto que bastante delimitada desde el punto de vista argumental, y sin las connotaciones de otros modelos de meditación y oración que reflejan hábitos monacales, como la liturgia de las Horas, o que requieren o al menos aconsejan el apartamiento de los quehaceres cotidianos, como los propios Ejercicios Espirituales ignacianos, con los que quizás estos poemas estén parcialmente relacionados21. Pero, además, en la colección los laicos no solo aparecen como objeto de adiestramiento, sino también como parte activa y casi en pie de igualdad con los autores que pueden presentar el aval del ministerio eclesiástico. Frente al tratado sistemático, lo que encontramos es una serie de poemas, de textos ejemplares, con unas indicaciones de autoría (y, en paralelo, de autoridad) en las que la distinción entre eclesiásticos y seglares no está marcada y, en consecuencia, no parece ser decisiva. Lógicamente, las limitaciones son evidentes. Los preliminares legales, garantes de ortodoxia, están firmados en la colección original por sendos Américo Castro y Hugo A. Rennert, Vida de Lope de Vega (1562-1635) [1919], Salamanca, Anaya, 1969, 186, 189 y 192. 18 Juan Pérez de Guzmán, La Esclavonía del Santísimo Sacramento, in La Ilustración española y americana, 1881, nº XXXI, 107. 19 Trevor J. Dadson, The Genoese in Spain: Gabriel Bocángel y Unzueta (1603-1658). A Biography, Londres, Tamesis, 1983, 40. 20 Cristóbal Pérez Pastor, Bibliografía madrileña, vol. III, Madrid, Tipografía de la Revista de Archivos, Bibliotecas y Museos, 1907, 452. 21 «Del cual apartamiento se siguen tres provechos principales, entre otros muchos: el primero es que en apartarse el hombre de muchos amigos y conoscidos, y asimismo de muchos negocios no bien ordenados, por servir y alabar a Dios nuestro Señor, no poco meresce delante su divina majestad; el segundo, estando ansí apartado, no teniendo el entendimiento partido en muchas cosas, mas poniendo todo el cuidado en sola una, es a saber, en servir a su Criador y aprovechar a su propia ánima, usa de sus potencias naturales más libremente, para buscar con diligencia lo que tanto desea; el tercero, cuanto más nuestra ánima se halla sola y apartada, se hace más apta para se acercar y llegar a su Criador y Señor, y cuanto más así se allega, más se dispone para rescibir gracias y dones de la su divina y suma bondad» (San Ignacio de Loyola, Ejercicios espirituales, in Obras, ed. de Ignacio Iparraguirre, Cándido de Dalmases y Manuel Ruiz Jurado, Madrid, BAC, 1991 (5ª ed. revisada y corregida), 227 (modernizo grafías). 17 52 Los Avisos para la muerte de Luis Ramírez de Arellano eclesiásticos, ambos, por cierto, próximos al círculo de Lope: el jesuita Francisco Macedo y José de Valdivielso, precisamente uno de los poetas que participan en la iniciativa22. Mucho más significativamente, es el propio Valdivielso, y no el compilador, el que suscribe el Prólogo, quedando así en manos de un clérigo – y por añadidura aprobante legal de la obra – la carga doctrinal que este conlleva a propósito de la dialéctica vida-muerte y la eficacia de vivir teniendo presente tal final. Quizás tampoco sea ajena a esta moderada ostentación clerical la ya citada anteposición de las composiciones pertenecientes a autores con dignidad eclesiástica destacable. Pero nada de ello resta validez al hecho de que los poemas, entendidos como oraciones modélicas, proceden tanto de clérigos como de seglares. En este sentido, parece también significativo el Acto de Contrición en prosa que cierra el volumen, puesto que, al margen de cuestiones de autoría – que no se especifican –, el encabezamiento del texto solamente insiste en relacionarlo con las prácticas devotas de Carlos V. Dice literalmente la rúbrica: Acto de contrición, con protestación de la Fe, que el Emperador Carlos Quinto nuestro Señor, que esté en el cielo, hacía delante de un Crucifijo todas las noches, antes de recogerse. Más adelante volveré sobre las relaciones de concomitancia o complementariedad del texto con los poemas. Lo que ahora me interesa subrayar es el hecho de que se recurra para su legitimación religiosa a una figura laica en vez de a alguna autoridad eclesial, abonada por la ordenación sacerdotal cuando menos, o por la santidad reconocida por la Iglesia cuando más. Valga el contraste con la recopilación de oraciones que incluye el jesuita Juan Bautista de Poza en su Práctica de ayudar a bien morir. En agrupaciones específicas, entre otras, de actos de contrición, de esperanza, de confesión y profesión de fe o de oraciones a la hora de la muerte, se recogen piezas diversas, siempre en prosa, algunas sin indicación de autoría y, por tanto, sin más aval expreso que el del autor del libro – pero sacerdote éste –, aunque también muchas singularizadas y autorizadas por santos, por el Sacerdotal Romano, o, si acaso, extraídas o formadas a partir de pasajes seleccionados de las Escrituras23. En ninguna de ellas, como sí ocurre Sobre los firmantes de preliminares legales de carácter censor en libros costeados por Alonso Pérez, Anne Cayuela ha señalado cómo «la elección casi sistemática de unos cuantos individuos deja percibir una connivencia entre autores y censores y quizás entre censores y editores»; ese es el caso de Valdivielso y su aprobación de los Avisos (Alonso Pérez de Montalbán. Un librero en el Madrid de los Austrias, Madrid, Calambur, 2005, 53-54). De hecho, en ellos aparecen otros redactores de aprobaciones para libros del mismo editor: Juan Pérez de Montalbán, Juan de Jáuregui y Diego Niseno (Anne Cayuela, Alonso Pérez de Montalbán. Un librero, ed. cit., 53-55). 23 Remito a Práctica de ayudar a bien morir... agora nuevamente añadido [sic] muchos ejemplos de Santos. Décima impresión, Barcelona, Sebastián de Cormellas, 1647, con una gama más amplia de oraciones que la edición de Madrid, Andrés de Parra, 1629, f. 61v-110v. El libro tercero de tal edición ampliada (f. 94r-143v) «Contiene los Actos de Contrición, agradecimiento, resignación y otras virtudes, y las Oraciones de Santos y Escrituras para la última enfermedad, y pueden servir para la vida»; al igual que en la edición de 1629, el 22 53 Inmaculada Osuna aquí, la autoridad de la oración se apoya en la vida – por muy modélica que fuera – de un laico no canonizado. Sin duda, estaría presente en cualquier lector del momento el valor ejemplar de la institución monárquica, y por consiguiente la posibilidad de reconocer en un rey un modelo de muerte cristiana, tal como, de hecho, la sociedad barroca, a través de crónicas, relaciones de honras y túmulos se encargó de potenciar. En el caso de Carlos V, su abdicación y subsiguiente retiro en el Monasterio de Yuste hasta su muerte debieron de dotar a la imagen modélica de unos contornos religiosos incluso más precisos24. Pero, además, no hay que descartar que la elección de la figura de un rey en los Avisos para la muerte estuviera en relación con el modelo cortesano que posiblemente animó, en su origen, a la colección. Tras la publicación de la obra en Madrid, en 1634, la aceptación fue inmediata. En palabras de Edward M. Wilson, «la cantidad pasmosa de reimpresiones de este libro de versos demuestra claramente el éxito, no de una antología poética, sino de un manual de devoción»25. La minuciosa labor de catalogación de Antonio Rodríguez-Moñino, con ejemplares a la vista de casi todas las ediciones hasta hoy localizadas y el acopio de otras noticias de diversas procedencias, permite reconstruir en buena medida esa historia editorial, cuyo inicio quizás no deba remontarse más atrás de esa edición madrileña de 163426. autor señala: «heme contentado con poner algunas pocas oraciones, y esas tomadas de los Santos y Escrituras, porque tengan mayor autoridad» (94v). 24 Véase, por ejemplo, Javier Varela, La muerte del rey. El ceremonial funerario de la monarquía española (1500-1885), Madrid, Turner, 1990, 35-39. De hecho, el acto de contrición, con escasas y no muy significativas variantes desde el punto de vista léxico, estaba ya recogido por fray Prudencio de Sandoval en el capítulo «Virtud católica y cristiana del Emperador» de su biografía del rey (Historia de la vida y hechos del Emperador Carlos V, ed. de Carlos Seco Serrano, vol. III (BAE, LXXXII), Madrid, Atlas, 1956, 566). 25 Edward M. Wilson, Un romance ascético de Calderón, art. cit., 80. En contrapartida, la difusión manuscrita no parece haber sido tan intensa; aunque haría falta un rastreo sistemático para afirmarlo sin reservas, puede resultar ilustrativo el exiguo balance a partir del Catálogo de manuscritos de la Biblioteca Nacional con poesía en castellano de los siglos XVI y XVII (coord. Pablo Jauralde, Madrid, Arco / Libros, 1998-2007), con información de los manuscritos 153 a 12.000 de dicha biblioteca: solo aparecen, dispersos, los romances de Juan Pérez de Montalbán (mss. 7741 y 11010), Lope de Vega (ms. 10540) y Gabriel de Henao (ms. 4095 y 3889). Por su parte, el Catálogo de pliegos sueltos poéticos de la Biblioteca Nacional. Siglo XVII (M.ª Cruz García de Enterría y Julián Martín Abad (dir.), Madrid, Biblioteca Nacional, 1998), pese a constatar la difusión en tal formato de composiciones semejantes, no incluye ningún poema de la colección original; del romance de Calderón, según estudia Edward M. Wilson, Un romance ascético de Calderón, art. cit., existió una versión más extensa que la incluida en los Avisos, inédita hasta el siglo XVIII, que circuló suelta a partir de 1757. Para los poemas añadidos a la colección primitiva también se conocen casos de difusión en pliego suelto en el siglo XVII; por ejemplo, el romance de Alonso Chirino y Bermúdez, Motivos de alcanzar la misericordia divina en el artículo de la muerte, Madrid, Julián de Paredes, 1649 (aquí acompañado de unas décimas cuya primera estrofa se incluye en una de las ediciones barcelonesas de 1636 y en la sevillana de 1697), y Granada, Imprenta Real por Baltasar de Bolíbar, 1663, o el poema de Sor Violante do Céu (véase Isabel Morujão, Incidências de «Esperança Mística» num Solilóquio de Soror Violante do Céu «Para a Agonia da Morte», in Os «últimos fins» na cultura ibérica dos sécs. XV a XVIII, Oporto, Instituto de Cultura Portuguesa, 1997, 205-235). 26 La descripción de las distintas ediciones puede encontrarse en Antonio Rodríguez-Moñino, Manual bibliográfico, ed. cit., vol. III, nº 176-207 (473-542). 54 Los Avisos para la muerte de Luis Ramírez de Arellano En ella figuraba ya el privilegio por diez años concedido al compilador, Luis Ramírez de Arellano, y a lo largo de ese período, las ediciones realizadas en Madrid, todas ellas respetuosas con la composición original del volumen, estuvieron financiadas por Alonso Pérez, librero de gran olfato comercial, que sustentó numerosos impresos de Lope de Vega y su círculo, aparte de los de su propio hijo, Juan Pérez de Montalbán27. En esa edición de 1634, el cuadernillo de preliminares incluye, primero, una cita de Séneca en el vuelto de la portada; a continuación una tabla del contenido, ejemplo de la preocupación editorial por la claridad que Anne Cayuela ha destacado en este librero28, y también muestra de su sentido comercial, pues enseguida deja a golpe de vista la impresionante nómina de esos ingenios que, genéricamente, ya publicitaba la portada; después, se encuentran los preliminares legales, entre ellos las aprobaciones mencionadas; les sigue la dedicatoria del compilador al promotor de la iniciativa29, y luego el prólogo de José de Valdivielso; por último, cierran los preliminares dos poemas de Juan de Jáuregui con el siguiente encabezamiento: Dos oraciones muy devotas para antes de la Confesión y sagrada Comunión, escritas a imitación de otras de san Buenaventura. Por su parte, la colección poética propiamente dicha está formada mayoritariamente por romances, veintisiete en total (dos de ellos heptasilábicos, es decir, endechas), y entre estos, sin agrupación discriminada, solo una silva y dos sonetos se salen de la tendencia general. El libro lo cierra el Acto de contrición en prosa ya citado. Así pues, aparte de obligaciones legales y convenciones proemiales de dedicatoria y prólogo, el contenido específicamente religioso aparece conformado por un núcleo central de composiciones de notable uniformidad métrica y sintomática identidad temática (el encabezamiento del primer poema puede valer por todos: «Hablando con un Cristo en las agonías de la muerte») y dos elementos complementarios, antepuesto uno, pospuesto el otro. Los poemas para antes de la confesión y de la comunión introducen un componente sacramental, sin duda apoyado en su común protagonismo en el ritual de la agonía junto con el específico de la unción de enfermos, pero además, por su sentido de purificación previa, comparten estos con los poemas de la colección el carácter penitencial; en cierto modo, aportan un matiz eclesial que compensa la relativa autonomía con que, en los poemas, el alma del moribundo accede al perdón por medio de Sobre esta figura esencial en el activo panorama literario y editorial del momento en la Corte puede verse ahora el libro de Anne Cayuela citado en nota nº 21. 28 Anne Cayuela, Alonso Pérez de Montalbán. Un librero, ed. cit., 46. 29 «Estos desengaños de nuestra mortalidad y avisos de lo que somos, que a la devoción de v.m. han escrito ingenios tan dignos de laureles inmortales, he querido que tengan por su protector en la estampa al mismo que alcanzaron por dueño en el asunto» (h. 7v-8r). 27 55 Inmaculada Osuna la contrición y a Cristo mismo a través de la contemplación o de la inminente muerte; con ellos, además, se potencia la faceta de devoción frecuente, y no exclusiva para el momento de la agonía, que en definitiva propone la colección. Por su parte, el Acto de contrición con protestación de la fe entra en relación de afinidad y complementariedad con los poemas de la colección por varios motivos: por una parte, coincide con estos en su relación con el ritual de la muerte, en el carácter penitencial y, en este caso concreto, en una precisión que el encabezamiento se preocupa de detallar, la de la oración expresamente realizada delante de la imagen de un crucifijo; por otra parte, la protestación de la fe cubre de manera específica una de las virtudes teologales en las que el moribundo debía perseverar, en cierto modo más desatendida que la esperanza y la caridad en los poemas, al menos en su formulación más directa y desarrollada. En 1644, apenas expirado el privilegio de diez años, volvió a editarse en Madrid la colección, con licencia a favor de Luis Ramírez de Arellano, igualmente a costa de Alonso Pérez, y por Francisco García, Impresor del Reino30. Con todo, volvió a solicitarse otro privilegio a beneficio de Alonso Pérez, esta vez por cuatro años, según consta en otra nueva edición madrileña, que salió a la luz ya en 1648. Poco antes había muerto el librero, y quedaban aún en sus almacenes 1.600 ejemplares de la colección31. En esta edición de 1648, el apego a la composición original del libro seguía siendo notable, pero no absoluto. Al menos en el ejemplar consultado, no aparece el Acto de contrición, aunque sí figura en la tabla32. Además, la antigua dedicatoria fue cambiada por otra, tal vez por defunción de los implicados: ahora esta venía firmada por el impresor y estaba dirigida al licenciado Antonio de León – León Pinelo, el conocido autor de los manuscritos Anales de Madrid y de numerosas obras de tema americanista –, persona que cumplía aún dos de las características del primitivo dedicatario: su vinculación con la iniciativa (en este caso como poeta participante) y el desempeño de un cargo en la administración (el de relator del Real Consejo de Indias). El privilegio atañía solo al reino de Castilla, y fuera de él la colección no tardó en iniciar su andadura editorial, desde las prensas de Valencia (1634), Es la única edición actualmente localizada que Rodríguez-Moñino no reseña. Posteriormente la documenta, entre otros, Justa Moreno Garbayo, La imprenta en Madrid (1626-1650), Madrid, Arco/Libros, 1999, nº 2702. Entre los preliminares, solo varían los de carácter estrictamente administrativo: la nueva suma de la tasa se fecha en Madrid, 29 de octubre de 1644, y procede del oficio de Agustín de Arteaga; la licencia aparece firmada por el mismo a 24 de octubre, la fe de erratas, por Francisco Murcia de la Llana, un día antes. 31 Anne Cayuela, Alonso Pérez de Montalbán. Un librero, ed. cit., 303. Posiblemente por ser la última edición madrileña en vida del librero, los atribuye la autora a la de Francisco García, 1644 (ed. cit., 225-226). 32 Se trata del BNE 7/108641. Según la tabla, el Acto de contrición debía figurar en el f. 126v; ahí acaba, en efecto, el último poema, pero no se aprovecha el espacio en blanco para comenzar el texto, ni tampoco hay reclamo que haga suponer que comenzara – aun así, en contra de lo indicado en la tabla – en el folio siguiente. 30 56 Los Avisos para la muerte de Luis Ramírez de Arellano Barcelona (1636, 1637) y, sobre todo, Zaragoza (1637, 1640, 1648, 1657, 1665)33. A partir de la década de los cincuenta, expirados ya los privilegios, se sumaron Sevilla, donde la colección se imprimió en varias ocasiones (1652, 1660, 1697)34, y también, con menor vigor, Lisboa (1659) y Alcalá (1671). En realidad, solo a partir de 1660 las ediciones empezaron a espaciarse, hasta casi desaparecer en las tres últimas décadas del XVII; en el XVIII no hubo más que dos (1772 y 1777), y por último, una en 1832. Tal proliferación con frecuencia trajo cambios. Entre los más anecdóticos está la desaparición de la cita de Séneca en la segunda mitad del siglo, salvo en las ediciones zaragozanas y alguna recuperación ya del siglo XVIII, sin duda condicionada por la edición de la que copiaba. En realidad, aunque todas las anteriores a 1652 parecen haberla interpretado como parte integrante de la colección, pudo ser una «marca» relativamente externa a esta. La inercia de la copia de ediciones anteriores y la aureola moral de Séneca posiblemente se aunaron para su repetida inclusión. Pero el hecho es que el texto no sugiere conexión particular con el contenido del libro: «Non est quod mireris animum meum: adhuc de alieno liberalis sum. Quare autem alienum dixi? Quidquid bene dictum est ab ullo, meum est»35. Con todo, su análoga presencia en el Anfiteatro de Felipe el Grande convierte hoy en día a esa cita en sugerente muestra de la proximidad de ambos impresos, bien a través del entorno de producción o compilación de los poemas, bien por los cauces estrictamente editoriales. Por otra parte, la expiración del privilegio hizo que las ediciones se multiplicaran, llegando a salir incluso varias en un mismo año en Madrid a cargo de distintos impresores y libreros. Esto, aunado a la necesaria renovación con el paso del tiempo, se tradujo en una diversificación de las dedicatorias. La tendencia inicial de elegir destinatarios de relevancia profesional quedó modificada primero con la elección de un miembro de la nobleza, el Marqués del Fresno, ya en la edición sevillana de 1652 y también en una de las de Madrid 165936. Con ello se debilitaba la conexión intrínseca entre el contenido del libro Para más detalles, véase el Apéndice. Antonio Rodríguez-Moñino (Manual bibliográfico, ed. cit., nº 187) supone una edición sevillana de 1648, basándose en la muy anterior datación de la licencia otorgada a Nicolás Rodríguez que figura en su edición de Sevilla, 1660; tal licencia está fechada en Madrid a 16 de octubre de 1647, y además, la suma de la tasa y la fe de erratas lo están también en Madrid, a 27 y 24 de marzo de 1648 respectivamente. Con todo, la hipótesis deja algunos interrogantes: en la edición sevillana de 1652, del mismo impresor, la suma de la licencia y la de la tasa están sin fecha, pero la de la fe de erratas es de 24 de mayo de 1652; resulta, pues, extraño, que la de 1660 retome la de 1648, y no la de esta posterior; además, las fechas indicadas en los preliminares legales de 1660 coinciden sospechosamente con los de la edición de Madrid, Julián de Paredes, 1648, que concedía privilegio (no licencia, como en la edición sevillana) a Alonso Pérez de Montalbán. 35 «No tienes por qué admirar mi generosidad; me muestro hasta ahora liberal con el patrimonio ajeno. Mas, ¿por qué lo califiqué de ajeno? Todo cuanto está bien dicho por alguien, me pertenece» (trad. de Ismael Roca Meliá, Madrid, Gredos, 1986, 162). 36 La edición sevillana parece resentirse de alguna anomalía al respecto: el dedicatario aparece en la portada, 33 34 57 Inmaculada Osuna y la identidad del dedicatario. Así, la dedicatoria de dicha edición madrileña, firmada por su impresor, Andrés García de la Iglesia, apenas si echa mano sino de varios tópicos sobre la costumbre, entre quienes imprimen – y nótese el género que, como al desgaire, se menciona – «algún tratado», «de consagrarle a la sombra de algún Príncipe» (h. 3r). El razonamiento deriva en el elogio del marqués como modelo de conjunción de nobleza heredada y virtud adquirida, y la única referencia específica al libro consiste en argumentar – con total convencionalismo y contra toda evidencia, a tenor de las múltiples ediciones – la necesidad de «protección» que requiere su materia: «Tan mal recibidos juzgo los avisos de la muerte, en el olvido de los mortales, que solamente la sombra del Mecenas que elijo puede suavizar tanta amargura, con que por este camino aseguran estos avisos grata audiencia en los oídos más olvidados de materia de tanta importancia» (h. 3v). Por los mismos años se pasó de los dedicatarios de relevancia social a otros de significación religiosa, como San Juan de Dios o la Virgen María; y como ligera variación, en la edición de Madrid 1672, el General de la Orden de San Juan de Dios. Los derroteros devocionales de la colección acabaron, así, imponiéndose también en este espacio, aunque con elecciones particulares que parecen independientes del preciso tema del libro, pues solo la última, la de 1672, apela a la relación entre este y la vocación hospitalaria – y por tanto cercana a la enfermedad y la muerte – de la Orden de San Juan de Dios. Aparte de la supresión del Acto de contrición, ocasional a veces, pero sistemática en las ediciones zaragozanas, o la introducción de algún otro texto, como la Meditación muy provechosa, sintetizada en breves sentencias, con articulación conceptual clara y estructuras paralelas mnemotécnicas de peculiar disposición gráfica, el otro gran grupo de modificaciones se produjo en torno al corpus poético de la colección. Ya ocurrió en las tempranas ediciones barcelonesas de 1636 y 1637, con la adición de uno o dos poemas, entre ellos un romance en catalán, signo de interés comercial por adaptar el producto, aunque fuera de manera tan reducida, a un público distinto. A partir de 1652 el volumen de adiciones tendió a aumentar ligeramente. En todo caso, esta ampliación no resultó demasiado dispar en las diferentes ediciones. Varias, entre ellas todas las madrileñas conocidas desde 1652 a 1672, añadieron un bloque invariable de cinco romances y un poema en décimas; en la última de ellas se incluían, como novedad, tres poemas más de un religioso pero no hay texto de dedicatoria en el libro, al menos en los dos ejemplares consultados, RAE RM 4803 y BNE R/2846 (este último sin los preliminares completos). En la edición de Madrid, Andrés García de la Iglesia, 1659, sí aparece el texto de la dedicatoria firmado por el impresor. Quizás de nuevo haya que pensar en alguna edición desconocida, posiblemente madrileña (pero a diferencia de las de 1652 de la Imprenta Real y de Julián de Paredes, con dedicatoria al Marqués del Fresno), a la que copiaría la sevillana de 1652. 58 Los Avisos para la muerte de Luis Ramírez de Arellano de la orden de San Juan de Dios. La edición de Lisboa 1659 no se sumó a estas adiciones, pero aportó otras que supusieron una tímida aceptación de ingenios propios (de hecho algunos poemas están en portugués), de manera análoga a lo que había sucedido en la edición barcelonesa de 1637; además, mostraba otra adición que no se sabe si remonta a alguna edición española perdida: la inclusión en preliminares de cuatro Soliloquios de Lope de Vega. Por su parte, la inclusión de un poema de la Condesa de Paredes, junto con otros presentes en la edición lisboeta, en la tardía edición de 1832 sugiere la hipótesis de alguna impresión desconocida del siglo XVII que ya lo recogiera, quizás esa «octava edición» del libro salida en 1659, hoy desconocida, a la que remite la nota del editor. Con todo, las adiciones no fueron tan amplias como para desdibujar por completo la recopilación original, e incluso en algún caso los poemas añadidos al cuerpo de la colección aparecieron precedidos de la explícita marca «Fin de los Avisos»37. Tampoco parece que se hicieran premeditadas «mutilaciones» en el corpus poético original. En la edición sevillana de 1697 se suprimieron los dos sonetos, pero quizás haya que atribuirlo a inconvenientes materiales, ya que el reducido formato de algunas ediciones en doceavo o dieciseisavo, entre ellas esta, obligaban a un cambio de tipos o a desastrosas composiciones tipográficas para los poemas endecasilábicos. Así pues, la colección mantuvo cierta estabilidad a pesar de su dilatada vida editorial, como si hubiera adquirido una identidad propia que las ocasionales ampliaciones, a modo de adaptación a nuevas épocas y nuevas geografías, no llegaron a anular. Esta pervivencia, frente a tantos otros volúmenes colectivos de poesía religiosa – piénsese por ejemplo en las numerosísimas justas poéticas de tema religioso nunca reimpresas en la época –, dice mucho de la superación de su originario carácter circunstancial para convertirse en un verdadero libro para la oración. Los poemas allí reunidos no solo tuvieron el acierto de no transparentar el acontecer concreto que les dio origen, solo desvelado en una dedicatoria y prólogo a veces omitidos, sino que además mostraron tal indefinición en las vicisitudes del yo poético moribundo reflejado que no debió de ser difícil que devotos o directores espirituales vieran en ellos un instrumento provechoso. Ya la dedicatoria de Luis Ramírez de Arellano permite deducir lo que podríamos considerar como «instrucciones de uso». Cuando este elogia la actitud 37 Así sucede al menos en una de las dos ediciones de Barcelona, 1636 (Antonio Rodríguez-Moñino, Manual bibliográfico, ed. cit., nº 181), antes del Consuelo del alma contrita, y en la de Sevilla, 1697, antes del romance de Alonso Chirino (su licencia remite, sin concretar año, justo a una edición barcelonesa; casi todos los textos añadidos al volumen original se hallan en la otra edición barcelonesa de 1636, que no he podido consultar, pero su distribución es distinta y, según la descripción de Rodríguez-Moñino (Manual bibliográfico, ed. cit., nº 182), no incluye el romance a la Virgen de la edición sevillana). En la edición valenciana de 1772 la indicación de «Fin de los avisos» se sitúa detrás de los poemas añadidos, para separarlos de los poemas de Jáuregui, emplazados al final. 59 Inmaculada Osuna de quien propuso la composición de estos poemas y desvela el razonamiento que le guió en tal iniciativa, está de paso proyectando sobre los lectores una adecuada metodología de recepción que, desde luego, supera la mera lectura. En tales términos lo expresa: «y en ellos [en los poemas, calificados como “desengaños de nuestra mortalidad”] pretendo yo que el mundo vea lo que cuida v.m. de aquella postrera agonía, pues porque sea más fácil entonces, la va disponiendo (no digo templando) en la dulzura de las Musas, para que acostumbrado el labio a repetir estas ternuras, en aquella hora tremenda, acompañado del corazón, no extrañe la carne la conformidad ni el golpe.» (h. 8r-8v) El sentido de adiestramiento y reiteración también reaparece en algunos momentos del prólogo de Valdivielso a propósito de la conveniencia de una asidua meditatio mortis, de fomentar «la conversación con la muerte, que es más espantable cuando viene toda junta» (h. 12r), sobre la base de que, «supuesto que no se puede vivir dos veces, es gran acuerdo, pues se puede morir muchas, hacerlo para acertar una, meditando sus males y su bienes» (h. 12r). Hacia el final del prólogo, otro pasaje retoma esa idea de «ensayo» reiterado: «Esta dotrina importante tanto, ejecuta y enseña este bien quisto talento [i. e.: el dedicatario], pautando en la vida las líneas para la última della [...], y ensayando el papel de mortal [...], tantas veces, que no le deje de acertar en el teatro del lecho, amparado del favor divino, que es quien le ha inspirado estas acertadas piedades y estos cristianos aciertos.» (h. 13r-13v) Sin que pueda hablarse de un «fetichismo» de la palabra exacta – de hecho superado por la propia variación de formulaciones que supone cada poema –, y con el reconocimiento de la complementariedad entre oración vocal y oración mental que desliza la mención de «labio» y «corazón» en el pasaje de Ramírez de Arellano, no pasa desapercibida la íntima relación que se establece en ambos pasajes entre palabras fijadas en la memoria y una buena muerte. A ello se suma la alusión a formas literarias, ya sea en términos reales o metafóricos: en la dedicatoria, con la pragmática función de «la dulzura de las Musas», que de alguna manera ajusta al contexto el dulce et utile tan manido en la justificación de la poesía, y en el prólogo, con los tópicos de la vida como libro o como representación. Incluso en este último caso, en el que las referencias son alegóricas, hay una precisa remisión a las composiciones – Pellicer se refiere a las escritas por él justo como «Última línea de la Vida, y Avisos para la muerte, en 60 Los Avisos para la muerte de Luis Ramírez de Arellano Tres Romances» –, concebidas estas como las últimas palabras – a su vez, actos: de contrición, de esperanza, de amor a Dios – que han de concluir ese libro de la vida personal o que, tras su constante ensayo, deben brotar, como propias, en el lecho de muerte, teatro último de la representación de la vida. La propuesta espiritual que suponen esos poemas resulta bastante definida y homogénea. También en ello la reiteración, lejos de considerarse perniciosa, parece un valor añadido, posiblemente paralelo al de la repetida lectura y casi memorización. Lógicamente, puede advertirse variación de matices, pero hay una básica coincidencia situacional, de inspiración netamente cristocéntrica: un yo moribundo se dirige en estilo directo a Cristo crucificado. En casi todos los poemas afloran referencias explícitas o suficientemente reconocibles a propósito del momento de la agonía. No hay, pues, una ambigüedad situacional que permita leer esos versos como oración intercambiable a otros contextos meditativos o penitenciales; por supuesto, ello no impide su utilización como devoción habitual: simplemente hace imposible leerlos al margen de la consideración, individual, no abstracta, de la muerte. Abundan, a tal fin, las fórmulas que acentúan la precisa temporalidad, a veces desde el primer verso, perfilando la situación comunicativa de partida: ahora, antes de que el «yo» pierda el don de la palabra – la palabra externa, por el entorpecimiento de la lengua, o la interna, por pérdida de la conciencia –, es el momento de dirigirse a Dios. Esa precisión temporal se combina en bastantes casos con alusiones a los síntomas físicos y anímicos con que se manifiesta la agonía. En unos poemas donde, como se verá más adelante, las notas patéticas de la Pasión de Cristo están relativamente atenuadas, no deja de contrastar la atención que algunos poetas dedican al deterioro físico personal, sin duda en conexión con las meditaciones propuestas en algunos tratados de oración, como se ve, por ejemplo, en fray Luis de Granada: «Mira también aquellos postreros accidentes de la enfermedad, que son como mensajeros de la muerte, cuán espantosos son y cuán para temer. Levántase el pecho, enronquécese la voz, muérense los pies, hiélanse las rodillas, afílanse las narices, húndense los ojos, párase el rostro difunto, y la lengua no acierta ya a hacer su oficio, y finalmente, con la prisa del ánima que se parte, turbados todos los sentidos, pierden su valor y su virtud. Mas, sobre todo, el ánima es la que allí padece mayores trabajos, porque está batallando y agonizando, parte por la salida, y parte por el temor de la cuenta que se le apareja. Porque ella naturalmente rehúsa la salida, y ama la estada, y teme la cuenta.»38 38 Fray Luis de Granada, Tratado de la oración y meditación, ed. de Cristóbal Cuevas, ed. cit., 733. 61 Inmaculada Osuna En tal línea de minucioso detalle puede destacarse el largo período inicial del romance de José Pellicer, que durante unos ciento veinte versos aborda la descripción de los síntomas físicos de la agonía y aun se extiende a los efectos anímicos y el escenario que rodea a esta. Valgan de ejemplo solo algunos versos: «Antes, Señor, que la muerte con el sangriento cuchillo violentamente desate el vital estambre mío; antes que a su airado soplo, que ya contemplo vecino, la débil llama se apague de aqueste humano pabilo; antes que, caduco el labio o embargados los sentidos de ardiente fiebre, padezca riesgo mayor el juicio; antes, pues, que quede el alma en más eficaz peligro, y confisque las potencias o el letargo o el delirio; ya que cerca de cadáver en trágica lid me miro, luchando con la agonía del último parasismo; del mundo desahuciado, neutral entre muerto y vivo, ya retirado los pulsos y los miembros casi fríos; yerto y cárdeno el semblante, tasado el aliento y tibio, la respiración cansada, el corazón encogido; quebrados, Señor, del rostro los dos animados vidros, los dos cristales vivientes, los dos humanos zafiros; 62 Los Avisos para la muerte de Luis Ramírez de Arellano la voz ya descuadernada, y la faz con desaliño, a la luz de parda antorcha, formando pálidos visos; sin uso el tacto en las manos, y mustio aquel indistinto color, que púrpura y nieve fue de mi edad al principio; enmarañado el cabello, que pudo, en crespos anillos, ser vanidad del cuidado y empeño del artificio. [...] quiero, en la breve distancia que me concede de alivio este de nuestras miserias achaque mortal preciso, aprovechar los instantes, ya que tan mal he vivido que guardé para este aprieto la enmienda de tantos vicios.» Sin llegar a tales extremos, también pueden hallarse pasajes de cierto detenimiento en los poemas de Gabriel de Roa, José de Valdivielso, Calderón, Vélez de Guevara, Bocángel, Alfonso de Batres... Incluyen asimismo los poemas una serie de tópicos religiosos exclusivos de ese momento, como la conciencia de proximidad al juicio particular del alma o la fórmula por la que el moribundo, en eco de las palabras de Cristo, encomienda su alma a este. A su vez, las expresiones de contrición no inciden de manera explícita, en coherencia con la propia circunstancia, en una de sus condiciones necesarias, el propósito de enmienda, proyección de futuro inadecuada al momento. De ahí que la firme conversión deba expresarse como optación con respecto a un pasado inamovible (así, en Rojas Zorrilla: «¡Oh, quién hubiera vivido / con alma tan temerosa / (¡oh Jesús!), como si en ti / no hubiera misericordia!», f. 66v); lo contrario, proponer la enmienda como hipótesis en caso de que la muerte se pospusiera, podría incluso entrar en colisión con la actitud que las artes moriendi pautan para una muerte cristiana: la paciente aceptación de la agonía, cuyo sufrimiento inicia la purga de las culpas, 63 Inmaculada Osuna y la consideración tanto de la vanidad del deseo de prolongar la vida como de las ventajas de morir ya en gracia de Dios sin dar más ocasión al pecado. Quizás no se les escapó a algunos autores el componente de artificiosidad o convencionalismo que conllevaba esa «composición de lugar», auténtica teatralización donde el yo se veía a sí mismo en el centro del ritual de la muerte, no solo en virtud de la ficción poética, sino también, supuestamente, en el ejercicio de imaginación o memoria que entrañaba la práctica real de devoción. De hecho, en algunos poemas se anuló la ambigüedad entre el yo poético que se expresaba y el (posible) yo biográfico del autor, distanciando el discurso en estilo directo en una tercera persona, un «moribundo» innominado. Sin embargo, pocos se valieron de este recurso, que al fin al cabo mermaba la impresión de inmediatez y patetismo39. También se percibe el convencionalismo de los poemas en la caracterización del yo poético. De hecho, una de las paradojas que recorrerá el planteamiento de los textos es la dialéctica entre lo individual de la experiencia reflejada por una parte (es decir: la del enfrentamiento personal y en solitario ante la muerte, la de la interpelación íntima a Dios) y, por otra parte, el sentido colectivo de su plasmación, como modelo compartido por varios autores y, a su vez, no particularizado, teóricamente asumible por un lector ideal que se vería identificado en cada uno de los textos. En efecto, los poemas evitan el detalle biográfico. El yo se refiere a sus muchos pecados, pero ninguno se concreta; muy rara vez se puede sospechar la precisa naturaleza de estos, como cuando en el romance de Juan Navarro de Espinosa, aparte de referencias más vagas como la confianza en «glorias humanas», las «mal miradas ofensas» y los «livianos apetitos», se evoca algún pecado que, perdidos los bríos de la juventud, únicamente puede cometerse con el deseo («Ya que, de la edad cansado, / al pecar faltaron bríos, / desfrenando deseos / malogré vuestros avisos», f. 101v). Tampoco se explicitan circunstancias como rango social, estado civil, condición clerical o laica... En medio de la radical intimidad que se conforma en la comunicación entre moribundo y Cristo, muy pocos poetas incluyen otras presencias mundanas a su alrededor, posiblemente de nuevo en coherencia con los dictados de las artes moriendi que en familiares y amigos, en vez de un apoyo o consuelo, veían más bien un potencial factor de distracción o distorsión en medio de las debidas devociones del agonizante, cuando no, como en el Ars Aparece, sin embargo, en el poema inicial, de Lope de Vega: «Cercado de congojas, / mortales parasismos, / cuidado de los muertos, / descuido de los vivos, / llegado de su vida / al último suspiro, / así le dijo un hombre / a Cristo Crucifixo» (f. 1r-1v). De nuevo se acude a él, con marcas explícitas al inicio y al final, en el romance de Francisco Quintana (f. 31r-31v y 35r); en el de Antonio de León, el poema parece discurrir por los cauces habituales del discurso en primera persona, pero en el remate se revela la perspectiva externa: «Esto a un Cristo le decía / un alma contrita y tierna, / que de su pena o su gloria / iba a escuchar la sentencia» (f. 43v). 39 64 Los Avisos para la muerte de Luis Ramírez de Arellano moriendi medieval, un objeto de la tentación de avaricia, entendida como «la mucha ocupación de las cosas temporales et exteriores»40. En los Avisos, esas escasas alusiones se tiñen de indirecta reprensión moral, como en el poema de Ramírez de Arellano cuando se declara «que todos me desconfían / y que ninguno me adula» (f. 109v), o por el contrario remiten a la mal entendida piedad de quienes ocultan al moribundo la gravedad de su situación, como en el romance de Gabriel Bocángel: «Ya (si los hay) los amigos / me buscan para no hallarme, / de lo que ignoran me informan / y me esconden lo que saben» (f. 79v). Solo la prolijidad de José Pellicer ofrece una escena familiar, quizás más positiva, pero igualmente inútil para el agonizante, cuando evoca el «amparo» de parientes y amigos, «aquella fiel ternura / y aquel piadoso cariño / con que nos llora oficioso / el afecto de los hijos; / aquel coronar el lecho, /observando doloridos / entre angustias y sufragios, / legales o antiguos ritos» (f. 119v). Esta parquedad biográfica no fue constante, aunque sí notablemente extendida, en ese casi subgénero de tema penitencial que se fue conformando, con cierto éxito, en años posteriores. Baste recordar uno de los romances portugueses que se incorporaron en la edición lisboeta de los Avisos, el de Sor Violante do Céu, donde el yo poético, a semejanza de la autora, se manifestaba en su género femenino y como profesa de los tres votos monásticos41. Sin embargo, ni siquiera la afloración del sujeto femenino se adoptó siempre con naturalidad: aparte de otros testimonios sueltos del género, el romance de la Condesa de Paredes – en la edición decimonónica de los Avisos, pero, como se ha dicho, con posible antecedente de mediados del XVII – opta por la más inclusiva enunciación en masculino42. En definitiva, los poemas, en vez de abarcar una tipología diversificada, solo ofrecieron ejemplo, premeditadamente o no, de un determinado paradigma de muerte, en la práctica necesitado de adaptación personal: sujeto masculino, de estado no definido, con pecados no especificados, en medio de una muerte presumiblemente no repentina y con el crucifijo a la vista. Arte de bien morir, ed. cit., 111. Hay estudio de dicho poema en Isabel Morujão, Incidências de «Esperança Mística», art. cit. 42 «Romance de un pecador, tomando el Crucifijo para morir», in Avisos para la muerte. Colección de romances a Cristo Crucificado, compuestos a competencia por varios ingenios de fines del siglo 16, Madrid, Imprenta de D. M. de Burgos, 1832, 273-276. El poema fue también impreso, junto con otros de la autora, en la obra póstuma de fray Agustín de Jesús María, publicada por Pedro Vidal de Flores y Sabedra, Vida y muerte de la Madre Luisa Magdalena de Jesús, religiosa carmelita descalza en el convento de San Josef de Malagón, y en el siglo, doña Luisa Manrique de Lara, Excelentísima Condesa de Paredes, Madrid, Antonio de Reyes, 1705, 243-246); muy posiblemente, de allí lo tomó Manuel Serrano y Sanz, Apuntes para una biblioteca de escritoras españolas desde el año 1401 al 1833, t. II [BAE, nº 270, Madrid, Sucesores de Rivadeneyra, 1903], Madrid, Atlas, 1975, 33-34. 40 41 65 Inmaculada Osuna Junto con estos elementos explícitamente mortuorios los poemas desarrollaron con reiteración una amplia gama de motivos en torno a la penitencia y la esperanza en la salvación que bien podían compartirse con otros contextos ascéticos. De nuevo, la remisión a los Soliloquios de Lope resulta casi inevitable, como precedente genérico tan cercano. Sin los detalles fúnebres de los Avisos, la portada de las distintas ediciones de la versión inicial, la de los Cuatro Soliloquios, los presenta como hechos por el autor «arrodillado delante de un Crucifijo», acompañados de «llanto y lágrimas»43. La afinidad de los poemas de los Avisos con tales Soliloquios es patente tanto en aspectos de formalización literaria como en contenido. En ambos casos, se suele optar por una enunciación llana en apariencia y convencionalmente espontánea, aun cuando en algunos poemas de los Avisos se llegue a mayor complicación y ornamentación. A ello ayuda también el metro, el octosílabo de sabor tradicional, articulado en combinaciones sencillas, redondillas en el caso de Lope, y romance en la mayoría de los poemas de los Avisos. La inmediatez del estilo directo y el lenguaje marcadamente emocional, a menudo salpicado de interrogaciones, invocaciones, exclamaciones, van parejos a la adaptación de los modelos espirituales en cuya tradición se insertan, entre ellos los soliloquios y meditaciones atribuidos a San Agustín y los salmos penitenciales44. Imágenes y motivos concretos coinciden en los Soliloquios de Lope y en los romances de los Avisos, de tal modo que buena parte de los ya señalados por Ricard, Hatzfeld, Serés o Lezcano Tosca a propósito de aquellos o de algunos sonetos de las Rimas Sacras pueden reencontrarse sin dificultad en estos45. Una buena síntesis del contenido oracional de ese moribundo ideal que actualizan los Avisos puede verse en los dos versos finales, correspondientes al momento de la expiración, del romance de Gabriel Bocángel: «pequé, pésame, confieso, / confío, creo; ¡ayudadme!» (f. 80r). La primera tríada remite claramente al itinerario de la penitencia: reconocimiento de haber pecado, dolor por los pecados y confesión; la segunda, a las virtudes de la esperanza, la fe y quizás también, pero de manera más desdibujada en forma de petición de Una relación de dichas ediciones, en Hugo Lezcano Tosca, Los Soliloquios de Lope de Vega, ed. cit., 396-397; incluye portada de la edición de Lisboa, 1620, a partir de Francisco Vindel, Manual gráfico-descriptivo del bibliófilo hispanoamericano (1475-1856), tomo X, Madrid, 1931, 92. 44 Aparte de la citada tesis de Hugo Lezcano Tosca, puede verse ahora, del mismo autor, El género del soliloquio en la literatura hispánica (desde San Agustín a Lope de Vega), Madrid, Universidad Autónoma de Madrid, 2006. 45 Robert Ricard, El tema de Jesús crucificado en la obra de algunos escritores españoles de los siglos XVI y XVII, in Estudios de literatura religiosa española, Madrid, Gredos, 1964, 227-245; Helmut Hatzfeld, Los «Soliloquios amorosos de un alma a Dios» de Lope de Vega, in Estudios sobre el Barroco, Madrid, Gredos, 1973, 376-388; Guillermo Serés, Temas y composición de los Soliloquios de Lope, in Anuario Lope de Vega, I (1996), 209-227; Hugo Lezcano Tosca, Los Soliloquios de Lope de Vega, ed. cit., especialmente 206-394. 43 66 Los Avisos para la muerte de Luis Ramírez de Arellano ayuda, la caridad. No hay que olvidar tampoco aquí las advertencias de las artes moriendi, que recordaban los peligros espirituales que acechaban al moribundo, identificados en la tradición medieval con las tentaciones contra la fe y la esperanza y con las de impaciencia, vanagloria y avaricia, aunque lógicamente estas fueran sistematizadas y adaptadas de formas distintas en las numerosas reformulaciones posteriores. Los poemas de los Avisos, con un mayor acento en los componentes afectivos del discurso, insistieron poco en la ratificación formularia de las verdades de fe, por mucho que con frecuencia las expresaran de manera implícita, especialmente en lo relativo a la figura de Cristo. De ahí, posiblemente, la idoneidad de incluir en el libro un texto como el Acto de contrición con protestación de la fe, que respondiera a esa función básica dentro del ritual de la buena muerte, ya que, como observa, por ejemplo, fray Juan de Salazar en su Arte de ayudar y disponer a bien morir a todo género de personas, el demonio, incapaz ante el estado del moribundo de tentar con pecados como la gula, la soberbia, la ira, la lujuria o la avaricia, lo hacía en puntos de fe46. Por el contrario, las otras dos virtudes teologales, el amor (aquí, sobre todo, amor a Dios) y la esperanza, son objeto de una especial atención. El itinerario de la penitencia, con la insistente declaración de culpa y de un dolor que se exterioriza en las lágrimas del pecador – de nuevo las circunstancias de la agonía explican la insistencia en la contrición y no en la confesión sacramental propiamente dicha –, enlaza con ambas virtudes: con la esperanza, porque, junto con la misericordia divina, la actitud humilde y penitente del yo debía generar confianza en su salvación; con el amor a Dios, porque en él se fundaba el acto de perfecta contrición. Aquí tal acto de contrición aparece con frecuencia expresado en sus términos más precisos de dolor de los pecados, no por miedo al castigo o deseo de la gloria, sino por ser ofensa contra Dios, un Dios que no necesitaría ser «poderoso» o «rico» para ser amado y con respecto al cual la culpa del hombre es ingratitud: «Por ser quien sois, porque os amo lloro tan arrepentido, no por interés del premio, no por temor del castigo. Porque sois un Dios tan bueno, Fray Juan de Salazar, Arte de ayudar y disponer a bien morir a todo género de personas, Roma, Carlo Vulliet, 1608, 85-86. Tal planteamiento no es, sin embargo, unánime; baste recordar el Arte de bien morir medieval, que antepone la tentación relativa a la fe (ed. cit., 87-88), tras la cual, entre otras, aparecen las de vanagloria y avaricia. 46 67 Inmaculada Osuna que para ser muy querido os sobra lo poderoso, no era menester lo rico.» (Felipe Godínez, f. 28v) «Pésame, gran Dios, de todas [las ofensas], no porque ellas me destruyan, ni los castigos se acerquen, ni las coronas se huyan. Por ser contra vos me pesa, porque os adoro me turban, por ser vos quien sois me ofenden, por ser mi dueño me apuran.» (Alonso de Alfaro, f. 43v) «No es el rigor lo que temo, ni la constante entereza de tu juicio soberano es lo que más me amedrenta. Lo que mi cabello eriza, lo que mi espíritu aqueja, lo que mi voz entorpece, y mi valor desalienta, es el horror de mi culpa, que tantas veces me acuerda que fue a tantos beneficios villanamente grosera.» (Antonio de Huerta, f. 70r) «O ya que viví, tan breve fuera el término primero, que apenas se interpusiera la cuna a mi monumento; no porque entre sus temores dure el ánimo, inquieto de tu piedad, siendo poco mi maldad para su extremo, por excusar, sí, tu ofensa, y que mis ingratos yerros 68 Los Avisos para la muerte de Luis Ramírez de Arellano no hubieran desconocido las piedades de tu pecho.» (Salcedo Coronel, f. 73r) En este contexto doctrinal hay que entender la casi sistemática elusión en los poemas de la evocación plástica y efectista del infierno – y aun en esos pocos casos, tras su recuerdo se indica lo imperfecta que espiritualmente resulta su consideración47 –, así como el paradigma tranquilizador que se proyecta sobre el moribundo, en conformidad con el difícil equilibrio que las artes moriendi establecían entre la cristiana esperanza en la salvación y la vanagloria de sentirse digno de ella48. Sería prolijo detallar los conceptos y formulaciones en los que se ramifican estos temas de la penitencia, la expresión del amor a Cristo y la esperanza en su misericordia. Una rápida y no exhaustiva enumeración llevaría por motivos como el reconocimiento de la infinitud de los pecados; la conciencia personalizada de haber crucificado a Cristo con ellos; la ingratitud del hombre; la aplicación personal de la parábola del Hijo Pródigo; la contrición y la petición de clemencia; el llanto del yo y la sangre de Cristo que sirven para lavar las culpas; la dialéctica entre justicia y misericordia; la deuda del hombre pagada por Cristo, y otras muchas razones en las que fundar la esperanza en su clemencia... Como ejemplo de la reincidencia y variabilidad que un motivo concreto puede encontrar a lo largo de la colección seleccionaré solo uno, la contemplación del cuerpo de Cristo en la cruz, normalmente no plasmada de manera sistematizada. Ya se ha dicho: la presencia física de un crucifijo formaba parte de la escenografía ideal de la muerte cristiana; objeto penitencial por excelencia, en el trance de la agonía se convertía además en motivo de empatía por identificación en el dolor y la muerte. De manera sintomática, también en este tipo poemas que recreaban la invocación del moribundo su presencia material pasó a aparecer ya no solo en algún que otro verso, en alusión más veces implícita que explícita, sino en los propios encabezamientos, casi como marca distintiva que permitiría al lector situarse dentro de la tradición genérica que posiblemente los Avisos para la muerte ayudaron a conformar. En los Avisos, la rúbrica inicial indica: «Hablando con un Cristo en las agonías de la muerte»; «un Cristo» y no «Cristo». En varios poemas posteriores es posible encontrarse con De este modo, Luis Ramírez de Arellano se detiene en esa contemplación («mazmorra entre niebla eterna», «horrible gruta», «bóvedas ardientes», «incendio», «pálido reflejo / de llamas sin luz alguna», «horror», «daño», «miedo», f. 108r), para luego advertir: «Mas, ¡ay! ¿Qué ignorancia estaba / en mis congojas oculta / cuando el miedo del infierno / sólo, Señor, me atribula? / Las iras vuestras, Dios mío, / son las que el sentido ofuscan, / sólo el ofenderos sólo / es justo que me confunda» (108v). 48 Por ejemplo, en el Arte de bien morir, ed. cit., 93-97 y 105-110. 47 69 Inmaculada Osuna la ambigüedad de «hablando con Cristo crucificado» o «a Cristo crucificado»; pero también con la precisión: «Exclamación de un alma a los pies de un santo crucifijo», o «hablando con un santo Cristo», etc.49 Una sutil línea recorre el camino que va desde la visión real del crucifijo a la contemplación espiritual con el cuerpo de Cristo como centro de consideraciones devotas. Algunos críticos han recordado, a propósito de algunos poemas de Lope o del romance de Calderón aquí incluido, el Coloquio que los Ejercicios Espirituales ignacianos proponen al inicio de la primera semana, eminentemente purgativa: «Imaginando a Cristo nuestro Señor delante y puesto en cruz, hacer un coloquio, cómo de Criador es venido a hacerse hombre y de vida eterna a muerte temporal, y así a morir por mis pecados. Otro tanto mirando a mí mismo lo que he hecho por Cristo, lo que hago por Cristo, lo que debo hacer por Cristo, y así, viéndole tal, y así colgado en la cruz, discurrir por lo que se ofreciere.»50 Aparte de las cuestiones de contenido, quizás interesen también las inmediatas indicaciones sobre el tono que debía adoptarse: «El coloquio se hace propriamente, hablando, así como un amigo habla a otro o un siervo a su señor, cuándo pidiendo alguna gracia, cuándo culpándose por algún mal hecho, cuándo comunicando sus cosas y queriendo consejo en ellas.»51 Desde luego, no pasa desapercibido cómo el jesuita Francisco Macedo, en la aprobación de los Avisos, se refiere a su asunto como «los últimos coloquios de un piadoso cristiano» (h. 5r), optando así por un término bastante marcado en la tradición ignaciana y, en consecuencia, asimilando los poemas a sus prácticas devotas. No se puede descartar que bajo el claro éxito de los Avisos hubiera precisas corrientes de devoción como las jesuíticas, aunque, en todo caso, no Valgan solo unos cuantos ejemplos: A Cristo crucificado, un pecador arrepentido, en la hora de la muerte, afectos cristianos: dedícalos a la sacratísima Virgen... un humilde devoto, Sevilla, [s. n.], 1669; Gabriel Álvarez de Toledo Pellicer, Afectos de un moribundo hablando con Cristo crucificado, Sevilla, Juan Francisco de Blas, [s.a.], Sevilla, Juan Francisco de Blas, [s.a.] y Madrid, Francisco de Villadiego, 1701; Antonio López de Mendoza, Métricos gemidos de un pecador contrito que a la hora de la muerte invoca a Cristo en la Cruz, Granada, Raimundo de Velasco y Valdivia, 1682; Antonio de la Concepción Béjar y Figueroa, Exclamación de un alma a los pies de un santo crucifijo en todo tiempo, Granada, Imprenta Real de Francisco Sánchez, 1663; Martín de Carvajal y Pacheco, Afectos de un pecador, hablando con un santo Cristo, Granada, Baltasar de Bolíbar, 1663. 50 San Ignacio de Loyola, Ejercicios espirituales, ed. cit., 238. 51 San Ignacio de Loyola, Ejercicios espirituales, ed. cit., 238 (modernizo grafías). 49 70 Los Avisos para la muerte de Luis Ramírez de Arellano debieron de ser exclusivas, como muestran las ediciones relacionadas en su dedicatoria con la orden de San Juan de Dios. Aun así, tanto el abanico temático propuesto en los Ejercicios ignacianos como las evidentes diferencias de tono allí señaladas, desde la igualitaria relación amistosa a la jerárquica, no explican la concreta selección y recurrencia de motivos ni la relativa homogeneidad tonal que los Avisos para la muerte presentan en su conjunto. Las fuentes pudieron ser múltiples y, a la sazón, bastante mezcladas entre sí, e incluso limadas o matizadas en puntos potencialmente conflictivos; además, en última instancia, las prácticas usuales en las academias literarias incluían la precisión, a veces minuciosa y realizada ex professo, de los motivos que debían incluir los poemas propuestos, razón por la cual siempre hay que tener cautela a la hora de pretender hallar un antecedente que dé cuenta sistemática de todos los matices comunes en estas composiciones, que previsiblemente se forjaron en un contexto académico. Por todo ello, si a continuación cito algunos tratados de oración o de ayuda a bien morir, no es con una intención de filiación, sino como ilustración de unas sugerencias documentadas en la época y con las cuales los poemas de los Avisos para la muerte unas veces contrastan y otras muestran afinidad. Salvo por lo ya dicho a propósito de la profesión de fe, un pasaje incluido en las obras de Ludovico Blosio puede servir para aproximarnos al motivo de la contemplación de Cristo crucificado: «El que estuviere para morir [...] persevere firme y sencillamente en la santa fe católica de la Iglesia, y confíe más en los merecimientos de Jesu Cristo nuestro Salvador que en los suyos proprios. Y acordándose de su muy amarga pasión y muerte, y de aquella caridad inefable que le movió a sufrir cosas tan afrentosas, y poniéndola delante de los ojos del alma, procure unir su espíritu, alma y cuerpo, al espíritu, alma y cuerpo del mismo Señor. Derríbese y anéguese con todos sus pecados y negligencias en sus llagas abiertas, y en el profundísimo piélago de su misericordia inmensa. Ofrézcase a sí mismo a Dios como hostia viva a gloria del mismo Señor, para sufrir con paciencia por su muy agradable voluntad, de puro amor, todo el trabajo de la enfermedad, y aun de la misma amargura de la muerte, y finalmente todas las penas que el Señor le quisiere enviar, así en el tiempo como en la eternidad.»52 La transición desde la consideración de la Pasión de Cristo al anegamiento de tintes casi místicos en sus llagas resulta afín a esa concentración de los poemas 52 Ludovico Blosio, Institución espiritual («Adición sacada de las obras de San Juan Taulero y de otros padres»), in Obras... traducidas por fray Gregorio de Alfaro, Sevilla, Juan de León, 1598, 47. 71 Inmaculada Osuna de los Avisos en el motivo de la crucifixión. Frente al desarrollo secular de una poesía de la Pasión basada en composiciones de articulación narrativa o en ciclos de romances sacros que, con sentido «historial», van yuxtaponiendo sus distintos episodios – lógicamente, con paralelismos evidentes en los tratados de oración –, la memoria de la Pasión queda aquí reducida a la imagen del crucificado. Si hay algún recuerdo de otro momento de la Pasión es casi siempre por las secuelas físicas en forma de heridas que el moribundo contempla. Con semejante concentración en la comunicación hombre-Cristo, pocas veces la interpelación se desplaza hacia otras figuras religiosas, como la Virgen, y en una parquedad y un sentido de intimidad semejantes a los que se observaban con respecto a familiares y amigos, aún más rara o fugazmente se remite a los demás protectores celestiales, como santos y ángeles. Incluso el tipo de contemplación del cuerpo de Cristo dista de las frecuentes visiones de gran patetismo que recrean la crueldad y el ensañamiento de los fautores de la Pasión, como puede verse repetidamente, por citar solo algunos casos concretos de los siglos XVI y XVII, en fray García de Cisneros, fray Luis de Granada, Antonio de Molina o Pedro de Salazar53. Los factores emotivos se orientan más bien a una contemplación simbólica, que podemos encontrar sistematizados, por ejemplo, en Ludovico Blosio, el beato Juan de Ávila o, como puede apreciarse en el pasaje siguiente, de nuevo Antonio de Molina: «Y por eso quiso quedarse de esta manera, inclinada la cabeza, y que su Imagen, delante de la cual hacemos oración, se pinte así: la cabeza inclinada, los ojos bajos, para mirarnos, los brazos abiertos, para recibirnos y abrazarnos, los pies enclavados, para esperarnos, el corazón traspasado y descubierto, para mostrarnos el amor que nos tiene, las llagas abiertas, para que tengamos en ellas nido y refugio donde nos esconder y puertas hartas por donde entrar; y finalmente, para que todos sus miembros, aun después de muerto, nos estén diciendo el amor que nos tiene.»54 Por ejemplo, para la escena de la crucifixión, desde sus preparativos tras la llegada al Gólgota: fray García de Cisneros, Compendio breve de ejercicios espirituales (utilizo la edición de Salamanca, Simón de Portonariis, 1571, f. LXVr-LXVIr); fray Luis de Granada, Tratado de la oración y meditación, (utilizo edición de Amberes, Viuda de Martín Nucio, 1559, f. 56v-59r, y edición moderna de Cristóbal Cuevas, en Obras castellanas, II, Madrid, Biblioteca Castro, 1997, 77-81); Antonio de Molina, Ejercicios espirituales de las excelencias, provecho y necesidad de la oración mental, Burgos, 1614, 803-815; Pedro de Salazar, Ejercicios de la vida espiritual, para que el cristiano se prepare para el juicio particular que tiene Dios de hacer con él a la hora de la muerte, Nájera, Juan de Mongastón, 1616, f. 167r-172v. 54 Antonio de Molina, Ejercicios espirituales, ed. cit., 830. Para las formulaciones de Juan de Ávila, fray Diego de Estella y Baltasar Gracián, entre otras menos desarrolladas, véase Robert Ricard, El tema de Jesús crucificado, art. cit., 228-230; como señala en addenda, la imagen responde a una tradición anterior que ya aflora en uno de los soliloquios auténticos de San Buenaventura (art. cit., 244-245). Para Ludovico 53 72 Los Avisos para la muerte de Luis Ramírez de Arellano Sin embargo, las conclusiones meditativas a propósito de los castigados miembros de Cristo y de su posición en la cruz podían acumularse en multitud de sentidos complementarios. Baste el ejemplo de la inclinación de la cabeza en Pedro de Salazar: «Y considera que, en la Cruz, se inclinó su cabeza a la parte derecha, para que la cabeza de nuestras almas, que es la intención, siempre se incline a las cosas de las virtudes, y no a la mano siniestra de los vicios; y también inclinó su cabeza para hacer reverencia a su eterno Padre en el fin de su vida y despedirse de su Madre santísima; y para llamarnos a todos los pecadores, para recibir dél sus infinitas misericordias. Y para darnos a entender que, como el fiel del peso y balanza siempre se inclina donde hay mayor peso, así se inclinó la cabeza de Cristo, que es el fiel de la Cruz, y sus merecimientos a la mano derecha, para darnos ha entender que pesan más los méritos de la Pasión de Cristo que todos los pecados del mundo juntos.»55 No es de extrañar, pues, que en las variaciones sobre un mismo tema que suponen los poemas de los Avisos para la muerte también esa percepción simbólica de la imagen de Cristo, a veces incluso evocada con unos procedimientos de metaforización que desdibujaban la crueldad, por ejemplo, con la idealización de la sangre en rubíes o rosas, adquiriera matices distintos en torno a la idea central de la misericordia divina. De esta manera, la llaga del costado, en algunas interpretaciones fuente sacramental, da aquí de beber al moribundo56, se convierte en su refugio57, o en puerta de esperanza58; lava las manchas del pecado59, hace temer y sentir esperanza al mismo tiempo – por su carácter de herida, como otras, causada por el yo, pero también, precio pagado por Cristo para la salvación60 –, o permite ver la disposición de Cristo61, o llama al pecador, con más eficacia que la ya impedida boca, pues está Blosio, véase Institución espiritual, no poco provechosa a los que procuran la perfección de la vida; con un ejercicio de oraciones devotas, en Obras, ed. cit., 129. 55 Pedro de Salazar, Ejercicios de la vida espiritual, ed. cit., f. 297r. 56 «Aliento de vuestra boca / es este espíritu mío, / que vos del pecho sacastes / cuando vuestro amor me hizo. / A esa llaga del costado / los labios agora aplico, / porque vuelto al mismo pecho / restaure su ser antiguo» (Felipe Godínez, f. 26r-26v); «En este abierto costado / por donde mi fe os traslumbra / recto a las ofensas siempre, / pero vengativo nunca, / pongo mi boca a beber / la gracia, el amor, por cuya / cicatriz Iglesia tanta / vertió la acerada punta» (Pedro Rosete Niño, f. 90v). 57 «Vuestro costado está abierto, / y de mi casa me arroja / la muerte; dadme en él casa, / porque viva en casa propia» (Juan Pérez de Montalbán, f. 22r); «en ese costado herido / huyo a vos de vos, valedme» (Felipe Godínez, f. 30v). 58 «A ese pecho, cuya puerta / siempre abierta, enjuta nunca, / el tesoro de la gracia / sin ocultalle le oculta» (Alonso de Alfaro, f. 45v). 59 «Hechura soy desas manos: / esa fuente saludable / de vuestro costado sea / la que tantas manchas lave» (Francisco de Olivares y Figueroa, f. 105v). 60 «Ese sangriento costado, / ese piélago divino, / en cuyas ondas se mezclan / la saña y el beneficio» (José Pellicer de Tobar, f. 121r). 61 Véase cita del poema de Pedro Rosete en nota nº 55. 73 Inmaculada Osuna más cerca del corazón62. La cabeza inclinada de Cristo está buscando si hay algo más que pueda dar al hombre63, o lo está llamando64, o – de nuevo entre el temor y la esperanza – está mirando el daño que le ha hecho el yo65, aunque quizás no: quizás es una señal de aceptación o asentimiento que engendra esperanza en este66. Desde luego, pasajes como estos podrían llevarnos a pensar en una intensa espiritualidad personal, a veces de fuentes místicas, bastante matizadas, con todo, por el inminente encuentro con Cristo tras la muerte. De haberlos encontrado en un poema aislado y sin contexto, quizás nos hicieran fantasear sobre las profundidades ascéticas de su autor. Aquí, vistos en serie, y sin duda muy en contra de los objetivos deseados en el libro, hoy nos recuerdan lo que también debieron de tener de convención literaria e instrumento de integración social. Apéndice: Tabla de ediciones localizadas. Se añade * en las ediciones cuyos datos se toman exclusivamente de la descripción de Antonio Rodríguez-Moñino (Manual bibliográfico de Cancioneros y Romanceros (siglo XVII), coord. Arthur L. F. Askins, vol. III, Madrid, Castalia, 1977). Se prescinde de las ediciones (reales o hipotéticas) no localizadas que figuran en dicho Manual bibliográfico: ¿Madrid? 1630; Zaragoza, 1634 y 1637; Sevilla 1648; Barcelona 1656; Madrid 1659 («octava edición»); Madrid, 1772. En la relación de preliminares se omiten los de carácter estrictamente legal, salvo las aprobaciones originales, y también las referencias a grabados. Inmaculada Osuna Universidad Complutense de Madrid «Cuyo divino costado, / de bárbaro aliento roto, / fue a un tiempo rigor y acierto, / fue a un tiempo dicha y arrojo, / que, como de hacernos bien / estáis siempre deseoso, / y es el corazón de donde / manan los favores todos, / juzgastes lejos la puerta / de la boca y, amoroso, / otra en el costado abristes, / porque salgan sin estorbo» (José de Villalobos, f. 114r). 63 «Todo por mí lo habéis dado, / y aun, por si os queda otra cosa, / bajáis la cabeza al pecho / mirando a una parte y otra; / y no hallando más que darme, / permitís que un hasta os rompa / las entrañas, franqueando / glorias que el alma atesora» (Gabriel de Roa, f. 41r-41v). 64 «¡Oh, qué elocuente silencio! / (bien que es formidable estilo / el llamar con la cabeza / un muerto desde el suplicio)» (Gabriel de Henao, f. 55v). 65 «Mas vos, mientras que mi vida / satisface o restituye, / el pecho os miráis, de quien / tantas piedades producen, / inclinando la cabeza, / o por veros cómo os puse, / o por concederme más / señas en que me asegure» (Alfonso de Batres, f. 99r). 66 «¿No me perdonas, Señor? / Mas la pregunta es impropia, / que quien baja la cabeza / ya está diciendo que otorga» (Francisco de Rojas Zorrilla, f. 67r-67v). 62 74 Z1640 M1639 B1637* B1636* B1636 M1634 V1634 M1635 (Séneca) Cita Se: Sevilla. Falta aprobación de Valdivielso, pero no la del P. Macedo. Añade una décima. Observaciones M: Madrid. Poemas (Juan de Jáuregui) Li: Lisboa Prólogo B: Barcelona. Dedicatoria Al: Alcalá. aprobaciones (F. Macedo y J. de Valdivielso) Tabla y preliminares Originales V: Valencia. Romances Sonetos Z: Zaragoza Silva Consuelo del alma contrita y romance de Rafael Nogués (en catalán). Romance Consuelo del alma contrita. Romance de Alonso Chirino. Según descripción de RodríguezMoñino, no incluye el Consuelo del alma contrita. Poemas añadidos COLECCIÓN poética Colección original Tras el Acto de contrición, una Meditación muy prouechosa. (en prosa) Acto de CONTRICIÓN Los Avisos para la muerte de Luis Ramírez de Arellano 75 76 Dedicatoria a Antonio de León. Observaciones Dedicatoria a San Juan de Dios, firmada por el librero (Juan de Valdés). Prólogo M1652 (Imprenta Real) Dedicatoria Poemas (Juan de Jáuregui) Falta aprobación de Valdivielso, pero no la del P. Macedo. aprobaciones (F. Macedo y J. de Valdivielso) Tabla y Z1648* M1648 M1644 (Séneca) Cita preliminares Originales Romances Silva Sonetos Cinco romances (Fr. Juan de Ayala Fajardo, Francisco Bernardo de Quirós, Antonio de Castilla, Francisco Pérez de Amaral, Álvaro Cubillo); poema en décimas (Bartolomé de Salazar y Luna). Poemas añadidos COLECCIÓN poética Colección original Figura en la tabla, pero no en el ejemplar consultado (BNE 7/108641). (en prosa) Acto de CONTRICIÓN Inmaculada Osuna M1659* (María de Quiñones) (Andrés García) M1659 Z1657 Se1652 M1652* (Julián de Paredes) (Séneca) Cita Se: Sevilla. Dedicatoria a San Juan de Dios, del librero (Juan de Valdés) Dedicatoria al Marqués del Fresno, del impresor. Acto de contrición en preliminares. En portada aparece como dedicatario el Marqués del Fresno, pero los ejemplares carecen de dedicatoria. Falta aprobación de Valdivielso, pero no la del P. Macedo. Dedicatoria a la Virgen, del impresor (Julián de Paredes). Observaciones M: Madrid. Poemas (Juan de Jáuregui) Li: Lisboa Prólogo B: Barcelona. Dedicatoria Al: Alcalá. aprobaciones (F. Macedo y J. de Valdivielso) Tabla y preliminares Originales V: Valencia. Romances Sonetos Z: Zaragoza Silva Cinco romances y poema en décimas (=M1652). Cinco romances y poema en décimas (=M1652). Cinco romances y poema en décimas (=M1652). Cinco romances y poema en décimas (=M1652). Poemas añadidos COLECCIÓN poética Colección original (en prosa) Acto de CONTRICIÓN Los Avisos para la muerte de Luis Ramírez de Arellano 77 78 Li1659 (Séneca) Cita aprobaciones (F. Macedo y J. de Valdivielso) Tabla y Dedicatoria Prólogo preliminares Originales Poemas (Juan de Jáuregui) La licencia alude a ed. de Barcelona 1656, hoy desconocida. Incluye Tabla de contenido y cuatro Soliloquios de Lope de Vega Observaciones Romances Silva Sonetos Romance de Alonso Chirino (=B1636). Poemas de Antonio Barbosa Bacelar, José de Faria Manoel (3 poemas, dos de ellos en portugués), Alonso de Alcalá y Herrera, Sor Violante do Ceo (portugués) y Antonio Coello. Una octava y su glosa. Poemas añadidos COLECCIÓN poética Colección original (en prosa) Acto de CONTRICIÓN Inmaculada Osuna Al: Alcalá. Li: Lisboa M: Madrid. Se: Sevilla. Al1671 Observaciones Dedicatoria a la Virgen, del librero (Juan de San Vicente). Poemas (Juan de Jáuregui) Falta aprobación de Valdivielso, pero no la del P. Macedo. Prólogo Z1665 B: Barcelona. Dedicatoria Se1660 aprobaciones (F. Macedo y J. de Valdivielso) Tabla y Solo contiene un poema de Jáuregui, sin autoría.En portada aparece como dedicatario Antonio de León, pero no hay texto de dedicatoria. (Séneca) Cita preliminares Originales V: Valencia. Romances Sonetos Z: Zaragoza Silva Cinco romances y poema en décimas (=M1652). Poemas añadidos COLECCIÓN poética Colección original (en prosa) Acto de CONTRICIÓN Los Avisos para la muerte de Luis Ramírez de Arellano 79 80 Observaciones Se1697 Prólogo Prólogo de Valdivielso visiblemente reducido. Acto de contrición en prosa, en preliminares. Añade Meditación muy provechosa, y una décima (=B1636), además de un romance a la Virgen. Tabla, al final del libro. Dedicatoria Poemas (Juan de Jáuregui) M1672 aprobaciones (F. Macedo y J. de Valdivielso) Tabla y Dedicatoria del librero (Santiago Martín Redondo) a Fr. Francisco de San Antonio, General de la Orden de San Juan de Dios. (Séneca) Cita preliminares Originales Romances Silva Sonetos Romance de Alonso Chirino (=B1636). Cinco romances y poema en décimas (=M1652). Tres poemas más de Ayala Fajardo y uno de José Martínez de la Puente. Poemas añadidos COLECCIÓN poética Colección original (en prosa) Acto de CONTRICIÓN Inmaculada Osuna M1832 B1777* V1772 (Séneca) Cita - Se: Sevilla. Prólogo del editor (menciona una «octava edición» de 1659, hoy desconocida). Tabla, al final del libro. Los poemas de Jáuregui, al inicio del texto. Acto de contrición y tabla de contenido, en preliminares. Los poemas de Jáuregui, tras el texto. Observaciones M: Madrid. Poemas (Juan de Jáuregui) Li: Lisboa Prólogo B: Barcelona. Dedicatoria Al: Alcalá. aprobaciones (F. Macedo y J. de Valdivielso) Tabla y preliminares Originales V: Valencia. Romances Sonetos Z: Zaragoza Silva Cinco romances y poema en décimas (=M1652). Poemas de Jáuregui. Consuelo del alma contrita y romance de Rafael Nogués (catalán) Los poemas de Jáuregui y cuatro Soliloquios de Lope de Vega, al inicio del texto. Tras la colección original, el Consuelo del alma contrita, los poemas en castellano incluidos en Li1659, otro de la Condesa de Paredes, y una octava y su glosa (ambas en Li1659). Poemas añadidos COLECCIÓN poética Colección original (en prosa) Acto de CONTRICIÓN Los Avisos para la muerte de Luis Ramírez de Arellano 81 Inmaculada Osuna Abstract: Avisos para la muerte (1634), compiled by Luis Ramírez de Arellano, gathers, along with other complementary materials (among these, two prayers written in verse for before confession and before communion, and an act of contrition in prose), thirty poems that are presented as models for prayers addressed to a crucified Christ in the moment of his death. These poems emerge from a group initiative in which notable poets from the Madrid court took part, poets such as Lope de Vega, Pedro Calderón de la Barca, José de Pellicer, José de Valdivielso, Luis Vélez de Guevara, Juan Pérez de Montalbán and Francisco de Rojas Zorrilla. My article examines the social context in which this poetic collection is born, the composition of the book, its successful publishing history throughout two centuries as well as the reiterative representation in the poems of particular meditatio mortis topics (the staging of agony; the expression of repentance, love for Christ and hope for his mercy; and the contemplation of Christ’s body on the cross). 82 EJERCICIOS Y PENITENCIA EN LA OBRA DE TOMÉ DE JESUS El presente trabajo se inserta en una investigación más amplia en torno a los agustinos en Portugal durante el siglo XVI y especialmente en relación con el religioso castellano-portugués fray Luis de Montoya1. En esta ocasión nos proponemos abordar a su discípulo portugués más significativo: Tomé de Jesús y, más en concreto, de su obra principal, los Trabalhos de Jesus2. El tema elegido no es, evidentemente, la única clave para acercarnos a esta obra, pues no se trata propiamente de literatura penitencial3. Pero pensamos que dicho ángulo puede ser un modo adecuado de acercamiento a este libro, pues ofrece algunos ejes fundamentales del mismo. Al mismo tiempo, recurriremos a otros autores espirituales, fundamentalmente sus contemporáneos del siglo XVI y sobre todo Ignacio de Loyola, por algunas analogías que en seguida comentaremos4. 1. La significatividad de un clásico olvidado Sin duda, Fr. Tomé es uno de los escritores espirituales tradicionalmente más conocido de entre los portugueses, pero además Trabalhos de Jesus es la obra de la literatura lusa clásica más editada fuera de Portugal5. Publicada póstumamente en dos partes (1602 y 1609), pronto fue objeto de numerosas traducciones. Así, ya 1 Véase nuestro reciente libro Luis de Montoya, un reformador castellano en Portugal, Guadarrama, Ed. Agustiniana, 2008. 2 Trabalhos de Iesu [...] por Fr. Thome de Iesu da ordem dos Eremitas de S. Agostinho da prouincia de Portugal catiuo em Berberia, Lisboa, Pedro Craesbeeck – Vicente Álvares, 1602-1609, 2 vols.; hay sendos ejemplares de la primera edición de ambos volúmenes en la Biblioteca General de la Universidad de Salamanca (sign. BG 8167 / 8168), que significativamente pertenecieron al Colegio de los Jesuitas. Citamos los textos por la última edición portuguesa, que data de 1951 (Porto, Lello & Irmão, 2 vols.). Para no multiplicar las notas, ofrecemos las citas de esta obra en el cuerpo principal del texto: volumen y página. 3 Podemos recordar aquí el estrictamente coetáneo Compendium Spiritualis Doctrinae (1582) de Bartolomeu dos Mártires, obra que – inspirándose sobre todo en san Bernardo y san Buenaventura – dedica toda la primera parte a la virtud «da mortificação e da purificação dos vícios». En este sentido, pueden ser aplicables a Tomé gran parte de las reflexiones de José Adriano de Freitas Carvalho, O contexto da espiritualidade portuguesa no tempo de Fr. Bartolomeu dos Mártires, O.P. (1514-1590), in Bracara Augusta, 42 (Braga 1990), 101-131. 4 Podríamos decir incluso que, para la elaboración de este trabajo, en algunos momentos hemos utilizado los textos ignacianos a manera de palimpsesto. 5 Cf. Francisco Leite de Faria, Difusão extraordinária do livro de Frei Tomé de Jesus, in Anais da Academia Portuguesa da História. IIª série, 28 (Lisboa 1982), 163-234. 83 Eduardo Javier Alonso Romo en 1620 fue traducida al castellano por Cristóvão Ferreira de Sampaio y, siglo y medio después, en 1763, fue versionada mucho mejor por el P. Enrique Flórez6. Todavía vigente hace un siglo como lectura espiritual, como lo demuestran las sucesivas reediciones, hoy han cambiado los gustos y las modas y este sabroso libro ha quedado como un clásico olvidado – al igual que tantos otros –, tanto en Portugal como en España, de modo que está descatalogado desde hace décadas y se hace un tanto difícil conseguir un ejemplar. En la misma línea, desde la perspectiva de los estudios sobre este autor y su obra, en las últimas décadas han aparecido relativamente pocas novedades7. Como es bien sabido, Fr. Tomé de Jesús, o de Andrade (1529-1582/1583)8 nació en Lisboa. Educado desde niño en Coimbra por Luis de Montoya9, éste le envió a Lisboa para hacer el noviciado, cuando el joven quiso ingresar en la Orden de san Agustín; y en la capital portuguesa profesó Fr. Tomé el 27 de mayo de 154810. Regresa a Coimbra, a fin de completar sus estudios y, más tarde, Montoya le confía el delicado oficio de maestro de novicios, escribiendo entonces unas «Costumbres del noviciado» a partir de los consejos de su maestro11. Tomé tuvo a Montoya por prelado durante 21 años, como él mismo declara12. Posteriormente Fr. Tomé fue prior del convento de Penafirme (1574) y visitador de la provincia agustiniana portuguesa. Como capellán del ejército, Fr. Tomé acompañó al rey D. Sebastião de Portugal en su malograda expedición a Marruecos, quedando cautivo tras la batalla de Alcácer Quibir (4 de agosto de 1578). Según la tradición más o menos hagiográfica, el religioso agustino habría renunciado al rescate que ofrecieron por él sus hermanos para sostener la fe de sus compañeros de cautiverio. De este modo, fallecería en Marruecos a finales de 1582 Hemos consultado también la traducción castellana de Enrique Flórez en 4 vols.: Trabajos de Jesus, escritos en portugues por el V.P. Fr. Tomé de Jesus, del Órden de San Agustin, estando preso i cautivo en Berberia (Madrid, Hija de Ibarra, 1808). El Apostolado de la Prensa (Madrid) reeditó la traducción en 1902 y otra vez en 1922. 7 Destacan varios trabajos de José Augusto Mourão y en especial su libro Sujeito, Paixão e Discurso: Trabalhos de Jesus, Lisboa, Vega, 1996. 8 Sobre Tomé de Jesus y su obra, véanse: José Adriano de Carvalho, Tomé de Jesus, in Antologia de Espirituais Portugueses, Lisboa, IN-CM, 1994, 353-396; Carlos Alonso, Thomas de Jésus (de Andrade), in Dictionnaire de Spiritualité, Paris, Beauchesne, 1932-1995, 17 vols.: XV, 830-833; Isabel Morujão, Tomé de Jesus (Frei), in Biblos. Enciclopédia das Literaturas de Língua Portuguesa – 5, Lisboa, Verbo, 2005, cols. 454-459; Eulogio Pacho, El apogeo de la Mística Cristiana. Historia de la Espiritualidad Clásica Española, Burgos, Ed. Monte Carmelo, 2008, 1129-1131. 9 Sabemos que Montoya también había educado en Lisboa a un hermano de Fr. Tomé: Diogo de Paiva de Andrade (1528-1575), que más tarde sería sacerdote secular, célebre teólogo del Concilio de Trento y defensor de la Compañía de Jesús. 10 No profesó, por tanto, el 27 de marzo de 1544, como se ha venido afirmando; cf. C. Alonso, Las profesiones religiosas en la provincia de Portugal durante el período 1513-1631, in Analecta Augustiniana, 48 (1985), 331-389. 11 Las llamadas Costumes do noviciado, texto perdido, unas veces atribuido a Fr. Luis y otras a Fr. Tomé. Cf. E. J. Alonso Romo, Luis de Montoya, 71-72. 12 T. de Jesus, Trabalhos de Jesus, I, 176. 6 84 EJERCICIOS Y PENITENCIA EN LA OBRA DE TOMÉ DE JESUS o a comienzos del año siguiente. Pues bien, durante este tiempo de cautividad el agustino compuso la obra Trabalhos de Jesus, de un modo un tanto misterioso, si atendemos a sus palabras de que lo compuso «sem nenhuma ajuda de livros, e sem nenhum uso de escrever coisas desta matéria» (I, 32)13. Esta obra, en la que predomina lo devocional – de hecho, contiene muchos elementos para un tratado sobre la verdadera devoción –, sobre lo doctrinal, ha sido considerada una de las cumbres de la espiritualidad portuguesa: «No tiene rival en ninguna literatura desde el punto de vista místico, como desahogo de los afectos tiernos del corazón al contemplar la vida y pasión de Jesucristo», en frase de Ignacio Monasterio14. Este mismo autor relaciona la obra de Tomé de Jesús con los coetáneos Nombres de Cristo (1583) del también agustino Fr. Luis de León: «Ambos autores han dejado estampada su personalidad literaria en su respectiva obra. La teología no puede alcanzar expresión más adecuada ni elevarse a mayor altura que en Los Nombres de Cristo, ni las efusiones del místico han logrado llegar al grado de perfección a que el autor de Los trabajos de Jesús, ni en las respectivas literaturas hay nada comparable a esas dos joyas inmortales [...]. Las dos son contemporáneas y tuvieron origen muy parecido; en las cárceles inquisitoriales de Valladolid fue engendrado el gran pensamiento de Los Nombres de Cristo, y en las mazmorras de Berbería y a la luz que entraba por las rendijas, redactada la segunda.»15 En una amplia carta dedicatoria, fechada el 8 de noviembre de 1581, el autor ofrece su obra a la nación portuguesa. En este texto preliminar vemos cómo los Trabajos se destinan a consolar al autor, a sus compañeros de cautiverio y, en general, a toda la nación portuguesa, «no tempo daquelas grandes tribulações da jornada de África». En todo caso, el autor tiene como posibles destinatarios tanto a seglares piadosos como a religiosos y sacerdotes. Ello sitúa esta obra dentro de la vanguardia de autores peninsulares del siglo XVI que postulan la extensión al laicado de la oración mental y de los ejercicios de la vida contemplativa16. 13 En aquel mismo contexto se fraguó el Cancioneiro chamado de D. Maria Henriques de Francisco da Costa (1533-1591), compuesto por textos religiosos y propios del cautiverio: ed. por Domingos Maurício G. dos Santos, Lisboa, Agência Geral do Ultramar, 1956. Cf. Zulmira C. Santos, Teatro português em Marrocos no tempo de Filipe II: o testemunho do Cancioneiro de D. Maria Henriques, in Via Spiritus, 5 (Porto 1998), 75-105. 14 Ignacio Monasterio, Místicos Agustinos Españoles, 2ª ed., R.M. de El Escorial, Ed. Agustiniana, 1929, I, 133. 15 I. Monasterio, Místicos Agustinos Españoles, I, 134; cf. 135-136. También presenta juntos a ambos autores agustinos P. Pourrat, La spiritualité chrétienne, Paris, Lecoffre, 1943-1944, 4 vols.: III, 180-186. Véase la reciente edición preparada por Javier San José Lera: De los nombres de Cristo, Barcelona, Galaxia Gutenberg, 2008. 16 Véase Pedro Vilas Boas Tavares, Beatas, inquisidores e teólogos. Reacção portuguesa a Miguel de Moli- 85 Eduardo Javier Alonso Romo El grueso de la obra está compuesto por cincuenta trabajos de Cristo, más dos capítulos a manera de apéndice: «Do lado que foi aberto ao Señor» y «Da compañía que o Senhor faz a todos os atribulados». Los cincuenta trabajos se dividen en dos partes. La primera consta de veinticinco capítulos y «trata dos trabalhos que Cristo Nosso Senhor passou desde a hora que foi concebido até o dia de sua sacratíssima Paixão»; mientras que la segunda «resume os trabalhos da Paixão do Senhor em outros vinte e cinco» (I, 35). Ahora bien, a lo largo del libro encontramos otras materias más heterogéneas: desde glosas de oraciones y salmos17, a unas reglas para vivir cristianamente entre toda clase de personas18. La encarnación y la humanidad de Cristo es el centro de su doctrina espiritual, por ello su base son los evangelios, a los que recurre constantemente. De ahí arranca la contemplación de los misterios de la vida de Cristo, pero siempre desde la perspectiva vivencial. Como es natural, especial atención dedica a contemplar la pasión, crucifixión y muerte del Señor, en línea con la corriente espiritual que venía de la Baja Edad Media19, y que culmina precisamente en el siglo XVI20. Con un estilo que, en algunos momentos nos puede recordar la vigorosa pluma de Fr. Luis de Granada21, sin duda su fuente principal son los evangelios, leídos y meditados con intensa piedad desde sus primeros años de vida religiosa. Tal vez se sirviera de la Vita Christi de Ludolfo de Sajonia («el Cartujano»)22; asimismo habría que afinar la posible influencia de otras obras medievales muy difundidas en aquellos tiempos, como los Ejercicios sobre la vida y pasión de nos, Porto, CIUHE, 2005, 22-27. Cf. Melquiades Andrés, Historia de la mística de la Edad de Oro en España y América, Madrid, BAC, 1994, 67. 17 Glosa del padrenuestro y del avemaría (Trabalhos, I, 57-58); o del salmo 23 (II, 202-203). 18 Trabalhos, I, 302-304. En aquel tiempo proliferaban en la literatura espiritual las listas o avisos, como modo pedagógico de ofrecer consejos prácticos: desde los escritos por Montoya a los avisos pseudo-teresianos, pasando por las Reglas de Juan de Ávila, las de Tomás de Villanueva o las de Alonso de Orozco. Sería muy interesante establecer una comparación sistemática entre los diferentes textos. 19 Cf. Daniel de Pablo Maroto, Espiritualidad de la Baja Edad Media, Madrid, Ed. de Espiritualidad, 2000, 434-437. 20 Véase José Adriano de Carvalho, Evolução na evocação de Cristo sofrente na Península Ibérica (1538-1630), in Homenaje a Elías Serra Ràfols, La Laguna, Universidad de la Laguna, 1970, II, 45-70. Los autores aquí comentados son Bernardino de Laredo, Juan de Ávila, Luis de Granada, Teresa de Ávila, Diego de Estella, Juan de los Ángeles, Rodrigo de Deus, Alonso Cabrera, Luis de la Puente, Luis de la Palma y Diogo Monteiro. Cf. Robert Ricard, El tema de Jesús crucificado en la obra de algunos escritores españoles de los siglos XVI y XVII, in Estudios de literatura religiosa española, Madrid, Gredos, 1964, 227-245; Juan Esquerda Bifet, Introducción a la doctrina de san Juan de Ávila, Madrid, BAC, 2000, 183-197. 21 Véase, por ejemplo, la «Contemplación de la Pasión del Señor» del dominico granadino, en su célebre Libro de oración [1554], ed. de Teodoro H. Martín, Madrid, BAC, 1999, 207-300; cf. Carlos López-Fe, El lenguaje afectivo en las «Meditaciones de la Pasión», de fray Luis de Granada, in Fray Luis de Granada. Su obra y su tiempo, Granada, Universidad de Granada, 1993, I, 207-230. 22 Puede verse la reciente reedición realizada en la colección Monumenta Historica Societatis Iesu – Nova series, Madrid – Roma, Universidad P. Comillas – Institutum Historicum S. I., 2010. Cf. Rogelio García Mateo, El misterio de la vida de Cristo en los «Ejercicios» ignacianos y en el «Vita Christi» Cartujano. Antología de textos, Madrid, BAC, 2002. 86 EJERCICIOS Y PENITENCIA EN LA OBRA DE TOMÉ DE JESUS Jesucristo del Pseudo-Taulero o las Meditaciones de la vida de Cristo del PseudoBuenaventura. Este tipo de literatura culminará, ya en el siglo XVII, con las obras de Luis de la Puente y Luis de la Palma. Insertos en esta larga tradición de contemplación de la Pasión de Cristo23, nuestra percepción actual podría achacar cierto dolorismo a los Trabajos en la apelación continua a la sensibilidad del lector24: «Olha, alma, a crueldade com que pegam no Senhor, e o mandam estender sobre a Cruz, e a mansidão com que a tudo obedece! Como tomam a medida para os buracos, e o pregam sem nenhuma piedade pelas partes mais sensitivas, que são os nervos, com duríssimos e grossos cravos de ferro; e se podes, sente a grandeza daquelas imensas dores; e se não sabes sentir, deseja-o, e pede ao Senhor que to conceda, porque padeças no coração o que ele com tanto amor padeceu em seu sacratíssimo corpo. Abrandai, suavíssimo Jesus, a dureza deste coração» (II, 255). Ahora bien, además de la advertencia de no caer en juicios anacrónicos, debemos tener presente la prioridad concedida al amor sobre el sufrimiento. Es decir, al mirar el dolor, se quiere subrayar el amor que hay detrás25. Para el autor, la auténtica vida espiritual es la que enseña Cristo desde la Cruz: «Porque crucificado consagrou a mortificação do desordenado amor de toda a coisa abaixo de Deus; a total entrega a sua divina vontade [...]. Amar padecendo e padecer amando» (II, 284). En la misma línea encontramos una especie de himno al amor verdadero que Fr. Tomé sitúa tras la presentación de Jesús en el templo: «Ensinai-me, Senhor, a lei deste amor. Não se força o amor com medo de penas, mas se é puro e verdadeiro, acha-vos, Deus meu, tamanho, tão merecedor de tudo, que todo deseja de se desfazer em vos servir. Acha as leis poucas e as obrigações delas pequenas, porque o amor a tudo obriga, e nada deixa fora, porque tudo acha pouco e nada, para a divina grandeza que ama» (I, 186). Cf. Mário Martins, A filiação espiritual de Frei Tomé de Jesus, in Brotéria, 42 (Lisboa 1946), 666-672. Un poco al modo de la película La Pasión (2004), dirigida por Mel Gibson. Véanse, en todo caso las atinadas reflexiones de M.ª Clara Luccheti Bingemer, La Pasión según Mel Gibson: Una lectura en confrontación con la Tercera Semana de los Ejercicios, in Manresa, 76 (Madrid 2004), 289-298. 25 Cf. António Camões Gouveia, Dor e Amor em Frei Tomé de Jesus, in Estudos em homenagem a João Francisco Marques, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2001, II, 45-64. 23 24 87 Eduardo Javier Alonso Romo 2. Los Trabalhos de Jesus como método de ejercicios Los Trabalhos de Jesus son una obra de carácter eminentemente ascético y “ascesis” significa precisamente ‘ejercicio’. Ahora bien, hay algunos elementos que acercan este libro más concretamente al género de los ejercicios espirituales – en cuanto método pedagógico –. Para aclarar este punto vamos a confrontarlo con un libro concreto: los Ejercicios de san Ignacio de Loyola, como el título más representativo de una larga tradición textual26. De hecho es bastante esclarecedor anotar algunas analogías entre la obra escrita por Tomé de Jesús y los Ejercicios espirituales ignacianos27. En este sentido el profesor José Adriano de Carvalho, tras mencionar algunas posibles influencias, subraya las afinidades del libro de Fr. Tomé con los Ejercicios espirituales de san Ignacio: el contemplar cada «trabajo» de Jesús como actual y realmente presente, la idea de la necesidad de ejercitarse para ser instrumentos de la voluntad de Dios, y especialmente cierta metodología de ejercicios28. Asimismo, es significativo el hecho de que buena parte de las traducciones de su obra a otras lenguas haya sido realizada por jesuitas29. No tenemos ninguna noticia de que Fr. Tomé realizara la experiencia de los ejercicios ignacianos, pero es posible que los realizara en alguna de sus modalidades y, en todo caso, pudo llegarle su influencia a través de su maestro, Luis de Montoya, buen amigo de san Ignacio y de la Compañía. Debemos destacar también que el agustino lisboeta estuvo bastante relacionado con el dominico Fr. Luis de Granada – otro buen amigo de los ignacianos –30. Por otra parte, hay que contar sobre todo con las fuentes comunes y con una semejante atmósfera espiritual. Vale la pena recordar aquí la definición ignaciana de los «ejercicios»: Citamos los Ejercicios espirituales de san Ignacio con las siglas EE, seguidas de la numeración correspondiente según la división interna del libro. Seguimos la edición preparada por Cándido de Dalmases, 2ª ed., Santander, Sal Terrae, 1990. 27 Sobre el género de los ejercicios puede verse Maria Lucília Gonçalves Pires, Para uma leitura intertextual de «Exercícios Espirituais» do Padre Manuel Bernardes, Lisboa, INIC, 1980, 17-45; los autores referidos son san Buenaventura, Santa Gertrudis, el Pseudo-Taulero, Tomás de Kempis, García de Cisneros, Nicolás Esquio, san Ignacio, Tomás de Villacastín y Antonio de Molina. Cf. “Exercises Spirituels”, en Dictionnaire de Spiritualité, IV/II, 1902-1933. 28 J. A. de Carvalho, Tomé de Jesus, art. cit., 357. También José Augusto Mourão contempla la obra de Fr. Tomé como pedagogía de ejercicios: Sujeito, Paixão e Discurso, ed. cit., 171-180 especialmente. Por otro lado, nótese que también Ignacio hablaba de trabajos en el sentido de molestias y sufrimientos de Cristo; así en EE, n.º 116, 1-2: «Considerar lo que hacen, así como es el caminar y trabajar, para que el Señor sea nacido en suma pobreza y, a cabo de tantos trabajos de hambre, de sed, de calor y de frío, de injurias y afrentas, para morir en cruz; y todo esto por mí»; también EE, n.º 206 29 Cf. F. Leite de Faria, Difusão extraordinária do livro de Frei Tomé de Jesus, art. cit., 181-185. 30 Cf. M.ª Idalina Resina Rodrigues, Fray Luis de Granada y la literatura de espiritualidad en Portugal (1554-1632), Madrid, UPSA-FUE, 1988, 887-893; José Augusto Mourão, Frei Luís de Granada e Frei Tomé de Jesus: a hipótese intertextual, in Fray Luis de Granada, su obra y su tiempo, Granada, Univ. de Granada, 1993, II, 321-332. 26 88 EJERCICIOS Y PENITENCIA EN LA OBRA DE TOMÉ DE JESUS «Por este nombre, ejercicios espirituales, se entiende todo modo de examinar la conciencia, de meditar, de contemplar, de orar vocal y mental, y de otras espirituales operaciones [...]. Todo modo de preparar y disponer el ánima para quitar de sí todas las afecciones desordenadas y, después de quitadas, para buscar y hallar la voluntad divina en la disposición de su vida para la salud del ánima»31. Pues bien, Fr. Tomé afirma que «todo género de exercícios santos e espirituais se ordenam muito principalmente a fazer do homem um vivo instrumento sem resistência da vontade de Deus em tudo» (I, 40)32. La obra de Fr. Tomé serviría para realizar una especie de ejercicios espirituales en la vida ordinaria: adaptaciones en el espíritu de la «anotación 19»33. Corresponderían especialmente a la tercera semana34 y a la contemplación de los misterios de la vida de Cristo (curiosamente un total de 51 escenas)35 de los Ejercicios ignacianos. Los de frei Tomé serían unos ejercicios escritos-predicados, o mejor, una predicación para ser leída, donde abundan los verbos y expresiones apelativas para persuadir y mover. En este sentido, podríamos hablar de los Trabalhos como parénesis espiritual36. En cualquier caso, estamos ante «um texto auto-implicativo, de natureza figurativa, que vive da alteridade e da presumível interlocução»37. Ahora bien, el autor propone al lector varios niveles de cooperación textual, distinguiendo entre los que lean la obra «só para aproveitar o tempo» y los que deseen realizar los ejercicios. Para éstos es muy conveniente tener un director (I, 36). De hecho, para asegurar el aprovechamiento espiritual de cualquiera, sería deseable ser guiado por un director experimentado. Tras comentar la importancia de la figura del maestro de novicios, señala: «Mas, porque não podem todos ser Religiosos, nem achar mestre a que se cometam [...], sírvam-se para o modo de proceder em seus exercícios, da lição de livros (se os acharem) que ponham em prática o exercício» (I, 48). EE, n.º 1, 2-4. En otros lugares Fr. Tomé utiliza esta expresión no aludiendo a su libro: «procurar com sacramentos e espirituais exercícios» (I, 264). 33 Cf. EE, n.º 19, 1: «Al que estuviere embarazado en cosas públicas o negocios convenientes...» Por otra parte, en el libro del agustino la composición de lugar viene integrada dentro de cada contemplación, lo que en principio exige menos esfuerzo de la mente. 34 Recordemos que el objetivo de la tercera semana es sentir «dolor con Cristo doloroso, quebranto con Cristo quebrantado, lágrimas, pena interna de tanta pena que Cristo pasó por mí» (EE, n.º 203). Cf. Peter-Hans Kolvenbach, La Pasión según San Ignacio, in Decir... al «Indecible», Bilbao – Santander, Mensajero – Sal Terrae, 1999, 91-100. 35 EE, n.º 261-312. 36 En relación con esto está también una estilística de la repetición, donde la reiteración viene expresada por series acumulativas y casi machaconas; y, juntamente, una tendencia hacia lo superlativo y lo patético. 37 J. A. Mourão, Sujeito, Paixão e Discurso, ed. cit., 184. Aquí vale la pena recordar el análisis de Roland Barthes sobre los Ejercicios ignacianos como texto múltiple: Sade, Fourier, Loyola, Paris, Seuil, 1971, 47-48. 31 32 89 Eduardo Javier Alonso Romo A priori, se echaría en falta algo correspondiente a la cuarta semana, en torno a la Resurrección, a manera de contrapunto de los «trabajos». No obstante, ésta aparece anunciada en la «Despedida» de Jesús con que acaba el último de los trabajos, rebosante de afectividad: «Ide-vos, Senhor meu, a vosso Eterno Padre, que vos chama, vencei com vossa morte a mesma morte, fazei já que daqui por diante seja doce e saborosa, pois há-de ser cabo de nossas saudades, e nos há-de servir de passamento para vos ir, amigo de minha alma, ver, e estar convosco para sempre [...]. E não tardeis em tornar como prometestes. Encurtai o prazo destes grandes três dias e noites [...]. Olhai, Senhor, a pena de que fica esta alma ferida, e a esperança, que me deixais de vos ver em mim ressuscitado, glorioso, imortal, formoso, suave, amoroso, perpétuo e único companheiro» (II, 364). Para este apartado de los Trabalhos como ejercicios conviene atender sobre todo a la extensa doctrina que antepone el autor sobre «os frutos da consideração dos trabalhos de Jesus»38. El esquema de cada «trabajo» es descrito por el propio autor, ofreciendo una adaptación al momento espiritual en que se encuentre el lector-ejercitante: «Primeira, a história do trabalho do Senhor com alguma doutrina, que sirva de lição com que a alma se vá recolhendo para entrar no exercício. Depois, ponho o exercício na forma em que se pode fazer, enquanto não chega a influência divina, porque quando ela se sente, é necessário ouvir só ao Senhor e calar por então tudo o outro em si. Todos os exercícios têm três pontos principais: humiliação do próprio conhecimento; entrega e oferecimento de si com resignação nas mãos de Deus; e desejos da imitação de Cristo» (I, 48). Continua nuestro autor con un «Modo que há-de ter na hora do exercício», que de algún modo correspondería a las «adiciones ignacianas», es decir, conductas y actitudes que disponen para hacer mejor los ejercicios. La primera de estas ayudas – con resonancias agustinianas – es comenzar con un acto detenido en que se tome conciencia de la presencia de Dios: «Chegada a hora do exercício, lembre-se que tem a Deus trino e uno presente, ou dentro em seu coração muito mais íntimo que seu interior [...]. Cuide e lembre-se dos mistérios em que se exercitar, não como passados, senão como que se acha presente a eles 38 90 Trabalhos, I, 37-45. EJERCICIOS Y PENITENCIA EN LA OBRA DE TOMÉ DE JESUS (I, 55-56)»39. La clave es actualizar los misterios contemplados, «como si presente me hallase» que diría Ignacio de Loyola40, aunque ya el Pseudo-Buenaventura había insistido en contemplar «occulis cordis» en las Meditationes vitae Christi41. Asimismo Montoya subrayaba también: «Es menester que, contemplando estos sagrados misterios, así pensemos y hablemos, como si delante nuestros ojos tuviésemos presentes a Jesucristo y a su bendita madre»42. Continúa Fr. Tomé de Jesús, ofreciendo las siguientes pautas concretas: «Entrando no exercício, recolhidos os sentidos interiores e exteriores com a devida reverência, ao Senhor, que tem presente, faça o sinal da Cruz e reze um Padre-nosso ao mesmo Senhor e uma Ave-Maria [...]; com sentimento, indo-lhe o coração pelas palavras, levantando afectos e fervor. Porque o que se exercita, há-de trabalhar por não perder tempo nenhum na hora do exercício (I, 56)»43. A continuación el lector-ejercitante ha de leer despacio y con atención uno de los trabajos del Señor y la doctrina que en él hallare: «E se na lição se achar movido, vá-se após o movimento que Deus lhe dá» (I, 58). Se trataría de unos ejercicios para la reforma de vida44, no propiamente para la elección de estado o vocación. Por ello, ofrece un conjunto de doce avisos, «assim para mudança de vida, como para proceder neles». En el primer aviso recomienda la práctica e las virtudes: «Trabalhe por conhecer em si a que defeitos é mais inclinado, para se armar contra eles e suas petições hão de ser contra eles muito contínuas e pelas virtudes contrárias a seus vícios. Principalmente há-de pedir a Deus sempre humildade e amor» (I, 49)45. Especialmente sensato y pegado a la realidad es el segundo aviso – que él remite a la autoridad de san Bernardo, pero que nos recuerda lo que poco después escribirá san Francisco de Sales –: Cf. EE, n.º 239, 1: «considerando a dónde voy y a qué»; cf. n.º 131 y 206. Ejercicios espirituales, 114, 2. 41 «Se debe considerar uno como presente a todas y cada una de las cosas que sucedieron acerca de la cruz del Señor, de la Pasión y de la crucifixión, y obrar en esto con afecto, diligencia, amor y perseverancia»; en Obras de San Buenaventura. II, Madrid, BAC, 1946, 764-765. 42 L. de Montoya, Meditación de la pasión [1534], reeditada dentro de las Obras de los que aman a Dios, Lisboa, João da Barreira, 1565:, f. 3v [ff. 1r-46v]. 43 Cf. EE, n.º 75. 44 Cf. EE, n.º 189. 45 Cf. EE, n.º 24. 39 40 91 Eduardo Javier Alonso Romo «Trabalhe por saber muito bem as obrigações de seu estado, e cumprir com elas muito inteiramente e entender que isso é o que Deus dele quer. E sobre este fundamento faça todos seus exercícios sem cortar pelas obrigações do estado, tendo por certo o que diz S. Bernardo, que não contenta a Deus tudo quanto lhe ofereceis, deixando aquilo que por obrigação lhe deveis.» (I, 49) Más adelante eleva el nivel de exigencia y recomienda, en la misma línea del magis ignaciano: «busque sempre o mais perfeito, segundo a calidade de seu estado; e coteje seu desejo com o que Cristo Nosso Senhor faria naquele caso» (I, 50). Para el aprovechamiento interior es fundamental seguir un plan de vida: «Trabalhe por ter vida ordenada e ocupada: porque a natureza regrada e ordenada cria menos malícia e conhece-se melhor e acha o demónio menos entrada para tentar» (I, 50). Importante, asimismo, es el aviso sexto, que invita a una resignación positiva y confiada en Dios, aunque sea «arrastrándose»: «Tome da mão de Deus tudo o que na vida lhe suceder de gosto ou de desgosto, e tudo quanto no mundo suceder de mal ou bem, e por tudo louve sempre ao Senhor. E ainda que veja levantar em sua natureza sentimentos contrários a este propósito e que por força e com força o levam a tristeza, impaciência, alvoroço, ou qualquer outra alteração da humanidade, não deixe de se tornar a Deus, ainda que seja como a rasto.» (I, 51)46 Siempre podrían encontrarse otras correspondencias textuales más o menos directas47. Sin embargo, es evidente que en este caso – en comparación con los Ejercicios ignacianos – el contenido viene marcado por las etapas de la vida de Jesús, que no se prestan tanto a sistematizaciones o al ritmo progresivo más adaptado al ejercitante. Y sobre todo, debemos recordar que – a diferencia de la obra de Fr. Tomé – los Ejercicios ignacianos no son un libro de lectura, sino más bien unas «fichas de trabajo» que el director ha de acomodar al ejercitante. Cf. EE, n.º 237. P. ej.: «Trabalhe sempre por buscar razões para defender os próximos» (I, 422); recuerda el «Prosupuesto» ignaciano: «Todo buen cristiano ha de estar más pronto a salvar la proposición del prójimo que a condenarla» (EE, n.º 22, 2). 46 47 92 EJERCICIOS Y PENITENCIA EN LA OBRA DE TOMÉ DE JESUS 3. Sobre la tentación y el pecado Por otra parte, se espera de los ejercicios un efecto terapéutico para las enfermedades espirituales y una purificación interior48. En este sentido José Augusto Mourão subraya «as invocações que Tomé de Jesus constantemente faz às figuras do ‘médico’ e do ‘remediador’ da alma»49. Así se dirige a Jesús: «Ó Médico de minhas misérias diviníssimo, esforçai minha fraqueza, para quebrantar estas más inclinações» (I, 277). En la obra hay una continua llamada a la conversión y la primera invitación es la de conocer la propia miseria, lo cual supone una actitud básica de humildad. Así Fr. Tomé comienza su obra advirtiendo los engaños de los que no siguen el orden de las cosas espirituales, de modo que, «cuidando que o que sentem, é o que dos santos lêen e ouvem, edificam telhados sem paredes e casa sem alicerce, e com qualquer tentação caem e são enganados» (I, 38). El remedio es no olvidar nunca que la clave de la vida espiritual está constituida por el binomio mortificación y amor. Para este apartado interesa mirar el trabajo XVI: «Da tentação ao Senhor no deserto», donde se trata sobre todo de tentaciones «de segunda semana» (siguiendo con la terminología ignaciana): pues el demonio suele «buscar sempre para tentar ocasiões e conjunções e aparências de bem, com que faça parecer virtude e necessidade o mal que comete» (I, 335). Continúa diciendo: «Mas as almas que por seus pecados perderam o medo a seus vícios e gostam deles, impropriamente se diz que são tentadas. Porque têm já dado ao Demónio tanto senhorio em si, que não tem com eles batalha» (I, 335-336). Por una parte, el enemigo es maestro en el arte de adaptarse: «trabalha por conhecer a inclinação de cada um, boa ou má. E acomoda-se com fingidas branduras» (I, 339). Por la otra, la dialéctica de la libertad humana está radicalmente herida por la concupiscencia: «Não são menos vergonhosas e para sentir as baixas e fracas justificações com que nos contentamos, para nos havermos por isentos de grandes culpas, que elas mesmas». Y por ello: «Quão leve parece no tempo do gosto da culpa, todo o mal que o homem aceita por fazer sua vontade» (II, 215-216). Para enfrentarse a las tentaciones ofrece dos consejos. El primero, «tenha medo de toda a coisa a que se sentir muito inclinado e afeiçoado, ainda que pareça boa» (I, 51-52)50. El segundo, «que não dê entrada voluntariamente a nenhum pensamento de tentação, que o possa perturbar; mas logo no princípio resista, Cf. Fernando Rivas Rebaque, Terapia de las enfermedades espirituales en los Padres de la Iglesia, Madrid, San Pablo, 2008. J. A. Mourão, Sujeito, Paixão e Discurso, ed. cit., 183. 50 Esto recuerda las «afecciones desordenadas», en relación con las cuales dice san Ignacio que el ejercitante «debe afectarse al contrario»: EE, n.º 16, 4. 48 49 93 Eduardo Javier Alonso Romo com se encomendar, e oferecer ao Senhor [...]; se a tentação for importuna, dê conta dela a algum servo de Deus [...]. E, sobretudo trabalhe por tirar toda a ocasião de tentação» (I, 52). Más aún, Fr. Tomé afirma que el enemigo «menos se desvela em que não seja a tentação conhecida, que em procurar a vitória» (I, 339). Se trataría de una formulación de la máxima «tentación dicha, tentación vencida»51. Más adelante, insiste en el valor de los defectos y faltas pequeñas: «Não é ordinariamente o pecado muito costumado, ser desacompanhado doutros tão maus ou piores, que dele nascem e a que abre porta e caminho [...]. Ao menos nas religiões (onde se tem mais por ofício a reformação da alma) há disto grandíssimas experiências, que não começam a perder sua observância por graves devassidões, senão por leves relaxações» (I, 447-448). Fr. Tomé termina estos avisos con dos notas: «nunca Deus dá trabalho nem tentação, senão por medida, tanto quanto cada um pode com sua graça vencer e aproveitar» (I, 54)52. La otra nota es «que se lembre, que tem a Deus presente em todo o lugar e renove esta lembrança muito a miúdo, para que em todos os negócios da vida com reverência e temor viva diante dos olhos do Senhor, que o vê» (I, 55). El tema del pecado se presenta como una ofensa a Dios, en duro contraste con el amor de Cristo manifestado en sus sufrimientos. De ahí la invitación constante a meditar en éstos y especialmente a contemplar la pasión. Por ello llora su inconstancia y reincidencias con lamentos que parecen un eco de san Agustín: «Ó miserável alma pecadora e mofina, que uma vez recebe a luz e torna a cegar, e recebe o fogo do amor e torna a esfriar, recebe o perdão e torna a pecar [...]. Tornou como porco ao lodo e como cão ao arrevesado» (I, 181). El cuerpo es visto como enemigo y tirano desde cierto dualismo antropológico, al que no será ajena la tradición agustiniana53. Lo mismo cabría decir de cierto pesimismo al tratar del pecado y de las contradicciones del hombre o de los dramáticos movimientos del corazón: «O meu corpo e minha carne em mim é o maior e mais prejudicial inimigo que tenho, em tudo me é contrário, a todo mal me inclina [...]. Está, Deus meu, este amor próprio dentro dos tutanos e entranhas deste terreno homem, e quando cuido que me vejo e conheço, cotejando-me Cf. EE, n.º 326. Cf. EE, n.º 320. Cf. también santa Teresa: «Este cuerpo tiene una falta, que mientras más le regalan, más necesidades descubre [...]. Y creed, hijas, que en comenzando a vencer estos corpezuelos no nos cansan tanto»; Camino de perfección, 11, 2 y 4. Utilizamos las Obras completas de santa Teresa de Jesús, ed. de Tomás de la Cruz, Burgos, Ed. Monte Carmelo, 1984. Numeramos capítulo y párrafos según la división usual. 51 52 53 94 EJERCICIOS Y PENITENCIA EN LA OBRA DE TOMÉ DE JESUS convosco me acho dele mais preso. Comigo anda, comigo cresce, comigo acompanha, em tudo se me mistura» (I, 122). Un antídoto clásico para luchar contra las tentaciones ha sido siempre el recuerdo de los sufrimientos de Jesús y, especialmente, de su pasión y su muerte. Para Fr. Tomé, como para el autor de la Imitatio Christi, toda la vida de Jesús no fue otra cosa que trabajos, esto es, cruz y martirio54. No hay que olvidar que la lucha no sólo es una dinámica irrenunciable, sino que también es permanente, puesto que las tendencias quedan siempre en el interior. Por ello, la vida cristiana es guerra y martirio continuos55. De hecho, el hombre abandonado a sus propias fuerzas se ve del todo impotente para la lucha, pues se siente como leproso56. Ahora bien, es fundamental la guarda de los sentidos mediante una auténtica reeducación y disciplina. Tomé insiste en ejercitar el dominio de los sentidos, como puertas de la distracción y de las tentaciones: «Outras asperezas há mais seguras e necessárias. Enfrear os sentidos, a língua, o ver, o ouvir, o conversar, a ociosidade, a ira, as ocasiões de pecados, a própria vontade, o parecer próprio, o apetite das coisas, a condição própria [...], e outras a este modo. As quais todas se exercitam sem excesso, que não seja muito leve de emendar» (I, 269). Se hace necesaria una reapropiación del propio cuerpo por medio de la educación ascética y una cuidadosa vigilancia. El autor llega a pedir auxilio contra su propia carne: «Convertei a vosso serviço todos os distraídos sentidos e membros deste inimigo corpo [...]. Que posso eu contra tal inimigo sem vosso esforço? Deste-mo por companheiro, obrigaste-me a o manter e castigar [...]. Pregai, Senhor, na vossa cruz minhas carnes com vosso temor; e desses vossos trabalhos me dai a discrição, vontade e forças com que vós quereis que eu o trate. Afastai e cerrai com vosso temor meus olhos [...]. Ponde guarda, Senhor, e freio à minha língua» (I, 276-277). Podemos decir, por tanto, que de los tres clásicos enemigos del alma (el mundo, el demonio y la carne), frei Tomé presta especial atención al último. Otras veces, sin embargo, le echa la culpa al demonio: «Não dorme este leão infernal em me procurar males e perdas; todo mal me comete, em todo bem se mistura, desde que nasci até hoje a toda coisa boa se atravessa, em me enganar De imitatione Christi, lib. 2º, cap. XII, 7. Cf. De agone christiano; en Obras de S. Agustín, XII-BAC, 476-525. Ver también De civitate Dei, lib. XIV, c. 28; en Obras de S. Agustín, XVI-XVII-BAC, 985-986. 56 Trabalhos, I, 349. 54 55 95 Eduardo Javier Alonso Romo se desvela, e em buscar manhas e ardis para me vencer. Quando durmo, entre sonhos me inquieta, e em acordando, já está alerta para não perder ponto [...]. Ora se me faz anjo de luz, ora se reveste em vossos dons, ora se transfigura em aparências de virtude, ora toma a cor de minhas inclinações» (I, 352)57. Y luego hay que contar con el mundo, injusto y seductor: «Este é o mundo, servido, buscado, venerado e pelo qual, ordinariamente os homens de perdem, o qual quanto mais velho vai sendo, maiores calos vai fazendo nesta sua má condição, de perseguir e aborrecer os bons, e as virtudes, e justificar as vaidades, e consagrar os vícios» (II, 158). Entre los pecados capitales Tomé concede especial atención a la soberbia, vista como el principal de todos ellos, aspecto éste en que sigue una larga tradición. Desde la conciencia de que el hombre es fácilmente engañado por su propio orgullo, pide por boca del pecador: «Quebrantai, Senhor, em minha soberba. Porque presumo de mim e me tenho em muito [...]. Meu parecer próprio cega-se, ora com afeição, ora com a mágoa, ora com a indignação, ora com o apetite da vaidade, ora com a inveja, ora com o interesse e com outras muitas inclinações, que nascem deste miserável e terreno homem» (I, 235). 4. Penitencia interior y penitencias exteriores Ciertamente, la penitencia es una forma de ascesis y de ejercicio. Ahora bien, tanto en el siglo XVI como en la actualidad, el término «penitencia» se entiende en varios sentidos. Así, por ejemplo, el Diccionario de la Real Academia Española ofrece ocho acepciones para esta polisémica palabra, entre las que ahora destacamos dos (la primera, y la quinta): 1. f. Dolor y arrepentimiento que se tiene de una mala acción, o sentimiento de haber ejecutado algo que no se quisiera haber hecho. 5. f. Acto de mortificación interior o exterior. Por otro lado, aunque los tratadistas clásicos se esfuerzan por diferenciarlos58, existe una gran proximidad semántica entre los conceptos de «penitencia» (en alguna de sus acepciones) y «mortificación». Así, el verbo «mortificar» en su segunda acepción y con uso pronominal es definido en el mismo Diccionario como: «Domar las pasiones castigando el cuerpo y refrenando la voluntad». Y luego están otros términos análogos como abnegación, sacrificio, renuncia o vencimiento propio59. Cf. EE, n.º 332-334. Cf. A. Tanquerey, Compendio de Teología Ascética y Mística, Paris, Desclée, 1930, 464-465 (definición de penitencia) y 494-497 (concepto de mortificación). 59 Por otra parte estaría el sacramento de la penitencia, del que trataremos más adelante, siquiera brevemente. Este sacramento se proyecta en la vida del creyente acentuando su carácter penitencial y de abnegación con 57 58 96 EJERCICIOS Y PENITENCIA EN LA OBRA DE TOMÉ DE JESUS Por su parte, nuestro autor define la mortificación como «uma total entrega e geral renunciação da pessoa, e de todas suas coisas interiores, exteriores e celestiais em Deus» (I, 40). Esta mortificación exige una batalla continua entre la carne y el espíritu. Ante Cristo crucificado exclama: «A obra maior, e a vós Senhor mais aceita, é amar, e o em que se mais mostra é em padecer até morrer [...]. Não é mais santo quem tem mais fervor, nem é mais justo quem é mais consolado; nem vos é mais aceite quem está de vós com gostos visitado, se não está de todo crucificado. O atribulado, perseguido, desamparado, crucificado de trabalhos de fora, e cruzes e desamparos de dentro, calado sofrido, perseverando por amor, este é o vosso amado» (II, 258). En fin, Tomé comparte con otros autores del momento el convencimiento de que la contemplación de sus sufrimientos de Jesús puede llevar al deseo de compartir ese dolor, desde una amorosa compasión, de modo que los amigos de Dios «mais trabalhos desejam passar na vida por amor deste Señor» (I, 41)60. De este modo, se avanza hacia una «penitencia activa». Se trata de la paradoja y el escándalo de abrazar la cruz, pues el amor, «se muito dá, também muito crucifica» (I, 41). Es una especie de redamatio o retorno de amor, como forma de reparación del amor ofendido61. Es «la locura de la cruz», en que la contemplación de Cristo como varón de dolores, llena el alma de compasión y le lleva incluso al deseo de sufrir con Él. Ahora bien, como buen hijo de san Agustín62, Fr. Tomé privilegia la mortificación interior y la lucha de la voluntad ayudada por la gracia, pues conoce que la verdad del hombre se juega en su intimidad; más aún, las penitencias exteriores son sospechosas de ilusión, si no van acompañadas de el sentido de «satisfacción» por los pecados. 60 Véase, p. ej., Tomás Álvarez, Cruz, in Diccionario de Santa Teresa, Burgos, Ed. Monte Carmelo, 2002, 189-194. En EE, n.º 197 encontramos: «Considerar cómo todo esto padece por mis pecados, etc.; y qué debo yo hacer y padecer por Él». O también el célebre coloquio delante de Cristo crucificado: «lo que he hecho por Cristo, lo que hago por Cristo, lo que debo hacer por Cristo» (EE, n.º 53, 2). Cf. Stefan Kiechle, Kreuzesnachfolge. Eine theologisch-anthopologische Studie zur ignatianischen Spiritualität, Würzburg, Echter, 1996. 61 Véase el reciente libro dirigido por Nurya Martínez-Gayol, Retorno de amor. Teología, historia y espiritualidad de la reparación, Salamanca, Eds. Sígueme, 2008. Destacamos especialmente a nuestro propósito dos capítulos del mismo: N. Martínez-Gayol, Prehistoria de la espiritualidad reparadora. Patrística y Edad Media, 123-179; y M.ª Jesús Fernández Cordero, Historia de la espiritualidad reparadora. Edad Moderna y Contemporánea, 181-260. 62 San Agustín, Sermo 156, 9; en Obras de S. Agustín, XXIII-BAC, 470-471. En otro lugar, san Agustín dictamina: «En esto consiste el combate cristiano: en mortificar con el espíritu las obras de la carne», Sermón 335, J, 2; en Obras de S. Agustín, XXV-BAC, 742. 97 Eduardo Javier Alonso Romo una actitud de abnegación de la voluntad63. Así en el «Trabalho XII: Aspereza da vida» encontramos que: «A principal parte da virtude da penitencia, que é interior dor, e sentimento dos pecados cometidos contra Deus, e ódio deles, que é obrigatória a todos os pecadores, nunca pode ter extremo nem excesso» (I, 264). En otro lugar indica que la clave está en la entrega de la voluntad propia: «Muitos géneros de aspereza de vida há. Jejuns, vigílias, cilícios, disciplinas, durezas de vestido e cama; e outras a este modo, as quais, às vezes são necessárias, e às vezes obrigatórias, às vezes perigosas. Os que as exercitam, saibam que são as menores neste género de virtude. E que se tiram as forças evidentemente para cumprir as obrigações da lei de Deus e do estado, ou se são feitas com parecer próprio voluntário sem sujeição aos Padres espirituais, e a servos de Deus, que nisso podem dar conselho, são mais repreensíveis que louváveis. Porque desta maneira exercitadas, como têm excesso de vontade própria, acontece que por mais admiráveis no exterior, geram soberba e mortificação pouca» (I, 269)64. De este modo, por ejemplo, relativiza la práctica del ayuno, si no va acompañada de auténtica sobriedad de vida y, sobre todo, «com mortificação dos vícios e exercício de interiores virtudes» (I, 329). Diríamos también que Tomé privilegia la mortificación pasiva frente a las mortificaciones activas, por aquello que decía santo Tomás de que resistir es más difícil que atacar65. No obstante, también es preciso adelantarse, reprimiendo la sensualidad y domando el cuerpo a través de la penitencia. Por ello afirma que la verdadera imitación de Cristo es la de quienes: «não esperam ver-se nas tentações, pecados e perigos, para depois fazerem penitência: mas atalham com a mortificação de seus corpos a malícia que neles pelo pecado de Adão, e que nascemos, reina, que se não levante contra a lei de Deus, e a alma [...]. Privam-se de coisas lícitas, para que gema o corpo pelo que lhe é devido, e se contente quando disso lhe for dado o necessário, para que assim se descuide de pedir outras coisas não lícitas e más» (II, 173). Para ver el caso ignaciano, léase el precioso artículo de José García de Castro, «El lento camino de la lúcida entrega (Itinerario personal de Ignacio de Loyola hacia la abnegación)», Manresa, 73 (2001), 333-355. En este sentido, vale la pena recordar la famosa carta de san Ignacio a los estudiantes de Coimbra: Ignatii Epistolae. I, Madrid, MHSI, 1903, 507. 64 Santa Teresa dirá: «No guardamos unas cosas muy bajas de la Regla – como el silencio, que no nos ha de hacer mal – [...], y queremos inventar penitencias de nuestra cabeza»; Camino de perfección, 10, 6. 65 Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, 2-2, q.123, a.6 63 98 EJERCICIOS Y PENITENCIA EN LA OBRA DE TOMÉ DE JESUS Fr. Tomé sabe que en cuestiones de penitencias externas o corporales no es posible dar una norma fija y universal para todos: «Em caso de dúvida, é mais seguro em coisas pender mais à parte da aspereza, que da relaxação» (I, 267). Extractamos sus consejos al respecto: «I. Cuidado de governar a vida por necessidade, e não por apetite, e trabalhar por conhecer as verdadeiras necessidades da natureza, ou do estado. II. Viver com cuidado de conhecer bem as inclinações más do corpo, e com mais medo e receio usar das cosas a que ele é mais inclinado. III. Ter olho ao aproveitamento espiritual da alma, para cuidar sempre que faz menos do que pode. IV. Examinada bem, como temos dito, a qualidade dos vícios em que mais cai, ou a que mais é inclinado, conforme a isso usar do género de aspereza que é mais própria para emenda e freio deles» (I, 267-268). En cualquier caso, siempre son necesarias moderación y prudencia, para no dejarse llevar por fervores indiscretos o inoportunos deseos de emulación: «Aviso aqui a todos de uma geral tentação de todos os cristãos, que lêem ou ouvem as vidas dos santos grandes penitentes, e que com isso se movem a algum desejo de se salvar. Estes pela maior parte pasmam daqueles grandes extremos, aos quais se entendem de si que nunca hão-de chegar, e com isto dizem, que como se hão-de salvar, estando tão longe daquilo? É género de tentação com que o Demónio arreiga mais o descuido de emendar a vida. Pelo qual devem saber que não é lícito querer imitar os santos naqueles grandes extremos» (I, 270-271)66. El pecador pide, por boca del autor, ayuda para caminar por un itinerario de penitencia que le purifique de sus pecados, terminando con una frase de sabor agustiniano67: «Dai-me, Senhor, que ame toda a criatura que me der algum trabalho, pois é instrumento de ser minha culpa castigada. Dai-me que toda a tribulação me seja saborosa, para por ela vos satisfazer por meus pecados [...]. Dai-me que tanto ame a penitência e a busque, como amei a culpa [...]. Aqui queimai, aqui cortai, aqui açotai, aqui não perdoeis nada, para que para sempre me perdoeis» (I, 278). Recuérdense los deseos emuladores de Íñigo de Loyola tras su conversión: Autobiografía, n.º 7. «Hic ure, hic seca ut in aeternum parcas»; se trata de una exclamación atribuida desde antiguo a san Agustín, pero que no aparece escrita en sus obras conservadas. 66 67 99 Eduardo Javier Alonso Romo En algunos momentos María Magdalena es presentada como modelo de penitente: «Na hora que a Madalena pecadora vos chorou a esses pés, e os abraçou, logo ficou com título de amadora, logo em vossa casa teve a melhor parte, logo subiu a ungir vossa cabeça» (I, 278)68. En otros momentos aparece un Fr. Tomé crítico con los religiosos faltos de espíritu ascético de obediencia y de pobreza69; por eso encontramos diversos avisos dirigidos especialmente a los consagrados70. De cualquier modo, la penitencia ha de ser un elemento fundamental a lo largo de la vida de todo cristiano, siempre necesitada de purificación: «Porque a maior parte dela é povoada de culpas e defeitos, tanto havemos mister para chorar o mal cometido, e limpar o que nos impede a entrada do céu, como para com boas obras merecêlo» (I, 382)71. En otro orden de cosas, Fr. Tomé piensa que la penitencia supone una cierta madurez: «A experiência ensina que na idade de mancebos, até com os anos e discurso das coisas quebrarem, pouquíssimos são os verdadeiros penitentes; porque são muito contados os que deveras aborrecem suas inclinações más e culpas» (I, 264-265). 5. La ascesis de la oración Siguiendo en la línea de la penitencia interior, hay un aspecto – en plena consonancia con la metodología de ejercicios – que requiere particular atención y es la praxis oracional como modo de penitencia. Es decir, que no sólo la ascesis y el ejercicio de las virtudes ayudan a la oración, sino que ésta en sí misma es una práctica penitencial. Así, al contemplar la flagelación del Señor, afirmará con rotundidad: «É a oração coisa que o corpo pior sofre, e a troco dela tomaria antes açoites. Porque na mental oração, os sentidos, a vaidade de seus pensamentos (que é a coisa em que mais se desenfada) e suas inclinações estão aferrolhadas; e da oração sai a alma com mais cuidado sobre ele» (II, 174). De este modo la mortificación interior complementa la exterior domesticando la imaginación, que ha de ponerse al servicio de la memoria de Cristo. Más pormenorizado había sido en otro capítulo anterior al tratar de la mortificación interior: Ver también Trabalhos, I, 63 y 411. Sobre la poesía portuguesa de los siglos XVI-XVIII, véase Luís de Sá F ardilha, Maria Madalena: lágrimas, amor e culpa, in Via Spiritus, 2 (1995), 7-46. Recuérdese aquí La conversión de la Magdalena del también agustino Pedro Malón de Echaide, libro escrito hacia 1580 y, por tanto, estrictamente coetáneo de los Trabalhos de Jesus. Cf. Jorge Aladro Font, Pedro Malón de Echaide y La conversión de la Magdalena (Vida y obra de un predicador), Pamplona, Gobierno de Navarra, 1998. 69 Cf. D. Brass, Some Erasmian Influences in the Work of Frei Thomé de Jesus, in Aufzätze zur portugieschen Kulturgeschichte, 13 (Münster 1974-1975), 92-116. 70 P. ej.: Trabalhos, I, 229-231, 250-251, etc. 71 Sobre el tema de las lágrimas, véase especialmente el «Trabalho V: Lágrimas de Deus nascido por nossos pecados» (I, 124-138). Sobre este motivo en la lírica religiosa: Isabel Morujão, As lágrimas do Menino Jesus: entre a doutrina e a poesia, in Via Spiritus, 2 (1995), 131-167. 68 100 EJERCICIOS Y PENITENCIA EN LA OBRA DE TOMÉ DE JESUS «Outra aspereza da vida soberana é a continuação do recolhimento interior e contínua oração [...]; para ela se devem poupar as forças corporais. Averiguado é por todos os Santos e experimentados, que a contínua oração é a mais rigorosa e áspera penitência que se dá ao corpo. Tanto, que aquele grande servo de Deus Frei Luís de Montóia, que me criou, dava por remédios a seus súbditos para fazer facilmente e sem trabalho todas as obras de virtude e todas as obras da religião, que quando o corpo ou a vontade recusasse cumprir algumas delas, lhe desse por partido que havia de estar em oração todo o tempo que havia de gastar naquela obra; porque sente tanto o freio da oração, que pelo escusar, aceitará todo outro trabalho» (I, 269-270). Esto es, la práctica oracional puede resultar en sí misma ardua y difícil. Y la razón de ello es que exige una total atención: «na oração cativam-lhe os pensamentos, que é a coisa em que a natureza mais se desenfada e alarga tomando-lhe residência de seus apetites e desordens, prendem-lhe a vontade que se não afeiçoe ao que deseja» (I, 270)72. Sin embargo, la oración tiene la gran ventaja de que puede ser hecha por todos, independientemente de sus circunstancias particulares: «Prouvesse a Deus que quisessem todos os amigos de fazer penitência, seguir esta; porque tirariam todos os proveitos que desejam. Seguramente aconselho a todos os que, por obrigação de estado, ou achaques de fraqueza natural, não podem com outras corporais asperezas, que se dêem ao exercício da oração» (I, 270). A continuación habla de algo análogo a las mociones de desolación y consolación – por seguir con la terminología ignaciana –. Fr. Tomé sabe, como Ignacio, que el enemigo trabaja para que acortemos la oración73: «Quando se achar duro e seco no exercício, leve o exercício ao cabo o melhor que puder, porque não sairá sem fruto, ainda que o não sinta». Otras veces, en cambio, el camino se recorre con facilidad: «Mas quando sentir que lhe dá o Senhor brandura de coração, e que tem disposição para se deter nas coisas, não passe do que o inflamar e enternecer, enquanto lhe dura aquela faísca [...]: porque assoprando-a, pode vir a ser viva brasa, e crescer em chama de amor, com que faça Deus na alma a mudança desejada e a obra que se pretende» (I, 54)74. Es sugestivo comparar estas palabras con la de Teresa de Jesús: Moradas primeras, 1, 6-7. Desde la perspectiva ignaciana véase Pascual Cebollada, Venir al medio. La Adición décima y la ascesis en los Ejercicios espirituales [82-90], in Manresa, 69 (1997), 137: «La oración contiene una dosis de lucha, de incomunicación, de aburrimiento, de dispersión y distracción, de sensación de pérdida de tiempo... que invita a abandonarla. Sin embargo, la permanencia en esas situaciones, con la confianza previa en que ese es un medio capital de encuentro con Dios, es algo que requiere una ascesis». 73 En ese caso el ejercitante ha de sobrepasar ligeramente el tiempo marcado, «porque no sólo se avece a resistir al adversario, más aun a derrocalle»; EE, n.º 13, 2. 74 EE, n.º 76, 3: «en el punto en el cual hallare lo que quiero, ahí me reposaré, sin tener ansia de pasar adelante 72 101 Eduardo Javier Alonso Romo El ideal sería vivir en oración continua, integrada en la vida, a modo del «contemplativo en la acción»75: «Trabalhe muitas vezes entre dia por se oferecer ao Senhor: louvar seu santo nome e sua glória; chamá-lo em sua ajuda; dizer-lhe palavras brandas [...], para ir sustentando sempre, e lançando lenha no fogo [...]; porque muitas vezes lhe acontecerá dar-lhe Deus, estando descuidado, o que lhe negou na hora da oração, para que veja que tudo se deve a ele e não a nosso trabalho e com isto acende nosso amor, humilhando nossa soberba» (I, 54)76. De diversas maneras insiste Fr. Tomé en la misma idea: «Quem com as penitências dos santos se não atreve, um conselho singularíssimo tem para castigo e freio de seu corpo, que é obrigá-lo a se ocupar em coisas que limpam a alma a chegam a Deus. Que são o uso dos sacramentos e a oração interior. Porque com isto não vive tanto sem freio e conta; e na oração o fazem estar preso e cativo, e ser sua malícia conhecida» (II, 173-174). 6. Examen y confesión Frei Tomé de Jesus tiene una perspectiva globalizante, que pretende abarcar toda la existencia. Así lo demuestra nuestro agustino en el «Modo que se há-de ter no exercício do exame cuotidiano», dividido en trece puntos y que de alguna manera resume gran parte de lo que venimos diciendo; por lo cual nos permitimos transcribirlo íntegramente77: «1. Ter contínua guarda em seu coração, para não deixar por vontade fazer nele detença, pensamento, desejo, ou coisa que possa ofender os olhos de Deus. 2. Trazer muitas vezes à sua memória que tem a Deus presente, para o louvar e adorar com amor e reverência. 3. Não deixe passar nenhum defeito interior, nem exterior, sem logo secretamente com dor e pesar dele, pedir humildemente perdão ao Senhor. 4. Não se determine em nenhuma coisa que a alma deseje, conselho ou negócio, sem primeiro se encomendar a Nosso Senhor, para acertar com sua vontade, conforme ao tempo que para isso tiver.78 hasta que me satisfaga». 75 Feliz expresión del P. Jerónimo Nadal para caracterizar el modo ignaciano de encontrar a Dios en todas las cosas. 76 Cf. EE, n.º 322, 4: «... y porque en cosa ajena no pongamos nido». 77 Este «exame cuotidiano» recuerda lo que Ignacio escribió para el «Examen general de conciencia»: EE, n.º 32-42. 78 Este punto está cerca de la “sólita oración preparatoria” de Ignacio: “que todas mis intenciones, acciones y 102 EJERCICIOS Y PENITENCIA EN LA OBRA DE TOMÉ DE JESUS 5. Enfrear os sentidos, principalmente a língua, para que se não espalhe por coisas, de que a razão não saiba dar conta. 6. Fazer aos próximos de qualquer qualidade que sejam, tudo quanto bem puder e alargar nisto a vontade de maneira que antes falte a possibilidade, que ela. 7. Não sofrer no coração por muito pequeno espaço rancor, ou desgosto do próximo, sem pelejar contra ele encomendando-o ao Senhor. 8. Não sofrer em sua alma pecado sem ter dele particular dor, e buscarlhe remédio de confissão, principalmente se for mortal, o mais depressa que puder. 9. Ter conta com os particulares exercícios e devoções e inspirações, que Nosso Senhor lhe der, para não deixar de os cumprir por tibieza. E acudir com levantamento da sua alma ao Senhor, quando e em qualquer parte que sentir, que Deus por interior movimento tira por ela. 10. Ter conta com as coisas a que é mais inclinado, assim más como boas, para trazer sempre o freio na mão do temor de Deus, para fugir de toda a ocasião de mal e pecado, e ordenar-se em tudo, como cumpre a glória de Deus e bem da sua alma. 11. Não ser atado a seu próprio parecer e vontade, mas folgar de fazer antes a vontade alheia que a sua, no que não for ofensa de Nosso Senhor. 12. Não presumir de si, nem fazer as coisas de seu estado por estima de sua pessoa, mas pelo que cumpre à honra e glória de Deus; nem desestimar ninguém por culpas que nele veja; e todo o bem que em si vir, humilhar-se como de alheio; nem se antepor a nenhuma pessoa, por imperfeita que seja. 13. Dar graças a Deus por tudo o que suceder no mundo, e tomar tudo como da sua mão e muito mais as coisas particulares que a ele lhe tocam» (I, 61-62). Se trata, como vemos, de mantener una actitud alerta y vigilante en todos los ámbitos, desde los más externos, al corazón como centro integrador de la persona. Esta atención a las faltas cotidianas que se intentan superar debe ser una actitud constante para poder reorientar las inclinaciones pecaminosas. Así, después de tratar de la importancia de la guarda de los sentidos corporales, subraya la necesidad de examinarse sobre ello: «Aqui o que se exercita, se acuse a Deus das particulares coisas corporais, em que vè que mais relaxadamente vive, e que mais o corpo lhe pede, e que são mais ocasião de culpas, ou demasias que distraem e cativam o coração» (I, 277). Nuestro autor señala que, además de los propósitos generales, el lectorejercitante debe tener «outros particulares, conforme ao estado que tem, uns operaciones sean puramente ordenadas en servicio y alabanza de su divina majestad” (EE, nº 46). 103 Eduardo Javier Alonso Romo para cumprir bem com suas obrigações, outros para reformar em si os defeitos quotidianos, outros para cortar ocasiões que sucederem, que podem impedir o aproveitamento da alma, outros para ajudar a alma mais aproveitar, outros para regimento de seus negócios e ocupações ordinárias», etc. (I, 62)79. Podríamos decir que, junto a actitudes generales, hay aquí una ascética del detalle, que busca la abnegación de las pequeñas cosas de cada día. Esto nos recuerda a lo que el mismo Tomé de Jesús había escrito en la Vida de su maestro, Luis de Montoya: «E geralmente em todas as cousas piquenas e grandes buscava meios para se conservar a memoria de Deos continua e com que impedissem a distraição e exercitarem a mortificação e rigor da observancia da orde»80. En este sentido de la atención a las cosas pequeñas daba ejemplo el propio Luis de Montoya en los propósitos que hacía para sí mismo, y que son transcritos por Tomé de Jesus81. Y en otro lugar, hablando también de la formación que Montoya – modelo de hombre mortificado, según el testimonio ignaciano82 – daba a sus religiosos, comenta: «Quisera aqui por a instrução com que começava a insinar os noviços; mas, por evitar prolixidade, sumariamente digo que toda he fundada em muita renunciação do amor <desordenado> das criaturas e muita onião do amor de Deos, em avisos de trocar cada cousa da vida por outras de Deos, em ter por herança o ceo, em muita occupação do tempo, em muita mortificação dos sentidos, em muita limpeza d’alma e muito cuidado della, muito zelo da observancia da hordem, e da aspereza e rigor no tratamento do corpo» 83. Digamos ahora unas palabras sobre el sacramento de la penitencia. Comencemos señalando que en la primera mitad del siglo XVI asistimos a una cierta crisis de este sacramento84. Después vendrá el Concilio de Trento con sus clarificaciones doctrinales85. Cf. EE, n.º 24-26. Tomé de Jesus, Vida do padre frey Luis de Montoya, ff. 47r-47v. Manuscrito conservado en Arquivo Distrital de Braga, con la signatura Ms. 91. En la actualidad estamos preparando una edición del mismo para la revista Archivo Agustiniano (Valladolid) en dos partes: vols. 93 (2009) y 94 (2010). 81 T. de Jesus, Vida do padre frey Luis de Montoya, ff. 9r-14v y 24r-27v, especialmente. 82 Así lo trasmite Luís Gonçalves da Câmara: «Quando el Padre [Ignacio] habla de la oración, siempre parece que presupone las pasiones muy domadas y mortificadas [...]; hablando de un buen religioso que él conoce, y diciendo yo que era de mucha oración, el Padre mudó y dixo: “Es hombre de mucha mortificación”» La identidad del buen religioso es precisada después por el mismo autor en su glosa en portugués: «Este era o Padre frey Luis de Montoya, reformador e provincial da ordem de S. Agostinho neste reyno, o qual, yndo a Roma a hum seu capitolo geral, conversou particularmente N. P. Ignacio, e se confessou com elle geralmente»; Fontes Narrativi-I, Roma, MHSI, 1943, 644 y 646. 83 T. de Jesus, Vida do padre frey Luis de Montoya, f. 20r. 84 Cf. P. Gervais, «Pénitence et liberté chrétienne. Luther et Ignace de Loyola», Nouvelle Revue Théologique, 129 (Bruxelles 2007), 529-544. 85 El Concilio de Trento dedicó doce artículos de la sesión XIV (1551) a definir la penitencia como sacramento. Cf. P. Adnès, Pénitence, in Dictionnaire e Spiritualité, XII/1, 943-1010; Maria de Lurdes Correia Fernandes, Do manual de confessores ao guia de penitentes : orientações e caminhos da confissão no Portugal 79 80 104 EJERCICIOS Y PENITENCIA EN LA OBRA DE TOMÉ DE JESUS A lo largo de la obra no son muchas las alusiones directas a la confesión sacramental. Al principio del itinerario nuestro agustino recomienda: «Trabalhe o que se quer aproveitar, por mudar a vida, satisfazendo a Deus pelo passado, com pura e geral confissão” (I, 49). Y ello por una razón muy simple, como dirá después: «importa muito para que a alma quando se chegar à oração, não ache em sua consciência remordimento de coisa fresca que lhe cause pejo» (I, 53). El agustino trata de la contrición en el contexto de la praxis penitencial y señala: «Não deve ninguém de cuidar de si que tem alcançado esta virtude, se o conhecimento do pecado não tira a ocasião dele; ou se a confissão dele não é inteira; ou se a faz a confessores, de que se cuida que os não entenderão; ou que terão mais brandura [...]; muito menos se o arrependimento e confissão não enfreia a soltura e inclinação aos pecados» (I, 264). Asimismo, encontramos varios consejos dirigidos a los confesores, postulando una actitud de benevolencia hacia el penitente que ayude en la labor de «obstetricia espiritual» – por utilizar la expresión de Jean Delumeau86: «É este grande exemplo para curar chagas alheias entender primeiro a quanto chega o entendimento do pecador, e sofrer-lhe as imperfeições que ele não entende em si, nem está capaz de entender o mal delas. E provocá-lo a lhe parecer bem a virtude com brandura, e não mostrar fastio, nem asco de suas fraquezas» (I, 366). Y ello es especialmente importante cuando se trata de preparar a bien morir: «Daqui aprendam todos os que confessam, ou acompanham mortos, a não os espantar com medo dos pecados; mas esforçá-los a se descuidar deles, depois de contritos e confessados» (II, 360). 7. Algunas reflexiones finales Por un lado, la obra de Tomé de Jesus se trata de un itinerario ascético de configuración personal con Cristo doliente, dentro de la orientación cristológica de la escuela agustiniana de espiritualidad87. Por otra parte, diríamos que estamos ante una terapia espiritual escrita desde la experiencia actual de la cruz. Cristo paciente aparece como ejemplo supremo, cuya entrega ha de suscitar una respuesta paralela en el orante. Él es el estímulo de todas las virtudes, y en particular de la paciencia, la mansedumbre, la obediencia, la pobreza, la humildad y el silencio. El otro polo del pecado y la penitencia humanas sería la misericordia divina representada en el corazón de Jesús. De hecho, frei Tomé es un precursor de esta devoción en Portugal88. pós-Trento, in Via Spiritus, 2 (1995), 47-65. 86 Jean Delumeau, La confesión y el perdón [1990], Madrid, Alianza, 1992, 25-36. Véase, del mismo autor, Le Péche et la peur, Paris, Fayard, 1983. Desde una perspectiva filosófica vale la pena leer Paul Ricoeur, Finitud y culpabilidad, Madrid, Taurus, 1969. 87 Cf. José Luis Hervás, Entrañados en Cristo. La mística teología de fray Luis de León, Pamplona, Universidad de Navarra, 1996. 88 Véase el primer apéndice: «Do lado que foi aberto ao Senhor» (II, 369-380). 105 Eduardo Javier Alonso Romo En principio Tomé no nos habla de heroísmos utópicos – como tampoco de fenómenos místicos extraordinarios –, prefiriendo quedarse en un nivel más «realista». Según el profesor Silva Dias, la obra se sitúa sobre todo en la llamada vía purgativa, entrando un poco en la iluminativa89. Por otra parte, la obra representa moderación y equilibrio en tiempos de emulación penitencial90. En este sentido podemos recordar aquí la cuestión de las posibles conexiones de Fr. Tomé de Jesus con la reforma de los agustinos recoletos, esto es, la cuestión de su supuesto intento de organizar una congregación de recoletos en Portugal hacia 1565 – más de veinte años antes de la fundación de los Agustinos Recoletos en España. Tradicionalmente se ha venido afirmando que dicho intento fue animado por Montoya, pero que quedó frenado tras la muerte del agustino belmonteño al no ser apoyado por el general Cristóbal de Padua, con lo cual fracasaría dicha iniciativa91. Sin embargo, no hay ningún documento de esos años que testimonie tal intento de reforma que, por lo demás, dejaría un tanto comprometido el éxito de la acometida por Villafranca y Montoya92. Ahora bien, todavía hoy – hemos de reconocer – sabemos muy poco de la verdadera biografía de Tomé de Jesus (o de Andrade)93. Además, la obra contiene muy pocas alusiones directas a sí mismo y a su situación de cautivo. Por ello, al no conocer su intimidad personal, podemos suponer – pero no afirmar – que muchas de las paginas del libro tienen un eco autobiográfico94. José Sebastião da Silva Dias, Correntes de sentimento religioso em Portugal, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1960, I, 333. Eulogio Pacho, El apogeo de la Mística Cristiana, ed. cit., 824-826. Cf. Fernando R. de la Flor, La península metafísica, Madrid, Biblioteca Nueva, 1999, 123-155. 91 La noticia procede de A. de Meneses, «Vida de Fr. Tomé de Jesús», 7-8; así es recogida, p. ej., por Ángel Martínez Cuesta, Historia de los Agustinos Recoletos, Madrid, Ed. Augustinus, 1995, 170. Años después Aleixo de Meneses se mostrará interesado por los recoletos; cf. C. Alonso, Alejo de Meneses, osa, arzobispo de Goa y de Braga (+1617), amigo de los agustinos recoletos, in Recollectio, 2 (1979), 260-273. No obstante, los agustinos descalzos – también llamados Grilos – sólo entrarían en Portugal en 1664, con el apoyo de la reina Luisa de Guzmán. Cf. Saturnino López, Orígenes de los agustinos descalzos en Portugal, in Archivo Agustiniano, 51 (1961), 229-253; 52 (1962), 95-131 y 247-268; Pedro Augusto Ferreira – Ángel Martínez casado, Agustinos Descalzos de Portugal [1907], in Recollectio, 29-30 (2006-2007), 191-271. 92 David Gutiérrez es categórico cuando afirma: «Es falso que Tomé intentase fundar en su patria la “recolección” agustiniana. La documentación del siglo XVI ignora por completo el hecho; la portuguesa presenta a fr. Tomé como discípulo predilecto de Montoya; y éste, en su frecuente correspondencia epistolar con los superiores de Roma, aparece siempre fidelísimo al centro de la Orden, no introduciendo en la provincia portuguesa otras novedades que las aprendidas en Castilla [...]. Por ello, al consignar dicha noticia, los historiadores mejor informados se lavan las manos con un ut ferunt, como hace Herrera, Alphabetum, II, 446, o presentan contra ella serias dificultades, como hace Ossinger, 467»: en Ascéticos y místicos agustinos de España, Portugal e Hispanoamérica, 169, nota 65. 93 Así Isabel Morujão escribe: «São escasos e pouco credíveis os dados biográficos sobre Frei Tomé de Jesus. As referências do seu biógrafo, Frei Aleixo de Meneses [...], mais inscritas na intenção hagiográfica do que na exigência biográfica, revelaram-se imprecisas», Tomé de Jesus (Frei), art. cit., 454. 94 Suponemos que su experiencia se reflejaría mejor en su correspondencia epistolar con superiores y familiares. Una muestra de ello la encontramos en su carta del 27 de noviembre de 1582 editada por Alberto Feio, Um inédito de Frei Tomé de Jesus, in Boletim da Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de 89 90 106 EJERCICIOS Y PENITENCIA EN LA OBRA DE TOMÉ DE JESUS Reiteramos finalmente que, en líneas generales, Trabalhos de Jesus se sitúa sobre todo en el dominio de la ascética, con una señalada vertiente moralista, subrayando la facultad de los sufrimientos para acrisolar al hombre. Esto no excluye la feliz sorpresa de ciertos vuelos místicos, visibles especialmente en el lenguaje con que se dirige a Cristo95. Terminamos, pues, con estas encendidas palabras de entrega total en el amor, tomadas del capítulo XXVII, tras comentar la traición de Judas: «Aceito-vos, bom Jesus, por todo meu bem. Abraço-vos por único meu tesouro; e quero-vos por toda minha bem-aventurança; e daqui me despeço de toda a outra coisa. A quem vós não bastais, vida da minha alma, que pode desejar que lhe satisfaça? [...]. Vinde bom Jesus a esta alma, amemo-nos, possuamo-nos, e conversemo-nos para sempre sem apartamento, reinai vós em mim e eu viva sempre em vós» (II, 30)96. Eduardo Javier Alonso Romo Universidad de Salamanca Abstract: The present essay aims at approaching the classic Trabalhos de Jesus, posthumous work of the Augustinian friar of sixteenth century Tomé de Jesus, through a perspective of exercises of penance, inside the most extended field of the spiritual exercises. Questions are analysed like the methodology, the prayer practices and of spiritual discernment, the dualism between inner penitence and exterior penitences, as well as the advices to break down the temptations, and the uses for the examination of conscience and the confession. The author is placed in relation with other peninsular authors of that time specially saint Ignatius of Loyola. Braga, 1 (Braga 1920), 133-139. Evidentemente la comparación resulta más fácil en el caso de otros autores contemporáneos que sí cuentan con textos propiamente autobiográficos (Ignacio de Loyola, Teresa de Jesús, etc.). 95 Por otra parte, al menos en términos cristianos, no puede haber mística sin ascética. 96 Cf. Enarraciones sobre los Salmos, 31, 5; en Obras de S. Agustín, XIX-BAC, 390-391. 107 108 Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação, no Flos Sanctorum de 1513 Já anteriormente me referi, nesta revista, ao Flos Sanctorum em linguagem português, editado a 15 de Março de 1513, em Lisboa, pela parceria Hermão de Campos e Roberto Rabelo (a seguir: FSlp.Lis.1513).1 Dediquei-me então à análise da Oração de Jesus no Horto, colocada na primeira secção desta obra, a Paixão.2 Nessa ocasião, referi também uma tradução castelhana do mesmo texto, que terá sido publicada pouco tempo antes.3 Via Spiritus, nº 14 (2007), 66 e passim. Sobre as origens das ilustrações desta parte do FSlp.Lis.1513 fiz uma comunicação em Braga, no IV Congresso Internacional de Cister em Portugal e na Galiza, em 2 de Outubro de 2009. Devido ao número limitado de páginas admitido no artigo para as Actas, não pude enviar o texto desta comunicação para publicação. 3 Foi sobre as origens das ilustrações dessa obra em castelhano que me vi obrigado a escrever o artigo para as Actas do referido IV Congresso Internacional de Cister em Portugal e na Galiza, pelas razões aduzidas na nota anterior. Guarda-se na Biblioteca Britânica (Bristish Library) (abrev. BL), em Londres, um exemplar com a tradução ilustrada da Paixão de Cristo do Monotessaron de Jean de Gerson para castelhano, cujas estampas já tinham sido descritas, em alemão (sem reproduções, mas com as dimensões), por Martin KURZ, no Handbuch der iberischen Bilddrucke des XV. Jahrhunderts, Leipzig, Karl W. Hiersemann, 1931, 143, nº 295. Dez anos depois deste guia de Kurz, publicava Francisco VINDEL, em El Arte Tipográfico en España durante el Siglo XV, Madrid, Ministerio de Asuntos Exteriores – Dirección General de Relaciones Culturales, 1945-51, 8 vols., vol. VIII: Dudosos de lugar de impresión, adiciones y correcciones a toda la obra, 335348, um facsímile deste exemplar da BL. Na altura da entrega do artigo para as Actas desse IV Congresso Internacional..., não tinha ainda contactado com a Biblioteca Pública de Boston (Boston Public Library) (abrev. BPL), onde se guarda outro exemplar com o mesmo texto em castelhano. Enquanto uns catálogos atribuem o exemplar de Boston à mesma edição que o de Londres, outros há que o põem em dúvida. Até hoje nenhum europeu que escreveu sobre o assunto viu o exemplar de Boston. Quero agradecer a Sean P. Casey, do Rare Books & Manuscripts Department da Boston Public Library, a gentileza de me ter enviado fotocópias de um texto da publicação More Books: the Bulletin of the Boston Public Library, 6th. Series, vol. XVII (1942), 416-420, que começou a projectar um raio de luz sobre o caso. Consultas posteriores a este bibliotecário e o envio da reprodução das estampas do exemplar londrino, levaram à confirmação de que se trata de uma variante editorial do mesmo texto, com o mesmo número de xilogravuras, mas estampadas uma só vez cada, ao contrário do que acontece no exemplar londrino, em que algumas das entalhaduras são impressas duas ou mais vezes, como indico no texto das Actas do referido IV Congresso Internacional..., no prelo. O exemplar da BPL acaba de ser colocado online, talvez devido às minhas consultas –<http://www. archive.org/details/lapassiondeleter00biel>. O leitor interessado pode agora facilmente fazer o cotejo entre as duas versões. 1 2 109 Fr. António-José de Almeida, O.P. Desta vez, apresento três legendas incluídas na primeira parte da segunda secção, o Flos Sanctorum propriamente dito. Esta secção está subdividida em duas partes: a primeira, a que Félix Cabasés4 chama «Ano Cristão»; e uma segunda, constituída pelas legendas «extravagantes». O móbil para a abordagem da presente temática foi a tentativa de identificação de uma figura feminina deitada seminua, existente num fragmento de pintura mural recentemente descoberto na igreja de Nossa Senhora de Balsamão, em Chacim, concelho de Macedo de Cavaleiros, em Trás-os-Montes (fig. 1)5, durante as obras de restauro começadas a 14 de Abril de 2008.6 A 3ª sessão dos Encontros de Literatura Medieval, realizada no Centro de Literatura Portuguesa da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, em 27 de Novembro de 2009, e em particular a conferência proferida por José Aragüés7, veio ao encontro de nalgumas hipóteses que já tinha formulado. Como no anterior artigo publicado nesta revista, conjugo duas abordagens, uma relativa aos textos e outra, às ilustrações. Desta vez, como se trata de três textos, a secção relativa às ilustrações será subdividida em três, seguindo cada uma delas o texto da respectiva legenda. O texto do Flos Sanctorum de 1513 será comparado com o de duas das edições sobreviventes em castelhano, precisamente as que, no estado actual das edições ecdóticas, foram publicadas antes e depois da versão portuguesa. Refiro-me à Leyenda de los santos da British Library (ca. 1499-1500) (a seguir: Ls.Bur.1499)8 e à Leyenda de los santos (que vulgarmente Flos Sanctorum llaman) de Loyola (ca. 1520-21) (a seguir: Ls.Sev.1520-21). Assim poder-se-ão apreciar os acrescentos introduzidos. Segui a divisão dos textos estabelecida por Félix Cabasés, traduzindo, de forma livre, os títulos-resumo por ele elaborados. Para mais fácil leitura, coloquei em itálico as secções de texto em discurso directo. Também coloquei em negrito as frases que quis destacar. Sublinhei, as notas inercalares explicativas de Cabasés, dentro de parêntesis rectos [ ]. 4 Félix Juan CABASÉS S.J., na edição de: B. IACOPO da VARRAZZE O.P., Leyenda de los Santos (que vulgarmente Flos Santorum llaman), Madrid, Universidad Pontificia de Comillas – Institutum Historicum Societatis Iesu (MHSI, series nova, 3), 2007 (ISBN 978-84-8468-225-7). 5 Agradeço a Basileu Pires, sacerdote da Congregação dos Marianos, o envio de fotografias das pinturas murais, tanto de quando foram descobertas (da sua autoria) como depois da intervenção de consolidação, limpeza e conservação de Joaquim Inácio Caetano (da autoria deste último). Agradeço também a Joaquim Caetano a permissão em publicar aqui duas dessas fotos da sua autoria, assim como informações complementares, enviadas por correio electrónico (email). 6 Notícia aparecida na página http://www.brigantia.pt, de 10 de Julho de 2008: <http://www.brigantia.pt/ index.php?option=com_content&task=view&id=631&Itemid=2> 7 José ARAGÜÉS ALDAZ (Universidad de Zaragoza), La Leyenda de los Santos: Perspectivas de estudio. 8 A tradução castelhana do relato da Paixão do Monotessaron de Jean de Gerson acima referida foi colocada antes deste texto, formando com ele um só volume. 110 Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação, no Flos Sanctorum de 1513 No que diz respeito às ilustrações, debruçar-me-ei de modo particular sobre as estampas semelhantes às que ilustram o FSlp.Lis.1513, procurando estabelecer a sua possível origem noutras xilogravuras estampadas fora da Península Ibérica, mais precisamente em Lião do Ródano (Lyon sur Rhône), em França. Mas também procurarei na produção xilográfica alemã possíveis influências sobre a família de imagens lioneso-ibérica, e em especial sobre as ilustrações com traços sui generis do FSlp.Lis.1513. Dentro de cada um dos três partados em que dividi este artigo, veremos as imagens, não só as que ilustram o texto português e os castelhanos com que o cotejei, mas todo um conjunto delas que foram estampadas na Península Ibérica. Citaremos ainda exemplos germânicos e lioneses relaciondas com estas, quer no que diz respeito à proveniência de matrizes ou modelos, quer ainda por causa de semelhanças ou elementos que nos ajudem a comprender pormenores nelas existentes.9 De modo particular, veremos, através tanto dos textos literários como dos iconográficos, como a nudez pode ser sinal de penitência. Os livros analisados são os seguintes10: Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Leben der Heiligen, Augsburg, Günther Zainer, 25 Outubro 1471 (Winterteil); 27 Abril 1472 (Sommerteil). (abreviatura: LdH.Aug.1471-72)11 Esta segunda parte do presente artigo vem na sequência do apartado com o mesmo tema na 3ª parte da minha tese de doutoramento em História da Arte: Fr. António-José de ALMEIDA, O.P., IMAGENS DE PAPEL. «O Flos Sanctorum em linguagem português», de 1513, e as edições quinhentistas do de Fr. Diogo do Rosário O.P. – A problemática da sua ilustração xilográfica, Porto, Universidade do Porto –Faculdade de Letras, 2005 [ed. policopiada], 335-337 (Sta. Maria Madalena), 413-415 (Sta. Maria Egipcíaca) e 483-484 (Santos Coroados). Desenvolvo aqui a investigação que então encetei. 10 Quando exista reprodução completa das imagens estampadas, coloco em rodapé as referências aos álbuns ou aos URLs, onde elas se podem encontrar. Vejam-se os artigos publicados por José ARAGÜÉS ALDAZ, no que respeita às edições espanholas. Tendencias y realizaciones en el campo de la Hagiografía en España (con algunos datos para el estudio de los legendarios hispánicos), in Actas de XVIII Congreso de la Asociación de Archiveros de la Iglesia de España, (Orense, del 9 al 13 de septiembre e 2002), ed. Agustín HEVIA BALLINA, Oviedo, Asociación de Archiveros de la Iglesia en España, vol. I – Memoria Eccesiae, XXIV (2004), 441-560; Para el estudio del Flos Sanctorum Renascentista (I): la conformación de un género, in Homenaje a Henri Guerrero. La hagiogafía entre historia y literatura en la España de la Edad Media y el Siglo de Oro, ed. M. VITSE, Madrid, Iberoamericana, 2005, 97-147. À lista que este investigador apresenta, acrescento 3 exemplares, devidamente referenciados. Para as edições portuguesas, veja-se a minha tese de doutoramento em História da Arte, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto: Fr. AntónioJosé de ALMEIDA O.P., IMAGENS DE PAPEL. «O Flos Sanctorum em linguagem português», de 1513, e as edições quinhentistas do de Fr. Diogo do Rosário O.P. – A problemática da sua ilustração xilográfica, Porto, 2005 [Texto policopiado], esp. 65-191, com descrição das imagens e sua reprodução (em formato reduzido). Espero a oportunidade de poder publicar álbuns com as imagens elencadas. 11 Albert SCHRAMM, Der Bilderschmuck der Frühdrücke (begründet von Albert Schramm, fortgeführt von der Kommission für den Gesamtkatalog der Wiegendrucke), Leipzig, 1920-1923 + Stuttgart, Hiersemann, 1924-1943 (a seguir, a abreviatura: Schramm), vol.2, nos. 1-128; Walter L. STRAUSS (ed. geral), The Illustrated Bartsch, [New York], Abaris Books, <© 1979-2001> (a seguir, a abreviatura: TIB), vol.80, 62-76. 9 111 Fr. António-José de Almeida, O.P. Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Leben der Heiligen, Ausgsburg, Johann Bämler, 20 Março 1475 (Winterteil); 12 Agosto 1475 (Sommerteil). (abreviatura: LdH.Aug.1475)12 Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Leben der Heiligen. Sommer – und Winterteil, Nürnberg, Johann Sensenschmidt, 28 Julho 1475. (abreviatura: LdH.Nür.1475)13 Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Légende dorée, Lyon sur le Rosne, Nicolas Philippe et Marc Reynaud, [1477-78]. (abreviatura: Ld.Lyo.1477-78)14 Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Leben der Heiligen. Winter- und Sommerteil, Urach, Conrad Fyner, 12 Novembro 1481. (abreviatura: LdH.Ura.1481)15 Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Leben der Heiligen. Winter- und Sommerteil, Reutlingen, Johann Otmar, 12 Março 1482. (abreviatura: LdH.Reu.1482)16 Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Leben der Heiligen: Sommerteil, Augsburg, Johann Schönsperger, 2 Dezembro 1482. (abreviatura: LdH.Aug.1482)17 Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Légende dorée, Lyon, Mathieu Husz & Pierre Hongre, 1483 [e 1484]. (abreviatura: Ld.Lyo.1483)18 Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Leben der Heiligen, Augsburg, Johann Schönsperger, 10 Janeiro 1485 (Winterteil); 8 Junhoo 1475 (Sommerteil). (abreviatura: LdH.Aug.1485)19 Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Leben der Heiligen, Köln, Ludwig von Renchen, 21 Julho 1485 (1. Teil); 31 Outubro 1485 (2. Teil). (abreviatura: LdH.Köl.1485)20 Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Legenda aurea sanctorum, Lyon, Mathias Huss, 20 Julho 1486. (abreviatura: LaS.Lyo.1486)21 Schramm, vol. 3, nos. 229-354; TIB, vol.80, 258-286. Schramm, vol.18, nos. 12-117; TIB, vol.80, 367-404. 14 <http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k111287q.image.r=voragine.langPT.f10.vignettesnaviguer>. 15 Schramm, vol. 9, nos. 63-279; TIB vol. 83, pp. 71-97; <http://inkunabeln.digitale-sammlungen.de/ Exemplar_H-16,1.html>. 16 Schramm, vol. 9, nos. 686-805 (Winterteil); TIB, vol.83, 370-391 (Winter- und Sommerteil). 17 TIB, vol.83, 464-484. 18 <http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k52514j.image.r=voragine.langPT.f5.vignettesnaviguer>. 19 TIB, vol.85, 143-165. 20 Schramm, vol. 8, nos. 544-691; TIB vol. 85, pp. 123-141. 12 13 21 112 Estampas aguareladas (<http://gallica2.bnf.fr/ark:/12148/btv1b2200010q>). Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação, no Flos Sanctorum de 1513 Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Heiligenleben. Sommerteil, Augsburg, Anton Sorg, 1 Agosto 1486. (abreviatura: LdH.Aug.1486)22 Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Leben der Heiligen, Augsburg, Johann Schönsperger, 3 Julho 1487 (Winterteil); 31 Agosto 1487 (Sommerteil). (abreviatura: LdH.Aug.1487)23 Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Legenda aurea sanctorum, Lyon, Mathias Huss, 20 Julho 1487. (abreviatura: LaS.Lyo.1487)24 Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Leben der Heiligen. Sommer- und Winterteil, Lübeck, Steffen Arndes, 23 Junho 1488. (abreviatura: LdH.Lüb.1488)25 Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Heiligenleben, Augsburg, Anton Sorg, 24 Novembro 1488 (Winterteil); 4 Dezembro 1488 (Sommerteil). (abreviatura: LdH.Aug.1488)26 Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Leben der Heiligen, Nürnberg, Anton Koberger, 5 Dezembro 1488. (abreviatura: LdH.Nür.1488)27 Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), [Flos sanctorum romançat], [Lyon, Johannes Trechsel?, ca. 1490-94?]. (abreviatura: FsR.Lyo.1490) Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Flos sanctorum romançat, Barcelona, Joan Rosenbach, 1 Fevereiro 1494. (abreviatura: FsR.Bar.1494)28 Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Leben der Heiligen: Sommerteil, Augsburg, Johann Schönsperger, 17 Julho 1494. (abreviatura: LdH.Aug.1494)29 Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Leyenda de los Santos, [Burgos, Juan de Burgos, ca. 1497 ou 1499-1500]. – (texto). (abreviatura: Ls.Bur.1499)30 Schramm, vol. 4, nos. 2410, 2414-2515; TIB vol. 85, 305-316. TIB, vol.86, 55-57. 24 Exemplar incompleto: <http://bibliotecadigitalhispanica.bne.es/R/AATCIKDB78614G6SFT3HHR18NJK95U3EUJVRG39B7VVIXBQGVC-06241?func=results-jump-full&set_entry=000009&set_ number=000030&base=GEN01>. 25 Schramm, vol. 11, nos. 1-222; TIB, vol. 86, 88-113. 26 Schramm, vol. 4, nos. 2516-2737; TIB vol. 86, 342-366. 27 Schramm, vol. 17, nos. 56-314; TIB, vol. 86, 153-240; <http://daten.digitale-sammlungen.de/~db/0002/ bsb00027260/images/>. 28 <http://bibliotecadigitalhispanica.bne.es/view/action/singleViewer.do?dvs=1248469475339~84 8&locale=pt&search_terms=LEGENDA%20AUREA&adjacency=N&application=DIGITOOL3&frameId=1&usePid1=true&usePid2=true>. 29 <http://daten.digitale-sammlungen.de/~db/0002/bsb00027721/images/index.html?seite=4> 30 Agradeço a Cristina Sobral o ter-me facultado fotocópias desta obra. 22 23 113 Fr. António-José de Almeida, O.P. Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Flos sanctorum em linguagem português, Lisboa, Hermão de Campos & Roberto Rabelo, 15 Março 1513. – texto. (abreviatura: FSlp.Lis.1513)31 Fr. Gonzalo de OCAÑA O.S.H., Flos sanctorum, Zaragoza, Jorge Coci, 26 Abril 1516. (abreviatura: Fs.Zar.1516) Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Leyenda de los Santos, [Sevilla, Juan de Varela, ca. 1520-21]. – (texto). (abreviatura: Ls.Sev.1520-21)32 Fr. Pedro de la VEGA O.S.H., Flos sanctorum, Zaragoza, Jorge Coci, 25 Set. 1521 (Iª parte) - 25 Jan. 1533 (IIª parte). (abreviatura: Fs.Zar.1521-33)33 Fr. Pedro de la VEGA O.S.H., Flos sanctorum, Sevilla, Juan Cromberger, 1540. (abreviatura: Fs.Sev.1540)34 Fr. Pedro de la VEGA O.S.H., Flos sanctorum, Zaragoza, Jorge Coci, 1541. (abreviatura: Fs.Zar.1541)35 Fr. Pedro de la VEGA O.S.H., Flos sanctorum, Zaragoza, Bartolomé de Nágera, 1548. (abreviatura: Fs.Zar.1548) Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Leyenda de los Santos, Toledo, Juan Ferrer, 1554. (abreviatura: Ls.Tol.1554)36 Fr. Pedro de la VEGA O.S.H., Flos sanctorum, Alcalá de Henares, Juan de Brocar, 20 Outubro 1558. (abreviatura: Fs.Alc.1558)37 <http://purl.pt/12097/4/>. Félix Juan CABASÉS S.J., edição de: B. IACOPO da VARRAZZE O.P., Leyenda de los Santos (que vulgarmente Flos Santorum llaman). 33 Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (abrev. BGUC): J.F.-Gabinete-4-9. Faltam os fólios iniciais, incluindo a folha-de-rosto, e os fólios CCI e CCII. Título na base de dados: [Epistola prohemial / de fray Pedro de la Vega...en el libro que es intitulado vida de nuestro redemptor Jesu Christo y de sus santos]. Edição internacionalmente desconhecida, mas referida no Catálogo da Biblioteca, I - Sécs. XV-XVII, Coimbra, Liceu Normal de D. João III, 1969, Séc. XVI, 80, nº 291. Completei os dados fornecidos por esta obra, fruto da observação pessoal do exemplar. 34 Biblioteca Nacional de España, Madrid (abrev. BnE): R/13032 – Proveniência: «Da Companhia de Jesus Collegio de Portalegre Livraria Publica» (indicação a tinta, ao fundo do fólio xv r., o 2º deste exemplar). 35 O exemplar da BnP, Lisboa: RES. 848 A., contém no f. 448 vº, ao fundo, a tinta, a seguinte informação de proveniência: «Liuro da Cartuxa de Sacla cæli de... Rmo. Sr. D. Theotonio de Bragança| Arcebispo de Ebora fundador da mesma casa lhes fes doação.» 36 Agradeço o envio das páginas desta obra relacionadas com o presente trabalho por parte de José Aragüés. Consulta online em: <http://daten.digitale-sammlungen.de/~db/bsb00001412/images/>. 37 Reprodução da maior parte das estampas deste livro em: María Ángeles SANTOS QUER, La Ilustración en los Libros de la Imprenta de Alcalá en el siglo XVI. Introducción y catálogo, Madrid, Fundación Universitaria 31 32 114 Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação, no Flos Sanctorum de 1513 Fr. Pedro de la VEGA O.S.H., Flos sanctorum, Alcalá de Henares, Andrés Angulo, 1566. (abreviatura: Fs.Alc.1566)38 Fr. Diogo do ROSÁRIO O.P., História…dos Santos, Braga, António de Mariz, 1567. (abreviatura: Hs.Bra.1567)39 Fr. Iacopo da VARAZZE O.P. (e.a.), Leyenda de los Santos, Sevilla, Juan Gutiérrez, 1568. (abreviatura: Ls.Sev.1568) Fr. Pedro de la VEGA O.S.H., Flos sanctorum, Sevilla, Juan Gutiérrez, 1568-69. (abreviatura: Fs.Sev.1568-69) Fr. Pedro de la VEGA O.S.H., Flos sanctorum, Sevilla, Juan Gutiérrez, 1572. (abreviatura: Fs.Sev.1572) Fr. Diogo do ROSÁRIO O.P., História…dos Santos, Coimbra, António de Mariz, 1577. (abreviatura: Hs.Coi.1577) Fr. Pedro de la VEGA O.S.H., Flos sanctorum, Medina del Campo, [Francisco del Canto], 1578. (abreviatura: Fs.Med.1578)40 Fr. Pedro de la VEGA O.S.H., Flos sanctorum, Sevilla, Fernando Díaz, 1580. (abreviatura: Fs.Sev.1580) Alonso de VILLEGAS, Flos Sanctorum, Iª Parte. Zaragoza, Simón de Portinariis, 1585. (abreviatura: FsVill.Zar.1585) Fr. Diogo do ROSÁRIO O.P., História…dos Santos, Lisboa, António Ribeiro, 1585. (abreviatura: Hs.Lis.1585) Fr. Diogo do ROSÁRIO O.P., Flos Sanctorum… Lisboa, Baltasar Ribeiro, 1590. (abreviatura: FsRos.Lis.1590) Española, 2003 (ISBN 84-7392-524-6), 564-573, figs. 228-300. 38 Exemplar único conservado em biblioteca privada, dado a conhecer por Marta CASTILLO BAROJA, Estudio de los grabados «Flos sanctorum» de Pedro de la Vega (Alcalá: Andrés Angulo, 1566): un ensayo de catalogación de contenidos iconográficos, Salamanca, Universidad de Salamanca - Facultad de Traducción y Documentación, 1995 (Memoria de diplomatura). Reproduz todas as estampas deste livro, as quais são as mesmas da edição anterior (1558), embora lhe faltem algumas, mercê de o referido exemplar se encontrar truncado. 39 20 estampas deste livro foram reproduzidas em D. MANUEL II (rei de Portugal), Livros Antigos Portugueses – 1489-1600 – da Biblioteca de Sua Majestade Fidelíssima, London, Maggs Bros, 1929-1935 (reedição anastática: Braga, APPACDM, 1995), vol. III, (Suplemento), 717-720. 40 Agradeço o envio das páginas desta obra com imagens relacionadas com o presente trabalho por parte de José Aragüés. 115 Fr. António-José de Almeida, O.P. 1. Santas no deserto: Já anteriormente se falou nesta revista das duas santas mulheres que se tornaram o símbolo do eremitismo – Santa Maria Madalena e Santa Maria Egipcíaca41. Aqui trancreverei somente o texto do Flos Sanctorum de 1513 (FSlp.Lis.1513)42 a respeito de cada uma delas, acompanhado de alguns poucos comentários em ordem à secção dedicada à ilustração das suas legendas, que é o objecto principal do presente artigo. 1.1. Santa Maria Egipcíaca (*ca.344 - †421)43 1.1.1. O texto: Maria era uma meretriz de Alexandria, que se converte à porta da Basílica do Santo Sepulcro em Jerusalém e vai para o deserto realizar a penitência dos seus maus hábitos. O texto de Fra Iacopo da Varazze O.P. (*ca.1228 - †1298) é uma versão muito abreviada da vida da Santa escrita por S. Sofrónio I de Jerusalém (*ca.550/60 - †638)44. (1.) [O abade Zózimo encontra Maria no deserto]45 «[f. 56 d] Anta maria de egypto que era dita molher muy pecadora viueo em o deserto quorẽta & seis ãnos & hũ abade que chamauã zozimas [S] 41 María Isabel BARBEITO CARNEIRO, Mujeres eremitas y penitentes. Realidad y ficción, in Via spiritus 9 (2002) 185-215. esp. «II) Las dos mujeres símbolo del eremitismo», 191-199: «II.1. María Magdalena», 191-196; «II. 2. María Egipciaca», 197-199 – <http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/3480.pdf>. Ver também: Ana Maria [e Silva] MACHADO, A representação do pecado na hagiografia medieval: heranças de uma espiritualidade eremítica, Coimbra: [s.n.], 2006 [Documento electrónico] (Tese de doutoramento em Línguas e Literaturas Modernas, especialidade Literatura Portuguesa, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra), 2006, Cap. V – As Vidas de Santas penitentes e o diálogo da luxúria: Mª Egipcíaca, 547562 (protagoniza o tipo da prostituta-penitente, 547) e Mª Madalena, 562-583; Carlos Alberto VEGA, El transformismo religioso. La abnegación sexual de la mujer en la España medieval, Madrid, Pliegos, © 2008, D.L. 2009 (ISBN 978-84-96045-62-0), esp. 24 (est.2: «Santa María Magdalena»), 51(est.3: «Santa María Egipciaca»), 182-200: «Las Santas velludas: la dialéctica entre narrativa e iconografía». 42 Salvo no caso do terceiro texto, em que faltam as primeiras páginas este exemplar, pelo que as reconstruo, transcrevendo o texto em castelhano que figura na Ls.Bur.1499. 43 Sobre esta Santa ver: Ana Maria e Silva MACHADO, Tradição, movência e exemplaridade na vida de Santa Maria Egipcíaca: subsídios para o estudo da hagiografia medieval portuguesa Coimbra, [s.n.], 1988 [Texto policopiado] (Tese de mestrado em Literatura Portuguesa, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra), esp. 102-137; Cristina Maria Matias SOBRAL, Santa Maria Egipcíaca em Alcobaça: edição crítica das versões medievais portuguesas da lenda de Maria Egipcíaca, Lisboa, [Colibri], 1991 (Tese de mestrado em Literatura Portuguesa, apresentada ao Departamento de Literaturas Românicas, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa). 44 Ver o texto completo, lido, no Rito Bizantino, durante o ofício do Grande Cânon de Santo André de Creta, na quinta-feira da quarta semana da Grande Quaresma. – <http://www.pagesorthodoxes.net/saints/marieegyptienne.htm#mir >, ou <http://orthodoxie.typepad.com/files/sophrone_vie_de_ste_marie_legyptienne. pdf>. (traduções em francês). 45 Divisão e títulos de Félix Juan CABASÉS, S.J., na edição de: B. IACOPO da VARRAZZE, O.P., Leyenda de los Santos (que vulgarmente Flos Santorum llaman). Os títulos foram traduzidos por mim. 116 Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação, no Flos Sanctorum de 1513 nõ podẽdo passar o rio de jordã46 foyse pera huũ grãde hermo47 a ver se por vẽtura pode[f. 57 a, est. (77x69 mm.) (Fig.4)]ria passar por ally: ou se acharia alguũ scõ homẽ: & vio hũa cousa negra & ãdaua espijda & queymada da quẽtura do sol: & logo zozimas começou d’ correr de pos ella muy aa pressa. & ella disse. zozimas porque me persegues: perdoame porque eu nõ te posso ver sem vergõha porque sõ molher & estou nuua mas dame ho teu manto cõ que me cubra porque te possa veer sem vergõha. & elle ouuĩdo esto ouue medo & deulhe o mãto48 & lãçouse a seus pees d’lla: & rogoulhe que lhe desse a sua bẽçã & ella disse. padre tu me deues dar a tua porque es sacerdote:49 & elle veẽdo que sabia seu nome & seu officio marauilhouse muyto: & rogaualhe afincadamẽte [= com empenho] que o bẽzesse: & ella disse. beẽto seja d’s que remio nossas almas. & ella alçãdo as maãos ao çeeo & rogãdo a d’s vioa alçar huũ couado da terra & o velho50 duuidouse por vẽtura era diabo51 & fazia oraçõ & ella disse. perdoete d’s que cuidas que soõ diabo & som malher[sic].» (2.) [Maria começa a contar a sua vida a Zózimo: Mulher pública que compra com o corpo a passagem para Jerusalém] «E entõ zozimas conjuroua por d’s que disesse sua vida: & disse ella. perdoame padre que se eu te cõtar mĩha fazẽda [= caso] espãtarteas de my & fugiras d’ my como de serpẽte & as tuas orações se espãtariã com as minhas palauras & cõ minhas çugidades. pero dirtey[sic] minha fazẽda porque vejas quãto ama d’s aos pecadores. primeiramẽte eu naçi no egypto: & auẽdo doze ãnos vimme a alexãdria. & .xvij. ãnos andey no mũdo como molher publica & nũca foy homẽ que eno meu corpo negasse cõprindo os deleytos [f. 57 b] maaos da carne∙ & eu estando em alexãdria vy huũs 46 Tanto na estampa do FSlp.Lis.1513 como nas da Ls.Bur.1499 ou da Ls.Sev.1520-21, como nas das outras edições da Legenda áurea que vi, quer lionesas quer ibéricas, não se vê nenhum rio. Este aparece sim nas estampas alemãs e suas cópias ibéricas posteriores. 47 O contraste, entre a zona de floresta densa de onde o abade Zózimo provém e a zona árida do outro lado do rio, é bem patente nas estampas germânicas. 48 Umas imagens ilustrativas parecem referir-se ao momento do diálogo antes do monge lançar a capa à Santa. Na verdade, a Santa, de costas voltadas para o monge, só volta a cabeça na direcção dele. Ela cobre muitas vezes a zona púbica com uma das mãos e faz um gesto de aviso com a outra, ou tapa com esta última um dos seios. Porém, raramente o monge traz manto, contrariando o texto literário. Habitualmente, ele enverga uma cogula, veste coral, ou túnica com capelo. 49 Trata-se, pois, de um hieromonge, i.e monge ordenado sacerdote. 50 Contradição com a imagem, que mostra um frade novo. 51 A levitação é, pois, um sinal contraditório. Muitas estampas, entre as quais a do FSlp.Lis.1513, parece referir-se a este momento, dado a Santa ter as mãos juntas sobre o peito, em contradição com o texto literário, mas em consonância com as imagens da Assunção de NªSª e da Elevação de Sta. Mª Madalena, como veremos. A atitude do monge, com as mãos abertas, nessas mesmas estampas pode interpretar-se como sinal de espanto. 117 Fr. António-José de Almeida, O.P. homẽs que entrauã em huũa naue pera hyr a jherusalẽ em romaria: & rogueylhes muy afficadamẽte que me deixassem hir la. E pedindome o marinheiro que lhe desse algũa cousa por que me leuasse na naue asi como os outros & eu lhe disse. jrmão nõ tẽho que vos dar senõ este meu corpo: & assi me reçeberom na naue. ca por o nauio ouuerõ meu corpo.» (3.) [Não pode entrar para adorar a cruz e arrependese diante de uma imagem da Virgem, promentendo-lhe abandonar o mundo] «E quando cheguey a jheruslẽ vym aa porta da ygreja cõ os outros pera adorar a cruz: & nõ veẽdo quẽ o fazia empuxauame & nom me deixaua entrar dẽtro: & esto prouey tres vezes & nõ pude entrar dentro: & os outros todos entrauã dẽtro sem embargo alguũ. E eu quãdo esto vy começey a chorar & ferir meos pectos: & olhey & vy estar fora da ygreja hũa ymagẽ de sctã maria: &| &[sic] começey a derogar cõ muytas lagrimas que me guanhasse perdõ de meus pecados & que me deixasse adorar a cruz: & prometylhe de desemparar [= abandonar] o mũdo & que viuiria ẽ castidade.» (4.) [Adora a cruz, compra três pães, uma voz diz-lhe que atravesse o Jordão, fá-lo, e está ali 47 anos, primeiro tentada durante 17 anos, e depois em paz] «E acabada minha oraçõ leuãteyme: & foyme pera as portas da ygreja & emtrey cõ os outros dẽtro & adorey a sctã vera cruz: & deume huũ homẽ tres dinheiros: & comprey tres pães:52 & ouuy huũa voz que me disse se passares a [sic] jordã seras salua: & logo passey o rio jordã53 & vymme a este deserto onde morey quorẽta & sete ãnos54 que nũca vy homẽ do mundo: & aquelles tres pães que trouxe comigo endureçerõ assi como pedra: & durarõme dez & sete ãnos comẽdo d’lles pouco & pouco. & as minhas vestiduras grãde tẽpo que som perdidas. & em os .xvij. ãnos primeiros fuy aqui tentada da carne. mas ja grande tẽpo ha que o nõ Os três pães serão o atributo iconográfico de Santa Maria Egipcíaca, nas suas representações icónicas. Ver, v.g., a estátua da Santa na fachada da igreja de Saint Germain l’Auxerrois, em Paris (França): <http://www. panoramio.com/photo/19045422>. 53 Não sem antes se deter, segundo S. Sofrónio, na igreja de S. João Baptista, erigida no local do Baptismo do Senhor, onde a Egipcíaca reza e logo desce ao Jordão onde banha o rosto e as mãos lavando-se de seus pecados nas suas águas santificadas pela imersão nelas do sagrado corpo do Salvador. Depois recebe a Sagrada Comunhão na igreja do Precursor. Nesta nrrativa abreviada, salta-se esse episódio, que nos será útil na hora de interpretar o fresco de Balsamão. 54 12+17+46/47=75 ou 76 anos tinha então a Santa. Ora, em contradição com este dado, ela ela parece sempre como uma jovem nas imagens. 52 118 Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação, no Flos Sanctorum de 1513 som: nẽ soffro tentaçom nenhũa: ante tomo grande alegria cõ os anjos:55 & rogote que rogues d’s por my. E zozimas quãdo esto ouuio louuou a d’s pllo [sic] que ouuira d’sta sua serua.» (5.) [A pedido de Maria, Zózimo ao fim de um ano leva-lhe a comunhão. Maria pede-lhe que volte no ano seguinte] & disse ella. rogote que a quinta feyra da çeea que venhas ca:& traze o corpo de d’s: & vijnrey a ty & o tomarey da tua mão: ca despois que aqu vym nunca comũguey. E zozimas tornouse a seu moesteiro. & a cabo de huũ ãno quãdo veo a quinta feyra da çeea tomou o corpo de d’s & veo aa ribeyra do rio: & vio da ou[f. 57 c]tra parte hũa molher fazendo o signal da cruz. E andou a molher sobre as hondas do rio atee que chegou ao velho. E elle quando esto vio marauilhouse muyto & deitouse na terra & quislhe beyjar has maãos & os pees com grãde humildade: & disse ella. olha nõ faças porque teẽs o corpo de d’s contijgo & es sacerdote: & rogote padre que no outro ãno que queyras tornar a visitarme: & ella comũgou logo & fez ho signal da cruz & passou o rio como primeiro pera o hermo. E o velho tornouse a seu moesteyro: (6.) [Volta Zózimo e encontra-a morta. Uma mensagem escrita indica-lhe a data da morte e que a enterre] & veo o outro ãno a aquelle mesmo lugar. & achoua morta & começou de chorar: & nõ ousou de ha tocar: & disse antresy: eu que farey deste corpo. enterraloya & ey medo que lhe pese. & cuydãdo esto: vio aa sua cabeça letras de ouro escriptas que deziã assy. zozimas enterra ho corpo de maria. & da o poo aa terra: & roga a d’s por my que me mandou sahir deste mũdo ho segundo dia de abril: emtõ cõheçeo ho velho que quãdo tomou ho corpo de d’s & se tornou ao deserto que logo se ella sayo deste mundo: & o deserto que andou zozimas em trinta dias todo o ella ãdou em huũ: (7.) [Um leão cava a sepultura, e Zózimo enterra-a]56 & querẽdo o velho cauar a terra pera fazer a coua nõ podia. mas vyo huũ lyom que se vinha a elle muy mãso: & dise [sic] zozimas ao lyõ. mãdote da parte de d’s que caues a coua pera emterrar esta molher: que eu nõ posso cauar que som velho & nõ tenho com que. E logo o Ponto de contacto com a vida de Maria Madalena no ermo, como veremos. A este episódio se refere uma imagem que ilustra uma edição castelhana deste texto (Ls.Sev.1568, f. 56 d) e em algumas edições do Flos Sanctorum de Fr. Pedro de la Vega O.S.H., como veremos adiante. 55 56 119 Fr. António-José de Almeida, O.P. lyõ começou a cauar a coua: & quando a acabou foyse seu caminho como cordeiro mãso. E o velho louuou o nome de d’s & tornouse pera seu57 moesteiro.» O texto é o mesmo nas três edições cotejadas. 1.1.2. As ilustrações: A origem próxima da nossa ilustração (fig. 4) parece estar numa xilogravura estampada na edição da Legenda aurea acabada de imprimir a 20 de Julho de 1486, na cidade francesa de Lião (Lyon), por Mathias Huss ou Huzs (LaS. Lyo.1486), ilustrando a legenda 54 (ver fig. 2). Nela se vê um santo frade, envergando um hábito semelhante ao dos Frades Menores, com o capuz sobre a cabeça, encontrando-se com uma santa mulher nua, com as costas voltadadas para ele, só virando a cabeça na direcção do santo homem. Este enverga uma túnica cingida por uma corda e um capelo por cima; a ela cai-lhe comprida cabeleira pelos ombros. Numa paisagem formada por três montículos, vê-se no do meio uma alta árvore com três copas, separando visualmente os dois seres humanos. Enquanto a santa tem as mãos juntas, ao jeito de oração, o santo tem--nas um pouco afastadas, como que espantado. A mesma entalhadura foi reestampada na Península ibérica, em Barcelona, na edição da mesma obra na sua tradução em catalão, saída dos prelos de Joan Rosenbach, a 1 de Fevereiro de 1494 (FsR.Bar.1494, f. CXXIIII [sic, aliás 104] a) (fig. 2). Esta xilogravura parece-nos que terá influenciado directamente uma série delas que surgem em outras obras e aparentadas entre si. Refiro-me à que encontramos na edição em castelhano da mesma obra, cujo único exemplar que chegou até nós se conserva na British Library (BL), em Londres (Ls.Bur.1499, f. 74 c) (fig.3), mas sem dados tipográficos; à que ilustra edição em português do mesmo texto, impressa em Lisboa em 1513 (FSlp.Lis.1513, f. 57 c) (fig. 4); e a uma que ilustra outro texto, da autoria do monge jerónimo Fr. Pedro de la Vega, saída em Sevilha, em 1540 (Fs.Sev.1540, f. 221 b) (fig. 5), da qual deriva a xilogravura que será impressa nas duas primeiras edições da compliação em português organizada pelo frade dominicano Fr. Diogo do Rosário, realizadas pelo impressor António de Mariz (fig. 6), respectivamente em Braga em 1567 (Hs.Bra.1567, I, f. 197 d – Sta. Mª Egipcíaca; e II, 168 c – “S. Hilarion.”) e em Coimbra em 1577 (Hs. Coi.1577, I, f. 212 d). Ainda na movência desta família de estampas está a que ilustra a edição da Legenda áurea em castelhano cujo único exemplar sobrevivente se conserva na Archivo Histórico de Loyola (Ls.Sev.1420-21, f. 57v.) (fig. 7). Dada a qualidade da xilogravura estampada em Sevilha em 1540 (Fs.Sev.1540, 57 120 “sen”, no texto – gralha clara do tipógrafo. Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação, no Flos Sanctorum de 1513 f. 221 b) (fig. 5), parece-me ter sido esta entalhada antes da impressa no exemplar da BL (Ls.Bur.1499) (fig. 3). Esta edição sem dados tipográficos é atribuída pelos especialistas à oficina burgalesa de Juan de Burgos e datável à volta de 1497 ou 1499--1500. Sabemos que Juan de Burgos tem o hábito de, no seguimento de Fradique de Basileia, copiar as obras com êxito comercial saídas da oficina de Paulo Hurus, sediada em Saragoça58. Ora as duas primeiras edições em castelhano da Legenda áurea, hoje perdidas, saem com poucos anos de intervalo (em 1490 e 1492) dos prelos saragoçanos de Paulo Hurus59, o que indica a sua aceitação por parte do público e a sua procura.60 Parece-me que o jogo de matrizes a que pertencia a citada estampa impressa na oficina de Juan Cromberger em 1540 em Sevilha (Fs.Sev.1540) (fig. 5) deve ter sido entalhado na oficina de Paulo Hurus, tendo deixado esta oficina saragoçana por volta de 1497, data em que uma xilogravura pertencente seguramente a este jogo é impressa na oficina sevilhana de Meinado Ungut e Estanislao Polono. Refiro-me à entalhadura que representava S. Francisco, modificada para representar S. Boaventura, e que foi estampada na folha-de-rosto do Solilóquio de S. Boaventura, acabada de imprimir nesses prelos sevilhanos a 30 de Novembro desse ano de 1497.61 De todas as formas, o referido jogo de matrizes, com imagens referentes aos Santos, não é estampado em Saragoça, na oficina que foi de Paulo Hurus e então dirigida por Jorge Coci, quando em 1516 sai da referida oficina saragoçana uma nova colectânea de textos hagiográficos, da autoria do monge jerónimo Fr. Gonzalo de Ocaña (Fs.Zar.1516), ilustrada, na IIª parte da obra, pela estampagem de xilogravuras com a largura da página, provenientes da oficina de Anton Koberger, em Augsburgo (LdH.Aug.1488) 62. 58 Emilia COLOMER AMAT, El Flos Sanctorum de Loyola y las distintas ediciones de la Leyenda de los Santos. Contribución al Catálogo de Juan de Varela de Salamanca, in Analecta Sacra Tarraconensia. Revista de Ciències Historicoeclesiàstiques, vol. 72 (1999), 109-142, esp. 122. 59 José ARAGÜÉS ALDAZ, Trayectoria editorial de la Leyenda de los Santos: primeros apuntes, in Homenaje a Claude Chauchadis, en prensa/no prelo, [1.4.] Las primeras ediciones zaragozanas, no texto e nas notas 10-14. Confirmando a intuição de Cristina SOBRAL, Eremitas orientais na Leyenda de los Santos (Burgos, 1499) e no Flos Sanctorum (Lisboa, 1513), in Actas del XII Congreso de la Asociación Hispánica de Literatura Medieval (Cáceres, 25-29 de Setembro de 2007) no prelo, 1-2 e 10, os documentos descobertos por Miguel Ángel PALLARÉS, na obra e páginas citadas na nota a seguir. Agradeço a José Aragüés e a Cristina Sobral o terem-me facultado os textos acima citados, antes da sua publicação. 60 Mais precisamente, a 1ª ed. é vendida a 8 de Janeiro de 1490, sendo a 2ª ed. encomendada a 7 de Março de 1492 – Miguel Ángel PALLARÉS JIMÉNEZ, La imprenta de los incunables de Zaragoza y el comercio internacional del libro a finales del siglo XV, Zaragoza, Institución «Fernando el Católico» (C.S.I.C.), 2003 (ISBN 978-84-7820-854-8), 104-105, 114-117. 61 Talvez nessa mesma oficina sevilhana de Meinado Ungut & Estanislao Polono se tenha realizado a modificação da xilogravura representando S. Luís de França, em ordem a ilustrar outro rei (veja-se Fr. António-José de ALMEIDA, O.P., As imagens de Santos Dominicanos e Franciscanos impressas no Flos Sanctorum em linguagem português, Lisboa 1513, in Actas do III Congreso Internacional El Franciscanismo en la Península Ibérica, Ciudad Rodrigo – Guarda, 2009 (no prelo, texto já paginado), 9 e fig. 17; 12 e fig. 31. 62 Estas serão copiadas em Portugal nas ed.s de 1585 e 1590 do Santoral de Fr. Diogo do Rosário e não nas ed.s desta obra impressas por António de Mariz, que copia Fs.Sev.1540. O que disse a respeito da tranferência das matrizes saragoçanas para Sevilla diz somemente respeito como disse às que representam os Santos e 121 Fr. António-José de Almeida, O.P. As estampas das xilogravuras entalhadas em Saragoça seriam, pois, copiadas pelas entalhadas em Burgos, com menos qualidade técnica e impressas na mesma cidade, possivelmente numa edição hipotética saída dos prelos de Fradique de Basilea por volta de 1473 e depois na saída da oficina de Juan de Burgos à roda de 1499-1500, da qual se conserva um exemplar em Londres (Ls.Bur.1499). A árvore que se vê ao centro das composições lioneso-ibéricas que acabámos de analisar nada tem que ver com a árvore do paraíso, mas provém de uma redução da floresta à frente da qual, nas mais antigas composições alemãs ilustrando o episódio do encontro, é colocado S. Zózimo (LdH.Augsb.1471-72, S., f. 5 b; LdH.Augsb.1475, f. 3 c; LdH.Aug.1475, fol. 11v). Na estampa lionesa da Ld.Lyo.1477-78 (image 209 a), essa floresta é reduzida a 3 árvores, que enquadram os dois santos personagens, uma ao meio, separando-os, e mais uma de cada lado. Serão somente duas as árvores na xilogravura estampada na Ld.Lyo.1483 (rosto e f. l iii a), uma separando os personagens e a outra agora só do lado da Santa. E o número fixar-se-á em uma na LaS.Lyo.1486 (legenda 54) (ver fig. 2), aquela que está, na minha opinião, na origem das executadas na Península ibérica analisadas (figs. 5, 3, 4 e 6). Aliás, a árvore visualmente divisória está colocada mais atrás dos personagens, só se colocando veradeiramente entre eles na estampa da Ls.Sev.1520-21 (f. 57 v) (fig. 7). Há sim influência iconográfica da folha com que os protoparentes cobrem os genitais depois da queda no caso de algumas estampas alemãs (LdH.Augsb.1471-72, S., f. 5 b; LdH.Nür.1475, f. 3 c; LdH.Ura.1481, f. 4 r.; LdH.Reu.1482, S., fig. 3; LdH.Aug.1486, f. 7 r.; LdH.Lüb.1488, S., f. 4 r.; LdH.Aug.1492, f. 6 r.), em que a Santa cobre a zona púbica com uma folha, o que não aparece nas xilogravuras lioneso-ibéricas. Pode surpreender o leitor actual o facto de parecer haver contradição entre o texto e as imagens no que diz respeito à idade dos personagens63, mas não nos devemos esquecer que, para a mentalidade medieval, os santos deviam ser representados com o aspecto que teriam aquando da ressurreição universal. Ora, segundo uma convenção geralmente admitida, os mortos ressuscitarão no último são estampadas na IIª parte de ambos os Santorais espanhóis (o Flos Sanctorum propriamente dito) e não no que concerne as da Paixão. As do ciclo da Paixão não vieram para Sevilha, mas ficaram em Saragoça, onde serão estampadas nas ed.s de 1516, 1541 e 1548, segundo o que pude apurar até ao momento. Temos provas de que pelo menos algumas entalhaduras da Paixão permaneceram em Saragoça até 1548, onde são utilizadas por Bartolomé de Nágera, que fica à frente da oficina inaugurada por Paulo hurus. Refiro-me às xilogrvuras representando o Ecce Homo e a Ida para o Calvário, pela primeira vez estampadas no Tesoro de la Pasión de Andrés de Eli, em 1494, quando a oficina saragoçana era dirigida ainda pelo seu fundador, Paulo Hurus. A Ida para o Calvário parece ter sido copiada na entalhadura estampada na ed. de Burgos de 1493 da Paixão do Monotessaron, a que me referi atrás, na nota 3, em ambas as variantes (BL, 14ª est., f. [B] iij c; BPL, 9ª est., f. [B] iij a). Como afirmo no artigo que redigi para as Actas do IV Congresso Internacional sobre Cister em Portugal e na Galiza, 1-3 Out. 2009, a xilogravura burgalesa deve ter copiado uma outra que foi estampada na oficina saragoçana entre 1492 e 1494, o mais provável na 1ª ed.da Leyenda de los Santos. 63 Carlos Alberto VEGA, em El transformismo religioso. La abnegación sexual de la mujer en la España medieval, Madrid, Pliegos, © 2008, D.L. 2009 (ISBN 978-84-96045-62-0), 196. 122 Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação, no Flos Sanctorum de 1513 dia com o aspecto da idade perfeita de trinta anos, a idade de Jesus Cristo quando triunfou da morte.64 Só esporadicamente no Renascimento e sistematicamente no Barroco contra-reformista, é que se assiste, em nome do decoro, a uma adequação mais estreita com o texto das vidas dos santos e a sua representação iconográfica. Porém, a tradição iconográfica tem muita força, e mesmo nessas épocas encontramos exemplos de discrepância entre texto literário e representação iconográfica. Um caso célebre é o da representação do mártir S. Sebastião, em que o remoçamento de que foi objecto no Renascimento, mercê da sua comparação com Cristo, se prolongou até aos nossos dias.65 A partir de 1516, surge uma outra forma de representar o episódio, devido à impressão em Saragoça (Fs.Zar.1516, f. 168 v) de uma xilogravura (fig. 8) estampada anteriormente em Nuemberga (LdH.Nür.1488, f. 3 v), que terá posteridade na Península ibérica até finais do século. O outro episódio desta legenda figurado em ilustrações de Santorais sevilhanos do final da década de 60 de Quinhentos (fig. 9) é o da sepultura (Ls.Sev.1568, f. 56 d; Fs.Sev.1568-69, est. dir., nos f. 258 r. – ilustrando Sto. Onofre – e f. P iiij r. – ilustrando Sta. Maria Madalena; Fs.Sev.1572, II, f. 89 vº, est. dir.), em que figuram, lado a lado, a tentativa de Zózimo e a escavação do leão. 1.2. Santa Maria Madalena 66 1.2.1. O texto: Sob o nome de Maria Madalena67 acolhem-se três personagens evangélicas. A estas se vem juntar uma quarta, fruto da contaminação da história de Santa 64 «convención admitida por los teólogos e impuesta a los artistas», segundo Louis RÉAU, Iconografía del arte cristiano, tomo 1: Iconografía de la Biblia, vol. 2: Nuevo testamento, Barcelona, Ediciones del Serbal 1996 (ISBN 84-7628-189-7), 764. 65 Karim RESSOUNI-DEMIGNEUX, Saint Sébastien, [Paris], Éditions du Regard, D.L. 2000 (ISBN 2-84105-118-8), 29-35. 66 Sobre esta Santa ver: Lilia SEBASTIANI, Tra/Sfigurazione. Il personaggio evangelico di Maria di Magdala e il mito della peccatrice redenta nella tradizione occidentale, Brescia, Queriniana, © 1992 (ISBN 88-399-0958-3); Helena (Maria Duarte Freitas Mesquita) BARBAS, Imagens e sombras de Santa Maria Madalena na literatura e arte portuguesas, Lisboa, [s.n.], 1997, 2 vols. (Tese de doutoramento em Estudos Portugueses, Universidade Nova de Lisboa [Texto policopiado]; Christiane NOIREAU, Marie Madeleine, Paris, Éditions du Regard, 1999 (ISBN 2-84105-106-4); Katherine Ludwig JANSEN, The Making of the Magdalen: Preaching and Popular Devotion in the Later Middle Ages, Princeton (New Jersey), Princeton University Press, 2000 (ISBN13: 978-0-691-08987-4); Andréia Cristina Lopes Frazão da SILVA & Carolina Coelho FORTES & Fabrícia Angélica Teixeira de CARVALHO & Maria Cristina Correia Leandro PEREIRA & Shirlei Cristiane Araújo FREITAS, Vida de Santa Maria Madalena – Texto Anônimo de Século XIV, Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Agosto 2002 – <http://www.scribd.com/doc/6676161/ Vida-de-Santa-Maria-Madalena-Texto-Anonimo-de-Seculo-XIV>; Helena [Maria Duarte Freitas Mesquita] BARBAS, Madalena – História e Mito, Lisboa, Ésquilo – Edições e Multimédia, Maio de 2008 (ISBN 972989-8092-29-8). 67 Ou “Magdanela”, como aparece no nosso texto. 123 Fr. António-José de Almeida, O.P. Maria Egipcíaca – a da penitente da Santa Bauma68, a gruta na Provença onde ela se recolhe em contemplação. Apesar de só interessar aqui a abordagem da fase da vida eremítica de Santa Maria Madalena, não quis deixar de apresentar neste artigo o texto total da legenda, na qual a referida fase precede o epílogo, formado por dois episódios ligados ao seu culto. I – Figura compósita, extraída dos Evangelhos: [FSlp.Lis.1513, f. 103 a (fig.12)] (1.) [Linhagem, possessões e vida de Maria, Lázaro e Marta] «[S]Ancta maria Magdanela ouue este sobrenome de huũ castello seu que chamã magdalo. & foy fidalga & vinha de linhagẽ de reys: & a seu padre chamauam syro: & a sua madre eucharia. E esta & lazaro seu jrmaão & sua jrmaã martha auiam por herdade este castello em magdalo: que he huũa legoa de genezareth & bethania que he çerca de jherusalem. E partirõno em tal maneira que Maria ouue magdalo: õde despois foy chamada magdanela. & a lazaro a parte de jherusalem. & a martha bethania. E a magdanela seguindo sempre a vontade de seu corpo.69 & lazaro o feito da caualleria [=vida militar]. E martha que era mais entendida enderẽçaua ha fazenda & herdade de sua jrmaã & de seu jrmaão.70 & daua aos caualleiros [=soldados] de su jrmaão todo o que auiam mester. Pero desque jhesu christo subio aos çeeos venderom todo o que auiã & poserõ o preço ante os pees dos apostollos.» (2.) [Madalena converte-se em pecadora, mas encontra Jesus em casa de Simão e Jesus perdoa-lhe os pecados] «E a magdanela como era rica & fre |[f. 103 b]mosa seguia a võtade do corpo & tãto mais71 se daua ao amor do mundo em maneyra que perdeo seu nome proprio & chamarõlhe pecatrix. Mas jhesu christo andado pregando pollo mũdo, ella polla graça do spiritu sancto veo a casa de symõ leproso sabendo que pousaua hy jhesu Utilizarei o nome em occitano Santa Bauma, que em francês se diz Sainte Baume. À semelhança do que a Egipcíaca diz de si mesma. Também na Ls.Sev.1520-21: «e de su Hermano» (ed. CABASÉS, 2007, p. 339 a). Espressão que falta em Ls.Burgos.1499. 71 Também na Ls.Sev.1520-21: «e tanto más» (ed. CABASÉS, 2007, p. 339 a). Expressão que falta em Ls.Burgos.1499. 68 69 70 124 Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação, no Flos Sanctorum de 1513 christo: & porque era tã pecadora nõ ousou pareçer ante as caras dos justos. & posese nas espaldas delles: & lançouse aos pees d’ jhesu christo cõ lagrimas de seus olhos & alimpoulhos cõ seus cabellos & vntoulhos com huũ ynguẽto preçioso. Ca os homẽs de aquella terra por razõ de queẽtura que he muy grãde vsam banhos & ynguentos. E cuydaua symõ antre sy. Se este fosse propheta nõ consentira que esta molher o tocasse. E nosso senhor reprehendeo de justiça soberbosa & perdou[sic] a ella seus pecados.» (3.) [Particularidades que adornam Madalena] «E esta he a magdanela a quẽ deos fez tanta graça & lhe mostrou tanto amor: & tirou della sete diabos & foy muyto sua familiar. & fezea sua hospeda. & quis que fosso[sic] no caminho sua procuradora. & a escusou do phariseu que dizia que ella era nõ limpa: & de sua jrmaã que lhe chamaua vagarosa [=preguiçosa]: & de judas que lhe chamaua gastadora. & veẽdoa chorar chorou com ella. & por amor della resuscitou a lazaro que auia quatro dias que estaua no moymento. E por amor della deu saude a martha sua jrmaã que auia sete annos que corria della sangue. & por seu mereçimento quis que marçelha seruidora de sua jrmaã disesse[sic] estas palouras[sic] tam sanctas & tam doçes. bemauenturado he o vẽtre que te geerou. E esta foy a primeira que começou a fazer penitẽçia nomeada: & esta fez primeiramente o vnguento pera jhesu[sic] christo: & ella nunca se delle partio. E quãdo jhesu christo resurgio a ella apareçeo primeyramete: & a fez preegadora cõ os apostollos.» II – Em Marselha, pregadora: (4.) [Madalena com os irmãos e outros cristãos são expulsos pelos judeus numa nave que Deus guia até Marselha. Madalena converte os habitantes locais] «E despois que jhesu christo subio aos çeeos arramarõ os apostollos por todo o mundo a pregar a palaura de deos. E a aquelle tẽpo era cõ os apostollos sam maximino que era huũ dos setenta & dous discipollos de jhesu christo: a este encomẽdou sam pedro apostollo a scã maria magdanela. & o sam maximino & a magdanela & lazaro & martha & sua seruidora: & çelidonio que naçera çego: ao qual nosso senhor jhesu christo a[f. 103 c]lumiou cõ os outros christaãos. & poserõnos os judeus em hũa naue por 125 Fr. António-José de Almeida, O.P. que morressem no mar. E guiondoos deos vierõ a marsilha & nõ achando nenguẽ que os quisesse reçeber estauã fora em huũ portal que era de huũ tẽplo da gente daquella terra. E veẽdo sctã maria magdanela que a gente de aquella terra hyã pera sacrificar e honrrar os ydollos: leuãtouse rijndo [“e pagada [=ufana], e con su cara risueña,”72] & cõ palauras & a lingoa doçe faziaos leixar ho sacrificio dos ydollos: & preegaualhes fortemẽte73 de jhesu christo. & marauilhauãse todos de sua fermosura & da sua eloquẽçia de suas palauras74 tam doçes. Ca boca que beyjara os pees de jhesu christo cõuinha que mais doçemẽte preegase a palaura de d’s que as outras.» III – A maravilhosa história do governador/‘príncipe’, sua mulher e filho: (5.) [Madalena impede que o príncipe da terra e sua mulher sacrifiquem aos ídolos, prega-lhes Jesus Cristo, e em sucessivas aparições compele-os a que ajudem os pobres] «& despois desto veo o principe da prouinçia de aquella terra que era muy rico & vinha a sacrificar os ydolos elle & sua molher por tal que ouuessem filho: mas sancta maria magdanela os estoruou do[sic] adorar os ydollos75. & lhes pregou fortemente de jhesu christo. E de hy a poucos dias apareçeo a magdalena aa molher d’ aquelle prinçipe & disselhe. Porque leixas morrer de fame & de frio os proues de d’s auendo vos tã grandes riquezas & ameaçauaa se ho nõ disesse a seu marido. Outra noyte lhe apareçeo dizendolhe essa mesma razom: & elle reueo em poco. & outra noyte apareçeolhes sctã maria magdanela76 a ambos muy asanhudamente & muy yrada. & assi vinha açesa que pareçia que ardia a casa & disselhe. Tirãno membro de sathanas dormes cõ tua molher serpentina: que te nõ quis dizer o que lhe eu mandei. E tu ẽmijgo da cruz estas folgãdo cheo de riquezas: leyxas pereçer de fame os sctõs de d’s & jazes em teu paço emuolto de pãnos de seda. & vees os proues desconsolados: & nenhuũ bem lhes fazes.» Acrescento só na Ls.Sev.1520-21 (ed. CABASÉS, 2007, 340 a). Também na Ls.Sev.1520-21: «fuertemente» (ed. CABASÉS, 2007, 340 a). Advérbio que falta em Ls.Burgos.1499. 74 Também na Ls.Sevilla.1520-21: «e de la su palabra» (ed. CABASÉS, 2007, 340 a). Expressão que falta em Ls.Burgos.1499. 75 Também na Ls.Sevilla.1520-21: «ydolos» (ed. CABASÉS, 2007, 340 a). Palavra que falta em Ls.Burgos.1499, onde só figura o pronome. 76 Também na Ls.Sevilla.1520-21: «sancta María Magdalena» (ed. CABASÉS, 2007, 340 a). O nome não está expresso em Ls.Burgos.1499. 72 73 126 Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação, no Flos Sanctorum de 1513 (6.) [O príncipe e a mulher, atemorizados falam com Madalena, a cujo Deus pedem um filho. Madalena obtémno] «& acordarõ ambos com grãde medo tremẽdo. & disselhe a molher. Senhor que faremos? Disselhe elle. Milhor he que façamos o que ella manda: que nõ cayamos na yra de d’s que ella preega. & porende reçebiã os proues: & reçeberõ a elles em sua casa &77 dauãlhes o que auiã mester. E hũa vez disse este prinçipe a sctã maria magdanela. Tu cuidas de defender esto que preegas? & ella disse. Posso o defender [f. 103 d] assy como cousa prouada & affamada. &78 por os milagres de cada dia: & polla pregaçam de meu mestre sam pedro que esta em roma. & disse o prinçipe. Nos queremos79 fazer ho que tu mãdares: se tu nos ganhares do teu d’s que ajamos filho. E disse magdanela. esso rogarey a d’s. & logo rogou a d’s por elles. & de hy a poucos dias conçebeo a dona.» (7.) [O príncipe quer encontrar Pedro em Roma e a sua mulher, embora grávida, consegue que a leve consigo] «E o marido queria hyr a roma a sam Pedro por prouar se era verdade ho que preegaua sancta maria magdanela de jhesu christo. & quãdo esto ouuio a molher disse a seu marido. Senhor tu cuydas de hyr sem my. d’s nunca o queyra que eu contigo quero hyr. & se tu folgares [=descansares] eu folgarey. & disse elle. Molher senhora esto no pode seer que tu estas prenhe: & no mar ha muytos perigos & tu ligeiramente [=facilmente] poderas pereçer. & por esto ficaras em tua casa & teeras cuydado de nossos beens. E ella [muy afincadamente80] chorãdo lançouse a seus pees. & acabou ho que quis com seu marido.» (8.) [Madalena faz-lhes o sinal da cruz sobre o ombro. A nave sofre uma tempestade, a mulher dá à luz e morre, ninguém pode amamentar o menino e os marinheiros querem lançar o cadáver ao mar] Também na Ls.Sevilla.1520-21: «en su casa recibieron, e» (ed. CABASÉS, 2007, 340 b). Em Ls.Burgos.1499 não se fala que recebessem os pobres em sua casa. 78 Também na Ls.Sevilla.1520-21: «e afamada, e» (ed. CABASÉS, 2007, 340 a). Expressão que falta em Ls.Burgos.1499. 79 Também na Ls.Sevilla.1520-21: «queremos» (ed. CABASÉS, 2007, 340 a). Verbo que falta em Ls.Bur.1499. 80 Expressão adverbial só existente nos textos catelhanos, Ls.Bur.1499 e Ls.Sev.1520-21 (ed. CABASÉS, 2007, 340 b). 77 127 Fr. António-José de Almeida, O.P. «E ha magdanela fezlhes ho signal da cruz nos hombros.81 por que ho diaboo nõ lhes empeçesse [=fizesse mal]. E carregarom hũa naue do que auiam mester. & encomẽdaromse a d’s & foromse. E elles andando huũ dia & hũa noyte pollo mar: começouse de leuantar o mar & fazer82 grande tormenta: em maneira que ho vento era muy rijo. E a dona muy quebantada da tormenta do mar83 & começou de auer grandes doores: & pario huũ filho: & ella morreo. & o menino buscaua as tetas da madre. & choraua porque nom achaua que mamar. E seu marido começou d’ chorar & dizia. Ay mezquinho que sera de mĩ que minha molher he morta & a criãça perderseha. porque nom acha que mamar: & dizia Ay mezquinho desejey auer filho & perdi a madre & a elle. & disserõ os marinheiros. Lãçemos ho corpo no mar ante que pereçamos aqui todos: ca emquanto aqui esteuer nunca çessaria a tẽpestade: & tomãdo o corpo pera o lãçar no mar disse o marido. Ay d’s po me mesura se a mi nõ queres perdoar: aue piedade deste menino que chora: & esperay hũ pouco.» (9.) [O príncipe consegue desembarcar o cadáver da mulher numa ilha, põe o menino sobre o corpo da mãe, cobre-os com um manto, invoca Maria Madalena e parte] «E em dizendo esto apareçeo huũ outeyro de hũa ylha. & rogou aos marinheiros que leuassem la o corpo: & elles nom queriã mas pollo preço que lhes deu leuarõ o cor[f. 104 a]po & o poserõ em aquelle outeyro. E quando vio que nom auia hy logar pera cauar coua: pos o corpo a hũa parte do outeyro & escõdeo & cobrio com seu manto: & pos o menino sobre as tetas da madre & disse. O sancta maria magdanela porque vieste a marsilha pera acreçentar a minha mezquindade & a minha perda: mais valera nõ começar este caminho. & agora maria magdanela encomendo ao teu d’s & a ty minha molher & este filho que ouue por teu rogo. & se o teu84 d’s he poderoso acordese da alma da madre & por ho teu rogo faça que nõ pereça a criatura. & cobrio o corpo & o menino cõ o manto85 [& cõ mucho pesar dexolos alli:]86 & entrou na naue.» Trata-se de um sinal visível, como a seguir se verá, semelhante ao que os peregrinos usavam na Idade Média e donde veio o designativo de «cruzados». 82 Também na Ls.Sev.1520-21: «de ayrar el mar, e fazia» (ed. CABASÉS, 2007, 341 a). Expressões que faltam em Ls.Bur.1499. 83 Também na Ls.Sev.1520-21: «e del mar» (ed. CABASÉS, 2007, 341 a). Precisão que falta em Ls.Bur.1499. 84 «tem», no texto – gralha clara do tipógrafo. 85 Também na Ls.Sev.1520-21: «E cubrió el cuerpo y el niño con el manto», (ed. CABASÉS, 2007, 341 b). 86 Entre o texto que aparece na Ls.Bur.1499, em vez do anterior, que aparece tanto no FSlp.Lis.1513 como na 81 128 Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação, no Flos Sanctorum de 1513 (10.) [Pedro recebe o príncipe que conta tudo. Consola-o. e leva-o a Jerusalém onde permanece dois anos. Ao regressar, vai parar ao monte onde deixou a mulher e o filho e desembarca alí] «E vijndo a roma sayo sam pedro a reçebello veendolhe o signal da cruz no hombro:87 & preguntoulhe dõde era: ou onde hya. E elle contoulhe todo quãto lhe aconteçera. & disselhe sam pedro| d’s te de paz & bem sejas vijndo creeste cõselho muy bõ. & nõ te pese se tua molher dorme & o menino folga [=descansa] cõ ella: que d’s he poderoso de dar dooẽs a quẽ elle quer & despois tirarlhos. & despois que lhos tira darlhos: & mudar o teu choro em prazer. & sam pedro o leuou a jherusalẽ & mostroulhe todos os lugares por onde jhesu xpisto andou. & onde fez milagres: & onde morreo. & onde sobio aos çeeos: & o enformou bem na ley de jhũ xpisto88. & esteue la dous ãnos & despois entrou na naue: & começou de tornar pera sua terra. E hindo pollo mar quis d’s assy ordenar que vierõ por aquelle outeyro onde estaua a molher & o menino. & rogou aos marinheiros & deulhes preço & forom la.» (11.) [Encontra o menino vivo, protegido por Maria Madalena, e pede-lhe que ressuscite a mãe] «E sancta maria magdanela guardou o menino & estaua saão. E como algũas vezes hya a ribeira do mar & jugaua cõ as pedrinhas como he costume dos meninos assi o achou o padre ao menino jugando a ribeira do mar. E o padre quando vio ho menino marauilhouse muyto que poderia ser aquello que andaua assi jugando: & saltou da naue a terra: & o menino ouue medo como cousa que nũca vira corria pera as tetas da89 sua madre: & meteose sob o mãto della. & o padre chegouse a ella90 & achou que mamaua as tetas da madre: & tomou o menino nos braços & dise. O senhora sancta maria magdanela quã bẽ an[f. 104 b]dãte eu seria se minha molher resuscitasse. E bẽ sey eu & o creo de todo em todo que tu criaste o menino dous annos & o guardaste nesta pena. & pois que tu esto fizeste: bem assi como guardaste a criatura: bẽ assi podes tornar a madre viva,» Ls.Sev.1520-21 (ed. CABASÉS, 2007, 341 b). 87 O tal sinal ou insígnia que Maria Madalena lhe tinha colocado. 88 Também na Ls.Sev.1520-21: «de Jesu Xristo» (ed. CABASÉS, 2007, 341 b). Precisão que falta em Ls.Bur.1499. 89 Também na Ls.Sev.1520-21: «las tetas de» (ed. CABASÉS, 2007, 342 a). Precisão que falta em Ls.Bur.1499. 90 Também na Ls.Sev.1520-21: «se a ella,» (ed. CABASÉS, 2007, 342 a). Precisão que falta em Ls.Bur.1499. 129 Fr. António-José de Almeida, O.P. (12.) [Ressuscita a mãe e esta conta haver feito com Madalena a mesma peregrinação que tinha feito o pai com S. Pedro] «E ajnda elle nõ acabaua91 d’ dizer estas razões quando acordou a molher & disse. O senhora sctã maria magdanela como fostes piadosa no tempo de minha pressa. ca tomaste officio de parteira. & em quãtas cousas eu ouue mester: tu fizeste officio de serua. & ouuindo esto o marido marauilhouse muyto: & disse. Minha molher muyto amada es viua: & ella disse. Certamẽte viua som: & agora venho da romaria que tu veens. & bem assi como sam pedro leuou a ty a jherusalẽ: & te mostrou todos os lugares de jhesu xristo: onde morreo| onde foy enterrado: onde sobio aos çeeos| Em essa mesma maneira foy cõmigo a senhora sctã maria magdanela. & me acõpanhou: & me mostrou todos os lugares que tu andaste de maneira que nõ falleçeo [=faltou] nẽhuũ delles.» (13.) [O príncipe, com a mulher e o filho, regressam a Marselha, onde encontram Madalena a pregar. Convertemse, fazem Lázaro bispo de Marselha e Maximino bispo de Aquis] «E emtõ o peregrino tomou sua molher cõ o minino: & entrou na naue cõ grãde alegria. & a pouco tempo chegarõ a marselha & acharõ a sctã maria magdanela que preegaua cõ os discipollos & lançarõse a seus pees cõ muytas lagrimas: & cõtarõ quanto lhes acõteçera. & baptizouos sam maximo. Emtõ fizerõ em marsilha ygrejas aa hõrra de jhũ xpisto. & destruyrõ todos os tẽplos dos ydolos. & fizerõ sam lazaro bispo de aquelle logar & vierõ aa cidade de aquis [= Aquae Sextiae, Aix-en-Provence]. & por muytos milagres cõuerterõ aquelle pouoo todo a fe de jhũ xpisto: & foy hy bispo sam maximino.» IV – Vida Contemplativa, na Santa Bauma: (14.) [Madalena retira-se para o ermo durante trinta anos, onde todos os dias Deus a alimenta com manjares celestiais] «& d’spois sctã maria magdanela por estar maiç[sic] em contẽpraçã 91 130 «acabana», no texto – gralha clara do tipógrafo. Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação, no Flos Sanctorum de 1513 92 foyse pera o hermo:93 & em este logar nẽ auia solaz de aguas nẽ de heruas: nẽ de aruores.94 E ally esteue trinta annos.95 & nosso snõr a fartaua cada dia de seus mãjares celestiaes. & cada dia a alçauã os anjos da terra sete vezes: & ouuia cõ suas orelhas cãtares gloriosos dos anjos no çeeo: & despois punhãna em seu logar. & nõ tinha cuydado de comer outros manjares terreaes.» (15.) [Um sacerdote, que fez a cela ali perto, viu como Madalena era levada ao céu e devolvida à terra] «E huũ saçerdote desejando de fazer vida apartada: fez hũa çella açerca de aquelle logar a doze estados [=estádios, medida de comprimento]. E huũ dia abrio96 nosso [f. 104 c] senhor [Dios]97 os olhos deste sacerdote & vio magnifestamente [sic]98 os anjos descender em aquelle logar onde moraua scã maria magdanela & a alçauã no aar: & a cabo da ora traziãna a seu logar cõ cantares muy doçes.99 E querendo este sacerdote saber a verdade desta visom tã grãde: encomendouse a d’s & foyse a esse logar cõ grãde atreuimẽto: & chegouse a ella quãto seria huũ lançou[sic] de pedra. & começarõlhe de tremer as pernas & todo o corpo cõ o grande medo. & nõ podia chegar a aquelle logar porque lho defendia a fraqueza da alma & do corpo. & elle100 entendeo que aquelle sacramẽto era celestial: que homẽ do mũdo nõ podia la chegar: (16.) [Madalena revela ao sacerdote quem é ela e pede que anuncie a S. Maximino que em breve será levada ao seu oratório] Não se fala de penitência. Mas sabemos como todo este episódio é decalcado da legenda de Sta. Maria Egipcíaca – Lilia SEBASTIANI, Tra/Sfigurazione. Il personaggio evangelico di Maria di Magdala e il mito della peccatrice redenta nella tradizione occidentale, Brescia, Queriniana, © 1992 (ISBN 88-399-0958-3), 249. 93 A Madalena vai para o ermo não para fazer penitência, mas para contemplar. 94 Era, pois, um lugar deserto. 95 Não se fala no texto que estivesse nua. A nudez deve ser contaminação com a história de Sta. Maria Egipcíaca e sinal de estado paradisíaco, como se pode inferir da estampa de Koberger (fig. 14). 96 «obrio», no texto – gralha clara do tipógrafo. 97 acrescento só no texto de Loyola, Ls.Sev.1520-21 (ed. CABASÉS, 2007, 343 a). 98 tanto aqui como na Ls.Sev.1520-21 (ed. CABASÉS, 2007, p. 343 a), contrariamente à Ls.Bur.1499, que tem «manifiestamẽte». 99 Ver ilustração deste episódio, v.g., na estampa de Alberto Dureiro (http://bibliotecadigitalhispanica.bne.es/ view/action/singleViewer.do?dvs=1262115034949~773&locale=pt_PT&DELIVERY_RULE_ID=10&fram eId=1&usePid1=true&usePid2=true). 100 Existência do pronome só na Ls.Bur.1499 e aqui, não figurando na Ls.Sev.1520-21 (ed. CABASÉS, 2007, 343 a). 92 131 Fr. António-José de Almeida, O.P. & disse. Escõjurote por jesu xpisto que me digas se es homẽ ou outra criatura & que digas de ty a verdade. & disselho tres vezes: & respõdeo a magdanela & disselhe. Chegate mais ca açerca & poderas saber a verdade de quãto pregũtas de mi. & chegouse a meyo espaço. & disselhe a magdalena [sic]. Acordaste do euãgelho que fala aquella maria pecatrix chamada que lauou os pees do saluador cõ lagrimas de seus olhos: & alimpiulhos cõ seus cabellos & merçeo auer perdõ de seus pecados.101 & disse o sacerdote acordome: & mais ha de trinta annos que esso aconteçeo: & disse a magdalena[sic]. Eu som aquella. & trinta ãnos ha que estou em este logar que nunca o soube homẽ do mundo. & assi como viste hontẽ assi me alçã os anjos de terra cada dia sete vezes: & ouço cãtares muy doçes no çeo cõ estas minhas orelhas| E porque d’s me quiz mostrar que eu ey asinha [=em breve] de sahyr deste mundo. Uay a sam maximino & dizelhe que o primeiro dia de domingo que vem que entre elle soo em oraçam: em aquelle tẽpo que se sooe leuãtar aas matinas & acharmeha hy por seruiço dos anjos. E o saçerdote ouuio sua voz como voz de anjo: & foy asinha a sam maximino & recõtoulhe todo. (17.) [Maximino encontra Madalena no seu oratório entre anjos, dá-lhe a comunhão, e Madalena morre e é enterrada] E sam maximino foy muj alegre & agradeceo a d’s: & a hora que lhe foy dicto entrou em oraçã & vio estar a sancta maria magdanela no coro dos anjos. & estaua alçada de terra altura de dos[sic] couados em meyo dos anjos & tinha as mãos alçadas ao çeeo. & sam maximino duuidãdo de chegar a ella.102 chamouo ella: & disse. Padre chega[f. 104 c]te a my & nõ fugas da tua filha. & elle chegãdo vio resprandeçer a cara della tam fortemẽte: que melhor se poderia olhar o rayo do sol que a sua cara. E chamada toda a clerizia & aquelle saçerdote ja dicto tomou o corpo de d’s & comungou a magdanela de maão do bispo cõ muytas lagrimas. & lançandose ante o altar. sayolhe a alma do corpo & foyse ao parayso. & despois que se ella finou tã grãde odor ficou no oratorio sete dias cõtinuamẽte que quãtos hy estauã tantos se marauilhauã de aquelle odor. E este corpo sctõ enterrou sam maximino muyto hõrradamente cõ muytas espeçias103: Madalena identifica-se com a pecadora perdoada em casa de Simão Malato (=Leproso). Mais uma vez, como no caso da Egipcíaca, a levitação é motivo de temor por parte do sacerdote. Assim também aparece na Ls.Sev.1520-21 (ed. CABASÉS, 2007, 343 b), contrariamente ao que acontece na Ls.Bur.1499, onde se lê: «cõ muchas osequias». 101 102 103 132 Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação, no Flos Sanctorum de 1513 Epílogo (18.) [O abade do mosteiro feito pelo duque da Borgonha manda buscar as relíquias de Madalena a Aix. Um monge encontra-as no meio das ruínas e leva-as para o mosteiro] & aconteçeo que dom giraldo duque de bregonia nõ podendo auer filho de sua molher daua104 quãto tinha aos proues. & fazia muytas ygrejas & fez huũ moesteiro. E ho abade de aquelle moesteiro mãdou a huũ seu mõje que fosse aa cidade de aquis [= Aix-en-Provence]: & que trouxesse das reliquias de scã maria magdanela. & vijndo este monje a aquella cidade achoua destruyda dos mouros: & achou por vẽtura huũ sepulcro em que jazia o corpo da magdanela segũdo que mostraua o sepulcro que era de marmore. E tinha ha sua estorea entalhada marauilhosamẽte nelle: & fezeo de noyte quebrar & tomou de hy as reliquias & leuouas105. E essa noyte apareçeo a magdanela ao mõje dizẽdolhe que nõ ouuesse medo: mas que acabase o que começara. & quando tornou a seu moesteiro ãte d’ mea legoa nõ podia de hy mouer as reliquias ẽ nenhũa maneira atee que veo o abade com os mõjes a reçeber as requias [sic] cõ grãde hõrra & procissam. (19.) [Um cavaleiro devoto de santa Maria Madalena ressuscita para se confessar] Outrosi huũ caualleiro que cada anno soya vijr ao sepulcro de sctã maria magdanela: & matarõno ẽ hũa batalha: & seus parẽtes faziã por elle grãde doo & diziã assi. Sãta maria magdanela como lexaste morrer o teu deuoto sem penitẽçia & sem cõfissom. E marauilhandose todos leuãtouse o corpo subpitamẽte & chamou huũ sacerdote: & confessouse & comũgou & finouse logo.» 1.2.2. As ilustrações: Praticamente toda esta legenda está pintada a fresco por Giotto di Bondone na capela da Madalena, na Basílica inferior de S. Francisco, em Assis106: 1. A ceia em casa do fariseu, 2. A ressucitação de Lázaro, 3. Noli me tangere, 4. Viagem a Marselha e milagre da família do governador, 5. A Madalena eremita na gruta chamada Santa Bauma, 6. Madalena elevada todos os dias da Santa Bauma «dana», no texto – gralha clara do tipógrafo. «a su ostal» [ou «ostial»], acrescentam os textos castelhanos, Ls.Bur.1499 e Ls.Sev.1520-21 (ed. CABASÉS, 2007, 344 a), respectivamente. 106 <http://www.gliscritti.it/gallery2/v/assisigiottomaddalena/> 104 105 133 Fr. António-José de Almeida, O.P. para rezar com os anjos, 7. Madalena transportada pelos anjos para receber a comunhão de S. Maximino. Contrariamente ao que acontece com a ilustração da legenda analisada anteriormente, a de Santa Maria Egipcíaca, a de Santa Maria Madalena não é sempre ilustrada pela imagem do episódio figurado no nosso FSlp.Lis.1513 (f. 103 a) (fig. 12), o do Arrebatamento da Santa ao céu pelos anjos, o que não quer dizer que ela não tenha tido popularidade, como veremos. No que diz respeito à ilustração da legenda de Santa Maria Madalena no FSlp.Lis.1513, penso que a origem próxima da imagem está também, como no caso anterior, numa xilogravura da LaS.Lyo.1486, a que ilustra a legenda 89 (ver fig. 10). Quatro anjos elevam a Santa, que, neste caso, tem o corpo todo coberto por pêlos. O facto não é narrado na legenda desta santa, mas a propósito de Santa Inês, Virgem e Mártir,107 quando esta é despida para ser levada a um bordel, por não querer sacrificar aos ídolos: «E leuãdoa espida foy logo cuberta de cabellos assy como de vestiduras:» (FSlp.Lis.1513,f. 31 c). Esta entalhadura será reestampada no FsR.Bar.1494, no fólio CLXXIX [sic, aliás 157] a (fig. 10), e no rosto do Apologeticus pro vnica Maria Magdalena, escrito por Fr. Baltasar Sorió O.P., e impresso em Saragoça, por Jorge Coci, em 1521108. A presença desta xilogravura na oficina fundada por Paulo Hurus parece ir no sentido da confirmação da hipótese que formulei de as entalhaduras do jogo de que ela faz parte, de origem lionesa, terem servido de modelo às entalhadas nessa oficina saragoçana e estampadas nas primeiras edições, perdidas, da Leyenda de los Santos (1490 e 1492). Em 1521 já não devia haver em Saragoça o jogo dessas, pelo que Jorge Coci se viu obrigado recorrer a uma mais antiga. Isto parece confirmar a minha hipótese de se ter vendido para Sevilha, por volta de 1497, o jogo de matrizes xilográficas saragoçanas. Aliás, algumas xilogravuras lionesas estampadas na LaS.Lyo.1486 reaparecem em 1492 em Saragoça ilustrando a Aurea Expositio Hymnorum, saída do prelo de Paulo Hurus a 26 de Janeiro desse ano, sendo a seguir impressas no FsR.Bar.1494. Não sei se foram estampadas na nova edição da Aurea Expositio Hymnorum que Paulo Hurus faz sair da sua oficina saragoçana por volta de 1495, mas o certo elas serão reestampadas nessa oficina na edição terminada a 1 de Janeiro de 1520, quando estava à frente dela Jorge Coci. Por isso não é de admirar que no ano seguinte uma outra xilogravura pertencente ao mesmo jogo lionês, a da Madalena, seja aqui reimpresso. Da xilogravura da Elevação da Madalena pelos anjos impressa hipoteticamente em Saragoça em 1490 e 1492, e reestampada, segundo penso, no Fs.Sev.1540, C. VEGA, El transformismo religioso, pp. 151-152 e 182. Francisco VINDEL, Manual Gráfico-Descriptivo de Bibliófilo Hispano-Americano (1475-1850). Madrid: [F. Vindel], 1930-34, 12 vols., vol. VI, 191, nº 2.893. 107 108 134 Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação, no Flos Sanctorum de 1513 no fólio 303 d (fig. 13) terão derivado as entalhaduras estampadas tanto na Ls.Bur.1499 (f. 133 c) (fig. 11) como no FSlp.Lis.1513 (f. 103 a) (fig. 12). Esta última, porém, contém um pormenor ausente das anteriores. Refiro-me à presença de rochas aos lados, na metade inferior da composição, atrás dos anjos de baixo e sob os de cima. Donde provirão estes elementos? Julgo que da entalhadura com este tema estampada na Crónica de Nuremberga, impressa nesta cidade alemã em 1493, não só em alemão mas também em latim109, uma vez que a entalhadura estampada na célebre Leben der Heiligen (ver fig. 14)110, onde o autor da xilogravura da Crónica se parece ter inspirado, saída da mesma oficina uns anos antes, em 1488, só apareceu em alemão e também porque aí a Santa é representada completamente nua, ao contrário da nossa estampa. Com isto não quero ser apodítico, pois o «Mestre do Vespasiano»111 pode ter ascendência alemã ou pode muito bem ter visto esta obra na casa de algum mercador alemão residente em Lisboa, embora não tenha chegado até nós nenhum exemplar desta obra conservada no território português, ao contrário da Crónica de Nuremberga em latim112. Lembremos que Valentim Fernandes, o impressor da História de mui nobre Vespasiano113, é alemão e também o é Hermão de Campos, uma vez que que era de bom tom, nessa época, aportuguezar os nomes. Até pode ter visto as duas composições. Seja como for, este pormenor denota uma atenção à novidade por parte do entalhador lisboeta. O elemento das rochas começa a aparecer na xilogravura alemã em 1481, no Leben der Heiligen impresso nesse ano em Urach, por Conrad Fyner (LdH.Ura.1481, S., f. 105 r) logo seguido pelo volume estival do Leben der Heiligen, acabado de imprimir emAugsburgo, por Johann Schönsperger, a 2 de Dezembro do ano seguinte (LdH.Aug.1482, S., f. 165 v). Tanto nestes como no LdH.Aug.1488 (ver fig. 14), Maria Madalena sai da gruta, a «Santa Bauma» provençal. Na estampa da Crónica, no local, entre rochas, sobre o qual paira a Santa existem construções. Embora em Espanha, através da reimpressão da entalhadura de Ausgburgo, esta cena vá reaparecendo na ilustração dos Santorais (fig. 14)114, ela desaparece Ver <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/5/50/Schedelsche_Weltchronik_d_108.jpg>. Reproduzo somente a imagem da direita de uma estampa dupla, com filete exterior único, e por isso unificante das duas imagens. Ver estampa total, v.g., em: Schramm, vol. 17, nº 113; TIB, vol. 86, 173, 2ª imagem da página; <http://daten.digitale-sammlungen.de/~db/0002/bsb00027260/images/index. html?seite=151>. 111 Assim baptizei o autor das entalhaduras do FSlp.Lis.1513. 112 Como é o caso do Inc. 205, da Biblioteca Pública Municipal do Porto (abrev. BPMP) 113 [Estoria de Muy nobre Vespasiano emperador de roma], Lisboa, Valentino de Morávia [=Valentim Fernandes], 20 Abril 1496. 114 Isso acontece na oficina de Saragoça, até 1548. Mas também essa xilogravura alemã é copiada, em espelho, na oficina complutense de Juan de Brocar, e estampada no Fs.Alc.1558, f. 312 r. Neste caso, a Madalena da Elevação angélica está coberta por abundantes cabelos. 109 110 135 Fr. António-José de Almeida, O.P. deste género literário em Portugal. Só reaparecerá, segundo as minhas investigações, na oficina lisboeta de Marcos Borges e possivelmente na de António Álvares (fig. 15). Neste caso, o entalhador toma como modelo a célebre estampa xilográfica de Alberto Dureiro (Albrecht Dürer), entalhada por volta de 1504-05,115 em que aparecem porém seis anjinhos, ao contrário da lisboeta. Esta aparece na primeira página de um folheto impresso em Lisboa, por Marcos Borges, intitulado Summario das Indulgencias, Priuilegios, Conseruatorias, Indultos, Fauores, Letras & Graças, Spirituaes & Temporaes, concedidas (...) aos irmãos & Confrades da irmádade & cõfraria de Sancta Maria Magdalena, instituyda na Parrochial Ygreja da (...) Magdalena (...) de Lixboa (...), depois de 1579116; e será reestampada também em Lisboa, seguramente por [António Álvares], no ano de 1600 no Itinerario da Terra Sancta... do franciscano Fr. Pantaleão de Aveiro, no fólio [XII] depois das «taboadas»117. Uma imagem variante deste episódio é aquela em que figura a Santa deitada encostada ao tronco de uma árvore, as mãos postas e com um crucifixo junto dela, ouvido o cantar de três anjos (Ls.Sev.1568, f. 109 a; Fs.Sev.1568-69, f. 209 v, est. dir. – ilustrando Sta. Mª Egipcíaca; Fs.Sev.1572, II, f. 188 r, est. esq.) (fig. 16). Embora sejam representados como ilustrações dos Santorais ibéricos do séc. XVI outros dois episódios da legenda desta Santa, o da Pecadora em casa da Simão118 e o do Noli me tangere (Fs.Med.1578, II, f. 168 v., est. da dir.), não me deterei neles aqui. De entre as imagens icónicas da Santa, que também ilutram alguns deste livros, convém destacar, por causa da sua repercussão, aquela TIB, vol. 10, 121 (141); Friedrich W. H. HOLLSTEIN, German engravings, etchings and woodcuts ca 1400-1700, Roosendaal & Amsterdam, Koninklijke van Pool & Menno Hertzberger, 1954? –, vol. 7, 192; GRABADOS ALEMANES de la Biblioteca Nacional (siglos XV-XVI), Madrid, Ministerio de Educación y Cultura – Biblioteca Nacional, © e D.L. 1997, 2 tomos, t. I (ISBN 84-8156-147-9), 277, cat. nº 467 – <http://bibliotecadigitalhispanica.bne.es/view/action/singleViewer.do?dvs=1262115034949~773&locale= pt_PT&DELIVERY_RULE_ID=10&frameId=1&usePid1=true&usePid2=true>. 116 Madrid, Colecção Particular. A 1ª página deste folheto foi reproduzida na revista Reales Sitios, Año XL, nº 157 (3er. trimestre de 2003), 47. Agradeço ao proprietário a possibilidade de ver este folheto, através de Fernando Bouza Álvares, que gentilmente o transportou para a sala de leitura da Biblioteca do Palácio Real de Madrid, onde o pude estudar, com alguma altenção, por algumas horas. 117 Trata-se de uma estampa de página. Alberto FEIO, Obras desconhecidas ou imperfeitamente descritas impressas em Portugal no século XVI, Braga, Tip. do Arquivo Distrital, 1955, 16, identifica-a erroneamente como tratando-se de «a Assunção da Virgem». Claro que as duas representações iconográficas estão aparentadas, e a representação da Assunção de Nossa Senhora deve ter influído na da Elevação da Madalena. 118 Nos mesmos em que aparece a Elevação angélica da Madalena, e ao lado desta. A xilogravura representando a Pecadora em casa da Simão, aberta na oficina complutense de Juan de Brocar, já tinha sido estampada, em 1522, na obra de Fr. Antonio de Aranda de Duero O.F.M., Loores de la Virgen nuestra Señora... sobre la exposicion de las siete palabras que esta virgen hablo: conforme alo que los Euãgelistas escriuẽ cõ la aplicaciõ de cada uno de los siete dones... (título abreviado: De las siete palabras de la Santísima Virgen Nra Señora), f. 133 – Blanca GARCÍA VEGA, El grabado en el libro español. Siglos XV-XVI-XVII (Aportación a su estudio con los fondos de las bibliotecas de Valladolid), Valladolid, Institución Cultural Simancas, 1984, 2 tomos. (ISBN 84-505-0092-3), t. I, fig. 144, e t. II, 12, nº 43. 115 136 Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação, no Flos Sanctorum de 1513 em que ela é representada de pé junto da Santa Bauma, segurando um livro na direita e o vaso de perfumes na esquerda (Ls.Tol.1554, f. xciiii. [sic, aliás 104] (n8) c; Fs.Med.1578, II, f. 168 v., est. da esq.; FsVill.Zar.1585, f. 193 d; Hs.Lis.1585, f. 266 c; FsRos.Lis.1590, f. 246 c). Também deixo para posterior artigo a análise pormenorizada destas imagens, evocando-as aqui tão somente para indicar que a que analisei não é a única. 2. Santos em peregrinação: As três mulheres e um homem da história dos Quatro Santos Coroados Peregrinos. 2.1. O texto: Este texto substitui, relatando a vida dos Quatro Santos Coroados Peregrinos, nas edições em castelhano e português, um outro em que se fala e Quatro Santos Coroados Escultores. Por faltar no exemplar único em português (FSlp.Lis.1513), conservado na Biblioteca Nacional de Portugal (abrev. BnP), em Lisboa, a primeira parte da legenda, reproduzi-la-ei a partir do texto em castelhano (Ls.Bur.1499), conservado na British Library, em Londres; continuando em português, numa segunda parte, logo que o texto aparece no exemplar da Biblioteca Nacional de Portugal. «De vn cauallero & de su muger| & de su fijo: & de como fuerõ llamados los quatro coronados [Ls.Bur.1499, f. 208 c]» [FSlp.Lis.1513, f. 163, no cimo, o título corrente: “Dos quatro coroados.”] (1.) [Um cavaleiro moribundo pede ao seu mau filho que lhe prometa que, depois que ele morra, nunca dormirá debaixo do mesmo tecto que sua mãe] «[U]N cauallero auia ẽ vna cibdat que tenia vna muger d’ stã vida: & tenian vn fijo malo: & soberuio: & beodo: [e mal enseñado,]119 pero no a culpa d’ su padre∙ & vino el padre ha adolecer del mal dela muerte∙ & cõ temor de morir llamo a su fijo: & dixo∙ Fijo ruegote: que tu ayas la bẽdiciõ de dios: & la [Ls.Bur.1499, f. 208 d (fig. 11)] mia: que me prometas vn dõ: que te quiero demãdar∙ & dixole el fijo∙ señor qual quiera cosa que me mãdardes fare [yo] d’ grado: por hauer vuestra gracia[, e vos seré obediente]∙ [E] dixole el padre: [Pues] ruegote[, fijo,] que quando dios me ouiere leuado deste mũdo que jamas duermas so vn techo cõ tu madre: & enesto faras 119 Texto acrescentado em Ls.Sev.1520-21. São muitos, como veremos, os acrescentos esclarecedores que a edição sevilhana faz. Esses acrescentos foram colocados por mim entre parêntesis rectos. 137 Fr. António-José de Almeida, O.P. seruicio a dios: & cobraras la mi bẽdiciõ∙ [Y] dixo el fijo: [¿]como padre[? E] mi madr’ no tiene otro fijo sino a mi: & despues de vos ydo deste mũdo quien la seruira: & onrrara mejor que yo en120 todas las cosas segũ dios mãda121∙ E dixo el padre: el señor la proueera d’la su misericordia [e del su bien]∙ porẽde otorgame lo que te demãdo| el fijo otorgole lo que le pedia: & dixo∙ padre cũplase la tua volũtad∙» (2.) [O filho vai-se embora, volta à sua aldeia para um casamento, é retido em casa por sua mãe, embriagado viola-a e deixa-a grávida] «& el padre finado: & sepultado: el fijo por cumplir el mãdado d’l padre partiose dẽde para vn lugar: que quedo de su padre∙ E a cabo de tiempo en aquella cibdade a dõde fino su padre [e morava su madre]: faziã vnas bodas vnos sus pariẽtes del moço: & fuerõlo a cõbidar: que veniese a ellas a les fazer hõrra: ca hera muy plazẽtero [hombre]: & vino a ellas: & estuuo alli fasta la noche∙ & el estãdo cenando cõla madre [en la noche]: acordosele la postura [= pacto] que pusiera cõ su padre: & dixo ala madre∙ Señora quiero me yr para mi posada: que [f. 209 a] no quiero dormir aqui esta noche. E dixo entonces la madre: fijo no es tiempo que partas de aqui a tal hora: ca no sabes quien te quiere mal ni biẽ: porende fuelga [= descansa] & toma plazer: E tãto porfio cõel que ouo de quedar: & como estaua cõ mucha vianda: & cõ vino: & el plazer delas bodas: & el echado en su cama: leuãtose de noche & fuese para la cama d’ su madre: & por fuerca & a pesar d’ su madre ouo que auer cõella: ẽ manera que ella quedo preñada d’l [ca nunca pudo se defender]| tal yua cõel vino: & conel diablo que le ayudaua enel mal: & cõtra la postura de su padre∙» (3.) [O jovem percebe o que fez, abandona tudo o que possui e vai para Roma onde muda de costumes, e coloca-se como mordomo de um cardeal] «E ala mañana leuãtose [e vio] & entẽdio como el diablo lo auia engañado E desamparo [= abandonou] todo lo suyo: & dio consigo en roma al papa para auer penitencia se sus pecados cõ grãd dolor de su coracon & alla comẽco d’ pẽsar & dezia∙ quando mi padre era viuo yo era harto soberuio & fazia mucho mal: & cõ mi 120 121 138 «eu», no texto – gralha clara do tipógrafo. «mãdo», no texto – gralha clara do tipógrafo. Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação, no Flos Sanctorum de 1513 padre & cõ mis pariẽtes passaua cõ[=obtinha]lo que queria mas agora que soy en tierras agenas conuieneme de ser humildoso∙ ca si quiero fazer locura no me lo cõsentirã: cada vn gallo cãta en su muradal [=muladar]∙ & llegose luego a vn cardenal delos mas priuados d’l papa: & como lo vio el cardenal muy sotil: & biẽ fablado: & buen seruidor: & leal: fizolo su camarero & mayordomo: & fiauã del quanto auia enla casa∙ E todos los dela corte lo queriã biẽ: & lo conosciã por [muy] leal & bueno∙ E era muy allegado al papa:» (4.) [Passa-se muito tempo, e o jovem confessou todos os pecados menos aquele. Sua mãe conta reservadamente toda a história à filha nascida da violação, que tem já 17 anos, e põem-se de acordo em ir a Roma fazer penitência] «& auia grãd tiempo que estaua enla cibdad: & aun que cõfessaua muchos pecados nũca cõfessaua este∙ E vino a morir el cardenal cõ quiẽ viuia∙ Eneste medio la madre del pario vna fija dela qual era preñada quando el se fuera a roma∙ E auiendo ya la moça ∙xvij∙ años que entendia ya∙ fablo la madre cõella en poridad [=segredo]: & cõtole el pecado en que cayera: & cõto’gelo segun suso [=acima] es dicho: & dixo ala fija∙ [f. 209 b] Uamos a roma a tomar penitencia de nuestros pecados que son malos & feos∙ & dixo la moca∙ Señora vamos a dõde vos mandardes∙» (5.) [Vão parar à mesma pousada que o filho, e não se reconhecem. O filho enamora-se da filha e irmã, casa-se com ela, tem uma filha dela, e vivem assim outros 17 anos] «E tomarõ amas su camino para roma:122 & llegãdo alla pregũtãdo por el meson: por acaso fueron a posar en casa de su fijo: & no se conoscieron unos a otros∙ E aquella moça era fermosa: & d’ buen parecer: & estãdo ay algunos dias [en aquella casa]: el mãcebo se pago (=agradou-se’) [mucho] dela moça: & dixo a su madre que gela diese en casamiẽto: & que le daria muchas joyas & muchos bienes| E dixo la dueña∙ Fijo por dios no querays fazer escarnio d’ nos: ca mugeres somos de alta sangre aun que estamos agora asi: por que nos somos venidas aqui por fazer penitẽcia de nuestros pecados∙ & dixo el mãcebo∙ señora no hos lo digo por escarnio sino 122 Esta frase está ausente em Ls.Sev.1520-21. 139 Fr. António-José de Almeida, O.P. de verdad: & buscad vn clerigo que nos despose∙ E vino el clerigo: & desposolos: & fizierõ luego sus bodas: & ouo enella vna fija: en aquella que era su fija & su muger: & su hermana∙ E asi durarõ eneste pecado otros ∙xvij∙ años [que nasciera esta otra hija que hiziera en Roma]∙» (6.) [A mãe pede ao filho que a apresente ao Papa, a quem agora serve, para se confessar. A sua confissão é tão clamorosa que o filho a escuta, reconhece a mãe e chora] «E a cabo destos diez y siete años: dixo la dueña a aquel su fijo∙ Fijo vos que soys tã allegado123 al papa tened por biẽ de me presentar ante el: por que nos quiera oyr de penitẽcia∙ Ca despues que el cardenal con quien viuia murio: tomolo el papa para si por las bondades que enel auia| & leuolas[sic] luego ante el papa∙ E ella comẽco a confesar sus pecados: & por fazer grand reuerẽcia a dios comenco a dar muy grãdes bozes: contando al papa todo quanto le auia cõtecido d’ comienco d’ su peccado: en manera d’ confession| & el mãcebo su fijo[, como estava un poco apartado,] oyo todo quanto dezia su madre al papa: por lo qual conoscio ser ella su madre & tomo grãd pesar [por ello,] por que auia [puesto e] añadido mal sobre mal: & peccado sobre peccado: & lloro mucho d’ sus ojos con grand cõtricion & gemido d’ su coracõ∙» (7.) [Mãe e filho, depois de se reconhecerem, voltam ao Papa e este impõe-lhes que os quatro vão em peregrinação a Santiago, nus da cintura para cima e se morrerem pelo caminho dá por perdoados os seus pecados. Eles partem] «[Ls.Bur.1499, f. 209 c: “E despues que se cõfeso la buena dueña vinose para su fijo y su yerno∙ & el apartola: & dixole∙ digo vos por cierto: que yo soy vuestro fijo: & vos soys mi madre: & aquella que yo tengo por muger: es mi hermana: & mi fija∙ E auiẽdo su consejo tornarõse luego enese momẽto al papa a cõfesarse todos∙ E el papa oyẽdolos mãdoles en nõbre de penitẽcia entẽdiendo sus grandes peccados: & muy suzios: & feos: que se fuesen todos quatro en romeria a sant|tiago: desnudos dela cinta arriba: & que si muriesen enel camino: que los daua por perdonados: & 123 140 «alledado», no texto – gralha clara do tipógrafo. Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação, no Flos Sanctorum de 1513 absueltos: d’ todos sus peccados. & ellos partierõ luego de rroma para yr su romeria:» (8.) [Na volta da dura romaria/peregrinação, chegam a uma aldeia onde um homem acolhia por caridade os peregrinos, mas tinha uma mulher bêbeda] «& los de la cibdad quando los uierõ asi desnudos: fueron marauillados: mayormẽte por ser tan allegados al papa: & salierõ: & fuerõse su camino [a su romería] por grãdes nieues: & frios: & aguas∙ E ala tornada de su romeria: veniẽdo por el camino adicha tomolos la noche en vna aldea: enla qual moraua vn ombre [bueno muy] rico que acogia alos pobres por amor de dios: por complir las obras de misericordia∙ E este buen ombre tenia vna muger muy amiga del vino: que cada dia se embriagaua: & entrãdo los romeros por el aldea muertos de frio: & [muy] cansados∙ & aquella muger estãdo biẽ beoda: cõ otras sus bezinas: dixo por los romeros∙ Uedes aqui donde vienẽ quatro diablos muy feos: & ellos preguntãdo por el meson: amostrarõles la casa deste buẽ õbre: & fuerõ alla: & dixeron ala muger que les diese posada: por amor sde ihũ xpõ∙» (9.) [A mulher bêbeda insulta-os, mas chega o marido que a obriga a acolhê-los. O marido ausenta-se, e ela encerra-os numa pocilga molhada] «& ella mostroles mala volũtat con su vino: maldiziẽdolos [de su boca] ∙ & las vezinas d’ziãle que los acogiese: que asi fazia su marido: & nũca lo quiso fazer: ni pudieron conella∙ E estãdo asi allego el buẽ honbre: & dixo a su muger que los acogiese: & [f. 209 d] que les diese d’ comer: & los pusiese ala lũbre: & ella metiolos [FSlp.Lis.1513, f. 163 a] em casa com maa võtade. & o boõ homẽ foyse folgar cõ seus vizinhos & amigos124. & elle tardãdo muyto que nõ tornou a sua casa a maa molher nõ fez nada do que seu marido lhe mãdara nẽ lhes deu nẽhũa consollaçõ & os fez emtrar em hũa pocilga de porcos que estaua toda molhada & os ẽçarrou dentro cõ chaue125:» (10.) [Os romeiros/peregrinos fazem oração, a mulher bêbeda vai-se deitar e o marido tem que entrar em casa pelo telhado] 124 Texto que também aparece na Ls.Sev.1520-21: «con sus amigos e vezinos» (ed. CABASÉS, 2007, 534 b); não figurando na Ls.Bur.1499. Trata-se de um acrescento explicativo, como os que vimos atrás, na transcrição que fiz do texto da Ls.Bur.1499. 125 Também na Ls.Sev.1520-21: «y encerrólos dentro con llave» (ed. CABASÉS, 2007, 534 b); mas não na Ls.Bur.1499. 141 Fr. António-José de Almeida, O.P. «E os romeyros como entrarom mortos de fryo & molhados foyse cada huũ delles a seu canto da pocilga fazer sua oraçã a d’s. E tomãdo todo en paciẽcia & por saluar suas almas. & elles bẽ emcerrados foyse a maa molher deytar em sua cama. & quãdo veeo seu marido chamou aa porta. & ella de como estaua cõ vinho nõ ouuia chamar nẽ respondeo. & ajũtarõse todos os vizinhos ao chamado que elle fazia empero ella nõ acordou atee que emtrarõ cõ escadas pollo telhado. & foyse ho boõ homẽ deytar na cama cõ sua molher. & ella cõ o vinho que estaua nella nũca sentyo nada.» (11) [Passada a meia-noite, o marido pergunta pelos romeiros, a mulher diz-lhe que os fechou na pocilga, vai o marido libertá-los e encontra-os mortos] «E passada a mea noyte ho boõ homẽ pregũtou pollos romeyros en que logar jaziã126. respõdeo ella quaes romeyros. respõdeo o boõ homẽ. Aquelles que estauã aqui a nocte que te mãdey apousentar nõ te lẽbra. & quando se acordou disse que os metera na pocilga dos porcos. & disse ho boõ homẽ. O falsa treedora. E leuantouse logo & tomou as chaues & foy apressa quãto pode & abriolhes & chamouos & nõ respõderõ & emtrou cõ hũa cãdea que leuaua & achouos mortos cada huũ a seu cãto com as maãos juntas contra o ceeo & hos giolhos fincados. E quãdo os vyo o boõ homẽ começou de se carpir mujto sobre elles porque assy morrerõ & en tal logar & tomou [‘consigo muy’]127 grande pesar & tristeza128.» (12.) [Enquanto o bom homem pensa como enterrá-los aparece-lhe um anjo, que o manda levá-los a Roma ao Papa num carro de bois] «E quãdo amanheceeo poseos ẽ huũ leyto pera os enterrar & lhes fazer honrra. E passouse assy este dia & elle dormindo em sua cama cuydaua como & em que maneyra lhes desse sepulturas & veo o anjo de d’s a elle dizendolhe que ẽ maneyra nenhũa do mũdo emterrasse ẽ aquelle logar onde elle cuydaua. mas que os leuasse ẽ seus boys & ẽ seu carro aa cidade de roma: & os apresentasse ao papa & que os leuariã129 sem trabalho nẽhuũ.» «jazia», no texto – gralha clara do tipógrafo. Entre [‘’] as palavras acrescentadas no texto de Ls.Sev.1520-21 ao português. Também na Ls.Sev.1520-21: «e tomó consigo muy gran pesar e tristeza» (ed. CABASÉS, 2007, p. 535 a); mas não na Ls.Bur.1499. 129 «lenariã», no texto – gralha clara do tipógrafo. 126 127 128 142 Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação, no Flos Sanctorum de 1513 (13) [Quando se aproxima de Roma, todos os sinos tocam por si próprios. O Papa apercebe-se de que morreu um santo, e não no encontrando em Roma saem para fora e encontram o bom homem que traz os corpos. Apresenta-os ao Papa e conta a história da sua morte] «E quãdo chegou cõ elles a roma polla graça de d’s to-[f. 163 b] dos os sinos se tangerõ por sy mesmos. ca em aquelle tẽpo quãdo se finaua alguũ homẽ sancto ou vinha de fora logo se tangiã hos sinos por graça de d’s. E quãdo o papa ouuyo os sinos emtẽdeo que algũ sancto homẽ era finado na cidade: & nõ o achãdo dentro mãdou sayr fora & que pregũtassem porque se tãgiam os sinos. & logo sayrõ fora & virom aquelle boõ homẽ que trazia aquelles sanctos corpos em seu carro com seus bois. E emtrou polla cidade atee que chegou aos paaços do papa. & apresentou os sanctos ante o papa como lhe mãdara o anjo E disse o boõ homẽ ao papa. Senhor estes santos homẽs morrerõ em minha casa. tal nocte & cõtoulhe todo por ordẽ como elles morrerom» (14.) [Uma voz anuncia ao Papa que se trata dos quatro penitentes enviados a Santiago, e que eram santos. Descobrem--nos e acham-lhes as cabeças coroadas com coroas de ouro e pedras preciosas] «E estãdo nesto ouuio o papa hũa voz do ceo que lhe disse que aquelles erã hos homẽs que elle emviara em penitẽcia a santiago nuus da cintura pera cima & como erã sanctos diante de d’s polla penitẽcia que tomarõ & acabarõ nella com boõa contriçã. E o papa quãdo esto ouuyo elle & os cardeaes & outros homẽs de boõa vida que estauã hy tirarõ hos sctõs do carro muy onestamẽte cõ grãde procissam & os descobrirõ & acharõ que tinha cada huũ d’lles hũa coroa de ouro na cabeça cõ pedras preciosas & cheyrauã como sanctos. E por esta razã os chamarõ quatro coroados.» (15.) [O Papa sepulta-os, e prediz ao bom homem que, quando regressar a casa, os diabos lhe levarão a mulher, pelo que não valerá a pena oferecer sufrágios por ela] «& o papa os sepultou por sua maão hõrradamente cada huũ em seu muymento & aos cardeaes & aaquelle boom homẽ que hos trouxe em seu carro logo ho papa os absolueo de todos seus peccados. E disse ho papa ao boõ homẽ que quãdo chegasse a sua casa que emtrando polla porta que logo morreria sua molher & que lhe 143 Fr. António-José de Almeida, O.P. leuariã os diabos o corpo & a alma no fundo do inferno & lhe mãdou que nom fizesse bem nẽhuũ pola sua alma ca nõ lhe prestaua [=ajudava] nada porque morria em peccado mortal & sem cõfissom| pois nõ ouuera misericordia dos proues que menos a averia d’s della. Ca assy o diz sancto agostinho. que o que nõ he misericordioso nõ merece misericordia.» (16.) [Regressado o bom homem a casa, os diabos levam-lhe a mulher e ele acaba a vida em boas obras] «E o boõ homẽ foyse com seus boys & cõ seu carro. & como ẽtrou polla porta d’ sua casa: logo morreo sua molher. E vyo elle & outros que hy estauã ao tempo da morte que hos diabos leuarõ a [f. 163 c] sua alma cõ muy grãde fedor & arroydo ao ĩferno. E o boõ homẽ ajnda des pois polo que vyo dos homẽs sanctos & das honrras que ouuerõ por maão do papa & dos sinos que ouuio tãger & de como hya absolto de seus pecados: & de como vyo hijr a alma d’ sua molher cõ os jmijgos maaos se atee hy fez bẽ por serviço de d’s muyto mais fez de hy adiãte & acabou bẽ sua vida ẽ serviço de d’s.» 2.2. As ilustrações: Finalmente, analisemos a estampa que ilustra a legenda dos Quatro Santos Coroados Peregrinos, expiando a relação incestuosa, que o homem, primeiro sob os efeitos do vinho e depois sem o saber, manteve com duas das três mulheres (a mãe estuprada e a filha-esposa), sendo a terceira (a filha-neta) vítima inocente. Ao contrário das anteriores, não existe modelo próximo para esta composição. Também, diferentemente dos casos anteriores, as mulheres só estão nuas da cintura para cima, como no fresco de Balsamão. Na verdade, como referi antes da transcrição do texto, a legenda que vem na Legenda Áurea é totalmente diferente, embora com o mesmo nome.130 Na Legenda Áurea fala-se dos Quatro Santos Coroados Escultores, Mártires.131 Dada a substituição do texto, as ilustrações que aparecem nas edições lionesas referem-se, naturalmente, à legenda dos Quatro Escultores, só existindo ilustrações adequadas à nova legenda nas edições em castelhano e em português da Legenda Áurea, com uma excepção, que reputo de grande importância, como veremos. 130 Sobre esta substituição e sua posteridade no romance de cordel (pliego suelto) está a trabalhar José Aragüés Aldaz. 131 [Beato Fr.] TIAGO de VORÁGINE [O.P.], Legenda Áurea (trad. portuguesa do original latino de António Maia da ROCHA, a partir da ed. crítica de Giovanni Paolo MAGGIONI), Porto, Livraria Civilização Editora, 1 Novembro 2004 (ISBN 972-26-2127-0), 2 tomos, t. II, 262 (8 de Novembro). 144 Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação, no Flos Sanctorum de 1513 Só chegaram até nós duas estampas dos Quatro Peregrinos que se assemelhariam à que foi estampada seguramente no nosso FSlp.Lis.1513, as estampadas na Ls.Bur.1499 (f. 208 d) e no Fs.Sev.1540 (f. 462 a). O livro que habitualmente serve de inspiração ao entalhador das xilogravuras representando Santos estampadas no Fs.Sev.1540, e, por sua vez, copiadas pelas que são impressas na Ls.Burgos.1499, é, como vimos, a LaS.Lyo.1486. Ora a estampa que ilustra a legenda 140 dessa edição lionesa (ver fig. 17), corespondente aos Quatro Santos Coroados, representa os Quatro Escultores, como era de esperar. Esta mesma entalhadura será reestampada na edição da Legenda áurea em catalão saída em Barcelona, a 1 de Fevereiro de 1494, da oficina de Joan Rosenbach (FsR.Bar.1494), ilustrando a mesma legenda dos Quatro Escultores (fig. 17). Ora o que é curioso é que essa mesma legenda dos Quatro Escultores, incluída na compilação de Fr. Pedro de la Vega, seja ilustrada, na edição sevilhana de 1540 realizada por Juan Cromberger (o Fs.Sev.1540), por uma estampa representando os Quatro Peregrinos (fig. 19), semelhante à que ilustra a Ls.Burgos.1499 (fig. 18). Este facto insólito mais reforça a minha hipótese de que o jogo de xilogravuras utilizado por Juan Cromberger nesta edição de 1540 tenha sido entalhado para uma edição anterior à Ls.Bur.1499 e que esta tenha copiado. Ora, dado que Juan de Burgos costuma copiar edições de Paulo Hurus, tudo leva a crer que essa obra anterior copiada em Burgos tenha sido uma das que saíram dos prelos saragoçanos de Paulo Hurus em 1490 e 1492 e das quais não subsiste qualquer exemplar. Essa estampa xilográfica seria muito semelhante, se não a mesma, que foi estampada em Sevilha, em 1540 por Juan Cromberger (fig. 19). A utilização da imagem dos Santos Pergrinos para ilustrar a legenda dos Santos Escultores, uma história que nada tem a ver com os personagens representados, parece-me poder corroborar a hipótese que formulo de que Juan Cromberger utilizou nesta edição um jogo de matrizes xilográficas abertas uns 50 anos antes em Saragoça, na oficina de Paulo Hurus. Como sabenos, não era rara a longa sobrevivência do material iconográfico, como se pode comprovar pela reutilização comprovada de uma metalogravura entalhada em Colónia e utilizada uns 50 anos depois em Sevilha por [Juan] Varela e Juan Cromberger132 Clive GRIFFIN, Los Cromberger. La historia de una imprenta del siglo XVI en Sevilla y Méjico, Madrid, Ediciones de Cultura Hispánica, 1991 (ISBN 84-7232-621-7), 236 e 257. Na1ª referência, 236, nota 19, cita James P[atrick] R[onaldson] LYELL, Early Book Illustration in Spain, London, Grafton & Cº Coptic House, 1926, 168 = IDEM, La Ilustración del Libro Antiguo en España (edição, prólogo e notas de Julián MARTÍN ABAD), Madrid, Ollero y Ramos, 1997 (ISBN: 84-7895-067-2.), 214. Na 2ª referência, cita Arthur M. HIND, An introduction to a history of woodcut with a detailed survey of work done in the fifteenth century, New York, Dover Publications, 1963, I, 194. 132 145 Fr. António-José de Almeida, O.P. Como acontecia com a imagem de Santa Maria Egipcíaca, também o modelo saragoçano(?)/sevilhano e burgalês é copiado pela entalhadura estampada na Ls.Sev.1520 (fig. 20), cujo único exemplar se conserva em Loyola, no fólio 169v. O entalhador de xilogravuras da oficina sevilhana de Juan Varela, possivelmente já para a edição, perdida, de 1511, deve ter copiado livremente as estampas saragoçanas impressas numa das edições da Leyenda de los santos saídas dos prelos de Paulo Hurus, entre as quais estaria o modelo da presente estampa. Não nos esqueçamos que as xilogravuras relativas à Paixão de Cristo que figuram na edição conhecida de Juan Varela da Leyenda de los Santos, a de 1520-21 (Ls.Sev.1520-21), segue muito de perto, simplificando-as, as que são estampadas nas obras saídas dos prelos da oficina saragoçana, algumas das quais não serão retomadas por Fradique de Basileia nas suas impressões de 1493 (?). Estas xilogravuras do ciclo da Paixão impressas por Juan de Varela estarão na origem, por sua vez, de muitas das ainda mais simplificadas entalhadas pelo ‘Mestre do Vespasiano’ para o FSlp.Lis.1513133. Posteriormente à impressa na Ls.Sev.1520-21, só conheço duas estampas xilográficas com este tema. São as que ilustram a Ls.Tol.1554, no fólio 165 b (fig. 21); e a Ls.Sev.1568, no fólio 173 b (fig. 22). Nelas, os quatro personagens estão figurados caminhando, e não parados como nas anteriores. Na primeira, eles chegam a um povoado; na segunda, rezam o rosário, pelo caminho, no campo. Conclusões O texto do FSlp.Lis.1513 parece estar entre o da Ls.Bur.1499 e o da Ls.Sev.1520-21, surgindo nele já muitos dos acrescentos explicativos desta última edição. É particularmente interessante o caso dos acrescentos realizados na legenda dos Santos Coroados Peregrinos. Quanto às ilustrações do FSlp.Lis.1513 e suas congéneres anteriores da Ls.Bur.1499 formulo a hipótese de elas derivarem de um modelo comum que teria sido impresso nas primeiras edições da tradução da obra do Beato Jacobo de Vorágine O.P. em castelhano, da autoria de Fr. Gauberto Fabricio de Vagad O. Cist., realizadas em Saragoça, na oficina de Paulo Hurus, em 1490 e 1492, das quais não sobrevieram nenhuns exemplares. As xilogravuras aí impressas terão sido adquiridas pela oficina sevilhana de Meinado Ungut e Estanislao Polono 133 Esta é uma hipótese que me surgiu quando preparava este texto, devido a ter tido acesso pela primeira vez à visualização da totalidade das estampas incluídas no exemplar de Loyola (Ls.Sev.1520-21), mercê da publicação de Félix Cabasés S.J. Na verdade, muitas das soluções adoptadas pelo «Mestre do Vespasiano» parecem ter nestas xilogravuras sevilhanas a sua origem, possivelmente já estampadas na edição perdida de 1511. À análise pormenorizada e mais detida das estampas do ciclo da Paixão do FSlp.Lis.1513 espero consagrar uma publicação num futuro próximo, retomando o que encetei, debravando o terreno, como nela precisamente afirmo, na minha tese de doutoramento: Fr. António-José de ALMEIDA O.P., Imagens de Papel..., 238-290. 146 Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação, no Flos Sanctorum de 1513 por volta de 1497. Daí terão passado para a posse dos Cromberger, herdeiros dessa oficina, e estampadas por Juan Cromberger na edição de 1540 do livro chamado Vida de Jesu Cristo y de sus Santos compilado por Fr. Pedro de la Vega O.S.H. (Fs.Sev.1540). Efectivamente, o herdeiro da oficina saragoçana de Paulo Hurus, Jorge Coci, imprimiu, em 1516 a primeira de muitas edições da referida compilação de Fr. Gonzalo Ocaña O.S.H., prior do Mosteiro de Santa María de la Sisla, perto de Toledo (Fs.Zar.1516), continuada por Fr. Pedro de la Vega, da mesma Ordem. Ora nessas edições, embora apreçam xilogravuras relativas à Paixão já anteriormente estampadas em obras dessa oficina, como o Tesoro de la Pasión de Andrés de Eli (1494) e a Viaje de la Tierra Santa de Bernhard von Breydenbach (1498), copiadas em Burgos, Sevilha e Lisboa, das ilustrações relativas aos Santos copiadas mais de perto em Burgos e Lisboa não aparece nenhuma. Elas foram substituídas pela estampagem de um jogo de xilogravuras oblongas, algumas duplas, provindas da oficina de Anton Koberger em Nuremberga, sendo pois dispensável o jogo de entalhaduras que anteriormente terá sido impresso na capital aragonesa. Mas a reimpressão, em 1521, por Jorge Coci, de uma xilogravura representando a Elevação angélica de Santa Maria Madalena de origem lionesa levou-me a perguntar se essa reutilização de uma matriz antiga não estar ligada ao facto de nessa altura o jogo de xilogravuras de Santos, estampadas nas primeiras edições saragoçanas da Leyenda de los Santos, mais pequenas, não teria já desaparecido da oficina. Essa matriz lionesa pode muito bem ter ido lá parar provindo de Barcelona, onde encontramos a sua estampagem em data anterior. O curioso está em ela ter sido modelo da que terá sido entalhada em Saragoça e passado depois a Sevilha, sendo estampada no Fs.Sev.1540. Resumindo a minha tese sobre o jogo de matrizes xilográficas representando os Santos estampadas no Fs.Sev.1540. Estas xilogravuras teriam sido entalhadas em Saragoça, na oficina se Paulo Hurus, por um hábil entalhador contratado por este impressor. Passo a chamá-lo «Mestre do Flos Sanctorum (de 1450)». Teriam sido estampadas nas duas primeiras edições (perdidas) da Leyenda de los Santos (abrev. LS) impressas em Saragoça, na referida oficina tipográfica de Paulo Hurus, em 1490 e 1492. Teriam sido copiadas em Burgos, na oficina de Fadique de Basilea e eatampadas primeiro na edição (hipotética) de 1493 da mesma LS, e dpois na da ca. 1499-1500, realixada por Juan de Burgos (?), existente na BL. Entretanto, o jogo de matrizes dos Santos do Mestre entalhador saragoçano teriam passado para Sevilha, para a oficina de Meinardo Ungut e Estanislao Polono134, e de que Jacobo Cromberger será herdeiro, tendo passado 134 Estabelecidos nessa cidade desde a segunda metade do ano 1490 – B. GARCÍA VEGA, El grabado en el libro español..., t. II, ed. cit., 105. 147 Fr. António-José de Almeida, O.P. para seu filho Juan, que empreende a impressão desse FS renascentista, mas com estampas xilográficas seguramente entalhadas para e impressas primeiro numa LS. Parece corroborar esta minha hipótese a estampagem no rosto de um livro saído desta oficina sevilhana em 1512, quando era dirigida por Jacobo Cromberger, da xilogravura representando S. Jerónimo (WC:26)135, que será reestampada no Fs.Sev.1540 (f. 413 d)136. O «Mestre do Vespasiano», cujas estampas da Estoria de Vespasiano (Lisboa, 1496), donde lhe provém o nome, tinham sido copiadas três anos depois em Sevilha, por Pedro Brun, em 1499,137 inspirou-se grandemente para o cilclo da Paixão em xilogravuras estampadas por Juan varela (em 1511?), na sua edição da LS, mas não no que diz respeito aos Santos, em que se inspira nas estampadas por Juan Cromberger em 1540. Um exemplar de uma das edições da LS de Saragoça deve ter existido em Sevilha, copiada na oficina de Juan Varela muto de perto no que diz respeito ao ciclo da Paixão, mas nem tanto quanto aos Santos. Por certo, Juan Varela encomendou o trabalho de entalhe das matrizes por ele usadas a dois entalhadores diferentes, dada a urgência em imprimir livros com figuras em Granada, onde esteve, ao serviço de D. Fr. Hernando de Talavera O.F.M, arcebispo dessa cidade recém conquistada, de 1504 a 1508, deslocando-se várias vezes a Sevilha. As xilogravuras impressas em 1511 na sua edição da LS podem ter sido entalhadas antes da relação que estabeleceu, em 1508, com Jacobo Cromberger, o patriarca dos Cromberger de Sevilha, quando comprou a meias com ele umas casas em Sevilha. Casará a filha Inés como neto de Jacobo e filho de Juam Cromberger, Jácome Cromberger.138 Seja como for, Juan Cromberger estampará em 1540 as xilogravuras entalhadas, segundo creio, em Saragoça, por volta de 1490, para ilustrar a LS. Só assim se explica a estampagem da entalhadura dos Santos Coroados Peregrinos para ilustras a legenda dos Santos Coroados Escultores. Não estampa a xilogravura icónica de S. Francisco de Assis que faria parte desse jogo de matrizes, mas uma Estigmatização do Santo de Assis, que é repetida para ilustrar as legendas de outros Santos frades franciscanos. Quanto à estampa ilustrativa da legenda de S. Luís rei de França, esta vem com as flores-de-lis do manto desbastadas, coisa que Sigla utilizada por Clive GRIFFIN, The Cromberger of Seville. History of a Printing and Merchant Dynasty, Oxford, Clarendon Press, 1988, Appendix 3, Microfichas, *1331. 136 Refiro-me ao Speculum ecclesie cum multis additionibus, da autoria do Beato Hugo de San Caro O.P., acabado de imprimeir em Sevilha, por Jacobo Cromberger, a 17 de Dezembro de 1512. – <http://fama. us.es/search~S5*spi?/cA+336%2F015/ca+336+015/1,1,1,E/l856~b1518555&FF=ca+336+015&1,1,,1,0/ startreferer//search~S5*spi/cA+336%2F015/ca+336+015/1,1,1,E/frameset&FF=ca+336+015&1,1,/ endreferer/>. 137 Artur ANSELMO, Les Origines de l’imprimerie au Portugal. Braga, Barbosa & Xavier, Février 1983, 409. 138 Julián MARTÍN ABAD, Los primeros tiempos de la imprenta en España (c. 1471-1520), Madrid, Ediciones del Laberinto, © e DL 2003 (ISBN 84-8483-086-1), 57. 135 148 Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação, no Flos Sanctorum de 1513 não aconteceu nas cópias impressas na Ls.Bur.1499 e no FSlp.Lis.1513. Esta é uma hipótese de trabalho, que pode ser confirmada ou infirmada por investigações posterores. Ao falar aqui do Fs.Sev.1540 e das suas relações com as xilogravuras entalhadas em Saragoça na oficina aí estabelecida por Paulo Hurus, não posso deixar de referir uma imagem que faz parte das minhas pesquisas actuais139. Nesta obra figura a estampagem de uma entalhadura, representando uma Trindade trifacial com scutum fidei rodeada pelo tetramorfo (fig. 24), que é cópia muito fiel (das mesmas dimensões, 88x66 mm.) de uma outra estampada pela 1ª vez na oficina de Paulo Hurus em 1494 (fig. 23a), como noticiei no meu artigo para as Actas do IV Congresso Internacional de Cister em Portugal e na Galiza, realizado em Braga e Oseira nos dias 1,2 e 3 de Outubro de 2009. Essa entalhadura reestampada, quando a oficina já está dirigida por Jorge Coci, na 1ª edição do Flos Sanctorum renascentista140, em 1516 (88x66 mm.) (fig. 23b), mas será substituída por outra (fig. 26) na 2ª edição desta obra, de 1521 (Fs. Zar.1521-33, Iª parte, fol. 109), que depois será reimpressa em todas as edições saragoçanas desta obra – estampa bastante mais pequena (63x41 mm.), pelo menos até à edição de 1548 (BnP). Na 1ª edição da Iª Parte do Flos Sanctorum de Villegas será estampada uma entalhadura (fig. 25) copiada da que foi impressa na oficina saragoçana desde Paulo Hurus em 1494 a 1516, já por Jorge Coci, mas de dimensões um tudo nada mais pequenas (82x61). A figura de mulher deitada, despida da cintura para cima, que foi desoberta na igreja do santuário de Balsamão (fig. 1), parece poder identificar-se com uma santa penitente, dado o tipo de penitência medieval consignado na legenda dos Santos Coroados e o costume de representar as Santas Marias penitentes (a Egipcíaca e a Madalena) na posição alongada, no interior de uma gruta. A representação da Madalena só coberta só com um manto tapando o corpo da cintura para baixo é comum nos finais do século XVI. Vejam-se, por exemplo, dois casos, em que ela assim aparece, embora não deitada, como no fresco basamanense: em Portugal, a tela (207x134 cm.) que Francisco Venegas, (?1594) pintou a óleo, por volta de1590, óleo sobre tela para a Igreja da Graça, em Lisboa141; e, na vizinha Espanha, os dois relevos em madeira dourada «A representação de Deus uno e trino», tema do programa de investigação de pós-doutoramento que desenvolvo actualmente, mercê de uma bolsa concedida para o efeito pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia. 140 Assim designa José ARAGÜÉS ALDAZ os Flores Sactorum compilados pelos monges jerónimos Fr. Gonzalo de Ocaña e Fr. Pedro de la Vega, em Tendencias y realizaciones en el campo de la Hagiografía en España, art. cit., e em Para el estudio del Flos Sanctorum Renacentista (I), art. cit. 141 Reproduçaão, v. g., em: MONJAS DOMINICANAS do LUMIAR (coord.)) Monjas Dominicanas: presença, arte e património em Lisboa, Lisboa, Alétheia Editores, Dezembro de 2008, 141; e em: <http:// www1.ci.uc.pt/artes/6spp/imagens/venegas_madalena1.jpg>. 139 149 Fr. António-José de Almeida, O.P. e policromada (116x58x5, cada um), atribuídos a Juan de Arriaga o Artega, do último quatel do séc. XVI, existentes na igreja paroquial de San Miguel Arcángel, em Caltojar (Sória)142. No caso da Egipcíaca, a tradição manuscrita de Alcobaça refere a dádiva do manto por parte de S. Zózimo, no qual a Santa se envolveu143: «E logo [Zozimas] desvistyo huũ pano mui velho que trazia e lançoulho [a Mª Egipcíaca], cõ a face tornada a outra parte. E ella tomou-o e cingê-o arredor de sy, assy como pôde, e cobryo a parte necessarya do corpo e teve mentes ao santo homẽ (...)» (Versão V – Alcobacense CCLXVI/Livraria 2174) «E el [Zozimas], com a face atras tornada emviou-lhe huũ pano muyto velho que tragia vestido com que cobrisse sua vergonça. Ella tomou-o e cingê-o arredor de sy e cobryo a parte necessaria de seu corpo. E teve mẽtes ao sancto homẽ (...)» (Versão W – Alcobacense CCLXX/ Livraria 771) Formulo aqui a hipótese de se tratar de Santa Maria Egipcíaca, a santa penitente no deserto, devido à intercessão de Nossa Senhora, a quem a nossa ermida é dedicada, e a quem a nossa santa constantemente invocava, no meio das tentações. Transcrevo, em seguida, a belíssima oração que Maria Egipcíaca dirigiu a Nossa Senhora, representada no ícone colocado no átrio da Basílica da Anástasis144, em Jerusalém: «Sainte Vierge, qui donna sa chair à Dieu le Verbe, je sais, je sais qu’il est indécent qu’une femme aussi impure et vicieuse contemple ton icône, Vierge très Sainte et pure, à toi, qui a préservé ton corps et ton âme de toute impureté et de toute souillure. Vicieuse comme je le suis, je dois à juste titre inspirer la colère et la répulsion à ta pureté. Si, comme je l’ai entendu dire, Dieu, qui naquit de toi, s’est fait homme pour amener les 142 Catálogo da exposição Paisaje interior, Soria, Las Edades del Hombre, 2009, 415, cat. nº 105, (comentário de Ana CASTRO SANTAMARÍA, 415-417). 143 Cristina SOBRAL, Santa Maria Egipcíaca em Alcobaça (tese Mestrado), ed. cit., 1991, 101 e 159, respectivamente. 144 Conhecida no Ocidente como Basílica do Santo Sepulcro, que engloba a colina do Calvário e a Rotunda do Túmulo Vazio. 150 Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação, no Flos Sanctorum de 1513 humains au repentir, viens en aide à une femme solitaire, qui ne peut attendre d’aide de personne. Ordonne que l’entrée de l’église me soit ouverte, ne me prive pas de la possibilité de contempler la Croix sur laquelle fut cloué en chair Dieu que tu mis au monde et sur laquelle il versa son Sang pour mon rachat. Ordonne que me soit rendue possible la sainte prosternation devant la Croix. Je t’invoque comme sûre garante devant Dieu, ton Fils, que je ne souillerai plus jamais ce corps par un accouplement honteux, mais, sitôt que j’aurai vu la Sainte Croix de ton Fils, je renoncerai au monde et à tout ce qu’il contient et me retirerai là où tu me l’ordonneras et me conduiras, Sainte Garante de mon salut».145 Lembremos que Santa Maria Egipcíaca recebeu a Eucaristia como viático na Quinta-feira de Endoenças e morreu na Sexta-feira Santa. Se o nicho na parede, que a figura feminina tem à frente da cabeça, é o vestígio de um sacrário parietal, como Joaquim Inácio Caetano suspeita, então este seria mais um dado a corroborar a minha hipótese. Uma versão próxima dos textos encontrados nos manuscritos alcobacenses146, mais longos que a legenda breve recolhida pelo Beato Jacobo de Vorágine O.P., pode muito bem ter sido do conhecimento dos cistercienses transmontanos e essa narrativa ter chegado ao encomendante dos frescos balsamanenses. No conjunto afrescado que se conserva junto da cabeçeira da igreja de Nossa Senhora de Balsamão, do lado o Evangelho (fig. 27), S. João Baptista apondando o Cordeiro de Deus seria, segundo esta hipótese, uma «figura de convite» sobre o sacrário, lembrando a comunhão que Maria Egipcíaca recebeu na igreja dedicada a esse santo nas margens do rio Jordão, antes de se adentrar no deserto, e o eremita ao lado do Precursor seria São Zózimo, que encontrou a Santa no deserto e lhe levou a sagrada comunhão, como viático. Não posso deixar de referir aqui o fresco de Assis, na basílica inferior de S. Francisco, na capela de Santa Maria Madalena, o nº 5, em que é figurado o encontro de um eremita com uma santa mulher numa cova, identificada como Santa Maria Madalena, mas que mais lembra a vida de Santa Maria Egipcíaca.147 Madalena é, pois, também uma forte candidata, mesmo que confundida com a Egipcíaca, tanto mais que ela foi objecto da pregação dos Mendicantes148, como 145 Trascrevo a tradução em francês do texto de S. Sofrónio de Jerusalém – <http://www.pagesorthodoxes.net/ saints/marie-egyptienne.htm#mir>. 146 Cristina (Maria Matias) SOBRAL, Santa Maria Egipcíaca em Alcobaça: edição crítica das versões medievais portuguesas da lenda de Maria Egipcíaca, Lisboa, [Colibri], 1991. Tese de mestrado em Literatura Portuguesa, apresentada ao Departamento de Literaturas Românicas, da Fac. de Letras da Univ. de Lisboa. 147 <http://www.gliscritti.it/gallery2/v/assisigiottomaddalena/eremita.jpg.html> 148 Katherine Ludwig JANSEN, The Making of the Magdalen: Preaching and Popular Devotion in the Later 151 Fr. António-José de Almeida, O.P. é o caso desta série na igreja inferior do Sacro Convento dos Franciscanos, em Assis. Além disso, os Frades Pregadores (Dominicanos) têm-na como padroeira da Santa Pregação e da Teologia, invocando-a nos seus textos litúrgicos próprios, à semelhança do que acontece na Igreja Oriental, como a «Apóstola dos Apóstolos». No Milagre de Soriano, ela acompanha Nossa Senhora, juntamente com Santa Catarina de Alexandria, padroeira da Filosofia e da Ciência Cristã. E na mentalidade popular ocidental as duas santas confundiram-se desde muito cedo. Quanto à iconografia dos outros dois personagens (S. João Baptista e o Eremita), espero poder consagrar-me a eles mais pormenorizadamente num futuro artigo. Avanço no entanto aqui algumas hipóteses, por etarem relacionadas com a possível identificação da figura feminina. Fr. António-José de Almeida, O.P. Investigador de Pós-Doutoramento (Universidades de Estrasburgo e do Porto) Bolseiro da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia Investigador do CITCEM Middle Ages, Princeton (New Jersey), Princeton University Press, 2000 (ISBN13: 978-0-691-08987-4). 152 Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação, no Flos Sanctorum de 1513 Figuras 1 Fig. 1 - Igreja de Nossa Senhora de Balsamão, Chacim (Macedo de Cavaleiros), Mulher deitada (foto Joaquim I. Caetano) 2 3 4 6 5 7 Santa Maria Egipcíaca Fig. 2 - Flos sanctorum Romançat, Barcelona, Joan Rosenbach, 1 Fevereiro 1494, f. CXXIIII [sic, aliás 104] a. Fig. 3 - Leyenda de los Sanctos, [Burgos, Juan de Burgos, c.1499], f. 74 c. 153 Fr. António-José de Almeida, O.P. Fig. 4 - Flos sanctorum em linguagem português, Lisboa, Hermão de Campos & Roberto Rabelo, 15 Março 1513, f. 57 c. Fig. 5 - Fr. Pedro de la VEGA, O.S.H., Libro que es llamado vida de Jesu christo y de sus sanctos, Sevilla, Juan Cromberger, 1540, f. 221 b. Fig. 6 - Fr. Diogo do ROSÁRIO, O.P., História…dos Santos, Braga, António de Mariz, 1567, II, 168 c – “S. Hilarion.” Fig. 7 - Leyenda de los Santos: que vulgarmente Flossanctorum llaman, [Sevilla, Juan Varela de Salamanca, ca. 1520-1521], f. 57v. 8 9 Fig. 8 - Fr. Gonzalo de OCAÑA, O.S.H., La vida y pasión de nuestro señor Jesu Cristo, y las historias de las festividades de su santísima madre con las de los santos apóstoles, mártires, confesores, y vérgines, Zaragoza, Jorge Coci, 26 Abril 1516, [II], f. 168 v. Fig. 9 - Leyenda de los Santos: que vulgarmente Flos Sanctorum llaman, Sevilla, Juan Gutierrez, 1568, f. 56 d. Sta. Maria Madalena Fig. 10 - Flos sanctorum Romançat, Barcelona, Joan Rosenbach, 1 Fev. 1494, CLXXIX [sic, aliás f. 157] a. Fig. 11 - Leyenda de los Santos, [Burgos, Juan de Burgos, ca. 1499], f. 133 c. Fig. 12 - Flos sanctorum em linguagem português, Lisboa, Hermão de Campos & Roberto Rabelo, 15 Março 1513, f. 103 a. Fig. 13 - Fr. Pedro de la VEGA, O.S.H., Libro que es llamado vida de Jesu christo y de sus sanctos, Sevilla, Juan Cromberger, 1540, f. 303 d. Fig. 14 - Fr. Pedro de la VEGA, O.S.H., La vida de nuestro señor iesu cristo, y de su sanctissima madre, y de los otros sanctos, segun la orden de sus fiestas, Zaragoza, George Coci Aleman, 1541, f. 288 r., est. dir. (reestampagem de LdH.Aug.1488, S., f. 72 r) 154 Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação, no Flos Sanctorum de 1513 10 11 12 13 14 Fig. 15 - Fr. Pantaleão de AVEIRO, O.F.M., Itinerario da Terra Sancta... (Lisboa, [António Álvares], 1600, f. [XII] depois da ‘taboadas’. Fig. 16 - Leyenda de los Sanctos: que vulgarmente Flos Sanctorum llaman, Sevilla, Juan Gutierrez, 1568, f. 109 a. 16 15 155 Fr. António-José de Almeida, O.P. Quatro Santos Coroados 17 18 19 20 Fig. 17 - Flos sanctorum Romançat, Barcelona, Joan Rosenbach, 1 Fev. 1494, f. CCLXXXVII [sic, aliás 265] a (reestampagem da xilogravura impressa na Legenda aurea sanctorum, Lyon, Mathias Huss, 20 Julho 1486, legenda 160). Fig. 18 - Leyenda de los Santos, [Burgos, Juan de Burgos, ca. 1499], f. 208 d. Fig. 19 - Fr. Pedro de la VEGA, O.S.H., Libro que es llamado vida de Jesu christo y de sus sanctos, Sevilla, Juan Cromberger, 1540, f. 462 a. Fig. 20 - Leyenda de los Santos: que vulgarmente Flossanctorum llaman, [Sevilla, Juan Varela de Salamanca, ca. 1520-1521], f. 169v. 21 156 22 Vidas e ilustrações de Santas penitentes desnudas, no deserto e em peregrinação, no Flos Sanctorum de 1513 Fig. 21 - Leyenda de los Sanctos: que vulgarmente Flos Sanctorum llaman. Agora de nueuo corregida..., Toledo, Juan Ferrer, 1554, f. 165 b. Fig. 22 - Leyenda de los Sanctos: que vulgarmente Flos Sanctorum llaman, Sevilla, Juan Gutiérrez, 1568, f. 173 b. Santíssima Trindade trifacial 23a 23b 24 25 26 Fig. 23a - Andrés de ELI, Tesoro de la Pasión, Zaragoza, Paulo Hurus, 1494. Fig. 23b - Fr. Gonzalo de OCAÑA, O.S.H., La vida y pasión de nuestro señor Jesu Cristo, y las historias de las festividades de su santísima madre con las de los santos apóstoles, mártires, confesores, y vérgines, Zaragoza, Jorge Coci, 26 Abril 1516, [I], f. 90 a. Fig. 24 - Fr. Pedro de la VEGA, O.S.H., Libro que es llamado vida de Jesu christo y de sus sanctos, Sevilla, Juan Cromberger, 1540, f. 134 a. Fig. 25 - Alonso de VILLEGAS, Flos Sanctorum, Iª Parte, Zaragoza, Simon de Portinariis, 1585, f. 53 d. Fig. 26 - Fr. Pedro de la VEGA, O.S.H., Flos Sanctorum, Zaragoza, Bartolomé de Nágera, 1548, f. 127 a. 157 Fr. António-José de Almeida, O.P. 27 Fig. 27 - Balsamão, Chacim (Macedo de Cavaleiros), Visão geral da zona afrescada sobrevivente (foto Joaquim I. Caetano) ABSTRACT: The attempt to identify a recumbent, half-naked female figure, which was recently discovered in a wall painting in the Church of Our Lady of Balsamão, in Chacim (Macedo de Cavaleiros, Trás-os-Montes), prompted the author of this paper to investigate the lives and illustrations of penitent naked female saints on Legendaries printed in Europe during the 15th and 16th centuries, with particular reference to the Iberian Peninsula, and specifically to the Flos Sanctorum em lingoagem portugues, printed in Lisbon at 1513. In them there are two kinds of naked female saints linked with penitential forms of life: those that lived in desert or uninhabited places (such as Saint Mary of Egypt or Saint Mary Magdalene), but also those that had went on pilgrimage (the three women of the Iberian legend of the Four Crowned Saints).In connection with his current subject of research, the author takes this opportunity of publishing also the results of his recent research in the field of prints illustrating the trifacial Holy Trinity holding the scutum fidei, and surrounded by the Evangelical tetramorph. 158 La noble penitencia: caballeros y damas penitentes en la literatura profana de los siglos XV y XVI Bien es sabido que la literatura profana de los siglos XV y XVI se nutre de motivos populares más o menos reconocibles, procedentes de ámbitos muy diversos. En la narrativa de ficción resulta particularmente interesante observar que algunas de las aventuras más características se elaboran sobre modelos que formaban parte del universo propio del discurrir vital de figuras ligadas, de uno u otro modo, al ámbito espiritual y que, a esas alturas, formaban ya parte ineludible del imaginario ejemplar dentro de la moral cristiana. Son muchos los casos en los que podemos rastrear modelos de comportamiento y situaciones afines al universo espiritual, sin que esto signifique, necesariamente, que los autores compusieran sus ficciones atendiendo exclusivamente a esos modelos. Hay que pensar, más bien, en arquetipos narrativos comunes a diferentes épocas y tradiciones literarias, o - lo que resulta mucho más plausible y no invalida la explicación anterior - en una hábil reutilización de motivos que se sabía resultaban efectivos; una suerte de catálogo inmediato de hechos extraordinarios y maravillosos, que excitarían la fantasía de los lectores, pero que no implicaban una dependencia directa. Sin embargo, parece fuera de toda duda que tanto los autores como los lectores eran conscientes de estas evidentes relaciones, y de que eran utilizadas para resaltar un cierto paralelismo entre ambas situaciones1. Como ya indicamos en otra ocasión, los motivos bíblicos resultan particularmente fructíferos para la elaboración de la ficción narrativa; no en vano, el ideal de caballería y la esencia de la función caballeresca se formuló básicamente sobre modelos bíblicos de comportamiento. Véase María Isabel TORO PASCUA, La Biblia en la literatura de ficción en la Edad Media, in Gregorio del Olmo Lete (dir.), La Biblia en la literatura española. I/1. Edad Media. El imaginario y sus géneros. Madrid, 2008, 237-270. No podemos olvidar que la mayoría de los esquemas narrativos de la Biblia responden a patrones míticos en los que se desarrollan conflictos universales, no exclusivos de este texto; muchos de ellos se repiten en la literatura, bien por influjo directo del relato bíblico, bien merced al conocimiento popular o folclórico del patrón narrativo. Véanse los trabajos de Northrop FRYE, History and Myth in the Bible, in The Literature of Fact, New York, 1976 y, con un desarrollo más amplio del tema, The Great Code. The Bible and Literature, New York, 1982. 1 159 María Isabel Toro Pascua Por este camino, no resulta extraño que algunos personajes de estas narraciones se transfiguren en penitentes. Si bien la función de este argumento es muy diferente según el contexto narrativo al que nos acerquemos, es posible establecer una suerte de tipología en la que podemos diferenciar los distintos usos y funciones de este motivo en la prosa de ficción de los siglos XV y XVI, atendiendo, por un lado, al espacio y las circunstancias en que se desarrolla la penitencia y, por otro, al papel que tal argumento desempeña en el cañamazo estructural de la narración. En primer lugar, nos las habemos con aquellos casos en los que la penitencia se desarrolla en el contexto de una peregrinación. Lejos de combinarse ambos argumentos (el penitencial y el de la peregrinación, como parecería lógico), vemos que el primero de ellos sirve, únicamente, como punto de partida con el que justificar el segundo; esto es, la penitencia que debe soportar el personaje al comienzo de la historia es utilizada, exclusivamente, como punto de partida sobre el que se asienta toda la estructura itinerante de la narración, narración ajena en su desarrollo posterior a los motivos propios de la penitencia, que desaparece por completo de la historia. Las calamidades y los sufrimientos que habrá de soportar el protagonista son interpretados en un contexto totalmente diferente: el de la demostración de la nobleza arquetípica dentro de los parámetros caballerescos y, en ningún caso, espirituales. En definitiva, son las pruebas típicas impuestas al héroe, o a la heroína, en el relato de caballerías. En estos casos, además, la penitencia, voluntaria o no, suele ser injusta para quien la cumple, puesto que con ella purga un pecado que no ha cometido. En segundo lugar, encontramos la penitencia que se desarrolla en lugares cerrados e inhóspitos. Al contrario de lo que sucedía en el caso anterior, el argumento penitencial se utiliza aquí como desenlace último de la historia, casi a modo de deus ex machina que se impone inevitablemente como único medio a través del cual es posible resolver los acontecimientos narrados. En estos contextos, la penitencia es siempre impuesta (ya sea por el mismo Dios o ya sea por otros actantes de la historia) y responde al merecido castigo exigido por la rupura de un férreo código de comportamiento que desestabiliza de forma absoluta el orden caballeresco, orden que solo puede ser restablecido a través de la penitencia, en una suerte de justicia narrativa final. Por último, en algunas obras el motivo penitencial se desarrolla en el apartamiento del desierto, considerado en la literatura religiosa no solo como lugar de contemplación y de realización del contemptus mundi, sino también en el hábitat idóneo para el fortalecimiento espiritual mediante la resistencia a las fuerzas del mal en una suerte de ascesis personal; tema que, desde luego, se imbrica de forma directa con la figura del ermitaño2. En la prosa de ficción, 2 160 Véase, entre otros, Daniel DE PABLO MAROTO, Historia de la espiritualidad cristiana, Madrid, 1990, 76. La noble penitencia: caballeros y damas penitentes en la literatura profana de los siglos XV y XVI sin embargo, lejos de pretensiones espirituales de este tipo, el argumento queda reducido a un simple motivo que no incide de forma directa en el cañamazo estructural de la historia, como sí sucede en los dos casos antes señalados, sino que se suma a otros tantos, de procedencia muy diversa, para reproducir arquetipos de comportamiento que contribuyen únicamente a la caracterización del caballero como perfecto enamorado que, solo temporalmente y de forma voluntaria, adquiere el disfraz propio del penitente. 1. La penitencia como peregrinación. Inicio del itinerario narrativo Dentro de este primer tipo nos encontramos con situaciones muy diversas, si bien todas ellas responden, en última instancia, a los motivos previos, y siempre injustos, que abocan al personaje al estado penitencial. Uno de estos motivos es la existencia de una falsa acusación, de manera que el argumento penitencial se imbrica, además, con otros motivos de origen bíblico, como el de las mujeres acusadas de mantener relaciones antes o fuera del matrimonio (Deut 22,20-21), y la petición de someterse a una ordalía para librarse de esas acusaciones, como la relatada en Num 5, 11-28, a la que también se somete María en el Protoevangelio de Santiago 16,2 y en el Evangelio del Pseudo Mateo, 12, 3. Entre los textos en los que esta utilización resulta evidente contamos con la Historia de la reina Sebilla, obra que procede de una gesta francesa, la Chanson de Sebille, en la que se relatan las peripecias de la esposa de Carlomagno tras ser acusada de adulterio y desterrada de la corte3. Aunque en este caso las implicaciones con el contexto más estríctamente espiritual pudieran resultar muy claras, lo cierto es que el motivo de la penitencia solo explica el inicio de la ficción novelesca y permite que esta discurra por los derroteros de la ejemplaridad caballeresca y cortesana al uso, si bien la insistencia en esta ejemplaridad permitió la lectura de la obra como relato edificante, e incluso casi hagiográfico, tal y como parece indicar la inclusión de la versión manuscrita en el códice h-I-13 de la Biblioteca del Escorial, una suerte de antología de nueve relatos entre los que se cuentan las vidas de Santa María Egipciaca, Santa María Madalena o Santa Marta. En todo caso, el siglo XVI vuelve a reinterpretarla dentro de un grupo de relatos caballerescos, y, como tal, ha sido editado recientemente; no en vano, su aspecto edificante, más allá incluso de la tantas veces mencionada ejemplaridad caballeresca, queda bastante atenuado a la luz de los parámetros narrativos que guían toda la novelita4. La obra circuló en castellano, por lo menos, desde el siglo XIV (conservamos una versión manuscrita bajo el título Noble cuento del emperador Carlos Maynes y de la reina Sebilla, su mugier), y fue editada en seis ocasiones entre c.1500 y 1623, 4 Véase la introducción a esta obra y la edición de la misma de Nieves BARANDA, Historias caballerescas 3 161 María Isabel Toro Pascua El argumento comienza ya con la falsa acusación de adulterio que el grotesco y lascivo enano lanza contra la reina Sebilla, después de que esta haya rechazado sus requerimientos de amores; requerimientos que, incluso, conducen al malvado personaje a meterse, impunemente, en la cama de la reina dormida para ser sorprendido así por el propio Carlomagno. A partir de este momento, los acontecimientos se precipitan: Sebilla es condenada a morir en la hoguera, momento en el que descubre ante todos que está encinta del rey, con lo que la pena de muerte es aplazada hasta el nacimiento de la criatura. La reina será entonces desterrada y obligada a hacer penitencia durante una larga peregrinación que le conducirá hasta Hungría, donde pare y cría a su hijo, cuyo destino será el de restituir la honra de su madre mediante el ejercicio bélico al mando de un poderoso ejército renunido por el emperador de Constantinopla, padre de Sebilla, y el Papa. «E quando esto oyeron los ricos hombres, ovieron gran plazer y agradesciérongelo mucho. Dixo el rey: ­– Dueña, por aquel Señor que es en trinidad, porque me avedes escarnescido, que si vos oviéssedes muerto a mi padre y a mi madre y a todo mi linage, no vos haría mal, que tal es mi voluntad. Mas vos salid de mi tierra, que si de mañana en adelante en ella vos hallo, por la cristiandad que yo tengo, yo vos haré destruir, que no vos valgan quantos en el mundo son. Dixo la reina: – Señor, ¿dó irá esta cativa quando de vos se partiere?, que yo no sé el camino ni el sendero. – Dueña, no sé qué será de vos, mas de hazerlo vos conviene y Dios vos guiará según que vos merescedes. El rey acató enderredor de sí y vido un cavallero en que se fiava mucho y muy leal y muy bueno, de buenas maneras y buen cavallero d’armas, que llamavan Auberín de Mondiser, e dixo el rey: – Auberín de Mondiser, ir vos conviene con esta dueña hasta que sea fuera del monte y, después que la sacáredes, irse ha por el gran camino derechamente para el apostólico de Roma y manifestarse ha de sus pecados, y tomará dellos penitencia, que mucho fue errada quando se echó con el enano. del siglo XVI, Madrid, 1995. Nuestras citas del texto están tomadas de esta edición, por lo que solo indicaré la página entre paréntesis. 162 La noble penitencia: caballeros y damas penitentes en la literatura profana de los siglos XV y XVI Dixo Auberín de Mondiser: – Señor, yo haré vuestro mandado.»5 Pese a este inicio de la historia, tras el mandato de Carlomagno y la partida de la reina, los acontecimientos se centran en las desventuras que la noble Sebilla ha de sufrir en su itinerario, sin que en ningún momento vuelva a aparecer la esfera temática penitencial, ni aún la de la peregrinación. Por el contrario, el anónimo autor nos cuenta la traición de Macaire, que mata al caballero Auberín, y la fidelidad de Baruquel como nuevo acompañante de la dama tras encontrarla perdida en el monte junto al perro de Auberín, también fiel en todo momento a Sebilla. Tras el nacimiento de Luis, el hijo de Carlomagno y su injustamente acusada esposa, el relato discurre a través de los preparativos de la batalla final, en la que el orden en la corte de Carlomagno quedará finalmente restituido. En este sentido, es importante destacar el capítulo 14, en el que aparece el esperado y acostumbrado ermitaño de este tipo de obras; sin embargo aquí, a pesar de las clarísimas referencias a los tópicos más manidos en la configuración de este personaje, incluso con connotaciones eucarísticas, muy lejos de convertirse en consejero espiritual del joven infante o de la propia reina que parte de su casa como peregrina penitente, decide abandonar su vida eremítica tras treinta años de absoluto apartamiento para dedicarse de lleno a la hazaña bélica. El episodio evita, en todo momento y de forma explícita, los aspectos edificantes o ejemplarizantes que el propio motivo colocaba tan fácilmente en la pluma del autor, y lo hace, además, en un giro brusco que desvía de forma muy llamativa el papel del ermitaño en el devenir de la historia: «Y tanto que llegaron a la hermita, vieron la casa del hermitaño y la puerta, que era muy pequeña, y a la entrada avía una campanilla colgada en una finiestra. Y Baruquel tocó la campanilla y el hermitaño que estava en oración maravillóse mucho quando oyó llamar, porque muy gran tiempo avía que estava allí en aquel desierto y nunca en aquel tiempo avía visto ni oído persona alguna, sino las bestias fieras que por aí andavan. Por lo qual fue muy turbado pensando que era alguna tentación del diablo. Empero tornó en sí y encomendóse a Dios y a Sancta María su madre, a quien era muy devoto, y salió fuera [...] Y luego el hermitaño entró en su celda y sacó un pan de ordio y de avena, y no lo quiso partir con su cuchillo, mas partiólo con las manos y hizó dél quatro partes y dio a cada uno la suya. Y quando ovieron 5 Noble cuento del emperador Carlos Maynes y de la reina Sebilla, su mugier, 426. 163 María Isabel Toro Pascua comido, la reina Sebilla llegóse al hermitaño y començó a fablar con él, y dixo: – Señor, consejadme, que mucho lo he menester. El hermitaño le dixo: – Dueña, ¿de dónde sois y de qué tierra venís?6 La reina cuenta entonces su historia, ante lo cual la respuesta del ermitaño no deja lugar a dudas con respecto a este desplazamiento que venimos comentando: « – Dueña, vos sois mi sobrina y no pongáis en ello dubda. Pero yo vos diré qué hagáis: conviene que vos holguéis aquí y yo iré al apostólico de Roma y darle he desto querella y contarle he todo vuestro fecho, y él porná sentencia de descomunión sobre Carlos si vos no quisiere recebir. Y después iré a vuestro padre el emperador a contarle todo esto, y hazerle he llegar sus huestes y iremos a guerrear a Francia. E si Carlos no vos quisiere recebir, no le fallecerá guerra, en manera que lo echemos de la tierra con deshonra. Y quiérome partir desta hermita y tornarme he al siglo a traer armas, y el trabajo que hasta aquí rescebí, todo lo quiero dexar y pugnar en vos tornar en vuestro reino.»7 Parece claro que la penitencia impuesta al comienzo de esta pieza no es más que un motivo con el que incidir en la injusticia cometida contra la protagonista, infiriendo a la narración una simple referencia que funciona como recurso conmovedor ante los receptores, pero que no se integrará, en ningún momento, en la estructura narrativa posterior8. Noble cuento del emperador Carlos Maynes y de la reina Sebilla, su mugier, 427. Noble cuento del emperador Carlos Maynes y de la reina Sebilla, su mugier, 428. No solo es una falsa acusación la que provoca la necesidad penitencial; en otras ocasiones es la obligación de purgar un pecado heredado. Es lo que nos encontramos en una obra anterior al período del que aquí nos ocupamos, el Libro del caballero Zifar, escrita hacia 1330-1340 (véase Juan Manuel CACHO BLECUA, Los problemas del Zifar, in El caballero Zifar. Códice de París, ed. Francisco Rico y Rafael Ramos, Barcelona, 1996, 55-94). El libro narra la historia de Zifar y su familia que, como castigo por los pecados de su antepasado, el rey Tared, arrastran una maldición: en concreto, ningún caballo le dura más de diez días. Agobiados por su situación, abandonan el reino de Tarta, en la India, e inician un largo peregrinar en un intento por buscar un futuro mejor para él y sus hijos a través del sacrificio personal y de las continuas veces que Dios le pondrá a prueba y que Zifar aceptará con cristiana resignación. Bien es verdad que, en este caso, la narración sí discurre por derroteros cercanos a los de la hagiografía, y que no en vano presenta muchas similitudes con la vida de san Eustaquio; y también lo es que el relato entero puede incluso interpretarse como una Biblia en miniatura (véase María Isabel TORO PASCUA, La Biblia en la literatura de ficción en la Edad Media, ed. cit., 249-252). Pero no podemos pasar por alto el hecho de que en la novela todo esto se asienta sobre un motivo añadido que sirve de arranque inicial y que no podemos obviar: la necesidad, de nuevo, de 6 7 8 164 La noble penitencia: caballeros y damas penitentes en la literatura profana de los siglos XV y XVI 2. La penitencia en lugares cerrados e inhóspitos. Desenlace narrativo Por lo que se refiere al segundo de los tipos establecidos, hay que destacar que, también en estos casos, nos las habemos con una forma de ejemplificación edificante dentro de los tópicos caballerescos y al margen de principios espirituales. La penitencia, en definitiva, se impone sobre elementos ficcionales ajenos del todo a un pretendido sentido espiritual del personaje o de la propia historia narrada; bien al contrario, nos pone de manifiesto los principios de comportamiento exigidos por el código del honor, dentro de los cuales la penitencia no es más que un castigo necesario, aun en los casos en los que vaya acompañada también del arrepentimiento y de la misericordia divina. Este motivo es parte integrante fundamental en el desenlace de la historia del rey don Rodrigo, tal y como nos es narrada en la Crónica del rey don Rodrigo, conocida también como Crónica sarracina, tradicionalmente atribuida a Pedro del Corral y fechada hacia 1430. Se trata, en realidad, de una fabulación novelesca sobre el cañamazo histórico que proporcionaba la leyenda de la pérdida de España, por lo que nos encontramos con que la primitiva historia de don Rodrigo y la Cava se ha convertido en todo un relato de caballerías9. Tal y como nos narra la leyenda aquí recogida, el conde don Julián, gobernador de Ceuta, había dejado a su hija Florinda, o Cava, al cuidado de don Rodrigo; este pronto siente una pasión irrefrenable por la muchacha que, finalmente, le lleva a violarla; Florinda se queja a su padre, quien, para vengarse de la afrenta recibida, abre el paso a los musulmanes y con ello les permite la invasión de la península. La pérdida de España se convierte así en el castigo por el pecado de lujuria cometido por el rey, pecado que tendrá que limpiar mediante una dura penitencia; primero, con su deambular solitario por la tierra perdida, en la que sobrevive gracias al alimento que le proporciona un simple pastor, y, después, con el castigo impuesto por Dios a través de un santo ermitaño: el rey debe ser encerrado en un sepulcro junto con una serpiente que comenzará a devorarle por los órganos sexuales, símbolo de la lujuria que originó la desgracia del reino, hasta causarle la muerte. La leyenda sobre la penitencia y muerte del rey Rodrigo nació en el siglo XIV a restablecer el código de conducta caballeresco, aunque sea en la órbita de la caballería cristiana, a través de las penas impuestas por Dios y de la mortificación personal del protagonista; por mucho que la esfera más puramente penitencial no se haga explícita y se carguen las tintas en la caracterización del personaje como el perfecto cristiano, lo cierto es que, al menos por lo que respecta al discurrir narrativo, toda la actuación de Zifar responde a la necesidad de limpiar los pecados, no purgados en su momento, del rey Tared. 9 Téngase en cuenta que en la contrucción de todo ese mundo fantástico los elementos procedentes del ámbito religioso jugaron un papel muy importante, pues proporcionaron motivo de inspiración para muchas de sus aventuras. En buena medida, el personaje del rey don Rodrigo está construido sobre los modelos de David y Salomón: como ellos, llevó a su reino a las más altas cimas de su prosperidad; como ellos, su grandeza lo condujo a la soberbia y sus impulsos libidinosos acabaron apartándolo del buen camino, y, como ellos, sus últimos años de vida estuvieron marcados por el arrepentimiento y la misericordia de Dios (María Isabel TORO PASCUA, La Biblia en la literatura de ficción en la Edad Media, ed. cit., 254. 165 María Isabel Toro Pascua raíz del descubrimiento de la tumba del soberano en Viseo; pronto fue recogida en diversos textos históricos de los siglos XIV y XV, hasta llegar a la Crónica sarracina, de donde se extendió hasta el romancero. En cualquier caso, las connotaciones penitenciales surgidas de esta leyenda no permiten más que considerar el texto de la Crónica como un ejemplo que añadir al corpus literario que gira en torno a la caída de príncipes, dentro del más típico didactismo medieval, pero ajeno a una espiritualidad efectiva y práctica y, por supuesto, a los principios devocionales al uso. El ámbito de la ficción sentimental también se hace eco de esta utilización del argumento penitencial en algunos de sus especímenes, como la Penitencia de amor, de Pedro Manuel de Urrea10. La obra, publicada por vez primera en 1514 y reeditada en 1516, nos relata el enamoramiento de Darino hacia la inflexible Finoya; tras una insistencia desesperada, a través de una serie de cartas que hace llegar a la dama a través de su fiel criado Renedo, el caballero consigue por fin una cita con ella, cita en la que, en un giro inesperado y bastante brusco, se transforma en una especie de Calisto desaforado que termina forzando a la, hasta entonces, doncella. Esta transgresión del código sentimental conducirá, sin remedio, al merecido castigo impuesto por el padre de Finoya, de acuerdo con la ley de Escocia tal y como había aparecido en otra ficción sentimental, Grisel y Mirabella, de Juan de Flores, según la cual el mayor culpable de un delito debía ser castigado a muerte, mientras que el que tuviera menos culpa había de sufrir el destierro11. Tras un debate de generosidad entre los dos enamorados, el rey Nertano, padre de la dama, muestra su lado más piadoso y decide encerrar a los dos amantes en sendas torres, haciendo correr la fama de que Finoya ha muerto y Darino, desesperado, ha decidido terminar sus días vagando por el mundo. «Nertano ¿Esto era lo que yo de ti esperava, hija? Ya es perdido el nombre, pues no as guardado los hechos y dichos de tu madre; el día que perdiste su condición, perdiste su sangre. No meresces que te hable con amor, pues que te as regido sin cordura. Por el amor de padre no te puedo matar, y por amar la virtud no puedo estar sin castigarte; si castigo no te diera, el coraçón me reventara. Pues que tú as dexado de ser Hay que precisar que, aunque haya calificado esta obra como ficción sentimental, nos encontramos en realidad ante una pieza híbrida, en la que se utilizan tanto el género epistolar característico de los relatos sentimentales que siguen la estela de la Cárcel de amor, de Diego de San Pedro, como el diálogo propio del género celestinesco, en una especie de debate ideológico inserto en la propia obra que, finalmente, se dirime con una clara defensa del ideal sentimental sobre el celestinesco. De este asunto me ocupo por extenso en mi edición del Cancionero de Pedro Manuel de Urrea, Zaragoza, 2010; mis citas al texto proceden de esta edición. 11 Véase Barbara MATULKA, The novels of Juan de Flores and their European Diffusion. A Study in Comparative Literature, Nueva York, 1931, 181-184. 10 166 La noble penitencia: caballeros y damas penitentes en la literatura profana de los siglos XV y XVI hija, yo dexaré de ser padre, con el justo desamor que tu malvada vileza merece. El coraçón alterado no çuffre muchas palabras. Tomá vosotros a Darino y a estos dos criados suyos; sallí vosotras, vellacas donzellas, que todos ternéys el pago de la vellaquería y la penitencia del pecado y trayción. Vení acá todos. Sin ningún detenimiento ni alborote seréys puestos e[n] presión, donde acabaréys la miserable vida que os queda. En la torre de mano derecha estaréys vós, Finoya, con vuestras donzellas; y vosotros tres tené cuydado del secreto regimiento que se á de hazer. Y vós, Darino, estaréys en la torre de mano yzquierda; y vosotros ternéys cargo de la manera que se á de regir. No he querido daros muerte a vos, hija, porque el coraçón no me lo á çuffrido; y a vos, Darino, no he querido mataros, por que penéys más. La fama que se porná ha de ser que Finoya, mi hija, es muerta, y assí le haremos las honrras; y de Darino se dirá que se á ydo al cabo del mundo: unos creerán que por veer tierras; otros, que de desesperado se á ydo por la muerte de mi hija, que ya sabían que la quería. Vamos, que ello será tan secreto quanto traydor.»12 Por muy prometedor que parezca el título, es evidente que solo el desenlace ejemplar permite justificar la rúbrica con la que se encabeza la obra entera. La penitencia se impone como castigo, justo y merecido, por el mal proceder de los protagonistas que, de nuevo, rompen el código de comportamiento requerido; nada distinto a lo que hemos visto en relación con el rey don Rodrigo, si bien, en este caso, el código es sentimental más que caballeresco y alejado de cualquier implicación pretendidamente histórica, por lo que la ejemplaridad no transciende más allá del propio relato amoroso, sin las consecuencias que el pecado de un rey, del que deriva la pérdida de todo un reino, puedan tener con respecto a un pretendido didactismo. 3. La penitencia en el yermo. Motivo temporal Por último, en la literatura ficcional en prosa nos las habemos con un tipo de penitencia desarrollada en el desierto y utilizada como simple motivo caracterizador, y no estructural, que convierte al personaje en penitente de amor. A diferencia del de los auténticos penitentes arrepentidos, que lo son por devoción religiosa, el del enamorado es un estado de soledad causal, no una actitud de espíritu. Mientras que los primeros fueron llevados o impulsados por el espíritu de Dios al yermo, el penitente enamorado es voluntarioso, si bien seguirá en su proceder los parámetros religiosos como modelos de comportamiento, en un intento de adaptar la forma de vida espiritual a su 12 Pedro Manuel de URREA, Penitencia de amor. 167 María Isabel Toro Pascua particular penitencia amorosa13. El tema, por lo tanto, podría relacionarse con el tópico literario de la llamada religio amoris, de amplia fortuna en la literatura amorosa de los siglos XV y XVI, tanto en prosa como en verso14. En las letras españolas es suficientemente conocido el caso de Amadís de Gaula, que se torna ermitaño porque su amada, la princesa Oriana, se enoja con él. Bajo el nombre de Beltenebros lleva una vida melancólica de penitente, acentuadamente religiosa, pero fundamentada exclusivamente en la penitencia amorosa que el rendido servidor ofrece arrepentido a su dama. Llama la atención la discreción y escrupulosidad con que el narrador castellano vigila y censura las extravagancias de su héroe, sin ocultar en ningún momento que únicamente son cuidados pasajeros y vanos, y no una devoción anténtica, los que sustentan su huída del mundo y el ascetismo del caballero desesperado, y, lo que es más importante, lo hace a través de un ermitaño auténtico que sirve de confesor y consejero a Amadís durante su temporal retiro: «Amadís se apeó y puso las armas en tierra, y desensilló el cavallo y dexóle pascer por la yerva; y él desarmóse y hincó los inojos ante el buen hombre, y començóle a besar los pies. El hombre bueno lo tomó por la mano, y alçáncolo lo hizo sentar cabe sí y vio cómo era el más fermoso cavallero que en su vida visto havía; pero viole descolorado y las fazes y los pechos bañados en lágrimas que derramava, y ovo dél duelo dixo: - Cavallero, parece que havéis gran cuita, y si es por algún pecado que ayáis hecho y estas lágrimas de arrepentimiento dél os vienen, en buena hora acá naçistes; mas si vos la causa algunas temporales cosas, que según vuestra edad y hermosura por razón no devéis ser muy apartado dellas, membradvos de Dios y demandalde merced que vos traya a su servicio. Recuérdese que en el ámbito caballeresco europeo el caso arquetípico es el de Lancelot, quien, tras la muerte del rey Arturo y el ingreso de Ginebra en un convento, decide convertirse en ermitaño penitente; pese a su nueva condición, la devoción que siente por la reina es absoluta y dura hasta la muerte, buscada por él mismo tan solo seis semanas después de recoger el cadáver de su amada y sepultarlo junto al de Arturo. 14 Son varios los autores que, en mayor o menor medida, se han ocupado del estudio de la religio amoris en la literatura española; entre otros, pueden verse María Rosa LIDA, La hipérbole sagrada en la poesía castellana del siglo XV, in Revista de Filología Hispánica, 7 (1945), 121-130; reed. en su Estudios sobre la literatura española del siglo XV, Madrid, 1977, 291-309; Michael E. GERLI, La «religión del amor» y el antifeminismo en las letras castellanas del siglo XV, in Hispanic Review, 49 (1981), 65-86; Francisco CROSAS LÓPEZ, La religio amoris en la literatura medieval, in La fermosa cobertura. Lecciones de literatura medieval, Pamplona, 2000, 101-128; y María Isabel TORO PASCUA, La Biblia en la poesía de cancionero, en Gregorio del Olmo Lete (dir.), La Biblia en la literatura española, ed. cit., 125-172. 13 168 La noble penitencia: caballeros y damas penitentes en la literatura profana de los siglos XV y XVI Y alçó la mano y bendíxole y díxole: – Agora dezid todos los pecados que se os acordaren. Amadís assí lo fizo, diziéndole toda su hazienda, que nada faltó. El hombre bueno le dixo: - Según vuestro entendimiento y el linaje tan alto donde venís, no os devríades matar ni perder por ninguna cosa que vos aveniesse, cuanto más por hecho de mugeres, que se ligeramente gana y pierde, y vos consejo que no paréis en tal cosa mientes y vos quitéis de tal locura que no hagáis por amor de Dios, a quien no plaze de tales cosas, y ahun por la razón del mundo se devría hazer, que no puede hombre ni deve amar a quien no le amare. - Buen señor - dixo Amadís -, yo soy llagado a tal punto, que no puedo bevir sino muy poco, y ruégoos, por aquel Señor poderoso cuya fe vos mantenéis, que vos plega de me llevar con vos este poco tiempo que durare, y havré con vos consejo de mi alma; pues que ya las armas ni el cavallo no me hazen menester, dexarlo he aquí y iré con vos de pie, haziendo aquella penitencia que me mandades; y si esto no hazéis, erraréis a Dios, porque andaré perdido por esta montaña sin hallar quien me remedie. El bueno hombre, que lo vio tan apuesto y de todo coraçón para hazer bien, díxole: - Ciertamente, señor, no conviene a tal cavallero como vos sois que assí se desampare, como si todo el mundo le falleçiesse, y muy menos por razón de muger [...] - Buen señor - dixo Amadís -, yo no vos demando consejo en esta parte, que a mí no es menester, mas demándovos consejo de mi alma y que os plega de me llevar con vos; y si lo no hizierdes, no tengo otro remedio sino morir en esta montaña. [...] El hombre bueno gelo otorgó mucho contra su voluntad.»15 15 Garci RODRÍGUEZ DE MONTALVO, Amadís de Gaula (1508), edición de Juan Manuel CACHO BLECUA, Madrid, 1987, vol. I, 704-707. 169 María Isabel Toro Pascua Este sufrimiento de Amadís, viviendo como Beltenebros (y, por extensión el de otros personajes afines que reproducen la misma situación), fue perfectamente entendido por Gil Vicente, quien lo dramatizó en una pieza suficientemente conocida, la Tragicomedia de Amadís. No con intención didáctica, sino únicamente con picardía, sitúa frente a la seriedad algo pedante del anacoreta la desesperación aniquiladora del enamorado. Pero, para él, tanto o tan poco valor tiene la soledad del uno como la del otro, y tan falta de devoción auténtica es la del primero como el segundo, como podemos comprobar en el único de los parlamentos en los que se hace referencia a la espiritualidad penitencial. Aproximadamente por la misma época y casi en el mismo tono, un anónimo autor dejaba al descubierto lo exagerado del comportamiento de Amadís, narrado por medio de una serie de excesos que terminan, incluso, con la destrucción absoluta del que fue, en tiempos, el más leal amador. He aquí los textos:1617 ERMITAÑO Padre nuestro en las afrentras de los penosos tormentos, reza porque no los sientas, que los muchos pensamientos piden infinitas cuentas. Dellas pide Satanás, dellas los vanos sentidos, con las unas llorarás y con las otras darás dos mil sospiros perdidos. Las otras cuentas escuras de las membranças passadas que de passar son muy duras serán blandas y seguras con estas cuentas rezadas. AMADÍS Escusado fuera tomar estas cuentas que no cuento, que tantas tengo de dar que me quedan por contar porque sin cuenta las cuento. Y las que dará a Oriana a Dios, que sabe lo cierto, serán cuentas sin concierto, En la selva está Amadís, el leal enamorado; tal vida estaba haciendo cual nunca hizo cristiano. Cilicio trae vestido a sus carnes apretado; con disciplinas destruye su cuerpo más delicado. Llagado de las heridas, y en su señora pensando, no se conoce en su gesto, según lo trae de delgado. De ayunos y de abstinencias andaba debilitado; la barba trae crecida, d’este mundo se ha apartado: las rodillas tiene en tierra, y en su corazón echado, con gran humildad os pide perdón si había errado. Al alto Dios poderoso por testigo ha publicado, y acordándosele había del amor suyo pasado, 16 Gil Vicente, Tragicomedia de Amadis, in Compilaçam de todas las obras, Lisboa, 1562, f. CXLIII (ed. facs., Lisboa, 1928). 17 Romancero General, edición de Agustín DURÁN, Madrid, 1945, vol. I, 185. 170 La noble penitencia: caballeros y damas penitentes en la literatura profana de los siglos XV y XVI porque yo no sé qué gana quien su siervo dexa muerto. ERMITAÑO Este es otro atabio que pertenece al bivir: perdona, hermano mío, porque avéis d’ir a pedir por la calma y por el frío16. que así le derribó de su sentido y estado. Con estas grandes pasiones amortecido ha quedado el más leal amador que en el mundo fue hallado17. Pero, sin duda alguna, quien mejor supo extraer la esencia un tanto estrafalaria de Beltenebros, hasta verterla en episodio cómico, fue Miguel de Cervantes en su capítulo 26 de la primera parte del Quijote. Allí, el caballero manchego se esfuerza en recordar exactamente los pasos que debe seguir para remedar lo más fielmente posible el comportamiento de quien en ese momento le sirve de modelo; la ironía cervantina lleva incluso a que su personaje se entregue a la penitencia solitaria aun sin haber sido desdeñado por la dama y, por ende, sin ni siquiera tener un motivo para hacerlo; su decisión únicamente es debida al convencimiento de que Amadís fue un enamorado más juicioso que Roldán y, por lo tanto, es a él a quien debe imitar para demostrar su devoción por Dulcinea. En el pasaje, como podemos comprobar, no solo brillan por su ausencia los condicionantes religiosos, sino que incluso desaparecen por completo los de tipo amoroso que normalmente llevaban a tal estado en los libros de caballerías. De algún modo, Cervantes pone al descubierto, como otras tantas veces hace a lo largo de su magna obra, los mecanismos narrativos propios de los libros de caballerías con el único fin de desarticularlos, o contrahacerlos, desde su misma génesis; en esta ocasión, lo inadecuado de la traslación desde el contexto penitencial religioso al amoroso literario es el procedimiento que utiliza como forma de parodia e incluso, si cabe, como forma de manifestar lo excesivo de la situación creada mediante la puesta en paralelo del caballero enamorado con el penitente arrepentido. « - [...] veo que Amadís de Gaula, sin perder el juicio y sin hacer locuras, alcanzó tanta fama de enamorado como el que más, porque lo que hizo, según su historia, no fue más de que por verse desdeñado de su señora Oriana, que le había mandado que no pareciese ante su presencia hasta que fuese su voluntad, de que se retiró a la Peña Pobre en compañía de un ermitaño, y allí se hartó de llorar y de encomendarse a Dios, hasta que el cielo le acorrió en medio de su mayor cuita y necesidad. [...] Viva la memoria de Amadís, y sea imitado de don Quijote de la Mancha en todo lo que pudiere, del cual se dirá lo que del otro se dijo, que si no acabó grandes cosas, murió por acometellas; y si no soy desechado ni desdeñado de Dulcinea del Toboso, bástame, 171 María Isabel Toro Pascua como ya he dicho, estar ausente della. Ea, pues, manos a la obra: venid a mi memoria, cosas de Amadís, y enseñadme por dónde tengo de comenzar a imitaros. Mas ya sé que lo más que él hizo fue rezar y encomendarse a Dios; pero ¿qué haré de rosario, que no lo tengo?»18 A partir de ese momento, nuestro caballero, ajeno a los principios del verdadero penitente, aún del verdadero penitente enamorado, se dedicará a llenar el campo con sus suspiros, llamando «a los faunos y silvanos de aquellos bosques, a las ninfas de los ríos, a la dolorosa y húmida Eco, que le respondiese, consolasen y escuchasen», hasta que, al cabo, el ahora llamado Caballero de la Triste Figura casi termina, en palabras del propio Cervantes, «tan desfigurado que no le conociera la madre que lo parió»19. En resumen, vemos que el motivo de la penitencia se revela como un recurso literario muy fértil en el ámbito de la literatura profana de los siglos XV y XVI, y más concretamente cuando de ficción caballeresca y sentimental hablamos, géneros que nos ofrecen muchos más ejemplos de los que hemos traído a estas páginas. Este tópico se presenta de diversas maneras en estas obras, pero en todos los casos parece responder a procedimientos o patrones literarios muy concretos, siempre relacionados con el propio desarrollo del motivo, tales como el espacio en que se desenvuelve la penitencia (la peregrinación, el espacio cerrado o el yermo), y con la función que desempeña en la estructuración narrativa del relato entero: desde la simple mención caracterizadora que incide en la formación del arquetipo del héroe caballeresco (que se resuelve en el yermo) hasta la implicación absoluta en el andamiaje narrativo, bien como desencadenante de la historia (permitiendo el itinerario bajo el aspecto de una peregrinación) o bien como desenlace final con el que se resuelve toda la acción narrada (en cuyo caso, la penitencia se desarrolla en lugares cerrados e inaccesibles). Sea como fuere, la finalidad última del tópico no es otra que la de insistir en el necesario cumplimiento del código caballeresco o sentimental, imprimiendo a Miguel de CERVANTES, Primera parte del ingenioso caballero don Quijote de la Mancha (1605), edición dirigida por Francisco RICO, Barcelona, 1998, cap. XXVI, 291. Miguel de CERVANTES, Primera parte, ed. cit., 293 y 294. En todos los argumentos a los que nos venimos refiriendo, el caballero o la dama se transfiguran en penitentes sin salir de la esfera original en la que se origina el personaje. Muy distinto es el caso que encontramos en otros textos, como, siguiendo la estela cervantina, La Galatea, en la que el penitente de amor termina convertido de manera absoluta a su nueva vida. En este texto, se produce un desplazamiento desde la vida de penitencia esencialmente amorosa a la vida eremítica penitencial, puesto que el desengaño de amor es únicamente el punto de partida, el motivo inicial que conduce al apartamiento, desapareciendo , o al menos pasando a un segundo plano, en el posterior desarrollo vital del protagonista. La explicación resulta obvia, puesto que ya no se trata de desarticular, parodiar o contrahacer un género concreto, y, por ende, los tópicos o motivos de los que tanto se había abusado, sino de integrar en un nuevo contexto elementos que, en este caso, sí permitían la translación al contexto espiritual de todo el discurrir narrativo. 18 19 172 La noble penitencia: caballeros y damas penitentes en la literatura profana de los siglos XV y XVI veces un marcado didactismo, pero sin ningún tipo de pretensiones espirituales o devocionales de más hondo calado. María Isabel Toro Pascua Universidad de Salamanca Colaboradora do CITCEM ABSTRACT: The motif of penance reveals itself as a very fruitful literary resource in the field of secular literature of the XV and XVI centuries, especially in chivalrous and sentimental fiction. This topic presents itself in different ways in all these works, but in all cases seems to respond to very specific literary procedures or patterns, always related with the development of the motif, such as the space in which the penance takes place, and with the function that it maintains in the narrative structuring of the whole account. In all the cases, the last purpose of this topic is nothing less but to insist on the necessary observance of the chivalrous or sentimental code, imprinting sometimes a strong didacticism, however with no kind of significant spiritual or devotional claims. 173 174 A Contra-Reforma em Portugal 1540-1700, Federico Palomo, Lisboa, Livros Horizonte, 2006, 130 p. Nota crítica à obra Da leitura do último título de Federico Palomo, A Contra-Reforma em Portugal 1540-1700, julgaríamos à partida estar diante de uma obra que recuperasse o conceito de Gegenreformation cunhado por Johan Stephan Pütter. Assim não é. «Incorporado plenamente no vocabulário historiográfico, servimo-nos dele sem qualquer intenção de atribuir-lhe o sentido ideológico e controversístico que teve no passado. Tão-pouco o usamos com o intuito de colocar o acento em determinados aspectos da Igreja pós-Tridentina – aqueles que caracterizaram a luta antiprotestante – face aos que resultaram das suas aspirações de reforma»1. O autor utiliza como grandes conceitos operativos os termos ‘disciplinamento social’ e ‘confessionalização’, considerando-os produtivos para a «compreensão alargada dos processos e fenómenos de natureza religiosa e eclesiástica que tiveram lugar no Portugal dos séculos XVI e XVII»2. Como é sabido, os referidos conceitos têm vindo, de certa forma, a trazer alguma renovação aos estudos de história religiosa portuguesa, pelo menos desde os anos 80, muito sob o influxo da historiografia italiana. Pensamos, nomeadamente, em Paolo Prodi e Palomo del Barrio. Traçando brevemente a genealogia dos conceitos, Palomo avoca Gerhard Oestreich3 como o primeiro a falar de disciplinamento social, o que punha a tónica nos factores de natureza humana, social e cultural, numa historiografia política e institucional até então pouco aberta à sua consideração. Por outro lado, esta ‘disciplina’ seria o elemento comum de um conjunto de processos políticos, religiosos, sociais e culturais, liderados e postos em movimento ‘a partir de cima’ pelas elites. Valerá a pena recordar que Oestreich estava fundamentalmente preocupado com a centralização do poder por parte de monarcas absolutistas. Segundo o Federico PALOMO, A Contra-Reforma em Portugal 1540-1700, Lisboa, Livros Horizonte, 2006, 10. Federico PALOMO, A Contra-Reforma [...], ed. cit., 11. Trata-se, como se sabe, de Gerhard OESTREICH, Strukturprobleme des europäischen Absolutismus, in Geist und Gestald des frühmodern Staates, Berlin, Duncker & Humblot, 1969, 179-197. 1 2 3 175 Maria Helena Queirós mesmo, a própria disciplina social teria sido uma das vitórias do absolutismo. Sob o signo da auctoritas, da temperantia, da constantia e da disciplina, um grupo de homens de Estado teria tomado o modelo da antiga Roma e, inspirando-se na República e Império Romanos, ‘desteologizou’ os conflitos confessionais, eliminando, eventualmente, as causas do próprio conflito. O triunfo do estado absolutista seria, obviamente, o triunfo da política sobre a religião4. Crucial foi também que em todo este processo o indivíduo tenha aprendido a interiorizar a disciplina, numa relação que pressupõe aceitação da autoridade do soberano e das leis do Estado e não imposição. A isto voltaremos. A este propósito, cremos que Palomo poderia ter remontado a Max Weber para desvelar um pouco mais a história e contornos do conceito de disciplina social. Recordemos a distinção que faz entre Herrschaft (dominação) e Disziplin (disciplina). Se o primeiro seria a probabilidade de encontrar obediência a uma ordem de determinado conteúdo entre certas pessoas, o segundo comporta a probabilidade de encontrar obediência para uma ordem por parte de um conjunto de pessoas que, graças a certas atitudes enraizadas, seja imediata, simples e automática. Toda a questão está, pois, na legitimação da disciplina, baseada em consentimento e consenso alargado. Coerção seria um conceito insuficiente e que pouco espelharia do fenómeno5. Nos anos 70, com os trabalhos de Wolfgang Reinhard e Heinz Schilling, passou a aplicar-se o conceito de disciplinamento às diferentes confissões religiosas, sublinhando as relações muito próximas entre instituições religiosas e poder político ao longo dos séculos XVI e XVII. Para o primeiro, Reforma protestante e Contra-Reforma Católica têm em comum um mesmo processo denominado ‘confessionalização’, que teria tido como consequência a formação de grupos confessionais homogéneos através de instrumentos de disciplinamento6. Deixando de parte alguns aspectos da teorização de Reinhard e Schilling, importa, contudo, salientar que, ao arrepio de Oestreich, não foi o estado absolutista que ‘desteologizou’ o conflito confessional; o conflito confessional entre protestantes e católicos introduziu teologia na formação político-social. Como afirma lapidarmente Po-Chia Hsia, «La edad moderna no fue una época de desteologización, sino más bien de enorme teologización en forma de confesionalización7.» Retomaremos este ponto. O estudo divide-se em 3 capítulos: «As Bases da Confessionalização Católica 4 Cf. Ronald Po-Chia HSIA, Disciplina social y catolicismo en la Europa de los siglos XVI y XVII, in Manuscrits. Revista d’història moderna, número 25 (2007), 31. 5 Cf. Ronald Po-Chia HSIA, Disciplina social y catolicismo [...], art. cit., 31. 6 Foi Ernst Walter Zeeden – de quem Reinhard foi discípulo – o primeiro, nos anos 60, a notar a similitude entre luteranismo, catolicismo e calvinismo e seu desenvolvimento em paralelo. 7 Ronald Po-Chia HSIA, Disciplina social y catolicismo [...], art. cit., 33. 176 A Contra-Reforma em Portugal 1540-1700, | Federico Palomo, Lisboa, Livros Horizonte, 2006, 130 p. | Nota crítica à obra em Portugal: os Poderes»; «Conduzir as Condutas. Formas e Instrumentos de Difusão do Discurso Religioso» e «Entre a Comunidade e o Sujeito. A Igreja e as Populações do Antigo Regime. Devoções – Práticas – Comportamentos – Heterodoxias». No primeiro, o autor analisa os dois poderes (Coroa e Igreja) sobre os quais terá assentado a confessionalização da sociedade portuguesa. A monarquia apoiava as directrizes uniformizadoras emanadas de Trento (15451563) como meio de aumentar a sua própria influência nos assuntos do foro eclesiástico. Destaca-se a possibilidade de intervenção nos processos de eleição dos bispos e dos provinciais e ordens sob a sua jurisdição. Por outro lado, com a integração da Inquisição (1536) na administração, a Coroa viu aumentada a sua capacidade de intervenção no controlo de potenciais focos de heterodoxia. Quanto ao poder eclesiástico, este repousava em três tipos de instituições: bispados, Inquisição e ordens. No que toca aos bispos, Palomo realça o papel desempenhado pela paróquia depois do Concílio de Trento como ‘sucedâneo’ do poder régio dada a sua ampla presença no território. Esta ideia é muito enfatizada. Não admira, pois, que a instrução dos curas tivesse sido um dos objectivos primordiais da reforma, pese embora a disseminação de seminários se tivesse produzido bastante mais tarde (séculos XVIII e XIX). Saem também clarificadas obrigações de bispos; a visita pastoral erige-se em método por excelência de controlo: do território, dos fiéis e dos próprios prelados. Quanto à Inquisição, segundo Palomo, o cardeal D. Henrique foi o principal obreiro do seu funcionamento entre 1540 e 1578. Aponta como seus objectivos maiores a perseguição a potenciais focos de heresia e o controlo/censura de escritos. No que toca às ordens, a sua intensa acção apostólica e assistencial terá sido responsável por um forte disciplinamento da população. O segundo capítulo, «Conduzir as Condutas. Formas e Instrumentos de Difusão do Discurso Religioso», põe todo o seu enfoque nos mecanismos coercivo-punitivos (disciplinamento) e persuasivos (confessionalização) que terão contribuído para a divulgação das directivas de Trento. São apontados os recursos icónico-visuais como grandes fautores de divulgação doutrinária, capazes de comover – e mover – os fiéis. O autor aborda a literatura didáctica e espiritual, as práticas de leitura e a instrução como elementos daquilo que o autor considera uma homogeneização doutrinal. Lembra a generalização da catequese, obrigatória a partir de 1564, e o carácter decisivo da pregação na doutrinação. Por fim, o autor chama a atenção para o papel das missões do interior na transmissão da fé católica e na administração da confissão, que se tornou «o instrumento mais poderoso da acção desenvolvida pela Igreja 177 Maria Helena Queirós do período moderno»8, verdadeiro elemento de domínio sobre a povoação, gradualmente tendendo para um aspecto mais consolador. No terceiro capítulo, «Entre a Comunidade e o Sujeito. A Igreja e as Populações do Antigo Regime. Devoções – Práticas – Comportamentos – Heterodoxias», Palomo pesa, por assim dizer, os resultados do discurso da Igreja portuguesa sobre as práticas enraizadas quotidianas dos crentes. Ou talvez melhor: «a existência de dinâmicas e articulações entre a persistência de práticas e comportamentos tradicionais e bem enraizados nas populações [...]» face-aface com «o progressivo avanço do personalismo religioso e moral defendido pelo discurso pós-tridentino9.» Põe em relevo a coexistência da transformação de imagens em objectos de uma religiosidade votiva local com os grandes modelos devocionais difundidos pela Igreja: Cristo e a Virgem. Frequentemente produziu-se um certo choque com as autoridades eclesiásticas, que se depararam com um forte atrito entre as populações, na tentativa de circunscrever/travar peregrinações a santuários locais fora da sua jurisdição ou celebrações de carácter votivo. Depois de Trento, como é consabido, o modelo de santidade passa a enfatizar um sem-número de virtudes cristãs. A este propósito, o autor não esquece a questão da santidade fingida. Aborda, claro está, a acção da Igreja contra as práticas judaizantes, o Islão, os cristãos-novos e a feitiçaria. Por fim, são abordadas as alterações introduzidas por Trento aos sacramentos do baptismo e do matrimónio e como estes terão influído numa certa atenuação do corporativismo horizontal característico das sociedades de Antigo Regime. A obra de Federico Palomo pretende ser uma «visão breve e de conjunto sobre [o catolicismo moderno no contexto português dos séculos XVI e XVII]10», no que toca à metrópole. Este objectivo é cumprido rigorosamente, fazendo jus, aliás, à tipologia de em que se insere: a Colecção Temas de História de Portugal. Fundada sobre aqueles dois conceitos, oferece uma visão de conjunto até agora inexistente – tanto quanto sabemos – na historiografia portuguesa. Enferma, contudo, de dois males, o segundo derivando do primeiro. Por um lado, Palomo refere-se, na Introdução, à necessidade de matizar certos aspectos da teorização alemã11, mas a verdade é que, ao longo da obra, nunca o faz. Deste problema, que começa por ser de coerência científica, deriva um outro que será Federico PALOMO, A Contra-Reforma [...], ed. cit., 15. Federico PALOMO, A Contra-Reforma [...], ed. cit., 129. 10 Federico PALOMO, A Contra-Reforma [...], ed. cit., 10. 11 «É preciso frisar, no entanto, que o quadro de interpretação que decorre destas duas categorias também não deixou de suscitar controvérsias, em particular no que diz respeito à eficácia dos dispositivos que desenvolveram os diferentes grupos e poderes empenhados em tais processos. Neste sentido, a escala de análise é, certamente, um elemento a ter em consideração, dado que obriga, muitas vezes, a introduzir matizes [...]» (Federico PALOMO, A Contra-Reforma [...], ed. cit., 13). 8 9 178 A Contra-Reforma em Portugal 1540-1700, | Federico Palomo, Lisboa, Livros Horizonte, 2006, 130 p. | Nota crítica à obra o da pouca sustentabilidade de uma tal concepção aplicada ao caso português. Assim, para o conhecimento da realidade política, religiosa e social portuguesa, embora admitamos a utilidade12 dos conceitos de confessionalização – este, contudo, de escassa aplicação – e disciplinamento – o que, de resto, também notou Palomo13 –, é forçoso introduzir-lhes importantes salvaguardas. Isto mesmo já foi observado noutro lugar. São elas: 1. embora admitindo como válida a constatação de que os caminhos seguidos pelas diversas confissões tivessem tido rumos idênticos, isso não anula o facto de que no seio do Cristianismo se criaram duas vias distintas – profundamente distintas – do ponto de vista religioso e cultural e que, por conseguinte, a noção de confessionalização não explica na íntegra, no que é o núcleo de questão, a realidade político-religiosa que se viveu na Europa moderna; 2. esconde que no interior de cada uma das confissões não houve total homogeneidade e que há diferenças que devem relativizar a ideia de uma coerência integral de cada confissão. Para simplificar, é evidente que o catolicismo português não foi absolutamente igual ao de Espanha e ao da península itálica; 3. não reconhece que os processos de inculcação da doutrina e da norma, isto é, de educação e de disciplinamento, não foram absolutamente idênticos no campo católico e no campo protestante. E as distinções foram muitas vezes decisivas, como, por exemplo, a espectacularização dos ritos e das devoções que marcaram o universo católico, ou no modo e forma de acesso ao texto bíblico e a outros livros doutrinais, que no mundo católico condicionaram que a maior parte da povoação adoptasse uma religião que prescindiu a leitura directa e pessoal do texto sagrado, ao passo que, nas regiões afectas à Reforma, houve uma maior interiorização e intelectualização da fé; 4. presta pouca atenção à religiosidade e aos comportamentos da povoação, dando por boa a noção de que toda a prática religiosa vem determinada de cima para baixo, das elites para os fiéis. Esta leitura não facilita a compreensão Neste pressuposto, considera-se que, ao contrário do que vinha sendo tradicionalmente defendido, Reforma e Contra-Reforma teriam tido mais aspectos em comum do que diferenças. Destacam-se a definição clara da doutrina de cada confissão; a difusão e o reforço de novas normas; a propaganda e a prevenção da contrapropaganda; a interiorização da nova ordem através da educação; o disciplinamento dos adeptos da confissão; a aplicação de um ritual próprio; o impacto na linguagem pelo uso regular de nomes do Antigo Testamento ou de santos. Cf. José Pedro PAIVA, El Estado en la Iglesia y la Iglesia en el Estado. Contaminaciones, dependencias y disidencia entre la monarquía y la Iglesia del reino de Portugal (1495-1640), in Manuscrits. Revista d’història moderna, número 25 (2007), 47. O autor, tomando como ponto de partida a panorâmica traçada por um dos livros mais recentemente publicados sobre a aplicação do conceito de confessionalização, repassa as propostas de Headley em John Headley, J. Hillerbrand, Anthony J. Papalas, Confessionalization in Europe, 1555-1700. Essays in honor and memory of Bodo Nischam, Burlington, Ashgate, 2004. 13 Federico PALOMO, A Contra-Reforma [...], ed. cit., 10-14 e 30-55. 12 179 Maria Helena Queirós das especificidades de manifestações de origem não-letrada, do hibridismo de crenças e práticas religiosas, nem dos fluxos de comunicação entre esferas socioculturais distintas. A verdade é que não há consenso quanto a considerar quem terá sido o agente fundamental da disciplina social, se o indivíduo, se a comunidade, se o clero, se o Estado. Para as comunidades rurais de Berna, na Confederação Helvética, Heinrich Richard Schimdt parece ter chegado à conclusão do papel preponderante da comunidade. Por seu turno, Christa Müller, no seu estudo do vizinho Tirol, conclui pela acção repressiva do Carnaval por parte do estado da Contra-Reforma. Para Harm Klueting, é o indivíduo que tem o papel decisivo na cristianização da sociedade através da autodisciplina. Outros vêem-no na disciplina social14. Mais delicadas são as implicações entre a dimensão política e a confessionalização. Cai por terra parte da proposta de Headley, quando aplicada a Portugal. Segundo o mesmo, a confessionalização teria provocado um reforço interno e externo das unidades territoriais; contribuído para o disciplinamento e para a ‘homogeneização’ dos súbditos, constituindo-se baluarte da afirmação do poder político; estimulado a amplitude da intervenção dos Estados sobre a Igreja e, especialmente, sobre os seus recursos materiais. Ora, como se sabe, no caso português, as fronteiras físicas do reino e a própria identidade ‘confessional’ (incluindo o aspecto mítico que associava a fundação do reino a um milagre divino) estavam definidas antes da Época Moderna. Por outro lado, um dos riscos desta proposta é sugerir que terá sido possível construir uma sociedade absolutamente homogénea e disciplinada, sendo que uma das consequências dos limites das políticas de doutrinação foi a ignorância da generalidade da população e mesmo do clero. Quanto ao último ponto, este parece encerrar uma visão limitada pois não enuncia a reversibilidade do princípio, ou seja, se é verdade que se assistiu a um reforço da intervenção do Estado na Igreja, também o inverso o foi. Na expressiva formulação de Paolo Prodi, foi um período de «teologização da política» e «politização da religião»15. A este aspecto nos referimos já. Acresce que tal concepção parece supor que tal processo só se iniciou na «época da confessionalização» quando tem raízes mais remotas. Com efeito, é na Idade Média que se devem buscar as raízes da disciplina social. Segundo Dilwyn Knox, terá tido origem na rotina monástica, aplicada ao mundo laico, através da Devotio Moderna e de Erasmo16. Outros estudiosos inclinam-se Cf. Ronald Po-Chia HSIA, Disciplina social y catolicismo [...], art. cit., 35. Citado por Vincenzo LAVENIA, L’infamia e il perdono. Tributi, pene e confessione nella teologia morale della prima età moderna, Bolonia, Il Mulino, 2004, 31. 16 Cf. Ronald Po-Chia HSIA, Disciplina social y catolicismo [...], art. cit., 33. 14 15 180 A Contra-Reforma em Portugal 1540-1700, | Federico Palomo, Lisboa, Livros Horizonte, 2006, 130 p. | Nota crítica à obra pelas comunidades urbanas tardo-medievais do Sacro Império Romano como focos originários da disciplina social17; por uma Frankfurt do século XVI, em que a adopção do luteranismo terá fortalecido a disciplina social18; ou ainda a cidade imperial de Espira, também luterana19. Em qualquer um destes casos, um consenso fundamental entre população e instituições em torno da noção de bem comum foi decisivo para a interiorização da disciplina. Por outro lado, este processo configura aquilo que Neumann considerou ser «disciplinamento horizontal», distanciando-se da preeminência do Estado sobre o cidadão da teorização de Oestreich. E ainda a assinalar o facto de conceber a Igreja e o Estado como duas entidades independentes e com fronteiras estanques. Na verdade, «excluyendo ciertos aspectos obvios (por ejemplo, el rey no podía celebrar sacramentos y los obispos no promulgaban edictos reales), Iglesia y Estado eran cuerpos que no tenían competencias perfectamente delimitadas y estancas, esto es, que no poseían una frontera definida que circunscribiese los ámbitos de actuación de cada uno20». Paiva defende21 que esta diluição de fronteiras, esta «osmose» se fazia de três formas essenciais: partilha e disputa de recursos materiais e pessoas, sobreposição de competências jurisdicionais e circulação de princípios doutrinais. São vários os exemplos de influência do Estado sobre a Igreja, como o são os da intervenção da Igreja no Estado. Enunciamos alguns dos mais importantes: eleição de bispos e arcebispos, clérigos com benefícios capitulares, abades de mosteiros e párocos (relacionado com o direito de Padroado); apropriação de benefícios materiais da Igreja (colocação de clientelas em certos benefícios eclesiásticos), Bula da Cruzada e subsídios obtidos a partir das rendas das igrejas e contribuições do clero, entre outros privilégios; interferência no governo da Igreja, como imposição de preceitos de actuação aos bispos, manutenção de funcionários em tempo de Sé Vaga, impedimento de dar posse de benefícios eclesiásticos a certos indivíduos, patrocínio real à criação de ordens e reforma de outras, organização da geografia eclesiástica, repreensões aos bispos por impedirem certas ordens de missionar na diocese, intervenção dos monarcas Gérald Chaix, por exemplo, estudou o caso de Colónia, nos finais do século XV. Apud Ronald Po-Chia HSIA, Disciplina social y catolicismo [...], art. cit., 34. 18 Caso estudado por Anja Johann apud Ronald Po-Chia HSIA, Disciplina social y catolicismo [...], art. cit., 34. 19 Sobre ela se debruçou Hubert Neumann. Apud Ronald Po-Chia HSIA, Disciplina social y catolicismo [...], art. cit., 34 e 35. 20 José Pedro PAIVA, El Estado en la Iglesia [...], art. cit., p. 50. Aqui reside o centro da sua tese, a qual, aliás, já vinha explicitada no verbete A Igreja e o poder in História Religiosa de Portugal, Lisboa, Círculo de Leitores, vol. II, 135-185. 21 À semelhança de Domínguez ORTIZ, em Regalismo y relaciones Iglesia-Estado en el siglo XVII in Historia de la Iglesia en España. La Iglesia en la España de los siglos XVII-XVIII (dir. Ricardo García-Villoslada), Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 1979, 73-121. 17 181 Maria Helena Queirós na resolução de conflitos. Quanto à intervenção da Igreja sobre o Estado, basta pensar na aceitação da participação de clérigos nas actividades do centro político; no reconhecimento e a defesa de muitos privilégios da Igreja; na interferência régia nos assuntos eclesiásticos e na capacidade de penetração através da rede paroquial. Não resistimos a ler aqui uma frase do beneditino Juan de Salazar (1619), que bem pode espelhar o que acabamos de dizer: «También es cierto que quien tiene [las cabezas] sujetas y rendidas y obedientes al superior [...] son los hombres doctos y eclesiásticos, en especial los religiosos y predicadores [...], predicando ellos continuamente al pueblo que es voluntad de Dios obedecer a los reyes»22. Evocando Paolo Prodi, diríamos «disciplina da alma, do corpo e da sociedade»23. Por amplificação, se a vontade do rei é a vontade de Deus, a Igreja será, obviamente, o intermediário. Liminarmente, para se obter o favor de Deus é necessário estar de bem com a Igreja. São diversas as funções em que o Estado se serviu do clero. Lembremos a concessão de cargos na governação e órgãos centrais (conselho do rei, Conselho de Estado, Desembargo do Paço, secretários, pregadores e capelães da Capela Real, confessores régios), a utilização do saber e da pastoral e a fundamentação teórico-doutrinal da legitimação do regime, do rei e das políticas. De salientar ainda a presença dos eclesiásticos em certos rituais políticos (aclamações, entradas régias, recepções etc.) e a implicação do clero ao serviço da Coroa no terreno militar. Trata-se de um domínio das consciências, de rituais, de estéticas, de comportamentos. Neste ponto, contudo, vale a pena ir um pouco mais além. Esta presença dos prelados nas cerimónias régias é já um elemento que configura o carácter sagrado da monarquia. Sem disciplina social não parece ter sido de todo possível a confessionalização católica: «Fue el creciente poder del Estado moderno en general, y no sólo del Estado católico en particular, lo que permetió la renovación del catolicismo24». Serão cinco os traços gerais da disciplina social e confessionalização católica na Europa central: a substituição de oficiais protestantes por católicos; a chamada de jesuítas à educação; o disciplinamento do Clero pelo aparelho de Estado; a repressão da oposição estamental e dos levantamentos populares; o exílio de dissidentes protestantes. Se entre os processos de disciplinamento protestante e católico se divisa um substrato comum, não são, contudo, despiciendas as diferenças entre ambos. Eloquente é, por exemplo, que os pastores tenham sido reduzidos ao estatuto de Citado a partir de José Pedro PAIVA, El Estado en la Iglesia [...], art. cit., 52. Paolo PRODI, Disciplina dell’anima, disciplina del corpo e disciplina della società tra medioevo ed età moderna, Bolonia, Il Mulino, 1994. 24 Ronald Po-Chia HSIA, Disciplina social y catolicismo [...], art. cit., 36. 22 23 182 A Contra-Reforma em Portugal 1540-1700, | Federico Palomo, Lisboa, Livros Horizonte, 2006, 130 p. | Nota crítica à obra funcionários (ou, pelo menos, de politicamente subordinados), face a um clero católico que devia uma dupla lealdade ao monarca e ao Papa. Estes clérigos são homens políticos que dão uma visão apostólica da sua acção política. Não poderá deduzir-se isso mesmo das palavras do beneditino Fr. Juan de Salazar25? Facilmente se compreende onde residia o cerne dos conflitos de jurisdição: se o Papa reivindicava a suprema autoridade espiritual e eclesiástica, já o monarca invocava o chamamento divino. Às palavras do beneditino Juan de Salazar, poderíamos contrapor as de Bartolomé Torres: «Los Príncipes, en cuanto príncipes, en alguma manera son curas de almas. Quiero decir que no basta que rijan y gobiernen en paz la República, sino son obligados cuanto es en sí a trabajar para hacer buenos y virtuosos a los súbditos26.» No caso português, é manifesta, a partir de 1495, «una evidente política de la Corona tendente a aumentar su poder frente a la Iglesia, tanto a nivel interno como en el plano de las relaciones con la Santa Sede»27, plasmando-se na transferência a exclusiva competência do rei da eleição dos bispos de todas as dioceses do reino, o mesmo acontecendo com os abades dos mosteiros; no domínio das ordens militares, tornando-se os reis seus Grãos-Mestres; na obtenção de rendas das igrejas para aplicação na expansão; na interferência do rei na reforma das ordens religiosas; na aquisição de privilégios especiais para a Capela Real e seus capelães; no direito de padroado nos territórios do império ultramarino. Aqui reside uma lacuna na obra de Palomo. É certo que não se propôs estudar a realidade ultramarina, mas cingir-se exclusivamente à metrópole parece um escopo demasiado estreito dado o carácter de eleição de toda a problemática do Padroado português para a análise das relações Estado-Igreja. Por volta de 1640, ter-se-á iniciado «un período de cerca de 30 años caracterizado por el alejamiento de la Corona de la Santa Sede, debido al hecho de que el papado no reconocía la nueva dinastía instaurada por el golpe político del 1 diciembre de 164028». Como se sabe, desta situação resultou uma grave crise para a Igreja portuguesa ao impedir a nomeação de novos bispos. Muitas Sedes Vacantes, portanto. É evidente o impacto na vida dos fiéis e no relacionamento das duas instituições, num momento-chave de fortalecimento da legitimação da nova dinastia. Duas datas que marcam dois panoramas bem diferentes. Segundo Paiva, em inícios do século XVII, a Coroa intensifica a restrição da jurisdição eclesiástica; no entanto, «la Teria muito interesse fazer-se um estudo sobre a legitimação doutrinal através da parenética (se existiu, de todo, para o caso português), por exemplo, destas lógicas místico-políticas ou religioso-políticas e que, face ao tradicional quadro das três vias – via apostólica, via política e via mista – configuraria esta última. Este estudo poderia, aliás, aferir da aplicabilidade e alcance dos próprios conceitos de confessionalização e disciplinamento entre nós e das constantes/variantes contra-reformísticas em todo o mundo católico. 26 Citado a partir de Ronald Po-Chia HSIA, Disciplina social y catolicismo [...], art. cit., 38. 27 José Pedro PAIVA, El Estado en la Iglesia [...], art. cit., 46. 28 José Pedro PAIVA, El Estado en la Iglesia [...], art. cit. 47. 25 183 Maria Helena Queirós contaminación y los lazos de dependencia creados eran más fuertes y tejieron una trama de interpenetraciones entre el Estado y la Iglesia que no fue quebrantada por los enfrentamientos conocidos29». Nas razões do êxito da Reforma Católica, face a um suposto fracasso da protestante30, encontramos factores que matizam a grande relevância dada a confessionalização e disciplinamento e consequente necessidade de distinguir bem as suas singularidades, em contexto protestante e em contexto católico. A aceitação de práticas e costumes tradicionais, incorporando-os e ratificando-os; a utilização de todos os meios ao alcance, desde a imprensa ao teatro ou à pintura; a simplificação dos conteúdos teológicos, adoptando «una fe de dos pistas», uma dirigida ao povo simples e outra ao clero parecem ser traços que, se, por um lado, fazem visível o êxito da Reforma Católica, por outro, a diferenciam da protestante31. No mesmo sentido parece caminhar a teorização de William Christian. Embora divirja quanto à consideração de êxito ou fracasso da Reforma Católica, o seu conceito de ‘religiosidade local’ traz à sede da discussão dois tipos de Catolicismo: um da Igreja Universal, baseado nos sacramentos, na liturgia e calendário romanos e cujo intermediário é o clero; e um Catolicismo, por assim dizer, local, feito de lugares, imagens e relíquias e cujo intermediário são os santos espalhados por todo o território. A teorização de Christian, admitindo embora a depuração de alguns costumes e a eliminação de certos aspectos contraditórios com Roma, considera escassos os efeitos da Reforma, que mal terá logrado alterar os costumes das populações arreigadas a uma religião conservadora e de cor local. O conceito por si cunhado vem pôr um travão ou, pelo menos, suavizar o peso – que, frequentemente, parece excessivo – que se tem atribuído a um entendimento da Reforma Católica como processo de controlo e mudança, ou seja, de disciplinamento social e de confessionalização. Gostaríamos ainda de trazer à colação o contributo de Ignasi Terricabras, que fala na necessidade de se substituir a concepção de êxito/fracasso da Reforma tout court por uma formulação que conjugue outras variáveis, sintetizada numa formulação tipo: os locais onde houve êxitos ou fracassos e as datas em que os mesmos se deram. Por outro lado, também consideramos pertinentes as suas observações na revisão que faz do conceito de religiosidade local. São três os aspectos que aponta: - o questionar do suposto carácter local de um Cristianismo pré-Tridentino que encontra, ao cabo, tantas semelhanças de lugar para lugar; - o entendimento das concepções de religiosidade local e tridentina como interactuantes e não opostas ou disjuntivas; José Pedro PAIVA, El Estado en la Iglesia [...], art. cit. 55. Oportunamente nos referiremos aos critérios de consideração de êxito/fracasso. Apresentamos conclusões de Geoffrey Parker a partir de Ignasi Fernández TERRICABRAS, Éxitos y fracasos de la Reforma católica. Francia y España (siglos XVI-XVII), in Manuscrits. Revista d’història moderna, número 25 (2007), 130 e 131. 29 30 31 184 A Contra-Reforma em Portugal 1540-1700, | Federico Palomo, Lisboa, Livros Horizonte, 2006, 130 p. | Nota crítica à obra - o problematizar de um suposto carácter socialmente uniforme do conceito de religiosidade local. Trabalhos recentes vêm enfatizar isto mesmo. Recordamos o contributo de Anne Bouzon que, para Beauvais, realça a Reforma Católica como mecanismo de resposta às aspirações dos fiéis e não somente de repressão vindo das elites para as classes abaixo. Parece ser de um encontro de vontades e aspirações entre bispos e fiéis que resulta o êxito da Reforma. Já em Cuenca, o programa de catequização respondia às aspirações dos fiéis, motivo na base do seu êxito. E também já foi notado como os eclesiásticos não são voz única no processo de renovação religiosa, necessitando para tal de suporte financeiro32. Assim, terá sido «o peso da geografia física e humana33» o factor determinante do triunfo/fracasso da Reforma Católica neste ou naquele lugar. Entenda-se: de um lado êxito, em zonas planas, com importantes vias de comunicação; de outro, a inércia ou imutabilidade, em zonas montanhosas, escassamente povoadas e com pouco trato comercial34. Definido o Catolicismo pós-Tridentino como uma «parrochially-grounded institution35», o seu sucesso medir-se-ia no estabelecimento de uma «prática paroquial uniforme», que quebrasse os velhos laços clientelares e de parentesco fundados na Idade Média. Julgamos, pois, produtiva a perspectiva de Terricabras fundada sobre a conjugação de três factores que corporizam a permeabilidade ao exterior de determinado local e consequente êxito da Reforma: relevo plano, rede urbana e economia mercantil. Como nota final, A Contra-Reforma em Portugal é uma boa leitura, sobretudo, na nossa opinião, para quem começa o seu adentramento na História da Reforma Católica, fazendo-o de uma perspectiva que realça o ponto de vista da História Cultural. Também relevante é o facto de, ao longo das suas páginas, nos deixar um avultado número de reptos à investigação, pois vai elencando uma série de campos de estudo por desbravar entre nós. Na inexistência de estudos que permitissem avançar mais o nosso estado de conhecimento, o autor refere o trabalho a fazer. De notar ainda que a não-referenciação/não-citação de fontes (pouco comparece e, quando tal acontece, nunca aparece a página) coarcta o trabalho do investigador ou mero curioso. Trata-se de uma opção justificada em sede de Introdução, é certo; no entanto, resulta sempre ‘movediço’ ler afirmações de Cf. Ignasi Fernández TERRICABRAS, Éxitos y fracasos de la Reforma católica [...], art. cit., 145. Ignasi Fernández TERRICABRAS, Éxitos y fracasos de la Reforma católica [...], art. cit., 146. 34 Servimo-nos das conclusões de M. VENARD, Réforme protestante, Réforme catholique dans la province d’Avignon – XVIème siècle, Paris, Éditions du Cerf, 1146, que citamos a partir de Ignasi Fernández TERRICABRAS, Éxitos y fracasos de la Reforma católica [...], art. cit., 148. 35 J. BOSSY, The Counter-Reformation and the People of Catholic Europe, in Past and Present, 47 (Maio 1970), 53. Citado a partir de Ignasi Fernández TERRICABRAS, Éxitos y fracasos de la Reforma católica [...], art. cit., 148. 32 33 185 Maria Helena Queirós outrem sem respectiva indicação de fonte. Consideramos ter interesse para o investigador por trazer os conceitos de confessionalização e disciplinamento ao estudo da Contra-Reforma em Portugal. Por outro lado, como senão, traça uma panorâmica sobre a Contra-Reforma que, por generalista, encontra sempre aplicabilidade ao estudo da política e da religião em Portugal na Época Moderna. Peca por não prever as limitações da aplicação dos conceitos para o caso português. Os matizes a introduzir à teorização alemã de que fala Palomo são, como vimos, imperceptíveis ao longo do seu estudo. Nesta nota crítica, pretendemos evidenciar isso mesmo, repassando brevemente alguns dos estudos que fazem a história da questão e bem assim fazendo um pouco a revisão da literatura à luz dos mais recentes contributos, colocando alguns pontos nevrálgicos frente a frente. Mantendo-se, embora, a pertinência dos conceitos de disciplinamento social e confessionalização e verificados os limites da sua aplicabilidade ao contexto português, cremos evidenciada a sua precariedade enquanto categorias de análise e o muito que há a ganhar na conjugação de aproximações teóricas. Maria Helena Queirós Investigadora do CITCEM [email protected] 186 VARIA 187 188 NA ELEGIA DE CAMÕES «O POETA SIMÓNIDES, FALANDO» Num dos seus escritos sobre «Théorie poétique et esthétique», Paul Valéry deixou dito o seguinte: «Un poète – ne soyez pas choqué de mon propos – n’a pas pour fonction de ressentir l’état poétique: ceci est une affaire privée. Il a pour fonction de le créer chez les autres». E acrescentava logo a seguir: «L’inspiration est, positivement parlant, une attribution gracieuse que le lecteur fait à son poète...»1. E noutro escrevia: «Le meilleur ouvrage est celui qui garde son secret le plus longtemps. Pendant longtemps on ne se doute même pas qu’il a son secret», para cinco páginas depois opinar: «La littérature oscille entre l’amusement, l’enseignement, la prédication ou propagande, l’exercice de soi-même, l’excitation des autres»2. Este ângulo de aproximação à obra de arte literária tem em vista o campo da subjectividade que ela transporta do autor e convoca no leitor, exigindo, naturalmente deste, um saber adequado ao estatuto da obra, o que valida, por sua vez, o papel que cabe ao receptor – costumes detectáveis, expectativas imagináveis, estados psicológicos – na configuração da obra como objecto que comunica; embora partindo e sobretudo visando realidades distintas, práticas e teóricas, poderia recordar-se que, vinte séculos antes, também a retórica assumira a consciência da atenção que o orator devia conceder à percepção daquilo que ia no espírito do auditor3. No Renascimento foi praticamente impossível arredar da teorização poética essas matrizes oriundas da retórica, as quais se entendiam subjacentes a toda a enunciação literária. No espaço já largamente plurissecular da coisa literária em Portugal, a obra camoniana é, com certeza, um dos melhores exemplos desse segredo poético Paul VALÉRY, Oeuvres, I, edição de Jean Hytier, «Bilbliothèque de la Pléiade», Paris, 1957, 1321. Paul VALÉRY, Oeuvres, II, 562, 567. 3 Era o que todos podiam ler em Cícero, por ex. nas Tusculanae disputationes, I,XXVI,64. Quanto à oscilação evocada por Valéry, anotar-se-á que ela implica a sua pressuposição de que não é possível constranger a exegese de um texto a um só sentido, ficando ele, o texto, uma vez publicado, à disposição das necessidades dos leitores para uma correlativa diversidade de leituras (Oeuvres, «Au suget du Cimetière marin», ed. cit., I, 1507), o que equivale a duvidar da possibilidade do exercício de uma hermenêutica do sensus litteralis apoiada na pressuposição do sentido único ou da intenção do autor. Dessa liberdade se serviu Faria e Sousa, entre muitos outros. Vale a pena evocar, por retoricamente paradigmáticas, as diferenças de estratégia estilística captáveis nos escritos do Pe. António Vieira; Ana Paula BANZA, A «retórica cativa de Vieira»: dos Sermões à Representação, in Românica, nº 17, Lisboa, 2008, «Vieira», 19. 1 2 189 Jorge A. Osório a que aludia o poeta francês do início do século passado. Sem identificar o ponto de vista valériano de que um poeta visa também criar nos outros – leia-se, nos leitores – o estado poético com uma observação de incidência estritamente sociológica, a asserção parece cair como uma luva em Camões, pese embora a fortíssima sensação em contrário, ou seja, pese a enorme pressão que o seu texto poético exerce sobre o leitor no sentido de o dever ler como confissão de um estado poético. Uma das facetas mais intrigantes do segredo escondido na obra camoniana, e com particular acuidade na parte lírica, tem a ver com a memória, porque por ela se atravessam as questões ligadas à sua pessoa histórica, à intencionalidade semântica dos seus escritos, em suma à sua figura4. Importa não perder de vista esta dimensão da ostentação que o enunciante poético faz de si mesmo, a par das estratégias que desenvolve para agarrar também o seu leitor, como bem evocam passos como os seguintes: «Chegai, desesperados5, para ouvir-me e fujam, os que vivem de esperança ou aqueles que nela se imaginam, porque Amor e Fortuna determinam de lhe darem poder para entenderem, à medida dos males que tiverem» (Canção X) ou «A quem darei queixumes namorados6 do meu pastor queixoso namorado, a branda voz, suspiros magoados, a causa porque na alma é magoado? De quem serão seus males consolados? Quem lhe fará devido gasalhado?» (Écloga V) Um dos pontos mais obscuros na apreensão do autor Camões tem a ver com aquilo que possa ou deva ter sido a sua contribuição autoral para a institucionalização da sua figura, quer pela maneira como pode ter orientado a leitura – a legenda – dos seus discursos, lírico e épico, quer pela imagem que, mesmo em sua vida, mas certamente na fase subsequente ao regresso do Oriente, os comentadores e biógrafos começaram a erguer a seu respeito, pondo o acento tanto na infelicidade pessoal e na injustiça do tratamento de que terá sido alvo, como na superioridade moral, muito à luz de um senequismo difuso, do vate sobre a realidade da pátria. Essa lenda perduraria e permanece vigorosa. 5 Os desesperados de amor como destinatários eleitos, vistos nomeadamente como potenciais beneficiários da mensagem lírica, eram tema comum na poesia de cancioneiro, como o denuncia a abordagem da cantiga de Fernão da Silveira, «Para os desesperados / gram conforto he saber / que ham certo de morrer», no Cancioneiro Geral de Resende (Ed. de Álvaro Júlio da Costa Pimpão e Aida Fernanda Dias, vol. I, Coimbra, 1963, nº 219, 229). 6 É retoma do primeiro verso dos tercetos da dedicatória de Boscán à Duquesa de Soma das suas Obras, o qual, por sua vez, retoma o «Cui dono lepidum novum libellum» de Catulo, I, 1. 4 190 NA ELEGIA DE CAMÕES «O POETA SIMÓNIDES, FALANDO» Nos versos citados pode o leitor captar duas coisas: por um lado a figura de uma voz que se oferece como detentora de um saber credenciado em matéria de tristezas; por outro lado, a insinuação da empatia – a confluência do exercice e da excitation de que falava Valéry – que esse discurso poético buscava accionar no seu espírito. Quer isto dizer que o enunciado lírico camoniano manifesta ou epifaniza uma exclusiva realidade sentimental interior, ancorada a uma sinceridade existencial que seria a condição sine qua non da sua materialidade? Nada menos seguro. As palavras de Paul Valéry em cima transcritas têm também valia neste ponto: a literatura pode ter funções diversificadas; faltou-lhe dizer ainda que pode ter motivações directas diversificadas7. Na verdade, sendo o poeta a sua obra e as suas circunstâncias, há que ter em conta que, na época em que foi dado a Camões viver e poetar, fazer versos reportava-se em larga medida a uma actividade marcada por circunstâncias de conviviabilidade – grupos sociais, círculos culturais – ou mesmo de dependência institucional8, o que objectivamente nada tinha, nem tem, de desmerecedor. Mas essa circunstância tem um outro alcance significativo, aliás em consonância com as afirmações de Valéry utilizadas nas primeiras linhas em cima: é que pode tornar mais evidente a presença do leitor nos versos do poeta, no sentido de que o poema enunciado pode incluir uma antecipação da excitação que haveria de provocar no espírito do seu leitor. O mecanismo era bem conhecido da teoria e da retórica oratória: estar atento à admiração do receptor, fosse ouvinte ou fosse leitor. Qualquer leitor da lírica camoniana tem a nítida percepção da importância que a memória ocupa como elemento da construção do pensamento poético e do discurso que o enforma e veicula. Não se trata de um ponto de vista filosófico, naquilo que haveria de racionalizante e globalizante, envolvente de uma ontologia própria do homem, mas trata-se da visão que, na instância do hic et nunc do enunciado poético, corresponde a uma voz particular, a um eu que, nos momentos mais fortes do discurso poético, se mostra ou se apoia na biografia; ou numa biografia... poética...9. Mas não façamos confusões: a memória não funciona em Camões como o mero registo de coisas inscritas no passado que se reporta à entidade da primeira pessoa que responde pelo enunciado poético. Não se pode comparar A inspiração camoniana seria bem a attribuition gracieuese que os leitores desde cedo começaram a fazer à son poète, usando a expressão de Paul Valéry. Por isso, importa sublinhar que uma das facetas mais significativas dos estudos camonianos do séc. XX consistiu precisamente em levar a cabo o que se poderia dizer, usurpando uma expressão de Hans-Georg Gadamer, um progressivo refinamento da nossa possibilidade de compreensão da obra do poeta. 8 Hélio J. S. ALVES, A propósito do soneto O dia em que eu nasci e do seu autor, in Estudos. Para Maria Idalina Rodrigues, Maria Lucília Pires, Maria Vitalina Leal de Matos, Lisboa, 2007, 263. 9 Rita MARNOTO, Camões. Quem é quem, in Sete Ensaios Camonianos, Coimbra, 2007, 107s. 7 191 Jorge A. Osório com o papel que Jean-Jacques Rousseau lhe atribuiria no início da II Parte das suas Confessions: «L’objet de mes confessions est de faire connoître exactement mon intérieur dans toutes les situations de ma vie. C’est l’histoire de mon âme que j’ai promise»10. Mais: para Rousseau a memória tinha por função retracer uniquement les objets agréables, já que a sua imagination effarouchée só lhe fazia antever de cruels souvenirs. Não era essa nem podia ser a atitude de Camões; o âmbito semântico da palavra tinha raízes longínquas no pensamento antigo, a começar pela epistemologia platónica, pela psicologia aristotélica e pelas reflexões do estoicismo romano, passando pela função que a evocação do passado pessoal desempenhava na expressão lírica românica, desde a petrarquiana até à da cultura cortês. Por outro lado, e antes de avançar mais, importa ainda anotar que no Renascimento se procurou aprofundar uma ideia de memória não propriamente numa perspectiva de natureza psicológica, mas mais como arte da memória ou da mnemónica, numa concepção que tinha muito de projecção visual do saber, o que conduziu aos esforços como o representado pelo Teatro da memória de Giulio Camillo, numa arrumação arquitectónica das coisas conhecidas, ou seja da scientia, onde se buscava disponibilizar, de forma ágil e eficiente, a enciclopédia dos saberes. Explorava-se ou procurava-se tirar proveito das potencialidades semânticas do enlace significativo que se entendia existir entre a palavra e a imagem, no interior de um espaço como, por exemplo, uma folha de papel; o êxito de um modo de expressão de base poética como o emblema – que a impressão tipográfica dos textos enormemente facilitava, se bem que não a tivesse inventado – manifestação dessa ambição11. A memória tinha a ver com algo que se podia ver, para onde se podia remeter o observante ou o leitor, ajudando, desse modo, a fortalecer a força significativa dos meios de comunicação artística, num processo que se avizinhava do conceito de prazer em Aristóteles, radicado fundamentalmente na mimesis12. Les Confessions, éd. intégrale... par Ad. Van Bever, T. II, Paris, sd, 74-75. Lina BOLZONI, La chambre de la mémoire. Modèles littéraires et iconographiques à l’âge de l’imprimerie, Genebra, 2005. 12 O passo mais evidente da Poética é 1448b; parece legítimo apelar a essa definição de poesia a propósito da situação mental produzida pelo enunciado poético de Camões (pelo menos no campo da intencionalidade) na medida em que o leitor, em quem o poeta considera implícito o saber letrado e quiçá uma experiência sentimental adequada – o tormento amoroso, ampliado até aos limites do existencial, era inerente a um estado cultural e social em que se podia rever, ao menos no plano idiossincrático, quem o lia – poderia encontrar o deleite interiorizado que o texto era suposto suscitar nele. No fundo, trata-se de um tópico gerado pelo modelo do «Voi ch’ascoltate in rime sparse il suono» do soneto I de Petrarca. Mas a poesia construía-se também com retórica e no quadro de uma ideia de criação que dependia da imitatio, mais ou menos servil ou genialmente alusiva conforme os casos; Camões imitou Petrarca – que poeta lírico da época não o pretendeu fazer? –, mas não em tudo; por exemplo, a metáfora do caminho, que tanta força tem no italiano e que Garcilaso de La Veja também usa, surge em Camões – enfatizando uma verdade biográfica – substituída pela viagem marítima 10 11 192 NA ELEGIA DE CAMÕES «O POETA SIMÓNIDES, FALANDO» Há três décadas, em 1980, Christopher Lund publicou um conjunto de pequenas histórias, do tipo de anedotas, relacionadas com o ambiente do paço régio, com figuras da aristocracia e da casa real portuguesa relativas, na sua grande maioria, aos reinados de D. João III e de D. Sebastião13. Do ponto de vista da organização do enunciado, essas historietas, apresentadas como autenticamente históricas – mediante procedimentos correntes, um dos quais é a nomeação dos intervenientes como pessoas que haviam realmente existido e de que havia ficado memória facilmente reconhecida –, organizam-se em torno do dito, enquadrado num feito que oferece uma referencialidade exofórica: o evento é, assim, mostrado ao leitor à maneira do apophtegma de larguíssima tradição tanto clássica como cristã14. Só que no apotegma existe a intenção e a pretensão de transmitir ou de inculcar uma lição de natureza doutrinária ou moral, aspecto que, no caso destas anedotas e de outras também já publicadas15, não constitui marca especial. Na verdade, o manuscrito da Biblioteca do Congresso em Washington que Christopher Lund utilizou pertence a um tipo de escritos que foi bastante mais usual ao longo dos séculos XV-XVIII do que os exemplos conservados poderão sugerir, certamente porque o terramoto de 1755, entre outras causas claro, fez desaparecer muitos outros que se encontravam nas livrarias de palácios e casas senhoriais na capital do reino, onde a nobreza mais importante se havia fixado para estar perto do poder régio. Tratava-se de colecções de histórias ou notícias organizadas por curiosos, por pessoas que desempenharam funções na administração régia ou nobre, como secretários e escrivães, por elementos de casas fidalgas, colecções essas que serviam para guardar lembranças de sucessos, de acções e atitudes, ou seja um saber que, exigindo o domínio da letra, ganhava valor e força pelo facto de se tornar memória e de se revestir de um inestimável interesse arquivístico16. É fácil imaginar a mais valia que, por exemplo, uma perigosa para o Oriente, ou como na Elegia II, «Aquela que de amor descomedido», pela imagem do andar solitário e vagaroso «ao longo de ũa praia saüdosa» (238). 13 Anedotas portuguesas e memórias biográficas da corte quinhentista. Istorias e ditos galantes que sucederão e se disserão no Paço, ed. de Christopher C. Lund, Coimbra, 1980. 14 Neste conjunto o sujeito narrador surge na 1ª pessoa – de Rui Lourenço de Távora – em 10 casos; mas, no conjunto de 127, a grande maioria depende de uma 3ª pessoa, como é corrente nos apotegmas. 15 Ditos portugueses dignos de memória. História íntima do século XVI, ed. de José Hermano Saraiva, Lisboa, s.d. 16 O coleccionismo, além de uma necessidade de custódia de um saber de fundo sobretudo literário e histórico − nesse sentido de Paul Ricoeur de história como «guardiã do passado dos homens» −, denunciava também um generalizado por esses tempos, sobretudo entre a aristocracia mais esclarecida: coleccionar inscrições antigas, vestígios arquitectónicos, relíquias de um passado que emergia materialmente na forma de ruínas; coleccionar frases de teor moralizante, ditos, sentenças; coleccionar poesia, em cancioneiros; coleccionar para saber, para adquirir ou reforçar o prestígio social da família e dos seus indivíduos, para apoiar a educação das suas gerações mais novas; coleccionar livros, com um apreço particular pelo livro manuscrito; Ana Isabel 193 Jorge A. Osório família nobre poderia retirar do facto de manter em arquivo a memória dos feitos, das funções, dos conselhos, etc. de elementos seus anteriores: além do prestígio, era a força política dessa vantagem que interessava17. Conforme Christopher Lund confessa, foi o facto de no manuscrito existir um núcleo de historietas centradas na figura de Luís de Camões que chamou a sua atenção. Trata-se de um conjunto não muito extenso de oito anedotas em que o poeta aparece como interveniente; é óbvio que não se pode garantir a fidelidade histórica destes eventos menores – aquilo que João de Barros designava de «cascalho da história» –, nem isso terá consequências graves para o que aqui importa. Essas historietas projectam a imagem de um Camões, provavelmente antes do período indiano18, jovial, galanteador e amigo do companheirismo e do convívio, como era típico do modo de vida da fidalguia de menos posses por aqueles tempos. O verso d’ Os Lusíadas tantas vezes citado «Nũa mão sempre a espada e noutra a pena»19 é com frequência utilizado para sintetizar essa imagem, não se tendo em conta que o seu significado era muito mais profundo, além de retomado certamente de Garcilaso de La Veja, cuja biografia de fidalgo-poetamilitar oferecia a Camões sugestões de similitude que lhe eram familiares através das leituras atentas que fez da sua obra20. BUESCU, A persistência da cultura manuscrita em Portugal nos séculos XVI e XVII, in Ler História, 45, Lisboa, 2003, maxime 44. 17 Por exemplo, ainda em meados do séc. XVIII o 2º marquês de Valença, D. Francisco de Portugal, fazia imprimir em 1745 em Lisboa duas Instruções dirigidas aos dois filhos mais velhos, fundadas em saber letrado e experiência política, para lhes inculcar – ostentando-o, se bem que para um restrito grupo de «parentes e amigos» – a consciência de uma dignitas própria de homens tão «ilustres» e «cavalheiros» como lhes competia ser; José Adriano de Freitas CARVALHO, As Instrucções de D. Francisco de Portugal, Marquês de Valença, a seus filhos. Um texto para a Jacobeia?, in Península. Revista de Estudos Ibéricos, 1, Porto, 2004, 319. 18 Como jovem pagem assistiu à tomada de Túnis pela armada de Carlos V, certamente integrado na comitiva do infante D. Luís. 19 Lus., VII, 79. 20 Não era difícil ler Garcilaso em Lisboa, já que, para além de cópias manuscritas, no mesmo ano, 1543, da primeira edição das suas obras no volume das de Boscán, saía em Lisboa uma igual; o conhecimento de Garcilaso é perceptível em muitos locais da Lírica de Camões; para o passo em causa há que apontar para a Elegia II, A Boscán, e para os vv. 94-99. Do mesmo modo, para a figura do poeta com a espada numa mão e a pena na outra, que Camões define num terceto da sua Elegia VII, A Dom Leonis Pereira, – «Nũa mão livros, noutra ferro e aço, / a ũa rege e ensina, a outra fere; / mais co saber se vence que co braço» (Luís de CAMÕES, Rimas, ed. Costa Pimpão, 2ª ed., Coimbra 1994, 254 , 255; é a edição aqui utilizada) – se pode evocar o v. 40 da Égloga III, Tirreno, Alzino «tomando ora la espada, ora la pluma». Talvez valha a pena anotar que o tópico em causa bastante vai para além de um simples confronto letras / armas, tão vulgar na koine humanista, e inscreve-se mais profundamente numa noção de autor que deve ser afinada para o contexto cultural (ideológico, literário) de uma época que, preocupando-se imenso com a ideia de estabilidade – ordenação das coisas e dos saberes, acolhimento imperativo de normas e códigos inerentes a géneros –, só por aproximação poderia enfrentar o acto de escrever no quadro do individualismo a que o leitor europeu de acostumou desde o séc. XVIII e que o leva a transpor muitas das vezes sem grandes cuidados a sua visão para épocas que não podiam laborar no mesmo modo de pensar. Michel FOUCAULT, em O que é um autor? (trad. port., 6ª ed., Lisboa, 2002), deixou algumas questões pertinentes para esta problemática. 194 NA ELEGIA DE CAMÕES «O POETA SIMÓNIDES, FALANDO» Quanto ao tipo de composições em verso que servem, nas anedotas em causa, para exemplificar essa faceta cortês de Camões, há que ter em conta que todos os versos aí documentados como exemplos da sua enorme capacidade para improvisar, própria do galanteio em ambientes de corte ou próximos dele, em Lisboa ou em Goa, são heptassílabos de arte menor, ou seja versos de redondilha da tradição dos cancioneiros de finais do séc. XV e do início do séc. XVI, como, entre nós, o Cancioneiro Geral de Garcia de Resende21. É o caso das anedotas sobre o tratamento do mote «Perdigão perdeu a pena» (p. 167), ou do mote «Coifa de Beirame» (p. 170), ou das trovas endereçadas a duas Damas que estavam a uma janela; em situações desse tipo Camões não utiliza o verso decassilábico de modelo italiano nem formas estróficas ou de poemas de herança imitativa das literaturas antigas22. Do conjunto de anedotas camonianas há duas – CV, p. 171-2; CVII, p. 174 – que nos podem ser úteis. Na primeira conta-se que em casa de António Pinto, também poeta e prosador com bastantes escritos e fama ao tempo, mas que é mal conhecido, respeitado pelo próprio Camões a ponto de que só a ele «reconhecia […] hũa serta excellencia, de man.ra q[ue] em sua prezença naõ ouzava m.tas vezes fazer versos», era costume reunirem-se vários homens curiosos de literatura (certamente mais de poesia do que de prosa), entre os quais «hũ homẽ q[ue] prezumia de poeta repentino, e fazia m.to maos verços». Camões várias vezes «trovou […] com elle de repente em competência só por ter ocaziaõ de rir, e zombar das parvoices q[ue] dizia». O homem, porém, mostrouse tão incomodativo, que certa tarde, entrando em casa do próprio Camões e começando a desafiá-lo em provocação com trovas «taõ fora de caminho», o poeta teve de o despachar com uma sarcástica trova centrada em torno da equivocidade da palavra macho. Na segunda anedota referida dá-se uma cena similar: numa outra tarde, estando também em casa (que portanto era também ponto de reunião), Camões recebeu um escrito enviado por uma dama que ele galanteava, perguntandolhe o significado de beijos a que «chamavam beijos tristes»; como estivesse então ocupado, com certeza não com trabalhos domésticos ou manuais, coisa imprópria de fidalgos, pediu a António Ribeiro Chiado, no momento ali presente, que se encarregasse da trova de resposta23. 21 Aníbal Pinto de CASTRO, Camões e a tradição poética peninsular, in Actas da IV Reunião Internacional de Camonistas, Ponta Delgada, 1984, 133. 22 Isabel Adelaide ALMEIDA, Camões e a poesia de arte menor, in Lírica Camoniana. Estudos diversos, Lisboa, 1996, 27. 23 A questão do ou dos círculos literários em que se moveu Camões – os adversários, os admiradores e protectores – não é conhecida com rigor; Maria Vitalina Leal de MATOS, Os poetas do século XVI: relações literárias, in Magnum miraculum est homo. José Vitorino de Pina Martins e o Humanismo, Lisboa, 2008, 39. 195 Jorge A. Osório O que interessa aqui apontar, a propósito destas duas anedotas – e não importa discutir a verdade dos relatos –, é a imagem que nos fica de um Camões que, para lá da fama de improvisador em verso, estava muitas vezes ocupado, ou seja, concentrado em alguma actividade de natureza intelectual, como seriam leituras ou o trabalho criativo da escrita. Os narradores das anedotas não o dizem – nem isso lhes interessava –, mas nada impede que iluminemos a sua figura com esta luz24. A verdade é que Camões não foi insensível à enorme capacidade expressiva e expositiva do decassílabo, mais do heróico do que do sáfico. Nas Rimas usou-o para os registos mais sérios, cultos, eruditos ou de pendor confessional, inscrevendo aí reflexões, sentenças, sugestões biográficas e mitológicas, aproveitando o espaço mais aberto que ele lhe oferecia. Nele escreveu as Elegias, agrupadas na III Parte. É bem sabido que a elegia cristalizou de certo modo o sentido de «lamentação», na linha de uma presunta função originária de querimonia. A afirmação, de forma alguma isenta de provocação, que os elegíacos eróticos faziam da sua differentia no ambiente literário e poético da Roma do séc. I a.C. indiciava um caminho que, ao lado daquilo que Horácio expressava entender pelo trabalho do poeta doctus, disponibilizava a vantagem, caucionada pelo Ovídio dos Tristia sobretudo, de oferecer uma modalidade de expressão lamentosa relacionada com um sofrimento individualizado, muito embora, sob a influência do julgamento de Quintiliano, o Sulmonense fosse tido como mais «lasciuus» do que Tibulo ou Propércio25. A lição destes auctores apontava para a elegia como género que possibilitava a evocação de um passado biográfico cujo crédito dependia essencialmente daquilo que o enunciador dizia de si mesmo, por exemplo sobre os amores sofridos, actuando sobre o leitor com frequência mediante a convocação de pormenores concretos de natureza pessoal – mas não se perca de vista o quadro de uma fictio, não totalmente isenta de função retórica –, relativos a um passado de que se lembram detalhes como locais geográficos ou mesmo notas eróticas íntimas, o que, como é fácil ver, favorecia imenso a sinceritas que dava ênfase ao lamento da tristeza26. O tipo Essa imagem de um Camões concentrado no trabalho poético parece adequar-se mais à poesia pertencente aos géneros maiores, que pressupõem um saber literário e letrado muito grande; Maria do Céu FRAGA, Os Géneros Maiores na Poesia Lírica de Camões, Coimbra, 2003. Ocorre evocar aqui a Sátira II de André Falcão de Resende «A Luiz de Camões», imbuída de uma tonalidade mirandina, contra os «que, desprezando os doutos, gastam o seu em truhães», aos quais de opõe a imagem do poeta que despreza riquezas e honrarias, mas que gasta a sua «honra, fazenda, tempo e tudo» «em bom uso e honesto estudo» (vv. 79-81); Américo da Costa RAMALHO, Camões e os seus contemporâneos e Ainda Camões e alguns contemporâneos seus, in Camões no seu tempo e no nosso, Coimbra 1992. 25 Arturo R. ALVAREZ HERNÁNDEZ, Horacio, la elegía, los elegíacos, in Euphrosyne, XXIII, Lisboa, 1995, 43. 26 É bem sabida a insistência de Ovídio na sinceridade daquilo que escrevera em verso antes do exílio no 24 196 NA ELEGIA DE CAMÕES «O POETA SIMÓNIDES, FALANDO» de enunciado em metro que subliminarmente a que esta orientação poética se reportava era o discurso épico, definido como um canto proclamador de feitos bélicos empolgantes, com versos de seis pés dactílicos; só que, ao vincar como suporte da deriva temática – cantar não a guerra e o seu herói, como na Eneida, mas o amor e o eu infeliz, o me miserum – uma diferença métrica entre os versos ímpares e os versos pares, a elegia aparecia, tal como a programava Ovídio na primeira dos Amores, a emular a gravidade constante do ritmo épico27. Era o dístico elegíaco (hexâmetro / pentâmetro), que não deixou de ter influência sobre a poesia românica em terza rima usado na Divina Commedia de Dante, impondo-se depois como metro próprio da elegia no período renascentista e maneirista, especializando-se, de certo modo, o género no elogio fúnebre e no tratamento da lamentação amorosa28. Isto falando do género canónico, já que o termo designou também poesias em modalidade epistolar ou em verso tradicional, o que decorre da capacidade de variação do sentido de elegia29. Sobre a elegia clássica – sua origem, características, temáticas –, no séc. XVI condensavam-se as definições e explicações que no fundo provinham dos topoi da tradição literária anterior – colhidos sobretudo em Quintiliano, mas também sob a influência dos pontos de vista de Horácio –, como sucede em Francesco Robortello ou em Júlio César Escalígero30. Era, no fundo, um género elevado mercê das temáticas e problemáticas que podia acolher, da métrica utilizada, das sugestões que podia instituir com estratégias discursivas observáveis em poetas clássicos como Horácio. Coisa que se coadunava bem com aquela imagem de poeta ocupado de que falam as anedotas citadas. Comecemos, pois, pela leitura do longo 1º período da Elegia «O Poeta Simónides, falando»31: Ponto. Entre uma larga bibliografia, Walter de MEDEIROS, A Lua negra do Poeta, in Humanitas, XXXVXXXVI, Coimbra, 1983-1984, 87. 27 Amores, I, 1,1-5, onde reescreve a abertura da Eneida: «Arma graui uiolentaque bella parabam / edere, materia conueniente modis. / Par erat inferior uersus; risisse Cupido / dicitur atque unum surripuisse pedem». 28 Vítor Aguiar e SILVA, A elegia na Lírica de Camões, in A lira dourada e a tuba canora: novos ensaios camonianos, Lisboa, 2008, 164. 29 Inserida num complexo sistema de literatura de propaganda, as poesias fúnebres geradas em torno de Padres Jesuítas foram também, às vezes, designadas como elegias tristes; para uma visão actualizada da problemática, José Adriano de Freitas CARVALHO, Vida e morte de Inácio Martins SJ. (1531-1598), o Santo Mestre da Cartilha, in Poesia e hagiografia, Porto, 2008. 30 Pedro CORREA, Escalígero em la obra literaria y erudita de F. de Herrera, in Ágora. Estudos Clássicos em debate. Júlio César Escalígero, 9.1, Aveiro, 2007, maxime 369-71. A problemática revestia-se de uma enorme importância pelas questões que levantava sobre a relação entre os antigos e os modernos e as consequências daí resultantes para a teorização poética; Belmiro PEREIRA, Antigos e Modernos: o humanismo norteeuropeu nas retóricas peninsulares do séc. XVI, in Península, ed. cit., 5, 2008, 93s; Des arts de prêcher à la rhétorique sacrée: la prédication au Portugal pendant la Renaissance, in Ágora, ed. cit., 10, 2008, 81s. 31 A primeira edição de 1595 já colocara esta Elegia em primeiro lugar da Parte III, disposição que foi seguida pela edição de 1598 e é adoptada por editores como Costa Pimpão. Mas, pelas referências nela constantes a eventos indianos de 1553 – elegia marítima lhe chamaram –, parece claro que não foi a primeira em data, 197 Jorge A. Osório «O Poeta Simónides, falando ao capitão Temístocles, um dia, em cousas de ciência praticando, ũa arte singular lhe prometia, que então compunha, com que lhe ensinasse a se lembrar de tudo o que fazia; onde tão sutis regras lhe mostrasse que nunca lhe passasse da memória em nenhum tempo as cousas que passasse». Vejamos o período seguinte: «Mas o capitão claro, cujo intento bem diferente estava, porque havia as passadas lembranças por tormento, Ó ilustre Simónides! (dezia) Pois tanto em teu engenho te confias Que mostras à memória nova via, Se me desses ũa arte que em meus dias Me não lembrasse nada do passado, oh! quanto milhor obra me farias!». Temos dois longos períodos, de extensão igual. Sendo o verso uma frase que se organiza em obediência a factores que estão para lá da sintaxe gramatical, como sejam os constrangimentos do ritmo, a distribuição das tónicas e das átonas, a própria rima e a sua relação com a unidade gramatical da frase, verificamos aqui uma enorme e bem sugestiva aproximação do enunciado ao registo da prosa quase familiar, sobretudo no primeiro período32: temos, na sequência do o que levou outros editores, como já antes fizera Faria e Sousa, a adoptar uma ordenação distinta: Maria de Lourdes SARAIVA, Lírica completa, III, Lisboa, 2002, 154; no Cancioneiro de Luís Franco Correia a ordem destas três primeiras elegias está invertida: esta é a terceira do conjunto com que se inicia esta colectânea manuscrita quinhentista, registando a sua epígrafe que «tem muito poca mudanca» (fl. 4r). Mesmo tendo em conta a nossa total ignorância sobre o Parnaso que o poeta teria praticamente organizado quando viajou de regresso a Lisboa – e uma «secreta e doida esperança» de o encontrar consumiu camonistas como Vítor Aguiar e SILVA, Retrado do Camonista quando Jovem (Com Alguns Pingos de Melancolia), in Luiz Vaz de Camões Revisitado, coord. de José Augusto Cardoso Bernardes, «Santa Barbara Portuguese Studies», VII, Santa Barbara, 2003, 377 –, há que considerar que as Rimas impressas obedecem a uma organização pensada; no caso das elegias, notar-se-á que as três primeiras se sintonizam com a ideia de que o afastamento da terra natal e da mulher amada (a inspiração ovidiana da 2ª e da 3ª está patente logo no 1º verso) motiva uma poética da memória de conotação lamentosa e, por isso, elegíaca, com a imagem também ovidiana do exilado cujo sofrimento é fortemente agudizado pelo seu afastamento em terra estranha. 32 Importaria, talvez, anotar que o passo em causa, na sua categoria de enunciado propositadamente orientado por parâmetros de uma poética, pode querer evidenciar, a problemática em torno deste verso longo, cujas características o aproximavam do hexâmetro latino, mas que, face a este, se revelava mais difícil, na medida em que, segundo escrevia Lorenzo de’ Medici no «Proemio» ao seu Comento de’ miei sonetti, «perché nella 198 NA ELEGIA DE CAMÕES «O POETA SIMÓNIDES, FALANDO» enunciado, um sujeito, Simónides, um predicado, prometia, um complemento directo, ũa arte singular, a que se juntam outras informações complementares que dão consistência ao relato, nomeadamente o dativo lhe, que se reporta ao destinatário da fala para visar o interesse suposto pelo sujeito. Como marca do enunciado narrativo até temos o indicador temporal um dia; faltou só indicar o lugar. A narração é da responsabilidade de uma terceira pessoa, mas o período seguinte, explorando as potencialidades do registo narrativo, incorpora uma fala em discurso directo, que, para além da creditação daí decorrente, dramatiza também um pouco o relato, evidenciando a intenção opinativa que está subjacente ao recurso a esta anedota por parte do autor. A acentuar este aspecto, que é importante na economia da estratégia que preside ao desenvolvimento do poema33, temos o realce trazido pela adversativa mas à cabeça do verso inicial desse segundo período. Trata-se de um procedimento que Camões utiliza com alguma frequência, o que patenteia uma actuação discursiva que marca com alguma ênfase o seu discurso lírico e que reside numa séria preocupação em solidificar uma estrutura argumentativa capaz de fundamentar a meditação analítica que o percorre. No caso presente, estes dois períodos iniciais, tanto pela mudança do discurso indirecto para o directo, como pela advertência contrastiva e aditiva do mas, instituem, logo na abertura, uma oposição intensificada de pontos de vista que deixa o leitor em suspenso sobre o que é que o poeta iria retirar de tal anedota, como se se tratasse do tema de um sermão. Temos assim que a força ilocutória das duas primeiras frases da Elegia decorre não só da sua estrutura enunciativa, mas também de um factor de ordem retórica, que é a anedota em si mesma e a autoridade de que se faz portadora por ser um exemplo de origem clássica, já que provém de Plutarco e era por demais conhecida na cultura antiga e humanista34. lingua nostra, oltre a’ piedi che piú tosto per natura che per altra regola è necessario servare ne’ versi, concorre ancora questa difficultà delle rime, la quale, come sa chi l’ha provato, disturba molte e belle sentenzie, né permette si possino narrare com tanta facilità e chiarezza» (Tutte le opere, a cura de Paolo Orvieto, I, Roma, 1992, 371); o tópico da alegada falta do ritmo no decassílabo, que para muitos a tornavam mais prosa do que propriamente verso (Lorenzo o regista: «si potrebbono fare molti verso contenenti undici sillabe sanza aver suono di versi o alcun’altra differenzia dalla prosa»), era bem conhecido nos meios peninsulares, como documentam, entre outros, Boscán, Sá de Miranda ou as abordagens paródicas no contexto de uma polémica entre antigos e modernos. 33 Sobre a complexidade da estrutura formal e semântica do poema, V. Aguiar e SILVA, A lira dourada, ed. cit., 174-177. 34 Nas Vidas paralelas; Petrarca utilizou-a no de Secretis, I, VIII. A importância de Plutarco na cultura tem sido imensa ao longo dos séculos; os estudos dedicados ao autor e à sua obra nos últimos anos são claro testemunho: por exemplo Os Fragmentos de Plutarco e a recepção da sua obra, in Humanitas, LV, Coimbra, 2003. O tema da memória ocupou um lugar central na reflexão filosófica e literária; não só Simónides, mas também Hípias inventaram artes mnemónicas que circularam nas referências culturais, fundamentando uma longa tradição letrada – filosófica e retórica – respeitante à organização e sistematização do saber que vai 199 Jorge A. Osório Qual é o problema evidenciado nesse primeiro segmento do poema? É a questão da utilidade da memória, não na dimensão histórica, nem na perspectiva exaltatória e apologética da epopeia, mas na perspectiva individual, que era a que interessava ao poeta: focalizar a atenção do leitor no seu caso pessoa35. Como se aludiu mais atrás, o tema da memória era para Camões um tema algo obsessivo, que ele articula com o sentido da experiência vivida, na dimensão de uma biografia que mistura o plano do histórico com o plano da sua projecção ideal e subjectiva, que comanda as atitudes de expressão poética36. Na verdade, o enunciado lírico mostrava-se como execução de um discurso elaborado no quadro de uma linguagem que radicava no modelo petrarquista, embora mantivesse esquemas da tradição cortês cancioneiril, tornando-se o texto o veículo de uma articulação com o leitor buscada pelo autor, na medida em que, entre outros factores, este pressupunha que aquele – idealmente os desesperados – tinha visto, e por isso conhecia, tanto o que eram as formas de expressão dessa tradição quanto os temas em que ela insistia e que autorizava, no quadro de uma imitação petrarquista que já foi designada como uma «espécie de self service emocional, disponível para a expressão de todas as modulações sentimentais de uma alma requintada e sensível»37. Um dos sinais da importância que o lexema memória detém é o facto de, quando utilizado, surgir, as mais das vezes, em rima com história, como sucede no primeiro período da Elegia, ou então com glória ou com vitória38. Deve notar-se que este procedimento nada tem de muito especial na poesia quinhentista: no Cancioneiro Geral encontramos muitas articulações destas palavras em posição de rima; aquilo que se torna saliente em Camões é a densidade semântica que ele concede à palavra, forçando o leitor a situar-se dentro da relação quase de sinonímia entre memória e história, entendidas estas como o conteúdo de uma biografia figurada em termos poéticos. passar por Cícero e desembocar, nos dois séculos e meio do renascimento humanista, no forte aproveitamento pedagógico dos Jesuítas; Margarida MIRANDA, Persuadir pela palavra e pela imagem: «memoria», in Boletim de Estudos Clássicos, 48, Coimbra, 2007, 127; para uma visão actualizada da problemática ligada à evangelização jesuíta, José Adriano de Freitas CARVALHO, Vida e morte de Inácio Martins SJ., art. cit., 135s. 35 Perspectiva que Francisco Manuel de MELO evocaria no início da sua Epanaphora tragica segunda, 1627, 156. 36 Ter-se-á em consideração que a perspectiva imposta pelo discurso lírico não podia coincidir com a ideia de memória como espaço organizado dos saberes apropriados ao orador equacionada por Cícero (ex. de Oratore, II, 354), pelo que, se fosse permitido especular um pouco, nos poderíamos interrogar se ao espírito de algum leitor não ocorreria a ideia de que, ao usar esta anedota sobre Temístocles, o autor não estaria a atetizar a possibilidade (teórica) de a memória das coisas biográficas se compatibilizar com a lógica do teatro dos saberes. 37 Rita MARNOTO, Sete Ensaios, ed. cit., 51. 38 O termo comporta um semantismo direccionado para a ideia da transitoriedade da condição humana – maxime do poeta –, não na dimensão religiosa do contemptus mundi, mas, por via neo-platónica não totalmente arredada dele, a qual se evidencia na rima memória / glória / transitória da Elegia III, «O Sulmonense Ovídio, desterrado» (241). 200 NA ELEGIA DE CAMÕES «O POETA SIMÓNIDES, FALANDO» Ora não deixa de merecer anotação que o termo memória surja uma única vez nesta Elegia, em posição de rima, no local referido39, quando a anedota incide expressamente sobre a problemática da relação entre as armas e as letras, neste sentido de que estas conservam a memória ou a fama daquelas ao longo dos tempos. É que o autor não está preocupado nem com a natureza histórica da cena, nem com o valor do seu possível significado doutrinário ou filosófico. O que o preocupa é a lição extraível, pelo menos no plano da dinamização de um poema lírico, para o campo pessoal, individual, próprio do eu que gere a enunciação40. Em Camões a memória é muito a lembrança (muitas vezes no plural intensificador lembranças) de incidência pessoal, não no sentido da narrativa autobiográfica, mas só – e era quanto bastava em poesia – na perspectiva da sugestão psicológica, naquilo que se poderia dizer uma psicologia amorosa, para a distinguir de outros campos psicológicos de então, como seriam os relacionados com vivências espirituais religiosas, comportamentos devotos ou de outra natureza. De facto, nesta Elegia I o termo que nos vai surgir mais vezes é precisamente esse de lembrança/s, em vez de memória41. Impõe-se, por conseguinte, observar como o autor vai actuar nos dois segmentos subsequentes que é possível identificar no poema; isto é, a estratégia expositiva e retórica que vai seguir para consolidar a sua interpretação ad seipsum da historieta relatada no início. Mas antes de avançar importa sublinhar que existe, no texto, a marca de um destinatário, que seria também o dedicatário do poema, um «Senhor» referido duas vezes, muito provavelmente D. António de Noronha, elemento que inculca no leitor a ideia de que estamos diante de um texto dirigido a um alocutário na forma de epístola, de acordo, aliás, com o permitido pela uariatio do género elegíaco42. Comecemos por chamar a atenção para as partículas que iniciam os primeiros versos do grupo seguinte de tercetos: que e se; no segmento final do poema voltaremos a encontrar uma actuação similar. Trata-se de um conjunto Sem ser nessa posição, mas de qualquer momo na segunda parte do verso, aparece também no sintagma «memórias tristes» no plural, o que não sucede quando o lexema é palavra-rima. 40 O conjunto de questões relacionadas com a faculdade da memória, nomeadamente a sua localização no cérebro (entendia-se que na parte posterior, como receptáculo da informação oriunda da zona frontal, onde está a faculdade superior do ver, no sentido amplo de ‘observar, contemplar, adquirir saber pela experiência ou pela leitura’), foi assunto de uma larga literatura científica, sobretudo nos meios italianos. As relações do tema com os estudos médicos e anatómicos eram óbvias e por essa via também englobavam a questão do amor, sua origem, natureza, consequências, remédios e terapias; Lina BOLZONI, La chambre de la mémoire. Modèles littéraires et iconographiques à l’âge de l’imprimerie, trad. franc., Genebra, 2005. 41 Com as Elegias II e III a aprofundarem essa reflexão sobre a custódia do passado individual, temos no início da Parte III das Rimas de 1595 um conjunto de poemas dedicados à problemática da memória. 42 Neste quadro, a elegia podia também revestir-se de uma função consolatória, apresentando-se como epístola, de que é exemplo, entre outros casos, a Elegia III de Peto de Andrade CAMINHA, A Antonio Ferreira Na morte de Maria Pimentel sua mollher, in Poezias de… mandadas publicar pela Academia Real das Sciencias, Lisboa, 1791, 123. 39 201 Jorge A. Osório de tercetos que instituem um tempo argumentativo no interior da Elegia e que, apesar das aparências, é relativamente complexo. É que Camões tem de proceder à transferência do ponto de vista do general Temístocles, famoso vencedor da batalha das Termópilas43, que não envolvia razões de ordem amorosa na sua recusa da arte singular que Simónides lhe propunha, para o domínio do amor entendido como sofrimento inserto na biografia terrena do homem. Comecemos por reter o seguinte: um raciocínio persuasivo é tanto mais credível quanto mais são as contradições que ele consegue superar44, porque vai ser útil observar por este ângulo os sete tercetos seguintes. O primeiro do conjunto abre com esse que, que dá início a uma série anafórica de se, conduzindo o leitor a conclusões formuladas mediante enunciados interrogativos. Trata-se de uma estrutura frásica que Camões utiliza com alguma frequência, sobretudo nas poesias sábias à maneira italiana. Do ponto de vista da sua afirmação sonora, as partículas citadas são ténues: monossílabos átonos, realçados no entanto pelo lugar de arranque do verso a que pertencem. O que estabelece uma coordenação explicativa, assegurando a continuidade expositiva com valor também de nexo causal, um pouco à semelhança do nam ou do enim latinos, para, desse modo, reforçar a ligação com o segmento contíguo, coisa que não deixava de ter interesse numa exposição bastante estruturada em volta de um objectivo persuasivo. É como se esse que pretendesse forçar a sugestão da resposta a uma virtual pergunta ‘então porquê?’, mediante o nexo ‘de facto’, ‘na verdade’, ‘com efeito’. Seguem-se sete tercetos, divididos em duas sequências, em jeito de andamentos, concentrados na necessidade de dar solidez a uma argumentação retórica. Com ela o poeta pretende garantir uma segurança expositiva de que emane a pertinência da anedota narrada no começo da Elegia. Essa estratégia evidencia-se nas frases condicionais iniciadas pelos se à cabeça dos versos: «Que, se é forçado andar por várias partes buscando à vida algum descanso honesto, que tu, Fortuna injusta! mal repartes; e se o duro trabalho é manifesto quer por grave que seja, há-de passar-se com animoso esprito e ledo gesto; [então] O celebrado epitáfio destinado a evocar a memória dos gregos mortos nessa batalha (Frg. 92 DIEHL) foi escrito de certeza por Simónides, conforme a crítica mais segura aceita. Bice Mortara GARAVELLI, Manuale di Retorica, Milão, 1988, 30. 43 44 202 NA ELEGIA DE CAMÕES «O POETA SIMÓNIDES, FALANDO» de que serve às pessoas alembrar-se do que passou já, pois tudo passa, senão de entristecer-se e magoar-se?»45. Estamos diante de um implicação simples, do tipo se p então q, formulada, porém, num enunciado poético: reconhecida a veracidade das condicionais – no âmbito de uma doxa sobre a condição humana –, a resposta à pergunta formulada só podia ser concordante. Esquema idêntico acontece no segundo andamento desta argumentação: «Se noutro corpo ũa alma se traspassa, não como quis Pitágoras na morte, mas como manda Amor na vida escassa; e se este Amor no mundo está de sorte que na virtude só dum lindo objecto tem um corpo sem alma, vivo e forte; onde este objecto falta, que é defecto tamanho para a vida, que já nela m’está chamando à pena a dura Alecto; [então] porque me não criara minha estrela selvático no mundo, e habitante na dura Cítia, ou na aspereza dela?». As condicionais são também verdadeiras – no quadro de uma dada filosofia do amor –, e o raciocínio implicativo é do mesmo tipo, com a diferença de que a consequência solicitada pela interrogação pertence à categoria do impossibile, na medida em que colide com a admissão da ideia de que o poeta, nascido no reino de Portugal, num tempo bem determinado, pudesse ter nascido na «dura Cítia», terra de transparente evocação dos dramas terríveis de Medeia. O efeito poético é claramente potencializado pela evocação mitológica. Mas antes de avançar é preciso observar o terceto em cima citado: 45 A figura da ratiocinatio surge aqui apoiada numa doxa desenhada a partir tanto de um saber clássico, como de uma imagem que o poeta certamente fora dando de si mesmo nos círculos letrados, sobre o qual Wilhelm STORCK compilou muitos dados, sem, no entanto, ser possível acompanhá-lo totalmente na ideia de que as obras de Camões são a «fonte mais pura e mais abundante em datas sobre a vida do Poeta» (Vida e obras de Luís de Camões, reimpressão de Lisboa, 1980, 328); que não dispomos de muito mais é verdade, mas fazer delas um vidro transparente, sobretudo no tocante aos amores, é passada longa demais. 203 Jorge A. Osório «onde este objecto falta, que é defecto tamanho para a vida, que já nela m’ está chamando à pena a dura Alecto». Editores há – Costa Pimpão, Maria de Lurdes Saraiva, por exemplo – que sinalizam graficamente os momentos de pausa que precedem e se seguem a este terceto – pausas inerentes à delimitação dos tercetos, mas aqui também de certo modo impostas pela acumulação argumentativa do enunciado – usando dois pontos e vírgulas, quando conviria indicar ao leitor a ausência de solução de continuidade neste segmento. Na verdade, o terceto anterior tinha enunciado que a força ou virtude de um «lindo objecto» era tal que transformava um corpo «vivo e forte» num «corpo sem alma» e o seguinte concluía o pensamento por meio da interrogação mantida em suspenso desde muitos versos atrás. Ora, se amenizarmos um pouco com vírgulas em vez de ponto e vírgula a pausa inerente ao espaço entre tercetos46, vincamos esse seguimento sintáctico (e se este Amor tem um corpo sem alma, vivo e forte, onde este objecto falta… porque ma não criara minha estrela…?) que permite perceber que o onde responde à questão ubi?, neste sentido de que, verificando-se, em algum lugar, a falta desse objecto (Camões pressupõe que o leitor sabe o latim suficiente para fixar o sentido de objecto e de defecto), verifica-se então a ausência da condição necessária para o Amor, qual seja a presença do tal «lindo objecto»; nessas circunstâncias o efeito é tal que se chega quase à loucura – «m’ está chamando à pena a dura Alecto» –. Então, até do ponto de vista sintáctico, passa a ter consistência a interrogação final. Havemos de concordar que nesta zona da Elegia a sintaxe exige uma atenção mais detalhada, como ainda acontece nos três tercetos seguintes: «Ou no Cáucaso horrendo, fraco infante, criado ao peito d’algũa tigre Hircana, homem fora chamado de diamante; porque a cerviz ferina e inhumana não sometera ao jugo e dura lei daquele que dá vida quando engana. Ou, em pago das águas qu’estilei, As que do mar passei foram de Lete, Para que me esquecerão que passei.» É a solução do texto nas edições de 1572 e de 1598, muito embora se devam ter em conta as práticas de pontuação à época; no Canc. Franco Correia existe um sinal de pontuação, certamente uma vírgula, utilizado três vezes nesta zona do poema. 46 204 NA ELEGIA DE CAMÕES «O POETA SIMÓNIDES, FALANDO» A presença da disjuntiva ou obriga-nos a atentar na alternativa aí em jogo, que prolonga as ondas de choque das referências clássicas dos loci horrendi do Cáucaso, lugar do suplício do Prometeu agrilhoado, e da Hircânia famosa pelos tigres ferozes, lá para as bandas do mar Cáspio47. Que hipóteses temos aí em presença? Elas de certo modo respondem à pergunta deixada atrás: porque me não criou minha estrela como um selvagem? E temos pela frente duas hipóteses a considerar: ou aceitar que, caso tal se pudesse ter verificado, então esse sujeito eu, se tivesse sido educado desde cedo («fraco infante») num local horrendo, uma vez tornado homem maduro possuiria a dureza do diamante para resistir à tal virtude ou força de um lindo objecto, ou seja ao Amor, sendo capaz de não se submeter ao seu «jugo e dura lei»; mas estamos no reino do impossível! Ou então encarar como segunda hipótese o entendimento de que as «águas qu’ estilei», isto é as lágrimas choradas, equivaleriam, até por extensão («as que no mar passei»), às do rio Lete, ou seja ao esquecimento. Coisa de igual modo impossível. Por isso o terceto seguinte, aberto também por um que de matiz causal, esclarece o leitor das razões dessa limitação, aquilo que constitui a marca central da aporia camoniana: «Que o bem que a esperança vã promete, ou a morte o estorva, ou a mudança, que é mal que ũa alma em lágrimas derrete». Havemos de concordar que a metáfora é bastante poética, ainda que usada também por outros: uma alma que se derrete em lágrimas. Isto quer significar o seguinte: sendo irreal resistir ao Amor ou esquecê-lo, só duas situações ficam em cima da mesa: ou a morte, que tudo estorva, ou a mudança (por exemplo, da alegria para a tristeza), que derrete a alma em lágrimas! Assim pode o «Senhor» compreender o pensamento sintetizado no terceto seguinte, «Já, Senhor, cairá como [i. é ‘compreenderá’] a lembrança»; ou seja no tempo presente que é o do mal, a «lembrança [não usa memória] do bem passado é triste e dura», porque nasce precisamente onde (no ponto em que) morre a esperança, em virtude, como é óbvio, da ausência do lindo objecto. No entanto, é preciso demonstrar ou fazer ver, visualizar em sentido aristotélico, essa opinião que conduz o poema para uma nova fase, agora de tipo narrativo. Na verdade, com o terceto «Soltava Éolo a rédea e liberdade» inicia-se uma alongada sequência narrativa, arrumada em dois sectores: em primeiro lugar um relato de natureza mitológica, apelando para o saber erudito do leitor, com a intervenção do discurso directo no seu final para reforço da credibilidade: 47 Estes loci horrendi faziam parte do idiolecto elegíaco e como tal encontram-se na elegia amorosa romana. 205 Jorge A. Osório «Eu, trazendo lembranças por antolhos ………………………………………. dezia: – Ó claras Ninfas! Se o sentido ……………………………………… se, por ventura, fordes algũ’ hora ………………………………………. nelas em verso heróico e elegante, escrevei cũa concha o que em mim vistes: pode ser que algum peito se quebrante». São treze tercetos – que numa discreta nota da sua tradução da Vida e obras de Luís de Camões, do grande camonista germânico que foi Wilhelm Storck, Carolina Michaëlis designa como um «estudo»48, obviamente em sentido pictórico ou musical – que desenvolvem a analogia entre a inquietação da travessia marítima configurada no modelo mitológico e a perturbação interior nascida da ausência que essa travessia provocava49. Em segundo lugar, num esquema expositivo similar e de idêntica extensão, surge uma narrativa assente na verdade biográfica garantida pela informação do próprio poeta sobre o momento mais perigoso da viagem para a Índia, a passagem do Cabo da Boa Esperança. No seu termo também se introduz o reforço persuasivo do discurso directo, em forma de monólogo interior: «……………………….. em mim dezia: – Se algũa hora, Senhora, vos lembrasse, nada do que passei me lembraria». E vêm mais seis tercetos ainda com dados validados pela verdade histórica, numa estratégia que também é usual em Camões: a reportagem de elementos referidos a uma realidade que não pode ser discutida porque histórica – aqui a referência à expedição contra o príncipe de Chembe, em finais de 1553, no Malabar, que ocupa vinte versos – surge como argumento fundamentador de uma reflexão moralista: «Vi quanta vaidade em nós se encerra»50. No entanto, neste ponto, o leitor talvez haja perdido um pouco a anedota inicial, sobre Temístocles. E com alguma razão. Na verdade, apesar de, no decorrer Wilhelm STORCK, Vida e obras de Luís de Camões, ed.. cit., 514, nota *. A propósito dos versos «O coro das Nereidas nos seguia», Faria e Sousa não resiste a uma das suas habituais manifestações de encanto: «Cada verso es un pino de oro». No entanto, como é bem sabido, a capacidade de evocar a tempestade marítima com todos os seus perigos, mesmo que num registo de imitação de attestatio rei uisae, não dependia, em absoluto, de uma experiência realmente vivida no mar; os clichés literários eram abundantes desde a Antiguidade. 50 A valorização moralista foi feita pelos biógrafos mais antigos; Manuel Severim de FARIA, Discursos vários políticos, in Vida de Luís de Camões, ed. de Maria Leonor Soares Albergaria Vieira, Lisboa, 1999, 111. 48 49 206 NA ELEGIA DE CAMÕES «O POETA SIMÓNIDES, FALANDO» dessa anedota, não se explicitarem em concreto os motivos por que o general ateniense dispensava a oferta de Simónides, não era difícil inferir que eles residiriam de preferência numa visão algo amargurada da sua experiência51. Camões impõe uma deriva a esse sentimento, fazendo-o inflectir para o campo do sofrimento individual provocado pela infelicidade amorosa, gerada pela ausência da dama amada52. Para dar consistência argumentativa a isto e para, de um ponto de vista da retórica de fundo aristotélico, realçar ou fazer ver com mais força essa dimensão, usa o relato garantido por duas autoridades de credibilidade assegurada: a mitologia e a sua própria experiência biográfica. É como se tivesse em mente demonstrar que a historieta inicial continha uma valia particular, susceptível de sustentar de forma eficaz uma expressão poética de orientação confessional. Ora os dezassete últimos tercetos de Elegia conduzem o leitor para uma conclusão que, embora permitindo recuperar o exemplo de Temístocles na alusão aos inconvenientes do lembrar – afinal, o peso do seu dito merecia ser ponderado –, não coincide exactamente com ele, porque o núcleo da mensagem já está deslocado: o amor implica uma dimensão de dor e de sofrimento, que nem todos estão em condições de experimentar. Importa observar como o poeta enlaça ou solda esse final ao corpo do poema. Porque o que vem de seguida é a aemulatio de um passo das Geórgicas de Virgílio53 e é necessário justificar este novo desenvolvimento. Mas uma coisa não podemos esquecer: a estratégia do poeta visa instituir uma exposição coesa, orientada para uma conclusão que, num género como o elegíaco, não decorre de uma imposição formal – por exemplo de um número determinado de versos ou de estrofes –, mas de uma lógica interna que, em teoria, atingirá o seu objectivo quando houver a percepção de que o raciocínio e a argumentação que o sustenta chegaram a um grau de eficácia e de perfectio entendido como satisfatório. Merece com certeza a pena procurar vislumbrar algum sentido na convocação virgiliana neste encerramento do poema, que a evidente intertextualidade torna transparente: «Felix qui potuit rerum cognoscere causas, Atque metus omnes et inexorabile fatum Subjecit pedibus, strepidumque Acheronis avari. Fortunatus et ille deos qui novit agrestis…» (II, 490-3) Apesar do prestígio alcançado na guerra contra os Persas, acabou por ser votado ao ostracismo, tendo-se acolhido junto daqueles que havia vencido. 52 Há que ter em conta que o espaço poético – temas, imagens, relacionamentos, léxico, soluções frásicas, intertextualidades, encadeamentos argumentativos, etc. – onde o poeta se movia impunha margens de liberdade relativamente apertadas – a imitatio tinha de se fazer num quadro estreito –; bastaria convocar o já citado Comento de Lorenzo de’Medici: «È comunemente natura degli amanti e pasto della amorosa fame pensieri tristi e maninconici, pieni di lacrime e sospiri; e questo comunemente è nella maggiore allegrezza e dolcezza loro» (ao soneto «Di vita il dolce lume fuggirei»), 382, aliás na linha das quaestiones relativas às definições do amor que vinham desde os Problemata pseudo-aristotélicos. 53 Georg., II, 440s. 51 207 Jorge A. Osório Há que anotar desde já o seguinte: nestes versos de Virgílio, já por diversos autores postos em relação com o passo camoniano, colocam-se em pé de igualdade – porque, embora de forma distinta, ambos coincidem no alheamento das solicitações que, em linguagem cristã, se diriam mundanas – o poeta sábio, «Felix qui potuit», e o homem do campo, «Fortunatus ille»; ambos, cada um à sua maneira, mas em contraste com aqueles que buscam aventurosamente as riquezas – «Sollicitant alii», v. 503 –, possuem meios para encarar sem medo o avaro Aqueronte, ou seja a morte54. Como imitador criativo55, Camões dá uma volta ao texto de fundo e desvia-o para o contexto instituído na Elegia. Mas para que tudo funcionasse com eficácia e não se criasse a sensação de uma mera adição de sequências sem articulação, era necessário instituir um nexo com o enunciado precedente. Isso é feito mediante o terceto “Que estes são os remédios verdadeiros que para a vida estão aparelhados aos que a querem ter por cavaleiros». Vendo com atenção, temos aqui dois modos de assegurar o nexo necessário: um de tipo gramatical, outro de natureza rimática, um posicionado no início do verso, outro no seu final; mas ambos se conjugam na tarefa do enlaçamento discursivo. O primeiro reside no uso do que explicativo-causal, já atrás focado para um local situado no começo do poema, e no valor anafórico oferecido pelo deíctico estes que se projecta cataforicamente em direcção a remédios. O segundo consiste no enlace de verdadeiros com cavaleiros por meio da rima, ou seja mediante uma syntaxis que não é de natureza gramatical, mas que pode funcionar complementarmente na poesia rimada. Que remédios eram esses aptos para aqueles que escolhiam ser cavaleiros, isto é os fidalgos que ocupavam a vida no trabalho – não só no exercício – das armas? Eram precisamente os perigos que o António Cruz chamou a atenção para o facto de este passo vir acompanhado de «gravuras adequadas» no exemplar da edição veneziana das Opera Vergiliana (1519) existente na livraria de Santa Cruz e por isso disponível «ao tempo em que o Poeta estudava ou folgava em Coimbra» «Honesto estudo com longa experiência misturado» (No quarto centenário da publicação de «Os Lusíadas»), in Revista da Faculdade de Letras, Série Filologia, I, Porto, 1974, 11. «A cultura de Camões é séria, sólida, sedimentada», como frisou Américo da Costa Ramalho, acrescentando: «Nada denuncia nela o autodidacta», antes alguém que, tendo adquirido «os fundamentos do saber do seu tempo», não terá terminado um curso escolar, embora nunca tivesse deixado de se cultivar «pela vida adiante»; Os estudos de Camões, in Anuário da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1980-1981, 41. Mesmo assim, haverá que ter em conta que o pensamento expresso na Elegia I não era absoluto; na Elegia VI, «Que novas tristes são, que novo dano», o verdadeira sábio é definido como aquele que «está seguro / de leves alegrias e de espanto / de dor, que turba da alma o licor puro» (Rimas, ed. cit., 251). 55 O que constituía um conselho da Poética de Aristóteles: «o poeta deve, ele próprio, ser criativo e usar bem os dados tradicionais» (1453b). 54 208 NA ELEGIA DE CAMÕES «O POETA SIMÓNIDES, FALANDO» poeta havia exemplificado nos tercetos precedentes, de cuja autenticidade o leitor não podia duvidar, porque históricos. É nessa dimensão que ganha valor e força a comparação contrastiva entre os cavaleiros e os lavradores convocada nos treze tercetos subsequentes: «Oh! Lavradores bem-aventurados! …………………………………… Dá-lhes a justa terra mantimento …………………………………. Não vêm o mar irado, a noite escura»56, versos que repousam num bem conhecido passo anterior do mesmo canto das Geórgicas57, onde Virgílio, em registo utópico, desenha a visão desses lavradores por demais felizes, para os quais a terra, longe das discórdias guerreiras, produz o sustento fácil. Há que ter em conta, no entanto, que o pensamento de Virgílio de forma alguma aponta para a ideia de que a felicidade do lavrador provenha de uma natureza espontaneamente fecunda, que assegure por si só o sustento necessário à vida; bem pelo contrário, este provém do trabalho, do labor contínuo e esforçado, preenchido com as tarefas impostas circularmente pelo período anual, numa persistência constante, adversa de acasos e arrebatamentos intempestivos; daí o superlativo iustissima aplicada à terra arável. Claro que uma doxa moral de fundo estóico autorizava o recurso aos lavradores como exemplo da pureza idealizada pela tópica de uma mediocritas da idade do ouro, na medida em que se podia deles dizer não ambicionarem as riquezas nem os luxos. São ditosos porque com facilidade alcançam «as causas naturais de toda a cousa, / como se gera a chuva e a neve fria; / os trabalhos do Sol, que não repousa…», na versão de Camões58. Nada mais. Sublinhe-se, por isso, a insistência: o seu saber incide só nas coisas naturais, reguladas, portanto sem sobressaltos nem ousadias59. Dito Retomam-se os versos: «Sollicitant alii remis freta caeca ruuntque / in ferrum, penetrant aulas et limina regum» (II, 503-4). É evidente que o leitor se depara aqui com a utilização do tema da tempestade, de fundo clássico, mas que o poeta sempre soube envolver da sugestão de uma autenticidade advinda da possível referência a uma experiência pessoal, certamente enfatizadora da verosimilhança. 57 Georg., II, 458ss, «O fortunatos nimium, sua si bona norint / agricolas», versos que conheciam uma vasta tradição de aproveitamentos e interpretações. 58 Rimas, ed. cit., 237. 59 Embora na presente Elegia não seja objecto de atenção propositada, a ideia de instabilidade como marca da condição humana e, por inclusão, da vida amorosa é tema focado diversas vezes na Lírica camoniana, com recurso a algumas metáforas e algum léxico especializado pelo poeta para esse campo semântico; ou então mediante evocações mitológicas portadoras da sugestão do movimento cíclico e oscilante que caracteriza o sofrimento físico, como o mitos de Sísifo e de Tântalo; ora na sua Theologia Platonica Ficino insistia na faceta tantálica da alma que se sente mal na vida terrena (Robert KLEIN, La forme et l’intelligible, Paris, 1970, 91-92), ideia que Camões também trabalha noutros locais. Faria e Sousa soube captar esse aspecto: Isabel ALMEIDA, Para uma Arte da Memória: Baltasar Gracián e Manuel de Faria e Sousa, Leitores de Camões, in Luiz Vaz de Camões Revisitado, ed. cit., 177, n. 61. 56 209 Jorge A. Osório de outra maneira, os lavradores eram ditosos porque não conheciam as paixões; a sua felicidade era precisamente a infelicidade do poeta, na exacta medida em que significava a invalidade da dor e do sofrimento de que se alimentava a dialéctica sobre o amor tratado na poesia lírica60. É neste ponto que parece legítimo relembrar a questão suscitada inicialmente com recurso a considerações de Paul Valéry: que sinais se poderão encontrar, nesta zona final do poema camoniano, desse exercice de soi-même, dessa excitation des autres, pólos entre os quais oscila a literatura como comunicação em que o agente autoral pode querer antecipar ou condicionar leituras do agente ledor? O que diz o poeta português? Que em oposição aos lavradores, os cavaleiros são forçados a correr os riscos do mar, os perigos das guerras, a ausência da coisa amada: «Bem mal pode entender isto que digo quem há-de andar seguindo o fero Marte, que traz os olhos sempre em seu perigo». A força incutida ao enunciado assenta na figura do paradoxo, denunciador de um estranhamento suficientemente forte para o leitor se interrogar sobre o pensamento subjacente aos versos citados. Isto decorre de um contraste que não é só do foro semântico e sociológico – os lavradores face aos cavaleiros –, mas também incide no domínio da poética. Na verdade, é notória a diferença entre a extensão do passo referido aos cavaleiros – só um terceto – e a dedicada ao decalque virgiliano61: 14 tercetos. Se do ponto de vista do sentido isso não afectaria a interpretação do leitor coevo, de tal forma era transparente a relação semântica do guerreiro com o sentido enunciado nos versos da Elegia, do ponto de vista da poética intrínseca parece ser possível descortinar uma alusão que, para além da sua actualidade, valoriza de certa maneira a mensagem final da própria Elegia «O Poeta Simónides, falando». É que, demorando-se de maneira tão clara na utilização do passo das Geórgicas, Camões parece querer sugerir que à poesia lírica cabia participar de uma «retórica dos afectos»62, a qual, vazando em moldes Haverá que notar que a problemática do labor face ao amor é bastante mais profunda em Virgílio e aponta para o contributo que o primeiro pode dar na luta contra as paixões. Mas não se perca de vista o papel decisivo de Pietro Bembo no reequacionamento da herança petrarquista para os autores quinhentistas; Rita MARNOTO, Laura Bárbora, in Sete Ensaios, ed. cit, maxime, 33. 61 A influência de Virgílio em Camões foi enorme; Américo da Costa RAMALHO, Alguns aspectos da leitura camoniana de Virgílio, in Camões no nosso tempo, ed. cit., 85. 62 Expressão que de certo modo caracteriza a abordagem de Escalígero à poesia (o que não implica o contacto directo com os seus Poetices Libri Septem, editados em 1561, já depois da morte do autor); A. López EIRE, Aproximación a la poética de Julio César Escalígero, in Ágora, 9.1, 2007, ed. cit., 11s. No século seguinte a atenção concedida aos afectos, no campo filosófico e retórico, manifesta-se de forma evidente, por ex. em Vieira; Isabel ALMEIDA, Vieira: questões de afectos, in Românica, 17, 2008, ed. cit., 103. 60 210 NA ELEGIA DE CAMÕES «O POETA SIMÓNIDES, FALANDO» consagrados uma matéria que é essencialmente reportada ao foro íntimo do poeta como amador, não podia ser desmerecedora do estatuto de um discurso elevado. Não seria isto responder implicitamente a hipotéticas interrogações sobre o estatuto desta espécie de heroicização em registo lírico de problemas do foro interior da condição enamorada do poeta, suas inquietações doloridas, seus dissídios63? Acaso não seria esta uma forma de convocar no leitor culto e erudito a problemática que envolvia o estatuto da poesia lírica, face à ausência de um adequado enquadramento por parte da teoria poética antiga, questão que ganhou enorme acuidade sobretudo após os estudos de Francesco Robortello sobre a Poética de Aristóteles? E não seria também uma maneira de sublinhar a ideia de que o canto lírico, se realizado em registo elevado – hoc est em moldes italianos – epifanizava uma dimensão heróica, não directamente no sentido épico-narrativo, mas, mercê precisamente de um possível paralelismo com a função celebrativa da epopeia, pela capacidade não só de fazer ver (mostrar, sugerir imaginativamente) a densidade sentimental da condição enamorada do poeta, mas também de a proclamar, cantando-a e, como tal, celebrando-a64? Por isso mesmo é pertinente perguntar: mas então a memória? De facto, não será de todo descabido anotar alguma debilidade na estrutura interna desta Elegia I; o leitor poderia mesmo perguntar: afinal, a que propósito vinha a anedota inicial sobre Temístocles? Qual a sua relação com o desfecho do poema? O poeta não tem esquecida a quaestio inicial, sobre a qual incidiu a reflexão que dá forma a esta Elegia, a saber: não se pode – não se deve – requerer a memória como um teatro onde, ainda que devidamente arrumadas, se acumulem as coisas referentes a um passado sabido – recorde-se o terceto «em cousas de ciência praticando» –, mas deve-se – e pode-se – fazer força para que ela seja vista antes como uma não lembrança; daí o «este excelente dito ponderado» do oitavo terceto. O peso sentencioso das palavras de Temístocles revela como o poeta tem subentendido (talvez porque ao tempo da escrita desta Elegia tivesse já definido o seu idiolecto) que a poesia – a lírica, claro – se alimentava da dor, da reflexão sobre o sofrimento amoroso, assimilado este à condição humana na perspectiva cristã, agudizada pela ausência (da amada, em terra estranha); o meu duro canto do penúltimo terceto – que no fundo se alimenta da equivalência das passadas lembranças ao tormento do quinto terceto – emerge, sem paradoxo grave, como solução sujeita ainda assim a uma condição mais do caso irreal do que do real: «se para tristes há tão leda sorte!». Rita MARNOTO, Fragmentação e dissídio, in O Petrarquismo português do Renascimento e do Maneirismo, Coimbra, 1997, 509. Esta problemática que facilitou a confusão entre a herança cancioneiril e cortês com a imitada dos italianos; Rita MARNOTO, Petrarca em redondilha, in Sete Ensaios, ed. cit., 78s. 64 Maria Vitalina Leal de MATOS, O Canto na poesia épica e lírica de Camões. Estudo da isotopia enunciativa, Paris, 1981. 63 211 Jorge A. Osório Todavia, e antes de acabar, é preciso escavar um pouco mais fundo no significado desta zona final do poema. Na verdade, a diferença entre os cavaleiros e os lavradores remete ainda para um terreno que, pertencendo à poética, não deixa também de se colorir de marcas sociológicas. Basta colocar a seguinte interrogação: essa tão calma, se bem que laboriosa, felicidade dos lavradores, que fama ou glória lhes podia oferecer?65. Só os cavaleiros, mercê das proezas e perigos guerreiros, eram merecedores da função enaltecedora e celebrativa que a poesia proporcionava66. Ora era facílimo articular feitos de armas e sua fama com sofrimentos de amor e sua celebração em verso67; bastaria fazer intervir o factor ausência da mulher amada. Com referências directas a circunstâncias históricas da sua biografia, Camões, no quadro da poética petrarquista – e bembista – que manuseia genialmente, fazia-se exemplo de tudo isto68. Bem poderia alguém proclamar aos brados a sensatez do dito de Temístocles: o poeta amador, o fidalgo cavaleiro, o «bicho da terra tão pequeno» não estaria em condições de lhe prestar atenção69. É que as memórias do general ateniense não possuíam a densidade significativa do sofrimento de um amador. Este, na hora da enunciação poética, abastecia-se largamente dos ingredientes do cancioneiro de Petrarca, a começar pelo soneto prologal – «Voi ch’ascoltate in rime sparse il suono» – endereçado a quantos ouviam os suspiros de um poeta que, exprimindo-se em ritmos variados, se confessa temeroso da ufania epifântica que o verso culto lhe proporcionaria, preferindo recolher-se ao aconchego da interioridade selecta, «onde sovente / di me medesimo meco mi vergogno», para concluir «che quanto piace al mondo è breve sogno». Razão tinha Camões para não querer ser incomodado por um versejador que só dizia parvoíces ou pela pergunta de uma dama sobre beijos tristes, como relatam as anedotas referidas no início destas considerações. Camões usa as palavras de Virgílio, mas não está atento nem interessado no significado político que a celebração do labor do agrícola tinha em tempos de Octávio Augusto. 66 Diogo Ramada CURTO, A cultura política, in História de Portugal, dir. José Mattoso, vol. 3, «No Alvorecer da Modernidade», Lisboa, 1993, 118s. Visão divergente da fama e honra manifesta, por exemplo, António Ferreira, que não era fidalgo nem cavaleiro, enaltecendo um heroísmo – que é mais uma resistência de cariz moral – fundado na liberdade que as letras proporcionavam. Mas não tenhamos ilusões: a superioridade da cavalaria como categoria ideal, enraizada na mentalidade aristocrática desde os tempos medievais, permanecia activa e actuante no plano da projecção ideal, e mesmo virtual, em pleno tempo renascentista, graças – e não de todo: apesar de... – ao mais habitual contacto com a literatura clássica (a não confundir propriamente com o ponto de vista humanista...). 67 Os meios relacionados com a cortesania estavam encharcados, por contacto directo ou não, das ficções romanescas de cavalaria, em boa medida vassalas de modelos guerreiros de fundo antigo. 68 Aníbal Pinto de CASTRO, Camöes, Poeta pelo mundo em pedaços repartido, in Boletim da Sociedade de Geografia, Lisboa, 1980. 69 Poderia, quiçá, anotar-se que, limitando-se à anedota, Camões deixa de parte a evocação ciceroniana da figura de Temístocles como exemplo daquelas grandes almas, como Epaminondas e ele próprio, que são impulsionadas de um «quoddam augurium futurorum» nelas existentes e facilmente revelável, mesmo involuntariamente; Tusc. disp., I, XIV, 33. 65 212 NA ELEGIA DE CAMÕES «O POETA SIMÓNIDES, FALANDO» Uma nota final se impõe. A imagem de Camões recolhido em sua casa, todo ocupado no estudo – num certo sentido de honesto estudo – e na reflexão, que implicavam necessariamente os livros, tal qual a anedota citada no-lo descreve, corresponderia a uma verdade mais histórica do que poética que os contemporâneos entenderiam com facilidade70. Anotar-se-á, no entanto, que a tradição posterior não pintou Camões como homem de scriptorium rodeado de livros, como foi a imagem de Petrarca, mas mais tendencialmente como o poeta genial com uma estatura existencial e moral que sofrera com a incompreensão dos homens71. O pendor reflexivo, tocado de uma tristeza emocionadamente meditativa já não restritamente amorosa, que em boa parte da Lírica e em segmentos da Épica se capta72, forneceu a base para uma abordagem da sua poesia onde a excitation des autres não ficou restringida a esses desesperados solicitados na Canção X, antes se estendeu a outros horizontes certamente não sonhados pelo poeta73. Mal podia ele imaginar que, séculos depois, se haveria de duvidar muitas vezes da sua figura de «poeta aplicado e diligente, que cultiva o seu engenho no estudo e na meditação»74! Jorge A. Osório - Universidade do Porto ABSTRACT: This article reflects on the importance of «memory» in the text «O poeta Simónides, falando», relating it with the lyrical performances of Camões and with multiple aspects of his biography. Certamente sensíveis àquela «tão particular vibração sentimental» e àquele «amargor de ausência que converte o amor em padecimento», usando as palavras de Costa Pimpão na «Introdução» à edição cit. das Rimas, tendo, porém, em conta a observação feita por V. Aguiar e SILVA, A lira dourada, ed. cit., 211. 71 Isto em nada impedia nem o domínio de um saber letrado de fundo enciclopédico, nem a percepção do sentimento de «um indesmentível orgulho pessoal» detectável n’Os Lusíadas (e não só); Isabel ALMEIDA, «Este nosso Camões»: Os Lusíadas […] Commentados pelo Licenciado Manoel Correa (1613), in Estudos, ed. cit., 341; tal consciência emerge subliminar dos conhecidos versos «Nem me falta na vida honesto estudo, / Com longa experiência misturado» (Lus., X.154). Embora não tendo usado as armas da família a que pertencia (Martim de ALBUQUERQUE, As armas de Camões (O «Livro antigo dos reis de armas» e o «Livro da guarda roupa dos Reis de Portugal»), in Revista da Universidade de Coimbra, XXXI, Coimbra, 1985, 553), não deixa de haver em Camões, particularmente no poema épico, uma sensível consciência aristocrática (Jorge de SENA, A estrutura de «Os Lusíadas» e outros estudos camonianos e de poesia peninsular do século XVI, Lisboa, 1970, «Primeira parte»). 72 A melancolia de Camões: Vítor Manuel Aguiar e SILVA, Camões: labirintos e fascínios, Lisboa, 1994, 209. 73 Um bom exemplo está certamente em Gomes LEAL, A fome de Camões, ed. de José Carlos Seabra Pereira, Lisboa, 1999. 74 Maria Helena da Rocha PEREIRA, O «Honesto estudo» de Camões, in Camoniana varia, Coimbra, 2007, 8. No séc. XIX, desde o Camões garrettiano, que encerra com a cena de forte sentimentalismo da morte do poeta, em noite formosa de lua «clara e brilhante», a deixar pistas para o tema do finis patriae, até ao Génio enaltecido por Gomes Leal, passando pela síntese de Antero de Quental – «Camões foi antes um homem mais feliz do que um homem desgraçado» –, muitas leituras se puderam fazer; no séc. XX, um Camões como poeta da raça ou da diáspora comunitária e de outras projecções vivenciais reflecte outras leituras; mas serão todas hermeneuticamente possíveis? 70 213 214 Recensões TORRES Olleta, M. Gabriela, Redes iconográficas – San Francisco Javier en la cultura visual del Barroco. Pamplona: Universidad de Navarra, Iberoamericana e Verwuert, 2009, Biblioteca Áurea Hispânica, 57, ISBN 978-84-8489-453-7 (Iberoamericana) e ISBN 978-3-86527-466-3 (Verwuert), 869 pp., 469 illustr. A obra da historiadora de arte e iconógrafa navarra Maria Gabriela Torres Olleta, Redes iconográficas – San Francisco Javier en la cultura visual del Barroco, constitui a tese impressa do seu doutoramento defendido em 2008 na Universidad de Navarra, Departamento de Património. Foi esta obra antecedida por longos anos dedicados à investigação e à publicação de fontes manuscritas inéditas relativas a S. Francisco Xavier. Esta obra de notável fôlego (869 páginas) e profusamente ilustrada (469 ilustrações) consta de cinco partes principais, antecedidas por nota preliminar (pp. 9- 10) e prefácio (pp. 11-12) e seguidas por bibliografia (pp. 451-483) e ilustrações (pp. 487-869). Inicia Torres Olleta por justificar no prefácio a expressão redes iconográficas, devido ao facto dos vários aspectos da iconografia de Francisco Xavier (formação, evolução e influência) se interrelacionarem entre si dum modo complexo, através de caminhos diversos e porventura difíceis de precisar. Neste sentido, a partir da análise comparativa entre o texto e a imagem, é objectivo da autora estudar «las principales conformaciones iconográficas, identificar sus motivos, explicar los temas representados y los detalles y atributos que constituyen los modelos y la tipología del santo.» (p. 11). Torres Olleta divide a sua obra em quatro partes intituladas respectivamente «El corpus textual: Introdución a las fuentes escritas» (pp. 13-100), «Vidas ilustradas y series pictóricas» (pp. 101-267), «Las Relaciones de Fiestas: El Santo en el ámbito celebrativo» (pp. 269-357), «Iconografía Javeriana y la Mirada Emblemática» (pp. 359-414) e ainda uma quinta parte «Tipología iconográfica 215 Cristina Osswald de San Francisco Javier» (pp. 415-450). Torres Olleta segue, assim, uma metodologia essencialmente descritiva de cada uma das diferentes tipologias, consistindo obviamente a quinta e última parte nas conclusões resultantes da sua minuciosa análise dos materiais textuais e iconográficos de São Francisco Xavier. Citando autores antigos ou autores contemporâneos, no primeiro capítulo «El corpo textual», Torres Olleta justifica com toda a propriedade sete principais tipologias documentais, que são respectivamente: a) «Las cartas y escritos javerianos», pp. 15-19; b) «Las vidas», pp. 20-38; c) «Procesos y bula de canonización», pp. 38-46; d) «Las Relaciones de Milagros», pp. 46-59; e) «Sermones», pp. 59-88; f ) «Textos Devocionales», pp. 88-100; Afirma ainda que decidiu dedicar às festas um capítulo especial, devido às suas características (p. 15). Mesmo dum modo sintético, Torres Olleta deveria ter referido de seguida as razões para esta decisão. No que se refere às cartas e escritos de Xavier, Torres Olleta começa pela citação do P. António Vieira, segundo o qual «muitas estátuas de S. Francisco foram esculpidas, muitas imagens foram pintadas, muitas estampas foram impressas, mas em nenhuma foi retratado mais ao natural nem mais ao vivo do que em suas cartas.» (p. 15). Adequa-se esta citação particularmente bem ao seu contexto, pois, como correctamente observado por Torres Olleta, os diferentes tipos de cartas (cartas de interesse geral, cartas privadas ou «hijuelas», com assuntos administrativos (instruções), «las páginas que mejor pudieron reflejar la personalidad del santo y cronológicamente los primeros textos que proporcionan una información substancial para los primeros hagiógrafos más tempranos.» (p. 17). Nas subcapítulo das vidas, após contextualizar as hagiografias de S. Francisco Xavier no contexto pós-tridentino, gostaríamos de salientar o facto de Torres Olleta analisar os muito interessantes relatos hagiográficos tratando um determinado aspecto, como, por exemplo, S. Francisco Príncipe do mar (p. 23). Segue-se e muito bem a referência a várias obras individuais. Discordamos, no entanto, da introdução da Vida de Inácio de Loyola pelo P. de Rivadeneira (pp. 25-26) e da Crónica da Companhia de Jesus no Oriente pelo P. Alessandro Valignano nas vidas de Xavier (pp. 30-32). Quando analisa os processos e a bula de canonização (pp. 38-46), Torres Olleta salienta e exemplifica o valor iconográfico desta documentação. Pensamos, no entanto, que teria sido interessante se a autora tivesse referido personalidades e instituições fundamentais na criação desta documentação, também do ponto de vista iconográfico, tais como a Coroa Portuguesa e depois Ibérica ou o jesuíta Alessandro Valignano. Apreciamos, pelo contrário, o facto de, nas 216 RECENSÕES «Relaciones de milagros» Torres Olleta apontar com toda a clareza os problemas desta mesma documentação, tais como a abundância de milagres atribuídos a Xavier e a sua pouca fiabilidade (p. 47). Integra e exemplifica Torres Olleta de modo brilhante os sermões na cultura barroca muito baseada na íntima relação entre a palavra e a imagem (pp. 59-88). Nos textos devocionais Torres Olleta analisa diferentes tipos textos relativos a Xavier (indulgências e graças papais, constituições de congregações xaverianas, novenas), tendo como pano de fundo o facto desta tipologia textual espelhar a religiosidade contemporânea e, com isso, ser determinantes na percepção da santidade e das suas manifestações plásticas. (p. 88). Pensamos, de novo, que teria sido mais correcto referir as cartas jesuítas do Japão no item das cartas em vez do item “varia” (pp. 94-100). Aliás, Torres Olleta não dá qualquer justificação para colocar as cartas neste item que contem duas tipologias distintas da primeira: Histórias Orientais e informações de missões (pp. 95-99). Dada a importância desta tipologia na Historiografia da Companhia de Jesus, teria sido interessante fazer uma maior exploração da importância da mesma documentação para o estudo da figura S. Francisco Xavier. A segunda parte «Vidas ilustradas y series pictóricas» (pp. 101-267) constitui, do nosso ponto de vista a melhor iconografia de Javier até ao momento realizada, reflectindo a grande profundidade e o grande rigor característicos da pesquisa iconográfica e da análise comparativa entre texto e imagem, aos quais Torres Olleta nos habitou ao longo dos anos, e que inclui autores desde Lucena a Schurhammer. Devemos ainda referir que Torres Olleta comprova a relação de vidas javerianas com vidas de outros santos jesuítas, como a Vida de Javier (1798) pelo P. Gaspar Juárez e o Compendio de la Vita di San Luigi Gonzaga pelo italiano Michele Puccinelli (1792), (p. 158-163). Finalmente, este capítulo compreende a descrição de todos os principais ciclos de gravuras e pinturas, estes últimos localizados desde o Chile (Série do Convento do Carmen de Santiago do Chile, pp. 221-225) até aos ciclos da capela funerária de Goa (pp. 259-267). A terceira parte dedicada às festas hagiográficas, como indica o título «Las relaciones de fiestas: el santo en el ámbito celebrativo» (pp. 269-357) começa pela enumeração dos elementos constituindo a sua estrutura, ou seja, fogo de artifício, música, sinos, procissões e sermões, carteis, pintura, escultura e toda a gama decorativa efémera de tecidos, iluminação e mesma ourivesaria, seguindo-se uma igualmente interessante referência à dimensão político-religiosa expressa pelas personagens dos desfiles processionais (subcapítulo «Religión y sociopolítica», pp. 292-297), ao «Triunfo de los santos» (pp. 297-303), cuja análise é, aliás, particularmente difícil pela inexistência dum programa sistemático (p. 302). Obviamente, é obrigatória a menção aos majestosos e luxuosos carros triunfais 217 Cristina Osswald (subcapítulo «Los carros triunfales», pp. 303-312 descritos, entre outros textos, com grande pormenor, pelos relatos das festas de Inácio de Loyola e Francisco Xavier em Portugal. Na sua análise iconográfica dos carros triunfais, Torres Olleta considera temáticas principais a alegoria (subcapítulo «Los acompañamientos y el triunfo alegórico», p. 312), os acontecimentos históricos, bíblicos e os santos (subcapítulo «Las constelacions históricas y bíblicas, y el santoral», pp. 312320), alegorias de continentes, países, regiões e partes do mundo percorridas ou influenciadas pelos dois primeiros santos jesuítas Inácio de Loyola e Francisco Xavier (subcapítulo «Las cuatro partes del mundo y otras alegorías geográficas», pp. 321-328), o triunfo da «verdadeira» fé católica ou da Igreja Católica, tendo, de novo, Inácio de Loyola e Francisco Xavier, como protagonistas sobre a heresia (subcapítulo «Los dos ejércitos y el triunfo de los santos», pp. 328341), os quatro elementos significando a totalidade do universo (subcapítulo «Otros varios conjuntos alegóricos. La mitología a lo divino», pp. 341-348), a decoração efémera dos espaços exteriores, pelos quais passavam as procissões (subcapítulo «El escenario exterior y las arquitecturas efímeras», pp. 348-357). No quarto capítulo intitulado «Iconografía Javeriana y la mirada emblemática» (pp. 359-414) Torres Olleta começa e bem por referir a importância das realizações visuais mostradas pelos carros e arquitecturas efémeras das festas hagiográficas, de textos, das alusões a emblemas e dos hieróglifos poéticos ou da oratória sagrada. Pois, os jesuítas foram, sem dúvida, principais cultores deste género artístico, como demonstra exemplarmente a publicação de emblemática Imago Primi Saeculi pela Imprensa de Antuérpia em 1640 para comemorar os primeiros cem anos da fundação da Companhia de Jesus (pp. 361-370). Torres Olleta analisa ainda as incompreensivelmente pouco trabalhadas vidas de santos no subcapítulo «Vidas de santos en emblemas: casos y rastros javerianos» (pp. 370-373) e o uso de emblemas nas festas hagiográficas no subcapítulo «Los emblemas en las fiestas hagiográficas: carros procesionales y certames», pp. 373414). Antes de nos debruçar-mos sobre o último capítulo, na nossa opinião, Torres Olleta deveria ter acentuado mais os vários contextos religiosos e sem ser (por exemplo, o contexto educativo-pedagógico), que determinaram a realização de emblemática, inclusive através de, pelo menos, um subcapítulo. O quinto e último capítulo intitulado «Tipología iconográfica de San Francisco Javier» (pp. 415-450), que naturalmente reúne e sintetiza as principais ilações extraídas dos capítulos anteriores, aponta, como principais iconografias de Xavier, a interessantíssima «vera efiggies espiritual: el corazón y sus consolaciones», pp. 415-430; enquanto «patrono y abogado» de cidades e causas, pp. 431-433. Trata Olleta da relação entre as principais devoções e iconografias jesuítas em Portugal nos subcapítulos «Javier y la Trindad», pp. 218 RECENSÕES 433-435; «Javier y Cristo», pp. 435-438; «Javier y el Sagrado Corazón de Jesus», pp. 438-442; «Javier y la Virgen», pp. 443-448; e «La Muerte» (pp. 449-450). Para terminar, gostaríamos de chamar a atenção para uma bibliografia muito equilibrada, em termos de tamanho e distribuição entre bibliografia primária e secundária. De igual modo, esta obra tem um estatuto especial nos estudos iconográficos de Francisco Xavier, pela recolha de material visual, tanto a nível de quantidade, como variedade e distribuição geográfico-cultural. Em resumo, a obra de Maria Gabriela Torres Olleta é o mais importante estudo de iconografia de S. Francisco Xavier até ao momento realizado, consistindo a sua abordagem exemplo a ser seguido pelos autores de estudos de iconografia de santos. Cristina Osswald Investigadora de Pós-Doutoramento (UM/UNICAMP, Brasil e UNED, Madrid) Bolseira da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia Investigadora do CITCEM 219 220 RECENSÕES ARCANGELI, Letizia, PEYRONEL, Susanna (a cura di) – Donne di potere nel Rinascimento. Roma: Viella, 2008, 831 pp. Como resultado da recolha das actas de um colóquio realizado na Universidade de Milão, em Novembro de 2006, o presente volume, organizado por Letizia Arcangeli e Susanna Peyronel, apresenta-nos um conjunto de estudos sobre o poder (ou não poder) político feminino num âmbito definido do ponto de vista cronológico (o Renascimento), social (a aristocracia), territorial e institucional (os estados regionais, principados ou reinos italianos), tentando assim revalorizar uma dimensão importante que tem vindo a ser, paulatinamente, considerada não só pela história política, mas também pela história económica, social e cultural. A consideração de que esta dimensão da «donna politica» é menos conhecida e tratada do que a da «donna religiosa» permitiu às responsáveis pela publicação deste volume realçar o seu contributo para o (re)conhecimento dos papéis de relevo político no seio da esfera pública – organização de cortes e academias, participação na luta política, governação como regentes – que certas mulheres (princesas, senhoras de pequenos estados autónomos, familiares de papas ou de cardeais, feudatárias), a par de seus pais, irmãos, maridos, filhos ou sobrinhos, desempenharam. O volume encontra-se dividido em três partes: I- «Tra famiglie e patrimoni: ricchezze materiali e immateriali»; II- «Reti di potere e spazi di corte femminili»; III- «Donne e potere politico». A primeira parte abarca sete estudos. O primeiro estudo, da autoria de Stanley Chojnacki e intitulado «At Home and Beyond: Women’s Power in Renaissance Venice» (pp. 25-43), analisa alguns casos de senhoras pertencentes à elite veneziana que exerceram o poder e as circunstâncias que o tornaram possível, realçando que o Renascimento foi, nesta cidade, um período de expansão dos direitos das mulheres. Evelyn Welch, no seu artigo «Women in Debt: Financing Female Authority in Renaissance Italy» (pp. 45-65), aborda o envolvimento das mulheres no complexo sistema de crédito da época, salientando que o seu poder financeiro 221 Paula Almeida Mendes constituía um importantíssimo corolário da sua influência política e social. «Il potere delle gentildonne: l’esempio di Barbara di Brandenburgo e Paula Gonzaga» (pp. 67-87) foi objecto de tratamento no estudo de Christina Antenhofer. A Autora coloca no centro da sua análise duas senhoras, Bárbara de Brandenburgo (que, aos onze anos, veio da Alemanha para a corte de Mântua, onde casou com Ludovico Gonzaga, futuro segundo marquês de Mântua) e Paula Gonzaga (que, em 1478, aos quinze anos, partiu para Lienz, no condado de Gorizia, para contrair matrimónio com o conde Leonhard di Gorizia), respectivamente mãe e filha, pois «tutte e due sono testimoni di un Rinascimento “multiculturale”, nel senso che com il loro matrimonio avevano superato zone culturali e di lengua» (p. 67). Christina Antenhofer tenta mostrar como estas senhoras assumiram e criaram poderes numa grande variedade de formas, quer fosse o seu papel no seio da família, quer fosse um poder de carácter mais individual, resultante de estratégias diversas: enquanto Bárbara se apresenta influente como matrona, Paula é mais subtil e utiliza redes sociais, tais como os irmãos, o marido, o rei e o arquiduque de Áustria, para defender os seus interesses. Laura Casella, no seu estudo «Donne aristocratiche nel Friuli del Cinquecento tra strategie familiari e conflitti di fazione» (pp. 89-128), sublinha o papel das mulheres na vida social de Friuli, entre o século XV e o final do século XVI, tentando, deste modo, reconstruir uma insuspeitada e eficaz rede parental e económica que ultrapassa fronteiras e que une famílias pertencentes à nobreza imperial e famílias artesãs e mercantis. No seu artigo «Lucrezia Borgia, imprenditrice nella Ferrara rinascimentale» (pp. 129-143), Diane Ghirardo traça-nos um perfil desta senhora muito diferente do que nos foi legado pela tradição e pela historiografia, marcado, sobretudo, pela traição e pelo recurso a meios como o veneno para alcançar os seus objectivos, sublinhando, deste modo, a sua faceta de «imprenditrice di sucesso, capace e all’avanguardia» (p. 143), enquanto mulher que agia directamente, por iniciativa própria e procurando o seu próprio interesse económico. O estudo de Francine Daenens, «Debiti e crediti di una gentildonna : Isabella Sforza» (pp. 145-167), apoia-se no percorrer de uma grande quantidade de escrituras notariais relativas aos negotij de Isabella Sforza, tentando, assim, reconstruir o retrato privado desta senhora sine viro nec agnatis, «envolvida» na «teia» mais vasta de conflitos e interesses do duque de Milão e da autoridade pontifícia, e que teve uma visibilidade pouco comum no complexo mapa familiar e político da Itália renascentista. O estudo de Federica Ambrosini sobre «Una vedova genovese nella Padova del Cinquecento: Caterina Sauli da Passano» (pp. 169-191), que encerra a 222 RECENSÕES primeira parte do volume, apresenta-nos o retrato de uma mulher de carácter e determinação fortes, cujo poder e dinâmica eram dispendidos essencialmente na realização de um projecto em todos os sentidos heterodoxo e gerido com completa autonomia, não só porque este consistia em tornar a sua casa um ponto de encontro e de ligação de um grupo de heterodoxos, mas também porque respondia, sobretudo, a uma exigência interior exclusivamente sua, o qual a Autora define como «un esercizio del potere¸dunque, anomalo, avventuroso, inebriante da un lato, dall’altro non privo di risvolti pesanti e amari» (p. 191). A segunda parte, composta por onze estudos, abre com o artigo de Simona Feci, «Signore di curia. Rapporti di potere ed esperienze di governo nella Roma papale (meta XV-metà XVI secolo)» (pp. 195-222), o qual se debruça sobre a relação entre as mulheres e o poder, em Roma, entre o pontificado de Sisto IV e o de Paulo III, mostrando que as senhoras que alcançavam uma posição de prestígio e de influência pertenciam à família do papa, mas que esta era, todavia, «una posizione opaca, per la mancanza di un ruolo pubblico e di una funzione legittima e per la presenza di una corte “al maschile”, in cui la trasmissione del potere avviene in forma electtiva e il sovrano non ha una consorte com cui spartirlo, né figli che lo ereditino» (p. 195). Benedetta Borello, no seu estudo «Protezioni di donne. Mogli aristocratiche e patriziato cittadino (Gubbio, Roma, Siena XV-XVI secolo)» (pp. 223-245), realça o topos da protecção e a sua perfeita sintonia com os mecanismos de patronage, deixando claramente entrever a dinâmica das relações entre a aristocracia e aqueles que solicitavam a sua intervenção. Por sua vez, Nadia Covini, no seu estudo «Tra patronage e ruolo politico: Bianca Maria Visconti (1450-1468)» (pp. 247-280), analisa o papel desempenhado por esta senhora, que era duquesa de Milão, o qual «fu construito attorno alle potenzialità connesse alla sua nascita e appartenenza alla nobiltà milanese» (p. 280). Dispensando protecções e recomendações, fazendo da sua domus um lugar de sociabilidade e de agregação, a duquesa de Milão procurou sempre estabelecer e manter relações com a aristocracia de várias cidades e com as maiores casas senhoriais, «cogliendo l’opportunità di fare da tramite com ambienti di nobili e notabili che non avevano pienamente accettato l’avvento della nuova dinastia sforzesca» (p. 280). O artigo de Franca Leverotti, intitulado «Lucia Marliani e la sua famiglia: il potere di una donna amata» (pp. 281-311), incide sobre o caso desta senhora, amante de Galeazzo Maria Sforza, duque de Milão, que este havia «comprado» ao marido por quatro mil ducados, mas que, durante os dois anos em que desempenhou este «papel», conseguiu utilizar esta importante posição para, de algum modo, ajudar a sua família de origem. 223 Paula Almeida Mendes O estudo de Angelantonio Spagnoletti, «Donne di governo tra sventura, fermezza e rassegnazione nell’Italia della prima meta del ‘500» (pp. 313-332), apresenta-nos alguns casos de princesas italianas que exerceram o poder político entre o final de Quatrocentos e a primeira metade de Quinhentos, sublinhando não só a sua influência como regentes com direito de escolha do sucessor, como também as transformações que se verificaram no sistema dinástico italiano durante as guerra de Itália e nos anos do governo de Carlos V. O casamento de D. Beatriz de Portugal, filha do rei D. Manuel, com Carlos II, duque de Sabóia, celebrado em 1521, e o grupo de damas portuguesas que acompanhou a infanta é objecto de tratamento no interessante e sugestivo estudo de Alessandro Barbero e Thalia Brero, intitulado «Genre et nationalité à la cour de Béatrice de Portugal, duchesse de Savoie (1521-1538)» (pp. 333360). Os Autores realçam não só a oportunidade oferecida a D. Beatriz para desenvolver um papel político autónomo em relação ao marido e ao sogro, mas também o modo como utilizou o seu poder para proteger os interesses dos seus compatriotas (sobretudo das damas), preocupando-se com as suas questões imobiliárias e o seu dote, tentando fazê-las desposar os melhores partidos do ducado, reflectindo, assim, a existência de uma verdadeira solidariedade feminina. O estudo de Elisa Novi Chavarria, intitulado «Reti di potere e spazi di corte femminili nella Napoli del Cinquecento» (pp. 361-374), analisa os casos de duas senhoras napolitanas, Roberta Carafa e Maria de Aragão, que tiveram um papel activo nos círculos humanistas de Nápoles «della prima età spagnola» (p. 361), na medida em que estiveram presentes na vida artística, política e cultural da capital do reino, nas «capitais» dos respectivos feudos e, no caso da «Aragonesa», assumindo também uma dimensão «internacional» do poder, como mulher do governador de Milão e como governadora do ducado de Benevento. Dorit Raines, no seu estudo «La dogaressa erudita. Loredana Marcello Mocenigo tra sapere e potere» (pp. 375-404), analisa o caso emblemático de uma mulher que evitava, pelo menos em parte, a lógica plurissecular veneziana que reservava à «dogaressa» o papel de consorte, mãe e patrona perfeita e que lhes impedia o desempenho de «funções de estado» e que veio a tornar-se um autêntico «ícone do poder». O artigo de Alison A. Smith, «Women and Political Sociability in Late Renaissance Verona: Ersilia Spolverini’s Elogio of Chiara Cornaro» (pp. 405415), tem como objecto de tratamento o elogio que, em 1596, uma senhora pertencente à nobreza de Verona, Ersilia Spolverini, publicou, em louvor da mulher de um capitão veneziano, Chiara Cornaro, realçando que este facto só foi possível graças ao articulado sistema de sociabilidade política da elite, que 224 RECENSÕES se desenvolveu em Verona e em outras cidades do estado veneziano, ao longo do século XVI, o qual propiciou um conjunto de oportunidades para mulheres que, como Ersilia, aproveitavam o seu acesso a redes «informais» de influência para alcançarem prestígio cultural e uma certa distinção pública. O estudo de Sara Cabibbo sobre «Percorsi del potere femminile fra Italia e Spagna: il caso di Vittoria Colonna Enriquez (1558-1633)» (pp. 417-443) apoiase na análise de um conjunto de cartas relativas a esta senhora, filha mais nova de Marco Antonio Colonna, herói de Lepanto e vice-rei da Sicília, e duquesa de Medina di Rioseco, evidenciando a extrema flexibilidade que caracterizava a sua adaptação às mais diversas circunstâncias, a capacidade em aproximarse do centro do poder através dos canais reservados às senhoras de corte na Espanha de Filipe II e de Filipe III, a perseverança em alcançar a fortuna da sua Casa, que se manifesta também na administração do património siciliano da família Enriquez, culminando na fundação da cidade de Vittoria, exemplo de «refeudalização» da ilha, sucedido à sombra do domínio dos Áustrias, mas também expressão da vontade da duquesa em deixar traços do seu papel nesta empresa. A segunda parte encerra com o estudo de Vittoria Fiorelli sobre «Una viceregina napoletana della Napoli spagnola: Anna Carafa» (pp. 445-462). Anna Carafa, filha de Antonio, duque de Mondragone, e de Elena Aldobrandini, mulher de Ramiro Guzmán, duque de Medina de las Torres e vice-rei de Nápoles, herdeira de um vasto património de terras e de palácios e depositária de privilégios e prerrogativas, graças ao casamento com um estrangeiro, tornarse-á a primeira vice-rainha napolitana da Nápoles espanhola, um papel que lhe deu a proeminência absoluta, alcançada através do mais alto cargo institucional do reino. A terceira parte, constituída por onze estudos, abre com o artigo de Christine Shaw sobre «Bartolomea Campofregoso: A Woman’s Claim to Power in Fifteenth-Century Genoa» (pp. 465-479), que realça as qualidades pessoais e o carácter extraordinário desta mulher do poder local que, após a morte do marido, Pietro Campofregoso, doge de Génova entre 1450 e 1458, tornou-se não só uma voz influente nos conselhos políticos da família Campofregoso, mas também na vida pública da cidade. O artigo de Marco Folin, «La corte della duchessa: Eleonora d’Aragona a Ferrara» (pp. 481-512), mostra-nos que, apesar do silêncio das fontes, as princesas poderiam ter, em certos casos, um papel no governo que não era suplementar, de suporte ao príncipe ou, quando muito, de regência em caso de vazio de poder. Por outro lado, este estudo de caso coloca em evidência uma das marcas distintivas do matronage feminino: o apoio numa rede de 225 Paula Almeida Mendes relações não só humanas e políticas, mas também artístico-culturais, de natureza essencialmente extra-local e que se caracterizavam pela expansão para outros Estados, favorecidas pelas relações familiares da linhagem de origem. O estudo de Cesarina Casanova, intitulado «Mogli e vedove di condottieri in area padana fra Quattro e Cinquecento» (pp. 513-534), incide sobre a questão das alianças matrimoniais neste território italiano. Elena Papagna, no seu artigo «Tra vita reale e modelo teórico: le due Costanze d’Avalos nella Napoli aragonese e spagnola» (pp. 535-574), debruçase sobre a vida de duas senhoras homónimas, tia e sobrinha, procurando assim compreender os papéis femininos em Nápoles, no período de transição entre a época aragonesa e a espanhola. A Autora conclui que cada uma das Avalos parece, efectivamente, personificar um modelo feminino difuso: a mais velha, ou seja, a tia, pode ser considerada uma espécie de transposição feminina do conhecido paradigma humanista e masculino do indivíduo valoroso nas armas e engenhoso nas letras, parecendo encarnar a virago idealizada por Jacob Burkhardt, que exaltou as qualidades viris das grandes damas renascentistas; a mais jovem, a sobrinha, parece personificar o topos da mal-casada, que procurava refúgio na escrita e na religião, a qual era o único meio de oferecer um sentido e uma finalidade transcendente às mortificações da vida quotidiana e de conferir dignidade à esposa devota e casta. O estudo de Gabriella Zarri sobre «Caterina Cibo duchessa di Camerino» (pp. 575-593), neta, por via materna, de Lorenzo, o Magnífico, analisa a sua regência em Camerino, conduzida, entre 1527 e 1535, em nome da filha de poucos anos, a qual foi anómala na época, enquanto concessão do papa Clemente VII e estando ainda vivo o duque Giovanni Maria da Varano, mostrando, deste modo, a política nepotística levada a cabo pelos pontífices, que beneficia os filhos naturais e os familiares. Letizia Arcangeli, no seu artigo «Un’aristocrazia territoriale al femminile. Due o tre cose su Laura Pallavicini Sanvitale e le contesse vedove del parmense» (pp. 595-653), aborda as consequências das guerras em Itália e do aumento do número de viúvas, que deram origem a uma espécie de «feminilização» temporária da aristocracia, pelo menos em algumas partes do território italiano, ao longo do século XVI. Rossana Sacchi, em «Caterina Bianca Stampa Petra e poi Lodrone» (pp. 655667), analisa o ofício administrativo desempenhado por esta senhora, enquanto conservadora dos judeus em Milão, desde 1522 até à sua morte. O estudo de Michele Cassese, intitulado «Giovanna e Maria d’Aragona: due sorelle napoletane “doppio pregio ad una etade” e il rapporto con il potere nel ‘500» (pp.669-707), realça as posições que estas duas irmãs assumiram em 226 RECENSÕES diversas questões públicas e privadas, num período de particular mudança da história do vice-reino de Nápoles. O epistolário de Giulia Gonzaga é objecto de tratamento no estudo de Susanna Peyronel, intitulado «I carteggi di Giulia Gonzaga» (pp. 709-742), no qual a Autora apresenta-o como testemunho do papel desempenhado por esta senhora em litígios jurídicos, na assídua frequência da corte e em estratégias matrimoniais. No seu artigo «Eleonora di Toledo e la gestione dei beni familiari: una strategia economica?» (pp. 743-764), Bruce L. Edeslstein tenta reconstruir a actividade económica empreendida pela duquesa de Florença, filha de D. Pedro de Toledo, vice-rei de Nápoles, e mulher de Cosimo I de’Medici, mostrando que esta não é um alter ego do marido, mas uma verdadeira coadjutora: representa, com as suas próprias finanças, uma solução original e utiliza, simultaneamente, os poderes públicos para aumentar os seus lucros e proveitos. A terceira parte encerra com o estudo de Mónica Miretti, intitulado «Mediazoni, carteggi, clientele di Vittoria Farnese, duchessa di Urbino» (pp. 765-784), no qual a Autora apresenta esta senhora, segunda mulher de Guidubaldo II Della Rovere, duque de Urbino, como detentora de uma sensibilidade política e de uma capacidade de mediação pouco comuns e tanto mais significativas na conjuntura histórica na qual vive (as décadas centrais do Cinquecento), em que o marido é senhor de um pequeno ducado no centro de Itália e procura, tal como muitos outros príncipes da península, projectá-lo na órbita espanhola. Por tudo isto, a vastidão de perspectivas e a diversidade de abordagens apresentadas neste volume mostram, no seu conjunto, as imensas potencialidades do estudo do activo papel das mulheres na sociedade e na política do Renascimento italiano. Paula Almeida Mendes Estudante de Doutoramento (FLUP) 227 Crónica 2009 O grupo «Sociabilidades, práticas e formas do sentimento religioso» do CITCEM desenvolveu as suas actividades de acordo com as seguintes linhas orientadoras e temas de investigação: 1. Organização de seminários com uma periodicidade mensal em volta do tema «A infância de Cristo (séculos XV-XVIII)». Estas reuniões tiveram a participação de investigadores e especialistas do CITCEM e de outras unidades de investigação, no quadro de uma colaboração científica e pedagógica com a FLUP para a formação de estudantes de pósgraduação. Promovendo uma abordagem interdisciplinar, esta actividade permitiu focar a temática em causa a partir de diferentes ângulos de análise, contribuindo para diversificar e enriquecer a formação dos estudantes de pósgraduação e para obter um conhecimento mais completo e preciso do objecto de estudo. Os seminários foram distribuídos da seguinte forma: 20 de Fevereiro – César Freitas (CITCEM – UP) («Alexandre de Gusmão: da literatura jesuíta de intervenção social – Estado da investigação»); 3 de Abril – Sara Augusto (Universidade de Coimbra) («A Escola de Belém de Alexandre de Gusmão»); 24 de Abril – Antonio Castillo (Universidad de Alcalá de Henares – Madrid) («Escribir desde el convento: consideraciones sobre la práctica epistolar de las monjas en el Siglo de Oro»); 15 de Maio – Agustì Boadas (Universitat Ramon Llull - Barcelona) («Filosofia de la ternura en el siglo XIV: el caso de los escotistas, Eiximenis y el Monasterio de Pedralbes»); 29 de Maio – Jacobo Sanz Hermida (CITCEM – Universidade de Salamanca) («El Tratado de la Infancia y Niñez de Christo de sor Hipólita de Jesús Rocaberti (O.P.)»); 26 de Junho – Ana Costa (CITCEM – UP) («S. Francisco de Sales e a vida devota em Portugal, sécs. XVII-XVIII – Estado da investigação»); 10 de Julho – Maria Idalina Rodrigues (CITCEM – Universidade de Lisboa) («Jornada do Menino Deos para o Egypto: tradição e inovação»); 17 de Julho – Helena Queirós (CITCEM – UP) («Apresentação do livro A Contra-Reforma em Portugal de Federico Palomo»); 24 de Julho – João Carlos Serafim (CITCEM – UP) («A infância de Cristo em Evangelicae Historiae Imagines de Jerónimo Nadal [S. J.]»); 25 de Setembro – Paula Almeida (CITCEM – UP) («Hagiografia, biografia 229 devota e espiritualidade em Portugal na Época Moderna (1500-1750) – Estado da investigação»); 9 de Outubro – Maria Eugenia Diaz (CITCEM – Universidade de Salamanca) («La infancia de Jesús en la literatura medieval española»); 27 De Novembro – Cristina Osswald (CITCEM – UP) («A companhia de Jesus e a difusão da hagiografia e iconografia de Cristo na arte brasileira (XVIXVIII)»); 18 de Dezembro – José Adriano de Freitas Carvalho (UP) («A infância de Cristo em Diogo Monteiro [S.J.]»). 2. Publicação dos resultados obtidos na revista «Via Spiritus». 3. Organização de um seminário internacional dedicado ao tema «Espiritualidade e Corte», no dia 12 de Junho, durante o qual se procurou conhecer o estado da arte no âmbito da investigação europeia, com a participação de especialistas de Itália, França e Espanha. Este encontro científico revelou-se um excelente meio para conhecer os métodos e resultados da investigação sobre as cortes europeias dos séculos XVI-XVIII, através do testemunho directo de alguns dos especialistas que a protagonizam. Em conexão com esta organização, o grupo de investigação está empenhado na edição de fontes primárias para o estudo desta temática em Portugal. 4. O grupo colaborou na organização do colóquio internacional sobre «A expulsão da Sociedade de Jesus dos Territórios Portugueses (1759-1761)» realizado em Lisboa, na Biblioteca Nacional, nos dias 19 e 20 de Outubro, no qual também intervieram diversos dos elementos que o integram. 5. Epistolografia em Portugal no século XVII: desenvolvimento da investigação que incide na correspondência dirigida por D. Vicente de Nogueira ao Marquês de Niza, com a transcrição e fixação do texto das cartas. 6. Bibliotecas e leituras conventuais: publicação de vários catálogos de livrarias conventuais, organizados no momento da exclaustração; estudo e interpretação dos dados obtidos; elaboração e divulgação das conclusões, visando a sua apresentação num futuro seminário. Todos os colóquios e restantes actividades desenvolvidas tiveram divulgação no exterior, nomeadamente junto de escolas e professores do ensino secundário, oferecendo-lhes a possibilidade de acompanharem o desenvolvimento da investigação na área específica em que o grupo desenvolve o seu trabalho, assim como a oportunidade de, eventualmente, nela se envolverem também. 230 231 232 233 234