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CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA
NA AMÉRICA LATINA:
PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS
2ª EDIÇÃO
Culturas e Div. Religiosa.P65
1
21/10/2010, 14:18
UNIVERSIDADE REGIONAL DE BLUMENAU
REITOR
Eduardo Deschamps
VICE-REITOR
Romero Fenili
EDITORA DA FURB
CONSELHO EDITORIAL
Claudia Siebert
Maria José Domingues
José Carlos Grando
Maristela Pereira Fritzen
Nelson Nones
Paulo César Rodacki Gomes
Sueli M. Vanzuita Petry (Presidenta)
EDITOR EXECUTIVO
Maicon Tenfen
DISTRIBUIÇÃO
Edifurb
Culturas e Div. Religiosa.P65
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LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA
ELCIO CECCHETTI
ROSA ASSUNTA DE CEZARO
SIMONE RISKE-KOCH
(orgs.)
CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA
NA AMÉRICA LATINA:
PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS
2ª EDIÇÃO
Blumenau, 2010
Culturas e Div. Religiosa.P65
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©
LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.), 2010
I Seminário Internacional Culturas e Desenvolvimento (SICDES 2009)
V Seminário Catarinense de Ensino Religioso (SECAER)
Coordenação Geral
- Adecir Pozzer (ASPERSC/GPEAD FURB)
- Elcio Cecchetti (SED/SC e GPEAD FURB)
- Lílian Blanck de Oliveira (PPGDR/GPEAD FURB)
- Rosa Assunta De Cezaro (ANEC/SC)
- Simone Riske-Koch (CR-ER/GPEAD FURB)
Comissão Organizadora
- Associação dos Professores de Ensino Religioso do Estado de Santa Catarina - ASPERSC
(Gestão 2007-2009)
- Associação Nacional de Educação Católica de Santa Catarina – ANEC/SC
- Curso de Ciências da Religião – Licenciatura em Ensino Religioso – CR-ER da Universidade
Regional de Blumenau/FURB
- Grupo de Pesquisa Ethos, Alteridade e Desenvolvimento – GPEAD/FURB
- Programa de Pós-Graduação em Mestrado Regional – PPGDR/FURB
Colaborador: Martin Kreuz
Créditos
Elaboração: EDIFURB
Revisão: Cristina Klein
Nivia Ivette Núñez de la Paz
Projeto Gráfico e Editoração: EDIFURB
Capa: Thiago André Seifert
Impressão e Acabamento: Nova Letra Gráfica e Editora Ltda.
Direitos da edição reservados à
EDITORA DA FURB
Rua Antônio da Veiga, 140.
89012-900 Blumenau SC BRASIL
Fone/Fax: (--47) 3321-0329
Correio eletrônico: [email protected]
EDITORA NOVA HARMONIA
Caixa Postal, 475
São Leopoldo/RS – 93001-970
www.editoranovaharmonia.com.br
Depósito legal na Biblioteca Nacional, conforme decreto nº 1825, de 20 de dezembro de 1907.
“Impresso no Brasil / Printed in Brazil”
Elaborada pela Biblioteca Universitária da FURB
C967c
Culturas e diversidade religiosa na América Latina :
pesquisas e perspectivas / Lilian Blanck de Oliveira
(orgs.). 2. ed. - Blumenau : Edifurb ; São Leopoldo :
Nova Harmonia, 2010.
308 p.
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-85-7114-298-5
1. Multiculturalismo – América Latina. 2. Religião e sociologia América Latina. 3. Religiosidade – América Latina. I. Oliveira,
Lílian Blanck de.
CDD 306.6098
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SUMÁRIO
PREFÁCIO ............................................................................................................................... 07
APRESENTAÇÃO ............................................................................................................. 09
(PRÓ)VOCAÇÃO INICIAL ........................................................................................ 14
PARTE I
1 Cultura, Território e Desenvolvimento Desigual - Ivo M. Theis ................. 17
2 Pesquisas Interculturais: Descolonializar o Saber, o Poder, o Ser e o
Viver - Reinaldo Matias Fleuri; Nadir Esperança Azibeiro; Maria Conceição
Coppete ...................................................................................................................................... 30
3 Transformación Intercultural e Interreligiosa del Quehacer Teológico
en América Latina - Raúl Fornet-Betancourt ......................................................... 47
4 Identidade Cultural e Desenvolvimento - Antônio Sidekum ........................ 58
5 Da Religiosidade de Libertação ao Texto e à Opressão - Luiz José Dietrich;
Celso Kraemer ........................................................................................................................... 64
6 Diversidade Cultural Religiosa e Concepções de Sagrado - Tarcísio
Alfonso Wickert; Rodrigo Wartha ............................................................................... 77
PARTE II
1 Diversidad Religiosa en Chile: Cultura e Identidad Mapuche
Ramón Francisco Curivil Paillavil .................................................................................. 85
2 Diversidad Religiosa en Argentina: Culturas en Diáspora y Mestizaje
-Dina V. Picotti ...................................................................................................................... 103
3 Tercera Religión: Lenguaje Religioso del Pueblo del Paraguay - Bartomeu
Melià, S.J ................................................................................................................................. 118
4 Diversidad Religiosa en Bolivia: el Campo Religioso y Las Culturas y
Sabidurías Andinas - Josef Estermann ..................................................................... 126
5 Culturas y Diversidad Religiosa en Ecuador: Cultura Andina y
Educación Intercultural - Milton Vicente Cáceres Vázquez ........................... 153
6 Diversidad Religiosa en Colombia: Situación y Desafíos Olga Consuelo
Vélez Caro ................................................................................................................................ 168
7 Diversidad Religiosa en Costa Rica: Cristianismo y Dialogo Intercultural
Juan Carlos Valverde Campos ....................................................................................... 183
8 Diversidade Religiosa no Brasil: Dinâmicas, Conflitos e Acomodações
Afonso Maria Ligorio Soares .......................................................................................... 200
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9 O Papel é Paciente, a História Não é: Cotidiano Sagrado, Educação e
Diversidade Religiosa no Brasil - Nancy Cardoso Pereira .............................. 219
PARTE III
1 Educação e a Cidadania para um Novo Mundo
Pedro Alonso Puentes Reyes ........................................................................................... 235
2 Princípios do Entendimento do Valor da Igualdade e da Diversidade
Social - Dilnei Lorenzi ......................................................................................................... 243
3 Diversidade Cultural e Religiosa no Brasil: Entre Desafios e Perspectivas
para uma Formação Docente - Cledes Markus;
Lilian Blanck de Oliveira .................................................................................................... 249
4 Ensino Religioso em Santa Catarina: Exercícios na Perspectiva de uma
Educação Intercultural - Adecir Pozzer; Elcio Cecchetti;
Simone Riske-Koch ............................................................................................................... 271
5 Diversidade Cultural e Religiosa no Contexto Escolar: um Convite a
Práticas Pedagógicas Interculturais - Dolores Henn Fontanive; Francisca
Helena Cunha Daneliczen; Mariane do Rocio Peters Kravice .......................... 286
6 Mitos e Culturas Afro-brasileiras como Prática Pedagógica da Diferença
Carla Fernanda da Silva; Marcos Rodrigues da Silva ......................................... 300
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PREFÁCIO
A diversidade é uma das características marcantes de nosso planeta.
Ela se manifesta em todos os ecossistemas naturais e na própria
humanidade, a qual tem se constituído de formas diversas através dos
tempos e dos espaços, por meio de múltiplas culturas e identidades.
A diversidade cultural se expressa de maneira muito intensa em
Santa Catarina, assim como no Brasil e em toda a América Latina. Nosso
Estado é constituído por um mosaico de culturas, formado, desde sua
gênese, pela multiplicidade dos povos indígenas, primeiros habitantes desta
terra. Posteriormente, em decorrência do processo de colonização,
portugueses, espanhóis, africanos, açorianos, alemães, italianos, gregos,
sírio-libaneses, entre outros, por meio de processos de intercâmbio e
hibridações, acentuaram a diversidade étnica e cultural de nossa gente.
Atualmente, o intenso processo de deslocamento de outras regiões
brasileiras e o fluxo migratório de países, deste e de outros continentes,
continuam intensificando ainda mais o processo de diversificação cultural.
Entre as inúmeras expressões culturais do povo catarinense, uma
das mais significativas encontra-se no campo religioso, onde convivem,
lado a lado, inúmeras crenças e tradições religiosas de matriz indígena,
africana, oriental e semita. Essa rica diversidade cultural religiosa está
presente em todos os espaços socioculturais, inclusive nas escolas e nas
salas de aula.
É no cotidiano escolar que a diversidade do fenômeno religioso
manifesta-se na multiplicidade de atitudes, valores, símbolos, significados,
linguagens e nos referenciais utilizados pelos sujeitos para realizar suas
escolhas e dar sentido à vida. No entanto, essa diversidade religiosa,
historicamente constituída por interações, imposições e sincretismos, exige
atenção e esforços conjuntos no sentido de minimizar preconceitos,
discriminações, indiferenças, intolerâncias e violências praticadas contra
alguns grupos religiosos. De uma forma ou de outra, a existência do
preconceito religioso no cotidiano escolar interfere, e muito, no
desempenho escolar dos educandos e nas relações de trabalho entre
professores e gestores. Imagens, autoimagens e estereótipos negativos
influenciam na produção das identidades de cada um, de forma positiva
ou negativa.
Por isso, o currículo escolar necessita integrar, discutir e estudar o
fenômeno religioso, de modo científico e respeitoso, para que, por meio do
conhecimento, seja possível desconstruir e desnaturalizar estereótipos,
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preconceitos e silenciamentos presentes na escola e na sociedade, no que
tange à diversidade religiosa.
Assumir e valorizar a diversidade cultural religiosa no cotidiano
escolar, representa o desenvolvimento de práticas pedagógicas
diferenciadas, subsidiadas pelo conhecimento e sensibilidade diante de
qualquer discriminação religiosa, a fim de garantir o direito de livre
pensamento, consciência e religião, incluindo a liberdade de mudar ou de
não seguir qualquer crença religiosa.
Neste aspecto, o legado histórico do povo catarinense, em relação
ao componente curricular Ensino Religioso, é digno de reconhecimento.
Em todas as escolas de ensino fundamental, esta disciplina é ofertada como
parte integrante da formação básica do cidadão, de forma a assegurar o
conhecimento e respeito à diversidade cultural religiosa de Santa Catarina,
vedadas quaisquer formas de proselitismo.
Nosso Estado é referência nacional na implementação de uma
concepção inter-religiosa do Ensino Religioso, propiciando o conhecimento
das diferentes culturas e tradições religiosas, com a finalidade de educar
para a paz e para o diálogo inter-religioso e intercultural. Somos os
precursores em habilitar professores para desempenhar adequadamente
tal função, por meio do curso de graduação de Ciências da Religião Licenciatura Plena em Ensino Religioso, atualmente oferecido por várias
universidades. Somos os pioneiros em ofertar concursos públicos e admitir
professores específicos para lecionar esta disciplina. Elaboramos proposta
curricular e diversos documentos contendo orientações legais e
metodológicas para orientar a implementação deste componente curricular.
Não é por acaso que o Estado de Santa Catarina promoveu e sediou
o I Seminário Internacional Culturas e Desenvolvimento, realizado em
Blumenau, em outubro de 2009, quando, por três dias, docentes e
pesquisadores nacionais e internacionais debateram o tema Culturas e
Diversidade Religiosa na América Latina.
Esta obra, que temos o prazer de disponibilizar para os professores
e gestores de todas as nossas escolas de ensino fundamental, reunindo as
principais ideias, estudos e discussões realizadas neste importante evento,
representa mais um investimento por parte da Secretaria de Estado da
Educação para o desenvolvimento de práticas pedagógicas inovadoras,
que promovam o reconhecimento da diversidade cultural religiosa presente
em nosso Estado, contribuindo na efetivação dos direitos humanos.
Silvestre Heerdt
Secretário de Estado da Educação/SC
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APRESENTAÇÃO
A defesa da diversidade cultural é um imperativo ético,
inseparável do respeito à dignidade humana. Ela implica o compromisso de respeitar
os direitos humanos e as liberdades fundamentais, em particular os direitos das pessoas
que pertencem a minorias e os dos povos autóctones.
Ninguém pode invocar a diversidade cultural para violar os direitos humanos
garantidos pelo direito internacional, nem para limitar seu alcance.1
A diversidade cultural é uma das marcas que identificam,
caracterizam, mobilizam e desafiam o universo da América Latina de
maneira intensa e peculiar. Essa diversidade tem sua gênese na
multiplicidade dos povos indígenas aqui existentes, nos inúmeros e
diferenciados processos de colonização com espanhóis, portugueses,
alemães, italianos, açorianos, gregos, dentre outros, sendo ampliada,
paulatinamente, com a vinda dos povos africanos trazidos como escravos
e pelo fluxo imigratório de povos do Oriente Médio e do Continente
Asiático.
Os povos, culturas e etnias que configuram os “rostos” latinoamericanos trazem em seu bojo diferenciadas formas de pensamento,
produções e expressões em diversas áreas e abrangências, o que também
aglutina e conflitua, historicamente, diferentes compreensões de cultura e
desenvolvimento. Não se pode pensar em cultura como algo isolado, devese entender o contexto e os processos históricos. A ideia de cultura está
ligada à constatação de diversidades, com isso, passa-se a entender cultura
como algo da realidade social e não material. As concepções de cultura,
para Santos,2 remetem aos aspectos de uma realidade social, assim como
ao conhecimento, às ideias e crenças de um povo. Nesse sentido, percebese que a cultura indica um conceito plural, múltiplo e abrangente. Envolve,
pelo menos, três componentes, ou seja: o que as pessoas pensam, o que
fazem e o material que produzem3.
As tradições, as memórias e as histórias contribuem para a tessitura
das culturas, para o modo como as pessoas e os lugares estão ligados e
como as pessoas usam e valorizam seus tempos, espaços e lugares,
constroem-se e reconstroem-se, desenvolvem-se e desenvolvem o seu
entorno. Nessa perspectiva, desenvolvimento não pode ser entendido
apenas como sinônimo de crescimento econômico. É mister a consideração
das diversas dimensões constituintes das relações sociais, ou seja, a cultura,
a economia, a política e, igualmente, o espaço natural e social4.
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As mais variadas formas de intercâmbios e hibridações acentuaram
a diversidade étnica, cultural, política, econômica e religiosa das sociedades
latino-americanas, gerando possibilidades de construções e (re)criações
múltiplas, assim como conflitos, segregações, privações, preceitos e
preconceitos dos mais hediondos, ferindo o âmago dos direitos inalienáveis
a cada ser humano.
Uma das marcas expressivas da diversidade cultural latinoamericana encontra-se no campo religioso, onde (con)vivem inúmeras
crenças e tradições religiosas de matriz indígena, africana, oriental e semita.
Essa diversidade, historicamente constituída por interações, imposições e
hibridismos, constitui uma riqueza ímpar nas diversas culturas presentes
neste continente. Ao mesmo tempo, exige atenção e esforços conjuntos, no
sentido de erradicar conflitos e relações de poder gerados por grupos com
ideias e práticas hegemônicas, que buscam produzir identidades e
diferenças na intenção de manter privilégios, por meio de processos de
anulação das diferenças e normalização do outro.
A complexidade das relações e o desafio da (con)vivência na e com
as alteridades exigem um posicionamento crítico e um olhar mais atento e
ampliado, a fim de identificar e coibir processos de forjamento de
identidades e diferenças a partir de um único referencial, legitimando
relações de exclusão, violências e desigualdades5. Propiciar espaços e lugares
para a construção de relações alteritárias entre diferentes culturas,
possibilitando a cada sujeito/grupo - no seio de sua cultura, no esforço de
compreensão das e com as outras -, a liberdade de se desenvolver sem
sofrer preconceitos, silenciamentos e discriminações, constitui um dos
grandes desafios contemporâneos às sociedades latino-americanas.
Um dos meios para a superação reside na constituição de formas
de convivência, que reconheçam as alteridades e assegurem o respeito à
história, à identidade, à memória e ao desenvolvimento de cada grupo
cultural dentro de suas bases lógicas e epistemológicas, por meio do diálogo,
da troca de experiências e da promoção dos direitos humanos. Como a
sociedade poderá responder a esse desafio? Que ciências, culturas, lógicas,
saberes e tecnologias serão priorizados? Que concepções de culturas e
desenvolvimento orientarão as políticas públicas? Que práticas sociais e
pedagógicas poderão ser desenvolvidas nessa direção?
Contribuir para a (re)flexão da maneira como se tem tratado,
historicamente, as alteridades demanda pesquisas e perspectivas
pedagógicas que, de forma interdisciplinar e intercultural, tomem por
princípio a alteridade absoluta do Outro 6 , extirpando lógicas,
epistemologias e valores que legitimam processos de exclusões e
desigualdades, trazendo a novidade que se (re)vela nos valores culturais
da diversidade em exercícios de alteridade. O desafio se constitui em buscar
outras lógicas de desenvolvimento, pesquisas e educação, que integrem a
diversidade de culturas em suas múltiplas possibilidades e conhecimentos,
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articulando diálogos que rompam conceitos cristalizados e práticas
homogeneizadoras, contribuindo para a construção de outros mundos
melhores e possíveis.
A percepção de que cultura e desenvolvimento estão associados à
dinâmica dos processos sociais, fenomenológicos, religiosos, entre outros é
o fio condutor dessa coletânea, resultado de vivências,
experiências, pesquisas, estudos, discussões e reflexões tecidas a partir de
diferentes realidades. A presente obra reúne textos que subsidiam o I
Seminário Internacional de Culturas e Desenvolvimento – SICDES e o V
Seminário Catarinense de Ensino Religioso – SECAER, a ser realizado na
cidade de Blumenau, Santa Catarina, Brasil, entre os dias 22 e 24 de outubro
de 2009, com a temática Culturas e Diversidade Religiosa na América
Latina: Pesquisas e Perspectivas Pedagógicas. O evento teve como objetivo
oportunizar espaços de interlocução entre pesquisadores, professores,
acadêmicos e demais profissionais interessados nas áreas das culturas,
desenvolvimento, diversidade religiosa e educação, visando a construção
de pesquisas e perspectivas pedagógicas inovadoras que promovam o
(re)conhecimento das alteridades, na constante busca pela promoção dos
direitos humanos.
Os textos inscritos nesta obra buscam, a partir de diferentes leituras,
olhares e perspectivas, contribuir para concepções de desenvolvimento e
educação que integrem e valorizem a diversidade cultural que constitui a
América Latina.
O texto Cultura, Território e Desenvolvimento Desigual, de Ivo M. Theis,
abre as discussões e reflexões da primeira parte da obra e analisa as
interações mútuas e recíprocas entre cultura e desenvolvimento desigual
em uma sociedade baseada no sistema de produção de mercadorias. Na
sequência, os professores-pesquisadores Reinaldo Matias Fleuri; Nadir
Esperança Azibeiro e Maria Conceição Coppete discutem o reconhecimento
da diversidade cultural que vem sendo promovido pela interculturalidade.
Pesquisador nas questões que circunscrevem a interculturalidade e
a filosofia, Raúl Fornet-Betancourt apresenta pressupostos para a
Transformação Intercultural e Interreligiosa do Fazer Teológico na América
Latina. Antônio Sidekum, no texto que segue: Identidade Cultural e
Desenvolvimento, apresenta reflexões acerca da cultura, natureza humana,
identidade cultural e desenvolvimento no texto que segue.
Luiz José Dietrich e Celso Kraemer partem do dado histórico, que
faz um ciclo comum às três grandes religiões monoteístas, e percorrem a
história e a construção dos fenômenos religiosos nas práticas comuns dos
adeptos e suas obras, enfatizando suas práticas de libertação e dominação.
Tarcísio Alfonso Wickert e Rodrigo Wartha abordam o tema: Diversidade
Cultural Religiosa e Concepções de Sagrado. Ao definirem cultura religiosa,
pressupõem um diálogo entre as próprias culturas, enquanto estrutura
histórica e social, no qual a linguagem permite ao ser humano compreender
as experiências com o Outro e com o sagrado.
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LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.)
Abrindo a segunda parte desta obra, Ramón Francisco Curivil
Paillavil apresenta a diversidade cultural religiosa no Chile, especialmente
a cultura e identidade Mapuche. Após, Dina V. Picotti discorre sobre a
diversidade religiosa na Argentina, especificamente sobre as culturas em
diáspora e mestiças.
Em Terceira Religião: linguagem religiosa do povo do Paraguai,
Bartolomeu Melià analisa a figura da terceira língua para falar da religião
colonial dos indígenas cristãos e dos povos paraguaios. Josef Estermann,
na sequência, pontua as características do campo religioso Boliviano - com
especial ênfase às culturas e sabedorias andinas -, como também as possíveis
consequências da nova Constituição Política de seu país.
Milton Vicente Cáceres Vázquez descreve a cultura andina e as
práticas de educação intercultural no Equador. Por sua vez, Olga Consuelo
Vélez Caro reflete sobre o crescente processo de diversidade religiosa na
Colômbia, sinalizando algumas diretrizes para uma análise mais
aprofundada, fundamental para compreender e acompanhar este novo
impulso que se faz sentir na realidade colombiana, bem como em toda a
América Latina.
Analisando a diversidade cultural religiosa na Costa Rica, Juan
Carlos Valverde Campos destaca as relações entre as diferentes culturas e
religiões em seu país, refletindo propostas pedagógicas na perspectiva da
Interculturalidade e do Cristianismo. No texto Diversidade Religiosa na
América Latina: Dinâmicas, Conflitos e Acomodações, Afonso Maria Ligório
Soares trata da diversidade religiosa na perspectiva das interações entre
Cristianismo (Catolicismo) e religiões afro-indígenas. Em O Papel é Paciente,
a História não é: Cotidiano Sagrado, Educação e Diversidade Religiosa no Brasil,
Nancy Cardoso Pereira trata do cotidiano sagrado, educação e diversidade
religiosa no Brasil, buscando trazer à roda etnias, culturas, saberes e fazeres
que a integram e compõem.
A terceira parte da obra traz presente algumas pesquisas e estudos
relacionados à temática da diversidade cultural religiosa e aos processos
que integram a área da educação na América Latina. Em seu texto, Pedro
Alonso Puentes Reyes discute a construção da cidadania num mundo pósmoderno, estabelecendo características da globalização para configurar
as cidadanias na sociedade atual. Em seguida, Dilnei Lorenzi apresenta
princípios sobre o entendimento do valor da igualdade e da diversidade
social.
Em Culturas e Diversidade Religiosa: Entre Desafios e Perspectivas para
uma Formação Focente, Cledes Markus e Lilian Blanck de Oliveira buscam
contribuir com alguns referenciais para uma formação inicial e continuada,
que integre e (re)conheça a diversidade cultural religiosa presente no
contexto escolar e social. Em seguida, Adecir Pozzer, Elcio Cecchetti e
Simone Riske-Koch apresentam concepções de Interculturalidade e
Educação Intercultural, para, em seguida, fazer memória do componente
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curricular de Ensino Religioso, focando especialmente sua trajetória em
Santa Catarina.
Dolores Henn Fontanive, Francisca Helena Cunha Daneliczen e
Mariane do Rocio Peters Kravice, no texto Diversidade Cultural e Religiosa
no Contexto Escolar: um Convite à Práticas Pedagógicas Interculturais,
identificam e sinalizam pró-vocações para estudos e práticas pedagógicas
interculturais no espaço escolar, na percepção da construção da dignidade
e autonomia humanas. Carla Fernanda da Silva e Marcos Rodrigues da
Silva apresentam uma reflexão sobre a mitologia africana e afro-brasileira,
como fundamento das práticas religiosas e expressão da religiosidade, em
texto que discute os mitos e culturas afro-brasileiras como práticas
pedagógicas na diferença.
Ressalta-se que esta obra reúne apenas algumas reflexões e
aspectos do conjunto de saberes e práticas socializadas pelos autores e
autoras aqui participantes. Abrem-se possibilidades de novos registros e
produções, na limitação, inclusão e provisoriedade de um trabalho que se
percebe inconcluso e inacabado, entretanto, grávido de reflexões e sequioso
de novos estudos e pesquisas, que dar-se-ão em outros espaços, tempos e
territórios desta rica e diversa América Latina, assim como além dela.
Os Organizadores
Primavera de 2009
Notas
1
UNESCO. Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural. 2002.
SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura. São Paulo: Brasiliense, 2006.
3
FLEURI, Reinaldo (Org.). Intercultura: estudos emergentes. Ijuí: UNIJUÍ, 2001.
4
BLOSS, Wladimir. O turismo rural na transição para um outro modelo de
desenvolvimento rural. In: ALMEIDA, Joaquim Anécio; RIEDL. Mário. Turismo rural:
ecologia, lazer e desenvolvimento. Bauru, SP: EDUSC, 2000. p. 199 – 222.
5
SOUZA SANTOS, Boaventura de. A construção Multicultural da Igualdade e da
Diferença. Coimbra: Centro de Estudos Sociais. Oficina do CES n. 135, jan. 1999
6
LÉVINAS, Emmanuel. Entre Nós: Ensaios sobre a alteridade. Coordenador da tradução
Pergentino Stefano Pivatto. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997
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(PRÓ)VOCAÇÃO INICIAL
Bartomeu Melià, s.j.1
Hubo en el Paraguay a principios del siglo XVII, un limeño, que
llegó a ser insigne guaraní, sobre todo por la lengua, que dominó de tal
manera que “le hizo parecerse uno de ellos”: el jesuita Antonio Ruiz de
Montoya.
Montoya es un caso de religiosidad que me intriga..
Su misión estuvo marcada por una empresa de conversión que traía
en su seno una pretendida sustitución del lenguaje y de las creencias. Pero
tal vez su intención manifiesta –y censurable – no consigue encubrir la
convicción de un hombre religioso que va más allá de su propia religión.
Montoya se inscribe en la línea de quienes supieron ver que el pueblo
guaraní es “muy dado a religión verdadera o falsa”. Si él persiguió a los
“hechiceros”, porque le parecían falsos y embaucadores, no podía olvidar
que él mismo era considerado por los indios guaraníes como la
reencarnación de un gran mago ya fallecido de nombre Kuarasytï) – Sol
blanco, resplandeciente. El lo sabía.
Del mismo Montoya es la frase desconcertante, de sentido muy
moderno, de que “los guaraníes se distinguen por ser finos ateistas”,
otorgándoles así un reconocimiento de espiritualidad que no era nada
común entre los cristianos de aquella época muy apegados a imágenes y
ceremonias más bien supersticiosas.
Montoya es uno de los pocos misioneros, el único que conozco, que
admite reconocido que su maestro espiritual fue un indio guaraní. Lo cuenta
él mismo y lo recoge también su biógrafo, Francisco Jarque.
Montoya, al narrar el episodio, se pone a sí mismo en segunda
persona:
Saliendo un día de su loable ejercicio de oír misa, sin tú preguntarle cosa, ni
aun haber hecho concepto de los quilates de su espíritu, te habló en esta
forma: Yo, dice, en despertando, luego creo que está Dios allí presente y
acompañado de esta memoria me levanto… Acudo luego a oír misa, donde
continúo mi memoria y acto de fe que allí está Dios presente. Con esta misma
memoria vuelvo a mi casa. Convoco mi gente a que acuda al trabajo. Voy con
ellos… Vuélvome al pueblo y mi pensar en el camino es sólo que allí está
Dios presente y me acompaña. Con este mismo pensamiento entro en la
iglesia, primero que en mi casa… Con que alegre y contento entro en mi casa
a descansar. Y mientras como, no me olvido que está allí Dios presente. Con
esto duermo. Y éste es mi continuo ejercicio (MONTOYA, SÍLEX, p. 156-57).
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“Mira tú en este ejemplo”, concluye Montoya. Ese “indio principal” se
llamaba Ignacio Piraysy, y Montoya lo tiene por verdadero místico, su maestro
en la búsqueda de Dios.
Me he referido a ciertos rasgos de la vida de Montoya para que no
se piense que mi experiencia religiosa es nueva o moderna, algo debido a
abertura de nuevos tiempos. Lo nuevo, si cabe, es que he vivido varias
religiones y puedo confesarlo sin extrañamiento de la Compañía de Jesús,
a la que pertenezco.
Creo que la religión es una experiencia que pasa ante todo en el
cuerpo y por el cuerpo. La palabra es cuerpo y no se hace sin el cuerpo.
Por ello aun las experiencias más espirituales son corpóreas. Los místicos,
aun lo inefable, lo hacen de alguna manera sensible. No hay espíritu sin
cuerpo. Gracias al cuerpo y la física de la palabra pueden establecerse
diálogos experimentales En algunos y algunas esas experiencias que son
diálogos de amor se expresan con lenguajes eróticos que aluden al tacto, al
gusto, a la vista, al oído, al olfato. La religión la han sentido y ¿cómo? Por
ello es esencial para Santa Teresa la Humanidad de Cristo.
A veces hay especialistas en religión que no saben o no quieren
entrar en la “brutalidad” de la religión y prescinden de la experiencia
religiosa corporal. En el fondo se avergüenzan de ella. He visto a
antropólogos que no se atreverían a cantar y danzar con las personas a
quienes estudian, como si su propio cuerpo fuera de otra materia, capaz
de sustentar una racionalidad superior, no carnal, de cabeza sin pies, sin
vientre, sin pecho. Su cabeza la consideran envoltorio aséptico de un
pensamiento intocable. Tal vez exagero la caricatura, ya que quien dialoga
de verdad con una religión no la puede dejar de sentir de algún modo.
Lo patético es cuando misioneros, que por profesión deberían ser
especialistas en religión, en largos años de convivencia con sus misionados,
ni siquiera se percataron de su religión y por ende tampoco lograron
profundizar la suya propia. No entendiendo de religión, no pueden
entender ni tomar el hecho religioso.
Hay una manera taimada de vaciar la religión de su sentido cuando
se la denomina hecho religioso, un fenómeno que por otra parte sería
irrelevante religiosamente.
Me ha cabido en suerte vivir con diversos pueblos indígenas y sus
religiones. Algunos de ellos simplemente extraordinarios por el cuerpo de
creencias y ritos, según la definición clásica, simple y al mismo tiempo
muy completa. Decir la religión y actuarla, dos formas concretas y
discernibles de experiencia que ocupa lugar y tiempo, sustenta la vida de
esos pueblos. Con temor y temblor, pero con sentimientos de agradecimiento
por la puerta que a uno le permiten franquear, me he asomado a esa
experiencia como niño que a sus cuarenta y más años sabe que lo tiene que
aprender todo, expuesto al ridículo del aprendiz. Por otra parte, sabiendo
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que nunca será ni un avezado dirigente y ni siquiera un practicante capaz.
La religión siempre nos coloca ante niveles inalcanzables, pero que nos
atrevemos a pretender.
No es el caso ni la ocasión de describir las noches de danza y canto
con los guaraníes, en sus diversas expresiones y particularidades, o con los
ena wené nawé del Brasil, que he dedicado de 12 a 18 horas por día al
ceremonial también de cantos y danzas, durante períodos que se prolongan
por una luna y hasta dos en varios tiempos del año.
Gracias a Dios, no se viven impunemente esas experiencias que por
otra parte siempre son bastante desaprovechadas. Porque hay que reconocer
que en muchas circunstancias hay religiones, extraordinariamente ricas
en el papel, si se me permite la expresión, que han perdido su carne de
tanto adelgazarse en raciocinios poco religiosos, porque han dejado de
practicarse corporal y carnalmente.
El hecho de que la experiencia religiosa a la que he hecho referencia
se me haya dado en diálogo con indígenas sudamericanos, no excluye que
pueda darse y se dé con otras religiones, incluso las de alcance más universal.
Pero siempre tendré para mí que en el átomo está la galaxia, y en una
palabra toda la lengua. La religión no es la relación con ideas, sino con
personas. Y al fin con la Persona, que se dice, que suena y resuena en los
armónicos del cuerpo experimentado. La palabra tiene su fundamento,
como dicen los guaraníes. En una religión todas las religiones, porque cada
una de ellas es la única que habla con todos.
Notas
1
Douctor em Teologia pela Universidade de Estrasburgo. Foi profesor y pesquisador
da Cultura Guarani na Universidade Católica de Asunción (Paraguay), diretor do
CEADUC – Centro de Estúdios Antropológicos – e como editor das Revistas Acción,
Suplemento Antropológico e Estudios Paraguayos. Membro da Comissão Nacional
de Bilingüismo do Paraguai. E-mail: [email protected]
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PARTE I
1
CULTURA, TERRITÓRIO E DESENVOLVIMENTO DESIGUAL
Ivo M. Theis1
Sólo cuando la canción existe como tal antes que como instrumento crudamente
ideológico (o sea, cuando cumple primero las leyes de la canción, y sólo después las del
mensaje), sólo entonces pasa a ser una ventana abierta, algunas veces hacia el pasado
aleccionante, y otras hacia un futuro que queremos ganar
(BENEDETTI, 2002, p. 131).
Introduzindo: Cultura, Culturas
O tema desta intervenção é cultura e desenvolvimento desigual. A
questão central que se explora nas linhas a seguir diz respeito à natureza
da relação entre cultura e desenvolvimento na moderna sociedade
capitalista. A hipótese é de que há uma dialética entre cultura e
desenvolvimento 2, mais precisamente, entre a cultura dominante e as
desigualdades produzidas pelo desenvolvimento capitalista. De modo que
o propósito nesta intervenção é analisar as interações mútuas e recíprocas
entre cultura e desenvolvimento desigual em uma sociedade baseada no
sistema de produção de mercadorias.
Mas, o que se deve entender por cultura aqui? Uma dificuldade
inicial deriva do fato de que cultura tem inúmeros significados –
provavelmente, tantos quantas sejam as culturas que se possam identificar.
Um desses significados se refere ao ato, efeito ou modo de cultivar algo.
Com isso se pode associar o termo, por exemplo, à agricultura. Outro
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significado, bem mais complexo, quando não dúbio, com provável origem
no século XVI, remete à civilização3. Um terceiro significado (o que aqui
interessa), derivado do latim cultûra e oriundo do alemão Kultur, acabou
sendo disseminado a partir da França como culture. De maneira que é
difícil escapar à conclusão de que a palavra cultura é, ao mesmo tempo, ampla
demais e restrita demais para que seja de muita utilidade. Seu significado
antropológico abrange tudo, desde estilos de penteado e hábitos de bebida
até como dirigir a palavra ao primo em segundo grau de seu marido, ao
passo que o sentido estético da palavra inclui Igor Stravinsky, mas não a
ficção científica (EAGLETON, 2005, p. 51).
Com o tempo, o termo cultura passou a compreender, em termos
de senso comum, “todas as possibilidades de realização humana, além de
marcar [...] o caráter de aprendizado da cultura em oposição à ideia de
aquisição inata, transmitida por mecanismos biológicos”4. O significado
que aqui interessa tangencia cultura enquanto “ato de cultivar algo” (uma
amizade), coloca-se em relação (de aproximação e diferenciação) com
civilização e, certamente, afirma-se em contraste ao que é naturalmente
dado. O significado que aqui interessa é produto da história e exige que se
confrontem sociedades humanas e natureza.
Para dar conta do objetivo desta proposição – analisar as interações
entre cultura e desenvolvimento desigual em uma sociedade baseada no
sistema de produção de mercadorias – procedeu-se, apenas por motivos
didáticos, a uma divisão do artigo em seis seções: a esta introdução segue
uma seção em que se busca contextualizar historicamente o significado de
cultura relevante ao propósito desta intervenção; depois se examinam as
desigualdades a partir da noção de desenvolvimento desigual e de sua
inscrição geográfica; em seguida, procura-se examinar como a cultura
hegemônica favorece a reprodução das desigualdades na moderna
sociedade capitalista; e a última seção é dedicada a uma breve
(in)conclusão.
1 Meio Natural, Sociedades Humanas, Tecnologia. Cultura?
Para se delimitar o significado de cultura que interessa tratar nesta
intervenção, é preciso proceder a uma mui concisa síntese da criação das
condições em que se poderiam manifestar as ainda múltiplas e diversificadas
possibilidades culturais do presente. Advertindo que tais condições incluem
o surgimento do planeta que habitamos e a evolução das formas mais
elementares de vida até aquelas tidas como mais complexas,
desembocando, por fim, no aparecimento do próprio homo sapiens sapiens,
o presente não poderia limitar-se ao aqui e agora. O presente se refere, com
efeito, à moderna sociedade capitalista, em cujo contexto faz sentido falar
numa dialética entre cultura e desenvolvimento.
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Para começo de conversa, cabe lembrar que a Terra tem uma idade
aproximada de 4,6 bilhões de anos. E que os fósseis das primeiríssimas
formas de vida, chamadas prokaryotes (ou seja, células sem núcleos que
incluem bactérias e algas verdes-azuis), datam de 3,5 bilhões de anos.
Registros das formas mais complexas de vida, chamadas eukariotes (as
primeiras células com núcleos) datam de um bilhão de anos.
Também consta que faz apenas 600 milhões de anos (portanto,
quatro bilhões de anos depois que surgiu a Terra) que apareceu a maioria
dos animais invertebrados. O detalhe é que eles apareceram no curto espaço
de apenas um milhão de anos. Uns 100 milhões de anos mais e surgiram
os primeiros peixes. E não faz mais do que 180 milhões de anos que
apareceram os primeiros mamíferos, época que coincide com o surgimento
dos répteis (WERNER, 1987).
Mas, a primeira evidência que se tem da existência de um primata
– a ordem biológica que inclui o ser humano, os macacos e os prosímios –
aponta para algo como 70 milhões de anos. Nas florestas tropicais que
cobriam o Egito, num período entre 30 ou 35 milhões de anos atrás, existiam
várias espécies de um primata que, convenientemente, passou a ser
identificado como egiptopiteco.
Um bom tempo se passou até que se chegasse a um hominídeo
bípede. Por exemplo, existem registros confiáveis de fósseis que indicam
rastros de dois hominídeos andando juntos há 3,6 milhões de anos, na
Tanzânia. Esses dois seres andavam eretos em dois pés (não em quatro),
eram pequenos (medindo entre 1,2 e 1,5 metros de altura) e relativamente
leves (pesando entre 20 e 40 quilos). Também ganharam um nome:
australopiteco afarensis. Outros australopitecos foram identificados: o
australopiteco africanus, por exemplo, parece ter vivido entre três e dois
milhões de anos atrás; o australopiteco robustus, entre dois e um milhões de
anos atrás (WERNER, 1987).
E, então, faz uns dois milhões de anos, apareceu alguém de quem
parece descender o homo sapiens sapiens: o homo habilis. Fósseis encontrados
na África, na Europa e na Ásia indicam que outro hominídeo, o homo
erectus, tenha vivido entre 1,5 milhões de anos e 300 mil anos. E uma nova
etapa da evolução humana pode ser divisada com a identificação do homo
sapiens neandertalis, que viveu na África, na Europa e na Ásia, entre 100
mil e 40 mil anos atrás. E o que vem em seguida é uma passagem em
direção a um mundo que conhecemos um pouco melhor:
Os neandertalis desapareceram do registro paleontológico uns 35 mil anos
atrás para serem substituídos pelo homo sapiens sapiens, o ser humano moderno.
Não sabemos ainda como se efetivou a transição entre homo sapiens neandertalis
e homo sapiens sapiens (WERNER, 1987, p. 27).
Aqui, nossa concisa síntese precisa proceder a um novo salto, dando
como certo que o homo sapiens sapiens se estabeleceu e recomeçando do
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ponto em que passaram a existir novas condições para a manifestação do
tipo de cultura em que estamos interessados. E esse ponto se refere ao
período que retorna até 10 mil anos de nosso tempo5.
Uma primeira questão relevante é a concernente aos critérios com
os quais se busca explicar os fatos importantes desse período. Outra,
evidentemente, é a que diz respeito aos fatos mesmos: onde se estava? Por
onde se passou? Aonde se chegou? Quanto à primeira questão, pode-se
recorrer a diversos critérios, optando-se aqui por considerar a história das
sociedades humanas dos últimos dez mil anos “em termos de uma sucessão
de revoluções tecnológicas e de processos civilizatórios” (RIBEIRO, 1978).
Quanto à segunda questão, o ponto de partida é, necessariamente, a
condição generalizada de caçadores e coletores da maioria dos seres
humanos vivos naqueles primórdios 6. A evolução dessas sociedades
humanas se dará para modos mais uniformes do que diferenciados de
prover sua subsistência, organizar sua vida social e explicar suas próprias
experiências7.
Assim, tem-se um ponto de partida e este é a condição generalizada
de caçadores e coletores da maioria dos seres humanos vivos. Não se trata
de desprezar 4,6 nem 3,5 bilhões de anos. Mas, são as sociedades humanas
de dez mil anos para cá – que compreendem as correspondentes culturas –
que importam. E importam, porque aí se identificam esforços de seus
integrantes no sentido a) de ordenarem as relações que, obrigatoriamente,
contraem entre si, assim como b) de exercerem alguma forma de controle
sobre a natureza. As culturas de que tais sociedades humanas são dotadas
constituem, por assim dizer, modos padronizados de pensar e de saber. E
de três maneiras distintas se manifestam o pensar e o saber constitutivos
das culturas das sociedades humanas de dez mil anos para cá (RIBEIRO,
1978, p. 35):
• Materialmente (isto é, nos artefatos e bens);
• Expressamente (isto é, através da conduta social); e
• Ideologicamente (isto é, pela comunicação simbólica e pela
formulação da experiência social em corpos de saber, de crenças e de
valores).
Neste ponto é preciso proceder a um novo salto. O homo sapiens
sapiens se estabeleceu, desenvolveu técnicas e com elas tem explorado seus
semelhantes e a natureza. Na moderna sociedade capitalista, surgida na
segunda metade do século XVIII, ele passou a construir artefatos e bens
mais sofisticados e, correspondentemente, a compartilhar crenças e valores
que produzem desigualdades. E são tais crenças e valores, contraface
simbólica do sistema de produção de mercadorias, que parecem respaldar
as relações de exploração que passaram a predominar entre o homo sapiens
sapiens e seus semelhantes no âmbito da moderna sociedade capitalista e
entre esta e a natureza – relações que impulsionam o desenvolvimento
capitalista desigual.
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2 Desigualdades. Desenvolvimento Desigual?
De que desigualdades se tratam aqui? Não são as diferenças
encontradas na natureza nem aquelas que os seres humanos trazem consigo
ao nascer que se tem em mira. Tratam-se das socialmente construídas.
Nas sociedades menos complexas, elas eram, praticamente, inexistentes.
Por exemplo, entre caçadores e coletores predominava, largamente, o
costume de compartilhar 8. Entre os agricultores extensivos não era
diferente. A novidade aí era uma forma mais sofisticada de “redistribuição”.
E entre os pastores especializados, geralmente nômades, as desigualdades
eram limitadas, porque era limitado o número de bens pessoais que podiam
possuir e transportar. De fato, “é com o desenvolvimento da agricultura
intensiva que surge o direito à terra privada, e as grandes diferenças de
riqueza entre as pessoas”. Daí em diante, evidências de desigualdades
foram identificadas, por exemplo, em túmulos de crianças no Iraque, entre
5500 e 5000 a.C. E, “antes de 3000 a.C., o Sumer [no sul do Iraque] já
tinha [...] um sistema de classes sociais de nobres, cidadãos comuns e
escravos capturados nas guerras” (WERNER, 1987, p. 64-67). Essas
desigualdades, todavia, parecem ter sido mantidas em grau
consideravelmente inferior ao que se passa a observar com o advento do
sistema de produção de mercadorias.
De fato, as evidências indicam que é com o surgimento da moderna
sociedade capitalista, na segunda metade do século XVIII, que as diferenças
entre os indivíduos ganham dimensões intoleráveis. Para se entender as
desigualdades no âmbito da sociedade materialmente baseada no sistema
de produção de mercadorias, pode-se recorrer à noção de desenvolvimento
desigual, cuja origem está na literatura marxista.
Consta que tenha sido Lênin quem, pela primeira vez, examinou
com maior profundidade uma experiência concreta – o desenvolvimento do
capitalismo na Rússia – da perspectiva de sua desigualdade socioeconômica.
No entanto, foi depois da Revolução de 1905 que a noção de
desenvolvimento desigual, por intermédio de Leon Trotsky, ganhou um
significado mais preciso. Aliás, com Trotsky, ela passou a ser
desenvolvimento desigual e combinado, uma lei que já não dizia respeito
apenas à dimensão econômica, mas remetia a uma questão política
imediata9.
Essa lei já integra uma teoria – a teoria da revolução permanente. A
formulação mais completa da referida lei encontra-se no capítulo inicial
do primeiro volume da História da Revolução Russa. Aí, com efeito, se lê
que
O desenvolvimento de uma nação historicamente atrasada conduz,
necessariamente, a uma combinação original das diversas fases do processus
histórico. A órbita descrita toma, em seu conjunto, um caráter irregular,
complexo, combinado [...] A desigualdade do ritmo, que é a lei mais geral do
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processus histórico, evidencia-se com maior vigor e complexidade nos destinos
dos países atrasados. Sob o chicote das necessidades externas, a vida
retardatária vê-se na contingência de avançar aos saltos. Desta lei universal
da desigualdade dos ritmos decorre outra lei que, por falta de denominação
apropriada, chamaremos de lei do desenvolvimento combinado, que significa
aproximação das diversas etapas, combinação das fases diferenciadas,
amálgama das formas arcaicas com as mais modernas10. Sem esta lei, tomada
[...] em todo o seu conjunto material, é impossível compreender a história da
Rússia, como em geral a de todos os países chamados à civilização em segunda,
terceira ou décima linha (TROTSKY, 1978, p. 25).
Trotsky parece ter chegado a essa formulação ao constatar o
crescimento das desigualdades na mesma Rússia de Lênin, no início do
século XX. Se, então, ainda se acreditava que a Rússia deveria expandir
suas forças produtivas para amadurecer a revolução, a observação dos
fatos conduziu a que Trotsky se inclinasse “em favor de uma direta
determinação política da história” (SMITH, 1988, p. 237). Assim, parece
correto interpretar a lei do desenvolvimento desigual e combinado como
tentativa de conferir maior autonomia à esfera política (LÖWY, 1981, p.
97-98).
O caráter desigual e combinado das relações sociais de produção
em formações sociais periféricas, como era o caso da Rússia no início do
século XX, repousa na articulação entre o capital urbano-industrial com a
propriedade rural, entre as classes possuidoras da cidade e do campo.
Nesses países, o progresso urbano e o desenvolvimento rural são marcados
por ritmos e velocidades distintos, por contradições e por rupturas abruptas.
Mudanças políticas não podem ser mecanicamente deduzidas de um
desenvolvimento economicamente pré-determinado. As contradições do
desenvolvimento desigual e combinado nas formações sociais periféricas
requerem que se considerem suas especificidades, remetendo a antes
referida autonomia do nível sociopolítico.
De 1930 em diante, a noção de desenvolvimento desigual parece
ter mesmo caído na obscuridade. Contudo, por razões diversas, ela voltaria
ao debate a partir dos anos 1980 11 . Como, porém, essa noção pode
contribuir para a compreensão da espacialidade do desenvolvimento
socioeconomicamente desigual?
3 Desenvolvimento Desigual do Território
A noção de desenvolvimento geográfico desigual é bem mais recente
que a de desenvolvimento desigual e combinado, e precisa ser associada
aos esforços que, especialmente, geógrafos têm feito no sentido de construir
uma teoria do desenvolvimento desigual 12 . O que distingue a lei do
desenvolvimento desigual e combinado da teoria do desenvolvimento geográfico
desigual é: enquanto a preocupação da primeira está em explicar por que
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uma formação social periférica (cujas forças produtivas não estão
desenvolvidas e nem sob o controle de uma burguesia nacional consolidada)
pode experimentar uma revolução política, a segunda constitui uma
tentativa teórico-metodológica que busca captar a espacialidade do
desenvolvimento desigual, portanto, a natureza especificamente geográfica da
desigualdade socioeconômica entre regiões e países13.
Talvez, deva ser dito mais: não se trata das desigualdades
socioeconômicas entre espaços geográficos em geral, mas das produzidas
pelo capitalismo. Em outros termos: é a geografia do desenvolvimento
desigual especificamente capitalista que importa aqui14. E essa principia
pela diferenciação do espaço geográfico, que resulta dos processos sociais
cotidianos.
Lembremos: tudo o que se passa no local de trabalho e no processo
de produção e consumo está, de algum modo, contido no interior do
processo mais amplo de acumulação e circulação de capital. Quase tudo o
que se come e bebe, veste e usa, ouve e vê vem em forma de mercadorias e
está perpassado por divisões do trabalho – e por crenças e valores que
difundem os preceitos do capitalismo. Entretanto, isso tudo (mercadorias,
processos, valores) não está fora do espaço: a competição territorial por trás
das relações do cotidiano tem uma importância incomum no processo de
acumulação de capital e no desenvolvimento geográfico desigual
(HARVEY, 2006, p. 82, 85).
A geografia do desenvolvimento desigual repousa, portanto, na
diferenciação do espaço geográfico, engendrada tanto pelo processo
imanente da acumulação quanto pelo processo transcendente da
propagação de crenças e valores da cultura capitalista. Embora haja um
número considerável de causas que possa explicar esse efeito, as evidências
mostram ser o moderno sistema de produção de mercadorias, desde que
este se estabeleceu, o que vem produzindo diferenças no espaço. A
geografia herdada, na forma de espaços econômicos antes existentes, é
completamente modificada por inovações, tanto nas mercadorias quanto
nos costumes, tanto nos artefatos e bens quanto nos valores. Os meios de
comunicação e transportes, por exemplo, eles mesmos mercadorias, são
veículos importantes da cultura capitalista. As atividades previamente
dominantes dão lugar a outras. Algumas desaparecem, outras surgem.
Espaços econômica e culturalmente relevantes no passado são tornados
irrelevantes no presente. Já desertos econômicos são convertidos em espaços
pujantes. Todavia, uns e outros acabam sendo integrados, nas economias
nacionais e internacionais, como parte de uma nova configuração de
espaços desiguais (SMITH, 1988, p. 208).
Na etapa neoliberal do desenvolvimento capitalista, em decorrência
de processos de centralização e dispersão, a paisagem geográfica parece
se encontrar em constante mudança. O capital ignora os espaços em que
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as perspectivas de lucro são baixas e, por entre as diversas escalas, movese em direção aos espaços em que as perspectivas de lucro são mais altas.
Daí porque uns espaços experimentam taxas elevadas de acumulação,
enquanto outros ficam à espera de uma mão visível que opere algum milagre
– como, por exemplo, a realização de investimentos públicos. Daí porque
certas regiões vêm crescendo e enriquecendo seus habitantes já ricos,
enquanto outros espaços vêm definhando e empobrecendo os seus
habitantes já pobres. Os contrastes crescentes entre ricos e pobres no
território conformam a paisagem do capitalismo neoliberal, expressão
exacerbada do desenvolvimento geográfico desigual15.
4 Cultura Capitalista e Reprodução das Desigualdades
À produção e ao consumo de artefatos e bens corresponde, portanto,
certo conjunto de crenças e valores que, combinadamente, produzem e
perpetuam as desigualdades socioespaciais na moderna sociedade
capitalista. Como, porém, pode-se caracterizar a cultura própria dessa
sociedade? São, fundamentalmente,
as ideias, noções, valores e doutrinas produzidas no interior do próprio
capitalismo, como exigência de sua formação e reprodução, que compõem a
cultura espiritual do capitalismo. Tanto o princípio da propriedade privada,
que compreende a apropriação do produto do trabalho operário pelo
capitalista, como o princípio da liberdade de circulação das pessoas e coisas
na sociedade, são elementos fundamentais da cultura burguesa. Da mesma
forma, é elemento nuclear dessa cultura a transformação das relações
burguesas, isto é, das relações capitalistas de produção, em leis imutáveis
naturais, ou leis humanas universais (IANNI, 1979, p. 24).
Ainda mais: a produção e reprodução sistemática e organizada de
ideias, noções, valores e doutrinas na moderna sociedade capitalista são
bancadas por uma verdadeira indústria cultural. A indústria cultural do
capitalismo abarca o processo de produção e comercialização de mercadorias
culturais, voltadas para o funcionamento e o aperfeiçoamento das relações
capitalistas de produção. Esse processo abrange elementos da cultura
espiritual e material que incluem (IANNI, 1979, p. 59):
Ideias, noções, valores, princípios, categorias, doutrinas, teorias;
Palavras, imagens, cores, sons;
Livro, jornal, revista, rádio, televisão, filme, “xerox”;
Empresa, estabelecimento, conglomerado, organização;
Sistemas de comunicação, ensino e propaganda;
Técnicas de informação, processamento de dados, tomada de decisões e
implementação;
s Força de trabalho, capital, tecnologia, divisão do trabalho social.
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Esses elementos da cultura capitalista, emanados de um dado centro,
constituem a afirmação, no plano simbólico, do moderno sistema de
produção de mercadorias. As teorias, as imagens, as notícias, as
multinacionais, a publicidade e tudo o mais não apenas derivam, como
inocente subproduto da produção de mercadorias, mas reforçam a
ideologia, difundida desde aquele centro em direção às periferias16, que
subjaz à moderna sociedade capitalista, ampliando as desigualdades
socioespaciais que lhe são inerentes já desde a origem. Sua disseminação
capilar, por todos os espaços em direção aos quais se estende o capital,
assegura um processo de acumulação que toma as relações capitalistas de
produção como lei humana universal e incontestável. Assim, esses elementos
concorrem para a perpetuação das desigualdades socioespaciais na
moderna sociedade capitalista.
Malconcluindo
A questão central que se buscou explorar nessas páginas refere-se à
natureza da relação entre cultura e desenvolvimento na sociedade em que
vivemos. Parece evidente, agora, que há uma dialética entre a cultura
dominante e as desigualdades produzidas pelo desenvolvimento capitalista
– hipótese que orientou esta intervenção até aqui. Todavia, para captar as
possíveis interações, mútuas e recíprocas, entre cultura e desenvolvimento
desigual na sociedade baseada no sistema de produção de mercadorias,
ainda cabem duas considerações: uma correspondendo às vozes de
resistência à imposição dos elementos que conformam a cultura capitalista;
outra referente às possibilidades que se abrem para a cultura a partir do
presente em que nos encontramos.
Quanto às vozes de resistência: desde o fim do segundo conflito
mundial até meados dos anos 1970, houve um progressivo processo de
politização no ocidente capitalista, que desembocou no “maio de 1968” e,
em muitas partes, na contestação da sociedade alicerçada no sistema de
produção de mercadorias. E, desde então, o otimismo da mudança parece
vir dando lugar a um profundo pessimismo quanto às possibilidades de
transformação. Isso pode ser constatado desde a superação da politizada
cultura dos anos 1960 e 1970 até a ascensão da pós-moderna cultura da
década de 1980. Desde então, as forças do mercado penetraram
decisivamente na produção cultural. E também derrotaram as lutas da
classe operária e dispersaram as forças socialistas. Nos anos 1970, a crítica
da cultura hegemônica ainda tentou compreender o lugar da cultura na
política e da política na cultura. No entanto, o empreendimento acabaria
sendo solapado não por algum filistinismo anticultural, mas, por uma
inflação de interesses culturais. A cultura, fragmentada em suas múltiplas
manifestações, esvaziava-se da política. O que à cultura ameaçava,
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então, não era inanição, mas indigestão. A famosa volta para o sujeito,
com a sua estonteante combinação de teoria do discurso, semiótica e
psicanálise, mostrou ser um afastamento da [...] da política como tal
(EAGLETON, 2005, p. 180).
Essa indigestão parece ter reduzido as possibilidades de resistência
à imposição dos valores da cultura capitalista. Entretanto, mesmo no alegre
e passivo ocidente pós-político, em que todos pareciam convertidos em alegres
sujeitos passivos (EAGLETON, 2005, p. 181), identificam-se vozes de
resistência. Elas têm vindo das avenidas ocupadas pelos piqueteros
argentinos. E das ruas tomadas pelos trabalhadores e sindicatos bolivianos
na guerra do gás. E das lutas travadas pelas comunidades indígenas de
Chiapas, no México. E do movimento contra a guerra do Iraque. E de
muitos outros movimentos que resistem à ou lutam contra a sociedade
baseada no sistema de produção de mercadorias (HOLLOWAY, 2004, p.
9). Será exagero considerar que esses movimentos e lutas apontam para
uma reconciliação entre cultura e política?
Quanto às possibilidades culturais do presente: a crise do capitalismo
neoliberal não é promessa de superação do sistema de produção de
mercadorias; nem de convivência pacífica entre a cultura hegemônica e as
múltiplas manifestações que lhe vem resistindo bravamente; nem,
tampouco, de mitigação das intoleráveis desigualdades socioespaciais que
o sistema de produção de mercadorias, combinado com a cultura capitalista
hegemônica, vem reproduzindo desde seu surgimento até o presente. No
entanto, há que se resgatar a política no debate entre uma não-fragmentada
cultura – confluência de uma pluralidade e diversidade de culturas – e
desenvolvimento. Diante de nós está o desafio:
Todos os povos lutam [...] para ter acesso ao patrimônio cultural comum da
humanidade, o qual se enriquece permanentemente. Resta saber quais serão
os povos que continuarão a contribuir para esse enriquecimento e quais aqueles
que serão relegados ao papel passivo de simples consumidores de bens
culturais adquiridos nos mercados (FURTADO, 1984, p. 25).
Notas
1
Economista, doutor em Geografia pela Universität Tübingen (Alemanha). Professor e
pesquisador da Universidade Regional de Blumenau (Email: [email protected]).
2
Ou, pela proposição de Celso Furtado (1984, p. 31), é preciso “indagar as relações que
existem entre a cultura como sistema de valores e o processo de desenvolvimento das
forças produtivas, entre a lógica dos fins, que rege a cultura, e a dos meios, razão
instrumental inerente à acumulação”.
3
Sobre a proximidade, a oposição e/ou a separação entre cultura e civilização, cujo
aprofundamento não é possível, aqui, ver, entre outros, Max Horkheimer e Theodor W.
Adorno (1978, p. 93-104).
4
Conforme Laraia (1986, p. 25). Convém advertir que não é objetivo, nesta breve intervenção,
adentrar os estudos sobre multiculturalismo – como, por exemplo, na perspectiva de
Stuart Hall (2001) ou Machado (2002) e McLaren (1997) – e interculturalidade – como, por
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exemplo, na ótica de Fornet-Betancourt (1994) ou Panikkar (1990, 2006); nem, tampouco,
no debate entre esta e aquele.
Cabe lembrar que “o primeiro processo civilizatório corresponde à Revolução Agrícola,
que se desencadeou originalmente há cerca de 10.000 anos passados, entre os povos da
Mesopotâmia e do Egito” (RIBEIRO, 1978, p. 69). Acrescente-se que “a primeira evidência
de agricultura vem do Oriente Médio, onde foram domesticados o trigo, a cevada, a
lentilha e a ervilha há uns dez mil anos atrás. O arroz foi provavelmente domesticado no
sudeste da Ásia há uns 6 mil ou 8 mil anos [...] O feijão, o amendoim, a pimenta, a
mandioca e a batata foram domesticados [no] Peru, há menos de 8 mil anos” (WERNER,
1987, p. 57).
Abstraindo-se o fato de que se poderia considerar como revolução tecnológica também o
surgimento dos primeiros instrumentos de pedra (e estes parecem remeter para mais ou
menos dois milhões de anos,, tendo, provavelmente, sido feitos pelo homo habilis), podemse identificar, de então em diante, e tomando-se os critérios mencionados, inicialmente,
uma sociedade de caçadores e coletores, depois uma sociedade com agricultura extensiva, uma
sociedade com agricultura intensiva, uma sociedade de pastores especializados etc. (WERNER,
1987, p. 57).
Parece correto, portanto, considerar que “tais modos diferenciados de ser, ainda que
variem amplamente em seus conteúdos culturais, não variam arbitrariamente, porque se
enquadram em três ordens de imperativos. Primeiro, o caráter acumulativo do progresso
tecnológico que se desenvolve desde formas mais elementares a formas mais complexas,
de acordo com uma sequência irreversível. Segundo, as relações recíprocas entre o
equipamento tecnológico empregado por uma sociedade em sua atuação sobre a natureza
para produzir bens e a magnitude de sua população, a forma de organização das relações
internas entre seus membros, bem como das suas relações com outras sociedades. Terceiro,
a interação entre esses esforços de controle da natureza e de ordenação das relações humanas
e a cultura” (RIBEIRO, 1978, p. 34-35).
“Nas sociedades de caçadores e coletores, a terra e outros imóveis, poços de água ou
árvores frutíferas, não podem ser posse de ninguém. Entre alguns caçadores e coletores
estes imóveis [...] estão à disposição de qualquer um, mesmo que seja de outro bando”
(WERNER, 1987, p. 61).
“Esse foi o conceito [desenvolvimento desigual e combinado] que Trotsky resgatou e
depurou [...] Hoje, a lei do desenvolvimento desigual e combinado está claramente associada à
tradição trotskista [e] o conceito caiu na obscuridade” (SMITH, 1988, p. 18; ver também p.
150). Contra a afirmação de que o conceito tivesse caído na obscuridade, pode-se lembrar
Ernest Mandel, para quem, bem ao contrário, “a ideia de desenvolvimento desigual e
combinado do capitalismo mundial é – com a exceção da concepção de Marx sobre a
determinação econômica da luta de classes – a tese marxista mais amplamente assimilada
já há meio século, mesmo que raramente seja feita referência ao seu autor” (LÖWY,
outubro, p. 79).
Recentemente, Terry Eagleton (2005, p. 40) afirmou, num tom indisfarçavelmente
trotskista, que “o excessivamente cultivado e o subdesenvolvido forjam estranhas
alianças”.
11
Aqui, caberia ressaltar a presença destacada de Michael Löwy. De sua lavra precisa ser
consultado, sobretudo, the politics of combined and uneven development, de 1981, anterior ao
tufão neoliberal.
12
Antes da publicação da conhecida obra de Neil Smith (1984), já haviam conhecido a luz do
mundo duas importantes contribuições oriundas da geografia marxista: as de David
Harvey (1982) e M. Dunford & D. Perrons (1983).
13
A insistência para com a espacialidade do desenvolvimento desigual é devida à tendência
da teoria social de excluir a espacialidade de toda análise ou de tratá-la como mero
contêiner imutável, no interior do qual ocorrem processos sociais. O enfoque do
desenvolvimento geográfico desigual propicia uma concepção de espaço como relativo e
relacional (HARVEY, 2006).
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Embora Ernest Mandel tivesse insistido na suposta validade universal da lei do
desenvolvimento desigual e combinado, é evidente, como se viu, que o desenvolvimento
pré-capitalista foi desigual. Todavia, as razões para a desigualdade pré-capitalista foram
bastante distintas das que caracterizam a desigualdade sob o capitalismo (SMITH, 1988, p.
151). Note-se que a insistência na validade universal da desigualdade sugere que traços e
valores específicos ao capitalismo estivessem presentes em modos de produção anteriores.
No entanto, essa intuição requereria não uma formulação da história do capitalismo, mas
da história em geral (WOOD, 2003).
15
Conforme Harvey (2006). A esse propósito, Terry Eagleton (2005, p. 77) afirma que,
“como a brecha entre ricos e pobres no mundo aumenta constantemente, toma [...] vulto
a perspectiva [...] de um capitalismo autoritário cada vez mais amuralhado, sitiado, num
panorama de decadência social, por inimigos internos e externos cada vez mais
desesperados, abandonando finalmente toda a pretensão de um governo consensual em
favor de uma defesa brutalmente franca do privilégio. Existem muitas forças que talvez
possam opor resistência a essa perspectiva sóbria, mas a cultura não tem nenhuma posição
de destaque dentre elas”.
16
Com incomparável ironia, embora amparado em evidências incontestáveis, Terry Eagleton
(2005, p. 133) sugere que, “se os Estados Unidos estão relativamente livres do peso da
História, são igualmente alheios à Geografia, assunto em que são notoriamente
incompetentes. Como uma das sociedades mais provincianas do mundo, estão isolados
de qualquer lugar, exceto do Canadá (muito parecido) e da América Latina (muito
assustadoramente diferente), com espantosamente pouco sentido de como são vistos do
exterior”.
REFERÊNCIAS
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DUNFORD, Michael; PERRONS, Diane. The arena of capital. Nova Iorque: St. Martin’s
Press, 1983.
EAGLETON, Terry. A idéia de cultura. Tradução Sandra Castello Branco. São Paulo: Editora
UNESP, 2005.
FORNET-BETANCOURT, Raúl. Questões de método para uma filosofia intercultural a
partir da Ibero-América. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 1994.
FURTADO, Celso. Cultura e desenvolvimento em época de crise. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1984.
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Centre for Social and Cultural Research/Open University, 2001.
HARVEY, David. The limits to capital. Oxford: Basil Blackwell, 1982.
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London; New York: Verso, 2006.
HOLLOWAY, John. Clase; lucha: antagonismo social y marxismo critico. Buenos Aires:
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HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor W. (org.) Temas básicos da sociologia. Tradução
Álvaro Cabral. 2 ed. São Paulo: Cultrix, 1978.
IANNI, Octavio. Imperialismo e cultura. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 1979.
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.
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LÖWY, M. The politics of combined and uneven development: the theory of permanent
revolution. London: Verso, 1981.
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MACHADO, Cristina Gomes. Multiculturalismo: muito além da riqueza e da diferença.
Rio de Janeiro, DP&A, 2002.
McLAREN, Peter. Multiculturalismo crítico. São Paulo: Cortez, 1997.
PANIKKAR, Raimon. The pluralism of truth. World Faiths Insight, 26, p. 7-16, 1990.
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RIBEIRO, Darcy. O processo civilizatório: etapas da evolução sócio-cultural. São Paulo:
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SMITH, Neil. Desenvolvimento desigual: natureza, capital e a produção de espaço. Tradução
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WERNER, Dennis. Uma introdução às culturas humanas: comida, sexo, magia e outros
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WOOD, Ellen Meiksins. Democracia contra capitalismo: a renovação do materialismo
histórico. Tradução Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2003.
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PESQUISAS INTERCULTURAIS:
DESCOLONIALIZAR O SABER, O PODER, O SER E O VIVER
Reinaldo Matias Fleuri1
Maria Conceição Coppete2
Nadir Esperança Azibeiro3
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse
acontecimento
na vida de minhas retinas tão
fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do
caminho
tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
Por sete vezes vejo a pedra:
sete tropeços, sete ais, sete pulos.
Pedra: perda ou preda?
A cada susto, um novo olhar.
A cada ai, uma inspiração.
A cada salto, uma descoberta
de bons parceiros,
de saborosas fontes,
de novos horizontes,
de auguradas pontes,
para mundos possíveis.
Reinaldo Matias Fleuri
Carlos Drummond de Andrade
Considerações Iniciais
A interculturalidade se tornou hoje um tema de moda. Justamente
por isso, configura-se como um tema paradoxal 4. O interesse pela
interculturalidade, assumido em programas governamentais, movimentos
sociais e mesmo pela pesquisa científica e pela mídia, vem promovendo o
reconhecimento da diversidade cultural. Mas, ao mesmo tempo, apresentase por vezes como nova tendência multicultural que se isenta de qualquer
sentido crítico, político, construtivo e transformador. Contraditoriamente,
o esforço por promover o diálogo e a cooperação crítica e criativa entre
sujeitos socioculturais diferentes corre o risco de reeditar novas formas de
sujeição e subalternização.
Compreender em profundidade essa contradição é um desafio que
se coloca hoje no campo das pesquisas interculturais. De um lado,
encontram-se as perspectivas teórico-epistemológicas que reduzem as
relações interculturais às relações individuais, sem considerar os contextos
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sociopolíticos de subalternização, ou que as adequam funcionalmente às
novas estratégias globalizantes de dominação. De outro lado, surgem
perspectivas de interculturalidade crítica que apontam para a
descolonialização do saber, do poder, do ser e do viver. Desconstruir os
padrões culturais coloniais-modernos implica agudizar seus paradoxos,
promovendo relações de reciprocidade capazes de construir significados e
processos de subjetivação plurais, polissêmicos. Nesse contexto, a pesquisa
pode se constituir como fator mobilizador da interação entre sujeitos, na
medida em que pode promover a compreensão, ressignificação e
transformação de seu próprio contexto interativo. Trata-se de elaborar e
mobilizar formas de saber, poder, ser e viver que possam garantir a
convivência de todos os seres humanos com a natureza e entre si, para
além de dispositivos e de estruturas de dominação sociocultural e de
destruição sistemática da natureza, vigentes no atual contexto mundial.
1 Pesquisas Interculturais: Perspectivas e Prospecções
Catherine Walsh (2009), em sua conferência de abertura ao XII
Congresso da Association internationale pour la Recherche Interculturelle
(ARIC) (www.aric2009.ufsc.br), explora os múltiplos sentidos e usos
contemporâneos da interculturalidade sob três perspectivas diferentes.
A primeira, designada como relacional, faz referência ao contato e
intercâmbio entre culturas diferentes, como algo que sempre tem existido,
considerando como naturais os processos de mestiçagem, os sincretismos
e as transculturações. Esta perspectiva relacional tende a ocultar ou
minimizar os conflitos e os contextos de poder e dominação, assim como a
limitar a relação ao nível individual. Isso, na medida em que encobre as
estruturas sociais, políticas, econômicas e também epistêmicas, posiciona
a diferença cultural em termos de superioridade ou inferioridade.
Uma segunda perspectiva de interculturalidade, que Walsh chama
de funcional, enraíza-se no reconhecimento da diferença cultural com a
intenção de incluí-la no interior da estrutura social estabelecida. Busca
promover o diálogo, a convivência e a tolerância, mas não questiona as
causas da assimetria e da desigualdade social e cultural. Segue a nova
lógica multicultural do capitalismo global. Reconhece a diferença,
sustentando sua produção e administração de modo funcional à expansão
do sistema-mundo-moderno (QUIJANO, 2005). Não aponta à criação de
sociedades mais equitativas e igualitárias, mas ao controle do conflito étnico,
mediante a inclusão dos grupos historicamente excluídos, de modo
funcional à manutenção da estabilidade social, segundo os imperativos
econômicos do modelo (neoliberalizado) de acumulação capitalista.
A terceira perspectiva, assumida por Walsh como interculturalidade
crítica, problematiza a estrutura colonial racial e sua ligação ao capitalismo
de mercado, apontando para a construção de sociedades diferentes, a outra
ordem social. A interculturalidade crítica é um apelo dos povos e grupos
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sociais que têm sofrido historicamente a subalternização, assim como dos
setores que lutam, junto com eles, pela re-fundação social e descolonização,
pela construção de um mundo mais igualitário. O problema intercultural
central não é a diversidade étnico-cultural. É a diferença construída como
padrão de poder colonial que atravessa praticamente todas as esferas da
vida. Trata-se de entender e construir a interculturalidade como projeto
político, social, ético e epistêmico. Um projeto que pretende intervir sobre
a matriz da colonialidade e transformar os dispositivos de poder que
mantêm a subalternização de seres, saberes, lógicas e modos de vida,
particularmente das práticas de exclusão, negação e subalternização
ontológica e epistêmico-cognitiva dos sujeitos racializados.
A interculturalidade crítica aponta, pois, para um projeto
necessariamente descolonial. Pretende visualizar e enfrentar a matriz
colonial do poder, que articulou historicamente a ideia de “raça” como
instrumento de classificação e controle social com o desenvolvimento do
capitalismo mundial (moderno, colonial, eurocêntrico), e que se iniciou
como parte da constituição histórica da América.
2 Crítica à Modernidade-Colonialidade
Segundo Castro-Gómez (2005a), as teorias críticas à modernidadecolonialidade constituem uma vertente pós-colonial de estudos culturais
latino-americanos. Tais estudos buscam desenvolver uma leitura nãoeurocêntrica da modernidade, desvelando seu caráter eminentemente
colonial (Mignolo, 2005). Para Lander (2005), modernidade e colonialidade
constituíram-se historicamente de modo recíproco. Ao se autorreapresentar
como topo da evolução do mundo, a Europa moderna, consequentemente,
trata como marginais e atrasados os povos do continente americano.
O colonialismo diz respeito à dominação política e econômica de um
povo sobre outro em qualquer parte do mundo. Diferentemente, a
colonialidade indica o padrão de relações que emerge no contexto da
colonização europeia nas Américas e se constitui como modelo de poder
moderno e permanente. A colonialidade atravessa praticamente todos os
aspectos da vida, e se configura, segundo Walsh, a partir de quatro eixos
entrelaçados.
O primeiro eixo – a colonialidade do poder – refere-se ao
estabelecimento de um sistema de classificação social baseado na categoria
de “raça”, como critério fundamental para a distribuição, dominação e
exploração da população mundial no contexto capitalista-global do
trabalho. Com base na noção de “raça”, as relações entre Europa e os
“outros” se configuram segundo hierarquias étnico-raciais, que se
instauram no sistema-mundo-moderno. É a partir da categoria de raça
que se configuram todas as relações de dominação, incluindo as de classe,
gênero, sexualidade, geração, limitações físicas e mentais, entre outras.
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O segundo eixo é a colonialidade do saber. A suposição de que a Europa
se constitua como centro de produção do conhecimento descarta a
viabilidade de outras racionalidades epistêmicas e de outros conhecimentos
que não sejam os dos homens brancos europeus ou europeizados. A
colonialidade penetra e organiza os marcos epistemológicos, acadêmicos
e disciplinares, induzindo a caracterizar como fundamentalistas,
essencialistas e racistas tanto as lógicas desenvolvidas por comunidades
ancestrais quanto as novas tentativas desses povos, assim como levando
grupos sociais, historicamente subalternizados, a desenvolverem formas
próprias e não-coloniais de pensamento.
O terceiro eixo, a colonialidade do ser, é o que se exerce por meio da
subalternização e desumanização dos sujeitos colonizados. O valor
humano e as faculdades cognitivas dessas pessoas são desacreditados pela
sua cor e pelas suas raízes ancestrais, que as distanciam da modernidade
e da “razão”.
O quarto eixo é o da colonialidade da natureza e da própria vida. Com
base na divisão binária natureza/sociedade se nega a relação milenar entre
mundos bio-físicos, humanos e espirituais, descartando o mágico-espiritualsocial que dá sustentação aos sistemas integrais de vida e de conhecimento
dos povos ancestrais. Para estes, a natureza é a mãe de todos os seres, é a
que confere o sentido ao universo e à vida, tecendo conhecimentos, território
e história dentro de um marco cosmológico relacional e complementar de
convivência. Desacreditar tal relação com a natureza, tecida pelos povos
ancestrais, é a condição que torna possível desconsiderar os modos de ser,
de conhecer e de se organizar desses povos e, assim, subalternizá-los e
sustentar a matriz racista que constitui a diferença colonial na
modernidade.
Para Catherine Walsh, construir criticamente a interculturalidade
requer transgredir e desmontar a matriz colonial presente no capitalismo
e criar outras condições de poder, saber, ser e viver, que apontem para a
possibilidade de conviver numa nova ordem e lógica que partam da
complementaridade e das parcialidades sociais. Interculturalidade deve
ser assumida como ação deliberada, constante, contínua e até insurgente,
entrelaçada e encaminhada com a do descolonializar.
Para os pensadores e pensadoras pós-coloniais, o poder colonial se
expressa primordialmente como subordinação e invisibilização dos saberes
dos povos colonizados, através da “violência epistêmica” (Castro-Gómez,
2005b), operada pela imposição do pensamento científico-técnico e da
ideologia liberal, como pensamento “universal”. Esses autores e autoras
evidenciam o nexo entre ciência, modernidade e colonialidade, que se
manifesta no que Walsh (2004) chama de “geopolíticas do conhecimento”,
ou seja, na organização e no funcionamento do conhecimento a partir de
centros de poder articulados com regiões subordinadas.
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Nessa vertente, a crítica ao eurocentrismo, proposta por Lander
(2005), é uma crítica à sua episteme que opera separações sucessivas e
reducionismos vários. Ele ressalta que, nos conhecimentos eurocêntricos
colonializantes, o ‘neoliberalismo’ é debatido apenas como uma teoria
econômica, quando deve ser compreendido como um modelo civilizatório
europeu, uma extraordinária síntese de pressupostos e valores básicos da
sociedade liberal moderna. Há uma naturalização de que essa sociedade
expressa tendências espontâneas do desenvolvimento histórico,
caracterizando-se como sua forma mais avançada.
Para Lander (op.cit.), é possível identificar duas dimensões
constitutivas dos saberes modernos que contribuem para explicar sua
eficácia naturalizadora: a primeira se dá por meio das sucessivas separações
ou partições do mundo “real”, que ocorrem historicamente na sociedade
ocidental; a segunda, na forma como se articula saber-poder, especialmente
na subordinação da colônia ao império, constituinte do mundo moderno.
Nessa história de rupturas sucessivas que garantiram a
modernidade colonializante, a primeira é de origem religiosa, ao afirmar o
índio desprovido de alma por não cultuar o Deus dos ‘brancos’; entre a
razão e o mundo que se torna ‘sem razão’, um mundo mecânico desligado
de Deus; entre mente e mundo, no qual se coloca o humano-mente numa
posição externa ao corpo e ao mundo, e, assim, possibilita uma postura
instrumental frente a eles. A cultura moderna radicaliza-se com essas
separações. Tais cisões se tornam constitutivas da modernidade, como no
caso do senso comum e do mundo dos especialistas. Na identidade europeia,
as sucessivas fraturas subsidiam o contraste essencial na conformação
colonial do mundo na qual a Europa é, como se tivesse sempre sido, o
centro. Essa culminância ocorre entre os séculos XVIII e XIX. Assim se
instaura a noção de um mundo unificado, de uma única história e geografia
universal.
Lander (op.cit.) afirma que os direitos do colonizador se instituíam
por meio da negação dos direitos dos colonizados. Ele ainda nos lembra
que diferentes recursos históricos (evangelização, civilização, modernização,
desenvolvimento, globalização) têm como sustento a falsa concepção de
que o padrão epistemo-civilizatório europeu é universal, superior e normal.
Superar essa estrutura de relações internacionais e interculturais apresentase como o grande desafio pós-colonial.
Castro-Gómez; Schiwy y Walsh (2002) propõem que o mundo
acadêmico e os movimentos sociais se unam no esforço para romper a
divisão moderna entre sujeitos e “objetos” de conhecimento. Trata-se de
forjar outras formas de produção do conhecimento, através do diálogo
entre a “episteme moderna” e “outras epistemes”. Wash (2003) considera
que o desenvolvimento de um “pensamento crítico transdisciplinar” terá
como referência fundante não a episteme moderna, mas as epistemes que
foram historicamente marginalizadas. Por isso, a mesma Walsh (2005) vê
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na interculturalidade – como projeto político dos movimentos indígenas e
afrodescendentes no Equador – o projeto social, político, ético e intelectual
que melhor assume a “descolonialidade como estratégia, ação e meta”,
possibilitando um pensamento crítico de “outro modo”.
3 Interculturalidade e Desconstrução de Subalternidades
Descolonializar o saber e o poder, assim como o ser e o viver, vem
se constituindo em um importante tema-desafio de pesquisa para o Núcleo
Mover5. Na última década, esse grupo tem se concentrado na busca por
compreender, numa perspectiva interdisciplinar e complexa, o caráter
híbrido e deslizante da interculturalidade, focalizando questões transversais,
tanto no campo das relações étnicas, quanto nos campos das relações entre
gerações, de gênero, de classe ou de identidades por características físicas
e mentais. O estudo de diferentes práticas sociais e educacionais vem
desafiando os pesquisadores do Núcleo a explicitar sentidos,
intencionalidades e jogos de poder que têm informado essas práticas. De modo
particular, novas questões têm emergido no campo da educação popular
e da formação de educadoras e educadores, na direção da desconstrução de
subalternidades 6 ou da emergência de outros processos de subjetivação e
interação sociocultural.
O conceito de “desconstrução” remete ao entendimento proposto por Derrida,
mesmo que este não tenha considerado o termo “desconstrução” como
representativo de sua obra. Para o autor, “não existe ‘a’ desconstrução: há
muitas singularidades, pessoas diferentes, estilos e estratégias diversas [...].
Por outro lado, ela não é apenas um discurso, e menos ainda um discurso
acadêmico” (NASCIMENTO; DERRIDA, 2001). A desconstrução não é neutra:
ela intervém. (DERRIDA, 2001, p. 117).
A desconstrução refere-se ao questionamento das formas
totalizantes do pensamento hegemônico na modernidade ocidental. A
desconstrução predispõe a uma experiência de descentramento em relação
às próprias certezas e verdades construídas a partir do pensamento
hegemônico. Significa propor a possibilidade da convivência com o
paradoxo: a permanência na fronteira, naquilo que Derrida chama de
“indecidibilidade”. Situar-se nesse entrelugar 7 pode gerar estruturas
fecundas, que abram novas possibilidades de pensar e fazer, que escapem
à dicotomia e possam “substituir a noção de tradução pela de
transformação” (DERRIDA, 2001). A desconstrução, pelo crivo do
pensamento rigoroso, encoraja a pluralidade dos discursos, legitimando o
desenvolvimento concomitante de diferentes processos e regimes de
verdade.
A partir da diferença colonial, Mignolo compreende a
descolonização como complementar à desconstrução. Ao afirmar que a
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desconstrução “precisa ser descolonizada dos silêncios da história” (2003,
p. 435), encontrando as brechas onde “das feridas das histórias, memórias
e experiências coloniais emergem epistemologias liminares” (2003, p. 66),
o próprio Mignolo parece remeter ao que Azibeiro chama de desconstrução
de subalternidades.
Desconstruir a relação de subalternidade é transformá-la em relação de
reciprocidade, não como um pacífico, conciliador e amorfo face a face, mas
como a potenciação dos paradoxos, das contradições, explodindo na
construção de significados e processos de subjetivação diversos dos habituais,
porque plurais, polissêmicos – implicando muitas vezes a transgressão, ou
subversão, significada como crítica e mudança de modos de entendimento e
ação. Essa transgressão, em geral, pode significar introduzir – ou perceber –
o inusitado, o inesperado em nossas ações e reações, levando à reflexão e à
tomada de posição, pelo deslocamento de significados enrijecidos,
cristalizados (AZIBEIRO, 2006, p.86-87).
Entendendo que “o poder funciona e se exerce em rede”
(FOUCAULT, 1979, p. 183), desconstruir subalternidades pode significar,
ainda, identificar as emergências de relações que ativem múltiplos e
heterogêneos regimes de verdade.
Na cultura ocidental moderna, as relações entre culturas diferentes
são consideradas a partir de uma lógica binária (índio x branco, centro x
periferia, sul x norte, homem x mulher, normal x anormal). Toda dicotomia
traz implícita uma hierarquização, na medida em que induz a privilegiar
um termo em detrimento do segundo. Dessa forma, o pensamento
dicotômico não permite compreender a complexidade dos agentes e das
relações subentendidas em cada polo, nem a reciprocidade das interrelações, nem a pluralidade e a variabilidade dos significados produzidos
nestas relações (FLEURI, 2003).
A desconstrução dessa lógica subalternizante implica levar ao
extremo cada dicotomia e evidenciar que, no limite, ela é falsa, porque
construída como universal e natural a partir de concepções e histórias
locais: datadas e situadas. Boaventura de Souza Santos (2003, p.444)
propõe “ampliar ao máximo a consciência de incompletude mútua por
intermédio de um diálogo que se desenrola, por assim dizer, com um pé
em uma cultura e o outro pé em outra. Nisso reside seu caráter diatópico”.
Mignolo fala na “dupla consciência”: a dupla consciência, dupla crítica,
outra língua, outro pensamento [...] tornam-se categorias necessárias para
eliminar a subalternização do conhecimento e para procurar formas de
pensamento além das categorias do pensamento ocidental (MIGNOLO,
2003, p. 439).
O desafio desse entendimento de intercultura é manter as diferentes
perspectivas emergentes, criando entrelaçamentos que possibilitem a
interação dos contextos. Ou melhor, criar um enredo que coligue, de modo
crítico e criativo, os diferentes elementos, potencializando as diferenças
como conexões.
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Desse modo, o que estamos aprendendo, de tudo isso, é que a
atenção do pesquisador e da pesquisadora, assim como do educador e da
educadora, deve estar sempre voltada para as conexões: entre as pessoas,
entre os grupos, entre os acontecimentos, entre as ideias. Entendemos que
as conexões se configuram não apenas por oposição ou composição, mas
simultaneamente nos desafiam a explorar também outros dispositivos
relacionais, como os de “superposição, subposição, anteposição, posposição,
transposição, proposição, contraposição, exposição, imposição, reposição,
justaposição, interposição...”8. Aprendemos, ainda, a necessidade de
considerar sempre múltiplos centros, múltiplos contextos e múltiplas
relações, que envolvem diferentes sujeitos, também eles policentrados.
4 Pesquisas Interculturais e Educação
Pensar em processos interculturais descolonizantes implica,
portanto, a necessidade de transpor fronteiras e inaugurar novos
paradigmas no campo da pesquisa, e, por conseguinte, do ensino e da
aprendizagem. Nesse sentido, todo pesquisador necessita “olhar de dentro
e do alto”, como destacam Fleuri e Costa (2000, p.100) para compreender
conceitos como o de espaço de aprendizagem e perceber novas elaborações,
especialmente se atentar para o fato de que os espaços9 são construções
feitas pelas pessoas a partir de processos interativos. Esses processos, por
sua vez, oportunizam a criação de projetos entre os envolvidos e
sedimentam possibilidades de construção identitária.
De acordo com Boutinet (2002), todo projeto corresponde à certa
“antecipação operatória de um futuro desejado”. Vale dizer que, através
da identificação de um futuro desejado, assim como dos meios que fazem
com que ele venha a acontecer, estabelece-se uma espécie de horizonte
temporal dentro do qual ele evolui; ao mesmo tempo, há a possibilidade
de considerar a relação “presente-futuro” em permanente processo de
construção. Barbier diz que “o projeto não é uma simples representação
do futuro, do amanhã, do possível, de uma idéia: é o futuro a fazer, um
amanhã a concretizar, um possível a transformar em real, uma idéia a
transformar em acto” (apud MACHADO, 2000, p. 32). O projeto traz em
si, também, a ideia de movimento.
Três características básicas compõem a ideia de projeto nos
parâmetros adotados neste estudo: “a referência ao futuro, a abertura para
o novo e o caráter indelegável da ação projetada.” (Idem) Nesse sentido,
propor projetos de pesquisa interculturais que têm por finalidade favorecer
a interação e promover o intercâmbio entre culturas distintas é
comprometer-se também com práticas sociais educativas. Pesquisas
interculturais sinalizam possibilidades de se gestar o que Boutinet (op.cit.)
chama de “projetos de referência”, cuja finalidade é ser uma espécie de
mapa para orientar ações. Por meio das finalidades evidenciam-se os valores
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culturais que inspiram a ação. “[...] é com o projeto de referência que se
avalia melhor os estreitos vínculos que unem cultura e projeto. Este último
pode ser considerado uma forma de construir um consenso a partir de
certos valores presentes em uma cultura” (Idem, p. 110).
Compartilhamos do pressuposto de que um projeto de referência
demanda princípios, tais como: participação, envolvimento, parceria, ação
dialógica, pesquisa e ensino, cultura de aprendizagem; produção e
socialização de conhecimentos, valorização de saberes prévios, entre outras
ações. Tais conceitos nos remetem também à interculturalidade. De acordo
com Coppete (2007), o prefixo inter marca reciprocidade, interação,
intercâmbio, a ruptura do isolamento e, concomitantemente, indica
separação, interposição e diferença. Refere-se, portanto, a um processo
dinâmico marcado pela reciprocidade de perspectivas que podem ser
entendidas como representações sociais produzidas em interação. A
interculturalidade busca promover relações dialógicas entre as pessoas e
grupos provenientes de diferentes culturas. “Destarte, é um processo
permanente e inacabado, fortemente marcado pela intenção de promover
relações democráticas e dialógicas entre grupos e culturas diversas (Idem,
p. 130).
Para que a perspectiva intercultural aconteça de fato é necessário,
fundamentalmente, que sejam criadas condições para a troca ou
reciprocidade, quando, no reconhecimento do outro, seja possível tomar
consciência da cultura de si mesmo, pois a presença do outro não demanda
somente a capacidade para se descentrar ou decifrar a sua cultura, bem
como as implicações que este contato desencadeia. Para que se realize o
encontro é necessário o estabelecimento de relações. Assim, as práticas
cotidianas deixam de ser óbvias. Como comenta Falteri (1998, p. 39),
[...] nos damos conta do quão local é o saber-fazer que transmitimos, quão
etnocêntricas são as estruturas das disciplinas nas quais nos formamos, quanta
pedagogia implícita existe na organização material da sala de aula (tempos,
espaços, sistema dos objetos) nas redes de relações e de papéis, nas formas
de comunicar.
Outros autores, como Martinez e Carrera (1998), também apontam
a dinamicidade existente na abordagem intercultural. Para eles, o termo
intercultura apresenta-se como algo dinâmico e em íntima relação, na
qual as culturas se interpenetram e seus membros se relacionam de maneira
ativa. A dinamicidade, integração e reciprocidade inerentes à educação
intercultural aparecem no conceito de Fermoso Estébanez (1998), que as
define como um processo de natureza eminentemente humana, intencional
e plural.
Assim, todo projeto de pesquisa, estruturado dentro desses
princípios, é sinônimo de ação social, cujo conceito de educação não está
assentado apenas em sua utilidade; está, acima de tudo, no sentido que a
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educação precisa ter. É o sentido que possibilita a uma pessoa colocar-se
em uma determinada situação. Nessa perspectiva, todo agir tem
implicações no tecido histórico-social. Por isso, pesquisas interculturais e
práticas que delas decorrem são carregadas de intencionalidade
promissora, na medida em que investem na perspectiva educativa como
dimensão coletiva (COPPETE, 2003).
Nessa direção, é possível alcançar práticas interculturais,
especialmente do ponto de vista dos diálogos possíveis que podem ser
realizados e do quanto tais práticas podem contribuir, no sentido de
atribuir outros significados à própria linguagem empregada nos espaços
educativos. Como diz Souza (2002, p. 322), “a educação intercultural nos
convida a construir pontes, recuperando a importância da língua(gem) no
campo educacional [e no campo da pesquisa].”
A intercultura, segundo Falteri (op.cit., p. 37), efetiva-se quando
“são criadas as condições para a troca; quando são estabelecidas relações
de reciprocidade; quando, ao reconhecer o ‘outro’, tornamo-nos conscientes
de nossa própria cultura. [...] Para que se realize o encontro, é necessário
que se estabeleça uma relação,” (Idem, p. 41), o que remete considerar a
perspectiva de articulação de pesquisas e trabalhos realizados em redes.
Pensar numa abordagem de rede supõe o entendimento de ações e relações
que mantenham, ao mesmo tempo, as conexões e a autonomia, assim como
a coerência - com escolhas ético-políticas que possibilitem o que Nadir
Azibeiro (2006) nomeia de desconstrução de subalternidades, citada
anteriormente -, e a flexibilidade, que permite a criatividade e o crescimento.
A opção ético-político-epistemológica pela desconstrução de
subalternidades, que se coloca como condição para a possibilidade da
reciprocidade, é inerente à perspectiva intercultural.
Desse modo, é fundamental compreender a educação intercultural
a partir da perspectiva relacional que ela engendra. Fleuri (1998) comenta
que o horizonte da educação intercultural é constituído a partir da criação
de contextos educativos que oportunizem a integração e a interação
criativa e cooperativa tanto entre os diferentes sujeitos quanto entre seus
contextos sociais e culturais. As práticas de troca se consolidam mediante
ações comprometidas com a democracia e a justiça social. Nessa
perspectiva, Barandica (1999, p.18) apresenta as principais características
de uma educação intercultural:
• Enfoque global, no sentido de incorporar propostas educativas em
projetos de caráter social e propositivo, o que expressa um projeto de
estabelecimento de relações igualitárias entre culturas;
• Facilitação e promoção de processos de intercâmbio, interação,
cooperação entre culturas, com um tratamento igualitário entre elas;
• Evidência não somente das diferenças, mas também das similitudes;
• Base em um conceito dinâmico de cultura e de identidade cultural;
• Aproximação crítica (analisando e valorizando) as culturas;
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• Renúncia de ideias de vazios culturais e de hierarquização das culturais;
• Clara preocupação com o binômio diferença-igualdade;
• Extensão da educação intercultural não unicamente a centros que contem
com a presença de minorias étnico-culturais;
• Diversidade cultural no processo educativo vista não como elemento
segregador ou diferenciador, mas sim como elemento enriquecedor e
articulador;
• Princípio dialógico entre culturas, compreensão e aceitação da alteridade
como fundamento do modelo de interação entre elas;
• Ausência de hibridação cultural (por justaposição de assinaturas ou
amálgama de materiais), mas, sim, enriquecimento e compreensão mútua,
mediante aprendizagens baseadas nas essências culturais de cada uma.
A educação intercultural contempla, assim, uma abordagem
emancipatória, constituída na e pela percepção da multiplicidade de
olhares, nas inter-relações e na interação entre as diversas culturas.
Demanda, indubitavelmente, um encontro. Todavia, não se trata de um
encontro pura e simplesmente entre pessoas diferentes. Para que um
encontro seja intercultural, na forma como neste estudo se defende e se
procura, é significativo que as diferenças sejam como “tensões produtivas”,
como sugere Torres (1998), de onde se pode partir para a construção de
conhecimentos, mediante pesquisas e práticas educativas que sejam
relevantes para os vários grupos sociais envolvidos.
5 O Desafio Epistemológico de Pesquisas Interculturais
O principal desafio epistêmico para conseguir se abrir a perspectivas
complexas de análise é perceber os diversos saberes como sistemas abertos,
que se atravessam ou transversalizam, que se interconectam, produzindo
emergências que, ao mesmo tempo, são causadas pela relação entre eles e
os transformam, produzindo, por sua vez, outras conexões e possibilidades
de relações. Nisso consiste o que Morin entende como a busca de uma
ecologia do pensamento, isto é, o entendimento dos contextos múltiplos e
complexos em que cada ideia apareceu e se desenvolveu.
Pensar a questão da diferença unicamente em termos de exclusão,
inclusão ou sincretismo – como únicas alternativas possíveis – significa,
ainda, pensar a partir da perspectiva de uma única cultura ou caminho
possível, ou nos marcos de uma uni-versalidade, como a imposta pela
modernidade ocidental. Como alternativa a isso é que se busca a invenção
de entrelugares, em que outras relações se tornem possíveis. Nesses espaços
liminares, as diferenças permanecem em tensão, em ebulição, fazendo com
que as mesmas palavras, as mesmas imagens e os mesmos símbolos não
apenas produzam diversas interpretações, mas se mantenham
ambivalentes. E, assim, mantenham também a flexibilidade, a possibilidade
de continuar interagindo e mudando, deslocando relações de poder. É este,
para Bhabha (1992), o espaço da ressignificação, da possibilidade de
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dissolução de estereótipos e preconceitos e de empoderamento, de
fortalecimento da autoconfiança e da capacidade de ação das pessoas e
dos grupos populares.
É esse o sentido do polifônico, para Mikhail Bakhtin (1992). São
polifônicos os textos – ou contextos – em que as múltiplas vozes e significados
permanecem em interação, ao mesmo tempo em que podem continuar a
ser distinguidas, identificadas – sempre fluindo, modificando-se, buscando
outras tessituras. Assim também Edgar Morin entende o conceito de
dialógico: como a possibilidade de interação e inter-relação de múltiplas
perspectivas, inclusive as aparentemente antagônicas, que permanecem
em tensão e interação, levando a entendimentos plurais, ao pensamento
complexo. É esse também o entendimento da hermenêutica pluritópica para
Walter Mignolo. Esses conceitos explicitam dimensões e características
fundamentais do que denominamos uma educação intercultural.
Operacionalizado como uma pedagogia do encontroconfronto, levada
às últimas consequências, esse entendimento de interculturalidade enfatiza
a relação entre sujeitos – individuais e coletivos – buscando possibilitar
uma produção efetivamente plural de sentidos e lugares sociais, a partir
da compreensão de que os significados podem ser reelaborados nos
processos de interação social, pelo estabelecimento de contextos relacionais
que inventem outras políticas de verdade. Para além de uma proposta
idealista de convivência pacífica, a interculturalidade, sob esse ponto de
vista, coloca-se como proposta de produção molecular e cotidiana de
espaços, tempos e subjetividades plurais, movendo-se no terreno do
plurilinguajamento, do polifônico, do dialógico. Atua no espaço deslizante
do inter, onde se torna possível, como propõe Bhabha, a dissolução de
preconceitos e estereótipos, a substituição das verdades absolutas e
dogmáticas, a percepção de que existem outras modulações para os
significados enrijecidos e cristalizados.
Atuar no espaço fluido do inter não significa não assumir posição. A
tomada de posição se constitui a partir da acolhida, da reflexão, do
compromisso, da ousadia, da abertura à imprevisibilidade e às infinitas
possibilidades. Para Boaventura de Souza Santos (2004, p. 796), “a
possibilidade é o movimento do mundo”. Para ampliar ao máximo essas
possibilidades é que propõe uma “sociologia das ausências” e uma
“sociologia das emergências” como formas de expandir o domínio tanto
das experiências sociais já disponíveis, como das experiências sociais
possíveis. Propõe uma ecologia de saberes, temporalidades, reconhecimentos,
produções e distribuições sociais.
Comum a todas estas ecologias é a idéia de que a realidade não pode ser
reduzida ao que existe. Trata-se de uma versão ampla de realismo, que inclui
as realidades ausentes por via do silenciamento, da supressão e da
marginalização, isto é, as realidades que são ativamente produzidas como
não existentes (SOUZA SANTOS, 2004, p. 793).
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Criar inteligibilidade entre diferentes saberes, como entre diversas
formas de organização e objetivos de ação, identificar o que os une e o que
os separa, inventando, ao mesmo tempo, a possibilidade de se manterem
em emergência e em confronto, provocando deslocamentos, mudanças de
valores e de significados, sem a imposição de novas sínteses ou hierarquias.
Esse é o principal desafio dessa proposta de interculturalidade.
Enfatizar o caráter relacional e contextual (inter) dos processos
sociais permite reconhecer a complexidade, a polissemia, a fluidez e a
relacionalidade dos fenômenos humanos e culturais. E traz implicações
importantes para o campo da pesquisa. A pesquisa, na perspectiva
intercultural, deixa de ser assumida como um processo de formação de
conceitos, assim como de valores, a partir de uma relação unidirecional,
unidimensional e unifocal, conduzida por procedimentos lineares e
hierarquizantes. A pesquisa passa a ser entendida como o processo
construído pela relação tensa e intensa entre diferentes sujeitos, criando
contextos interativos que, justamente por se conectar dinamicamente com
os diferentes contextos em relação aos quais os diferentes sujeitos
desenvolvem suas respectivas identidades, tornam-se ambientes criativos
e propriamente formativos, ou seja, estruturantes de movimentos de
identificação subjetivos e socioculturais.
O desafio que se coloca, pois, para a pesquisa intercultural crítica é
justamente o de reconhecer os múltiplos fatores, dimensões, contextos,
sujeitos e “perspectivas que interagem e que não podem ser reduzidas por
um único código e um único esquema a ser proposto como modelo
transferível universalmente” (FLEURI, 2003).
Assim, o processo de pesquisa se constitui não a partir do
posicionamento individual em um ponto de observação supostamente
neutro e exterior aos fatos e sujeitos observados, nem simplesmente na
formulação de um referencial teórico que permita a organização hierárquica
e progressiva de informações. A elaboração crítica de conhecimento exige
a inserção, como interlocutor, dos autores no contexto de diálogo entre
diferentes sujeitos e entre os seus respectivos contextos. Ao interagir com
outros sujeitos, torna-se importante que cada autor dedique particular
atenção às relações e aos contextos que vão se criando, de modo a poder
contribuir para a explicitação e elaboração dos sentidos (percepção,
significado e direção) que os sujeitos em relação constroem e reconstroem.
O desafio da pesquisa é o de se desenvolver recursos e processos capazes
de ativar a elaboração e a circulação de informações entre sujeitos, de
modo que se auto-organizem em relação de reciprocidade entre si e entre
seus respectivos ambientes. A pesquisa se constitui como fator mobilizador
da interação entre sujeitos, que pode promover a compreensão,
ressignificação e transformação de seu próprio contexto interativo.
A necessidade de descolonializar as formas de poder, saber, ser e
viver é mais profunda e ampla do que a de reconhecimento e valorização
das configurações de poder, de saber, de ser e de conviver apenas dos
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povos autóctones de nosso contexto latino-americano. Reconhecer a
densidade e a originalidade da contribuição dos povos ancestrais e dos
grupos sociais tradicionalmente subalternizados e aprender com eles, de
modo crítico e dialógico, é condição de sobrevivência e de crescimento de
todos. E isso pressupõe o desenvolvimento de processos interculturais
descolonializantes.
Considerações Finais
Sabe-se que a sociedade contemporânea é constituída de culturas
multifacetadas. Por essa, entre outras razões, é inconcebível pensar projetos
de pesquisa e práticas educativas estruturados mediante modelos
universais, hegemônicos e monoculturais. Por outro lado, ao se dar
visibilidade às diversas culturas, é preciso ter o cuidado de não considerar
cada cultura fechada em si mesma; a valorização da diversidade cultural
necessita ser o ponto de partida para que as aproximações entre as culturas
aconteçam. Com base nessa premissa, este artigo buscou problematizar e
refletir sobre as pesquisas interculturais e as possibilidades de
descolonializar o saber, o poder, o ser e o viver, tentando delimitar
perspectivas, contradições e desafios existentes neste campo.
Sinalizou a relevância da interculturalidade crítica, na medida em
que aponta para essa descolonialização, ou seja, do saber, do poder, do
ser e do viver. A desconstrução de padrões culturais coloniais-modernos
demanda visibilizar seus paradoxos, no sentido de promover relações de
maior reciprocidade capazes de construir significados e processos
polissêmicos. É justamente nesse sentido que a pesquisa pode ser
mobilizadora da interação entre as pessoas, na medida em que pode
otimizar processos que levem a compreender, ressignificar e transformar
seu próprio contexto interativo.
O que se buscou mostrar foi a importância e a possibilidade de
elaborar e mobilizar formas de saber, poder, ser e viver que busquem
garantir a convivência de todos os seres humanos com a natureza e consigo,
desconstruindo dispositivos e estruturas de dominação sociocultural e de
destruição sistemática da natureza, vigentes no atual contexto mundial.
Notas
1
Doutorado em Educação (1988), pós-doutorado na Università degli Studi di Perugia, Itália
(1996), e na USP (2004). Professor titular da UFSC. Presidente da Association pour la
Recherche Interculturelle (ARIC), (2007-2009). Pesquisador e consultor do CNPq, nível 1C.
Coordena o Núcleo de Pesquisa Mover - Educação Intercultural e Movimentos Sociais
(UFSC/CNPq). Pesquisador colaborador do Centre de Recherche sur l’intervention
éducative - CRIE (Canadá). Suas obras mais recentes são: Educação Intercultural: mediações
necessárias (Rio de Janeiro: DP&A, 2003); Entre Disciplina e Rebeldia na Escola. (Brasília:
LiberLivros, 2008). Contato: [email protected]
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Graduação em Pedagogia e Especialização em Fundamentos da Educação (UNESC).
Mestrado em Educação e Cultura - UDESC (2003). Professora titular da UDESC. Doutoranda
(2008) pelo Programa de Pós-graduação em Educação da UFSC e pesquisadora do Núcleo
MOVER. Contato: [email protected]
Graduação em Pedagogia. Mestrado em Educação pela UFSC (1994) e doutorado em
Educação pela UFSC (2006). Atuou no Instituto Cajamar, no Programa de Formação de
Educadores Populares. Atualmente é professora titular da UDESC e coordenadora
pedagógica do Centro Cultural Escrava Anastácia. Contato: [email protected]
Paradoxo é uma contradição lógica que, se não resolvida, coloca em cheque toda a
estrutura lógica da argumentação que a gerou. Trata-se de uma afirmação – aceita como
verdadeira – mas que contradiz e questiona o sistema de entendimento em que se baseia.
As proposições em confronto se encontram dentro de um contexto maior que as envolve
e ressignifica. Cf. Bateson, 1986, p.125ss.; Fleuri e Costa, 2001, p.66; Souza, 2002, p.239.
O grupo de pesquisa “Educação Intercultural e Movimentos Sociais”, conhecido na
Universidade Federal de Santa Catarina como “Núcleo Mover”, está registrado no
Diretório de Grupo de Pesquisas do CNPq. Cf em http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/
detalhegrupo.jsp?grupo=0043708JCBVE0N
Sobre esta temática é particularmente relevante a tese de Nadir Esperança Azibeiro
(2006).
“O que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a necessidade de passar além
das narrativas de subjetividades originárias e iniciais e de focalizar aqueles momentos
ou processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais. Esses
“entrelugares” fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação –
singular ou coletiva – que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de
colaboração e contestação, no ato de definir a própria idéia de sociedade” (Bhabha, 1998,
p. 19-20).
Michel Serres (1994) valoriza as preposições, por causa da sua plasticidade topológica:
dizem as passagens, os contratos, as interferências, os distanciamentos ou as traduções.
O autor afirma que existe uma filosofia virtual em cada preposição da nossa língua.
Assim, escreve este pensador, existe uma filosofia da transcendência na preposição “sobre”,
da substância e do sujeito em “sob”, da interação entre o mundo e o eu em “dentro”, da
Comunicação e do contrato em “com”, da tradução em “através de”, das interferências em
“entre”, da passagem em “por”, da parasitagem em “ao lado de” e do distanciamento em
“fora” (Serres, 1994).
O conceito foi postulado por Certeau (1995, p. 101, 110): “existe espaço sempre que se
tomam em conta vetores de direção, quantidade de velocidade e a variável tempo. O
espaço é o cruzamento de móveis. É, de certo modo, animado pelo conjunto dos movimentos
que aí se desbobram [...] O espaço é um lugar praticado.”
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TRANSFORMACIÓN INTERCULTURAL E
INTERRELIGIOSA DEL QUEHACER TEOLÓGICO EN
AMÉRICA LATINA
Raúl Fornet-Betancourt1
En lugar de una introducción: una tesis de entrada para plantear el
debate del tema
Nuestra tarea es ahora la de ocuparnos con “el quehacer teológico
en el contexto del diálogo entre las culturas en América Latina”. Lo que
quiere decir que debemos reflexionar sobre lo que hacemos cuando
hacemos teología. Tenemos, por tanto que hacernos cuestión de nuestra
propia “profesión” como teólogos y teólogas, y preguntarnos por ella
además en una situación concreta, relativamente nueva, que intuimos que
nos desafía con retos específicos.
Hacer del quehacer teológico tema de nuestras reflexión es, pues,
preguntarse por la relación que mantenemos con nuestro quehacer
profesional en teología.
Esta pregunta puede surgir por muchas razones y motivos, tanto
personales como objetivos, así como puede ser resultado también de la
sensibilidad frente a una exigencia contextual determinada.
Nosotros vamos a suponer ahora que hacemos cuestión del
“quehacer teológico en el contexto del diálogo entre las culturas en América
Latina” no por motivos de mejorar las condiciones de salida profesional
de los teólogos y las teólogas en el mercado laboral ni por acrecentar la
competitividad de las instituciones de enseñanza teológica en las sociedades
latinoamericanas actuales sino que hacemos esta “interrupción” en el curso
de nuestro quehacer profesional porque “nos llega” la interpelación de
una situación contextual que sentimos que al menos en algo nos desconcierta
y que nos confronta con la pregunta de si, al cumplir hoy con nuestro
quehacer teológico, estamos realmente haciendo el quehacer que
deberíamos hacer, y si lo hacemos como de verdad deberíamos hacerlo.
Vamos a suponer, por tanto, que nos ocupamos con “el quehacer
teológico en el contexto del diálogo entre las culturas” en razón de lo que
apuntábamos antes como sensibilidad frente a una exigencia contextual
determinada.
Y es por este supuesto que nos parece conveniente encaminar el
debate del tema con una tesis a favor de la necesidad de la transformación
intercultural de la teología hoy en América Latina.
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Formulada de manera sintética y provisional, ya que se trata de
ofrecer una pista para el enfoque del tema en cuestión, nuestra tesis se
puede resumir de la siguiente manera:
Un quehacer teológico que, por sensibilidad frente a las exigencias
con que lo interpela hoy en América Latina el diálogo de las culturas, se
cuestiona a sí mismo para examinar si está o no está a la altura de su
misión teológica en la historia – que desde la visión de la fe cristiana es
siempre también historia de la salvación – tiene que entender este
cuestionamiento de sí mismo o esta pausa reflexiva interruptora de la
normalidad en que se desarrolla como una posibilidad u oportunidad (¿un
Kairos?) para reformarse y transformarse radicalmente, entendiendo este
proceso en el sentido de una renovación desde las raíces memoriales de las
sabidurías de los muchos pueblos de América Latina.
La tesis que adelantamos para que se vea clara la perspectiva desde
la que enfocamos nuestra reflexión sobre el quehacer teológico en el
contexto del diálogo entre las culturas en América Latina, es, por tanto,
las tesis de que las exigencias de ese contexto hacen necesaria una
transformación intercultural e interreligiosa del quehacer teológico en
nuestras cabezas, nuestros hábitos de trabajo, nuestros modos de enseñar,
nuestras instituciones, etc.
A la luz de la perspectiva de esta tesis estructuraremos nuestras
reflexiones en tres pasos argumentativos fundamentales en los que
intentaremos mostrar, primero, porqué es hoy necesaria e indispensable
una transformación intercultural e interreligiosa del quehacer teológico,
segundo, qué es lo que la hace posible y, tercero, cuáles son las dificultades
mayores con que se encuentra este proyecto.
Nuestras consideraciones sobre la necesidad, la posibilidad y la
dificultad de desarrollar un quehacer teológico intercultural e interreligioso
en América Latina serán, por las razones obvias de espacio y tiempo, más
puntuales o aproximativas que exhaustivas pero confiamos en que sean lo
suficientemente relevantes como para que se vean la pertinencia y la
plausibilidad de la tesis aquí propuesta en vistas a encarar el futuro del
quehacer teológico en América Latina.
1 De la necesidad de una transformación intercultural e interreligiosa
del quehacer teológico en América Latina
Decíamos que dábamos por supuesto que nuestra pregunta por el
quehacer teológico en el contexto del diálogo entre las culturas en América
Latina refleja de por sí una cierta sensibilidad frente a las exigencias
específicas con que nos interpela dicho contexto en nuestro quehacer
profesional.
Recordamos esta motivación porque creemos que es un indicador
confiable de que la necesidad de transformar intercultural e
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interreligiosamente el quehacer teológico hoy, y por cierto no únicamente
en América Latina, viene en primera línea de las exigencias contextuales
nuevas con que nos confronta la época histórica de la que tenemos que
dar cuenta teológicamente; una época en la que han cambiado tanto las
condiciones básicas bajo las cuales se hacía teología como las referencias
teóricas que garantizaban el sentido del quehacer teológico en nuestras
sociedades.
De esos cambios vienen precisamente esas exigencias que sentimos
como nuevas y que, al “desconcertarnos” en los recursos que tenemos para
responder ante ellas, nos hacen vislumbrar que problemas y situaciones
nuevos requieren también un pensamiento nuevo, presentándose así ante
nosotros como exigencias contextuales que hablan de la necesidad de revisar
y reformar el oficio de la teología.
De esos cambios que han transformado el rostro del mundo, y ello a
pesar de la aplastante hegemonía de la cultura dominante que se extiende
hoy con el capitalismo neoliberal, queremos ahora resaltar uno que está en
el fondo de muchos otros cambios y que nos parece particularmente
relevante para nuestro tema.
Nos referimos al reconocimiento de la facticidad del pluralismo;
reconocimiento que se nota, es más, al que pagamos tributo ya con la
formulación que hemos escogido para indicar el aspecto contextual a cuya
luz queremos reflexionar aquí sobre el quehacer teológico, pues hablamos
justamente de revisar el sentido de éste “en el contexto del diálogo entre
las culturas en América Latina.”
Si hablamos de diálogo entre las culturas es porque damos por
supuesto la diversidad, la pluralidad y las diferencias entre las mismas.
Reconocemos, pues, el hecho de un pluralismo cultural; y este hecho, al
ser reconocido como factor de la contextualidad donde nos movemos, de
la contextualidad de la que formamos parte y en la que, por consecuencia
ejercemos nuestro quehacer teológico, pasa a ser una interpelación
contextual a nuestra manera de hacer teología; una exigencia que nos pide
justamente que nos ocupemos de esa realidad. De este llamado de la
realidad del pluralismo cultural como tema que no podemos soslayar en
nuestro quehacer teológico, porque constituye ya parte de su
contextualidad histórica, viene la necesidad de hacer un alto en el curso
de nuestra normalidad teológica para preguntarnos si estamos en
condiciones de ocuparnos responsablemente de las nuevas exigencias de
una realidad marcada por el pluralismo cultural.
En una palabra: la realidad del pluralismo cultural, con su
consiguiente despertar de las alteridades, conlleva para la teología la
necesidad de preguntarse por su transformación intercultural.
Esta exigencia vale a nivel mundial. Pues el pluralismo cultural
desafía a la teología o, mejor dicho, a las teologías, sean éstas cristianas,
ortodoxas, musulmanas, budistas o guaraní, en su normalidad cultural al
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ponerles delante un espejo pluridimensional que les queda grande o en el
que pueden ver reflejada la estrechez cultural de su normalidad discursiva.
En el espejo del pluralismo cultural las teologías actuales se ven
como regiones y, si son autocríticas, reconocen que su normalidad cultural
les impide llevar su mensaje en perspectiva realmente universal.2
Pero, para nosotros aquí, que debemos limitarnos al ámbito
latinoamericano, esa exigencia del pluralismo cultural se concretiza en el
desafío de que las teologías de América Latina se vean primero en el espejo
que les presenta la diversidad de culturas en el continente y que descubran
los límites culturales de su normalidad teológica.
Nos parece evidente que este desafío de tomar conciencia de los
propios límites culturales y, por tanto, también del alcance del propio
discurso que conlleva el contexto del diálogo entre las culturas en América
Latina para el quehacer teológico que se practica hoy en ella, es un desafío
que toca en primera línea y fuertemente a las teologías cristianas porque,
debido a múltiples razones conocidas, como son el alto porcentaje de
población que se confiesa cristiana, el peso de las tradiciones cristianas en
el llamado mestizaje cultural latinoamericano o la fuerza de los centros de
investigación, enseñanza y publicación de que disponen, es innegable que
las teologías cristianas detentan hoy un cierto monopolio en la producción
teológica del continente.
Mas igualmente evidente nos parece que ese desafío del pluralismo
cultural interpela también a otras teologías contextuales que se elaboran
en América Latina y que se entienden a sí mismas como portavoces de
culturas indígenas o afroamericanas. Pues el pluralismo cultural también
confronta a estas teologías con la experiencia de sus propios límites
culturales y, por lo mismo, con la cuestión de su sentido en un contexto
marcado por la pluralidad de la diversidad cultural.
Resumiendo este punto diríamos que en América Latina el
pluralismo cultural confronta a todo quehacer teológico con la exigencia
de responder a esa nueva realidad tratando de formar parte del diálogo
entre culturas que implica dicho pluralismo; y que esta exigencia se traduce
para la teología en una necesidad de transformación, ya que, al asumirla,
descubre que no puede entrar en la dinámica de ese diálogo de las culturas
sin “sacudir” la normalidad teológica que ha alcanzado asentándose en
una cultura determinada.3
Y ha de observarse todavía que esta necesidad de transformación
intercultural que, viniendo del contexto del diálogo de las culturas,
podríamos decir que crece en la teología por una razón “externa” a ella, es
decir, por imperativo contextual, revierte en la teología de tal manera que
se convierte en el punto de partida para una transformación intercultural
de la teología por razones o necesidades internas a ésta misma. Porque es
en ese intento de responder a las nuevas exigencias contextuales donde la
teología sufre la experiencia de que todavía tiene un discurso, pero que
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éste no es suficientemente amplio como para dejar que resuenen en él todas
las experiencias culturales de Dios ni para dejar que resuene en el mundo
la palabra de Dios en toda su diversidad.
Por esta experiencia, mediante la cual la teología sufre en el marco
del contexto del pluralismo cultural su propia normalidad teológica como
aquello que le impide justamente abrirse a la infinitud que indica el
pluralismo cultural, la necesidad de la transformación intercultural se
profundiza todavía más como una necesidad interna que brota ya no sólo
de la experiencia de finitud del discurso teológico elaborado sino además
del presentir de alguna manera que en el pluralismo cultural y la
interculturalidad se anuncia la sublime infinitud de la Palabra cuya presión
de diversidad hace estallar toda frontera cultural y lanza la teología al
éxodo continuo.
Así la transformación intercultural se prolonga, por necesidad de
lo que late en el corazón de toda teología contextual, en un proceso de
transformación interreligiosa de la teología.
El quehacer teológico que se pregunta por su sentido en el contexto
del diálogo de las culturas se adentra así por un camino (¿el camino al que
lo abre el Espíritu?) que lo impulsa a sentir también la necesidad de
reconfigurarse desde experiencias interreligiosas.
Pues no hay diálogo de culturas sin diálogo de religiones, al menos
cuando tomamos el diálogo en su verdadero sentido intercultural de
caminar acompañado hacia la profundidad del otro.
Hacer ese camino, en el que se acompaña y se es acompañado, es
participar en el misterio de la diferencia del otro, que es siempre en última
instancia una diferencia con espíritu, en el espíritu y del espíritu. En todo
diálogo de culturas palpita, pues, un diálogo de espiritualidades;
espiritualidades que, aunque no siempre, muchas veces se condensan en
religiones identificables.
Esta pluralidad de espiritualidades y de religiones urge en América
Latina al quehacer teológico a plantearse como una tarea necesaria su
transformación interreligiosa, es decir, a complementar su capacidad de
hablar de Dios interculturalmente con el desarrollo de un lenguaje que
libere su discurso sobre Dios de los límites de su religión de proveniencia
por la interacción con el espíritu de Dios en el otro.
Podemos decir, en síntesis, que la necesidad de transformar
interculturalmente e interreligiosamente el quehacer teológico en América
Latina es una exigencia de la profunda e inagotable diversidad del Espíritu;
necesidad que para nosotros es históricamente necesaria para que nuestras
teologías particulares no hagan de Dios su botín ni nuestras religiones
funcionen como una prisión para el Espíritu que nos convoca a la liberación
y , con ello, a una vida que crece en la convivencia acogedora de las
diferencias.
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2 De la posibilidad de una transformación intercultural e interreligiosa
del quehacer teológico en América Latina
Así como la necesidad o, mejor dicho, la toma de conciencia de que
la transformación intercultural e interreligiosa del quehacer teológico hoy
en América Latina hay que verla en última instancia vinculada al misterio
del Espíritu que nos revela su diversidad insondable en la pluralidad de
las culturas y las religiones, del mismo modo podemos decir que la
posibilidad de dicha transformación tiene su fundamento último en el
misterio de Dios y de su plan salvífico en nuestra historia.
Podemos, con posibilidad real, transformar intercultural e
interreligiosamente el quehacer teológico porque la realidad que confesamos
con el nombre de Dios se da ella misma en muchos nombres y nos habla en
muchas lenguas, culturas y religiones.
La actualización real de esa posibilidad, que en su fondo es gratuita,
depende sin embargo de nuestra capacitación para aprender a revisar
nuestras teologías, y las religiones a partir de las cuales se articulan, desde
Dios y su diversidad, desde su misterio. Lo que quiere decir que hay que
desaprender a ver a Dios desde nuestras teologías y religiones.
Por eso la posibilidad de la transformación intercultural e
interreligiosa del quehacer teológico concretamente en el contexto
latinoamericano del pluralismo cultural y religioso supone adentrar la
teología en un proceso de aprendizaje cultural y/o de recapacitación
religiosa por el que, por decirlo de esta forma, la teología se capacita para
revisar su religación a la religión que la sostiene en su normatividad cultural
y teológica, porque se trata justamente de un proceso de apertura a la
palabra del otro como memoria religiosa original, en este caso, en la que
también resuena la verdad de Dios.
Se trata, en breve, de capacitar nuestras teologías y religiones para
que sean lo que deben ser: caminos de participación en la verdad de Dios.
Pero esto supone precisamente que aprendan a caminar “por los muchos
caminos de Dios”; y que aprendan, al transitar esos caminos, a rehacer el
propio camino desde sus cruces y relaciones con los caminos del otro.
La posibilidad de la transformación intercultural e interreligiosa del
quehacer teológico en América Latina se concretiza así, en un primer paso,
mediante el desarrollo de una hermenéutica de la propia tradición desde
la relación con las tradiciones del otro.
Antes de seguir con la explicación de este primer paso debo
intercalar, sin embargo, una observación que me parece necesaria para
comprender la lógica de nuestra argumentación en este punto. Es la
siguiente: la hermenéutica de lo propio desde la relación con el otro es
posible en virtud de la misma contextualidad del pluralismo cultural y
religioso. Pues hay que tomar conciencia de que pluralismo es más, mucho
más, que la simple afirmación o constatación de la multiplicidad como
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situación de hecho, porque apunta a un horizonte de convivencia en la
diversidad en tanto que expresa la idea de que el hecho de que “hay o
somos muchos” implica la consecuencia político-ética del reconocimiento
de la relatividad de los puntos de vistas, de las creencias y convicciones de
cada uno de los muchos.
El pluralismo afirma así una diversidad que se reconoce en sus
limitaciones justo porque tiene conciencia de su relación con el otro, y con
ello de la necesidad de relativizar la pretensión de universalidad de todo
universo cultural o religioso.4
De esta suerte el contexto del pluralismo hace posible una
hermenéutica de lo propio que parta del reconocimiento de la relación con
el otro. Y decíamos que el desarrollo de una hermenéutica semejante está
a la base de una transformación intercultural e interreligiosa del quehacer
teológico hoy en América Latina porque desplaza el centro interpretativo
de las teologías, culturas o tradiciones religiosas con las que las diferentes
alteridades se identifican, al aprovechar la relación con el correspondiente
otro como una ocasión para ponerlo en el centro de interpretación.
Hermenéutica de lo propio desde la relación con la tradición del
otro quiere decir de este modo reconocer la dimensión de pasividad que,
como elemento fundamental de autoconocimiento, conlleva la relación con
el otro y que nos hace ver que somos sujetos de interpretación en sentido
pleno cuando, y sólo cuando, sabemos complementar el momento activo
del “nos interpretamos” con el momento pasivo del “somos interpretados”.
En un segundo paso la posibilidad de una transformación
intercultural e interreligiosa del quehacer teológico en América Latina se
muestra por el desarrollo de teologías contextuales enraizadas en las
culturas de los pueblos indígenas y afroamericanos del continente. Su
desarrollo es hoy ya un hecho reconocido. Es decir que no son un programa
o un proyecto todavía por realizarse sino que representan ya una aportación
con peso propio5. Por eso no nos detendremos más en ellas, señalando
solamente – porque esto basta en el marco de estas consideraciones – que,
aún en el caso en que las teologías indias a afroamericanas se confiesan
como teologías cristianas, representan una contribución fundamental a la
transformación intercultural e interreligiosa del quehacer teológico
(cristiano) en cuanto que por su articulación desde las espiritualidades de
las culturas indígenas y afroamericanas pluralizan la experiencia de la fe
cristiana, hacen posible una lectura intercultural e interreligiosa de la Biblia
y ponen fin a la hegemonía del cristianismo occidentalizado que ha servido
de referente casi exclusivo para el desarrollo del quehacer teológico en
América Latina.
Un tercer paso en la posibilitación de la transformación intercultural
e interreligiosa del quehacer teológico en América Latina lo vemos nosotros
en otro desarrollo que ya es también un hecho y que, en cuanto tal, nos
indica que esta transformación no es una simple posibilidad de futuro sino
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una posibilidad en curso de realización. Nos referimos a las contribuciones
que se están haciendo a la fundamentación y a la explicitación de una
teología cristiana del pluralismo religioso desde América Latina. Como en
el caso anterior, dejamos también esa aportación apuntada sólo como
muestra de la posibilidad de la transformación intercultural e interreligiosa
del quehacer teológico en la actualidad de América Latina.
Sí queremos en cambio detenernos algo más en un cuarto paso en
el que a nuestro modo de ver, se concretiza la posibilidad de la
transformación que propugnamos para el quehacer teológico
latinoamericano en el contexto del diálogo de las culturas.
Se trata del desarrollo de una metodología teológica intercultural e
interreligiosa que se haga eco de la hermenéutica anotada en el primer
paso y que abra desde ella caminos plurales y equivalentes de hacer teología.
En cierta forma es la metodología que ya se vislumbra, aunque más implícita
que explícitamente, en las contribuciones mencionadas de las teologías
indias, afroamericanas y del pluralismo religioso; pero que debe todavía
ser elaborada como una metodología que asume de manera conciente que
los llamados “lugares teológicos”, sean éstos tradiciones religiosas, culturas
o lugares histórico-sociales, como “el pobre” o “la mujer” son de por sí
métodos que encaminan el peregrinaje de la humanidad por las huellas de
Dios en la historia. Se elaboraría de este modo como una metodología
compleja de métodos o, si se prefiere, como una interacción de métodos
diversos mediante la cual éstos se interfieren, se cruzan, se contrastan y
eventualmente reconocen confluencias o convergencias.
Señalemos, por último, que para la elaboración efectiva de esta
metodología intercultural e interreligiosa nos parece fundamental la
encarnación del quehacer teológico en la dinámica del desarrollo real de
la identidad religiosa de la gente, pues ésta es, tal es nuestra sospecha,
mucho más intercultural e interreligiosa en su curso y práctica cotidiana
de lo que frecuentemente acertamos a ver los “profesionales”.
3 De las dificultades con que todavía tiene que contar la transformación
intercultural e interreligiosa del quehacer teológico en América Latina
En primer lugar están las dificultades que podríamos llamar
“externas”. Son las que vienen, por una parte, del impacto de las políticas
internacionales de globalización del neoliberalismo y su consiguiente
“cultura global” en el desarrollo actual de las sociedades latinoamericanas;
y, por otra, de la propia historia de los países latinoamericanos que, no
habiendo superado hasta hoy las secuelas del pasado colonial, sigue
confrontando a los pueblos de Abya Yala con el desprecio, el racismo y la
marginación de sus tradiciones.
Pero no son a éstas dificultades a las que nos queremos referir ahora.
Lo que no quiere decir que no sean importante o que lo sean menos que
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aquellas en las que preferimos detenernos. Pues si preferimos detenernos
en éstas otras, que llamaremos dificultades “internas”, es porque
pensamos que su superación, a diferencia de las primeras, depende en
primera línea de nuestro comportamiento, ya que son responsabilidad
directa nuestra.
En un nivel general está en primer lugar la dificultad que representa
para el quehacer teológico cristiano su vinculación con la idea de un
cristianismo “misionero” que supone que con la misión llega la verdadera
religión y la verdadera teología. Esta vinculación es una limitación fuerte
y una dificultad grave para repensar el quehacer teológico, en este caso el
cristiano, en el contexto del diálogo de las culturas y de las religiones.
¿Cómo replantear o resignificar la labor misionera de las iglesias
cristianas y la misma universalidad del mensaje cristiano de salvación en
este nuevo contexto? Una respuesta honesta o, al menos, una consideración
sincera y dialógica a esta pregunta podría ayudar a superar esta primera
dificultad6.
También en este plano general vemos una segunda dificultad
interna que viene concretamente del paradigma teológico de la
inculturación que representa sin duda alguna un gran avance respecto
del paradigma más tradicional de la misión; pero que sigue aferrado a
una concepción monocultural de la universalidad del cristianismo y
defiende así la necesidad de intervenir en todas las culturas y reorientarlas
en sus caminos de salvación. Una transformación intercultural e
interreligiosa del quehacer teológico (cristiano) tendrá que plantearse,
por tanto, la cuestión de resignificar también este paradigma para abrirse
sin reservas a las potencialidades teológicas que le ofrece el pluralismo
religioso y cultural.7
La tercera dificultad que queremos nombrar en este breve recuento
y que se plantea también en un nivel general es la que representa la teología
dogmática con su carga de definiciones sancionadas por los diversos
magisterios doctrinales. Aquí hay para una transformación intercultural e
interreligiosa del quehacer teológico en el contexto del diálogo de las
culturas y de las religiones, en especial por parte cristiana, una fuerte
barrera cuya superación requiere sin duda un largo proceso de aprendizaje
y una ardua tarea de deconstrucción de la monoculturalidad de la razón
teológica que subyace a la dogmática de la fe cristiana.
Pasando ahora a un plano más concreto o personal apuntamos una
cuarta dificultad que viene de nuestros propios hábitos de estudio y de
enseñanza; es decir, de las costumbres que hemos adquirido por la
formación recibida y que sostienen la teología que practicamos. Hablando
en otros términos, podríamos decir que se trata de la dificultad que viene
de la rutina y de la inercia que genera en nosotros la teología en la que
estamos instalados.8
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Una transformación intercultural e interreligiosa del quehacer
teológico tiene que contar por tanto también con la resistencia de los hábitos
heredados de los teólogos y las teólogas. Pues la interculturalidad y la
interreligiosidad exigen “éxodo” y no sede; son reclamo de abandono de
las instalaciones construidas, por muy cómodas que resulten.
Por último una quinta dificultad que está unida a la anterior.
Forma parte de la normalidad teológica dominante comprender
muchas veces las diferencias culturales y religiosas, por no decir también
confesionales, en sentido contradictorio. Y esto es un obstáculo fuerte en el
camino de la transformación intercultural e interreligiosa de toda teología
en el contexto actual del pluralismo porque el diálogo de las culturas y las
religiones requiere precisamente un nuevo trato con eso que llamamos
“contradicciones”.
Dicho muy brevemente, ese nuevo trato significa, primero,
historificar las “contradicciones” para conocer su génesis y ver cómo y
porqué se han cristalizado como tales, esto es, como barreas que nos
separan; y, segundo, redimensionarlas desde el diálogo a la luz de un
horizonte mayor en el que a lo mejor se revelan simplemente como el
“contra” que da el relieve a la “dicción” del otro.
Para terminar: una sugerencia
En el camino hacia una resignificación intercultural e interreligiosa
del quehacer teológico hoy en América Latina no se puede olvidar, sobre
todo cuando ponemos como marco de esa resignificación el contexto del
diálogo de las culturas, que se trata de contribuir a que América Latina
asuma en teología las consecuencias que se desprenden de dicho diálogo.
O sea que se trata de ayudar a que el diálogo de América Latina con su
diversidad se cumpla también en el ámbito teológico, y ello con todas sus
consecuencias.
En este sentido la transformación intercultural e interreligiosa del
quehacer teológico en este continente tiene que preocuparse por ampliar
cada vez más sus espacios discursivos de manera que sean ámbitos abiertos
a la resonancia de todos los sonidos teológicos que producen las culturas
de América Latina.
Notas
1
Doutor em Filosofia pelas Universidades de Aachen e de Salamanca. Professor de Filosofia
na Universidade de Bremen (Alemanha). Diretor do Departamento para América Latina
do Instituto de Missiologia em Aachen (Alemanha). Coordenador do Programa de Diálogo
Filosófico Norte-Sul e dos Congressos Internacionais de Filosofia Intercultural. E-mail:
[email protected]
2
Ver sobre estos trabajos pioneros, entre otros, de Jaques Dupuis, Hacia una teología cristiana
del pluralismo religioso, Santander 2000. John Hick y Paul F. Knitter, The Myth of Christian
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Uniqueness. Toward a Pluralistic Theology of Religions, Maryknoll 1987; Paul F. Knitter, No
Other Name? A Critical Survey of Christian Attitudes Toward the World Religions, Maryknoll
1985; Raimon Panikkar, El silencio de Dios, Madrid 1970; íd., El Cristo desconocido del Hinduismo,
Madrid 1970; íd., The Interreligious Dialogue, New York 1978; Aloysius Pieris, Fire and Water:
Basic Issuses in Asian Buddism and Christianity, Maryknoll 1996; y Paul Tillich, El futuro de las
religiones, Buenos Aires 1976.
3
Sobre el significado que damos al término “asentarse” en el sentido de “sentar”, tener
“sede” y también “cátedra” ver las consideraciones que hemos presentado en nuestro
trabajo “Filosofía e interculturalidad: una relación necesaria para pensar nuestro tiempo”
que recogemos en nuestro libro: La interculturalidad a prueba, Aachen 2007.
4
Para un análisis filosófico de las condiciones y exigencias del pluralismo hoy así como
para la consideración de la bibliografía actual sobre este tema ver Hans Jörg Sandkühler,
“Pluralismus”, en íd. (ed.), Enzyklopädie Philosophie, tomo 2, Hamburg 1999, pp. 1256-1265.
5
Para el desarrollo de la teología indígena ver por ejemplo las actas de los encuentros
celebrados hasta ahora: CENAMI/Abya Yala (eds.), Primer encuentro-taller latinoamericano,
México/Quito (2ª edición 1992); íd. (eds.), Teología India. Segundo encuentro-taller
latinoamericano, Quito 1994; Ramiro Argandoña, et al. (eds.), Teología india. Sabiduría india,
fuente de esperanza. Tercer Encuentro-Taller Latinoamericano, 2 tomos, Cusco 1998; AAVV., En
busca de la tierra sin mal. Mitos de origen y sueños de futuro de los pueblos indios. Memoria del IV
Encuentro – Taller Latinoamericano de Teología India, Quito 2004.
6
Sobre esta cuestión es provechoso consultar las actas del congreso internacional „Teología
y Misión. A los 40 años de Ad Gentes” organizado por la Escuela de Teología de la
Universidad Intercontinental en México del 18 al 22 de abril de 2005. Estas actas se recogen
los números monográficos 25 y 26 (2005) de la revista Voces.
7
Ver sobre este punto mi estudio “De la inculturación a la interculturalidad” (y la bibliografía
citada en el mismo) que recogemos en nuestro libro : Interculturalidad y religión, Quito 2007.
8
Como puede ser de interés consultar para la consideración de este aspecto lo que hemos
escrito sobre esto refiriéndonos a la filosofía, nos permitimos remitir a nuestros estudios:
“Rumbos actuales de la filosofía. O de la necesidad de reorientar la filosofía” y “¿Qué hacer
con la enseñanza de la filosofía? O de la necesidad de reaprender a enseñar la filosofía”,
recogidos en nuestro libro: Filosofar para nuestro tiempo en clave intercultural, Aachen 2004,
pp. 27-44 y 45-57 respectivamente.
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4
IDENTIDADE CULTURAL E DESENVOLVIMENTO
Antônio Sidekum1
Alguns Tópicos sobre a Definição de Cultura
Ao tratarmos da natureza humana, encontramos, já na sua origem,
um dado fenomenológico constitutivo. O homem se encontra desprovido
para, naturalmente, poder sobreviver. Ele necessita aprender elementos
para que tenha condições de sobreviver. A aprendizagem da cultura é
possível por ser ele dotado de razão e de espírito. Assim, a natureza é
espiritualizada e interpretada, a natureza do mundo é simbolizada pelo
homem. Insere-se no conceito de cultura a concepção de um humanismo
universal.
O ser humano adota comportamentos diversos diante de uma
mesma situação, pois o comportamento humano é aprendido e transmitido
socialmente. Essa aprendizagem tem um caráter essencialmente inédito,
dentro da natureza dos comportamentos, por ser social. O homem não
vive predeterminado pelo instinto, o qual dotou, de maneira completa, a
vida dos animais irracionais. O ser humano vem ao mundo despreparado
para sobreviver; ele precisa aprender a viver. Com aprendizagem social,
ele supera as situações que lhe são adversas para a sobrevivência plena.
Aprendendo a viver, pode, também, aprender a viver melhor.
Denominamos cultura todo o ato de aprender a viver e o processo
de humanizar-se. Cultura passa a ser o processo de humanização. Assim,
podemos definir a cultura como o modo de viver do ser humano. Pela
cultura o homem supera o que lhe é dado pela natureza. Portanto, a cultura
é todo o processo com o qual ele se transforma: a sociedade e o mundo
material. O ser humano é compreendido como um ser em relação com o
mundo, com o outro e com Deus. Mas o mundo não é para o homem
apenas um dado vital, elemento imprescindível para a sua vida; é um
mundo interpretado. A relação do homem com o mundo é uma relação
simbólica, o mundo adquire um sentido por ser interpretado e
transformado.
Com isso, pode-se afirmar que a natureza se revela plenamente no
ser humano através da força do espírito humano. O homem, no entanto,
não se acomoda simplesmente ao meio natural, assim como acontece com
os animais, mas é portador de uma capacidade que está fora do seu corpo.
A capacidade para interpretar, para imaginar um modo de ser diferente
do mundo natural tenta dar-lhe formas diferentes de crescer
historicamente. O ser humano está ciente das limitações físicas diante da
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natureza. Essa consciência de suas limitações físicas lhe possibilita criar
ferramentas. Por meio dos elementos culturais e materiais, ele adapta o
mundo a uma existência mais plena e lhe confere sentido. Pela cultura o
homem assume conscientemente o mundo; a matéria do mundo é elevada
a novas possibilidades. Essas possibilidades são históricas, são criadas pela
tomada de consciência histórica das necessidades a serem satisfeitas em
todas as suas exigências.
A cultura tem um lastro social que é criado pela aprendizagem e
pela transmissão dos conhecimentos adquiridos. No entanto, podemos
observar e compreender um processo que se constituiu ao longo da história,
definindo o modus operandi e a forma como muitos elementos constitutivos
da cultura se criaram e foram inseridos nas tradições, construindo a
identidade cultural. Esses elementos constitutivos da cultura são os diversos
modos de pensar, a interpretação do mundo, a ideologia, a convicção
política-ideológica, o processo tecnológico e econômico e a experiência
religiosa.
Essa confluência dos inúmeros elementos na história nem sempre
foi harmoniosa ou pacífica. Muitas vezes, eram encontros perpassados
pela violência e não permitindo um desenvolvimento naturalmente
adequado. Há de se observar a existência de um processo conflitivo nas
diversas etapas do desenvolvimento cultural ou nas constantes situações
de contradição dialética que os variados processos de confluência cultural
provocaram, tais como os grandes movimentos dos povos que migraram,
saindo da suas terras, impulsionados pela pobreza e miséria material, em
busca de uma terra feliz, com riquezas, causando prejuízo aos outros povos
por onde passavam. Convém acrescentar aqui as conquistas operadas pelos
impérios da Europa, causando destruições e mortes.
A cultura compreende-se a partir da criatividade humana. Essa
criatividade é sua característica fundamental. O caráter antropológico é a
divisa que se estabelece com um mundo dado, que é contemplado pela
admiração em virtude do espetáculo estupefaciente que ele provoca no ser
racional. Além de contemplá-lo, o ser humano idealiza-o numa perfeição
maior para o seu bem material e espiritual. O ser humano, face à
consciência de seus limites físicos, da consciência do poder do espírito
criativo e da necessidade que sente, precisa transformar o mundo em
pressuposto radical para a sua sobrevivência. Em virtude de seus dons
naturais, da fantasia, da imaginação e do uso de sua racionalidade como
razão instrumental, é impulsionado a imaginar a natureza na possibilidade
de ser transformada. Esse processo de idealizar uma transformação do
mundo natural pode ser considerado, antropologicamente, uma segunda
natureza, uma realidade como consequência da ideação.
Com isso, quer-se dizer que a ideação é o poder que o ser humano
cria a partir da imaginação, respondendo às necessidades físicas e sociais.
Criando a partir da imaginação e das necessidades naturais, configura-se
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o arquétipo do humano e de seu ethos cultural. A ideação já era um tema
dos filósofos pré-socráticos, de Platão e Aristóteles, que lançaram as
primeiras concepções de cultura, ou seja, a cosmovisão e a primeira
experiência religiosa e teológica.
Para efetivar-se aquilo que é concebido no mundo da ideação, em
práxis, a manipulação da natureza, requer-se um novo processo de
possibilidades: a técnica. A técnica implica o como do criar e do fazer uso
de equipamentos e desenvolver as habilidades, o conhecimento para
manuseá-los. O ser humano nasce com poucas habilidades e capacidades
para criar seu mundo e transformar a natureza. Ele precisa aprender a
técnica, precisa adquirir conhecimentos, aprender a pensar e a criar. É
uma Paideia. Aprender e desenvolver pela educação suas habilidades
técnicas e despertar para a tomada da consciência histórica. Mas a técnica
recebe um ordenamento de poder, uma racionalidade concebida, um logos
que, no sentido grego, é poder e uma forma de dominação que será
concebia e utilizada na Modernidade.
A tecnologia é concebida por muitos antropólogos como o fator
constitutivo da civilização. A cultura expressa o desenvolvimento das
habilidades cognitivas e espirituais do ser humano. Além da ideação do
mundo, o ser humano é impulsionado para a transformação do mundo.
Esse processo de transformação chama-se manipulação: atuar com as mãos,
com instrumentos sobre o mundo para torná-lo mais adaptável, de modo
a servir como um bem para a vida do ser humano. A tecnologia, para
alguns antropólogos, é o grande fator que preenche o hiato entre a ideação
e a manipulação. A tecnologia é também usada como fator indicativo de
desenvolvimento. Ela sempre marcou um desenvolvimento cada vez mais
inovador e revolucionário na história dos povos. Na atualidade, no entanto,
caracteriza-se de maneira peculiar como fenômeno de libertação e também
de dominação. É um fenômeno paradoxal do ser humano, pois, o conceito
de desenvolvimento, tão proclamado por tantas autoridades mundiais,
na década de sessenta do século passado, logo se apresentou como uma
falácia que foi denunciada pela Teoria da Dependência.
Assim, compreende-se o tema da cultura e desenvolvimento. A
tecnologia no mundo da globalização da economia se caracteriza pela sua
dependência ao poder econômico. O poder econômico possibilita uma
inovação tecnológica sem precedentes. Houve uma mundialização do
poder econômico. Ele é agora transnacional; é ele quem dita suas normas
para que venham em defesa dos interesses políticos e, por sua vez, possibilite
inovações tecnológicas sem concorrências. A tecnologia, o saber como fazer,
é desenvolvida nas grandes empresas transnacionais, que em nada querem
ficar devendo à ordem política de uma nação. Um forte poder econômico
poderá destinar um alto valor em capital para a tecnologia de ponta, e,
com isso, liderar econômica e politicamente o domínio atual.
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No entanto, mesmo que a tecnologia venha, a cada instante, facilitar
o bem-estar das pessoas, vem também ampliar o processo de comunicação
em nossas comunidades, ou na chamada aldeia global. Através dessa
perspectiva da tecnologia, veremos, por um lado, o benefício para que
tenhamos mais tempo a contemplar, apreciar a arte e trabalhar menos,
mas, por outro lado, pela nova situação da globalização do mercado,
seremos submetidos a uma unidirecionalidade e a uma
unidimensionalidade no modo de pensar e de ser social. Essa categoria da
mundialização da economia modifica completamente os parâmetros da
sociedade. Com isso, sofremos violentas modificações em todos os aspectos
da sociedade contemporânea.
A Crise da Identidade Cultural e Desenvolvimento
A crise da identidade ocupou, muitas vezes, o centro dos grandes
debates filosóficos, educacionais e psicológicos durante a segunda metade
do século XX. Essa crise também teve sua repercussão na religião. A
pergunta quem sou?, que é tão antiga quanto a tomada da consciência
histórica pelo ser humano, é renovada, a cada período da humanidade,
com novos desafios e confrontos em relação à identidade de cada pessoa.
O tema da cultura não se restringe ao âmbito da identidade pessoal e
interpessoal, mas chega a atingir a dominação política da cultura
imperialista de uma cultura hegemônica sobre os grupos humanos. Isso
por motivos políticos e financeiros, elevando-se a reais conflitos de
civilização. Tais conflitos foram descritos como os choques das civilizações.
Um fator saliente de nossa experiência atual de “identidade
cultural”, pluralismo e globalização está na tensão que existe, por um lado,
entre muitos líderes políticos e econômicos nos países do Atlântico Norte,
e por outro, de muitos dos líderes e povos das mais tradicionais sociedades
políticas e religiosas. A paz e o desenvolvimento humano do nosso mundo
cultural, durante os últimos vinte séculos, dependeram largamente da
capacidade e da boa vontade política dos líderes (políticos e religiosos)
para encontrar bases que servissem de consenso à sua realização como tal
e que, atualmente, são endereçados em nível mundial.
Como primeiro passo para encontrar alguns exemplos do conflito
entre essas diversas perspectivas, de emergência de significativo grau de
consenso e concepção de desenvolvimento cultural equivocado, dirigimonos à Conferência Mundial de População e Desenvolvimento, realizada
na cidade do Cairo, em 1994, e seguimos para Beijing, onde, em 1995,
realizou-se a IV Conferência Mundial das Mulheres. Os documentos de
trabalho e de propostas para conclusões finais para ambas as conferências
foram amplamente defendidos por líderes políticos do Hemisfério Norte,
sendo marcados excessivamente por interpretações individualistas dos
Direitos Humanos. Por exemplo, a aceitação do aborto como método de
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planejamento familiar; os direitos dos teenagers de autoexpressão sexual,
independente da anuência da responsabilidade familiar em seu
desenvolvimento pessoal. No Cairo, as piores propostas iniciais foram
derrotadas por uma coalizão entre nações do Hemisfério Sul, pelos países
islâmicos e o Vaticano.
Em Beijing, as piores propostas foram derrotadas por parte dessa
coalizão e pelo apelo de agências governamentais e não-governamentais,
representadas naquele Congresso Mundial. Também, em Beijing, os povos
dos países europeus não sabiam o que seus governos estavam propondo
no Congresso, nos diversos comitês em que eram apresentados projetos
para o debate e aprovação, completamente opostos às constituições políticas
de seus países no que diz respeito à família, por exemplo.
A crise de identidade cultural toma, na atualidade, dimensões
internacionais, assim como podemos observar nos dois Congressos
Mundiais acima citados. Pois, nessas duas conferências, encontramos a
afluência de representantes políticos de diversas nações e a presença de
uma diversidade cultural com diferentes níveis de desenvolvimento
econômico, tecnológico e social. No centro das inúmeras conferências que
se realizam na atualidade estão as questões essenciais dos Direitos Humanos
até a concepção do meio ambiente e diversidade biológica. É onde se
desenrola o debate sobre a diversidade dos direitos morais e diferenças
nas concepções morais que estão por trás da lei civil ou das tradições dos
países. Esse consenso tem sido chamado, na sociedade ocidental, de “lei
natural”.
O impacto moral das propostas debatidas nas importantes
conferências desde o século XX, como a criação da ONU, da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, entre outras, serve para tratar da
perspectiva da identidade cultural e de seu desenvolvimento, sem, no
entanto, excluir algumas dificuldades metalinguísticas e de falácias.
Algumas hipóteses e aproximações são utilizadas aqui para o tema da
identidade cultural e para, assim, delinear melhor as inquietações que
surgem na prática. Essas inquietações são de ordem jurídica para muitos
povos que se manifestam pela perda do direito a uma pátria, pelos
“indocumentados”, pelas novas formas de escravidão etc.
Alejandro Serrano Caldera (1998, p. 15) aponta para as seguintes
hipóteses e aproximações:
Toda cultura é síntese. Nossa cultura é uma contradição sem síntese;
uma continuidade de rupturas sem restauração, uma estrutura de
superposições. Existe um processo de identidade em marcha que se
manifesta na arte, na simbologia, no imaginário religioso e na literatura.
Este processo de identidade não acontece no âmbito jurídico e políticosocial, onde melhor se apresenta a contradição entre o mundo real e o
mundo institucional.
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Pelo estudo da antropologia cultural, aprendemos que a cultura
como síntese se produz quando existe grande afluência de povos na história
da civilização. Lembramos os clássicos textos de Norbert Elias (1976) e de
Darcy Ribeiro (1979) que se têm ocupado do processo da civilização. O
processo civilizatório aconteceu pela convergência de povos diferentes,
mesclando suas diferentes linguagens, concepção religiosa, artística e
tecnologias. Dessa convergência sempre resultará uma novidade cultural,
que, muitas vezes, é uma expressão qualitativamente nova. Assim, podemos
falar de uma situação concreta de nossa história cultural, desenvolvida
num processo do contexto universal e particular, levando-se em
consideração a experiência de identidade e da autenticidade.
O humanismo, que está implicado na concepção da autenticidade
e da identidade cultural, está também inserido na derivação de um projeto
cultural que tem a educação como implícita, pois a cultura trata dos seres
humanos concretos, de carne e osso, de uma humanidade de milhões e
milhões de rostos diferentes uns dos outros, mas precisamente sempre
iguais, no que tange ao seu comum direito para ostentar as próprias
peculiaridades, iguais em seu comum direito de ser diferente. Por um lado,
proclamamos o direito à diversidade cultural e ao desenvolvimento das
potencialidades humanas para a plenitude da felicidade. Por outro, para
o conceito de cultura trata-se de uma humanidade em plural, que existe
somente no plural, e de um humanismo que reside basicamente no
reconhecimento e no respeito ao pluralismo das manifestações humanas.
O ser humano como valor universal, que se manifesta na linguagem,
política, economia e religião.
Notas
1
Doutor em Filosofia pela Universitat Bremen. Professor titular da Universidad
Centroamericana José Simeón Cañas. Diretor da Editora Nova Harmonia. E-mail:
[email protected]
REFERÊNCIAS
CASSIRER, Ernst. Antropologia filosófica. São Paulo: Mestre JOU, 1977.
ELIAS, Norbert. Über den prozess der zivilization. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1976.
RIBEIRO, Darcy. O processo civilizatório. Petrópolis: Vozes, 1979.
SERRANO CALDERA, Alejandro. La unidad en la diversidad. Manágua: Ediciones Progreso,
1998.
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5
DA RELIGIOSIDADE DE
LIBERTAÇÃO AO TEXTO E À OPRESSÃO
Luiz José Dietrich1
Celso Kraemer2
Introdução
O presente texto parte de um dado histórico que parece perfazer
um ciclo comum às três grandes religiões, a de Moisés (Hebraica), a de
Jesus (Cristã) e a de Maomé (Islã). Tal ciclo se configura por uma espécie
de tríade. Segundo o que foi levantado na primeira parte do trabalho, o
início de uma religião está relacionado a práticas comunitárias, no meio
popular, muitas vezes por circunstâncias de sofrimento, de exploração ou
de opressão. Com o desenvolvimento das comunidades ocorreu uma
estratificação da sociedade em distintas classes sociais. Com isso a
religiosidade de resistência e de libertação da comunidade é absorvida por
grupos sociais dominantes, que a integram a seu projeto de poder,
tornando-a a sua religião oficial, passando, então, a ser obrigatória à
comunidade. É nesse momento que se constitui o texto escrito e os preceitos
doutrinários que, obviamente, recolhem e conservam os discursos e práticas
de libertação tanto quanto os discursos e práticas de dominação.
Com breve retomada histórica do percurso da religião dos hebreus
e dos cristãos - localizando os momentos em que ela apresentou-se como
religião de libertação -, da religião integrada a grupos de poder, do
aparecimento do texto escrito e da doutrina da obrigação, pretende-se
indicar a modalidade de religião que acompanhou a ocupação da América
Latina, muito mais religião e Deus da dominação do que de libertação.
Salienta-se, entretanto, que, na América Latina, a partir da segunda metade
do século XX, reaparecem diversas manifestações, no meio popular, da
religião de libertação. Quais os fatores sociopolítico, econômico e
antropológico a propiciar esse acontecimento, após quase 500 anos de
ocupação, expropriação, dominação e opressão? Que lições, em termos
históricos e de perspectivas futuras, esse acontecimento nos mostra? Quais
os significados desse acontecimento para novos modos de ser e de fazer
religião na América Latina? Indicaria ele uma abertura para um diálogo
entre diferentes igrejas? Mais profundamente ainda, poder-se-ia apostar
em um novo modo de se compreender, em sentido conceitual e
antropológico, as diferentes manifestações religiosas entre os povos
submetidos à religião dos conquistadores? Qual a importância de uma
compreensão crítica da ambiguidade entre a prática religiosa aliada ao
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poder ou à resistência para a modalidade de ensino religioso escolar? Em
que medida o diálogo entre igrejas e entre religiões fortalece a dominação
ou favorece a resistência e a libertação? Até que ponto o aparecimento da
Ciência da Religião denota um momento histórico em que se produz um
novo texto, de intelectuais e acadêmicos, na lógica de religião a serviço de
grupos de poder que querem legitimar-se, disseminando um discurso
apaziguador e unificador, minimizando o vigor de resistência e de libertação
que se fomenta na religião viva, praticada pelas comunidades? Até que
ponto o Esclarecimento é, por si mesmo, uma forma de colonialismo e
dominação?
1 A Religião e sua Consciência Crítica
As culturas produziram as religiões. Estas respondem a
necessidades fundamentais da humanidade. Elaboraram maneiras de
enfrentar as questões existenciais da humanidade: de onde viemos? Porque
vivemos? O que acontece conosco ou para onde iremos após a morte?
Existe algo que interfere em nossas vidas pessoais e coletivas? As religiões
ajudam as culturas a elaborarem sentidos para sua existência, de forma a
permitir a convivência social, a fornecer identidade e dignidade para os
indivíduos e os grupos humanos, em sua vida cercada de incertezas e
mistérios.
As religiões nascem e se desenvolvem a partir de práticas e propostas
significativas para um determinado grupo de pessoas. Aparecem como
uma coisa boa. Nascem de uma experiência de vida, de promoção da vida,
de resgate da dignidade, de libertação ou de paz e salvação. Surgem
possibilitando uma elevação do patamar da qualidade de vida.
Mas, se é assim, por que a história nos relata tantas violências,
massacres e tantas guerras promovidas em nome de religiões? Aqui, não
estamos pensando nem abordaremos todas as religiões de modo genérico.
Trataremos, principalmente, de duas, das três principais religiões de matriz
semita e que estão próximas de nós: Judaísmo e Cristianismo. Por dois
fatores não contemplamos o Islamismo, mesmo admitindo sua vital
importância na nova ordem geopolítica da atualidade: ele não teve papel
determinante na ocupação da América Latina, enquanto religião a serviço
da dominação; a necessária economia do texto, para não se tornar inviável
ou demasiadamente superficial naquilo que o presente trabalho se propõe.
Segundo esses mesmos critérios, igualmente não serão diretamente
abordadas as religiões dos povos nativos do Brasil e do continente
americano, nem as religiões africanas e afro-brasileiras. Mas podem ser
consideradas indiretamente, já que, muitas vezes na história, foram
atacadas e suas culturas e seus povos foram destruídos por representantes,
principalmente, do Cristianismo.
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Se as religiões nascem como coisas boas para o povo, como “boas
notícias”, o que acontece no desenvolvimento e na compreensão das
religiões para que elas passem a legitimar ataques, violências, guerra,
destruição e até extermínio de outros povos? Geralmente nos referimos às
manifestações mais radicais, como “fundamentalismos”. Importante termos
em mente que nem todo fundamentalismo se expressa de formas
truculentas e agressivas. Ao falar de fundamentalismo, devemos utilizar o
conceito no plural, uma vez que “existem diferentes fundamentalismos
conforme os diferentes contextos culturais e religiosos em que nasceram e
actuam os movimentos, grupos e organizações extremistas” (PACE e
STEFANI, 2002, p. 15).3
Deve-se alertar ainda para um possível equívoco epistemológico.
Em primeiro lugar, é necessária uma tomada de posição no sentido
epistemológico. As religiões precisam ser compreendidas, também pelos
seus próprios membros, de forma crítica, assumindo,
conscientemente a evidência de que o ser humano em nenhum nível, tampouco
em nível de conhecimento pode pretender ser o sujeito possuidor de um
ponto de vista absoluto. Essa pretensão é absurda e contraditória. A condição
insuperável da finitude faz dela uma ilusão impossível. [...] Na religião, como
em qualquer outra área da experiência do conhecimento do ser humano, a
finitude humana significa um “estar” obrigado ao exercício ou para a práxis
da tolerância, que é também um exercício da escuta e da tolerância do outro.
(FORNET-BETANCOURT, 2007, p. 12).
Fornet-Betancourt, na mesma linha, argumenta ser um dado
histórico inequívoco o fato de
que toda a cultura desenvolva sistemas referenciais próprios que se condensam
em tradições que, por sua vez, sirvam como fronteiras para tudo o que resulta
familiar e compreensível no interior dessa cultura. Não obstante esse fato de
que uma cultura possa prover o ser humano que nela nasce de um horizonte
com sentido, não suprime a condição de finitude. Esse horizonte é o horizonte
de um ‘umbral’ cultural, quer dizer, da ‘fronteira’ traçada pelas experiências
de um grupo humano. Por isso, nenhuma cultura pode pretender ignorar
essa condição da finitude, e elevar sua tradição, seus sistemas de referências
etc. à categoria da tradição humana sem mais. Nenhuma tradição humana pode
dizer de si mesma que é a tradição humana. (FORNET-BETANCOURT, 2007, p. 12).
Uma das causas da intolerância e da violência legitimadas com
leituras para a guerra de seus referenciais religiosos é, sem dúvida, o
esquecimento desta condição, principalmente no discurso que impera em
largos setores das três grandes religiões acima mencionadas. No caso do
Cristianismo, isso acontece também porque “o Ocidente, a partir de sua
expansão sistemática desde 1492, não se entende como uma região, mas
como eixo da história universal, e confunde, desde então, o universal com
sua própria tradição” (FORNET-BETANCOURT, 2007, p. 13). Mas outra
causa está relacionada com a posse de um livro sagrado, considerado “a
Palavra de Deus”, e ao qual se faz constante referência.
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2 Livro Sagrado: Livro que Salva, Livro que Mata
O que se verifica nas três religiões é que elas possuem um livro
sagrado, uma Palavra de Deus. Por isso, são também conhecidas como
“religiões do livro”. Ao longo de suas histórias, Judaísmo, Cristianismo e
Islamismo elaboraram livros. Em determinado momento, esses foram
ungidos com caráter de santidade e foram instituídos como livros sagrados.
Este é um aspecto importante: livros, mesmo que escritos por uma única
pessoa, são obras polissêmicas, abertas a várias possíveis linhas
interpretativas. Quanto mais o serão a Bíblia Hebraica, a Bíblia Cristã e o
Alcorão um trabalho redacional dividido entre incontáveis autores,
redigidos em períodos que variam entre meia centena de anos (Alcorão),
mais ou menos três séculos (Bíblia Cristã) e quase um milênio (Bíblia
Hebraica). Além disso, no círculo hermenêutico, devem ser consideradas
também todas as possíveis contextualizações a partir das quais esses textos
são lidos. Assim, um livro como o Alcorão, por exemplo, pode ser lido
como um texto que fala de Deus e das coisas que um ser humano tem que
fazer para estar em harmonia com Sua vontade; como um código normativo
válido para as organizações sociais; como um texto de Antropologia e de
Cosmologia; como um tratado de Filosofia da história; e, por fim, como o
código lingüístico fundamental da nova língua, o árabe (ARKOUN apud PACE,
2005, p. 84-85).
Mas a existência de um livro sagrado e a relação muito específica
que se estabelece entre o crente e o livro é um aspecto decisivo. Pois,
a existência de um livro sagrado e a relação particularíssima que vem a se
criar entre o crente e o livro são aspectos que contribuem decididamente para
uma definição mais precisa do perfil desse movimento religioso. De fato, só
podemos falar de fundamentalismo quando estão presentes os seguintes
elementos:
a) crença no princípio da inerrância do conteúdo do livro sagrado, sendo este
último assumido no seu todo como uma totalidade de sentido e de significados
que não podem ser seleccionados (eliminando, por exemplo, as partes
mitológicas e aceitando as que apresentam, simultaneamente, uma validade
histórica e universal) e interpretados livremente pela razão humana sob pena
de uma deturpação da verdade que o livro sagrado contém;
b) assunção do princípio da astoricidade da verdade e do livro que a conserva;
astoricidade significa que a razão não tem poderes para perspectivar
historicamente a mensagem religiosa nem deve ousar adaptá-la às novas
condições que se vão produzindo no decurso dos tem-pos;
c) baseado nos dois anteriores princípios, a crença de que é possível deduzir
do livro sagrado um modelo integral de sociedade perfeita — superior a
qualquer forma de sociedade humana existente, conforme o princípio da
superioridade da lei divina sobre a lei terrena, pois a soberania política é
legitimada somente pela soberania divina;
d) por fim, a referência a um princípio absoluto estimula a imaginar a
possibilidade de decalcar a «cidade terre-na» sobre o modelo ideal de
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sociedade apresentado no livro sagrado, numa tensão entre o presente e o
passado que atribui ao primado do mito da fundação da identidade de um grupo,
ou de um povo inteiro, a função simul-tânea de assinalar o caráter absoluto
do sistema de crenças a que cada crente deve aderir e o sentido pro-fundo de
coesão que une todos aqueles que a ela per-tencem (a ética da fraternidade)
(PACE; STEFANI, 2002, p. 20-21).
Essa longa citação se impôs, porque, segundo Pace e Stefani, “estes
quatro elementos constituem as características distintivas do
fundamentalismo e, por isso, podemos assu-mi-los como quadro que permite
uma definição suficien-temente ampla, capaz de abarcar as várias formas
do fenô-meno em questão.” (PACE e STEFANI, 2002, p. 21).
3 Livro Sagrado: Antes de Tudo, Fruto da História Humana
Acontece que esses livros permitem leituras para a paz e leituras
para a guerra, pois são fruto da história humana e são, por isso, marcados
pelas virtudes e pelas sombras, pelas aquisições e pelas destruições da
humanidade.
Assim, leituras para a guerra são também possíveis, porque, já no
próprio processo de constituição, tanto das religiões como de seus livros,
em certos estágios sofrem forte influência de determinados grupos sociais
que as integram em um projeto de poder. Num primeiro momento, as
religiões existem no meio do povo, como tradição oral, viva na memória,
nas histórias, nas práticas e nas instituições de suas sociedades. Nesse
momento ainda não estão ligadas a estruturas estatais, monárquicas e/ou
imperiais; organizações populares ainda as controlam. Só depois são
integradas à organização sociopolítica de um estado e/ou império que, às
vezes, inclusive se constitui no principal sujeito controlador da religião.
Somente nesse estágio começam a ser codificadas em textos escritos. A
religião que circulava entre o povo nas tradições orais torna-se livro. Nessa
forma, torna-se lei do rei, do estado, do imperador e desempenhará outros
papéis. Será orientada por uma hermenêutica do poder e para o poder.
É claro que a codificação escrita não faz desaparecer a religião viva
nas histórias orais e na memória do povo que a instituiu antes da escrita.
Essas duas formas da mesma religião coexistem, não só no meio do povo,
mas também no corpo dos escritos. Coexistem nos textos, ora colidindo,
ora competindo, ora excluindo uma à outra. Coexistem, porque o livro,
para ser sagrado, precisa nutrir-se do sagrado instituído antes pelo povo,
precisa permitir que o povo se reconheça e se identifique com a palavra
escrita. Do contrário, não terá a força almejada. Assim, os textos sagrados
e a história das grandes religiões são como que atravessados por dois riachos
de águas abundantes. De um deles se tiram águas para a guerra, do outro,
porém, tiram-se águas para a paz e para a vida.
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4 Uma Nova Experiência de Deus
No caso da religião de Israel, embora seu livro sagrado inicie com a
narrativa da criação do mundo, do surgimento do povo e da fé de Israel,
está ligado com o que ficou conhecido como o Êxodo: a libertação dos
escravos da opressão do faraó do Egito. Hoje se sabe que o grupo dos
escravos que se libertaram da opressão egípcia não foi tão grande como se
pode inferir de uma leitura mais apressada e superficial dos textos bíblicos
– que fala em 600.000 homens, sem contar as mulheres e crianças, além de
uma mistura de gente (Ex 12, 37-38) – e que essa história apresenta-se
engrandecida, inchada por conter, nas linhas e entrelinhas, muitas outras
histórias de opressão e libertação. A história dos escravos tornou-se o
paradigma preferido para denunciar processos de opressão e para contar
experiências de libertação. Assim, no que hoje conhecemos como o
“Êxodo”, temos, por exemplo, também a experiência dos milhares de
camponeses cananeus, e de muitos clãs de pastores seminômades que se
libertaram da exploração a que duplamente estavam submetidos nas mãos
dos reis cananeus, sob o poder do império egípcio. Estes, sem nunca terem
pisado no Egito, também foram libertados da opressão egípcia, pois a terra
de Canaã estava submetida ao império dos faraós.
Diversos grupos que viveram essa experiência de resistência e
libertação, não sendo ainda monoteístas, interpretaram-na como fruto da
intervenção de um de seus muitos Deuses e Deusas. Descobriram, na
experiência de libertação, um rosto de Deus completamente diferente dos
outros rostos conhecidos. O rosto de um Deus dos oprimidos, que vê a
miséria, ouve o clamor, conhece o sofrimento e desce para os libertar (Ex
3,7-8). Para uns esse Deus foi Elohim (Ex 3,6; cf. Gn 31,53); para outros, foi
El Shadai, o Deus das Estepes ou o Deus das Montanhas (Ex 6,3 cf. Gn
17,1). Para os escravos do Egito, parece ter sido o Deus dos Hebreus, sendo
que aqui “hebreu” não tem ainda a conotação racial de “descendente de
Abraão”, que terá no pós-exílio, mas é a transliteração hebraica da palavra
Hapiru, que designa a condição social de gente marginalizada. E para
muitos dos camponeses cananeus, este deus foi El, o Deus supremo do
panteão cananeu (Nm 23,22; 24,8; cf. Gn 33,20; 35,7). Essas leituras
teológicas elaboradas por sujeitos de processos de resistência e de libertação
originam uma teologia radicalmente diferente das teologias conhecidas
na época. Predominavam as teologias oficiais dos reis cananeus, dos faraós
egípcios que mostravam as divindades hierarquizadas, com as grandes e
poderosas divindades sempre apoiando reis e faraós. Não se conhecia
nenhum Deus libertador nas teologias até então. Os escravos do Egito,
pastores seminômades e camponeses cananeus são os portadores dessa
revelação: Deus é contra a opressão e a exploração. Dentre a diversidade
de suas divindades, descobriram um rosto de Deus que milita para libertar
os oprimidos. A experiência e a integração desses vários grupos constituirão
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o primitivo Israel, que se consolidará num processo de, mais ou menos,
dois séculos, integrando e controlando as estruturas das cidades-estado
cananeias sob a hegemonia dos camponeses cananeus libertos,
estabelecendo uma sociedade tribal.
Nas tribos, a terra e o poder são partilhados, as relações são mediadas
por leis coerentes com a teologia dos rostos libertadores de Deus, leis que
impedem o acúmulo de terras e bens, impedem a opressão e a exploração,
promovendo a solidariedade.
5 A Monarquia Apropria-se do Deus dos Camponeses
Israel tribal existe, sem poder centralizado, do ano 1250 ao ano
1050 a.C. A partir de então, entre 1050 e 950 a.C., os processos de
acumulação de riquezas e poder militar rompem com a sociedade tribal,
fazendo surgir uma elite que institui a monarquia e consolida as relações
assimétricas. Pela longa duração desse processo, podemos ver que ele não
aconteceu sem resistência. A monarquia significa uma centralização de
poder, explorando o trabalho e a produção dos camponeses. Estes são
obrigados a entregar parte de sua produção agro-pastoril, bem como suas
filhas e filhos para trabalharem nas obras e guerras decididas pela corte (1
Sm 8,11-17). Tal modificação no espaço social exige uma legitimação. Esta
é projetada e executada no concurso de algumas técnicas próprias ao poder:
construção de suntuoso templo ao Deus libertador, na antiga cidade
cananeia de Jerusalém; codificação de uma teologia, de uma espiritualidade
e de uma liturgia oficial, constituídas a partir do culto mais importante
entre as tribos, o culto ao Deus YHWH. Após esse feito, Israel terá duas
principais vertentes teológicas: a vertente provinda da libertação e da
partilha da terra, viva na memória, nos diversos santuários e cultos tribais,
entre as organizações camponesas que, de tempos em tempos, é retomada
e reapresentada pelos profetas; outra, a vertente da teologia oficial da corte
e do templo de Jerusalém, dos sacerdotes, escribas e funcionários do rei.
Somente a partir da instalação da monarquia, principalmente com Davi e
Salomão, que a Bíblia começará a ser escrita. Essas duas teologias estão
entrelaçadas nos textos sagrados do Judaísmo.
6 O Texto Cristão
Algo semelhante sucede no movimento de Jesus. Jesus, como
reformador da fé de Israel, busca resgatar os princípios e as práticas que
deram origem ao povo de Israel. Inspira-se na vertente popular, do Deus
libertador do Êxodo, da partilha da terra e do poder experimentado no
tribalismo, presentes nas mais genuínas tradições de Israel. Aliado ao
discurso dos profetas de Israel, busca superar o legalismo, o ritualismo que
se haviam instalado em Israel. Resgata as práticas de solidariedade,
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acolhendo pessoas pobres, doentes que, por serem consideradas impuras,
eram excluídas do convívio social. Ataca as elites que se autolegitimavam
como justas, puras e cumpridoras da vontade de Deus. Anuncia o
julgamento de Deus para as elites e o Reino de Deus para os pobres. Seus
seguidores, organizados em pequenas comunidades domésticas, nas
periferias das grandes cidades do império romano, traduziram a proposta
de Jesus para seu próprio contexto, criando comunidades de partilha do
pão, resgatando a dignidade dos pobres, dos sem-terra, sem-lugar, semcidadania, sem-liberdade.
Comunidades se reuniam em torno de mesas onde se desfaziam
todas as hierarquizações e discriminações, tanto nas comunidades judaicas
mais tradicionais, como na sociedade greco-romana em geral. Ali, já “não
se distingue mais o judeu do grego, o homem da mulher, o senhor do
escravo” (Cf. Gl 3, 27 e 28). A mesa do pão partilhado, em nome do Pai e
do Filho, torna, a todos, irmãos no mesmo espírito do Deus libertador. A
partir dela, cresce uma ética que deve invadir todas as relações que perfazem
o cotidiano dos que seguem Jesus. Começam a viver concretamente, aqui e
agora, os sinais do que será o Reino de Deus. Assim, o Cristianismo cresce
e se espalha pelo império. Para reforçar e defender essa prática, surgem os
escritos que comporão o Novo Testamento.
Porém, no Cristianismo, emparedado pelas perseguições do império
romano, no final do primeiro e no segundo século, crescem algumas
correntes que acentuam o patriarcalismo, a hierarquização, o espiritualismo
e o ritualismo, onde a ética que o distinguia do império se desvanece. Tais
correntes, que já eram frequentadas por muitos poderosos, estão prontas
para aceitar o imperador em seu meio. Assim, certa linha do Cristianismo,
mais ou menos em torno do ano 400 d.C., torna-se a religião oficial do
império romano. A partir dessa aceitação, começamos a ter também duas
formas de ver o Cristianismo. Uma mais coerente com o caminho apontado
por Jesus e trilhado pelas primeiras comunidades; outra, organizada,
instituída e integrada a partir do projeto de poder do império romano.
Um pouco diferente do processo do Judaísmo é a questão dos escritos.
Os escritos do Novo Testamento, a essa altura, já estavam elaborados. Mas
a influência de Constantino se fará sentir na definição do Cânon cristão,
na ordem dos livros, principalmente na estruturação do poder e da
hierarquia dentro da igreja romana, bem como na elaboração da teologia
e da dogmática cristã e na codificação doutrinal que se fará nessa nova
perspectiva hermenêutica.
Essas duas vertentes perpassam o Texto e adentram na história
cristã. Numa alinham-se os profetas, Jesus e a fraternidade da mesa
partilhada na igreja primitiva; da outra provêm a exigência do sacrifício,
das oferendas e tributos, o legalismo e o ritualismo que excluem os pobres
e beneficiam e justificam as elites. Embora se refiram a um mesmo Deus,
os conflitos revelam que se trata de Deuses diferentes: o Deus do dever e da
submissão e o Deus da resistência e da libertação.
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7 A Ocupação da América e a Igreja
Sabe-se que a igreja aliada ao império romano acabou por se instalar
no próprio império, fazendo surgir o Sacro Império Romano. Foram mais
de mil anos de religião oficial, instalada no coração do poder político e
econômico, estendendo seu domínio por quase toda a Europa. Foi a fase
em que a Igreja (cristã) mais foi pecadora: assassinatos, execuções até
sumárias, domínio do campo científico, intelectual, moral, militar,
conquistando e dominando comunidades e povos através das mais
diversificadas estratégias. Remonta, inclusive, a essa época uma das
ferramentas mais usadas pelo capitalismo contemporâneo, a propaganda,
que significava propagar a mensagem de Deus, a libertação dos povos pela
Verdade. Obviamente que se tratava, na maioria dos casos, do Deus da
obrigação e da dominação, aliado aos mais íntimos desejos de poder e
domínio que se fomentaram ao longo do Sacro Império Romano. Nesse
longo período do Deus da dominação e da conquista na Europa, não deixou
de aparecer o Deus da resistência e da libertação em comunidades que se
formavam às sombras do Império. Seguindo sua estratégia geral, tais
comunidades foram declaradas heréticas e, sistematicamente, perseguidas
e aniquiladas, para que a Verdade (do poder) pudesse brilhar.
À época da ocupação e conquista da América, foi o modelo do Deus
da dominação que acompanhou o transplante da religião para as novas
terras. Foi a religião da dominação que fomentou as ações da Igreja sobre
os povos, conquistados e dominados com sua colaboração. Libertar os povos
conquistados de sua religiosidade pagã, primitiva e trazê-los para a
verdadeira religião. Os religiosos não só acompanhavam a conquista oficial
dos governos, mas eles, por conta própria, embrenhavam-se nas florestas,
contatando e conquistando novos grupos, constituindo comunidades que,
em certo sentido, eram de resistência à ocupação oficial, mas não deixando
de ser conquista e submissão à Igreja, através das técnicas de imposição
cultural e de conversão à Verdadeira religião. Esse processo de conquista e
extermínio do Outro se estendeu por quase 500 anos, em todo o território
da América. Em nome de quê? Em nome da Salvação, da Verdade e da
Liberdade que a religião da conquista e da dominação prometia. Houve, é
verdade, algumas vozes discordantes, mas estas somente fizeram eco nas
paredes e em alguns poucos corações sensíveis aos gritos dos povos
dominados.
É nesse contexto que, na segunda metade do século XX, ressurge o
outro Deus, o Deus da resistência e da libertação. Quais causas tornaram
esse acontecimento possível? É difícil, quando não impossível, determinálas todas, exaustivamente. Mas não se deve perder de vista o significado
desse acontecimento: ele modificou profunda e definitivamente a Verdade
do Poder.
Mesmo considerando-se as dificuldades em determinar as causas
exatas, arriscamo-nos a indicar alguns fatores relevantes, em diferentes
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frentes da atividade humana. Em princípio, a significativa produção
intelectual dos três mestres da suspeita que, no sentido dos fundamentos da
Verdade, promoveram uma abertura ao terreno maciço da verdade aliada
ao poder: Marx, Nietzsche e Freud. Suas investigações, movidas por novos
fundamentos do pensamento, mostraram que somos, essencialmente, seres
históricos, mergulhados no mundo, condição a partir da qual somos
obrigados, por nossa condição antropológica, a dar a nós mesmos nossa
própria verdade. Mostraram ainda que a verdade não é uma revelação
pura e desinteressada do intelecto humano. Ao contrário, a verdade se produz
a partir de condições estratégicas de poder e sempre traz a marca dessas
condições. A verdade não só é fruto de condições específicas de poder,
como também promove sua extensão e permanência a partir das condições
de poder. Mesmo a verdade da resistência e da libertação não deixa de
refletir essa condição, em que grupos ou comunidades tomam ciência desse
caráter da verdade e organizam-se para refutar a verdade da dominação
e gerar uma nova verdade libertadora, sem opressão. Alertaram-nos ainda
de que a verdade pode, também, resultar de alienação antropológica ou
de modos inconscientes da “razão” consigo mesma. Além dessas obras
singulares, os acontecimentos históricos da Europa, como a Primeira e a
Segunda Guerras Mundiais; o Holocausto, no Nazismo; a fragmentação
do conhecimento e da verdade; e a Revolução Socialista são relevantes
enquanto deslocamento definitivo dos discursos homogêneos da verdade.
À esteira desses pioneiros, há múltiplas formas de produção
intelectual pautadas na necessidade de rever e mudar o curso das práticas
humanas. Entre esses se podem destacar alguns, como Heidegger, Levinas,
Gramsci, Apel, Casalla, Alberdi, Leopoldo Zéa, Dussel, Fornet-Betancourt,
Frei Beto, Leonardo Boff, Paulo Freire, entre muitos outros. Outro fator
relevante é o surgimento, nos anos de 1960-1970, da noção de
subdesenvolvimento, gestado na Teoria da Dependência. Essas novas leituras
da condição geopolítica-econômica do mundo mostraram que a suposta
superioridade do Primeiro Mundo não reside na superioridade
antropológica ou intelectual, mas está construída sobre um rigoroso sistema
de dominação intelectual, moral e, essencialmente, econômica. Os países
do centro constroem sua superioridade através da exploração dos países
periféricos. Eles são ricos às custas de nossa pobreza. Essa lição foi
fundamental para o aparecimento do que é conhecido por Filosofia da
Libertação, Pedagogia da Libertação, Teologia da Libertação. A grande
novidade dessa nova maneira de inserir-se na produção social da verdade
é que elas, além de incorporarem, já em sua origem, as implicações políticas
e econômicas da verdade, asseguram um novo estatuto ontológico aos
excluídos. Os excluídos, os miseráveis, os explorados do mundo não
precisam esperar que o explorador venha os libertar, através de sua verdade
dominada. A libertação, em verdade, só pode provir do excluído. É dele
que deve provir a nova verdade, não mais de dominação, mas de libertação.
Além disso, ela se ergue contra as formas de dominação e opressão, mas
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não necessariamente contra as pessoas. Uma mostra disso é a produção
intelectual do “Seminário Internacional do Programa de Diálogo entre Ética
do Discurso e a Filosofia da Libertação”, agregando pessoas da América
Latina, da Europa, dos Estados Unidos, Canadá etc.
Junto a esse significativo movimento no terreno do pensamento e
da verdade, ocorre um número significativo de práticas populares, às vezes,
por iniciativa de lideranças comunitárias locais, e outras vezes, com a
participação ativa de agentes formados nessa nova maneira de ver o realhistórico. Se o reaparecimento da religião da resistência e da libertação não
pode ser indicado pelo significativo movimento que se desenvolveu no
espaço do pensamento, pois trairia a ideia mesma de religião comunitária,
popular, com sua força de resistência contra a dominação e sua força
libertadora, é justamente no espaço das práticas comunitárias, em grupos
periféricos que ressurge a virtude de um Deus libertador, animando e
fortalecendo as ações coletivas, agregando a energia e a esperança de uma
vida comunitária, igualitária, um Deus da Vida que reúne as pessoas ao
redor de uma mesa para a partilha, e não para a doutrina e a submissão à
verdade conquistadora.
Mesmo que, em um primeiro momento, essa vivência comunitária se
dê no interior de igrejas específicas, ela gesta uma nova semente para o
diálogo. Pelo fato de ser uma experiência de resistência e oposição à verdade
dominante, a serviço do poder, seu fundamento não está na vontade de
dominação, mas no desejo de liberdade em condições de igualdade. Com
isso, sua mirada não está em Propagar A Verdade, mas instituir condições
para novas práticas da verdade (talvez, seja melhor usar o plural, novas
práticas das verdades, uma vez que se aceita, já na origem, as imbricações
entre formas da verdade e práticas de poder).
O elemento agregador, nessas comunidades, é a experiência de
sofrimento que a exclusão, a exploração e a dominação promovem.
Percebeu-se, com essa nova leitura, que a opressão não está localizada em
uma igreja específica, mas é uma experiência comum às diferentes
comunidades pelo mundo, independente da religião a que estejam filiadas.
Esse ensinamento produz uma disposição de espírito ao diálogo, à troca, à
solidariedade, podendo ser força-motriz para romper barreiras “igrejistas”,
facilmente suplantáveis quando o que está em causa é o combate ao
sofrimento e à submissão. Junto à solidariedade no combate à injustiça,
entre os engajados nessa nova prática religiosa, adveio uma forma de
solidariedade entre diferentes religiões, disposta a respeitar as diferenças,
sem o histórico confronto entre a verdade de uma e de outra, sobre qual
delas deteria o verdadeiro Deus. Percebeu-se que essa disputa era fomentada
pelos Deuses da dominação, os Deuses aliados às práticas de poder (que
são múltiplos, pois múltiplos são os grupos desejosos de poder). Uma nova
consciência instaurou-se no âmago das práticas religiosas de resistência e
de libertação: a consciência de que o Deus da libertação é um só, mostrandose de maneiras diferentes, conforme a experiência cultural da comunidade
que o invoca.
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Uma última interrogação nos persegue, antes de concluir este texto.
Tendo-se em vista que a Iluminação da Verdade, o “critério ‘iluminador’
sobre os povos periféricos” (GONZALEZ, 1994, p. 188) foi o motor do
Colonialismo e do Neocolonialismo, responsáveis por tanta violência,
submissão e extermínio, cabe perguntar o que está ocorrendo nesse
momento histórico, com a novidade que desponta a partir do que se vem
chamando de Ciência da Religião. A noção de ciência implicada nesse
conceito poderia ser um apelo à iluminação que o pressuposto científico
contém? Não se estaria pretendendo esclarecer as comunidades acerca
de uma nova verdade, não mais religiosa, mas científica, acerca do
fenômeno religioso, conforme ocorreu ao longo do século XIX, em
diferentes espaços da vida social e coletiva? Quais os pressupostos que
fizeram aparecer a Ciência da Religião? Em que contexto geopolítico ela
apareceu? A que, exatamente, destina-se a Ciência da Religião? Quais
as práticas que a legitimam, enquanto vivência junto às comunidades do
Deus da resistência e da libertação? Poder-se-ia supor que as condições
de aparecimento da Ciência da Religião localizam-se junto à preocupação
de uma das formas do poder dominante, desejoso de combater a força
que a vivência religiosa nas comunidades constitui, parecendo-lhe uma
ameaça à dominação?
O discurso acadêmico pode legitimar tanto as forças de dominação e
opressão quanto as forças de resistência e de libertação. Sabe-se que grande
parte dos intelectuais e pesquisadores aliados à religiosidade popular, de
comunidades de resistência, encontra espaço para atuar concretamente na
formação de profissionais para o ensino religioso escolar, justamente nos
cursos de Ciências da Religião. Portanto, não é das pessoas e de sua boavontade que se está falando, mas do projeto em si, que fez aparecer as
Ciências da Religião. É possível que, ao pretender libertar do dogmatismo
o ensino religioso escolar, estejamos escrevendo um novo texto a serviço
das novas tecnologias do poder de governar populações, o que Foucault
(1999) chamou de biopoder. Não temos resposta a essas interrogações,
apenas contribuímos com a colocação da questão, levando-se em conta o
ciclo: vivência comunitária; estratificação da sociedade; apropriação da
religiosidade das pessoas por parte do grupo dominante, integrando-a
ao seu projeto de poder; escritura do texto; retorno à comunidade em
forma de doutrina (agora seria uma doutrina científica, esclarecida).
Concluindo
Para um mundo de convivência fraterna entre os povos, onde
predominem as leituras dos textos sagrados para a paz, muito ainda há
por avançar. É claro que não é só uma questão de mudança de
hermenêutica, mas, sem dúvida, essa mudança é fundamental. Igualmente,
uma autocompreensão menos arrogante, historicamente situada, de nossas
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tradições religiosas, o reconhecimento dos erros e um pedido de perdão
pelas violências cometidas. Entretanto, a efetividade dessas atitudes se
verificará com o desmantelamento das estruturas e doutrinas que tornaram
possíveis e aceitáveis as violências no passado. Se esse desmantelamento
não ocorrer, o pedido de perdão será inócuo, pois as atitudes violentas
continuarão aninhadas nos velhos suportes e neles encontrarão apoio para
suas novas estocadas.
É preciso contemplar, no mistério da Vida, este grande mistério
ao qual a humanidade dá muitos nomes. Não devemos adorar um Deus
tão pequeno que possa ser aprisionado e que caiba totalmente dentro de
nossos livros sagrados, ou de nossas culturas e religiões. Quando se perde
a noção do mistério, acaba a humildade, entra a prepotência e vai se
acabando a humanidade, porque, afinal de contas, humildade e
humanidade têm, ambas, raiz na finitude do húmus. Mas, acima de tudo,
essa atitude de superioridade nos leva a sermos algozes da vida, na
inferiorização do outro, da outra, sejam estes humanos ou não, e não
permite que experimentemos, com profundidade, o prazer de ser
aprendizes e co-autores da grande sinfonia da vida em toda a sua
tremenda e complexa diversidade.
Notas
1
Doutor em Ciências da Religião. Professor do curso de Ciências da Religião da
Universidade Regional de Blumenau, professor do Instituto Teológico de Santa Catarina
e professor da União Catarinense de Educação. Membro do Grupo de Pesquisa Ethos,
Alteridade e Desenvolvimento – GPEAD. E-mail: [email protected]
2
Doutor em Filosofia, professor do Programa de Pós-graduação em Educação da
Universidade Regional de Blumenau. Membro do Grupo de Pesquisa Ethos, Alteridade
e Desenvolvimento – GPEAD E-mail: [email protected]
3
Ver também VELHO, 2007, p. 125-135.
REFERÊNCIAS
FORNET-BETANCOURT, Raúl. Religião e interculturalidade. Tradução Antônio Sidekum.
São Leopoldo: Sinodal/Nova Harmonia, 2007.
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Marins Fontes, 1999.
GONZALEZ, Pablo Guadarrama. Los puntos de partida de la filosofia de la liberación y la
ética del discurso. In: SIDEKUM, Antonio (org.). Ética do discurso e filosofia da libertação
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Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 2005.
_____ ; STEFANI, Piero, Fundamentalismo religioso contemporâneo. Raízes islâmicas,
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Janeiro: Educam/Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade, 2007.
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6
DIVERSIDADE CULTURAL
RELIGIOSA E CONCEPÇÕES DE SAGRADO
Tarcísio Alfonso Wickert1
Rodrigo Wartha2
Introdução
Toda cultura e cultura religiosa pressupõem a diversidade. Esta pode
se manifestar de diversos modos, entre elas, a dimensão do sagrado. Isso
se constata em todas as tradições culturais, grupos e indivíduos, pois cada
um tem uma forma de explicar e explicitar o mundo em sua volta, o
imanente, o transcendente e a si mesmo. Por isso que, ao longo da história
da evolução humana, o homem buscou explicações para tudo o que não
conhecia, para aquilo que lhe era um enigma, um mistério.
O processo de globalização impulsionou um mundo multicultural
que, atualmente, é animado pela lógica do capitalismo, e esta pressupõe o
intercâmbio de mercadorias e serviços. Mas também é através de redes de
trocas comerciais que se desenvolvem as relações de trocas culturais e uma
delas é a religiosa. No entanto, em que medida essas trocas culturaisreligiosas são, de fato, trocas culturais-religiosas? Não seriam relações
esvaziadas de seus sentidos culturais-religiosos, entrando no campo de
uma eugenia cultural? E, dessa forma, levando os seres humanos a
classificar as culturas entre superiores ou inferiores? Sendo assim,
compreende-se que não existem culturas melhores ou piores, mas, sim,
paradigmas culturais criados por cada sociedade para explicar a vida,
uma vez que explicitam relações de poder. As imposições de culturas mais
bem colocadas economicamente podem levar à pulverização de culturas
mais frágeis, do ponto de vista econômico, tal como ocorreu com milhares
de povos, testemunho da chegada do colonizador à América. Pois, “todas
as sociedades estão a tornarem-se cada vez mais multiculturais, e, ao mesmo
tempo, mais permeáveis.” (TAYLOR, 1998 p. 83). Na medida em que cultura
e poder são interdependentes, a lógica capitalista-neoliberal naturaliza o
extermínio de algumas culturas, fazendo-nos crer na superioridade de
algumas, oriundas de países economicamente favorecidos, pois, “Todavia
acreditar que a essência da plenitude humana se encontra em determinada
cultura de determinado povo é um preconceito que não precisamos
aceitar.” (GEERTZ, 1978, p. 55). Logo, nenhuma cultura pode precisar os
critérios que são determinantes em cada uma delas. A oposição a isso, ou
seja, a crença de que uma cultura expressa a evolução máxima da cultura
humana, levou vários líderes a cometerem diversos genocídios ao longo
da história.
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1 Diversidade Cultural-Religiosa
A Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, assinada e
aprovada por unanimidade em Paris, no dia 2 de novembro de 2001, na
31ª Reunião da Conferência Universal da UNESCO, realizada dois meses
após a queda das Torres Gêmeas, em Nova York (11 de setembro de 2001),
reafirma a convicção de que o diálogo intercultural é um caminho para
buscar e garantir a paz rechaçando-se todo e qualquer choque ou barbárie
entre culturas e civilizações. Isso vem garantir o direito da existência e o
reconhecimento da possibilidade de as culturas serem autônomas e
diferentes entre si. A razão de existir da diversidade cultural é justamente
a possibilidade da convivência das diferenças entre elas.
É nesse sentido que a homogeneidade não é o pilar central da
aproximação das culturas, mas, justamente, as suas diferenças. Pois, tanto
as manifestações culturais, como culinária, arquitetura ou mais complexas,
como a ligação com o transcendente, são formas de ver o mundo e de
representá-lo. Ainda em Geertz, “Compreender a cultura de um povo expõe
a sua normalidade sem reduzir a sua particularidade. As descrições das
culturas devem ser calculadas em termos das construções que imaginamos
que seus protagonistas colocam através da vida que levam” (GEERTZ,
1978, p. 24-5).
Na medida em que uma cultura expressa um saber e esse saber é a
razão de sua existência, é seu mundo que se revela para uma totalidade.
Mas, se os seus saberes são velados, pela força externa ou interna, pelo
poder imposto, expressam a morte da própria cultura e de sua diversidade.
No entanto, o que ocorre em muitas culturas é justamente a “negação do
outro” para garantir a sua autoafirmação. Ou seja, o outro precisa ser
negado para garantir a minha existência. Ao longo da história das culturas,
a intolerância ceifou muitas vidas, pois a existência e a convivência com o
diferente eram inaceitáveis, conforme padrão doutrinário, estético e
econômico estabelecido pelas culturas da homogeneidade. E justamente
são essas práticas que precisam ser eliminadas para que um mundo melhor
seja realmente possível e livre de preconceitos. É na diversidade e pela
diversidade da cultura e das culturas que o diálogo se torna possível, pois
toda linguagem, os mitos, ritos e expressões necessitam de abertura para
se mostrarem ao mundo.
A cultura é um reverenciar de si e de seu povo, mas sua manifestação
faz-se necessária em direção às outras culturas. De acordo com Geertz:
“O ponto global da abordagem semiótica da cultura é, como já disse,
auxiliar-nos a ganhar acesso ao mundo conceitual no qual vivem os nossos
sujeitos, de forma a podermos, num sentido um tanto mais amplo, conversar
com eles” (GEERTZ, 1978, p 35). É importante entender que a linguagem
e o elemento simbólico são referenciais da própria existência do ser humano
e da sua cultura. É por isso que:
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[...] da linguagem como lugar da mediação total de toda experiência do mundo
e de todo dar-se do ser, a que remete a tese de que “o ser que pode ser
compreendido é linguagem”, é caracterizado, mais fundamentalmente ainda
do que como fato da linguagem – ou de maneira igualmente originária -,
como âmbito ético. [...] a linguagem não é tanto, ou, antes de tudo, aquilo que
o indivíduo fala, mas aquilo pelo que o indivíduo é falado. É, sobretudo,
enquanto sede, ou lugar, de realização do concreto, do ethos comum de uma
determinada sociedade histórica, que a linguagem serve de mediação total
da experiência do mundo (VATTIMO, 1996, p. 131-2).
Logo, a linguagem só é inteligível a partir de uma consciência social.
Ou seja, a cultura se traduz pela linguagem. Ela mantém viva a tradição e
o ethos de uma cultura, pois possibilita que aquilo que foi vivido e sentido
por alguém possa ser transformado em entendimento social. Como
resultado da história social, a linguagem transformou-se em instrumento
decisivo do conhecimento humano, porque, através dela, o ser humano
pôde superar os limites da experiência sensorial, individualizar as
características dos fenômenos e formular determinadas generalizações ou
categorias. Ela é decisiva para o desenvolvimento da atividade consciente
dos sujeitos.
De acordo com Luria (1986, p. 25), o elemento fundamental da
linguagem é a palavra, pois ela “designa ações, relações, reúne objetos em
determinados sistemas. Dito de outra forma, a palavra codifica nossa
experiência”. Linguagem é simbolismo. Segundo Cassirer (1997, p.72):
sem o simbolismo, a vida do homem seria como a dos prisioneiros na caverna
do famoso símile de Platão. A vida do homem ficaria confinada aos limites
de suas necessidades biológicas e seus interesses práticos; não teria acesso ao
“mundo ideal” que lhe é aberto em diferentes aspectos pela religião, pela
arte, pela filosofia e pela ciência
A linguagem, ao permitir a comunicação dos seres com o mundo,
passa a ser a possibilidade concreta de os dados da realidade chegarem à
consciência. De acordo com Brandão (2004, p.108), a linguagem precisa
ser vista não “apenas como instrumento de comunicação de transmissão
de informação ou como suporte do pensamento”. Surgiu da necessidade
de os seres humanos compartilharem suas ideias e pensamentos com outros
seres humanos e, desse modo, entenderem e serem entendidos. A linguagem
é “interação, um modo de ação social” (BRANDÃO, 2004, p. 108). Assim,
não é possível pensar o ser humano no mundo isento das interações que
realiza socialmente e isolado do discurso.
Somos constantemente interpelados por discursos, que movimentam
sentidos e posicionam os sujeitos socialmente, pois “quando se diz algo,
alguém o diz de algum lugar da sociedade para outro alguém, também de
algum lugar da sociedade, e isso faz parte da significação” (ORLANDI,
2003, p. 26). Ao mesmo tempo em que a linguagem vai constituindo os
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sujeitos, esses se constituem no processo de desenvolvimento da linguagem.
Pensar a diversidade cultural-religiosa é pensar o próprio ser humano; é
no seu tempo e espaço que ele percebe o mundo e se dirige ao outro, à
outra cultura. Sem o respeito à diversidade, violaremos o princípio
fundamental da Constituição Federal de nosso país e da Declaração
Universal dos Direitos Fundamentais, de 10 de dezembro de 1948. Pois, se
todos devem ser tratados de modo igual perante a lei, não podemos permitir
a discriminação e, muito menos, o proselitismo.
A própria Constituição Brasileira, de 1988, garante um Estado laico,
ou seja, que não opta por uma religião e, além disso, garante que todas as
manifestações religiosas possam se expressar, como consta no artigo 5º,
inciso VI, da Constituição: “É inviolável a liberdade de consciência e de
crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida,
na forma da lei, a proteção aos locais de culto e às suas liturgias.”
Constituição Brasileira. Uma única verdade absoluta não existe, assim como
não existe uma única e verdadeira religião e cultura. Mas, sim, existem
religiões e culturas diversas, cada qual com seus valores e princípios, suas
doutrinas, seus textos sagrados e suas filosofias. São exatamente essas
simbologias e experiências que constituem a memória e a experiência de
cada cultura.
É nesse sentido que pensar o ser humano como um ser cultural leva
a que “o homem não deve ser estudado em sua vida individual, mas em
sua vida política e social” (CASSIRER, 1997, p.107), pois são essas
“criações” que vão dar ao homem as bases para a interpretação do mundo,
e, desta forma, toda a sua ligação com o cosmo, não só da sua existência,
mas também da existência dos outros. Essa cosmovisão é uma visão coletiva
do mundo a partir da própria cultura.
O grande desafio para um mundo livre de violência e barbáries,
legitimadas por preconceitos criados em torno da cultura, seja ela religiosa
ou não, perpassa pelo diálogo intercultural e inter-religioso. Mas um
diálogo onde sejam consideradas ambas as partes, e as trocas culturais
sejam realizadas horizontalmente, sem a existência de um pré-julgamento
que defina a valorização e a desvalorização de determinadas culturas,
levando, assim, a proliferação da discriminação. Somente assim, com
um diálogo em pé de igualdade, é que poderemos alcançar um estágio
onde as representações culturais possam ser apresentadas ao mundo
como realmente são: apenas representações do mundo. E, por isso, toda e
qualquer característica cultural que venha a proliferar ou mesmo a
reproduzir concepções preconceituosas deve ser entendida como agressão
a toda a humanidade e ser rechaçada. Deve ser entendida como uma
representação errônea do mundo, pois não pode ter como base atividades
excludentes.
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2 Concepções de Sagrado
O processo de ligação do homem ao transcendente está, entre outros
aspectos, ligado ao fato de que o homem é potencialmente um ser crítico,
e, ao ser crítico, critica e duvida de sua própria existência. Em toda a
trajetória da humanidade, o infinito, o desconhecido despertou interesse
no homem. Como o tempo e a distância separam os povos, estes e suas
subjetividades criaram diversas expressões culturais. Tal como os desafios
do cotidiano são diferentes entre esses povos, a ideia de buscar respostas
também o é. Nessa busca por respostas, que são levantadas por questões,
muitas vezes, além de nosso entendimento, o homem criou a religião.
O termo Religião deriva do latim “Re-Ligare”, que significa Religação
com o divino. Esse termo diz respeito a toda e qualquer manifestação dos
seres humanos com o que está fora do mundo natural, ou seja, do mundo
físico. Erroneamente, a religião que foi criada para unir o homem ao
transcendente, muitas vezes, é causadora de conflitos e discórdias, e separa
os homens entre si. O fato de esses terem criado diversas religiões, diversas
formas de se relacionarem e entenderem o transcendente, mostra-nos, mais
uma vez, como reflexo de suas culturas, a subjetividade de cada uma, e a
forma peculiar como cada povo constrói as suas respostas para seus
desafios. E, em função disso, também ocorrem diversas interpretações do
sagrado.
O sagrado é um elemento pelo qual o ser humano atribui qualidades
sacras, mas, tal como já afirmado, pode variar de cultura para cultura. Ou
seja, o que para algumas concepções religiosas pode ser sagrado e tido
como elemento capaz de ligar o homem ao transcendente, para outra
concepção religiosa pode ser algo profano, ou mesmo pior que isso, algo
ligado a alguma força de caráter duvidoso. O sagrado é essencialmente
uma construção subjetiva de cada indivíduo, mas não propriedade de um
indivíduo, e sim uma vivência estética. Ele se expressa no modo de ser e de
estar no e para o mundo de cada ser humano. É sua relação com o outro e
com as culturas, com a linguagem de uma coletividade, com a história e
com a própria ciência. Por isso, a dimensão do sagrado é uma dimensão
humana, não necessariamente natural, mas construída, elaborada e
reelaborada a cada instante de sua vida. O sagrado nos causa espanto,
tanto no sentido de causar temor, quanto no de causar alegrias. É aquilo
que fica mais próximo do ser humano; é o divino no humano e fora dele.
São perspectivas e expectativas de vida que se traduzem na experiência
com o sagrado. Mas é preciso lembrar que o sagrado não é necessariamente
um objeto: pode ser um símbolo, uma imagem, alguma coisa ou alguém. O
sagrado se dá na medida em que criamos representações e atributos a um
determinado objeto (símbolos), lugar, situações, ritos e pessoas.
A dimensão do sagrado não está no fenômeno do objeto, mas é
produzido por nós, através da linguagem. Está como mediadora entre o
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sujeito e o objeto a ser compreendido e entendido. É notório, nas culturas,
ser o sagrado uma reverência coletiva, portanto, internalizado, ritualizado,
respeitado e venerado pela cultura. É por isso que é a exaltação de algo ou
de alguma coisa; representa a ruptura com o estável, causando ou
instalando novas emoções e desinstalando outras. Falar em sagrado é falar
na própria existência e liberdade do ser humano.
Não é possível viver e conviver de modo respeitoso e livre, se não
permitirmos o sagrado humano de Deus nos seres humanos e nos seres em
geral. Pois, ser um ser humano é ser sagrado e divino; é ser divino por ser
humano. Na medida que o humano se faz como humanidade, o sagrado
se consagra como o divino em nós mesmos. Somos eternamente visitados
pelo diferente em nós mesmos e no mundo. É esse o espaço e o lugar, por
excelência, do sagrado. Aquilo que a nossa consciência tem como valor
moral humano e de toda a vitalidade existente designa, em última
instância, o sagrado. Dentro das definições de sagrado, citamos Rudolf
Otto, que afirma:
O sagrado é, antes de mais nada, interpretação e avaliação do que existe no
domínio exclusivamente religioso. Sem dúvida, esta categoria passa por outros
domínios, como, por exemplo, a ética; mas ela não provém desses domínios
paralelos. Essa categoria é complexa; compreende um elemento de qualidade
absolutamente especial que se subtrai a tudo aquilo que nós chamamos de
racional; é completamente inacessível à compreensão conceitual, e constitui
algo inefável. O mesmo acontece com a conceituação do belo em outros
domínios do conhecimento (OTTO, 1985 p 11).
Segundo Otto (1985), a categoria sagrado perpassa por vários
fatores. Por ser uma categoria que está além da compreensão, não pode
ser inteligível a partir de conceitos puramente humanos de descrição. E,
dentro dessa concepção, ela pode ser entendida como conceito irracional,
utilizando a definição que o autor se apropria, irracional no sentido de ser
inexprimível a sua forma de descrição. Nesse sentido, Otto nos coloca a
ideia de um sagrado que não possa ser inteligível a partir de conceitos
teóricos, racionais e especulativos, mas, sim, sentido e vivido a partir da
experiência. Logo, o homem moderno, com o evoluir da ciência, passou e
passa por um processo de secularização.
Esse processo implica a criação de um mundo, onde o que rege a
mente humana é a ideia da evolução científica. Pois, a tese central da
secularização nega à idade moderna a propriedade original dos seus
conteúdos culturais e a reduz a uma mera versão daquilo que veio antes,
negando qualquer perspectiva histórica. Na medida em que a secularização
nega o fio que liga o homem ao passado, nega a própria ancestralidade.
Todo o processo de negação da ancestralidade parte, invariavelmente, do
pressuposto de criação do novo. A preocupação inerente ao ser humano é
a de criar valores relevantes ao mundo, sem estar preocupado com o outro
mundo, com a parusia. O retorno do homem sobre si mesmo é uma
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constante, porque o secularismo é dar espaço ao “eu” na proliferação de
invenções de novas técnicas e novas ciências. Com tal pensamento, toda a
concepção do sagrado passa a ser reavaliada.
Nesse sentido, não só a percepção de sagrado está intrínseca a novos
valores, como também a própria concepção do profano. Na sociedade pósmoderna, guiada por invenções tecnológicas, o homem está se refazendo
a partir de conceitos cada vez mais materialistas, em que a percepção do
transcendente parece estar voltada para o campo apenas da cultura. O
que rege a sociedade são outros conceitos. No entanto, a reformulação do
pensamento humano no mundo pós-moderno, a partir de conceitos
materialistas, criando um mundo cada vez mais secularizado, está pautada
em uma tradição religiosa milenar, portanto, repleta de conceitos sacros.
Nessa perspectiva, toda ideia, tanto de religiosidade quanto de elementos
do sagrado, está passando por uma reformulação subjetiva de cada ser
humano. Em um momento quando novas religiões surgem a cada instante,
o sagrado também é criado, recriado e destruído. Podemos perceber essa
discussão da subjetividade da criação de conceitos em Urbano Zilles:
Mas o pensamento moderno não consegue pensar a subjetividade humana
em seu relacionamento teórico e prático com o mundo, sem referência,
positiva ou negativa, a Deus. A questão de Deus passa a ser tematizada não
mais a partir do mundo, e sim através da mediação do homem e de suas
relações com o mundo, ou seja, a partir da subjetividade (ZILLES,1991, p. 08).
O que Zilles nos mostra é justamente a ideia de que a percepção
humana está ligada e intrínseca à percepção de Deus. Nessa linha de
raciocínio, o autor aponta que a compreensão humana só pode ser
alcançada a partir de um entendimento da relação homem-Deus. Sendo
assim, como a relação de Deus com o mundo passa a ser mediada pelo
homem, é justamente este que também estabelece a relação e as definições
para o sagrado. O sagrado como elemento de ligação homem – Deus passa
a ser subjetivado pelas interpretações pós-modernas de transcendente e
imanente. Pois, como dito anteriormente, não existem verdades absolutas,
e sim a criação de paradigmas de conhecimentos que procuram explicar a
existência.
O ser humano deu-se conta da insuficiência científica e de que ela
representa um referencial teórico incapaz de satisfazer as necessidades do
sujeito diante da transcendentalidade. A ciência não consegue administrar
e atingir a dimensão transcendente através da experiência empírica do
mundo e do ser humano pelas vias da racionalidade, gerando desconforto
às instituições religiosas, pois a razão tem como princípio fundamental a
reflexão e os questionamentos. A interpretação, a leitura e a análise de
mundo passaram a ser apenas racionais e empíricas. Essas se mostraram
como insuficientes e o ser humano, não encontrando uma resposta
satisfatória, chega ao vazio da racionalidade na modernidade. Como
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consequência da insatisfação, temos o que é denominado de pósmodernidade.
Neste mundo (da pós-modernidade), ocorre o processo de
“desreferencialização” do real e de “dessubstancialização” do sujeito, ou
seja, o referente (a realidade) se confunde em fantasmagorias e imagética,
e o sujeito (indivíduo) perde a substância interior, sente-se vazio.
Notas
1
2
Doutorando em Filosofia pela UFSC. Professor de Filosofia da Universidade Regional
de Blumenau. Membro do Grupo de Pesquisa Ethos, Alteridade e Desenvolvimento GPEAD. E-mail: [email protected].
Especializando em Educação e Cultura Indígena pela Escola Superior de Teologia EST.
Graduando em História pela Universidade Regional de Blumenau. Membro do Grupo
de Pesquisa Ethos, Alteridade e Desenvolvimento - GPEAD. E-mail:
[email protected].
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da UNICAMP, 2004.
CASSIER, Ernst. Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana.
Tradução Tomas Rosa Bueno. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
GEERTZ, Clifford. Interpretação das culturas. Tradução Fanny Wrobel. Rio de Janeiro:
Zahar, 1978
LURIA, Alexandre Romanovich. Pensamento e linguagem: as últimas conferências de Luria.
Tradução Diana Myriam Lichtenstein e Mário Corso. Porto Alegre: Artes Médicas, 1986.
ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise do discurso: princípios & procedimentos. 5. ed. Campinas:
Pontes, 2003.
OTTO, Rudolf. O sagrado: um estudo do elemento não-racional na ideia do divino e a sua
relação com o racional. Tradução Procoro Velasques Filho. São Bernardo do Campo: Imprensa
Metodista, 1985
TAYLOR, Charles. Multiculturalismo: examinando a política de reconhecimento. Tradução
Marta Machado. Lisboa: Instituto Piaget, 1995.
VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna.
São Paulo: Martins Fontes, 1996.
ZILLES, Urbano. Filosofia da religião. 3.ed. São Paulo: Paulus,1991.
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PARTE II
1
DIVERSIDAD RELIGIOSA EN CHILE:
CULTURA E IDENTIDAD MAPUCHE
Ramón Francisco Curivil Paillavil1
La Diversidad
El diccionario de la Real Academia Española dice que la diversidad
hace referencia a “variedad, desemejanza, diferencias”. También significa
“abundancia y gran cantidad de varias cosas distintas”. En este sentido la
diversidad es lo opuesto a “lo único y lo homogéneo”. Desde esta
perspectiva, la diversidad se da en todos los ámbitos de la realidad: la
naturaleza es diversa, es diversa la realidad social, cultural, económica,
religiosa en cualquier país. En la practica lo que existe es diverso y es diverso
no porque lo pensemos nosotros – en nuestras reflexiones – sino la vida en
sí, la realidad en sí, es diversa. El problema es cómo nosotros los seres
humanos, pertenecientes a distintas tradiciones culturales y religiosas,
integramos, asumimos, vivimos o tomamos conciencia de esta diversidad.
En general todos hemos aprendido a ver la realidad desde nuestra cultura
y pensamos que todo el mundo, toda cultura para que sea tal, debe ser
como la nuestra y si es diferente es ya dudosa, por lo tanto, hay que hacerla
como la nuestra. En la práctica somos nosotros que muchas veces nos
hemos negado a aceptar la diversidad como un hecho normal, como parte
de la vida. Mas aún cuando hemos creído que solo lo nuestro tiene valor,
nos ha llevado a despreciar las diferencias, porque es más fácil ordenar la
vida desde un horizonte de igualdad que desde un horizonte diverso.
En este sentido, Chile, siendo un país tan pequeño, largo y angosto
como una faja de tierra, teniendo una variedad de clima y paisaje natural
tan diverso, tiene el desierto más árido del planeta y unos fértiles valles en
la zona central, un paisaje cordillerano que se combina con una serie de
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volcanes que cautivan e impresionan a los visitantes; bosques centenarios,
aunque ya no quedan muchos, islas, lagos, fiordos y glaciares en el sur. A
pesar de esta variedad natural en un país tan pequeño, es difícil imaginar
que al mismo tiempo sea un país que se ha negado sistemáticamente a
reconocer y valorar una dimensión importante de la diversidad en el ámbito
humano. Tradicionalmente Chile se considera un país de blancos donde
“lo indígena” se ha querido llevar en forma oculta y silenciosa, pensando
quizá que en algún momento éstos pudieran desaparecer.
Un cambio de mentalidad en Chile es reciente y se ha dado
específicamente en un momento histórico relacionado con la recuperación
de la democracia y específicamente con el gobierno de la Concertación, donde
se abrió el debate en relación al lugar que ocupan los indígenas en este nuevo
escenario nacional de post dictadura. En este contexto era necesario tener
informaciones más precisas sobre número y distribución de la población
indígena. El primer paso fue reformar la Ley indigenista que se había
heredado de la dictadura, promulgándose una nueva legislación el año
1990. Esta ley reconoce la existencia de tres grupos étnicos: Mapuche,
Aymara y Rapa nui. Después vino el Censo de Población y Vivienda el
año 19922, que por el tipo de pregunta, infló en cierta forma, la población
indígena, lo que fue positivo para las demandas de los pueblos indígenas,
porque entregó un panorama social que sorprendió a la población nacional.
Por ejemplo, los datos censales mostraron que la población indígena era
mayor de la que se suponía, pero la sorpresa más grande fue que el Censo
constató que prácticamente el 80% de la población indígena vive en los
centros urbanos. Este nuevo panorama indígena ayudó a cambiar la
mentalidad de los chilenos y en parte de los propios indígenas.
Muestro a continuación la diversidad étnica y cultural en Chile
según Censo Nacional del año 2002. En esta ocasión la pregunta era ¿a
cuál de estos pueblos indígenas perteneces?
Se considera perteneciente a:
Hombre
Mujer
Total
1. Alacalufe (Kawashkar)
1.423
1.199
2.622
2. Atacameño
10.852
10.163
21.015
3. Aymará
24.188
24.313
48.501
4. Colla
1.687
1.511
3.198
5. Mapuche
304.580
299.769
604.349
6. Quechua
3.037
3.138
6.175
7. Rapa Nui
2.263
2.384
4.647
8. Yámana (Yagán)
876
809
1.685
9. Ninguno de los anteriores
7.098.789
7.325.454
14.424.243
Total
7.447.695
7.668.740
15.116.435
Fuente: Censo de Población y Vivienda 2002.
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De acuerdo al Censo el 4,6 % dijo pertenecer a uno de los 8 pueblos
indígenas. De esos el pueblo mapuche representa el 87.3% del total de la
población indígena. Otro dato interesante es que en la práctica el 80% de
la población indígena vive en los centros urbanos, concentrándose
especialmente en la ciudad de Santiago.
La Diversidad Religiosa en Chile
En cuanto a la diversidad religiosa en Chile habría que tener en
cuenta, a mi modo de ver, las siguientes consideraciones: primero, cuando
se habla de diversidad, diálogo y acercamiento religioso se está pensando
en las distintas tradiciones cristianas (Iglesias), teniendo como meta – al
menos de parte de la Iglesia Católica - la unidad en la diversidad, lo que se
ha expresado en las últimas décadas en una participación conjunta en los
Te Deum de Fiestas Patrias. En este contexto existe un tipo de diversidad
religiosa donde prácticamente todas las religiones tienen un tronco común,
por lo tanto, mínimamente debe existir “respeto y tolerancia” entre ellas.
En este terreno de diversidad religiosa, las tradiciones religiosas indígenas
son consideradas y valoradas sólo como una expresión de religiosidad
popular y no se les reconoce su “status de religión”, por lo tanto, los pueblos
indígenas siguen siendo considerados “tierra de nadie”, donde todas las
religiones quieren sacar provecho y en instancias de diálogo siempre se
pregunta ¿con quién dialogamos?, ¿quién es el sujeto más representativo?
Yo entiendo por diversidad religiosa donde existe una concepción
de mundo diferente, una manera de entender a Dios diferente, una manera
de entender la vida y una manera de vivir diferente. Entre cristianos la
diferencia entre una y otra Iglesia o Congregación no es sustancialmente
diferente, por lo tanto, ahí hablar de diversidad religiosa, para la tradición
cristiana mayoritaria (católica), es hablar de respeto, dialogo, unidad en la
diversidad y teniendo como referente a otras tradiciones cristianas. Por lo
tanto, la diversidad religiosa como presencia real de tradiciones religiosas
diferentes, solo podría identificar tres tradiciones: la tradición religiosa
cristiana, diversa internamente pero con un tronco común; las tradiciones
religiosas indígenas, diversa también internamente y de la misma forma
con elementos comunes, como por ejemplo ritos ligados el ciclo de la
naturaleza, otros ligados a la agricultura, otros ligados al fortalecimiento
de las relaciones sociales; y finalmente la presencia de la tradición religiosa
musulmana que se expresa en un porcentaje muy bajo en relación al resto
de la población nacional mayoritariamente cristiana.
En la práctica esta es la diversidad religiosa en Chile.
Lo que sin duda llama la atención al mirar las estadísticas es el alto
porcentaje de adscripción al cristianismo en la población indígena. El
gráfico siguiente (lado derecho) muestra la adscripción religiosa mapuche
mayores de 15 años:
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Mapuche
Católicos
256.753
Evangélicos
125.914
Test.de Jehová
3.443
Judaica
134
Mormón
3.649
Musulmán
115
Ortodoxo
158
Otra. Relig
14.329
Ning/ate/agnos
38.345
Total
442.840
A continuación el gráfico muestra la adscripción a tres categorías
religiosas: la religión católica, evangélica y otra religión, de todos los
grupos étnicos que alcanza a un 91.4%:
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Esta proporción de adscripción es muy similar a la población no
indígena que representa un 91.7%.
Sin duda el porcentaje de adscripción al cristianismo de la población
indígenaes sorprendente. Los mapuches están presentes en todas las Iglesias
cristianas, lo que podría significar, que el cristianismo ya ha echado raíces
en la población mapuche, aunque muchos no quieran reconocerlo ni estén
de acuerdo, pero también esto se puede interpretar simplemente como
una doble militancia religiosa y que no representa el abandono de la religión
tradicional.
Cultura e Identidad Mapuche: una Cultura de Resistencia
No voy a detenerme en los aspectos teóricos de la cultura y de la
identidad, ya habrá autores que abordaran esta temática. La idea general
de cultura en la cual se sustenta esta parte de mi reflexión tiene que ver
con una “forma de vida”. Dicha forma de vida se ha dado históricamente
en un territorio concreto y se ha reproducido a lo largo del tiempo mediante
una serie de ritos. Los ritos deben entenderse como una expresión cultural
y religiosa que posibilita la reproducción social y el mantenimiento del “az
mapuche” como sinónimo de un éthos cultural que hace presente un rostro,
una manera de ser, una manera de pensar y de ver la vida en forma distinta
y original. Se trata de un ethos que históricamente ha resistido la
intolerancia de la cultura hispana occidental cristiana, pero que en ese
desencuentro ha sabido capitalizar experiencias ajenas aprendiendo de
ellas. Otro aspecto importante de la cultura que está presente en esta parte
de mi reflexión es que toda cultura en si misma es dinámica y en este
sentido sólo la cultura que cambia y resiste, que posibilita encuentros y
que es capaz de enfrentar los desencuentros, es la cultura que se reproduce
en el tiempo. La cultura mapuche en este sentido es una cultura de
resistencia.
Resistir tiene un doble sentido, un sentido pasivo, que significa
encerrarse en si mismo, aguantar hasta morir, en el fondo este sentido
tiene que ver con la resignación, con un camino hacia la muerte. Pero la
resistencia tiene también una dimensión dinámica en el sentido de que,
quien resiste, soporta, aguanta, pero ese resistir le permite al mismo tiempo
apropiarse de experiencias de otros y aprender. Esta forma de resistencia
entre los mapuches tiene que ver con la idea de “newen”. El newen es la
fuerza, el poder, la energía que tiene la tierra y que posee también todo ser
humano. En el che, tener newen significa tener fuerza, valor, capacidad
de resistencia frente a cualquier adversidad de la vida. Esta fuerza, este
valor se adquiere y se aprende.
Esta capacidad de resistencia del ethos mapuche y esta capacidad
de aprender del otro, se pusieron en juego a partir de la Conquista y se
trató en un primer momento de una resistencia en bloque, dado que era el
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pueblo mapuche que quería expulsar al invasor. Sin embargo, ante la
superioridad del enemigo, el segundo momento, estuvo marcado por una
resistencia selectiva que se expresó históricamente en diversos Pactos o
Alianzas con los conquistadores, incluso en la recepción de misioneros,
por algunos líderes y en algunos sectores del territorio. En este sentido el
contacto con la sociedad conquistadora, a pesar del clima de violencia,
trajo como consecuencias grandes cambios, algunos más positivos que otros,
al interior de la sociedad mapuche: por ejemplo, de una sociedad tribal,
recolectora, organizada en torno a un líder carismático (logko), con una
agricultura incipiente se vio en la necesidad de cambiar su estructura social
organizativa para hacer frente al conquistador; a su vez el contacto permitió
incorporar nuevas técnicas para el desarrollo de la agricultura; se introdujo
la ganadería; los mapuches se apropiaron del caballo y la carreta, hubo un
desarrollo de la platería; los líderes políticos (logko) se transformaron en
grandes negociadores. La introducción de la crianza de equino permitió a
los mapuches tener una caballería temida por los propios españoles y
posteriormente temida incluso por los propios chilenos. Esta es una de las
razones de por qué durante 70 años el territorio chileno estaba dividido en
dos: el territorio chileno propiamente tal y el territorio mapuche que
definitivamente fue invadido por el ejercito chileno entre 1880 - 1883.
La característica fundamental de estos cambios culturales, sociales
y políticos, es que se dieron en un contexto de autonomía política y
territorial, lo que significó de alguna manera un control de la cultura y un
fortalecimiento de su identidad como pueblo. Este hecho duró hasta bien
avanzada la República, es decir, hasta 1883.
Tierra, Territorio e Identidad Mapuche
Mapuche, viene de mapu: tierra, territorio y che: gente, persona.
Entre el mapu y el che existe algo así como una alianza, un compromiso
en un nivel de profundidad que tiene que ver con la posibilidad de ser y
existir. El ser y el llegar a ser mapuche está dado en esta relación con la
tierra. En este sentido la tierra es como la matriz que posibilita la existencia
del che, por lo tanto, no hay che sin tierra ni territorio. La tierra pasa a ser
no solo un espacio físico sino que ella en si misma posee algunos atributos
que permiten en cierta manera personificarla como si fuera una Madre.
La tierra mapuche no es sólo tierra, ella es Madre Tierra (Ñuke Mapu). Es
Madre porque es la sostenedora o la posibilitadora de la vida, no solo la
vida humana. Es Madre porque no hace distinción sino que cultiva y
mantiene la diversidad en su regazo. Es Madre porque nos alimenta y
sostiene. Pero al igual que toda Madre también tiene poder y autoridad
sobre sus criaturas. Ella tiene poder, fuerza, energía, tiene newen. Esta
manera de ver la tierra, que es propiamente una visión naturalista, instaura
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un tipo de relación que pasa necesariamente por el respeto y valoración de
la vida y la diversidad en la Madre Tierra.
Esta manera de entender la tierra da origen a una manera de ser:
somos en acción, en el sentido que lo que hacemos debe mostrar que somos
hijos de la tierra, somos en la medida que sabemos relacionarnos con la
tierra, incluso somos en la medida que intervenimos en la tierra, somos en
la medida que sacamos los frutos de la tierra. Es la tierra que nos permite
ser y existir. Por lo tanto, sólo somos si logramos mantener una conciencia
de pertenencia a la tierra. Pertenecemos a la tierra, la tierra no nos
pertenece. Esta conciencia de pertenencia se denomina maputuwvn (origen,
procedencia). Este origen y procedencia marca, deja una huella en nuestra
manera de ser. Se trata de una forma de ser, ligado a la tierra.
Esta forma de entender la tierra, permite establecer relaciones de
convivencia teniendo el convencimiento de que “aquí estamos” todos los
que somos, todos los que existimos, por que en la tierra no existimos sólo
los humanos, la Madre Tierra es productora de vida, ella es el origen y
madre de la diversidad (fij mogen mvlei taci mapu meu). Por lo tanto, la
identidad mapuche, en cuanto forma de ser, tiene que ver con una
conciencia de pertenencia a la tierra y una conciencia de interdependencia
y de convivencia con las diversas formas de vida que se dan en la Madre
Tierra.
Esta forma de sentirse parte de la tierra y de la naturaleza en general,
pone los límites a la libertad del ser humano, porque el hombre no puede
hacer todo lo que le de gusto y gana en la Madre Tierra. En otras palabras,
no puede manipular ni destruir el hogar común. Esto significa aceptar los
límites de la naturaleza humana y respetar los derechos de otras formas
de vida en esta casa común. En otras palabras, la vida del hombre en
cuanto ser humano definitivamente no es autosuficiente, depende de los
“otros”. Esto significa que en su forma de ser hay una conciencia de
comunión e interdependencia.
Esta conciencia de ser y de pertenecer a la tierra se refleja claramente
en el siguiente Ensayo3:
Un día de calma, miraba la nada y me dije: ¿Qué hace una joven como yo
mirando por la ventana? En ese momento medité, llegando a los sitios más
íntimos de mí ser. En conclusión me dije en voz alta ¿por qué siento deseos de
estar en contacto con la naturaleza?; sentía profunda ansias de correr por los
prados, sentarme y escuchar un sin fin de sonidos.
Pasados los minutos no aguanté, el deseo que sentía era más fuerte que todo.
Salí de mi casa, caminé un par de kilómetros hasta que llegué a un sitio que
estaba desconectado de cualquier cosa que tuviera relación con la ciudad, una
vez allí hice todo lo que mi cuerpo, mente y corazón sentían: corrí en variadas
direcciones, escuché al viento, al agua y a los animales, observé todo lo que
me rodeaba y luego me tendí en el suelo. Fue en ese momento cuando
experimenté la más grata de sensación de paz y relajo.
Después de variadas horas tendida, no sentía la necesidad de marcharme,
todo lo contrario, la tierra en mí inspiraba un profundo sentimiento de
apego, me sentía conectado, unido con la naturaleza, como si todo esto
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tuviera que ver con mi interior, mi pasado, mis orígenes… pensando en
esto me dije ¿será que mi sangre de hombre mapuche, esa que corre con
ímpetu, fuerza y valentía me une a la Tierra? Entre sollozos me respondí: mi
corazón se llena de emoción, la alegría embarga hasta los últimos poros de
mi cuerpo, no puedo negar que he descubierto la alianza más fuerte que
puede existir: LA TIERRA Y EL HOMBRE SE HAN UNIDO PARA SIEMPRE,
somos gente de la tierra, pertenecemos en cuerpo y alma a ésta, es esencial
en nuestro entorno, en nuestras costumbres, en nuestra cultura. Desde ese
momento comprendí que la Tierra es todo para mi y que así como mi sangre
me inspira el deseo de compartir tan sagrada parte de mi, siento que la
gente de mi pueblo, de mi cultura, gente Mapuche, es capaz de compartir tal
sobrenatural tesoro y hacerlo patrimonio de todos, de toda la comunidad.
Ahora me doy cuenta de lo que sucedió, lo escribe en este papel, para dejar
constancia de este hecho maravilloso que descubrí: que nada es más
reconfortante que estar compenetrado con la naturaleza, en especial con la
Madre Tierra (Yasna Agurto. 4º Medio C. Complejo Educacional Claudio
Arrau León, Carahue, 2009).
La Tierra, El Territorio Como Lugar Del Rito Y Del Sacrificio
Un elemento importante en esta relación “mapu – che – rito”, es la
convicción religiosa de que esta tierra en la cual vivimos, es una tierra
llena de fuerza, energía y poder. Este convencimiento, los ancianos, lo
expresan con la siguiente afirmación “mapu ta niei newen, fijpule mvlei
geh mapu: la tierra tiene poder, en todos los rincones de la tierra existen
seres protectores llamados geh”. Esta forma de comprender la tierra inspira
un temor y un respeto religioso y es justamente por esta manera de entender
la tierra que al mapuche jamás, ni antes ni ahora, le pasó por la mente
construir un templo, porque el templo mapuche, el lugar del rito y del
sacrificio es la Tierra, la naturaleza.
La celebración de los ritos en general son encuentros familiares,
comunitarios e intercomunitarios, momento decisivo en el cual se produce
la socialización en cuanto aprendizaje de valores, aprendizaje de un estilo
de vida y aprendizaje de una forma de ser. En este sentido los ritos tienen
claramente una función pedagógica porque enseñan a vivir y a convivir.
Todos los ritos en general permiten crear vínculos, fortalecer lazos solidarios
existentes y crear otros nuevos y en este sentido tienen también un carácter
social y festivo, excepto el rito de sanación (machitun4) que es uno de los
pocos ritos que tiene una dimensión dramática porque se lucha contra las
fuerzas del mal. Otro aspecto importante es que los ritos permiten mantener
la simetría y reciprocidad a partir de la comida, es decir, lo que he recibido
como visita (wixan), participando en los ritos de otra comunidad, debo
devolverlo en una celebración ritual dentro de mi propia comunidad. En
este contexto quien tiene más amigos, recibe más y cuando le corresponda
la celebración del rito en su comunidad deberá dar más. Todos dan y reciben
en algún momento, lo importante es que la comida sea abundante. Los
líderes políticos como los logko, por ser logko tienen la misma obligación
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de dar y no recibirá más por el hecho de ser logko sino que de acuerdo a
como él dé, recibirá. “Todo está regulado por la simetría y la reciprocidad:
todos son iguales y deben comportarse unos con otros como tales”.
Dependiendo de la tradición religiosa, parte de la comida que se
reparte en la ceremonia del gijatun se ha dejado previamente en el altar,
que es una mesa ubicada cerca del rewe. En cierta manera es algo que se
ofrece a la divinidad y que después se comparte con los invitados. Cerca
del altar suele estar el lugar del sacrificio donde tradicionalmente se
sacrificaban animales. Hoy este tipo de sacrificio ha ido desapareciendo y
en su lugar se queman los huesos de todos los animales sacrificados por la
comunidad y que sirven para atender a los invitados. Se suele pedir a los
dueños de cocina que no boten los huesos sino que los lleven al lugar del
sacrificio.
La Celebración del Gijatun
A continuación me referiré específicamente a uno de los principales
ritos mapuche llamado gijatun5. Esta ceremonia hoy día ha evolucionado
en los siguientes aspectos: primero, existe una apropiación y resignificación
de elementos simbólicos venidos del cristianismo; y en segundo lugar, una
mayor acentuación de la dimensión religiosa dado que se habla de nuestra
religión. En general esta ceremonia se considera “mapuce ñi zugu – es
decir, algo nuestro, algo propiamente mapuche, algo que nos pertenece,
algo que es parte de nuestro ser, algo que nos hace ser mapuche”.
Ya he dicho y he demostrado mediante gráficos, como una parte
importante de la población mapuche está presente en algunas de las Iglesias
cristianas, principalmente en la Iglesia Católica. Entonces la pregunta es
¿quiénes participan en los ritos mapuches?
La inmensa mayoría de los participantes son mapuches que
paralelamente participan de los ritos católicos y de los ritos tradicionales.
Es decir, como todo católico van a misa, bautizan, pagan mandas, etc.
Pero de la misma forma como todo mapuche siguen participando de los
ritos tradicionales. Mientras que los mapuches que participan en algunas
de las Iglesias evangélicas, son presionados a dejar en el pasado las practicas
religiosas tradicionales y en este sentido los líderes evangélicos
mayoritariamente siguen teniendo un discurso agresivo, condenatorio y
demonizador (lo mapuche no vale, eso era antes). El otro sector que
participa activamente en los gijatun viene de aquel porcentaje que en el
Censo marcó la opción “ninguna de las anteriores” porque entre las
opciones religiosas no estaba considerada la práctica de los ritos
tradicionales mapuches.
En lo fundamental el gijatun es un rito ligado a la naturaleza y a la
agricultura. Se celebra antes o después de las cosechas. Si es antes, es para
pedir buen tiempo y buenas cosechas y las banderas son blancas y azules
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y, si es después, es para dar gracias por los frutos recolectados y pedir
buen tiempo para las nuevas siembras, los colores también suelen ser blanco
y azul. En cuanto a la periodicidad, estos varían según la tradición de la
comunidad, en general es cada dos o cuatro años. Dependiendo como
transcurra el tiempo, durante el año si es muy seco se usan banderas negra,
porque el negro pide agua y si es lluvioso, los colores que piden buen tiempo
son blanco y azul.
Ya he mencionado también que las tradiciones religiosas mapuches
no son uniformes, al interior del mundo religioso mapuche hay una gran
diversidad, en este sentido los ritos varían de una zona a otra. Por ejemplo,
cada zona tiene su propia forma de celebrar este rito y eso se nota
especialmente en las danzas religiosas (purun). Estas varían de acuerdo a
la región. Además cada machi introduce también sus propias variantes.
Teniendo en cuentas estas consideraciones, es posible distinguir,
aunque sea de manera arbitraria, tres áreas religiosas6, que se diferencian
de acuerdo al grado de pérdida de elementos religiosos propios o de acuerdo
a la incorporación y resignificación de elementos religiosos simbólicos
ajenos:
•La primera, representada en la zona mapuce wijice7 (Valdivia, Osorno y
Puerto Montt), que es indiscutiblemente un área de religiosidad sincrética,
dado que en la celebración del lepvn (gijatun) se perciben elementos de
dos tradiciones culturales y religiosas: lo hispano cristiano europeo y lo
mapuche. Esto se nota, por ejemplo, en la incorporación de la guitarra,
el acordeón, incluso rezan en castellano, se recita el Padre Nuestro y el
Ave María; todos estos elementos venidos del mundo hispano reemplazan
a otros elementos propios de la cultura y de la religiosidad mapuche,
pasando a ser parte de la gran fiesta religiosa wijice. En esta práctica
religiosa prevalece claramente lo hispano europeo cristiano, al menos en
apariencia.
•La segunda área religiosa es la Región de la Araucanía, territorio
mapuche propiamente tal, donde, aunque de igual manera hay mezcla
de tradiciones culturales y religiosas, sin embargo, prevalecen los
elementos culturales y religiosos del ámbito mapuche. Por ejemplo, hay
lugares donde se ha incorporado el acordeón pero la música que se
interpreta con dicho instrumento, es música mapuche. En otros se ha
incorporado la corneta militar pero la música, es claramente mapuche.
Lo interesante de esta zona, entre otras cosas, es el hecho de que podemos
percibir claramente un proceso de incorporación y de resignificación,
tanto de elementos culturales como de elementos simbólicos venidos del
cristianismo. Por ejemplo, hay una basta zona donde la cruz ha
reemplazado el rewe y nadie discute su presencia en el gijatuwe 8.
Evidentemente la cruz, no tiene el mismo sentido que en el ámbito
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cristiano, dado que dicho símbolo presente en el gijatuwe, indica que en
ese lugar estamos ante la presencia de un espacio sagrado que tiene
newen (fuerza, poder, energía). A nivel del lenguaje religioso,
específicamente en la oración, se ha incorporado de manera casi general
el uso de la palabra “Dios, cau y ñuke” (Dios, Padre, Madre) y se dice por
ejemplo: Wenu mapu cau, wenu mapu ñuke… Padre y Madre de la
tierra de arriba (que no es lo mismo que decir Padre y Madre del cielo),
Dios cau Dios ñuke… Dios Padre, Dios Madre. La visión de la divinidad
mapuche es una Pareja Divina, es Padre y Madre, Anciano y Anciana.
Esto muestra claramente el dinamismo de lo que significa la incorporación
y la resignificación de elementos simbólicos ajenos que son llenados de
nuevos contenidos y significados.
•Una tercera área religiosa, está dada en los centros urbanos,
específicamente en Santiago y se trata fundamentalmente de vivencias
religiosas originarias del territorio mapuche (Octava y Novena Región),
que lentamente fueron echando raíces y dando un nuevo rostro no sólo
a los mapuches sino a la ciudad de Santiago, a partir de la década de los
90. Lo interesante de esta práctica religiosa es que los principales líderes,
sean estos hombres o mujeres, encuentran una mayor posibilidad de
reflexión y de discusión sobre ciertos temas, como por ejemplo “el
fortalecimiento de la identidad mapuche en la ciudad”. Este hecho marcó
el inicio de la celebración de ciertos ritos de la tradición campesina
mapuche en la ciudad. De esta forma un sector importante de mapuches
radicados ya en la ciudad pierde la vergüenza y el temor, salen a las
calles y se muestran diferentes. Incluso por solidaridad con organizaciones
del sur, que en la década de los 90 inician un proceso de recuperación de
territorios, marchan por la Alameda (Centro de Santiago). En este
contexto de recuperación y fortalecimiento de las prácticas rituales en
un contexto urbano se produjo un hecho importantísimo, que tiene que
ver con el reencuentro consigo mismo a partir del rito. Este reencuentro
consigo mismo tiene que ver con la identidad, con el ser mapuche, pero
este ser mapuche paralelamente puso en crisis dos elementos identitarios
que en cierta manera ya habían sido internalizado mediante la educación:
por un lado, la “chilenidad” ¿somos chilenos? Y por otro lado el ser
cristiano, es decir, ¿qué aporta el cristianismo a nuestra identidad?, si
hasta ahora el ser cristiano nos ha alejado de nuestras raíces.
Identidad Mapuche y Ritos
Independiente de la doble militancia religiosa en un sector
mayoritario de la población mapuche, puesta en evidencia en el Censo del
año 2002, existe un claro convencimiento de que los ritos, especialmente el
gijatun es “nuestra práctica religiosa - mapuce ñi zugu…” Esta convicción
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religiosa permite entender el celo por lo propio y el rechazo a toda
intromisión de no mapuches9, sea esto en un contexto ritual o en los diversos
ámbitos de la cultura. Por eso, hoy, en un sector de mapuches, adquiere
mayor importancia la necesidad de marcar las diferencias con el
cristianismo y en opinión de algunos, aunque podemos estar de acuerdo
en que todas las religiones son una experiencia religiosa formidable, única
y que cada religión representa una espiritualidad distinta que muestra la
grandeza del espíritu humano, sin embargo, no podemos concluir que da
lo mismo una que otra religión. Otra cosa es tener un espíritu religioso
amplio, ecuménico y tolerante que permite pasar de una religión a otra e
incluso participar de diversos ritos.
En opinión de un grupo de dirigentes, cuando se trata de hacer la
diferencia, perciben el cristianismo como algo extraño al mapuche: “wigka
ñi zugu… asunto wigka”. En cambio, la práctica de las tradiciones
religiosas propias la consideran: “mapuce ñi zugu… asunto mapuche,
religión propia, algo nuestro”. Es decir, el cristianismo implícitamente se
considera un elemento extraño que pertenece a la cultura dominante. Se
trata, según algunos, de una religión traída por los conquistadores y que
se impuso con la cruz y la espada, al menos aquí en América y en territorios
mapuche 10.
Respecto a la participación de mapuches en otras religiones, es
interesante el siguiente testimonio de un machi11 radicado en Santiago,
que al respecto dice lo siguiente:
“El wigka persigue lo suyo, tiene su forma.
Religión mapuche, taiñ religión, taiñ eleteu...
(nuestra religión, la hemos heredado de nuestros antepasados...)
Cada religión es como una mesa diferente,
con diferentes comidas, platos sabrosos...
Los mapuches dejaron su mesa, no les gusta su comida,
Se fue a la mesa del wigka
Es como un paracaidista.
Dios dejó muchas riquezas a los mapuche,
pero no dejó Escritura para nosotros...
Teniendo lo propio estamos como mendigos.
Faltó enseñar a los niños.
Ahora nuestra religión es algo extraño.
Yo soy respetuoso. En mi casa pasan los Mormones,
me ofrecen Biblia, yo digo: eso dejó Dios a ustedes...
Si voy a su Iglesia llego con respeto y creyendo,
porque su religión también es buena”.
(Testimonio del machi Augusto Aillapan de Santiago, originario del sector
Ralico, comuna de Saavedra).
El punto clave para entender el conflicto identitario es el encuentro
con la propia experiencia religiosa. Aquí hay dos elementos claves que se
pueden resumir en la siguiente convicción: “Lo nuestro es algo hermoso,
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alegre, festivo y liberador - Taiñ zugu, ayvnke zugu tati.. taiñ zugumu
kicuken gvneutukeiñ”. ¿Qué significa esto?
La celebración de los diversos ritos muestra claramente el sentido festivo
del espíritu y del alma mapuche, que durante un largo tiempo había quedado
en el baúl de los recuerdos y que en general pasaba desapercibido o no se le
daba la importancia que éste tiene. Para los mapuches la fiesta es un elemento
fundamental porque ayuda a hacer más grata la vida aquí y ahora (fau, taci
mapu meu). Pero este sentido de la vida, en algún momento entró en crisis y
esta crisis se ha originado a partir de tres hechos decisivos:
• La pérdida de la autonomía política y territorial
• La influencia de un tipo de cristianismo
• El impacto de la modernidad
Estos tres elementos fueron el detonante de una situación de crisis
radical de toda la vida mapuche, con lo cual aquellos elementos que tienen
que ver con el sentido de la vida, como la cultura y la religión expresados en
los diversos ritos, históricamente son despojados de su sentido, mediante un
discurso demonizador, que en cierta forma, durante mucho tiempo, obligó a
abandonar lo propio, bajo pena de ser considerado “no gente, bárbaro, inculto
e incivilizado”. Sin duda, ha sido éste hecho la principal razón de por qué
algunos buscaron ese “sentido” integrándose y dejándose asimilar por la
cultura nacional o bien refugiándose en el alcohol, para olvidarse de las penas
y de los avatares de la vida o como en el caso de la mayoría, participando en
los ritos cristianos.
Sin embargo, en la medida que se recuperan y fortalecen las prácticas
de ciertos ritos propios (gijatun, macitun, we xipantu, palin entre los más
importantes), nuestra gente es indudablemente más alegre y festiva, y es
justamente en este momento que todo lo “ajeno” entra en profunda crisis. Por
ejemplo, en algunos se trata de una crisis de la chilenidad que se expresa en
preguntas como ¿es que los mapuches somos chilenos?, ¿es que los chilenos
son mapuches?, ¿cómo asumir la chilenidad hoy en un mundo globalizado
sin dejar de ser mapuche? Este es el punto. En otros, se trata de una crisis
religiosa que se expresa en preguntas como las siguientes ¿es posible ser
cristiano y mapuche?, ¿es tan contradictorio ser mapuche y cristiano a la
vez? Todas estas preguntas exigen respuestas acorde a los tiempos y que no
puede ser un simple sí o un no, dado que el tema de fondo tiene que ver con
el sentido de la vida y con la identidad.
Esta crisis, aunque no se expresa en toda su magnitud, en su dimensión
socio política ha generado un movimiento de recuperación de territorios, lo
que ha provocado, de parte del régimen imperante, una fuerte reacción y
aplicación de leyes antiterroristas e incluso encarcelamiento de dirigentes12.
En cambio en el ámbito religioso, ha generado un despertar hacia lo propio y
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una mayor valoración del “ser mapuche” a partir del rito y específicamente
en el carácter festivo y liberador que estos tienen. Esto significa lo siguiente: la
participación en la celebración de los propios ritos, en cuanto se trata de un
encuentro social, cultural y religioso y en cuanto son eminentemente festivos
y liberadores, devuelven la confianza en una forma de vida más humana y
más mapuche y de esta manera “lo propio” vuelve a ser una alternativa de
vida comunitaria13, que desafía a un estilo de vida moderno, competitivo e
individualista, donde lo cristiano parece ser un elemento decorativo más y
como parte del sistema dominante. Por naturaleza estos encuentros festivos
crean un clima fraterno, fomentan lazos sociales dado que permite encontrarse
y reencontrarse con familiares y amigos. Incluso en estos encuentros surgen
nuevas parejas. Mientras que el carácter liberador se expresa en crítica social
y religiosa e incluso con una actitud de ruptura con el cristianismo.
¿Por qué? Porque reencontrarse con los propios ritos, para muchos es
como nacer de nuevo. La gente se muestra, da la cara, sale a las calles, marcha
por la Alameda en Santiago o por el centro de la ciudad en Temuco; pero se
trata también de una liberación doctrinal e ideológica que gatilla una crisis
que es necesario abordar con serenidad. En el plano religioso, la posibilidad
de alimentar el espíritu religioso propio, validando las prácticas religiosas
heredadas de los antepasados, ha obligado a un sector importante de
mapuches, a buscar respuestas válidas y convincentes, que permitan aceptar
o negar el cristianismo, en un nivel de opción personal, sin desconocer el
conflicto, la contradicción o la ambigüedad aparente, que produce el hecho
de pasar de una cultura a otra o de participar de dos o más tradiciones religiosas
simultáneamente.
Esta experiencia de liberación que se da ahora a partir de algunas
organizaciones y se manifiesta claramente en dos aspectos:
•Primero, una serie de movilizaciones sociales que apuntan a la
reconstrucción de las identidades territoriales, acompañadas de acciones
concretas de recuperación de territorios ancestrales.
•Segundo, prácticas culturales y fortalecimiento de ritos en la ciudad a
partir de experiencias religiosas comunitarias campesinas.
Lo que más llama la atención en este proceso, es que en la medida
que se han recuperado los ritos y en la medida que nuestra gente participa de
ellos, indudablemente aparece el rostro de un mapuche más alegre y festivo.
Y es en este momento donde se cuestiona el cristianismo ¿de qué y para qué
nos ha servido ser cristiano?
Se trata, a mi modo de ver, de una crisis profunda y radical, saludable
y seria, que tiene su origen en la forma cómo se ha presentado el cristianismo,
como parte de la cultura europea y siendo parte del sistema de dominación.
Esta forma vino a poner en crisis lo más propio, lo más íntimo, nuestras
convicciones religiosas, el sentido de la vida y nuestra identidad. Entonces
hoy, cuando nuestra gente vuelve a creer en sí mismo, quiere indudablemente
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afirmarse en lo propio, aquello que más conocen y que le da más seguridad y
en este sentido, se puede afirmar que la posibilidad de alimentar el espíritu
religioso propio validando las prácticas religiosas heredadas de nuestros
antepasados, obliga a buscar respuestas válidas y convincentes, que permitan
aceptar o negar el cristianismo, en un nivel de opción personal.
Por ahora, este conflicto religioso, ha dividido a los mapuches en dos
posturas, aparentemente irreconciliables.
a) Abandonar el cristianismo para ser mapuche:
Los partidarios de esta opción construyen un discurso en torno a la
idea de que es necesario “abandonar el cristianismo para ser mapuche”.
Para entender esta posición es necesario considerar algunos aspectos
como los siguientes:
1° El reencuentro con las raíces y la valoración de las propias tradiciones,
permite de alguna manera una reconciliación consigo mismo. Este hecho
es una experiencia extraordinaria, algo semejante a una conversión o a
un encuentro con Cristo en el ámbito cristiano. Paralelamente no
podemos negar que el cristianismo católico y evangélico, para los
partidarios de esta opción, es y sigue siendo no sólo parte del poder
dominante sino una seria amenaza para la identidad.
2° Otro hecho importante a considerar es que toda la historia de la
evangelización del Pueblo Mapuche, hasta nuestros días, ha estado
marcada por el paradigma de la civilización y barbarie. Es decir, los
misioneros se han presentado como la encarnación misma de la
civilización y de la cultura verdadera. Ellos enseñaban a nuestros
antepasados cómo es que se debe vivir la vida, porque estaban
convencidos de que los mapuches y los indígenas en general, vivían un
estado de barbarie que era necesario superar en nombre de su Dios. De
acuerdo a esta mentalidad el discurso misionero, implícitamente sostenía
la idea de que para ser cristiano o para ser una persona culta y civilizada,
era necesario, por todas las prohibiciones impuestas, abandonar las
tradiciones mapuches. Por lo tanto, es claro que un mapuche cristiano
en la práctica terminaba abandonando y renegando su pasado mapuche.
3° En la historia de la evangelización del pueblo mapuche, sobre todo antes
de la “Pacificación” (Ocupación), se dio un hecho que tiene que ver con
lo siguiente: cada cierto tiempo algunos líderes mapuches, en cuanto
encontraban las condiciones favorables abandonaban el cristianismo,
esto a pesar de la catequesis, donde le enseñaban a renunciar a sus
prácticas rituales. Estos una vez que volvían al campo y cuando
recuperaban su libertad y una vez ya lejos de los misioneros, dejaban
sus prácticas cristianas y retomaban sus propios ritos, a pesar de la
condena de los misioneros.
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Algo de esto está ocurriendo hoy día, sobre todo en los centros
urbanos, ya que el vivir en una gran ciudad como Santiago, da a nuestra
gente una mayor libertad en muchos aspectos. Esta mayor libertad unida
a un descubrimiento y valoración de sus raíces, es el punto de partida
para abandonar definitivamente el cristianismo, al menos a nivel de
discurso.
Este abandono es un paso extremadamente complejo y audaz a la
vez. Aunque en algunos casos esta decisión es una mezcla de resentimiento
social y político, donde el diálogo es prácticamente imposible, sin embargo,
en otros existe el sincero convencimiento de que las prácticas de los ritos
propios son suficientes para la resolución de problemas y conflictos ante
las situaciones límites de la vida, como el dolor, el sufrimiento, la enfermedad
y la muerte. Ellos sirven para cargarse de energía en situaciones de
movilización y conflictos con las autoridades chilenas. Ellos permiten
alimentar el espíritu religioso mapuche y tienen un poder revitalizador, en
el sentido de que renuevan las ganas de vivir. Con este convencimiento, de
que lo propio es verdadero, bueno y suficiente, es completamente razonable,
válida y entendible una actitud de ruptura con el cristianismo.
4° Una de las argumentaciones en contra de la Iglesia Católica, según
algunos dirigentes, es que el catolicismo históricamente ha puesto en
crisis no sólo nuestra identidad, sino que son las personas cristianas,
católicas en su mayoría, quienes se han apropiado de nuestro territorio
y siguen cometiendo injusticias en contra de nuestra gente. Situaciones
donde la palabra de la Iglesia no ha sido del todo clara. Estos hechos y
otros son suficientes para defender la tesis de que es necesario, o buscar
una nueva forma de relación con las autoridades de las Iglesias
Cristianas, o abandonar el cristianismo para ser mapuche. Por lo tanto,
para este grupo es inconcebible ser cristiano y mapuche a la vez, dado
que basta la fuerza espiritual de los propios ritos. Y la pregunta que
surge espontáneamente es, ¿y por qué no?, ¿acaso no son estos mismos
ritos que durante miles de años han dado consistencia a la vida mapuche?
b) Participar de dos o más tradiciones religiosas.
Esta segunda opción, aunque en la práctica carece de un discurso
claro y coherente tiene, sin embargo, una postura, en cierta medida más
pragmática, dado que sus miembros practican los ritos de la Iglesia Católica
o participan de algunas de las denominaciones Evangélicas14 y a la vez
participan de los ritos tradicionales de su comunidad. ¿Cómo se explica
esto? ¿Es posible?
Para entender esta postura se debe tener en cuenta lo siguiente:
primero, la religión mapuche no es sólo religión es también cultura; segundo,
tampoco existe un mecanismo de control como en el cristianismo; tercero,
el pueblo mapuche vive una situación de colonialismo sociopolítico,
cultural y religioso. Todos estos aspectos permiten y en cierta forma obligan
a tener una actitud más tolerante y en cierta forma permisiva en algunos
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aspectos de la vida. Sin embargo, el diálogo y las entrevistas muestran
también que un sector, al parecer minoritario de mapuches, que han
asumido el cristianismo y participan en alguna de las Iglesias cristianas, lo
hacen porque “Jesús les ha cambiado la vida” y estos no tienen mayor
conflicto interno en participar sea en diferentes Iglesias o en diferentes
tradiciones religiosas.
Lo positivo de esta opción religiosa es que, por un lado, se valora la
fuerza espiritual de los propios ritos y por otro lado, se valora y respeta
también la riqueza espiritual que ofrecen otras religiones, específicamente
el cristianismo católico.
Algunos líderes, partidarios de la doble militancia religiosa, sostienen
más o menos lo siguiente: el hecho de tener dos religiones, metafóricamente
hablando, es como tener dos mujeres, pero cada una debe estar en su ruka
(casa): es decir, los ritos cristianos católicos, en cuanto religión traída por los
conquistadores, es y debe ser en wigkazugun (usando el idioma español) y
los ritos mapuche evidentemente deben ser en mapucezugun (usando el
idioma mapuche). Esta solución ha dado la tranquilidad necesaria, a quienes
han optado por una práctica paralela de ambos sistemas religiosos, sobre
todo en los sectores campesinos. Sin embargo, el conflicto ha vuelto a resurgir
cuando un sector de misioneros, grupo minoritario dentro de la Iglesia
Católica, ha puesto en jaque en cierta forma este principio válido hasta ahora
en el ámbito mapuche, contraponiendo un nuevo modelo evangelizador en
que el ideal o la meta de la evangelización, es que un pueblo convertido o una
población perteneciente a una determinada cultura, al aceptar el cristianismo,
debe y puede celebrar su fe con los elementos propios de su cultura. Con esta
propuesta evangelizadora se cuestiona radicalmente el principio religioso
mapuche de que lo wigka es en wigkazugun (castellano) y lo mapuche es en
mapucezugun (idioma mapuche). Para este grupo de misioneros existe un
convencimiento de que este modelo evangelizador es lo más auténticamente
cristiano y evangélico, pero para un sector de mapuches, esto no es tan fácil
de aceptar, dado que existe una larga historia de intolerancia católica frente a
las prácticas rituales mapuche. A la vez existe un cierto temor de que la
aceptación de dicha propuesta evangelizadora signifique un duro golpe a
algunos elementos culturales y simbólicos que tienen que ver con la identidad
mapuche.
A Manera de Síntesis
En relación a la primera parte, recalcaría las siguientes ideas:
definitivamente la religión es un elemento importante para toda sociedad
y en segundo lugar, a las religiones indígenas se les debe dar un status de
religión oficial y no mera expresión de religiosidad popular, de esta forma
el reconocimiento de la diversidad religiosa existente en toda sociedad,
permitirá un diálogo verdadero y una convivencia respetuosa entre sus
miembros.
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De lo que he dicho en la segunda parte sobre “Cultura e identidad
mapuche” destacaría lo siguiente: la cultura mapuche es una cultura religiosa
que tiene como fundamento la tierra y en este sentido la identidad mapuche
(az mapuce) es una identidad religiosa que se transmite a través de los diversos
ritos. Dichos ritos, en las dos últimas décadas, han generado un movimiento
de recuperación y fortalecimiento de la identidad poniendo en crisis y buscando
respuestas nuevas a elementos propios de la chilenidad y a la posibilidad de
ser cristiano y mapuche a la vez o definitivamente abandonar el cristianismo
para ser mapuche. En esta última parte considero que faltan nuevos estudios
que profundicen esta relación de dos universos religiosos distintos y opuestos,
teniendo en cuenta que en el pensamiento indígena en general, los opuestos
finalmente son complementarios.
Notas
1
Magister en Ciencias Sociales. Profesor de Filosofía del Complejo Educacional Claudio
Arrau Leon (Chile). Coinvestigador del Centro de Estudio de la Realidad Contemporánea
(CERC - UAHC) perteneciente a la Universidad Academia de Humanismo Cristiano. Email: [email protected]
2
El Censo de población y vivienda del año 1992 preguntaba por auto identificación. La
pregunta específica era ¿con cuál de estos grupos étnicos te identificas?
3
Con los alumnos/as del 4º Medio del Complejo Educacional Claudio Arrau León, ciudad
de Carahue, trabajamos el mito mapuche conocido como “Xen xen y kai kai filu” y
posteriormente se les pidió a los alumnos/as hacer un ensayo teniendo como tema “El
valor de la tierra en la cultura mapuche”.
4
Este rito al final también termina con una comida abundante.
5
Hay también otros ritos como el machitun (rito de sanación), el we xipantu (Celebración
de un Nuevo Ciclo en la naturaleza – Año Nuevo Mapuche), konchotun (rito de la
amistad), lakutun (rito para poner nombre), el palin solemne (deporte), etc.
6
Estos temas se abordan en profundidad en el libro “La fuerza de la religión de la tierra”,
publicado por la Editorial Universidad Católica Raúl Silva Henríquez, Santiago, 2007.
7
Las informaciones recopiladas sobre esta área religiosa fueron escasas en Santiago, por
lo que me remito a los estudios realizados por el antropólogo Rolf Foester en su libro:
Religiosidad mapuche huilliche.
8
El gijatuwe es un espacio de tierra de forma circular destinado para la celebración del
gijatun. Es el espacio sagrado, lugar del rito y del sacrificio.
9
La presencia de no mapuches en los ritos es siempre selectiva, quienes participan son
siempre amigos o personas que dan un status social.
10
En otras partes del mundo la Iglesia ha llegado de manera más humilde e incluso ha sido
perseguida. Hay lugares donde hasta el día de hoy la Iglesia no puede darse a conocer
públicamente.
11
Machi es lo que comúnmente los antropólogos llaman “chaman”.
12
Bajo el gobierno de la presidenta Bachelet, como en ningún otro régimen democrático, se
ha violentado de manera brutal a un sector de organizaciones mapuches con sus dirigentes,
desconociendo completamente los Derechos Humanos.
13
Esto se percibe más claramente en las organizaciones mapuches de Santiago que en las
comunidades campesinas.
14
La práctica de dos religiones se da más bien en el ámbito de los mapuches católicos. El
sector evangélico es más complejo dado que aún existen Iglesias que promueven un
discurso abiertamente condenatorio hacia las prácticas religiosas mapuches.
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2
DIVERSIDAD RELIGIOSA EN ARGENTINA:
CULTURAS EN DIÁSPORA Y MESTIZAJE
Dina V. Picotti1
El tema que nos convoca en estas Jornadas me parece por demás
importante y auspicioso en una época en que impera un orden global, que
por una parte pareciera poder extender universalmente los grandes logros
instrumentales de la civilización tecno-científica en su estadio
bioinformático, pero por otra convive con la mayor exclusión y con un
fuerte desconocimiento del sentido habitacional del hombre y de otras
formas de vida o culturas, reduciendo la totalidad de la experiencia histórica
a una especie de pensamiento único o bien a una paralogia que registra la
diversidad pero no la asume para construir con ella.
Importante porque al hablar de religiosidad remite a una dimensión
esencial del habitar, que caracteriza a lo humano, a la vez que implica al
imaginario u horizonte simbólico, que reúne la singular experiencia desde
la que los pueblos o comunidades históricas piensan, hablan, actúan; y
porque al referirse a la diversidad religiosa de las culturas en diáspora y
mestizaje, alude a la diversidad y recreación de esas experiencias en
comunidades que por ser vivas están en movimiento, se interrelacionan y
recrean.
Me referiré brevemente a cada uno de estos aspectos, para luego
detenerme en el tema que se me ha asignado, con respecto a la situación
argentina.
La religiosidad
Decía que lo religioso constituye una dimensión esencial del
habitar, que a su vez caracteriza a lo humano. Las más antiguas tradiciones
ubican al hombre en una cuádruple referencia, que hasta hoy permanece
encubiertamente registrada y reducida a los cuatro puntos cardinales
geográficos. Pero según ellas el hombre es tal en tanto acoge la novedad
del cielo, cuida la madre tierra, acompaña a los mortales y venera a lo
sagrado.
En el ámbito de la cultura occidental, hoy globalizada, el poeta
Hölderlin hablaba ya en el s. 19, desde el romanticismo alemán, de una
época de dioses huidos y consideraba tarea de la poesía, que nombra lo
sagrado, seguir sus huellas, preguntándose si se nos otorgaría un nuevo
advenimiento 2 . A su vez Heidegger, representativo pensador
contemporáneo, señala la esencia de la técnica, que caracterizaría a nuestra
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LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.)
época, como un determinado destino de desocultación de ser en el modo
del Gestell 3, palabra con la que quiere significar el hecho de haberse
convertido todo lo que es en meras existencias solicitables, lo que significa
un riesgo, por otra parte ya corrido, en doble sentido, en tanto amenaza la
relación del hombre consigo mismo y con todo lo que es, y en calidad de
máximo riesgo cierra la posibilidad de otro tipo de desocultamiento de ser
o verdad. Aunque dialogando con Hölderlin apela también a aquellas
palabras “mas donde hay peligro, crece también lo salvador”. Porque aún
tratándose de un máximo peligro, este envío, como todo otro, es aún un
otorgamiento y pleno cuando debe crecer lo salvador; todo destino de un
descubrir acaece desde el otorgar y como tal aporta al hombre esa
participación en el evento del descubrimiento que éste requiere, siendo en
tanto así empleado transferido –vereignet- al evento de la verdad. De este
modo, lo otorgante, que envía de una manera u otra a la desocultación, es
como tal lo salvador, pues deja al hombre mirar e ingresar a la más elevada
dignidad de su esencia, que consiste en custodiar la inocultación y con ella
antes la ocultación de toda entidad sobre esta tierra. Justamente en el Gestell,
que amenaza seguir arrastrando al hombre al solicitar, como la supuesta
única manera del descubrir, y así lo empuja al peligro del abandono de su
libre esencia, precisamente en este extremo peligro aparece el más íntimo,
indestructible pertenecer a lo otorgante, supuesto que por nuestra parte
prestemos atención a la esencia de la técnica, porque mientras la
representemos sólo como instrumento quedaremos prendidos a la voluntad
de dominarla y pasaremos de largo por su esencia.
También Hölderlin había dicho “[...] poéticamente habita el
hombre sobre esta tierra”4. Lo poético lleva lo verdadero al brillo de lo que
Platón en el Fedro llama to`e kfane’staton, lo que brilla del modo más puro.
Lo poético esencia todo arte, todo descubrir de lo esenciante en lo bello.
Heidegger se pregunta si serán las bellas artes llamadas al descubrimiento
poético, para que cuiden propiamente el crecimiento de lo salvador,
despierten e instituyan nuevamente mirada y confianza, y afirma que nadie
puede saber si al arte le será otorgada esta máxima posibilidad de su esencia
en medio del extremo peligro, aunque podemos asombrarnos ante la otra
posibilidad, de que por doquier lo frenético de la técnica se organice hasta
el punto de que un día a través de todo lo técnico se esencie en el evento de
la verdad. La meditación y la decisiva confrontación con ella tiene que
acontecer en un ámbito como el artístico, que por una parte esté
emparentado con la esencia de la técnica y por otra sea, sin embargo,
fundamentalmente diferente, aunque sólo cuando la meditación por su
parte no se cierre a la constelación de la verdad, por la cual preguntamos.
Y considera que tarea del pensar de nuestros tiempos de
consumación metafísica e indigencia por la pérdida de ser y sentido es el
viraje hacia otro comienzo, en el ámbito originario y abismoso del ser como
acaecer, lo que exige una profunda transformación del pensar y otras
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CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS
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actitudes; tal camino es abierto por quienes llaman ‘los futuros’, porque
siguen el paso del último dios que hace señas5. Lo ‘ultimo’ se identifica
como el más largo precurso y por lo tanto es ya el más profundo comienzo;
sustrayéndose a todo cálculo no se trata de cese sino de un espacio-tiempo
de decisión con respecto a la inauguración de todo otro ámbito. Por ello,
situándose en éste, la expresión ‘último dios’ no ha de ser considerada
degradación y blasfemia, sino por el contrario ella destaca la singularidad
de la esencia divina como una dimensión de ser, diferenciándose de la
determinación metafísica como sumo ente, sólo en cuyo nivel se juegan los
ateísmos y teísmos de toda especie. De este modo, el último dios no es el fin
sino el otro comienzo de nuestra historia -en el sentido originario de
‘Geschichte’ o historia del ser como acaecer-, de inconmensurables
posibilidades, por lo cual no puede fenecer sino ha de ser llevada a la
consumación de esta etapa y ser creadas en diálogo localizador con ella
las transfiguraciones de sus posiciones esenciales fundamentales hacia la
disposición y el tránsito al otro comienzo. El último dios tiene que ver con
el rehúso, que contrariamente a lo que se puede suponer desde el pensar
vigente, equivale a plenitud de otorgamiento, es lo venidero y se relaciona
con la esencia originaria de la verdad del ser, que deviene extrañamiento,
serenidad del paso del último dios; rehúso que funda el origen del estilo
verdadero en la retención ante la verdad del ser en su proceso de ocultadesocultación.
El último dios se esencia en la ‘seña’ de la acometida y ausencia
de advenimiento y huida de los dioses que han sido y de su oculta
transformación. Tales señas, como evento de ser, colocan al ente en el
extremo abandono del ser e irradian al mismo tiempo la verdad de éste
como su más íntimo brillo, encontrándose de esta nueva forma tierra y
mundo en la más simple contienda. En tal esenciarse de la seña el mismo
ser llega a madurez, es decir, dispuesto a tornarse un fruto y una donación,
y aquí se da lo último, el fin esencial exigido desde el comienzo y no
aportado, la más íntima finitud; se encuentra asimismo la más oculta
esencia del no, como todavía–no y no-más, lo noedor en el ser, en diferentes
figuras de su verdad, lo que no puede ser ponderado por la lógica metafísica
a través de la mera negación del ente entendido como mera presencia.
Pero este ámbito es sólo ingresable gracias a la preparación de
un largo presentimiento del último dios. Los futuros tan sólo son preparados
a través de aquéllos que encuentran, miden y construyen el camino de
retorno desde el experimentado abandono del ser. Sin el sacrificio de estos
retornantes, verdaderos precursores de los futuros y completamente
diferentes de los sólo reactivos -míopemente sujetos a lo vigente, sin que
les sea manifiesto lo sido en su expandirse hacia lo venidero, ni lo venidero
en su clamor a lo sido-, no se da posibilidad alguna al mencionado hacer
señas del último dios. Para su disposición, afirma Heidegger sin ambajes,
son pueblos y estados demasiado pequeños, demasiado arrancados ya a
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LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.)
todo crecimiento y sólo librados a la maquinación; el dios no aparece en
visión personal o masiva sino en el espacio abismoso del ser mismo; ni
tampoco los cultos e iglesias vigentes y cosas semejantes pueden volverse
preparación esencial del choque entre dios y el hombre en medio del ser,
para lo que es necesario otro comienzo; pocos saben que el dios aguarda la
fundación de la verdad del ser y el salto del hombre de animal rationale al
ser-ahí –Dasein-; en lugar de ello parece que se tuviera que esperar al dios,
y tal vez esto sea la forma más capciosa de ateísmo e impotencia para
experimentar ese sobrevenir del ser.
Este planteo, que se ubica en nuestra época de ‘acabamiento
de la metafísica’ en tanto máximo juego de sus posibilidades, movido por
la indigencia de la pérdida de ser y sentido, tiene entre otras cosas el mérito,
ante el orden vigente en la civilización planetaria, de reubicar lo divino,
sagrado, y con ello lo humano y los demás entes en el cuarteto del ser
como acaecer, como una dimensión esencial, en la contienda de cielo, tierra,
mortales y divinos en que se da la verdad del ser en su juego de ocultadesocultación, donación y sustracción, y la habitación de un mundo por
parte del hombre reuniendo a esas cuatro dimensiones a través de la acogida
de la apertura del cielo, el salvar a la tierra, acompañar a los mortales y
venerar la trascendencia de lo sagrado. Como lo testimonian antiguas
culturas y también a menudo la religiosidad de la gente, lo sagrado
esencialmente se sustrae pero también se da de diversas maneras a lo largo
de la historia; ahora parece convocarnos, desde la resonancia del ser en la
indigencia del acabamiento metafísico, en la figura del último dios, en el
camino hacia el otro comienzo, como exigencia y condición de lo humano
mismo. Si bien ello implica el quiebre, la sustracción, la extraña otredad de
lo abisal, no está ausente del sentimiento religioso que a pesar de todo
pervive en nuestra época y más bien desafía a las religiones a reunirse
para la tarea esencial de recuperar la dimensión de lo sagrado en todo lo
que es.
La religiosidad latinoamericana
El fenómeno religioso en América Latina acompaña a su propia
historia. El proceso de conquista y civilización incluyó también la
evangelización, que significó no sólo la imposición de una religión sino el
proceso más refinado de colonización, que alcanza al propio imaginario
de los pueblos. Las misiones constituyen la otra cara de la expansión
colonizadora, con la que comparte un mismo proyecto; la conquista
espiritual fue tan básica como la militar y la civil y sirvió durante siglos
para dar a éstas los argumentos teológicos a través de la teoría salvacionista
de la guerra justa e integrar el indígena al lugar subalterno que le tenía
asignado tal proyecto. Sin embargo, los pueblos originarios resisten, en la
forma ajena sobreviven las propias creencias.
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Algo semejante ocurrió con las culturas negras, que asumiendo
en su panteón a las deidades indígenas como gesto de arraigo, también
transmitieron a las entidades religiosas cristianas vigentes el espíritu y
caracteres de las formas propias. En el sistema de interrelaciones dinámicas
en que se dan las culturas africanas, la religión constituye el mayor
exponente, impregnando y marcando todas las actividades, aún las más
profanas. En la diáspora fue el factor fundamental, que permitió el
reagrupamiento de los esclavos y sus descendientes, la transmisión de
valores esenciales, dentro de un proceso de continua adaptación,
fagocitación de elementos foráneos y reinterpretación. A su vez, a través
de la más variada gama de manifestaciones, generalmente desconocidas y
malinterpretadas por el blanco a causa de su extrañeza y carácter iniciático,
han influido la sociedad global, permeando sobre todo la religiosidad
popular, probablemente más con actitudes que con elementos precisos. El
vudú haitiano y la santería cubana, así como algunos ritos afrobrasileños
y su expansión por el sur del continente, constituyen exponentes notorios
de esta situación. Un análisis de los mismos permite destacar características
fundamentales de la concepción religiosa negroafricana, así como de su
permanencia y recreación entre nosotros.
En las últimas décadas del siglo XX no sólo se produjeron
cambios y transformaciones sociales, políticas, económicas y culturales,
sino profundas crisis que atravesaron a las sociedades latinoamericanas,
pero en particular a los sectores populares y condicionaron y replantearon
de diversas maneras la trama social, cultural y religiosa. Dos procesos
fundamentales vinculados con dichas transformaciones, como registran
algunos sociólogos6, son los de globalización y secularización. Por una parte
la incidencia del primero y las variadas articulaciones entre lo global y lo
local; en el aspecto socio cultural, tanto las transformaciones científicotecnológicas y la consiguiente aceleración de los flujos culturales, como la
existencia de fuertes descentramientos en un contexto de crisis de los
sistemas de significación y de los procesos de construcción de identidades,
su incidencia en procesos de redefinición de la tradición y de globalización
de lo religioso, presentes en el imaginario colectivo, así como los nuevos
lenguajes que se despliegan en torno a la relevancia de la imagen y lo
audiovisual en general; el sentimiento de la falta de horizontes demandó
replanteos importantes en la trama de sentidos de la sociedad, tanto a
nivel de los sistemas simbólicos en general como de las religiones en
particular. Con respecto al así llamado proceso de secularización que
emerge cuando se analiza el fenómeno religioso en la modernidad, se
produce una reconfiguración en cuyo marco es necesario analizar la
singularidad de los cambios tanto institucionales como con referencia a la
experiencia de los sujetos; estamos ante una clara desregulación de las
creencias y un pluralismo instalado en la sociedad y convertido en uno de
los elementos fundamentales de cambio; se multiplica la oferta de bienes
de salvación, se complejiza la puja entre las distintas instituciones religiosas
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en el ámbito territorial, a su vez se incrementa la presencia de una
diversidad de modalidades de creencias no sujetas al control de las
instituciones; un pluralismo en el que emerge un proceso creciente de
individuación y autonomización y se manifiestan las opciones que llevan
a cabo los propios creyentes de sectores populares, otorgando sentido a
sus necesidades y demandas; aparecen instancias de consolidación, de
reestructuración, nuevas formas de vinculación con lo religioso en las que
se afirman relaciones directas con lo considerado sagrado o trascendente,
replanteando de hecho la existencia de mediadores privilegiados y
reconociendo una diversidad importante de mediaciones posibles.
Se dan ciertos mestizajes religiosos que no se traducen en una
mera superposición de símbolos religiosos ni en una dilución de creencias,
sino suponen la capacidad de síntesis vital, de convergencias y replanteos,
que lejos de excluir, integran y resignifican, respondiendo a las necesidades
de los individuos en su autonomía y capacidad de elección, en medio de
un movimiento de subjetivización y de crisis de las pertenencias
institucionales que caracterizan al actual proceso de pérdida de influencia
de las instituciones religiosas, que no impide la proliferación de diferentes
creencias, situación que afecta de modo directo a las religiones
tradicionales7.
Un movimiento dinámico que es propio de toda religión en su
dimensión más vital, lo que implica considerarla no como una dimensión
ajena al conjunto del movimiento socio-histórico que intenta consolidar
nuevos proyectos de sociedad, por lo que como observa R.Salas Astrain8
con respecto a la religiosidad de los pueblos originarios, no se puede
considerarla exclusivamente a partir de una mera afirmación cultural de
los propios dioses, de movimientos étnicos o de Iglesias nacionales; sin
tener que disponer de respuestas en todos los órdenes de la vida social y
económica, no pueden desvincularse de la exigencia actual de comprender
las implicancias culturales del desarrollo. El predominio de visiones más
integristas en muchas religiones tradicionales, se debe en buena parte a
esta necesidad de encontrar respuestas integradas en donde los ámbitos
sociales, culturales y económicos aparecen dislocados, siendo que en las
sociedades actuales es cada vez más difícil elaborar un proceso identitario
sin que se reconozcan y asuman los núcleos culturales más densos, a saber
los que remiten a una memoria histórica y a un proyecto común, al lenguaje
y a la religión. Ello conduce también a repensar el diálogo inter-religioso;
si la cuestión ya no es cómo se vinculan la religión cristiana y las religiones
indígenas en bloque, sino cómo se entrecruzan en eco-espacios regionales
distintos y en localidades específicas, entonces se requiere pensar las
propuestas socio-culturales de los actores religiosos en el marco de la
elaboración de experiencias locales y regionales que deben asumir por cierto
el desafío de su universalización. Las diferentes formas en que se asume el
encuentro y el desencuentro entre religiones en un contexto intercultural
como el que vive el planeta hoy a finales del siglo, podría aprender mucho
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de un continente donde ya se han plasmado históricamente diferentes
estilos de convivencia entre las minorías indígenas y las sociedades
nacionales, aunque no basta sólo mostrar la riqueza de estos mestizajes
religiosos, sino que se puede asumir como parte de un proyecto ecuménico
deseable y posible para el mundo venidero, porque toda religión que busca
ser auténtica necesita abrirse, por un dinamismo que le es propio, a las
nuevas perspectivas que aporta el contacto histórico con la cultura y la
religión de los otros pueblos.
Las religiones de los pueblos originarios son conjuntos
simbólicos y rituales que no se reducen nunca a formas completamente
delimitadas, puesto que están permanentemente azuzados por los
acontecimientos y peripecias socio-económicas y políticas que viven las
comunidades, en búsqueda de nuevas formas de asegurar su sobrevivencia
material y social como memoria pero también como destino. Sin embargo,
el vínculo histórico que han tenido con las religiones cristianas no ha sido
siempre el más positivo, ya que en el esfuerzo misionero se han
implementado, a veces, prácticas que desconocían los derechos religiosos
y la conciencia religiosa de los indígenas, aunque también en las últimas
décadas han surgido otras formas de relaciones inter-culturales más
fraternas y más centradas en el logro de proyectos comunes de desarrollo.
La cuestión decisiva que hoy se plantea es cómo potenciar estos vínculos a
fin de evitar los integrismos intransigentes.
Es evidente la importancia teórica y práctica de articular espacios
interculturales de encuentro y de diálogo entre las diversas religiones en
territorios multi-étnicos, valorizando los particulares y diversos
acercamientos a lo sagrado, porque sabemos que las dificultades no son
pocas en regiones indígenas donde se vive a veces una gran polarización
producto de la pobreza, la exclusión y el fanatismo de los colonos y de las
empresas multinacionales, y donde también existen iglesias y movimientos
que buscan entre sus objetivos directos el desarraigo cultural de los nativos.
Con respecto al cristianismo, este fin de siglo encuentra a
América Latina viviendo un fenómeno religioso inusitado, según los
expertos. Junto a Africa, el Caribe y, en menor medida, Asia, se ha
convertido en epicentro. El 70% de los cristianos del mundo habitan en
esta zona y algunas proyecciones indican que para los comienzos del nuevo
milenio sólo un 25% de ellos vivirá en la parte que se extiende de Estados
Unidos a Rusia, el “antiguo” mundo cristiano. Pero no sólo ha crecido
numéricamente sino que también aumentó su diversidad. De una Iglesia
Católica Romana hegemónica hasta hace pocos lustros, nos encontramos
ahora ante iglesias y movimientos evangélicos independientes que alcanzan
al 20% de la población en varios países y comienzan a tener un
protagonismo público activo, ya sea porque sus miembros incursionan sin
timidez en la arena política o porque conocen bien y utilizan sin reservas
los medios masivos de comunicación.
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También existe un despertar de la religiosidad indígena, en sus
diversas expresiones, y un reconocimiento de los cultos afroamericanos que,
reprimidos durante varios siglos, salen a la luz con una fuerza que gana
adeptos en una población deseosa de reencontrar sus raíces y reconstruir
su identidad como pueblos dignos de una cultura y una espiritualidad
propias. Y entre los no-cristianos crece la certeza de que es necesario
construir nuevas relaciones sociales, en justicia y en procura de la paz,
que derribe las barreras de la exclusión y plantee la necesidad de un
macroecumenismo basado en la solidaridad cósmica en defensa de la vida.
Cuando la Iglesia Católica con los aires renovadores del Concilio
Vaticano II emprende una nueva evangelización, y en el proceso que
culminó con la recordación de los 500 años de la conquista de América,
comienza a darse un diálogo de reconocimiento de las propias identidades,
surge una nueva concepción del ecumenismo que se había aplicado sólo al
diálogo entre algunos sectores cristianos, extendiéndose a las nuevas
expresiones cristianas que crecen con rapidez, a la antigua religiosidad
existente en estas tierras, a la que cruzó el océano con los esclavos africanos
y hoy se muestra en sí misma, y a los sectores no-cristianos solidarios con
la vida. Tanto el Consejo Latinoamericano de Iglesias (CLAI), que reúne a
140 iglesias protestantes, como los líderes católicos y protestantes,
incluyendo obispos, teólogos y autoridades de iglesias evangélicas, que
participaron de la Asamblea del Pueblo de Dios, se unieron a la protesta
generalizada que impidió una celebración “victoriosa” del así llamado
descubrimiento de América. En 1992 la Asamblea del Pueblo de Dios
celebró su primera reunión en Quito, Ecuador, mientras que el CLAI
auspició el Programa de los 500 años y celebró la consulta “Martirio y
Esperanza”, en Cochabamba, Bolivia. Los documentos que se dieron a
conocer en estas reuniones y sus declaraciones finales abrieron una
instancia importante de acercamiento entre cristianos y religiosos indígenas,
que va más allá de la solidaridad en la búsqueda de justicia, no
discriminación, respeto a las culturas nativas y llega a marcar el comienzo
de un diálogo hasta ahora vedado. Este tipo de diálogo que impulsa el
macroecumenismo recién comienza a implementarse en nuestro continente
y requiere de un seguimiento eficaz que sepa tener una clara visión de las
cuestiones culturales y de las cosmovisiones específicamente religiosas
involucradas en este intento. Es preciso también que anime una relación
que durante varios años ha pasado por una suerte de invierno; a la
controversia provocada por las críticas del Vaticano a la teología de la
liberación, y por la condena a las experiencias de las comunidades eclesiales
de base y de la iglesia popular, sobre todo en Centroamérica, hay que
agregar los embates católicos a las nuevas iglesias evangélicas misioneras
e independientes que han surgido en el continente en las últimas décadas.
Muchas de ellas han sido calificadas peyorativamente como sectas por el
propio CELAM, provocando irritación en el ámbito protestante y un
enfriamiento progresivo en las relaciones recíprocas.
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En este sentido es importante tener en cuenta los significativos
logros alcanzados por la teología latinoamericana de la liberación 9,
entendiendo por ésta una forma de teología que bajo el impulso decisivo
de Medellín en 1968 y Puebla 1979, es decir con la dinámica de renovación
de la Iglesia Latinoamericana después del Concilio Vaticano II, empieza a
desarrollar una reflexión contextualizada, que irá condensando un estilo
propio, aunque diverso en opciones teóricas y prácticas, logrando perfilar
un modelo de racionalidad con una claridad epistemológica y metodológica
que sobrepasa a la alcanzada por otras disciplinas en el continente,
reflejando un proceso interno de autocorrección de la razón teológica a
partir de la apertura interdisciplinar e intercultural, como quehacer
científico enraizado en la realidad del continente, superando la imitación
y repetición de la lógica occidental y manifestando una creatividad que ha
alcanzado resonancia internacional. En este proceso de autotransformación
se pueden distinguir entre otros dos momentos esenciales, una teología a
partir de las culturas indias y otra a partir de las culturas afroamericanas;
ambas marcan un giro radical hacia la pluralidad cultural y teórica,
hundiendo sus raíces en un suelo intercultural e interreligioso, fruto de un
largo proceso de reajuste y de revisión autocrítica, siguiendo el programa
de ‘nueva evangelización’ que exige se parta de los propios valores y
culturas de los pueblos.
La teología india se entiende como traducción de las
experiencias religiosas indias en su especificidad y variedad, rechazando
someterse a la rectoría de otras teologías, como la cristiana, sabiéndose
una determinada teología y, por lo tanto, con conciencia de la necesidad
de comunicarse con otras, de intercambiar experiencias religiosas. Su
respectiva traducción teológica no se agota en el horizonte lógico-racional
y abarca los universos transmitidos en el mito, el rito, la simbología, la
metafórica, entendiéndose como proceso de acompañamiento reflexivo de
la vida del pueblo o comunidad a la luz de sus tradiciones; por su sujeto y
objeto se considera praxis de liberación proyectada los mismos pueblos
indígenas sobre la base de sus valores y tradiciones, liberación conjunta
del hombre y la tierra, de la vida.
La teología afroamericana es la que patentiza con mayor
claridad la tragedia de la guerra teológica de exterminio, se instala
verdaderamente en una alteridad negada pero asumida como fuente
creadora propia; su discurso reflexivo se articula en y desde la praxis de
resistencia social y religiosa de los pueblos afroamericanos, un discurso
liberador de la palabra negra de Dios y sobre Dios, siendo su referencia
última un dios único, no determinable en el discurso porque trasciende
todo sistema; se configura como una teología de espiritualización o
reflexión, que sobre la base de una vivencia espiritual-sacral del cosmos,
apunta a iluminar el mundo del ser humano como una región en la que
combaten fuerzas espirituales y en la que por consiguiente no todo depende
de nosotros sino de la acción de los espíritus; el espacio y el tiempo son
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portadores de un sentido especial, vivencia de una peculiar unión entre la
vida humana y la religión, que extiende el espacio religioso a todo lo vital
y viceversa, eleva el cuerpo humano a espacio teológico en sentido estricto,
y por ello no se expresa sólo como discurso de la inteligencia sino también
de la emotividad, afectividad y sensibilidad, vehiculizado por la danza, el
canto, la celebración. Se trata de una teología de la salud y de la liberación
de la vida humana en esta tierra, de una teología comunitaria tanto con
respecto al sujeto como al objeto, que recure eminentemente a tradiciones
orales, siendo su material básico todavía transmitido por vía oral.
La diversidad religiosa en Argentina
La situación argentina ha de ser comprendida dentro de la
situación latinoamericana, la patria grande, aunque con algunas
características propias. En la sociedad argentina se muestra una amplísima
mayoría de creyentes, más de un 91% dicen creer en Dios10. Desentrañar
el significado de esta creencia nos lleva a un imaginario colectivo en el que
está presente una marcada y a la vez variada apreciación acerca de lo
sobrenatural o sagrado. Focalizando la mirada en los sectores populares
nos encontramos con una diversidad de manifestaciones que expresan la
fecundidad de lo religioso y la complejidad del pluralismo existente. Un
buen modo de acercamiento y comprensión lo ofrecen algunas
manifestaciones principales de la religiosidad popular, en tanto tienen que
ver con el imaginario de nuestra experiencia histórico cultural mestiza
hasta el momento actual en los términos descriptos, y con una inteligibilidad
y racionalidad que se van construyendo y que bien podemos calificar de
interculturales11.
Se trata de creencias y prácticas religiosas vinculadas a lo
trascendente, sobrenatural, sagrado, relacionadas con la existencia de seres
considerados divinos, fuerzas a las que se atribuyen poderes sobrenaturales,
personas santificadas constituidas después de su muerte en mediadores
privilegiados ante la divinidad, ritos que establecen una diversidad de
prácticas sociales y simbólicas, sobre todo creencias y prácticas relacionadas
con una singular apreciación de lo que se denomina sagrado, que está
presente en la vida de los sujetos y se manifiesta religiosamente de múltiples
maneras. Mujeres y hombres no sólo rezan, sino van a templos o capillas,
asisten a salones del reino, participan de ceremonias en lo terreiros o
concurren a santuarios en general, invocan en sus oraciones a Jesús, hacen
promesas a la Virgen, realizan peregrinaciones, prenden velas a los santos
preferidos, generan altares y devociones en una diversidad de cultos
populares, procuran agua bendita para sus múltiples quehaceres
domésticos, asumen y expresan cotidianamente apreciaciones referidas a
múltiples mediaciones simbólicas de carácter religioso presentes en el
imaginario social. Creencias religiosas que convergen en una experiencia
del creer, de desplegar una mirada sobre la vida, que sin agotarse en las
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numerosas limitaciones y dificultades cotidianas se transforma en un
recurso fundamental para encontrar sentido, y permite plantear una
apertura a pesar del cierre de alternativas, considerar posible lo aún
aparentemente imposible y mantener de alguna manera la esperanza. Tales
creencias no sólo gravitan en comportamientos y actividades en general,
sino que constituyen una parte sustantiva de su vida social, donde aparecen
tanto manifestaciones vinculadas con la tradición y la memoria colectiva,
como recomposiciones y nuevas modalidades e identidades religiosas.
Este fenómeno fue diversamente denominado e interpretado
como religiosidad de los sectores populares, religión ordinaria o popular;
sufrió los mismos cuestionamientos y descalificación experimentados por
otras expresiones culturales a causa de su pertenencia popular, siendo
considerada por los representantes de la cultura hegemónica y los
partidarios de un paradigma modernizante como una religiosidad básica,
mezcla de magia y superstición, producto residual de las valoradas como
grandes y verdaderas religiones. Sin embargo, se trata de una religiosidad
que manifiestan y viven los sectores populares de manera profundamente
vital y persistente, constituyendo un recurso imprescindible en su vida
diaria, tanto por la fe que los sostiene en los momentos de angustia como
por la que los moviliza. Se encuentra enmarcada en las matrices culturales
de los sectores populares y en los procesos de recomposición de creencias
y prácticas que llevan a cabo cotidianamente, no sujeta a las instituciones
religiosas reconocidas y consolidadas.
La religiosidad de los pueblos originarios, sea en el caso de los
pueblos guaraníes del litoral, como los pueblos andinos, los del centro y
sur del país, ha logrado sobrevivir a pesar de los procesos de colonización,
destrucción y deculturación de que fueron objeto. Impregna todos los
aspectos de la vida personal y social, conduce al desarrollo de una simbología
y una mitología fecunda en ritos y gestos considerados sagrados, y de una
forma u otra está conformando e incidiendo en el universo religioso
popular en general12.
Las religiones afroamericanas, existentes desde la época de la
colonia, también permanecieron e incidieron en la religiosidad popular y
desde mediados del s. XX se fueron expandiendo formas religiosas
afrobrasileñas. La vitalidad innovadora, la gran fuerza creativa que los
esclavos africanos mostraron en América, en una amplia distribución y
división de pueblos, es el producto final de siglos de transformación, durante
los cuales fueron agentes activos. Las creencias afroamericanas, como ya
mencioné, constituyen un sistema de valores y percepciones subyacentes,
que toma determinadas formas según las condiciones peculiares de cada
lugar, como sucede con otros aspectos de su cultura, detentando sobre
todo un profundo sentido religador, que permitió preservar un ethos a lo
largo de dramáticas luchas y de presiones hegemónicas. En el sistema de
interrelaciones dinámicas en que se dan, la religión constituye el mayor
exponente, que impregna y marca todas las actividades, aún las más
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profanas, puesto que caracteriza a su tipo de imaginario; por ello, en la
diáspora fue el factor fundamental que permitió el reagrupamiento de los
africanos y sus descendientes, la transmisión de valores esenciales, dentro
de un proceso de continua adaptación, fagocitación de elementos foráneos
y reinterpretación13. A través de la más variada gama de manifestaciones,
generalmente desconocidas o malinterpretadas por el blanco debido a su
extrañeza y carácter iniciático, han influido la sociedad global americana,
permeando sobre todo la religiosidad popular, tal vez más con actitudes
que con elementos precisos. El vudú haitiano y la santería cubana, así
como diversos ritos en Brasil, constituyen exponentes notorios de esta
situación e importancia de lo religioso. A pesar de su diferencia hay rasgos
fundamentales comunes: el culto no es referido al espíritu supremo, dios
creador, por considerárselo inefable, distante, sino a las más diversas
manifestaciones de la divinidad, fuerzas de la naturaleza o antepasados,
númenes, con sus diferentes rasgos; se suceden libaciones, ofrendas de
animales, ritmos musicales, canto y danza hasta que los iniciados son
poseídos o ‘cabalgados’ por un ‘loa’ o espíritu; la danza parece al profano
un proceso descontrolado, sin embargo cada danzante, cabalgado por un
loa diferente, sigue con espontaneidad el movimiento que le corresponde
y participa de una interacción de fuerzas. Si bien en nuestro medio el
proceso de trasculturación pudo ser más intenso que en otras zonas de
América debido al peso mayoritario de la inmigración europea, sin
embargo no dejó de ocurrir lo que F.Ortiz14 afirma para el Caribe, el hecho
de que el africano, a pesar del adoctrinamiento católico, conservó sus
propias creencias religiosas, porque ellas significaban algo nuclear de su
identidad y reinterpretó la religión impuesta como en general el fenómeno
cultural euroamericano que le tocó compartir, desde las formas de su propia
cultura. Se documentan numerosas manifestaciones religiosas de origen
africano, desde el pasado colonial hasta el presente 15. Los conventos
contaban para sus labores con las rancherías de más de un centenar de
esclavos, poseían cofradías de siervos y negros libres en cuyas ceremonias
se confundían cruces cristianas con los ‘eres’ africanos, el ritual católico
era asumido con los principios y las prácticas de la liturgia africana. Ha
sido importante la presencia de brujos y hechiceros, ‘tatas viejos’, ‘ajés’ en
nagó y ‘jenkadams’ en fon, lenguas de Nigeria y Dahomay, en una sociedad
que ya conocía la hechicería por parte de los indígenas, entre quienes
alcanzó gran relieve; algunos cobraron gran nombradía, por ej. desde toda
la ciudad de Buenos Aires se acudía a San Telmo para consultarlos,
recordándose en particular a la negra Mercedes, así como en Montevideo
a la Tía Celedonia; prácticas que no dejaron de asumir también elementos
amerindios y católicos. Entre las ceremonias más sugestivas y añosas se
registra la ‘danza del santo’, culto hierático y esotérico, en el que se daba
tanto lo mágico como lo religioso, y se celebraba antes de formular
imploraciones, ofrendas y vaticinios para la curación de algún miembro
enfermo de la comunidad, por parte del ‘tata viejo’ o ‘brujo doctor’. Una
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fervorosa devoción distinguió al santo negro Benito de Palermo, Sicilia;
asimismo se honró a San Baltasar, el rey mago africano, patrón de los
afroargentinos; en la ciudad de Corrientes, en el barrio de Cambá Cuá ’viejo negro’ en guaraní- se le homenajea con ceremonias de gran fervor,
en armoniosa síncresis con elementos católicos. Por influencia afrobrasileña
se veneró a la Virgen del Rosario, cuya cofradía estaba en la Iglesia de
Santo Domingo en Buenos Aires; hasta hoy subsiste la famosa Capilla de
los negros en Chascomús bajo la advocación de Nuestra Señora del Rosario,
fundada hace más de 150 años por el negro Alsina de Ruiz con la
colaboración de la Hermandad de los morenos, que vivía en el barrio del
Tambor; Sarmiento hizo referencia a cultos semejantes en Córdoba y
Pelegrini los representó pictóricamente. En las ceremonias católicas los
negros introducían una inconfundible marca a través de sus danzas, cantos
y música; se adueñaron de la fiesta de San Juan, de origen europeo e
introducida en América por los españoles, dando lugar a ‘La noche de
San Juan’, día de los candomberos, con algún esoterismo. Si bien los rituales
con el tiempo se fueron debilitando y diluyendo en las vías de la
trasculturación, y con mayor intensidad en nuestra zona a causa del rápido
absorberse del negro en una población cosmopolita, sin embargo no se
debe olvidar que el sistema negroafricano de pensamiento y creencias no
le impide acomodarse a nuevas situaciones y que detenta toda una tradición
en ello, procediendo como un factor activo en el mestizaje americano. Es
así como el fenómeno de expansión del Umbanda que se está verificando
desde hace algunas décadas nos lo hace repensar; como lo afirma
J.E.Gallardo16. Roger Bastide señalaba en l972 el aspecto religioso de las
migraciones afro desde Maranhâo hacia la Amazonia y desde Recife, Bahía
y Alagoas hacia San Pablo, donde ya cristalizaba el fenómeno urbano y
suburbano del Umbanda; en el contexto más amplio que abarcaría la
diáspora de la santería afrocubana, del vudú haitiano y del changó de
Trinidad, sobre regiones de U.S.A, México y el Caribe, el caso del Umbanda
pertenece a un contexto más específicamente brasileño y en el tipo de
sincretismo que reconoce aspectos espiritistas, católicos, tupí-guaraníes
sobre una base africana bantú, fon y yoruba; desde Rio Grande do Sur
ejerció influencia sobre Bolivia, Paraguay, Uruguay y Argentina, donde la
difusión se da sobre todo en la cercanías de las fronteras con estos países,
aunque la casi totalidad de los templos registrados oficialmente se
encuentren en Buenos Aires y su periferia; la fuerza de este fenómeno de
expansión no se debe al proselitismo sino a las respuestas que ofrece a las
necesidades materiales y espirituales una matriz cultural que por otra parte
ya tenía su presencia histórica. Además de los ritos litúrgicos fueron
significativos los ‘ritos mortuorios’ según las tradiciones africanas, para
las que la muerte tiene la misma trascendencia que el nacimiento y es
aceptada como un hecho que pertenece a la vida, guardándose un estrecho
parentesco y comunicación entre vivos y difuntos. La ofrenda, que
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distingue a la práctica religiosa africana, es expresión ejemplar de la
interacción de las fuerzas vitales del universo.
El catolicismo popular constituye una de las formas más
importantes de religiosidad popular, predominante en el país. Un alto
porcentaje de la población se autodefine como católica, un 76% según la
Encuesta sobre creencias y actitudes religiosas en Argentina, siendo mucho
menor el de quienes participan y concurren asiduamente a la Iglesia,
mientras una mayoría sólo lo hace en algunas oportunidades o con muy
poca frecuencia. Caracterizado por una escasa práctica sacramental, con
un vínculo con los llamados ritos estacionales o de pasaje del catolicismo,
asociados con etapas de la vida como el bautismo o el culto a los difuntos,
no sujeto a controles o regulaciones institucionales, con instancias de
crecimiento y reproducción más allá de las mismas. Directamente vinculado
en sus orígenes con el proceso de evangelización, en convergencia de la
tradición del catolicismo popular ibérico con las formas de religiosidad de
los pueblos originarios y afroamericanos, en un proceso de mestización
cultural con manifestaciones de carácter sincrético que dan lugar a diversas
formas de catolicismo popular: modalidades de origen rural, pasando por
las urbanas, hasta numerosos cruces en los que es posible encontrar desde
modalidades propias del catolicismo popular tradicional hasta las nuevas
de un catolicismo popular difuso.
Una forma de religiosidad que lejos de planteos intelectuales o
abstractos, enfatiza la relevancia de la emotividad y la denominada piedad
del corazón, se expresa tanto en una diversidad de prácticas sociales y
simbólicas en la vida cotidiana, como a través de creencias y devociones
especiales, requiriendo de mediaciones particularizadas, accesibles y
directas. Un complejo sistema de creencias, ritos, vivencias y experiencias
religiosas, que junto a los factores que caracterizan a la religiosidad popular
en general, como la preeminencia de lo sagrado, los elementos míticomágico-simbólicos y la vitalidad, hay que sumar la relevancia de la creencia
en Jesús, el culto a la Virgen, las devociones a los santos, el culto a los
difuntos, la importancia de la fiesta religiosa popular y las peregrinaciones,
las creencias y santificaciones populares, los cultos de sanación.
Perspectivas pedagógicas
En el contexto mundial globalizado de extensión de la
racionalidad filosófico-científico-técnica y de sistematización total, a la vez
que de fuerte búsqueda de alternativas en sociedades contemporáneas que
sufren el impacto de la falta de reconocimiento e inclusión de las
identidades y en general del ser y sentido de todo lo que es, lo religioso, en
tanto sentimiento de y religación a lo sagrado, una dimensión esencial de
ser de la que da elocuente testimonio la memoria de todos los pueblos, se
torna fundamental, en tanto asimismo implica sustancialmente el
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imaginario social. De allí que frente a lo que podría ser llamado una tercera
colonización, sean importantes los diálogos interreligiosos, capaces de
integrar la diversidad de configuraciones religiosas, y la tarea intercultural,
capaz de reconocer y reunir la multiplicidad de experiencias, cada una
insustituible y fecundable en el diálogo con otras, correspondientes a la
diversidad de culturas o formas de vida. Se advierte entonces la evidente
exigencia de construir una inteligibilidad y racionalidad interlógicas que
correspondan a tal experiencia, y la importancia de educar en esta actitud
que reconoce lo humano en la diversidad de conformaciones en las que se
ha venido dando, aprendiendo, discerniendo, para poder traducirlo en la
organización política, en un continente como el americano, de constitución
intercultural, y en el mundo, que también siempre lo ha sido.
Notas
1
Doctora en Filosofía de la Universidad de Munich. Profesora de pregrado y posgrado,
como profesora invitada en Universidades argentinas y europeas.Traductora de Martín
Heidegger a lengua castellana. Membro fundadora da ASAFTI. Lidera yunto con Raúl
Fornet-Betancourt, el proyecto de Filosofía Intercultural. E-mail: [email protected];
2
Hölderlin, “Germanien”, p.333 y “Brot und Wein”, p.294, en Sämtliche Weke, p.333, Insel
Verlag, Frankfurt, 1961
3
M. Heidegger “Die Frage nach der Technik”, en Vorträge und Aufsätze I, Neske, Tübingen,
1967. El sentido común de la palabra Gestell equivale a andamiaje, armazón, estructura,
pero recibe aquí el especial de nombrar lo reuniente de ese poner –stellen-, que exige al
hombre descubrir lo real en el modo del solicitar como existencias, manera del descubrir
que reina en la esencia de la técnica moderna sin ser algo técnico, mientras a lo técnico
pertenece todo tipo de armazón, montaje.
4
Hölderlin, “In lieblicher Bläue…”, en Sämtliche Werke, op.cit., p.481.
5
M. Heidegger, Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), GA t.65, V.Klostermann,
Frankfurt am Main, 1989, especialmente VII. Der letzte Gott.
6
A.Frigerio compil. Ciencias sociales y religión en el Cono Sur, Centro Editor de América
Latina, Buenos Aires, 1993.
7
A. R. Ameigeiras, Religiosidad popular- Creencias religiosas populares en la sociedad argentina,
Biblioteca Nacional/UNGS, Buenos Aires, 2008.
8
R. Salas Astrain, “Catolicismo y Religiones Indígenas en el marco de la modernización en
América Latina”, en VIII Jornadas sobre Alternativas Religiosas na América Latina, San Pablo,
22-25 de septiembre de 1998.
9
Como observa R.Fornet Betancourt, “La teología latinoamericana: una pista para el
trabajo interdisciplinar en el programa de una filosofía íberoamericana intercultural”,
en Transformación intercultural de la filosofía, II,3, Desclée de Brouwer, Bilbao, 2001
10
F.Mallimaci dir., Primera encuesta sobre creencias y actitudes religiosas en Argentina, Ceil
Piette/Conict, UBA/UNSE/UNR;UNC, 2008.
11
A.R.Ameigeiras, Religiosidad popular- Creencias religiosas populares en la sociedad argentina, op.cit.
12
C.Martínez Sarasola, Nuestros paisanos los indios, Emecé, Buenos Aires, 1992. L. Golluscio,
El pueblo Mapuche: poéticas de pertenencia y devenir, Biblos, Buenos Aires, 2006.
13
J.E.y Descoredes M.Dos Santos, Religión y cultura negra, en M.Moreno Fraginals
compil.,”Africa en América Latina”,op.cit.
14
F.Ortiz, Los bailes y el teatro de los negros en Cuba, LaHabana l951.
15
Entre otros, N.Ortiz Oderigo, Aspectos de la cultura africana en el Río de La Plata, op.cit. J.E.Gallardo,
Presencia africana en la cultura de América latina, F.G.Cambeiro, Buenos Aires l986.
16
Op.cit.
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3
TERCERA RELIGIÓN:
LENGUAJE RELIGIOSO DEL PUEBLO DEL PARAGUAY
Bartomeu Meliá, s.j.1
Su hablar no es más que un agregado de solecismos y barbarismos, mezclando
español con guaraní y guaraní con español; españolizan el guaraní y
guaranizando el español, lo mismo que el vizcaíno cerrado, cuando aprende el
español, o como un muchacho gramático de menores, que quiere hablar latín.
Así hablan los españoles esta lengua en toda la jurisdicción de las Corrientes y
Paraguay: por lo cual ni se saben explicar con los indios, ni los indios los
entienden bien, ni ellos a los indios. (AHN, Jesuitas. Leg. 120j. 82. p.45).
Si la primera conquista es la de la tierra, en cuanto descubierta,
explorada, invadida o privatizada y la útima es la conquista de la lengua,
negada, sustituida o transformada, es en la religión donde se dan las
sustituciones y transformaciones simbólicas más profundas. El paso de
una religión a otra deja huellas. Cambios lingüísticos y cambios religiosos
tienen mucho que ver entre sí.
Si hablamos de tercera religión, es porque se dan en América, y
para nuestro propósito en Paraguay, terceras lenguas.
Todo el vulgo, aun las mujeres de rango, niños y niñas, hablan el guaraní
como su lengua natal, aunque los más hablen bastante bien el español. A
decir verdad, mezclan ambas lenguas y no entienden bien ninguna...Así nació
una tercera, o sea la que usan hoy día. (DOBRIZHOFFER, 1967, p. 149-150).
La producción de un tertium quid, es uno de los rasgos más
característicos de la colonización, en un largo proceso definido como un
ya no es y un todavía no es, tan propio de las ideologías evolucionistas. A
esta cosa tercera se le ha llamado muy ordinariamente, mestizaje y
sincretismo. No es del caso discutir la evolución sentimental que ha habido
respecto a estos conceptos. De todos modos prefiero acudir a la figura de
la tercera lengua para hablar de la religión colonial de los indígenas
cristianos y del pueblo paraguayo.
Reducir La Lengua
Toda lengua se desarrolla en tres niveles fundamentales: el de la
fonología, el de la morfología, y el del léxico. Hay un cuarto nivel, más
complejo, en el que juegan otros muchos factores extralingüísticos, que es
el del discurso.
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Pero lo propio de cualquier lengua es ser sistema y, cuando se
encuentra con otra lengua, lo que estará en juego es el careo de sistemas,
que se resolverá como guerra a muerte o como diálogo; es decir, como
supresión de una de las lenguas, como bilingüismo, o como surgimiento
de una tercera lengua.
El contacto de las lenguas se inicia generalmente como un juicio
mutuo, una toma de conciencia de las diferencias, pero la hostilidad no es
necesariamente el primer cuadro que se presenta, sino por el contrario la
posibilidad de traducción. Los intérpretes y “lenguas” son las figuras más
comunes en los primeros tiempos, teniendo presente que son los indígenas
los que presentan mayor capacidad de “interpretación”.
Apliquemos estas figuras generales de la lingüística, más bien de la
socio lingüística, a la religión.
Ladridos De Perros
Desde la clave que usamos surge una primera aproximación entre
lengua y religión. Aunque no haya sido lo más ordinario, se les negó a
los indígenas que tuvieran lengua. Y se les negó también que tuvieran
religión.
Ya por su fonética muchas lenguas no serían lenguas. Del dulce y
maravilloso guaraní, en son de befa, dirá Félix de Azara que “la unidad
de lengua entre los guaraníes indica aún que estos salvajes han tenido el
mismo maestro de lenguaje que enseñó a los perros a ladrar” (AZARA,
1969, p. 248).
De la falta de determinados fonemas en una lengua se tomó pie
para disminuir la lengua indígena. Se dirá de la lengua tupí, y lo mismo
vale de la guaraní, que “carece de tres letras, conviene a saber: no se halla
en ella F, ni L, ni R, cosa digna de espanto porque así no tienen Fe, ni Ley,
ni Rey, y de esta manera viven desordenadamente sin tener por lo demás
ni cuenta, ni peso, ni medida” (GANDAVO, 1980, p. 124). Yendo adelante
en el camino de la negación, se echará de menos en las lenguas indígenas
palabras apropiadas para expresar los altos misterios de la fe cristiana. El
obispo Lorenzana (1769), de Méjico, repetía que “es muy difícil o casi
imposible explicar bien en otro idioma los dogmas de nuestra santa fe
católica...” (cf. MELIÀ, 1969, vol. I, p. 26, n. 72). Y nuestro Azara, “que es
imposible redactar un catecismo en lenguas tan pobres, a las que faltan
palabras para expresar las ideas abstractas, y aun para contar más allá de
tres o cuatro...” (AZARA, 1969, p. 248).
Como Urracas y loros
Solórzano Pereira no se recataba en decir que “antiqua et solemnis
consuetudo omnium fere nationum fuerit, ut victores victis suum idioma,
ac mores communicent, sentientes hoc ad iura victoriae, atque superioritatis
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respicere” (cf. MELIÀ, 2003, p. 52), en la que el castellano aparece
conquistador y victorioso, hubo ciertamente otras tendencias que
apreciaron y cultivaron las lenguas indígenas, sobre todo aquellas que
podían prevalecerse del título de lenguas generales. Fue la posición, desde
temprana hora, de religiosos, especialmente dominicos, franciscanos y
jesuitas. Son la pléyade de los “misioneros gramáticos”, verdaderos pioneros
de la lingüística americana, como se los reconoce científica y
académicamente. Ellos fueron los constructores de las lenguas indígenas
coloniales -en cierta manera un nuevo tipo de lengua-, pues las redujeron
a escritura, a arte de gramática, a diccionario, y con estas bases crearon
un nuevo tipo de discurso, representado por oraciones, catecismos,
doctrinas y sermonarios.
La lengua no es negada, pero es instrumentalizada a afectos de
traducción. Todo puede ser traducido en una lengua indígena; resemantizar
palabras tradicionales, crear neologismos, introducir hispanismos, serán
los grandes recursos de este vasto plan de traducción, que llegará a los
niveles del discurso. Aquí no se niegan las palabras de la lengua, pero se
prescinde de la lengua. Son las palabras de la lengua sin la lengua, una
especialidad que llega a sus expresiones más revulsivas en las prácticas
lingüísticas de algunas sectas actuales.
La Imprenta en la Selva
La misma lengua, tomada como instrumento de traducción sin
límites, y por ello conceptualmente dependiente de otro lenguaje, trasluce
otra concepción que podríamos caracterizar como platónica – la teoría
está en efecto expresada en el Cratylo - y es la que ve en las lenguas un don
singular de Dios. Y esto aunque sean habladas por “salvajes” y “bárbaros”.
El reconocimiento de un cierto carácter divino en las lenguas será la
respuesta de los teólogos a los ideólogos que propugnaban su extinción y
substitución. “Causando justa admiración que en tanta barbarie, como
era la de la nación guaraní, cupiese tan admirable artificio” (LOZANO,
1754, vol. I, p. 259).
Curiosamente surge una especie de teología de la lengua, como rasgo
fundamental de la cultura, que la redime de la maldición de Babel. “Por su
admirable artificio... quien le conocerá no podrá dejar de admirar la infinita
sabiduría de Dios que infundió tantas sutilezas en unos entendimientos
tan toscos” (El padre Ig. Chomé, en VARGAS UGARTE, 1931, p. 148155).
La teología lingüística les hace incluso suponer a algunos que la
lengua es mayor que la cultura, la potencia lingüística mayor que el acto,
el don mucho mayor que el receptor. El autor de un Diccionario Portuguez,
e Brasiliano (/1795/: ix-x) adelantaba un curioso argumento: “[...] não tendo
eles idéia alguma de religião, excepto a da natureza, na sua propria
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linguagem tiverão signaes para representar toda a sublimidade dos
mistérios da religião e da graça; sem lhes ser preciso mendigaremnos de
outra língua”.
Muchas lenguas indígenas se han mantenido en América y se siguen
hablando. Ninguna de ellas, sin embargo, puede prescindir del contacto,
de la interferencia, del conflicto, del recelo frente al castellano. Hay que
confesar que ninguna de ellas ha conseguido mantener ni el prestigio ni la
generalidad que le fueron atribuidas en los primeros tiempos coloniales.
Desde la perspectiva socio-lingüística aparece el fenómeno que se da en
llamar de diglosia, para distinguirlo del bilingüismo, que sería el uso
coordinado de dos lenguas.
Conversión de la Religión
A las modalidades lingüísticas presentadas le corresponden,
analógicamente, otras tantas actitudes y posiciones de carácter religioso.
A las pretensiones por implantar una sola lengua corresponden en
gran medida los trabajos por propagar una sola religión.
En otras ocasiones he analizado los juicios y prejuicios sobre las
religiones indígenas y los caminos de su intentada substitución o conversión.
Religiosamente los indígenas fueron calificados a veces de “finos ateistas”,
otras de “monos de Dios”, pero también de “discípulos de Santo Tomás”.
Con ello se declaraba la no existencia de religiones indígenas, su carácter
diabólico, o sus vestigios incluso evangélicos.
La Religión Clandestina
A partir de estas actitudes, que a veces se dan simultáneamente en
un mismo lugar, se originan diversas respuestas religiosas, que casi nunca
coinciden plenamente con la conversión pretendida. La religión negada
por desconocimiento o por ignorancia, puede continuar en el pueblo por
el camino de la clandestinidad, que no se atreve a manifestarse a la luz del
día; esto es, a la luz de la religión oficial. Aun en las misiones jesuíticas,
que han quedado como paradigma y modelo de un cierto control absoluto
por parte de los padres, se habían mantenido prácticas de religión y magia
“paganas”, como lo muestran una serie de procesos de hechicería
levantados a fines del siglo XVIII. A la ignorancia de la Iglesia sobre la
religión indígena corresponde generalmente una religión soterrada y
paralela. El fenómeno es tanto más importante cuanto la propia Iglesia de
América Latina, cuyo clero ha salido en buena parte de sus estratos
populares, ignora este hecho que, sin embargo, fue vivido por sus miembros
en su infancia y es practicado por sus parientes más próximos, si no es que
forma parte del mismo sentir y pensar profundo del clérigo. Es aquello de:
On les croyait chrétiens: les aymaras. Paris, 1969, libro de Jacques Monast,
tesis ciertamente discutible, pero con datos dignos de consideración.
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De todos modos una religión que tiene que esconderse se somete a
sí misma a un nuevo lenguaje, que en cierta manera la hace nueva religión.
Cuando, sin embargo, se admitió, frente a la nobleza y bondad de
vida que se descubría en muchas sociedades indígenas, que en ellas no
podía haber sino vestigios de una revelación primera y antigua, cual podía
ser la del apóstol Santo Tomás en América, del cual por doquier se
descubrían huellas perennes marcadas en la roca, se pudieron rescatar
algunos aspectos de la religión indígena. En este caso, sin embargo, era
como mantener palabras de la lengua sin la lengua.
La Diglosia Religiosa
Esta configuración del proceso es, con todo, excesivamente
fragmentada. Las religiones indígenas conservaron lenguajes nuevos y
propios que, a modo de hipótesis, me atrevería a denominar “tercera
religión”.
Como en las terceras lenguas, no hay un único modelo ni un
paradigma que hayan seguido las diversas sociedades que tuvieron que
inventarse a sí mismas de nuevo. Las distinciones técnicas que se hacen en
la lingüística se reproducen en cierta manera en la religión. Se da así lo
que yo llamaría religiones bilingües, religiones diglósicas, religiones pidgin,
religiones criollas. Naturalmente no puedo aquí detenerme en cada una
de estas modalidades. Voy solamente a considerar una forma, que sería la
diglósica.
En lingüística llamamos diglosia “una situación lingüística
relativamente estable en la que, al lado de los principales dialectos de la
lengua (...), hay una variedad superpuesta muy divergente, altamente
codificada (a menudo gramaticalmente más compleja), vehículo de un
cuerpo de literatura extensa y respetado, procedente de un período antiguo
o de otra comunidad linguística, que se aprende ampliamente en la
educación formal y se usa sobre todo en la escritura y en el hablar culto,
pero no se emplea por ningún sector en la conversación ordinaria”
(FERGUSON, 1959; cf. VALLVERDÚ, 1972, p. 11-12). Con ello se tiene
una variedad de lengua alta, o standard, empleada en la comunicación
más culta y formal, y una variedad baja, empleada en la comunicación
doméstica y coloquial.
Por supuesto que no se puede aplicar mecánicamente el parámetro
de diglosia a las formas como se dan las religiones en América Latina,
pero por lo menos a nivel de lenguaje las analogías revelan aspectos
fundamentales de la vida y expresión religiosa de nuestros pueblos.
La eterna manía de los catecismos, sobre todo los catecismos
universales, la preocupación por la monoliturgia, los textos de doctrina,
los mismos documentos de la Iglesia, establecen fácilmente una lengua
que se pretende alta y standard, pero que, en el mejor de los casos, sólo es
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reinterpretada en sus variedades bajas. La misma designación de
religiosidad popular para estas formas religiosas trae embutida en su ser
la discriminación diglósica.
La Religión Folclórica
La religión de los paraguayos apenas ha sido objeto de descripciones,
aproximaciones más bien diría yo, de carácter folclórico, lo cual
implícitamente la sitúa en un terreno “bajo”.
En un país donde la mayoría habla guaraní – 83% de la población –
la religión católica se ha expresado desde los mismos tiempos de la colonia
en castellano, o en latín, lo mismo que los cantos en la liturgia: castellano o
latín. El cantoral en guaraní no es abundante y es poco usado.
Actualmente hay textos litúrgicos en guaraní, traducidos
literalmente de los textos típicos romanos de la Iglesia universal. Son
guaraní, sin guaraní, si bien al ser usados en la celebración de la misa,
producen en ciertos ambientes una corriente de extrañeza al principio, de
compenetración después.
En relación con lo mismo, apenas hay reflexión teológica sobre la
religión cristiana paraguaya. Apenas algunos esbozos, como los que traza
repetida y sistemáticamente la hermana Margot Bremer. Los nuevos
movimientos religiosos instalados en Paraguay no tienen como fuente ni
cauce la religiosidad paraguaya y se desarrollan más bien en ambientes
burgueses de variedad religiosa “alta” y como sucedáneos de movimientos
generales, como pueden los carismáticos, el camino catecumenal, cursillos
de cristiandad, Schoenstat, focolarasimo, legionarios de Cristo, heraldos
del evangelio, liturgias de sanación, etc., cada uno circunscrito a su parcela.
Y en las parroquias, legión de María, Hermandad de San Roque,
Apostolado de la oración. En todos esos grupos y movimientos es casi nulo
el bilingüismo siquiera que, sin embargo, está cada vez más presente en la
vida cultural.
El uso de guaraní, que de por sí no es señal de inculturación o
especificidad religiosa, pero sí le confiere un cierto color local, está presente
en parroquias y capillas del campo, donde los curas de ascendencia
campesina la mayoría y que saben guaraní en su casi totalidad, usan la
lengua indígena por lo menos en la parte homilética. Es curioso el esfuerzo
que hacen sacerdotes extranjeros de las zonas del interior del país –y es
prácticamente interior, todo lo que está fuera del centro de Asunción, la
capital-, por usar el guaraní aún a costa de sus limitaciones y dificultades.
Las religiones fundamentalistas no parecen haber adoptado un
lenguaje paraguayo, probablemente por su procedencia y dependencia
del exterior.
La religión cristiana paraguaya se manifiesta en prácticas que son
también propias de muchos pueblos de América Latina, y que aquí se
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revisten de rasgos particulares. Señalaría como una de las prácticas más
significativas la procesión, las pequeñas procesiones familiares y las grandes
procesiones en las fiestas patronales. La fiesta de la Virgen de Caacupé es
ante todo una gran caminata en la que llega a participar un millón de
personas, si no más, en la noche del 7 al 8 de diciciembre. Y es probablemente
en el caminar religioso donde encontramos uno de los rasgos que de manera
ya implícita nos elija con el caminar guaraní.
Las imágenes de santos, que rompen con la tradición guaraní que
no conoce esta expresión, entran la intimidad doméstica con fuerza y
amplia presencia.
Donde podemos encontrar más acuerdos y asociaciones con raíces
indígenas guaraníes es en el trance de la muerte y las ideas y prácticas
post-mortem que remiten a la presencia del alma en el lugar de la muerte
y la necesidad de aplacar la misma alma en pena. Este aspecto ha sido
ampliamente asumido en las recordaciones que se hacen de los difuntos
en las misas, que se presentan larga lista en las misas incluso ordinarias. El
vaso de agua debajo del ataúd no puede faltar.
Por desgracia muchas de las “palabras”, gestos y signos del
vocabulario religioso paraguayo están relegados al llamado folclore, que
no es reconocido como religión, aunque en realidad es la manifestación
más auténtica y casi única que tiene el pueblo de paraguay con Dios.
El Verbo Dialectal
Seguir la formación de una tercera religión, de las terceras religiones
en América Latina, es una de las principales tareas históricas y teológicas
con las que nos enfrentamos. La tercera religión es un verdadero sistema,
cuya matriz hay que descubrir. En esta matriz hay principios, a manera
de una fonología profundamente arraigada en la sociedad, que siguen
dándole el acento y el tono. Estos principios a veces están radicalmente
reñidos con los fonemas que trajeron, por ejemplo, el Estado, el monoteísmo,
la jerarquía, la privatización y los monopolios en la producción y difusión
de textos, tanto doctrinales como rituales.
Si la situación diglósica ha sido la salida que encuentran ciertas
sociedades para no perder las llaves de su propio modo de ser, aun a riesgo
de innegables pérdidas en su propio sistema, para el futuro algunas de
estas sociedades se estarían orientando hacia un bilingüismo coordinado.
Hoy somos conscientes de que los derechos humanos y religiosos de
las personas llegan hasta los “dialectos”. Los lenguajes universales son y
deben ser sólo esto: generales. Teológicamente es perversión de Babel, que
fue castigada con una corrección que era su remedio y bendición: la
multiplicación de lenguas. Porque, como dice el poeta:
“El Verbo universal, sólo habla dialecto”
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Notas
1
Douctor em Teologia pela Universidade de Estrasburgo. Foi profesor y pesquisador
da Cultura Guarani na Universidade Católica de Asunción (Paraguay), diretor do
CEADUC – Centro de Estúdios Antropológicos – e como editor das Revistas Acción,
Suplemento Antropológico e Estudios Paraguayos. Membro da Comissão Nacional
de Bilingüismo do Paraguai. E-mail: [email protected]
REFERENCIAS
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AZARA, Félix de. Viajes por la América Meridional. Madrid: Espasa-Calpe, 1969 (Colección
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MELIA, Bartomeu. 1992. Das Wort ist alles - Die Guarani hören die christliche Verkündigung,
En: SCHLEGELBERGER, Bruno y DELGADO, Mariano (Hrsg.). Ihre Armut macht uns reich.
Zur Geschichte und Gegenwart des Cristentums in Lateinamerika. Berlin: Morus Verlag;
Hildesheim, Bernward Verlag, 1992, p. 110-124.
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del Instituto de Investigaciones Históricas 13. Buenos Aires, 1931. pp. 148-155.
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4
DIVERSIDAD RELIGIOSA EN BOLIVIA: EL CAMPO
RELIGIOSO Y LAS CULTURAS Y SABIDURÍAS ANDINAS
Josef Estermann1
Introdución
Como prácticamente todos los países de América Latina (con
excepción de unos pocos en el Caribe, Surinam y las Guayanas)2, Bolivia
es un país eminentemente católico, aunque evidentemente muy sui generis,
debido al alto grado de sincretismo con las religiones ancestrales andinas
y amazónicas. Sin embargo, la situación de una hegemonía católica viene
cambiándose desde unas décadas y la diversificación del campo religioso
en Bolivia se acelera de manera dramática en los últimos años. Dos son las
razones principales para esta evolución: Por un lado el avance de iglesias,
movimientos y agrupaciones cristianos no-católicas, y por otro lado el
resurgimiento y empoderamiento de una religiosidad ancestral pre-cristiana
que va de la mano con la irrupción de lo indígena en la sociedad, política
y la vida cultural. Estas dos causas se potencian por el cambio político que
apuesta por un Estado laico y el fin de la ideología de la “cristiandad”3
como factor identitario decisivo de la sociedad boliviana.
En este trabajo quisiera analizar con más detenimiento la evolución
reciente del campo religioso, con especial énfasis en el rol que tienen las
culturas y sabidurías andinas, como también las posibles consecuencias
de la nueva Constitución Política del Estado que entró en vigencia en febrero
de 20094.
Avance Evangélico Y Crisis Católica
Los últimos datos sobre la afiliación religiosa de la población
boliviana resultan de una Encuesta de hogares que realizó el Instituto
Nacional de Estadística (INE) inmediatamente después del Censo Nacional
de 20015. En el mismo Censo, no se preguntó por las preferencias y
afiliaciones religiosas o el credo de la gente. El próximo Censo de 2011
probablemente tampoco tomará en consideración preguntas sobre
preferencias y membresía religiosas, debido a la “neutralidad confesional”
del Estado y de sus órganos.
Mientras que en el periodo de 1827 a 1959 (132 años) fueron
registrados en la Subsecretaría de Culto (un vice ministerio del ministerio
de Asuntos Exteriores) 59 nuevas iglesias, cultos e instituciones religiosas,
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CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS
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en el periodo de 1960 a 1995 (35 años), este número ascendía a 1606. La
gran mayoría de ellos eran de procedencia cristiana (evangélica) o paracristiana (como los mormones, Testigos de Jehová, iglesia Moon, etc.).
En la Encuesta de Hogares de 2001, sólo se tiene datos de la
población mayor de 15 años y según categorías bastante cuestionables
(“protestantes/evangélicos”; “otros de origen cristiano”), preguntando por
la “religión actual” (en 2001) y aquella “siendo niño” (proyectando en un
promedio de 20 años al año 1981). Los datos más destacados de esta
Encuesta son:
a) El porcentaje de “católicos” ha disminuido de 90.5% (sobre la población
entera) en 1981 (“de niño”), pasando por 80.7% en 1992 (Censo) a 77.8%
en 2001 (Encuesta), siendo el periodo de mayor pérdida los años ochenta
del siglo XX (-10%).
b) El porcentaje de “protestantes/evangélicos” ha crecido de 6.4% en 1981,
pasando por unos 13% en 1992 (sólo había la categoría “otros nocatólicos”) a 16.5% en 2001, siendo el periodo de mayor crecimiento
también los años ochenta del siglo XX (+7%).
c) El porcentaje de los “sin religión” pasa de 1.8% (1981), por 2.3% (1992)
a 2.2% (2001), lo que no significa un cambio significativo. Sigue habiendo
un número muy reducido de agnósticas/os o ateas/os en Bolivia; con un
97.8% de “creyentes” en 2001, Bolivia sigue siendo un país altamente
“religioso”. Una misma tendencia se observa respecto a los “con una
religión no-cristiana” que ha sido 0% en 1981 y sólo 0.1% en 2001; hay
muy pocos judíos, musulmanes, budistas o hinduistas en Bolivia.
d) Dentro del grupo muy heterogéneo de “protestantes/evangélicos”, las
llamadas “iglesias históricas”7 (calvinista, luterana, anglicana, metodista,
bautista, presbiteriana, menonita) que ascienden en 2001 a un 19% sobre
el total del grupo “no-católico” (o 4.2% sobre la población boliviana), han
crecido en los últimos 20 años con un factor de multiplicación de 2.5.
e) El grupo “evangélico” con mayor crecimiento (factor 3.5) son los
“pentecostales” (incluyendo los llamados “neopentecostales”8); ascienden
en 2001 a un 26.1% sobre el total del grupo de los “no-católicos” (5.8%
sobre la población boliviana), es decir el grupo “evangélico” mayor. El
resto de los “no-católicos” se reparte entre “adventistas” (11%), “otros,
poco definidos” (32.8%) y de “no creyentes y con otra religión” (un 11.2%).
f) Evidentemente, la deserción de miembros de la iglesia católica no
incrementa (como en Europa) las filas de agnósticas/os y ateas/os, ni de
religiones no-cristianas, sino de las iglesias “evangélicas”, y dentro de
ellas sobre todo a las iglesias (neo-) pentecostales. Esto se corrobora por
el hecho de que un porcentaje importante de los/las novatos/as (neo-)
pentecostales provienen de iglesias protestantes “históricas”9.
g) Considerando la pertenencia étnica y geográfica (ciudad o campo) de
las y los convertidos/as al neopentecostalismo, llama la atención el mayor
porcentaje de entre la población rural e indígena. Los/as aimaras nocatólicos/as, por ejemplo, han crecido en los últimos 20 años en el campo
en un 22.3%, con respecto a un 9.5% en la ciudad.
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LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.)
El debilitamiento de la iglesia católica se debe a varios factores, tanto
internos como externos. En números absolutos, quizás no haya disminuido,
pero sí en relación porcentual. Entre las causas se puede mencionar el rol
que viene jugando la cúpula jerárquica de la iglesia católica en los últimos
años respecto a los movimientos sociales y al proceso de cambio iniciado
por el Movimiento al Socialismo (MAS) que llegó a gobernar el país en
enero de 2005.
En las llamadas “guerras” del agua de 2000 en Cochabamba y del
gas de 2003 en El Alto y La Paz, la jerarquía católica se abstuvo –salvo
contadas excepciones– de una postura clara a favor de las reivindicaciones
populares por los recursos naturales del agua y del gas natural, mientras
que una parte de la base eclesial se unió a las protestas10. Más bien ha
asumido la posición “clásica” de mediadora entre las frentes, tal como lo
sigue haciendo hasta hoy día, aunque últimamente es la iglesia metodista
que se postula como “mediadora” en los conflictos entre Gobierno y
oposición.
En el proceso de cambio que inició el Movimiento al Socialismo
(MAS) y que viene a ser continuado en forma sostenida por el Gobierno de
Evo Morales, la jerarquía católica se siente más una víctima que un actor
protagónico. Desde el inicio de la gestión del nuevo Gobierno, se producían
varios “desencuentros” y ataques verbales mutuos entre el Ejecutivo y la
iglesia católica. Este hecho se debe básicamente a cuatro factores:
1. El nuevo Gobierno plantea con mucha fuerza la tarea de una
“descolonización” profunda de todas las instituciones y la sociedad en
general. El ex ministro de Educación, Felix Patzi, había identificado a la
iglesia católica como la principal institución que sigue promoviendo una
“colonización mental y cultural”11.
2. Con la llegada al poder de la población indígena, las diferentes formas
de religiones ancestrales se hacen visibles y son reconocidas abiertamente
por el Gobierno. En muchas ocasiones (ceremonia de asumir la
presidencia; fiestas cívicas; etc.), las bendiciones y Te Deum católicos son
reemplazados por rituales andinos.
3. La Nueva Constitución Política del Estado que entró en vigencia el 7
de febrero de 2009, acaba con el privilegio que otorgó el Estado a la
iglesia católica, al establecer un Estado laico, con lo que la iglesia católica
no sólo pierde el privilegio de la educación religiosa en las escuelas
fiscales (públicas), sino también la presencia en los actos oficiales de
instituciones estatales, las preferencias impositivas y facilidades en
trámites oficiales.
4. La actuación del primado de la iglesia católica, Cardenal Julio Terrazas
de Santa Cruz de la Sierra, ha creado muchos anticuerpos en las filas del
Gobierno e incluso de entre la población en el occidente del país (la región
andina). Terrazas no sólo demostraba públicamente su simpatía por el
Estatuto Autonómico del Departamento de Santa Cruz que fue aprobado
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en un referéndum popular inconstitucional, sino que se alineaba con la
oligarquía cruceña (terratenientes, empresarios), al negar la existencia
de semi-esclavitud en algunas haciendas del Departamento, hecho que
fue comprobado por una delegación internacional12.
A estos factores internos se suman factores externos que tienen que
ver con el proceso paulatino de “(neo-) pentecostalización” de la sociedad
boliviana, sobre todo en la región andina. Aunque también las iglesias
evangélicas históricas han sufrido “pérdidas” en los últimos treinta años,
es la iglesia católica que tiene que lamentar la deserción del mayor número
de miembros que se han convertido a una de las numerosas iglesias
neopentecostales (“Ekklesía”, “Poder de Dios”, “Cristo Viene”, etc.). Al
mismo tiempo se nota una “pentecostalización” paulatina en las mismas
iglesias históricas, tanto en la católica (el movimiento carismático y
neocatecumenal) como en las evangélicas (celebraciones de sanación;
entusiasmo litúrgico; uso de massmedia, etc.).
Llama la atención que estas iglesias tienen más acogida entre la
población indígena rural que entre la mestiza urbana. Por un lado, este
hecho se debe a una cierta ausencia de la iglesia católica en el campo, en
forma permanente y sostenida desde la Colonia13. En general, los sacerdotes
bolivianos recién ordenados sólo van al campo como una obligación del
inicio de su labor laboral, para retornar lo más antes posible a las ciudades
con mayor comodidad y posibilidades de ganarse algo (como los maestros
en los colegios).
Por otro lado, muchas de las nuevas iglesias neopentecostales
evangelizan en base a una teología de la prosperidad y los respectivos
medios económicos para ponerla en práctica. A pesar de una fuerte
“campaña de extirpación de idolatrías”, muchos/as aimaras y quechuas
están dispuestos/as a dejar su identidad religiosa indígena, para acceder
a una vida mejor, el progreso y la “civilización”. Se trata de una nueva
forma de “colonización” en nombre del progreso y de la civilización
occidental que conlleva la exterminación de las costumbres y creencias
ancestrales como el pijcheo (masticar) de la hoja de coca, las ofrendas a la
pachamama o el culto a los difuntos y ancestros.
Un tercer factor es, en la opinión de las iglesias evangélicas
neopentecostales, la asociación del catolicismo con los vicios del alcohol,
de la violencia familiar y de una doble moral, sobre todo respecto a la
sexualidad, que es aprovechada por las nuevas iglesias para “liberar” a la
población indígena del “demonio”. Para muchas de estas iglesias, las y los
católicos/as son idolátricos/as, adúlteros/as, violentos/as y alcohólicos/
as. Sobre todo mujeres que sufren las consecuencias del consumo excesivo
de alcohol de sus parejas, están fácilmente dispuestas a adoptar la nueva
religión, como única salida de este círculo vicioso de la violencia y del
maltrato.
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Religiones Ancestrales E Iglesia Católica
Aunque el catolicismo ha sido, desde la Conquista, la religión
hegemónica en Bolivia, siempre era y sigue siendo un catolicismo sui generis.
Por la presencia permanente, camuflada e invisibilizada de religiones14
ancestrales pre-hispánicas, el sincretismo religioso en los Andes viene
marcando hasta hoy en día el rostro de las diferentes denominaciones
cristianas. En este proceso de “sincretización”, la iglesia católica ha
adoptado diferentes estrategias: desde una feroz campaña de “extirpación
de idolatrías” en el siglo XVII, sobre todo en territorio peruano, pasando
por la incorporación de elementos andinos en el propio catolicismo (la
época de la “aculturación”) hasta los esfuerzos de una “inculturación” de
la fe cristiana en las culturas andinas, a partir del Concilio Vaticano II.
A pesar de todos estos esfuerzos por los doctrineros y misioneros
católicos, las religiones autóctonas han sobrevivido, en su mayoría mediante
una estrategia de “doble fidelidad” (ESTERMANN s.f.) y de clandestinidad,
hasta tal punto que últimamente están en un proceso de resurgimiento y
de reivindicación de su identidad más acá de la “colonización”. Mientras
que la “teología india” trata de recuperar un cristianismo genuinamente
andino e indígena, la “teología india” rechaza todo tipo de cristianización
de la religiosidad y espiritualidad indígenas como traición a las religiones
autóctonas pre-hispánicas15.
Aunque esta última corriente fuera sobre todo un fenómeno de un
grupo reducido de intelectuales aimaras y quechuas que apuntan en lo
político a una nación aimara Qullasuyu y en lo ideológico a un indianismo,
indigenismo y pachamamismo en la tradición katarista16, en el Gobierno
“indígena” de Evo Morales ha encontrado una caja de resonancia que
hace sonar sus voces mucho más fuertes de lo que en realidad son. En
ninguna de las encuestas y de los censos se ha preguntado por la
pertenencia a una “religión ancestral”, pero en base a ciertas encuestas de
hogar se puede concluir, que más de un 95% de la población boliviana se
consideran “cristianos/as”, sea de vertiente católica, evangélica o de otro
tipo de la religión cristiana17.
Sin embargo, gran parte de esta población realiza al mismo tiempo
rituales típicamente andinos (más que amazónicos o guaraníes), tal como
la tradicional ch’alla (que es practicada incluso por la población mestiza y
blanca), la waxt’a, el pago a la pachamama y los múltiples “ritos de paso”
sincréticos18. Según el censo de 2001, más del 60% de la población boliviana
se considera perteneciente a uno de los pueblos indígenas, con una
religiosidad fuertemente impregnada por la cosmovisión y las creencias
ancestrales. Al mismo tiempo, un 78% se considera racialmente mestizas/
os (Encuesta de UNIR de 2008).
Pero las religiones ancestrales también están presentes en la
religiosidad católica popular, en las fiestas patronales, en el Carnaval (o la
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anata), el santoral católico, la devoción fervorosa de la Virgen (que se junta
en el imaginario, a menudo, con la pachamama), Todos Santos, la Fiesta de
la Cruz y hasta en las celebraciones sacramentales y litúrgicas. La teología
relativamente “incluyente” del catolicismo permitía una simbiosis sui generis
entre el panteón andino y las múltiples mediaciones católicas, favorecida
aún más por el fuerte elemento femenino de la mariolatría de la religiosidad
española renacentista19.
Aunque la iglesia católica oficial se muestra un tanto reservada
respecto a ciertas costumbres y creencias “andinas” (tal es el caso de las
“ñatitas” en La Paz)20, en la práctica adopta una postura de tolerancia y
respeto, salvo algunos movimientos eclesiales (como Opus Dei, los
neocatecumenales y el movimiento carismático). La Comisión de las
Culturas de la Conferencia Episcopal Boliviana promueve una pastoral y
una teología indígenas que trata de partir de las diferentes cosmovisiones
y sabidurías originarias como para “inculturar” mejor el mensaje cristiano.
Estos esfuerzos (de encuentro, de inculturación, de indigenización)
se ven frente a dos tipos de oposición: Por un lado las iglesias evangélicas
más conservadoras y fundamentalistas, sobre todo las pentecostales y
neopentecostales, y por otro lado los ya mencionados grupos indígenas
que luchan por una “descolonización” total en el sentido de un regreso a
una religión ancestral “pura” y no contaminada por elementos cristianos.
Para algunas iglesias evangélicas de corte “fundamentalista”, la iglesia
católica en general, y la andinizada en particular, promovería la “idolatría”,
el “neopaganismo”, el alcoholismo y el politeísmo o animismo indígenas.
Para el otro extremo, los representantes de un andinismo militante, la iglesia
católica sigue siendo la protagonista de una “neo-colonización” cultural y
mental.
Las Iglesias Evangélicas Y El Mundo Andino
Ciertas iglesias protestantes “históricas” han subido desde cierto
tiempo al tren de la “andinización”, tal como la Iglesia Evangélica
Metodista en Bolivia (IEMB) y, en menor rigor, la Iglesia Evangélica
Luterana de Bolivia (IELB) y la Iglesia Metodista Pentecostal. Otras se han
constituido como “iglesias populares indígenas” (“Iglesia del Nazareno”,
“Dios de la Profecía”, “Los Amigos”, “Iglesia Dios Boliviana”), aunque en
su gran mayoría rechazan las culturas indígenas como “idólatras”.
La gran mayoría de las iglesias evangélicas, sean históricas
(presbiteriana coreana, bautista, anglicana, luterana latinoamericana),
pentecostales (“Asambleas de Dios”, “Iglesia de Dios”, “Evangelio
Cuadrangular”, “Iglesia del Evangelio Completo”) o neopentecostales
(“Ekklesía”, “Poder de Dios”, “Cristo Viene”) no solamente son política y
teológicamente conservadoras y hasta “fundamentalistas” (evangelicals),
sino que rechazan las culturas y religiones autóctonas como “diabólicas”,
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“satánicas” e “idólatras”. Por los métodos agresivos de evangelización,
algunas llevan adelante una verdadera nueva “campaña de extirpación
de idolatrías” que implica un etnocidio simbólico (o culturocidio), a través
de una “reprogramación” sistemática de las identidades culturales de sus
miembros21.
Según las posturas de la gran mayoría de las iglesias
neopentecostales, las culturas ancestrales de los Andes conllevarían una
fuerte carga religiosa “pagana”, con tal de que las personas que se
convierten a la nueva religión, tengan que renunciar a su propia identidad
cultural. Esta nueva “circuncisión” neopentecostal implica no solamente
la abjuración a cualquier rito religioso andino (ch’alla, waxt’a, pago a la
pachamama), pero también a la red de padrinazgo, compadrazgo, ayuda
mutua (ayni, mink’a), y en algunos casos hasta a su idioma materno
(aimara, quechua), al consumo de la hoja de coca, alcohol, tabaco y hasta
café.
Llama la atención que para el Gobierno que plantea una línea política
de “descolonización” y de reivindicación de las culturas y modos de vida
indígenas, sigue siendo la iglesia católica el primer actor de “colonización”
y que las iglesias “culturocidas” de origen norteamericano quedan todavía
fuera de su crítica22. En los últimos años, el Gobierno se ha acercado a
ciertas iglesias evangélicas “históricas”, sobre todo a la metodista, para
buscar una alternativa al monopolio de la iglesia católica de ejercer el rol
de mediadora. Las iglesias evangélicas de corte neopentecostal no han sido
sometidas (aún) a la crítica del discurso de la “descolonización”, a pesar
de que, en su gran mayoría, llevan adelante un proyecto neo-colonial igual
o peor que el que ejecutaba la iglesia católica en la Colonia.
Aparte del rechazo tajante de las culturas ancestrales como correas
de transmisión del “neopaganismo” y de “idolatrías”, estas iglesias
promueven un estilo de vida y valores culturales occidentales, normalmente
de origen estadounidense. La “evangelización” en el sentido de la
extirpación de idolatrías va de la mano con una suerte de “modernización”
y “civilización” que promueven un fuerte individualismo, una teología
pragmática de prosperidad y sanación y una “filosofía” fuertemente
dicotómica y hasta maniquea. La división del mundo, promovida por la
Administración Bush, en “buenos” y “malos”, se replica en las teologías
maniqueas, milenaristas y fundamentalistas de ciertas iglesias
neopentecostales de origen norteamericano23.
La Buena Nueva que se lleva a los pueblos originarios de Bolivia,
viene a ser el “sueño americano” que reafirma de manera inesperada la
tesis de Max Weber del lazo intrínseco entre protestantismo y capitalismo.
El “Evangelio” del egoísmo religioso, de la superioridad de la “cultura”
occidental-norteamericana y de la prosperidad como consecuencia de la
sumisión ciega al lavado de cerebro y la “circuncisión” cultural plantea
nuevamente, en un acto neo-colonial sin precedentes, la equiparación de
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cristianismo y civilización occidental, esta vez en clave estadounidense.
Estas iglesias y sus intelectuales ven las causas del “atraso” y de la pobreza
de la gran mayoría de las y los bolivianos/as en la “latinidad”, “catolicidad”
e “indigeneidad” del proceso colonial y de la evangelización concomitante.
Surgen con cierta periodicidad las tesis sobre los efectos de una supuesta
conquista anglosajona de América Latina, con la subsiguiente conclusión
de que sólo la erradicación de las “creencias” paganas indígenas y de la
“idolatría” católica acabaría con el estado de subdesarrollo del país24.
La Nueva Constitución Política Del Estado Y El Campo Religioso
En el proceso constituyente que ha sido muy difícil, por la fuerte
oposición de la vieja guardia política y la oligarquía agro-petro-industrial25,
las iglesias han tratado de ejercer cierta influencia, sea mediante sus
representantes en la Asamblea Constituyente, sea a través de los medios
de comunicación o sea mediante movilizaciones y protestas callejeras.
Mientras que parte de la iglesia católica en un inicio hizo oposición al plan
del MAS (Movimiento al Socialismo) de declarar “confesionalmente
neutral” al nuevo Estado, otras iglesias aplaudieron tal propósito, pero se
resistieron a ciertas consecuencias “morales” de la laicidad del Estado, tal
como los derechos sexuales y reproductivos26.
Sectores conservadores de diferentes iglesias – incluyendo a la
católica – movilizaron a la población a oponerse con todos medios posibles
a una Constitución “comunista, atea y neopagana”, pintando la visión
horrorosa de un futuro de persecuciones y de la supresión de la libertad de
culto. Hasta en los últimos días antes de la aprobación del texto
constitucional hubo una campaña mediática agresiva de desacreditar al
Gobierno, “difundiendo y multiplicando […] toda clase de falacias acerca
de la nueva carta magna, urdiendo un discurso basado en mensajes breves
pero aterrorizadores sobre los supuestos males que acarrearía la aprobación
del nuevo texto (limitación severa de las libertades religiosas, vía libre al
aborto y a los matrimonios entre personas del mismo sexo, cierre de escuelas
confesionales, imposición de creencias de los pueblos originarios por sobre
las del cristianismo, contradicción insalvable entre el nuevo texto y el
mismísimo Dios, etc.)”27.
A pesar de las diferencias significativas entre los credos, su postura
(anti-) ecuménica, la estructura institucional, la actitud respecto al proceso
de cambio y a las culturas ancestrales, sectores conservadores de
prácticamente todas las iglesias se encontraban y siguen encontrándose
en una “alianza ideológica” respecto al tema de los “derechos sexuales y
reproductivos”, bolso al que se mete todo tipo de “aberraciones” como la
promiscuidad, el aborto, el matrimonio homosexual, la libre decisión por
la educación sexual y la permisividad sexual de la sociedad28.
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En este sentido había y sigue habiendo (deliberadamente) mucha
desinformación respecto a la naturaleza y las consecuencias de la laicidad
del Estado y sus instituciones. Advertidas por los pronunciamientos poco
diplomáticos de algunos ministros y ex ministros respecto al proceso de la
“descolonización” y el rol de las iglesias en un nuevo Estado plurinacional,
muchas iglesias impusieron en sus fieles el miedo ante el escenario de un
Estado “ateo” a lo cubano. Hubo incluso cierta propaganda religiosa (en
los canales de televisión) de sectores fundamentalistas que plantearon para
su grey la alternativa: “O Dios o Evo”.29 Yo mismo era testigo (indirecto)
de una conferencia de un pastor evangélico fundamentalista que interpretó
a Evo Morales como el Anticristo a quien Dios se sirviera de instrumento
para combatir a la “Gran Ramera”, la iglesia católica, para dispersar a las
“naciones” (los pueblos originarios) y abrir de este modo el camino para la
batalla final, el Armagedón en suelo boliviano30.
Analizando la nueva Carta Magna, el panorama es un tanto distinto.
Nunca había una Constitución Política del Estado tan “religiosa” como
ésta, no en un sentido institucional o eclesial, sino en un sentido integral y
espiritual, incorporando los valores de la sabiduría ancestral indígena31.
Una simple exégesis sinóptica de los dos textos constitucionales – la anterior
Constitución de 1967 (C 1967) y la nueva Carta Magna de 2009 (C 2009) –
revela tanto el tenor “religioso” de la nueva Constitución como diferencias
de fondo con la anterior. Los términos “religión” y “religioso/a” aparecen
en C 1967 seis, en 2009 once veces32; “iglesia” y “enseñanza religiosa” en
C 1967 una vez, en C 2009 no están presentes; “culto (religioso)” en las
dos constituciones tres veces. Mientras que en C 1967 no se menciona
ninguna vez “espiritualidad”, “cosmovisión(es)”, “Dios”, “pachamama” y
“credo religioso”, en la C 2009 estos conceptos aparecen en forma bastante
significativa: “cosmovisión(es)” siete veces, “espiritualidad” cuatro veces
y “Dios”, “pachamama” y “credo religioso” una vez cada uno.
Se puede decir que la nueva Constitución Política del Estado tiene
una concepción des-institucionalizada del campo religioso y fomenta la
perspectiva predilecta de lo espiritual y de las cosmovisiones, lo que hasta
podría cualificarse como un punto de vista “posmoderno”. En el artículo
4, la Carta Magna reafirma la libertad de religión y creencias, en los
siguientes términos: “El Estado respeta y garantiza la libertad de religión y
de creencias espirituales, de acuerdo con sus cosmovisiones. El Estado es
independiente de la religión.” En el artículo 21, en el marco de los “Derechos
Civiles”, se puntualiza la garantía de las libertades en general, entre ellas
la religiosa: “Las bolivianas y los bolivianos gozan de los derechos: […] 3.
A la libertad de pensamiento, espiritualidad, religión y culto, expresado
en forma individual o colectiva, tanto en público como en privado, con
fines lícitos. 4. A la libertad de reunión y asociación, en forma pública y
privada, con fines lícitos. 5. A expresar y difundir libremente pensamientos
u opiniones por cualquier medio de comunicación […]”.
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En el Art. 30. II y III sobre los “derechos de las naciones y pueblos
originario indígena campesinos”, la nueva Carta Magna afirma: “En el
marco de la unidad del Estado y de acuerdo con esta Constitución, las
naciones y pueblos indígena originario campesinos gozan de los siguientes
derechos: (…) 7. A la protección de sus lugares sagrados. […] 9. A que sus
saberes y conocimientos tradicionales, su medicina tradicional, sus idiomas,
sus rituales y sus símbolos y vestimentas sean valorados, respetados y
promocionados. […]. III. El Estado garantiza, respeta y protege los derechos
de las naciones y pueblos indígena originario campesinos consagrados en
esta Constitución y la ley”. Algunos líderes evangélicos quieren ver en este
Artículo la “prueba” de que el Estado impondría las “religiones originarias”
en “desmedro del cristianismo”, un temor difundido ampliamente por
sectores conservadores antes del referéndum33.
Finalmente hay que ver el “toque de piedra”, el pasaje sobre
“derechos sexuales y reproductivos” que refleja, según la mencionada
alianza conservadora entre las iglesias, una “visión de un oscuro plan de
organismos internacionales y movimientos feministas, gays y lésbicos,
dedicados a legalizar el aborto y promover prácticas sexuales libertinas,
sodomistas y pedófilas” (CÓRDOVA, 2008b, p. 8). En el marco de los
“derechos fundamentalísimos”, el Artículo 15. I afirma que “toda persona
tiene derecho a la vida y a la integridad física, psicológica y sexual […]”.
Sectores anti-abortistas y la iglesia católica han reclamado que se agregue
“…desde la concepción”, lo que convertiría ilegal el aborto terapéutico
considerado legal por el actual Código Penal (Artículo 266)34.
Y el Artículo 66 la CPE dice literalmente: “Se garantiza a las mujeres
y a los hombres el ejercicio de sus derechos sexuales y sus derechos
reproductivos”. Mientras que la C 1967 garantizaba la no discriminación
por razones de sexo (Artículo 6. I), la C 2009 va más allá: prohíbe y sanciona
toda discriminación fundada “[…] en razón de sexo […], orientación
sexual, identidad de género […]” (Artículo 14. II). Para los sectores
conservadores de las iglesias, estos dos incisos constituirían una puerta
abierta a todo tipo de “perversiones”, la liberalización total del aborto y
una sociedad de libertinaje. En realidad, se trata sólo de la garantía de
iguales derechos para todas las personas, independientemente de sus
preferencias religiosas, su género, su orientación sexual y su raza, pero en
ningún momento se emite un juicio ético sobre uno que otro comportamiento
o preferencia concretos.
Parece que aún falta mucho para que las iglesias entiendan que la
“laicidad” del Estado no es lo mismo que “laicismo” y mucho menos
“ateísmo” o el reemplazo de un credo (el católico) por otro secular
(agnosticismo o ateísmo) o indígena (la “religión andina”). A menudo los
miedos han adquirido dimensiones paranoicas, y nada indica que el nuevo
Gobierno quisiera “abolir” la religión como tal o imponer un credo no
cristiano (el andino), lo que equivaldría volver a un Estado “confesional”
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y contradiría el mismo Artículo 4 de la nueva CPE. Ésta más bien garantiza
aún más enfáticamente la libertad religiosa, pero incluye a la vez dentro
de las posturas religiosas e ideológicas –más allá de las iglesias cristianas–
a las cosmovisiones y sabidurías indígenas, las religiones ancestrales y las
espiritualidades autóctonas35.
De hecho que el Gobierno tiene que elaborar una “ley religiosa”
que regularice las múltiples relaciones entre el Estado y el campo religioso,
en la que también se verá (entre muchos otros puntos) la cuestión de la
“educación religiosa” en los colegios estatales (fiscales), los “colegios de
convenio” (que se garantiza en Art. 87) y la presencia de rituales religiosos
en actos públicos del Estado. La “imparcialidad o neutralidad confesional”
no significa que el Estado ya no pueda apoyar y sustentar la actividad
religiosa, ni que ya no pueda admitir enseñanza religiosa alguna en la
educación pública. Sólo que ya no puede apoyar y sustentar (tal como lo
expresa el Artículo 3 de la C 1967)36 a un grupo religioso en desmedro de
otro, ni declarar un cierto credo como el contenido obligatorio de enseñanza
religiosa en los colegios públicos. Tal como se ha visto ya en algunos actos
públicos después de la promulgación del nuevo texto constitucional, había
la presencia de representantes de diferentes denominaciones e iglesias, junto
con yatiris y paq’os (sacerdotes andinos). El representante católico – en el
caso concreto el obispo de la ciudad de El Alto – era uno entre muchos
otros, con los mismos derechos y la misma posibilidad de hacerse escuchar
que todos los demás37.
Según el nuevo proyecto educativo (Ley de Educación “Avelino
Singani”)38 que está impregnado por un espíritu de “descolonización”, en
vez de una enseñanza religiosa católica (que hasta la fecha tenía el
monopolio en las escuelas públicas) se prevé una suerte de enseñanza
“ecuménica-espiritual” (poco definida) que contiene elementos de las
sabidurías y cosmovisiones autóctonas, las religiones ancestrales de la
región, como también los fundamentos religiosos y rituales del cristianismo
en sus diferentes denominaciones, y además una enseñanza ética y
espiritual. Será un gran desafío llegar en la práctica a este tipo de enseñanza
interreligiosa, inter-espiritual y ética, debido a la falta total de preparación
de profesores/as que podrían asumir esta tarea. Hasta ahora, las
“Normales” católicas (Institutos Pedagógicos Normales Superiores para
la formación de maestros de primaria) han formado las y los profesores/
as de religión, pero en clave católica39.
Otro punto neurálgico será nuevamente la reedición de los
“derechos sexuales y reproductivos”, proyecto de ley que fue observado
por el anterior presidente (interino) Carlos Mesa, bajo la presión unánime
de los sectores conservadores de diferentes iglesias. Sobre la base de la
nueva Constitución Política del Estado, habrá que replantear el tema y
elaborar otra ley. La Carta Magna no se pronuncia sobre los puntos concretos
del aborto, del matrimonio homosexual, de la educación sexual, de la edad
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de mayoría “sexual” y reproductiva y otros temas polémicos. Sólo plantea
como marco referencial el criterio de la no-discriminación de personas por
sexo, orientación sexual, credo, espiritualidad, etc. (Art. 14. I) y el ejercicio
de los “derechos sexuales y reproductivos” (Art. 66), sin definirlos en
detalle. En este punto se espera una mayor “batalla ideológica”, debido a
la feroz resistencia contra la nueva Constitución por algunos sectores de
las iglesias que se orientaba justamente en la oposición a estos derechos
(entre otros puntos)40.
En el discurso del presidente Evo Morales, pronunciado en ocasión
de la promulgación oficial de la nueva Constitución (7 de febrero de 2009),
éste menciona en dos ocasiones a la iglesia católica, y en otra a “las iglesias”
(como sinónimo de “denominaciones evangélicas”). Por una parte rescata
las figuras de religiosos que durante la Colonia defendían la vida, la justicia
y la soberanía, y también recuerda por su nombre a Luís Espinal, un
sacerdote jesuita que fue asesinado por paramilitares en 1980, durante la
dictadura de García Meza, subrayando que “dio la vida por la vida de los
demás”. Por otra parte, criticaba más adelante –en el mismo discurso– la
campaña de algunos sectores en contra de la nueva Constitución,
desarrollada activamente desde algunas parroquias y templos del país.
En otras ocasiones41, el Gobierno ha diferenciado –refiriéndose a la
iglesia católica– entre una “iglesia de base” que apoya el proceso de cambio
y se alinea con la opción por las y los pobres, por un lado, y una iglesia que
busca mantener el status quo y se alinea con la vieja oligarquía poderosa y
adinerada, para no perder los privilegios gozados durante quinientos años.
Muchos acontecimientos demuestran, que esta lectura del campo religioso
no es del todo equivocada, sólo que no solamente compete a la iglesia
católica, sino a todas las iglesias y grupos religiosos. La línea divisoria entre
personas, grupos y movimientos que apoyan el cambio y apuestan por la
“descolonización”, y aquellos que más bien pretenden conservar el orden
(neo-) colonial o apuestan por una modernización al estilo estadounidense,
esta línea divisoria pasa por medio de cada una de las iglesias
(ESTERMANN, 2008, p. 303-314).
La Nueva “Extirpación de Idolatrías”
Aunque Bolivia no es un país étnica y culturalmente homogéneo, la
influencia de lo “andino” se puede notar hasta en la parte oriental (Santa
Cruz, Beni, Pando, Tarija), sobre todo a causa de las grandes migraciones
del occidente andino a los valles y llanuras del oriente, en el transcurso de
lo que se denominaba “la marcha hacia el oriente”, fomentado por los
gobiernos a partir de la Revolución Nacional de 1952. Hoy día, partes
importantes de las mayores ciudades del oriente boliviano son constituidas
por descendientes quechuas y aimaras del Altiplano boliviano que no
solamente han llevado consigo las costumbres culturales, sino también una
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religiosidad particular que se distingue del catolicismo original de las tierras
de acogida42.
Santa Cruz, la mayor ciudad de Bolivia en términos de población y
de movimiento económico, se caracteriza por un crecimiento espectacular
del “cinturón de pobreza” que aglutina a una población migrante
mayoritariamente andina y que se ubica a partir del tercer o cuarto anillo
hacia las afueras de la ciudad (a veces se dice que se trata de un cinturón
que puede “asfixiar” al centro comercial y pituco de la ciudad). A pesar
del discurso “camba” (una supuesta identidad étnica prestada de la
población rural del Departamento) de la oligarquía cruceña, la mayoría
de la población no se identifica plenamente con sus valores43 y mantiene
una identidad “andina”, guaraní, chaqueña o al menos híbrida, pero
normalmente invisibilizada y en forma semi-clandestina. El creciente
racismo de una élite “blanca” frente a los migrantes “indios” provenientes
del Altiplano andino conlleva una compartimentalización segmentaria de
la población urbana, un apartheid a lo boliviano que a veces desemboca en
violencia fascista motivada racialmente.
La historia de la evangelización de Bolivia muestra una diferencia
bien marcada entre el oriente y occidente. La Conquista española operó
en la zona oriental fundamentalmente a través de reducciones jesuíticas y
misiones franciscanas, debido al fracaso de las avanzadas militares
españolas y el desencanto y posterior desinterés de los conquistadores al
no hallar oro o plata. Al ambiguo tutelaje de los misioneros, protector pero
alienante a la vez, se le sumó en la historia más reciente el sometimiento de
importantes porciones de la población del oriente boliviano a la estructura
del patronazgo y gamonalismo, primero en las explotaciones de la goma y
la castaña, y luego en las grandes haciendas y latifundios que hasta el día
de hoy cuentan con trabajadores en condiciones de semi-esclavitud, tal y
como fue comprobado por diferentes instancias nacionales e internacionales.
La Reforma Agraria de 1953 no tenía prácticamente ningún impacto
en esta parte del país que sigue arrastrando, por tanto, los problemas del
latifundismo y de una religiosidad arraigada en el feudalismo y una actitud
señorial. Mientras tanto, el occidente andino, sobre los cimientos de las
civilizaciones de Tiwanaku, Tawantinsuyu, Uru y Pukara, no corrió la misma
suerte. La “convergencia” estructural y cosmológica entre el catolicismo
español renacentista y el sentimiento religioso andino 44 permitía una
penetración colonial mucho más fuerte, usando la existencia de centros
rituales y comerciales importantes (wak’as) de la región como puntos de
partida de la evangelización española (Sucre o Charkas; Potosí; Chuqiyapu
o La Paz; Tiwanaku; Copacabana). Como efecto paradójico, el catolicismo
andino – y posteriormente también las iglesias evangélicas– iba a
manifestarse mucho más “andino” y sincrético (que “español”) que por
ejemplo el catolicismo en oriente que se mantuvo más “español” que
chiquitano, guaraní o chaqueño.
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Mientras que la religiosidad –tanto católica como evangélica– en la
parte oriental del país ha mantenido un rostro mucho más occidental e
hispano, en el occidente se manifiesta bajo diferentes grados de
sincretización con las religiones autóctonas, sobre todo de origen quechua
y aimara. Y esto tiene validez hasta para algunas iglesias evangélicas
(principalmente la metodista, la luterana y la metodista pentecostal), tal
como confirman los datos de la Encuesta de 2001 (ALBÓ, 2002). Sin
embargo, a partir de la irrupción de iglesias neopentecostales, se nos
presenta un panorama un tanto distinto. En un estudio interesante sobre
la presencia del pentecostalismo entre la población aimara del altiplano
boliviano, el sociólogo Gilles Rivière afirma que “el grupo religioso se
construye a partir de una ruptura radical con el ‘mundo’, ruptura que
pasa por el rechazo y el abandono de las ‘costumbres’, de las prácticas y
‘supersticiones’ de los no convertidos, llamados ‘católicos’ o ‘paganos’”
(RIVIÈRE, 2004, p. 268). Los fieles tienen prohibido mascar la hoja de coca,
beber alcohol, jugar al fútbol, escuchar la radio, y se les exhorta incluso
abandonar su lengua nativa, el aimara o quechua que es considerado
“idioma de indios”, sustituir la vestimenta tradicional por una más urbana
y destruir los instrumentos musicales tradicionales.
El tradicional “camino” (thaki) de un comunero para acceder a los
diferentes cargos sociales y religiosos en su comunidad es sustituido por el
camino “evangélico” de la renuncia total al “mundo” y las “idolatrías” de
los católicos (imágenes, Virgen María, fiestas patronales, etc.) y de los rituales
andinos (pago a la pachamama, waxt’a, wilancha, pijcheo de la hoja de coca,
etc.). Hoy en día, en algunas comunidades rurales andinas, estamos
presenciando una reedición de las campañas de “extirpación de idolatrías”,
parecidas a las que la iglesia católica pretendió llevar adelante en el siglo
XVII45. Sólo que esta vez, la empresa tiene el apoyo económico e ideológico
por parte de poderosas iglesias evangélicas fundamentalistas de EE.UU.
que luchan en nombre de la “civilización” y de un evangelio de la
“prosperidad” contra lo que llaman “neopaganismo” y “comunismo
indigenista”46. Cabe recordar que el auge de las iglesias fundamentalistas
de origen estadounidense en el país se remonta al tiempo de la dictadura
militar (décadas setenta y ochenta del siglo pasado), como una estrategia
de lucha espiritual contra los “curas comunistas” (parte de la iglesia católica
luchaba abiertamente contra la dictadura y se volvió mártir) y su Teología
de la Liberación47.
El discurso actual de algunos líderes de iglesias evangélicas
fundamentalistas apunta a la misma dirección: Si bien es cierto que el
enemigo principal (la “ramera” del libro Apocalipsis) sigue siendo la iglesia
católica, se interpreta al Gobierno indígena de Evo Morales como un
instrumento en las manos de Dios para “juntar las naciones dispersas” y
prepararse para la batalla final. Llama la atención que resurge un discurso
de la era de la Guerra Fría que une los sectores más conservadores de las
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iglesias y del empresariado en contra del “neo-comunismo” político, del
“libertinaje” moral (en alusión a los derechos sexuales y reproductivos) y
del “neo-paganismo” andino.
Por otro lado, el discurso de la “descolonización” promovido por
los movimientos sociales y el Gobierno indígena, también empieza a dirigirse
–aunque temerariamente– a estas iglesias evangélicas “etnocidas”. Después
de las arremetidas contra el “neo-colonialismo” de la iglesia católica,
algunos sectores de la inteligentsia indígena se dan cuenta de los verdaderos
propósitos de alienación cultural que llevan adelante ciertas iglesias
evangélicas y sus ONGs que trabajan sobre todo en el ámbito rural y entre
las y los migrantes indígenas en las grandes ciudades. Aunque la postura
de estas iglesias e instituciones religiosas respecto al campo político es
aparentemente “apolítica”, su ideal civilizatorio (occidentalnorteamericano) implica una resistencia y lucha contra el proceso de
cambio de la reivindicación indígena y a un alineamiento tácito con la
oligarquía económica y los partidos tradicionales48.
La Pelea Por La Educación Religiosa
En base a la nueva Constitución Política del Estado, la educación
religiosa en los colegios fiscales (estatales), hasta ahora monopolio de la
iglesia católica, debe de ser rediseñada en términos de la “neutralidad
confesional” de todos los órganos e instituciones públicas. Hasta la fecha
no existe ninguna propuesta contundente por parte del Ministerio de
Educación que llamó a una convocatoria para elaborar un currículum para
la nueva asignatura. Existen al menos cuatro posibilidades respecto a la
educación religiosa en Bolivia: 1. Que se descarte cualquier tipo de
educación religiosa en las instituciones educativas públicas y que las iglesias
asuman ésta fuera del ámbito público (escuelas dominicales, catequesis
parroquial, etc.). 2. Que se introduzca una suerte de educación interreligiosa
en los colegios fiscales que toma en cuenta los diferentes credos existentes
en el país, incluso las religiones ancestrales de los pueblos originarios. 3.
Que se incorpore una asignatura de Fenomenología de la Religión que se
abstenga de todo tipo de debate y adoctrinamiento confesional. 4. Que se
incorpore una asignatura de ética, sabidurías indígenas, espiritualidad y
cosmovisiones que se orienta en tradiciones pre-hispánicas indígenas.
Vamos a discutir brevemente cada una de las alternativas,
empezando por la última:
Ad 4: Si bien es cierto que la última opción violaría la imparcialidad
religiosa del Estado que incluye una neutralidad ideológica y religiosa
respecto a creencias espirituales, cosmovisiones y filosofías (Art. 21 de la
CPE: “libertad de pensamiento, espiritualidad, religión y culto”), el afán
“descolonizador” del proceso de cambio podría implementar como una
suerte de “actitud afirmativa” (o “discriminación positiva”) la enseñanza
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pública de espiritualidades, cosmovisiones y filosofías indígenas andinoamazónicas, para contrastar la tradicional enseñanza “neo-colonial” de
los valores y conceptos occidentales-cristianos. Sólo que este tipo de
enseñanza “espiritual” debería de ser regionalizada, para no caer en un
andinocentrismo, crítica reiterada no solamente por ciertos sectores de las
iglesias, sino sobre todo por los líderes departamentales del oriente boliviano.
Además, no existe ninguna propuesta concreta, ni materiales didácticos
ya elaborados, aparte de unas propuestas aún muy prematuras de amautas
andinos de introducir la “cosmovisión andina” en los currículos de las
escuelas públicas.
Ad 3: La tercera opción – una suerte de Fenomenología de la Religión
– tomaría en cuenta la “neutralidad confesional” al trasmitir información
religiosa totalmente libre de adoctrinamiento confesional. Este ideal
“positivista”, sin embargo, no se podría realizar en la práctica concreta de
la sociedad boliviana, debido a la “carga altamente ideológica” que contiene
el campo religioso y/o espiritual. Una “indiferencia” confesional
posmoderna ante el panorama tan diverso de credos y cosmovisiones
podría ser una opción en sociedades secularizadas como son la mayoría
de las europeas, pero no para la boliviana que se declara en un 98%
“religiosa”. Eso no quiere decir que no fuera necesaria una información la
más “objetiva” e “imparcial” posible sobre las diferentes ofertas religiosas,
incluyendo las religiones y sabidurías ancestrales. Existe muchísima
desinformación y grandes prejuicios al respecto, de un lado y del otro.
Mientras que ciertas iglesias evangélicas fundamentalistas “satanizan” a
las manifestaciones espirituales indígenas, éstas “demonizan” a su vez el
afán lucrativo y neo-colonizador de aquéllas.
Ad 1: Por lo tanto, es muy probable que se llegue a una de las
primeras dos opciones: O bien prescindir de cualquier educación religiosa
pública (estatal), o bien apuntar a una suerte de educación interreligiosa.
El primer modelo que se da en muchos países donde rige el principio de la
laicidad del Estado (como en México, Chile o incluso países con alta
población indígena como Guatemala, pero también en países “seculares”
como Francia), delega la educación religiosa a los diferentes actores de la
sociedad civil (iglesias, congregaciones y asociaciones religiosas, escuelas
coránicas, etc.) y se reserva una educación “ética” y/o “filosófica” que
pretende ser ideológica y religiosamente neutral. Sin embargo, a pesar de
la laicidad constitucional del Estado, muchos países ven conveniente que
sus futuros/as ciudadanos/as tengan conocimientos básicos sobre el campo
religioso y de las principales tradiciones religiosas que han tenido y siguen
teniendo impacto en la sociedad en la que viven. En la perspectiva de un
renacimiento o resurgimiento de lo religioso en la era posmoderna, el Estado
también tendrá un cierto interés y responsabilidad en una enseñanza
respecto al campo religioso y sus implicaciones para la sociedad, los
procesos de cambio y su rol en lo que viene ser el programa de
“descolonización” mental e intelectual.
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Ad 2: El modelo de una educación interreligiosa en las instituciones
educativas públicas (estatales) podría ser una alternativa atractiva, tanto
para los diferentes actores religiosos como para el mismo Estado. De este
modo, se mantendría el principio regidor de la “imparcialidad confesional”,
pero no se renunciaría a la enseñanza religiosa como un campo importante
de saberes y destrezas de las y los futuros/as ciudadanos/as. En este
momento, entre los responsables del Ministerio de Educación no existe la
más mínima idea de cómo podría ser una plan de estudios, un currículum
y las respectivas competencias educativas de una “educación
interreligiosa”. Las y los profesores/as actuales de religión en los colegios
estatales tienen una formación “confesional” católica, y hasta el momento
son los institutos pedagógicos católicos (las llamadas “Normales”) los que
tienen el monopolio de la formación de las y los docentes de religión, tanto
para los colegios fiscales como para los de convenio y los católicos49.
Será muy difícil “reprogramar” a estos/as docentes en un sentido
ecuménico y más aún en perspectiva interreligiosa. Pero más complicada
me parece la formación de docentes “interreligiosos/as” que pertenecen a
una de las mencionadas iglesias evangélicas fundamentalistas
(neopentecostales) que ya desde su propia concepción rechazan todo tipo
de ecumenismo inter-denominacional y, por supuesto, cualquier
macroecumenismo interreligioso con las manifestaciones religiosas
ancestrales de los pueblos originarios que son vistas como “diabólicas”,
“idólatras” y “paganas”.
Por el otro lado, también resultará muy conflictiva la inclusión como
“docentes interreligiosos/as” a los amautas, yatiris, paq’os y otros ritualistas
indígenas, debido a una postura a menudo hostil y hasta fundamentalista
hacia cualquier religión o iglesia cristiana. Un andinismo, indigenismo o
pachamamismo intransigente no sólo sería incompatible con la
“imparcialidad confesional” del Estado, sino que creería problemas con
regiones con poca presencia de la religiosidad andina indígena y, por
supuesto, con sectores amplios de las iglesias. Éstos se verían en su derecho
al haber advertido desde la toma de poder del gobierno indígena de que se
iba a imponer las creencias de los pueblos originarios por encima de las del
cristianismo.
Como garante de la libertad religiosa, el Estado también tendría
que vigilar por la “imparcialidad confesional” de una educación
interreligiosa. Al asumir la tarea de la formación de las y los futuros/as
docentes, le tocaría adoptar ciertos criterios de equilibrio, tanto en los
contenidos como en la selección del personal educativo. Sería incompatible
con el carácter laico de la enseñanza pública la posibilidad de que un/a
docente “interreligioso/a” que pertenece a una iglesia neopentecostal
fundamentalista o que forma parte del movimiento indigenista anticristiano adoctrine en sus clases “interreligiosas” a las y los alumnos/as y
haga proselitismo para su respectivo credo. Pero el Vice-ministerio de Culto
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– o como se lo llamará en el futuro – tampoco puede convertirse en una
suerte de “Congregación por la Doctrina” interreligiosa, guardián de un
equilibrio religioso muy débil o hasta inexistente.
A Manera de Conclusión: En Búsqueda de la Inclusión
A pesar de una aparente homogeneidad religiosa en Bolivia, los
factores que contribuyen a mayor exclusión, discriminación y
enfrentamientos se han multiplicado en los últimos años50. El proceso
político de cambio que pretende acabar con el (neo-) colonialismo externo
e interno, buscando la inclusión integral de los sectores marginados y
excluidos de la vida política, económica y social, este mismo proceso de
cambio viene agudizando (o hace visibles) las contradicciones y las
relaciones de poder que también se manifiestan en lo religioso. No es por
nada sorprendente que la línea divisoria de aguas entre oposición y
Gobierno, entre oriente y occidente, entre los defensores del viejo orden y
los ideólogos del socialismo del siglo XXI atraviesa las mismas iglesias y
congregaciones religiosas. En el caso de la iglesia católica que sigue siendo
–de lejos– el grupo religioso con mayor adhesión, se nota –en sintonía con
lo que pasa a nivel mundial– de manera cada vez más notable una iglesia
“restauradora” y otra “progresiva”, división que no coincide simplemente
con niveles de jerarquía, ni con regiones del país.
Tal como en tiempos de la dictadura militar, hay católicos y católicas
que apuestan por el proceso de cambio hacia un socialismo democrático y
plurinacional, mientras que otros/as luchan en contra de este Gobierno
tildado de “cripto-comunista” y “ateo”, o, en el mejor de los casos, “neopagano”. Cabe notar que son sobre todo dos sectores de la iglesia católica
que se oponen al proceso de cambio: una jerarquía neo-conservadora que
manifiesta posturas cercanas al Opus Dei (aunque casi no hay miembros
nominales de esta prelatura personal católica) y a otras tendencias
restauradoras (neo-clericalismo y sacramentalismo), por un lado, y los
movimientos laicales carismáticos, Schoenstatt y neo-catecumenales. Ambas
bandas se asocian con las clases media y alta de los ámbitos urbanos y se
distancian de la tradición liberacionista en la teología latinoamericana y
los intentos de la “inculturación” indígena, tanto en lo pastoral como en lo
teológico (“teologías india y andina”).
Lo mismo se puede observar en otras iglesias, sobre todo en las
llamadas “iglesias evangélicas históricas”. En la iglesia metodista (IEMB)
se puede observar un proceso de tensión muy notable en su propio proceso
constituyente, entre una fracción aimara (hasta ahora la dominante) y
otra mestiza que toma distancia del proyecto de cambio del MAS. Sólo en
las dos vertientes “fundamentalistas” – las neopentecostales y las andinistas
anti-cristianas51 – existe un consenso tácito de lucha contra el “enemigo”,
identificado y personificado en la figura de Evo Morales, de la jerarquía
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católica (en el caso de las iglesias evangélicas fundamentalistas) o de los
pastores evangélicos alienados y “etnocidas” (en el caso de los movimientos
andinistas, indigenistas y pachamámicos). Parece que el fin del monopolio
religioso de la iglesia católica en la Constitución Política del Estado recién
abra las heridas y las diferencias religiosas en el seno de la población
boliviana, lo que va de la mano con un creciente racismo y una
confrontación regional y étnica 52. En vez de contribuir a un diálogo
intercultural e interregional, la mayoría de las iglesias y grupos religiosos
atizan aún más la mecha encendida de una lucha por la “verdad”, a veces
incluso en términos de un milenarismo militante y violento53.
Las sabidurías y cosmovisiones indígenas, tanto del Altiplano, de la
Amazonía como de las llanuras orientales, reflejan un espíritu de inclusión,
de complementariedad polar, de una integración de los opuestos, de
armonía y equilibrio. Sólo en el caso de un deterioro irreparable de las
relaciones humanas y cósmicas, se plantea la posibilidad de un pachakuti,
un cambio brusco y violento, una revolución cósmica que implica un
reordenamiento total de lo que viene a ser el orden tradicional de las cosas.
Un tal pachakuti se produjo, según la sabiduría indígena andina, hace 500
años con la Conquista y la subsiguiente colonización cultural, religiosa y
económica. Para muchas personas en los Andes, hoy en día estamos ante
un nuevo pachakuti de dimensiones históricas que se manifiesta en los
“signos del tiempo” del cambio paradigmático emprendido por el primer
gobierno indígena, del cambio climático, de la crisis financiera y económica
y del aumento de epidemias y pandemias. Para muchos representantes de
iglesias evangélicas fundamentalistas y de un indigenismo radical, vivimos
en tiempos “apocalípticos”, respectivamente “revolucionarios”.
A pesar de que el discurso “descolonizador” y “andinista” es sobre
todo un asunto de una clase aimara (y en menor medida quechua)
intelectual reducida, empieza a pegar en la población indígena que sigue
considerándose “cristiana” y en su mayoría “católica”. Depende mucho
de la postura de la iglesia católica respecto al proceso de cambio, a la
inclusión de la población indígena y el compromiso firme en el sentido de
la “opción por las y los pobres”, si estos sectores pueden continuar siendo
católicos/as y a la vez revolucionarios/as del cambio y del proceso de
“descolonización”. Muchas señales apuntan últimamente a otro camino:
Asociar a la iglesia católica con las y los “neo-colonizadores/as”, a la
oposición férrea al cambio, a la oligarquía de siempre y a la
occidentalización (posmoderna) de la sociedad boliviana. Esta tendencia
es fomentada no solamente por sectores dentro de la misma iglesia católica,
sino de forma mediaticamente muy eficaz por ciertos sectores del Gobierno,
de las iglesias evangélicas neopentecostales y de representantes de un
indigenismo militante y duro.
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Notas
1
Doctor en Filosofía. Docente e investigador en el Instituto Superior Ecuménico Andino de
Teología/ISEAT, Universidad Católica Boliviana San Pablo/UCB e Universidad Mayor
de San Andrés/ UMSA. Coordinador Nacional de la Misión Belén de Immensee (MBI) en
Bolívia. E-mail: [email protected]
2
Véase al respecto una publicación muy reveladora del NIM (Instituto de Misionología de
Nimwega en Holanda) que ha realizado una investigación sobre el campo religioso en el
Caribe: CASTILLO GUERRA, Jorge E. y VERNOOIJ, Jaap (eds.). Relaciones interreligiosas
en el Caribe: Ecumene, interculturalidad e interreligiosidad. Münster-Hamburgo-Londres:
LIT, 2009. (en prensa).
3
Hay que precisar que esta postura no sólo es defendida por sectores de la iglesia católica,
sino, y sobre todo, por ciertas iglesias neopentecostales que consideran el paso a un Estado
laico como el fin de la “cultura cristiana” y el inicio de un neo-paganismo y/o ateísmo en
clave indígena.
4
La nueva Constitución Política del Estado (CPE) fue aprobada por el pueblo boliviano el
25 de enero de 2009, con un 61.43% y promulgada por Evo Morales el 7 de febrero de 2009,
después de un largo proceso de avances y retrocesos, obstáculos y enfrentamientos desde
la instalación de la Asamblea Constituyente, el 6 de agosto de 2007.
5
La Encuesta se aplicó a una muestra representativa de hogares; las cuatro preguntas sobre
la religión se aplicaron a 16.786 personas mayores de 15 años. En las respuestas figuran 292
nombres de iglesias y congregaciones religiosas que se reparten entre las iglesias católica,
evangélicas históricas, pentecostales, neopentecostales, otras cristianas y otras instituciones
religiosas no cristianas.
6
Cabe mencionar que no todas las iglesias y “asociaciones religiosas” mencionadas por las
personas encuestadas en 2001 (292) figuran en la lista que maneja el vice ministerio de
Culto. En octubre de 2007 estaban registradas 323 “asociaciones religiosas no católicas” y
229 “congregaciones de la iglesia católica” con personería jurídica.
7
Con este denominador se llama a las iglesias evangélicas que proceden de la Reforma
Protestante del siglo XVI, tanto del ala magisterial (luterana, calvinista, reformada,
anglicana) como del ala radical (metodista, bautista, presbiteriana) y del anabaptismo
(menonita).
8
Según Julio Córdova (2008a, p. 94s.), hay tres posiciones respecto a la relación entre el
pentecostalismo y el neopentecostalismo: 1) La que no ve diferencias sustanciales entre
los dos; 2) La que identifica al movimiento neopentecostal como una corriente dentro del
pentecostalismo; 3) La que considera el neopentecostalismo como un fenómeno
sustancialmente diferente al pentecostalismo y a las iglesias evangélicas clásicas. En un
esquema agrupa estas dos vertientes (pentecostalismo y neopentecostalismo) según
diferencias doctrinales-teológicas, de organización eclesiástica, origen histórico, diferencias
sociológicas y culturales. Respecto al origen histórico, las iglesias pentecostales surgen a
principios de 1900 en EE.UU., mientras que las iglesias neopentecostales se extienden, a
partir de mediados de los años 1960, también a partir de EE.UU. debido a la crisis de la
modernidad.
9
Esto quiere decir que las iglesias evangélicas históricas se encuentran en una situación
parecida a la de la iglesia católica, respecto a la pérdida de miembros. La única diferencia
es el desfase temporal: La iglesia católica empieza a “perder” miembros desde el ingreso
de otras iglesias al territorio nacional (fines del siglo XIX) y la implementación de la
libertad de culto (1906), pero con mayor aceleración a partir de los años 1970, por la
incursión de iglesias neopentecostales. Las iglesias evangélicas históricas manifiestan un
crecimiento hasta los años 1980, para llegar después también a una tendencia descendiente
cada vez más acentuada.
10
Véase Helgeson y Estermann, 2008, al respecto.
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11
Felix Patzi ha sido antes director del Instituto de Investigaciones Sociológicas de la
Universidad Mayor de San Andrés (UMSA) en La Paz, bastión del trotzkismo y,
posteriormente, de una línea indigenista intelectual dura y anti-religiosa. Su remoción
del gabinete, después de unos seis meses, se debía sobre todo a su postura de intransigencia
con la iglesia católica respecto a los colegios particulares y de convenio, y su discurso
cada vez menos compatible con una línea conciliadora dentro del mismo Gobierno que
buscaba nuevamente el acercamiento a la iglesia católica. Apenas instalado como Ministro
de Educación, Patzi proponía sacar la religión católica y evangélica de la escuela para
reemplazarlas por clases de historia de las religiones ancestrales.
12
En diferentes ocasiones, Cardenal Terrazas atacó en sus homilías dominicales al Gobierno.
En una de ellas, en la asamblea del CELAM en Aparecida, deslegitimó ante la prensa
internacional el proceso de cambio en el país, denunciando el “centralismo”, la tendencia
“dictatorial” y el nepotismo del Gobierno. Posteriormente, negó la existencia de la semiesclavitud (de la población guaraní) en ciertos latifundios del Departamento, investigada
por el Instituto Nacional de Reforma Agraria y comprobada por una delegación
internacional. Junto con el voto público en el mencionado referéndum por la autonomía
de Santa Cruz, se alineaba ante los ojos de la población sencilla con la oligarquía
agroindustrial y petroquímica y el Comité Cívico que lleva adelante un discurso de
derecha y de las clases pudientes. El atentado al Cardenal, el 13 de abril de 2009, por un
grupo para-militar de la ultra-derecha, tenía como propósito echar la culpa al Gobierno y
hacer de Julio Terrazas un mártir por la lucha contra el Movimiento al Socialismo y el
proceso de cambio.
13
Esta ausencia es una de las causas de una “evangelización a medias”, mediante un
sacramentalismo y ritualismo puntuales, que fomentaba la subsistencia de los rituales
andinos prehispánicos y la “idolatría”. Por otro lado, el vacío fue aprovechado desde un
inicio por las iglesias no-católicas que vieron el campo como un área de “civilización”
(priorizando la educación), modernización y de progreso, es decir: “occidentalización”.
14
Hay un debate académico sobre la pertinencia de llamar al universo religioso-espiritual
andino “religión”, “religiosidad”, “espiritualidad” o simplemente “cosmovisión”. Los
mismos representantes andinos entienden su forma de creer y su ritualidad normalmente
en términos de “espiritualidad”, pero cuando les toca entrar en un diálogo con otras
tradiciones religiosas, sapienciales, filosóficas y espirituales, a menudo subrayan que
viven una “religión” en pleno sentido de la palabra, poseen una “filosofía” propia (y no
solamente una “cosmovisión”) y que comparten muchos elementos con las religiones
llamadas “altas” (especialistas rituales; una doctrina; una liturgia; un credo; textos
sagrados, etc.). Cf. Estermann 2007.
15
Lo mismo se puede decir de la “teología andina”. Existen básicamente dos vertientes: Una
“teología andina” cristiana que pretende reelaborar una teología cristiana en base a los
parámetros filosóficos (o mejor dicho: pachasóficos) y espirituales andinos. El proyecto
de investigación del ISEAT (2005-2006), con los dos tomos de “Teología Andina” (ISEAT
(ed.) (2006/2009). Teología Andina: El tejido diverso de la fe indígena. 2 Tomos. La Paz:
ISEAT/Plural. 2ª ed. ISEAT 2009), se inserta en esta corriente. Por otro lado, una “teología
andina” indígena y autóctona no-cristiana que quiere recuperar un pensamiento religioso
y una espiritualidad “no contaminadas” por el cristianismo. Esta corriente se alinea con
el proyecto político de un indigenismo o indianismo radical y trata de constituirse
académicamente, como por ejemplo en la carrera de “Teología Andina” en la Universidad
del Tawantinsuyu, en la ciudad de Laja y El Alto.
16
Las propuestas del Movimiento Indígena Pachakuti (MIP) del Mallku (líder indígena) Felipe
Quispe, quien ha sido catequista católico y compañero de lucha de Álvaro García Linera,
actualmente vicepresidente de Bolivia, en el Ejército Guerrillero Tupac Katari (EGTK) incluyen
la constitución de una “Nación Aimara” en el Qullasuyu, una de las cuatro regiones del
Tawantinsuyu de los Incas. Tanto el concepto de una ‘nación aimara’ como de una etnia
qulla son construcciones ideológicas de los últimos cuarenta años, incluyendo a la Whipala
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(bandera con 49 cuadrados de siete colores) como símbolo panandino. En lo religioso,
este movimiento busca la restauración de una “religión andina” pre-hispánica, con la
recuperación de deidades como Wiraqucha, Pachakamaq, T’unupa y los espíritus tutelares de
los ancestros.
17
Pienso que será menos de 1% de la población que afirmaría tener una “religión
autóctona no-cristiana”.
18
La ch’alla o el asperje con alcohol o chicha de maíz se ha vuelto una práctica tanto de la
población indígena, como mestiza e incluso blanca. Se la practica en ciertas fechas claves
del calendario agrícola-religioso del año (Carnaval; agosto, Todos Santos), en fiestas
patronales, en inauguraciones de instituciones, edificios y colegios, en el inicio de un
negocio, para una nueva movilidad, etc. La waxt’a o el “despacho” andino es una mesa
ritual que establece una “comunión” entre los diferentes actores, niveles y tiempos,
reestableciendo la armonía y el equilibrio cósmicas. El pago a la pachamama se realiza
antes de la siembra (para pedirle permiso), después de la cosecha (para agradecer) y en
cualquier ocasión para implorar su intercesión ante Dios y los achachilas (espíritus tutelares).
19
Según la teoría de la “convergencia”, los dos universos religiosos –el andino prehispánico
y el católico español– convergen en sus estructuras rituales, muchas afirmaciones teológicas
y las prácticas sacramentales. Hay muchos indicios para afirmar que es por esta
“convergencia” paradigmática que la religión impuesta ha sido asimilada por la población
indígena con asombrosa velocidad, reinterpretando al universo católico en clave indígena:
la Virgen María se asocia con la pachamama, Jesucristo con los achachilas o apus, los espíritus
tutelares y protectores con los Santos, y los ritos de paso andinos con los sacramentos
católicos.
20
Se trata de una costumbre milenaria que ha recobrado vida y publicidad en los últimos
años, por el carácter público de la fiesta de las ñatitas el 8 de noviembre, en el Cementerio
Central de La Paz. Desde mucho tiempo, la gente guarda en su casa una calavera (ñatita)
de un ser querido, como signo de protección y prosperidad; en algunos casos, se la lleva
incluso en los viajes o para los negocios. En la fiesta central, se lleva la ñatita (adornada y
vestida) al Cementerio, se la hace fumar cigarrillo, mascar coca y comer, y se pide al cura
católico que se las bendiga. El año pasado, el cura encargado del Cementerio rechazó tal
pedido, con el argumento de que se tratara de una costumbre “pagana” y un ritual para la
muerte.
21
No sólo se prohíbe el consume de alcohol, tabaco y el pijcheo de la hoja de coca, sino que
se obliga tanto a varones como mujeres a ponerse vestimenta “occidental” (terno con
corbata; faldas largas) y adoptar hábitos patriarcales (el varón como cabeza de la familia).
Pero se erradica sobre todo cualquier ritual y símbolo religioso “andino”, desde la ch’alla,
la cruz andina, hasta la waxt’a y la hoja de coca y costumbres religiosas en torno al
matrimonio, entierro y fenómenos naturales.
22
Puede ser que el mismo Gobierno no se haya percatado todavía del cambio fundamental
del campo religioso en Bolivia y sigue con una mentalidad (inconsciente) de la
“cristiandad” en el sentido del quasi-monopolio de la iglesia católica.
23
Esto hasta se refleja en el lenguaje, al denominar a la fracción radical del ala indigenista
(el MIP de Felipe Quispe y otros) como “Talibanes andinos”. La “guerra santa”, desatada
a raíz del 11 de septiembre de 2001 (el atentado a las Torres Gemelas en Nueva York) entre
la “civilización occidental-cristiana” y el “islamismo fundamentalismo”, se repite en el
ámbito andino como lucha apocalíptica entre la verdadera “religión cristiana” evangélica
y la civilización occidental-norteamericana, por un lado, y la “idolatría neopagana” del
fundamentalismo andino (“Talibanes andinos”), por otro lado.
24
El silogismo es muy simple, pero a la vez convincente para las iglesias evangélicas
“fundamentalistas”: 1) La Conquista de América Latina por España y Portugal, dos naciones
eminentemente católicas, conllevaba la implementación de un modo y estilo de vida
acorde con la “festividad” e “idolatría” católicas, llevando al despilfarro de la riqueza y la
escasez periódica. 2) La Conquista de Norteamérica por Gran Bretaña (y de menor peso
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por Holanda), una nación eminentemente protestante, conllevaba la implementación de
un modo y estilo de vida acorde con la “ascesis” y la “laboriosidad” (núcleo de la tesis de
Max Weber), llevando a la acumulación de riquezas (capital) y una economía floreciente.
3) Ergo: Una supuesta Conquista de América Latina por Gran Bretaña y el espíritu
anglosajón-protestante hubiera hecho surgir naciones prósperas y económicamente
florecientes, comparables con EE.UU. En este silogismo, la superioridad religiosa (la
“pureza” del evangelismo) se junta con la superioridad cultural-civilizatoria de la
“filosofía” anglosajona-occidental sobre la “latinidad” que, en el caso de la iglesia católica,
se “contamina” aún más con la “inferioridad” civilizatoria al fomentar el sincretismo
indígena-católico. Cf. Estermann 2009.
25
Cabe recordar que el pedido de una nueva Constitución Política del Estado resulta
principalmente de la lucha de los pueblos originarios, primeramente de las Tierras Bajas
(1993) del oriente boliviano, y de los movimientos sociales, a través de las dos “guerras”
por el agua (2000) y el gas natural (2003). Entre las condiciones que los movimientos
sociales ponían al Gobierno de transición, después de la derrota de “Goni” (el presidente
Gonzalo Sánchez de Lozada) y su régimen ultra-neoliberal en octubre de 2003, figura la
convocatoria a una Asamblea Constituyente. Bajo el presidente interino, Carlos Mesa, el
pueblo boliviano se pronuncia, junto al referéndum por las autonomías departamentales,
a favor de una Asamblea Constituyente que sería instalada finalmente por Evo Morales,
el 6 de agosto de 2006. Había mucho forcejeo entre el Senado, todavía dominado por los
seguidores de Goni, y la Cámara de Diputados, sobre el modo de elección de los miembros
de esta Asamblea. Casi durante medio año, sus miembros debatieron sobre cuestiones de
procedimiento (sobre todo la espinosa cuestión de los “dos tercios”, condición para aprobar
los artículos propuestos de la nueva CPE), y la oposición intentó entorpecer el proceso
introduciendo temas polémicos como la capitalidad plena de Sucre y el tema de las
autonomías departamentales que fueron adelantadas en cuatro Departamentos de la
llamada “Media Luna” (Pando, Beni, Santa Cruz y Tarija), en procesos ilegales y
anticonstitucionales. El ulterior proceso de la aprobación de la CPE por la Asamblea
Constituyente, su revisión en el Congreso y la votación en el referéndum popular (25 de
enero de 2009), es un ejemplo triste y tragicómico de la pugna por el poder entre la
mayoría de izquierda y una mayoría de derecha decidida a defender sus privilegios con
dientes y armas.
26
La postura de las iglesias evangélicas respecto a la laicidad del Estado, hasta el día de hoy,
es muy ambigua. Por un lado, consideran la “neutralidad confesional” como una victoria
de su permanente lucha contra la iglesia católica y su monopolio en la enseñanza religiosa,
pero, por otro lado, siguen apuntando por una suerte de “cristiandad” evangélica, sobre
todo respecto a temas como el aborto, la educación sexual y la defensa del matrimonio
heterosexual.
27
Suso, Martín (2009). “Religiosidad y cambio social”. En: http://www.colectivorebeldia.org/
religiosidad_cambio_social.html> En un comunicado de la Asociación Nacional de
Evangélicos de Bolivia, las Iglesias Unidas y las Asociaciones Cristianas Evangélicas
(ANDEB) del 14 de enero de 2009 (10 días antes del referéndum sobre la nueva Constitución),
se advertía de que la nueva CPE contemplara la “constitucionalización de la idolatría en
Bolivia”, proclamaba “que la homosexualidad está prohibida enfáticamente por Dios” y
alertaba “a toda la sociedad sobre la inserción de los derechos sexuales y reproductivos
en el proyecto de la Constitución Política del Estado, sin protección para los niños y
adolescentes”.
[En:
<http://www.eforobolivia.org/sitio/
leerNotaEspecifico.php?id=5326&categoria=1>].
28
A pocos días del Referéndum, el presidente de Iglesias Evangélicas Unidas, José Luis de
Losantos, señaló en la CPE “cinco aspectos que preocupan, como Dios y el Estado, la
familia, los derechos sexuales y reproductivos, la educación y la propiedad privada. […]
La posibilidad de la legalización del aborto y los matrimonios entre personas del mismo
sexo. […] Otro elemento que ha llamado la atención de la comunidad evangélica es la
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relación que mantendrá el Estado con las religiones y con los creyentes. […] El cristiano
cuestionó el reconocimiento de otras deidades en el proyecto constitucional que, si bien
señala que existe libertad de culto, “revaloriza” los símbolos de adoración de los pueblos
indígenas”. En: <http://www.laprensa.com.bo/noticias/21-01-09/21_01_09_poli3.php>
29
Es decir: aceptar la nueva CPE significaría ser un acto de apostasía e idolatría. Había
también voces de pastores evangélicas que hicieron alusión al nombre del presidente
(“Evo”) como portador (en analogía con la ancestra bíblica Eva) e incitador del mal y del
pecado.
30
En dicha ocasión, el predicador incluso manifestó una interpretación teológica del
holocausto cometida por los nacionalsocialistas alemanes contra los judíos (la Shoah) que
revela toda la dimensión antisemita y fascista de su postura: “Dios se sirve de Evo Morales,
tal como se ha servido de Hitler para castigar a los judíos que han matado a nuestro Señor
Jesucristo”.
31
Entre aspectos que no son explícitamente religiosos, se menciona en varias ocasiones
(Prólogo; Art. 8; 80; 306; 313) el trílogo andino (“No robes, no seas mentiroso, no seas
flojo” – Ama suwa, ama qhilla, ama llulla), la concepción andina del “buen vivir” (suma
qamaña; allin kawsay; ñandereko; teko kavi), la utopía guaraní de la “loma santa” o de la “tierra
sin mal” (ivi maraei) y la perspectiva espiritual quechua del “camino sagrado” (qhapaj ñan).
32
En forma sintética: Art. 4. Afirma la libertad de religión y creencias espirituales; y establece
que el estado es independiente de la religión. Art. 14. (Inc. II) Prohíbe cualquier tipo de
discriminación, también la fundada en credo religioso. Art. 21. (Nº 3) Reconoce el derecho a
la libertad de religión y culto, ya sea en forma individual o colectiva, tanto en público como
en privado. Art. 30. (Inc. II) Afirma el derecho de las naciones y pueblos originarios a su
identidad cultural, creencia religiosa y otras. Art. 86. Afirma que en los centros educativos
se reconocerá y garantizará la libertad de conciencia y de fe y de la enseñanza de religión, así
como el respeto a las diversas opciones religiosas, sin imposiciones dogmáticas, y que no
se discriminará la aceptación de estudiantes por su opción religiosa. Art. 87. Reconoce y
respeta el funcionamiento de unidades educativas de convenio, así como el derecho que
tienen las entidades religiosas de administrar dichas unidades. Art. 99. (Inc. III). Reconoce
como patrimonio cultural del pueblo todo tipo de riqueza cultural, también la procedente
del culto religioso. Art. 104. Habla del acceso al deporte sin distinción de género, idioma,
religión, orientación política, etc. [Resaltado en cursiva es nuestro].
33
Este temor viene a ser alimentado por las prácticas rituales que el actual Gobierno y sus
instituciones promueven en fechas significativas. La ceremonia de la toma de poder, el 17
de enero de 2006 en el santuario precolonial de Tiwanaku, desplazó por primera vez un
Te Deum católico, y a fortiori, una ceremonia cristiana. Los ritualistas indígenas (yatiris,
kallawayas, kawayus, etc.) frecuentan el Palacio de Gobierno y marcan presencia en los
aniversarios cívicos nacionales.
34
En la carta de la Conferencia Episcopal Boliviana (CEB) de marzo de 2008, Para que el
pueblo tenga vida. “Yo he venido para que tengan vida y la tengan en abundancia” (Jn 10:
10): Orientaciones pastorales sobre el proyecto de CPE –que en lo general es bastante
prospectiva y abierta al cambio – se afirma en el punto 34 que “es esencial e indispensable
precisar que este derecho [a la vida] existe desde la concepción del ser humano”, y en el
punto 35 “que el proyecto de CPE, al reconocer los derechos sexuales y reproductivos (Cf.
Art 66), abre la posibilidad de que se legalice el aborto, que es supresión de la vida de un
ser humano por nacer”.
35
La mención explícita de este tipo de religiosidad y espiritualidad y la no-mención de la
religión católica y las prácticas evangélicas (no se habla nunca de “iglesia”) es consistente
con un tenor de una “actitud afirmativa” o “discriminación positiva” de lo indígena, en
general.
36
“El Estado reconoce y sostiene la religión católica, apostólica y romana. Garantiza el
ejercicio público de todo otro culto. Las relaciones con la Iglesia Católica se regirán
mediante concordatos y acuerdos entre el Estado boliviano y la Santa Sede”.
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Ocurrió por primera vez por el Día de El Alto, en marzo de 2009, cuando los diferentes
líderes religiosos estaban en el palco oficial, junto a las autoridades políticas. Este cuadro,
muy inusual para el ojo acostumbrado a la presencia de un obispo católico al lado del
Presidente de la República, refleja esta “neutralidad confesional” del Estado que no significa
la ausencia de la religión, sino la imparcialidad en las relaciones oficiales con instituciones
y personajes religiosos.
38
Después de varios congresos y readecuaciones significativas, aún no fue aprobada por el
poder legislativo. En el Artículo 2, sobre los “Principios de la Educación”, recoge la
laicidad del Estado, afirmando que la educación pública “es laica, pluralista y espiritual
porque respeta cada cultura y la libertad de creencias religiosas, promueve los valores
propios y rechaza todo tipo de imposición dogmática religiosa”.
39
En el capítulo 6 voy a enfocar el tema de la educación religiosa.
40
Cf. nota 28.
41
Especialmente en la polémica entre el Gobierno y el cardenal Julio Terrazas sobre la
cuestión de la existencia de formas de (semi-) esclavitud en ciertos latifundios del
Departamento de Santa Cruz, sobre los estatutos autonómicos, el procedimiento de la
Asamblea Constituyente y la cuestión del narcotráfico, a lo largo del año 2008.
42
De acuerdo a una Encuesta realizada por la Fundación UNIR en 2008, sobre la “Valores y
Actitudes frente a la Conflictividad en Bolivia”, un porcentaje de entre 15 y 20% de la
población de los departamentos Santa Cruz, Tarija, Pando y Beni (la “Media Luna”) se
identifica “totalmente” con la “cultura colla” (que se refiere a las identidades andinas). El
concepto ‘colla’ que procede de la región (suyu) sureña Qullasuyu del Tawantinsuyu o
Imperio Incaico, se ha impuesto últimamente como sinónimo de la parte andina de
Bolivia donde los pueblos originarios quechua y aimara forman la mayoría de la población.
Aunque comprende los departamentos de La Paz, Oruro, Potosí, Cochabamba y
Chuquisaca, éstos últimos dos se debaten política y étnicamente en un intermedio entre
“cultura colla” y “cultura camba” lo que se refleja a menudo en peleas políticas y
manifestaciones de índole racista.
43
Según la mencionada Encuesta, un 29% de la población de Santa Cruz se identifica
“totalmente” con los valores de la “cultura camba” y un 40% “bastante”.
44
Esta “convergencia” se manifiesta en muchos niveles y en rituales y prácticas religiosas
muy diversas (véase nota 18). Cf. Vertovec, Steven (1998). „Ethnic distance and religious
convergence: Shango, Spiritual Baptists, and Kali Mai traditions in Trinidad”. En: Social
Compass (Londres) 45 (no. 2). 247-263; Estermann, Josef (2003). “Religión como chakana: El
inclusivismo religioso andino”. En: chakana vol. 1, No. 1. 69-83.
45
Se suele dividir las campañas de extirpación del siglo XVII, sobre todo en lo que hoy es
territorio peruano, en tres etapas: la llevada a cabo por Francisco de Ávila entre 1609 y
1619; la de Gonzalo de Ocampo entre 1625 y 1626; y la última realizada por el Arzobispo
Pedro de Villagomez entre 1641 y 1671. Las “campañas” contemporáneas son impulsadas
por iglesias evangélicas “fundamentalistas” (de origen norteamericano), a menudo en
nombre del “progreso” y de la “civilización”, y quedan aún prácticamente desapercibidas.
46
La articulación que establecen estas iglesias entre “indigenismo” y “comunismo” resulta
probablemente del programa del Movimiento al Socialismo (MAS) y del movimiento
katarista que reivindican un “comunitarismo” y una economía comunitaria y solidaria,
lejos de cualquier tipo de “comunismo” en la vieja tradición marxista o estalinista. Por
otro lado, también sectores empresariales y terratenientes del oriente boliviano tildan
con cierta regularidad al Gobierno de Evo Morales de “comunista”, en la peor tradición
de la Guerra Fría.
47
Sobre el rol de una izquierda católica militante en tiempo de dictaduras, se recomienda
consultar dos publicaciones del sociólogo Hugo José Suárez: (2003a). La transformación del
sentido: Sociología de las estructuras simbólicas. La Paz: Muela del Diablo; (2003b). ¿Ser cristiano
es ser de izquierda?: La experiencia político-religiosa del cristianismo de liberación en Bolivia en los
años 60. La Paz: Muela del Diablo. Cf. la reseña de Luís Donatello: (2002). “Transformación
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de sentido y radicalización política: El catolicismo liberacionista boliviano y la política”.
En: Sociedad y Religión N° 24/25. 139-141.
48
En 2008 y parte del 2009, las relaciones entre el Gobierno de Evo Morales y los EE.UU. han
llegado a un punto de congelamiento total. Primero fue expulsado el embajador de
EE.UU. en La Paz, Philipp Goldberg, por actos presuntamente desestabilizadores, seguido
por la expulsión del embajador de Bolivia en EE.UU, Gustavo Guzmán. Después, el
Gobierno rescindió el convenio con la DEA, la fuerza anti-narcótica norteamericana, y
más tarde también arremetió contra la cooperación internacional (USAID) y ciertas ONGs
de EE.UU, acusándoles de actividades conspirativas. Al parecer, hasta la fecha no ha sido
identificada ninguna iglesia evangélica de corte norteamericana como parte del plan
conspirativo contra el Gobierno “comunista”.
49
Véase al respecto el No 16 de la revista Fe y Pueblo, editado por el Instituto Superior
Ecuménico Andino de Teología (ISEAT) en La Paz, que se dedica al tema de la “Educación
interreligiosa” y que acaba de salir (julio de 2009). Matthias Preiswerk plantea en su
artículo “Educación religiosa en la Escuela: de confesional a interreligiosa” la siguiente
tipología: 1. “Educación religiosa cristiana” con los dos sub-tipos de “cerrada (o catequesis
escolar” (1.1) y “abierta (1.2); 2. “Enseñanza del hecho religioso”; 3. “Educación a las
cosmovisiones” con los dos sub-tipos de “Educación multirreligiosa” (3.1) y “educación
interreligiosa” (3.2).
50
Hasta la fecha, el factor religioso no fue mencionado en forma explícito como un detonante
“divisionista”. Sin embargo, con el correr del tiempo, los aspectos económicos, étnicos,
regionales e ideológicos se traducen cada vez más en términos religiosos (“ateísmo”,
“neocolonialismo”, “neopaganismo”, “idolatría”, “politeísmo”, “animismo”, etc.).
51
Desde unos tres años, la Universidad del Tawantinsuyu, con sede en Laja y El Alto, ofrece
una carrera de “Teología Andina” que se considera el lugar con el monopolio de formar
a los/as futuros/as yatiris y paq’os, sacerdotes aimaras y quechuas. La postura ideológica
de esta universidad es decididamente anti-cristiana, al equiparar el proceso de
“descolonización” con el de una profunda “descristianización”. Hay personas cercanas al
Gobierno de Evo Morales que están ligadas a la Universidad del Tawantinsuyu, aunque no
han podido imponer su postura como una posición oficial.
52
Cf. los resultados de la “Encuesta Nacional sobre Valores y Actitudes frente a la
Conflictividad” en Bolivia que presentó la Fundación UNIR en marzo de 2009. Un 65% de
la población afirma que “lo que falla en Bolivia es su gente” y un 85% que “no se puede
confiar en las otras personas”. Un 59% opina que “hay mucha discriminación en el país”
y sólo un 2% piensa que “no hay discriminación”. Entre los factores de discriminación, el
“color de piel” está en primer lugar, con 28%.
53
Incluso hay voces que vaticinan una suerte de “guerra santa” en los Andes que se llevaría
entre el fundamentalismo religioso cristiano (sobre todo neopentecostal) y el indigenismo
religioso militante de sectores afines al movimiento Pachakuti y sacerdotes (yatiris)
pachamamistas. Ciertos sectores del segundo grupo se auto-denominan “Talibanes
andinos”. Para ambas frentes, este conflicto ya tiene dimensiones apocalípticas, sea desde
el fundamentalismo evangélico milenarista (Armagedon, segunda venida de Cristo), sea
en términos del pachakuti andino (cataclismo cósmico).
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5
CULTURAS Y DIVERSIDAD RELIGIOSA EN ECUADOR:
CULTURA ANDINA Y EDUCACIÓN INTERCULTURAL
Milton Vicente Cáceres Vázquez
“El hombre corta su cordón umbilical con el cosmos;
se convierte solo en historia” Raimon Panikkar
Introducción
Una de las calidades que los seres humanos vivimos en la actualidad
es el hastío. Contrariamente a lo que se creía, esta vivencia humana no
solo es algo producido por la abundancia de cosas, modos y modas que
simbolizándola ha creado valoraciones de lo que todavía ahora se
denomina “alto estándar de vida”. Gran número de humanos nos estamos
hastiando de esta calificada “buena”, “alta” y “moderna” calidad de vida.
Sin embargo, es muy importante que seamos conscientes de que
este hastío no se está produciendo únicamente en sectores poderosos por
la propiedad y el dinero, sino que avanza a sectores que poco o casi nada
tienen para vivir en la medida en la que van convirtiéndose en consumistas
de las cosas originales o de sus réplicas con tal de estar a la altura de la
cultura que domina. En ambos se trata de un doble hastío: hastío por carecer
y hastío por tener.
Asistimos subordinados a la imposición de las cosas cuyo valor
sustrae nuestro sentido de vida dándole un valor per se por encima de lo
que podríamos definir o resolver con nuestra soberanía.
Pero esta subyugación no es total ni es que carece de crítica y
búsqueda de alternabilidad. Precisamente uno de los contenidos con quien
se estaría produciendo una cada vez más honda contradicción es con el
hastío que va tornándose en búsqueda y construcción de otro sentido de la
vida que es el deseo de espiritualidad.
El totalitarismo de la globalización del modo de producción de una
vida subordinada al mercado, muestra sus límites cuando los seres humanos
suspiramos, expresamos y manifestamos signos, sonidos o texturas,
buscamos aire o levantamos la mano buscando auxilio, solidaridad, calor,
sentido natural de la existencia. Buenas señas y buenas nuevas para un
tiempo suelto, turbulento, dominador del espacio y que sin embargo es un
acontecer que se nos ofrece como desafío.
El hastío es hambre de pan, pero también de trascendencia, es
nostalgia de sacralidad, es hambre de espiritualidad, es también hastío de
la gula.
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Efectivamente, si sentimos que podemos y somos capaces de
comprender que el tiempo-espacio se desenvuelven y enroscan, toca ahora
que la vida en su conjunto y que nuestra particular vida, camine redescubriendo, volviendo, re-tornando. Un ir hacia adelante, volviendo y
buscando conectarnos, es decir volver a ser plenitud.
El hastío humano expresa la sed de re-integración en la totalidad
sagrada que solo se la podría vivenciar haciendo la experiencia de superar
la radical división y oposición entre cuerpo y espíritu, tiempo y espacio
que la cultura moderna ha producido considerándolo verdadero y
necesario.
En el Ecuador en medio de un catolicismo mayoritario en su
población, un día se abrió una ventana no para un simple aggiornamento
sino para vivir un cristianismo de liberación que empataba con una creciente
movilización social de obreros, campesinos y sectores estudiantiles.
La viva huella dejada por el testimonio de Dn. Leonidas Proaño en
la zona mayoritariamente indígena del Ecuador, que es la provincia de
Chimborazo sacude todavía el orden socio político victimador de los pueblos
indígenas, a través de sus organizaciones las mismas que nacieron y se
fortalecieron con el poder de su Palabra. Es justo e importante reconocer
el papel de la educación en este despertar de los pueblos ecuatorianos;
pero estoy hablando de la calidad liberadora de la educación y aquí los
ecuatorianos tenemos una grata deuda con el maestro Paulo Freire, de la
pedagogía del oprimido nacieron muchas experiencias de pedagogías
liberadoras que vertebraron nuestras organizaciones sociales.
Son quizás las tremendas condiciones de opresión que han venido
soportando estos hermanos pueblos, que incidieron en la priorización de
lo socio político por parte del conjunto del movimiento reivindicador que
dejaron de lado el aspecto de su identidad cultural. Esta definición de
fondo impidió aprovechar sus filosofías, todas con basamento e integración
espiritual básicas para continuar buscando con acierto, una alternativa
respondiendo a los apremios de nuestro espacio-tiempo. Entonces vivíamos
momentos en donde creíamos que la respuesta urgente y completa era
una salida y compromiso que resultó incompleto pues el alma de nuestros
pueblos andino selváticos – muchísimo de lo cual nos identifica a todos y a
todas en Abya Yala América – es el sentido integrador de lo espiritual.
El avance arrollador del neoliberalismo viene imponiendo la idolatría
del mercado y al mismo tiempo se multiplican espiritualidades masivas y
masificantes viabilizadas por los medios de comunicación. Sin embargo,
al frente de las confesiones penitentes hay un renacimiento de las filosofías
andinas no solo tomadas desde su contenido académico sino desde lo
propiamente espiritual por vía de lo ecológico, de la búsqueda de la salud,
de una calidad de economía comunitaria y solidaria, todo ello dentro de
una búsqueda de encontrar otro sentido de nuestra existencia y de nuestra
soberanía reducida a mercancía y a usuarios del supermercado mundial.
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Si el maestro Raimon Panikkar me permite, diría que ciertamente como él
dice que si “el gran desafío para el hombre, es el hombre mismo”, yo añadiría
que por ello necesitamos volver a tenernos como humus y así el humanismo
de nuestro tiempo, ya no sería nuestra egolátrica complacencia sino la
dignidad de recordarnos que somos tierra fértil, es decir humus-mismo.
***
En las nuevas definiciones de lo político la Constitución de la
República del Ecuador recoge el espíritu de la Pachamama y dice asumir
como objetivo de la ciudadanía y Estado llegar al Buen Vivir, una de las
posibles traducciones del Sumak Ally Kausay. En mi país dada esta histórica
trayectoria, lo intercultural todavía continúa siendo tratado como parte
de lo indígena y por ello tenido de poca valía, lo que no quiere decir que se
está produciendo una ruptura precisamente por el desafío del medio
ambiente, de una nueva definición de la educación, la salud y por la
necesidad de hacer otra economía desde la potenciación de lo doméstico,
lo comunitario y lo solidario. Animando este nuevo caminar está la sed de
una espiritualidad que nos provea del agua con cariño maternal.
Pero es el acercamiento a la Filosofía Intercultural, uno de los espacios
y contenidos que vienen a proveer de nuevas visiones en todos los aspectos
para emprender en lo que quiere decir construir otro país. Si bien fue el
impulso de la Teología de la Liberación lo que sacudió el peso de una Iglesia
conservadora y tridentina, una corriente ecumenista al acercarse a las
espiritualidades de nuestras culturas habla de un mismo Dios presente y
actuante como Padre en todas las culturas y, por lo tanto, en las religiones
indígenas. Esto es comprensible porque nuestro cristianismo
latinoamericano no puede todavía liberarse de su occidentalidad, mientras
tanto, no debe seguir pretendiendo convocar a un ecumenismo bajo su
sola concepción teológica.
José Estermann nos ayuda a comprender mejor cuando dice, “El
término “teología” no solo refleja una cierta racionalidad (el logos griego)
sino también una determinada concepción de lo divino (theos, deus, “dios”)”
(ESTERMANN, 2006).
Una perspectiva ecuménica no puede realizarse desde la única
convocatoria de cualquiera de las iglesias porque se estaría cayendo en la
inculturación religiosa. Así, los antiguos templos fueron reemplazados por
construcciones de cemento absolutamente desvestidos de los símbolos de
las culturas propias de nuestros pueblos, las variantes de cristianismo
continúan obedeciendo a sus referentes eurocentristas con lo que vemos
que no camina el ecumenismo porque le falta el sentido de interespiritualidad.
Un ecumenismo de interespiritualidad no puede construirse bajo
ninguna concepción o tutela única sino en un espacio constituido como
fraternidad de iguales, diversos, preocupados por la trascendentalidad y
sacralidad de la vida que debe ser enaltecida y celebrada para reincorporarlo en la búsqueda de dignidad en diferencia con el orden
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geopolítico cultural universal que oprime y usa todo sentido y creación
con el fin de reproducir su condición de dominio y destrucción.
Sintamos que hemos ido demasiado lejos.
Volvamos …
Una superación para retornar, es hacer el camino de estar para ser,
eso es el fluir.
Este camino es posible porque provenimos de pueblos cuyas culturas
vivieron en sensibilidad, es decir, en observación como contemplación de
la integración. Por ello el hecho de Aprender era – y continúa siendo – una
experiencia iniciática producida incesantemente por la mutua donación,
es decir, por el motor de la reciprocidad porque produciéndose entre
diferentes manifestaciones de vitalidad, se sabía el fondo creativo materno
natural.
El ayni – el dar y el recibir – permitía entonces la armonía, porque
ninguno fue considerado objeto. El fondo maternal de su hechura hacía
de su existencia, sujetos en diálogo, en mutuo pago, en encuentro de
diferentes que gratuitamente se donaban. Entonces la economía no era
sino el señorío entre dones y donantes acto vital impregnado de aprendizaje
nada posible sin su calidad de espiritualidad.
La sabiduría no era sino el resultado de este caminar aprendiz.
Siempre caminar, siempre aprendiz. Siempre camino de curvas,
elevaciones, descendimientos, vueltas, detenimientos, nunca rectilíneo, ni
unilineal, realidad que garantizaba tener como referente el saber
acumulado, el saber aprendido, el papel de los mayores cuya experiencia
era una especie de espejo que iba delante: el pasado iba adelante y así se
garantizaba la base del saber, el sentido de la cultura, la unidad de
diversidades vitales en el Todo y como un Todo de calidad maternal como
la calificación más alta y sagrada. El pasado como memoria que guía
personal y públicamente y no como archivo reservado para especialistas
que solo luego publican el secreto.
La espiritualidad es y era la maternalidad siempre pariente del
origen y mantenimiento de la Vida que reclama calor amoroso y que los
abuelos sabedores vivenciaban como rito constante en ese proceso de
conocimiento integrado e integrante.
Esta Vida Mama, esta existencia Mama, exige que la observación
sea un acto vital, una vida de iniciación y entrega tal como en el acto
mamatorio hay una fusión madre-hijo, hijo-madre que hace que el
conocimiento “producido” sea emocionante. Por ello no hay separación
entre vivir y el conocer porque se trata de una relación filial, de filialidad
sagrada. Y ya que se ha penetrado en lo sagrado, en lo wakan, esto tiene
que pronunciarse como fiesta espiritual en sus ritos, en sus cantos, en sus
mitos, en toda acción vital de estos narradores. Todo tal si fuera una
creación artística.
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Es íntima la relación producida entre madre-hijo/a y el saber que
no encuentran mejor vehículo de aprendizaje que no sea lo bello, no es
una manifestación separada de la vitalidad filial sino su celebración,
gratitud, devolución en este eterno “criar y, dejarse criar”. Al respecto
dice José Estermann “La celebración y el ritual son para el ser humano
andino un acto gnoseológico y ético de primer rango, celebrar el orden
cósmico, significa conocerlo y conservarlo” (ESTERMANN, 2006). Por ello
la celebración de un rito no es un acto aislado, sino un concentrado fractal
de la holística sagrada de la vida que no admite que algo sea profano
aparte de la des-integración, de la huída de la comunidad, de la negación
de la fraternidad y filialidad. Celebrar esta espiritualidad todavía es una
grata devolución y un aliento para que Mamá siga prodigando vida al
estar siempre embarazada y siempre pariendo.
Solo ante la evidencia actual del riesgo planetario de la vida es que
es posible comprender el nombre y voz del maíz que en lengua náhuatl
suena-enseña: IXIM que quiere decir: Yo Soy el Origen.
El conocimiento sobre el conjunto amoroso Pachamama celebrado
ritualmente como regocijo y aprendizaje social para que se sepa el por qué
y el cómo de la vida, su tejido, su evidencia palpable, íntima y colectiva,
runa y allpa, flor y cóndor, taita y mama, es el método cognoscitivo nunca
separado de la vida.
Bueno, entonces sólo así se puede comprender la fusión social del
conocimiento con la economía, con la espiritualidad accionando el Sumak
Ally Kausay que no solo es buena, sino hermosa y digna calidad y actitud
ante la vida radicalmente diferente de un proceso de evolución, de dinámica
para determinada élite o del pernicioso Desarrollo impuesto
geopolíticamente a nuestros países que hoy malviven en esa condición del
cual ya hay buenos visos también de hastío.
Esta sensación de vacío, de inseguridad de vivir, es un producto de
la orfandad del ser humano ante una Madre maltratada y olvidada
orfandad que no sólo nos ha desconectado de la rueda de la vida sino de
su armonía que es el propio nombre de la Salud ya sea como salu-recibir o
como salu-dar.
La doble decadencia que vivimos en la actualidad como producto
de siglos de Modernidad, de Desarrollo y de cultura del mercado capitalista
es un poderoso llamado de la selva madre para retornar y es en las
espiritualidades de la Madre Tierra, en las espiritualidades salvajes, del
agua, del maíz en donde podemos encontrar algunas respuestas y proyectos
de vida.
Aquí ya estamos en condiciones de poder sentir que estamos ante
una realidad de por sí difícil por el riesgo que ella entraña. Lo que agrava
y no permite crear respuestas aprovechando el desafío, es que nos
presentamos solo con mentalidad y, con mentalidad uni-lineal. La
mentalidad con que nos presentamos es resultado de una educación que
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nos ha enseñado una sola cultura, la cultura del conocimiento que se ha
declarado único, creado en el orden universal Moderno para una
prolongación del Viejo Régimen solo que por otros medios.
En lo que se llama la postmodernidad el Hombre se hace valer ante
sí y por si supuestamente liberado de los grandes relatos y los valores. Hoy
el Hombre vale y hace valer todo aquello que le sea útil siendo por ello
necesario tener información e información abundante y rápida porque
todo es efímero ante la velocidad de la existencia y del consumo de la
mercancía, la versatilidad plástica del orden y su super cultura.
En medio de esta realidad la condición humana no solo es de
individualidad, sino de soledad y destierro, es decir de negación de su
condición de filialidad natural, de donde tal vez nos es posible comprender
la razón íntima del ecocidio como efecto y fundamento de este absolutismo
humanista.
Pero hemos dicho que es honda la realidad que nos interpela y
desafía. No estamos contando entonces un relato de terror y de desconsuelo
sino de esperanza porque en lo más oscuro de la noche no puede ya haber
más tiniebla sino encenderse la luz, como correspondencia. Sin embargo
se trata de una esperanza integral de la vida dentro de la cual hay una
responsabilidad del ser humano que al necesitar reorganizar precisamente
su sistema-vida tiene que volverse natural, es decir reintegrarse a la Madre
y en ello se tornan indispensables aceptar las invitaciones espirituales de
nuestras culturas de Abya Yala.
Este es el Espacio y este es el Tiempo porque como dice José
Estermann “El tiempo del reloj para el runa/jaqi tiene importancia
secundaria, hay momentos propicios y momentos no apropiados. No tiene
sentido cumplir si el kairós no se da” (ESTERMANN, 2006) Hoy es ese
tiempo apropiado, hoy se ha abierto el kairós.
Uno de los Caminos …
Lo que denominamos educación debería ser un hecho aprendiz de
vida, un acontecer al que se ingresa como opción libremente determinada
para una iniciación al conocimiento, tal como lo hace toda persona que
decide soberanamente tomar cualquiera de los caminos iniciáticos
espirituales. Parecería exagerado hablar en estos términos, nada relacionado
con lo que es un proceso educativo pero es que toda iniciación al
conocimiento presupone y debe presuponer una actitud de entrega, de
aceptación de sus desafíos, de saber que se trata de comenzar un largo y
profundo camino que va a tener gran implicación en la calidad de una
persona.
Es digno de ver esa actitud en lo que hace un aprendiz de carpintero,
de lama, de yachak, de científico, para comprender y apoyar lo que
manifestamos.
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En el fondo lo que sucede es que una iniciación al conocimiento
demanda una actitud ética integral que nada tiene que ver con la alocada
búsqueda de titulación como la única y absoluta meta que el arribismo –
vacío de iniciación al conocimiento – exige para alcanzar posicionamiento,
figuración, prestigio, comodidad y un determinado tipo de poder.
Muchas veces solo repudiamos la realidad de baja calidad de
nuestros estudiantes olvidando que esta situación de la calidad del estudio
de nuestros amigos es el asunto y nuestra misión de transformación.
En efecto, plagada de prejuicios, de información no solo atrasada
sino sesgada, de formalidades impuestas, la educación, como dice Monseñor
Leonidas Proaño, “…es clasista y arribista. Juntas estas dos características
traen como resultado que elementos humanos extraídos del pueblo se
conviertan en clase aparte de ese mismo pueblo y en profesionales del
arribismo. Lo que interesa es subir para ganar más dinero y para colocarse
encima de otros” (PROAÑO, 1993).
Conjuntamente con ello la globalización crematística ofrece a sus
subordinados el éxito como fin de esa desesperada carrera. El
individualismo arribista es una escuela de formación ética que embadurna
poco más o menos al conjunto de la educación y unifica masivamente a
todas las procedencias, identidades y opciones. Se podría decir que esto es
el meollo de la mala calidad de educación que tenemos. Trabajar en ello y
con ello es una realidad dura ciertamente, pero repito, es nuestra misión
contar con eso para transformar.
Un juzgar y un actuar consecuente solo se lo puede construir en
medida del asumir el Ver, del conocimiento, de su profundidad en el sentir
no sólo mental racional sino afectivo y pasional. Un docente que se inicie
en esta maestría debe saber que ello es una opción de vida, una misión que
demanda paciencia, un actuar de sabiduría, una iniciación también ética
y espiritual, es decir un camino de Aprendiz.
Es un Ver integral que no sólo hace referencia al órgano de la vista,
sino al sentir integral que en nuestro caso cultural significa un querer el
establecimiento de una relacionalidad afectiva y amorosa. Esta
relacionalidad lejos de que sea una reedición del paternalismo que la
debemos entender como una deformación de lo amoroso, es el inicio de un
camino de múltiples reciprocidades, a saber:
• Con la naturaleza vegetal y animal
• Con la naturaleza humana
• Con la naturaleza social comunitaria
• Con la naturaleza humana individual personal de nosotros y nosotras
mismas.
Todo ello para conectarnos con esa red maternal que es el ser de la
esencia de la vida. Por eso no debemos hacer una educación solo para la
efectividad, las habilidades, las destrezas y las competencias separadas y
contrapuestas con el fondo en el que se determina nuestra calidad de seres
vivos y humanos.
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Este conjunto constituye la madre y maestra del aprendizaje, es el
conjunto donador a cuyo proceso iniciático integral, intercultural y
comunitario debe propender la educación. La vida misma tomada como
madre y como maestra es lo que nos enseña y, transfigurarnos como
aprendices de esta profundidad es el paso inicial y permanente de mayor
importancia. Aprendiz, recalco, no es un nombre de rebajamiento sino de
disposición de toda nuestra naturaleza humana personal al hecho
integralmente vital de aprender para Ser.
Los procesos de la vida así tomada, son grandes y simplemente
complejos y sólo quienes se disponen integralmente a caminar en sus
meandros, sendas, procesos, reflexiones, lecturas la aprehenderán y con
ello, aprenderán; llegando a ciertos sitios para reanudar el camino. El modo
como se debe tomar el inicio de este camino es el de sentir que esa Madre
Vida es sagrada tal como nos proponen nuestras culturas ancestrales. Claro
que para una mentalidad moderna esto significaría como dice Panikkar,
un retroceso. “Pero – continúa – lo que necesita ser resacralizado es la
misma vida humana. La vida humana necesita ser vivida plenamente como
una realidad más real que lo meramente empírico, es decir como realidad
sagrada”.
Y, entonces es la “lectura” de esta calidad de vida, de esta vida
sagrada, de esta vida no solo humana, que recupera nuestra animalidad,
de esta vida espacio temporal maternal – como lo toman y aprenden las
culturas andinas - de esta vida vuelta a comprenderla como sagrada, lo
que constituye la primera calidad del hecho educativo e intercultural del
aprendizaje. Me imagino y propongo que deberíamos llamarle el hecho
aprendiz y, como consecuencia de esta reflexión: camino de aprendiz, una
vez que este hecho hace relación con un momento singular, integralintegralizante, iniciático y privilegiado de la “educación”.
Estando en víspera de retornar a una eco y eco-nomía de la
naturaleza que viviéndola no como consumidores sino como uno de sus
integrantes, demanda de conocimiento y autoconocimiento y en ello resulta
muy definitorio sabernos naturales y que nuestra diversidad de identidades,
sentidos, visiones, es decir, culturas, es básico por todo lo cual tenemos
que aprenderla y no precisamente por métodos neo-conductistas que
alientan la imposición de una cultura antropocéntrica como calidad y
contenido de la educación.
Debemos entonces señalar que un camino está repleto de hechos de
aprendizaje, de donde podemos colegir que un hecho educativo que para
nosotras y nosotros podría ser un hecho aprendiz, es el tiempo y el espacio
en el que se produce el aprender por una reciprocidad de donación de
saberes de la vida y para la vida. Esto es propiamente lo andino en donde
el ser humano es producido y productor en la medida que es chakana, es
decir relación armoniosa, puente.
Así, estamos hablando de transformaciones vitales de los donantes:
donamos saberes para que el proceso continúe, pero somos donados para
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que la vida siga, de donde podemos concluir que aprender es vivir y vivir
es aprender.
La poética del maravillarse en el acto vital y vitalicio de conocer y
llegar a saber trasunta que lo cognitivo es entonces un hecho espiritual y
artístico y, todo ello, un acto o hecho de creación y autocreación en el que
también somos permanentemente creados.
Nosotros y nosotras los humanos, los árboles, el agua, los animales,
el viento, la luz somos donantes diferentes pero integrados e integrantes
precisamente para que la dinámica vital continúe. Cualquier “aprendizaje”
en desintegración pone en riesgo ese proceso.
En la catástrofe ambiental del cambio climático hay una ruptura
evidente de uno de los actores del hecho vital del aprendizaje. Al haberse
dado una des-integración del ser humano con respecto a su Madre, este
rompe su proceso de aprendizaje, su proceso de hominización propiamente
natural y el resultado es una cultura no diferente sino contraria a la
naturaleza y la naturalidad. El ser humano, para las culturas andinas, es
chakra, es decir es tierra de cultivo: es un “criar y dejarse criar”, pues es
una cultura de agricultura.
Para el saber andino esto de estar fuera de la maternalidad de la
naturaleza sería tenido como motivo de desquiciamiento, soledad y
desprotección es decir: el no aprender. Con ello se rompe el proceso cíclico
de la vida. Es más, el romper la concatenación de pagos, de reciprocidad
que hacen un proceso vital, es decir el romper con el aprendizaje traerá
desequilibrio, pestes, hambruna, cataclismos que no son castigos sino
consecuencias.
Garantizar el proceso vital exige una re-integración, es decir, el volver
a aprender a vivir como conjunto de múltiples donaciones, es decir de
reciprocidades. Aprender es vivir, puesto que vivir es aprender. El aprender
casi nada tiene que ver con la instrucción y lo que comúnmente llamamos
la educación. Aprender es distraerse y hasta perderse en los caminitos que
nacen del camino conocido, jugar, proceder con alegría, cumplir con la
parte del ciclo que en realidad es un ciclo de aprendizaje.
Tornarse aprendiz es volverse niño, ser con disposición vital y
vitalizante, voluntarioso, juguetón, elevado y aventurero (a despecho de
la cultura dominante y de su modelo de familia) que como dice el Buda
Sakiamuni “es el ser que se extasía ante lo que todo el mundo ve”. Es un
ver diferente, integral y vital que permite que uno se detenga, que no pase
de largo. Aquí el aporte y ubicación de la investigación es apropiado. El
hecho aprendiz es un hecho investigativo connatural con el aprender y el
saber, con el gusto, el arte y el juego.
Es de manera holística y compleja – es decir integrada y relacional
– como se debe aprender la vida, de la vida en las culturas andinas. Pero
“la ciencia como narración de la realidad se asienta en la visión analítica,
compartida, atomizada, y simplificada de la realidad” (COLOM, 2002).
De esta manera un hecho aprendiz integrado, es decir complejo, constituye
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una calidad de aprendizaje que no corresponde con la simplificación de la
realidad y la vida de lo que parte la visión todavía hegemónica de la ciencia.
El transcurso del hecho de aprender ha pasado del simplismo a la
complejidad y de la complejidad a la simplejidad que es lo más complejo de
lo complejo porque integra y resume todos los procesos desde el vuelo de
un quinde que puede volverse sunami y desde el abrazo que produce energía
amorosa hasta la organización de una comunidad de otro humanismo.
Una siguiente calidad del hecho de aprendizaje o aprendiz sería el
aprender de la vida como un hecho complejo no lineal ni unilineal, en
cuya lectura, la ciencia constituye una de tantas lecturas, pues existen
otras calidades vivas de contar lo que es el mundo y la vida, que utiliza el
libro y las diversas significaciones así como los enunciados mántricos, el
joveo y la ritualidad como actitud permanente.
En esta calidad de nuestro hecho aprendiz, hay pie para abordar la
diversidad como característica de la realidad, que fundamenta la diversidad
de aprendizajes. De ahí la diversidad de pedagogías, de hechos, de
comunicación, de procesos de captación y reflexión, muchos de los cuales
no pueden ni tienen porque cientifizarse para que adquieran validación.
Cuando se educa habría que enunciar desde qué narración se
pretende explicar una determinada realidad vital. Cierto que es posible
escoger esta o aquella narración que dirija un hecho educativo. Pero lo
que ya no es aceptable, (no solo para la interculturalidad) es sobreentender
e imponer que un hecho educativo particular, construido desde cualquier
punto de vista o cultura, sea el único.
Cada cultura o cualquier vitalidad humana es un mundo de
aprendizajes. Es un mundo pedagógico, venimos diciendo en nuestra
escuela aduciendo que toma la complejidad como vía para un mejor
abordaje cognitivo. Entonces como cada cultura es un mundo de saberes,
es por ello que el hecho aprendiz intercultural analiza y sensibiliza su
atención ante conceptos, ideas, imágenes, desde y como producción del
otro para saberlas en el sentido de vivirlas, tratarlas.
Sin embargo, esa es otra característica de nuestro hecho de
aprendizaje: es el buscar combinar lo individual integral con y en lo
comunitario. Lo individual personal contradice lo ego-ísta en la medida
en la que lo asumimos como integral, lo cual requiere de búsqueda de
encuentro. “Lo humano empieza por ser público, por ser de todos, por ser
de cualquiera. De esta manera el ser humano se encuentra primariamente
vertido a los demás biológicamente; pero su modo de actuar, de estar vertido
a los demás supone que estos se han incrustado ya en su vida” dice Piedad
Vazquez.
Entonces en lo personal existe un ámbito individual que va al
encuentro con el Otro, de enlace, de ida y vuelta con el Otro. Esto otra vez
constituye una complejidad y en este sentido una totalidad, es decir una
integralidad, de ahí el sentido de Comunidad de todas las naturalezas y
no la sumatoria o amontonamiento de ego-ismos o entidades aisladas.
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En nuestra experiencia educativa venimos hablando el enunciado
de la Pedagogía Integral, Intercultural Comunitaria. Sin embargo, el asunto
central es su carácter de unidad de la diversidad de las diferentes calidades
y maneras de conocer, simbolizar, festejar, imaginar, comunicar y ser de
la pluralidad de humanidades del mundo.
La comunidad como espacio común de la diversidad a ser aprendida
es no sólo el sitio, la vivencia humano social kausayllactacunahuan sino la
pedagogía para aprender del encuentro. En este caso no necesariamente
nos referimos a la comparecencia física de los diferentes sabedores,
simbolizaciones o estéticas, sino a que una comunidad de aprendizaje
intercultural tiene como hecho, el aprender por medio del diálogo de los
aprendizajes de las culturas como socio humanidades, como mundos
cognitivos, como mundos de sabiduría. Una vez que no medie un afán de
dominio, es posible hacer de la comunidad un encuentro de saberes, es
decir una interculturalidad pedagógica.
Si dialogar no necesariamente significa llegar a “acuerdos”, o en
este caso a uni-versalizaciones, la noción y sentido de inter-versidad – sin
negar la comparecencia física de las culturas – es la constatación de las
válidas diferencias que debaten, fijan sus diferencias, enuncian su crítica,
su posicionamiento, pero también incorporan conocimiento y conocimiento
aprendiz es decir nada absoluto y definitivo sino como invitación,
propuesta, y donación histórica desde las varias miradas de ella como
expresión de complejidad. Es entonces un producto y una construcción
obtenida de la participación de haceres, reflexiones y elevaciones del camino
aprendiz que hace del Hecho, no un momento congelado ni tan solo una
sucesión evolucionista. Hecho comunitario es decir participativo y por ello
y para ello, crítico.
El primer actor y maestra del hecho educativo de aprendizaje es el
sentido de existencia de comunidad. En ella están integrados y/o
representados los estudiantes, los profesores, las familias. Una profunda y
exquisita preparación pedagógica intercultural harán del profesor o
profesora un actor comunitario de incentivación, mediación (en el sentido
gramsciano) y coordinación que no es simple actitud de procedimiento
sino de acolitación de profundización.
El monólogo Magister Dixit, construido políticamente unas veces
por cualquiera de las variantes del conductismo de “la letra con sangre
entra”, otras por el intelectualismo herbartiano, o, por el paternalismo y
demagogia de minusvalidación del otro tomado como pobre y carente de
conocimiento cultural, etc son desplazados por esta actoría comunitaria
cuyo papel es el diálogo, es el animado interaprendizaje.
El o la profesora, cumplen en cambio un nuevo papel en el hecho
educativo intercultural, cual es el de ser adelantados en tener una mensensibilidad que les permite saber de diferentes, hacerlos dialogar en su
persona una vez que ha roto el paradigma de la linealidad y la universalidad, y que por ello enseña aprendiendo y aprende dando testimonio,
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de todo lo cual muestra en su “rostro y en su corazón” como señala el
Calmecac o que dentro y con la Comunidad de Aprendizaje, profundiza
la calidad de Pachayachachik: espacio-tiempo madre y maestra.
Fernando Urbina, hablando de los Abuelos Sabedores en los Huitoto
y Muinane, dice que “unos pocos recorren el arduo sendero del saber, el
que ensambla elementos haciéndolos entrar en un conjunto armónico y
dinámico” (URBINA, 2001) con calidad de sistematización en el coqueadero
en donde el Abuelo que sabe, habla. De esta manera el saber es “la palabra
fuerte”. El Abuelo es un personaje que “contiene y ejecuta ese saber
haciéndole visible en obras”. “El chamán al volar lo hará como águila o
gavilán. Este alejarse de lo inmediato para visualizar el conjunto y en él
ubicar la parte que cobra así sentido, constituye la esencia de la cosmovisión.
Pero el chamán no se queda en las alturas, desciende a las profundidades,
a los ámbitos oscuros donde la tiniebla lo diluye en las raíces del mundo.
Este camino a lo íntimo, a lo interior de los seres no es un viaje para ver
sino para con-fundirse…” (URBINA, 2001). He aquí una propuesta de
procedimiento para una calidad de docencia que partiendo no sólo de la
realidad en su dimensión socio política sino de una necesaria conciencia y
sentir de ser parte del maternal espacio-tiempo, lo reflexione haciendo
testimonio.
El aula no es solo el sitio de paredes. Pero, más que eso, la Comunidad
de Aprendizaje Intercultural no es el aula o el nombre que hay que poner
en el letrero del establecimiento educativo. La Comunidad de Diálogo que
enseña es una pedagogía y sin embargo, es el mundo y con ello, un sistema
educativo intercultural no solo urbano, ni solo rural (en realidad ello cobra
otro sentido) no solo es de lecto escritura, ni solo de rituales, ni tan solo de
“salir a la orilla del rio”.
Es el aprendizaje por medio del acceso a los conocimientos según
los caminos, mediaciones, vehículos, destrezas y estados concordantes y/
o contradictorios de las culturas. Es la realización del saber que se dona
para que la vida continúe pero cada vez con mayor dignidad. Es la
activación del interaprendizaje por la evidencia del ser del Otro. Se trata
de un Aprender entre nosotros.
El hecho educativo de aprendizaje intercultural es vital, es
permanente, hace de cada individuo, cultura o institución un espacio, una
representación de ese diálogo de aprendizajes del cual se aprende. Se
comprenderá la calidad de iniciados que se requiere y al cual hacíamos
referencia al inicio. De esta manera el aula es un fractal de la casa cósmica,
maloka en donde nos cobijamos todos como comunidad de aprendizaje
en una cosmo-comunidad y cosmo-participación.
Hoy ante la realidad de la Vida, este diálogo de aprenderes por
aprender, debe tener como misión la dignificación de aquella a través de
re-conocerla y en particular actuando sobre el fondo actual de lo Humano,
“otorgarle rostro y corazón” como todavía dicen los náhuatl de México.
Esto último es la intensión abierta del contenido de lo político y su ethos
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que viene a diferenciar nuestro pensamiento con respecto a otros que
veladamente lo plantean o que taxativamente lo niegan sin que quiera
decir que ello constituye un apoliticismo.
El diálogo en la interculturalidad desde nuestro punto de vista tiene
como contenido la no aceptación de dominio alguno, etnocentrismo o
pretensión de purismo. Las diferentes entradas cognitivas, las “diferentes
maneras de explicar el mundo” de las diferentes etnicidades incluida la
occidental (aunque enseñada a ver al Otro como lo étnico) no pueden
servir únicamente para coleccionar información, o para ubicar roles
funcionales puesto que esto lo realizan a las mil maravillas el espionaje
empresarial petrolero, la biopiratería del conocimiento, la venta de la
investigación, o cualquier fanatismo confesional y su trasfondo geopolítico,
pues estos también tienen una versión particular de interculturalidad como
noción plástica adaptable a cualquier intensión.
La construcción integral, intercultural y comunitaria de un ser de
conocimiento o mejor, de saber, exige una descentración, es decir un viaje
al otro, la negociación de posibles acuerdos en donde el desacuerdo es
validado pero jamás tenido como fracaso o motivo de violencia, discrimen,
o invisibilización. Resumido esto en una frase se podría decir que el hecho
educativo aprendiz requiere de una autoexigencia y no de una imposición
al otro, de un “conocimiento interpersonal que nos proyecte hacia el interior
mismo” como propone el testimonio de Don Leonidas Proaño caminante
hacia una Teología de la Liberación, desde una Teología Tridentina
(PROAÑO, 1993). Camino liberador de la opresión socio política de los
indios ecuatorianos en el cual él mismo se convirtió y liberó por la fuerza
espiritual del runa andino. Esto último nunca se vio así por el
desconocimiento de la valía de la espiritualidad andina, pueblos a quienes
siempre se les tomó únicamente como pobres, políticamente oprimidos a
quienes había que culturalizarles e inculturalizarles.
Es por esto que nuestro hecho de aprendizaje intercultural tiene la
abierta intensión de saber y ser los humanos que requiere este tiempo de
tan profunda invitación a responder testimonialmente sobre aquello.
Para ello es necesario deconstruir la narración pedagógica elaborada
en la modernidad a través del orden que ésta supuso y aquella acolitó. “La
mentalidad, por contraposición a la cultura, hace referencia a la impronta
y a las valoraciones, habitualmente inconscientes, que un sistema cultural
imprime en el comportamiento de los individuos” (VILLACORTA, 1993).
Así, nuestra propia versión y crítica postmoderna no es un ensayo de
estética sin crítica – como esta supone – sin propuesta; al contrario, es la
construcción de una ontológica (como también botánica y zoológica) de la
Dignidad de la Vida que tenga como uno de sus baluartes el respeto y
conocimiento de esas diferentes entradas para ello; que más allá de la simple
preservación, propone construcciones.
El hecho educativo intercultural desde la de-construcción de la
pedagogía supone asumir la complejidad. En el Paradigma Perdido, Edgar
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Morin dice que “la relación ecosistémica no es una relación externa entre
dos entidades cerradas, sino una relación integradora entre dos sistemas
abiertos, que constituyendo cada uno de ellos un todo por si mismo, no
dejan de formar parte el uno del otro” (MORIN, 1992).
La conciencia y la sensación de vivir con, en, por y como agua,
tierra, aire y fuego nos hermana como Comunidad otorgándole sentido a
este hecho de aprender. Por eso, la base de la Pedagogía Intercultural que
anima a la comunidad de aprendizaje intercultural, tiene como garantía
el hecho de ser significaciones y conocimientos abiertos desde su naturaleza.
Morin añade “Cuanto mayor es la autonomía de la que goza un sistema
vivo, mayor es su dependencia con relación al ecosistema”. No podemos
educar salidos de la naturaleza sino ligados a ella en filialidad.
La Pedagogía Intercultural del hecho educativo aprendiz pide una
naturalización de la vida. En efecto siendo una actitud espiritual, no
necesariamente requiere de estar en la montaña aunque su cercana
presencia resulta mayormente propiciadora de escenarios pedagógicos
inusitados y sensibilizadores. Al efecto señalan Desiderio Catriquir y Teresa
Durán P, hablando de los Mapuche, que “…el pensamiento emerge de la
continuidad entre mapu (naturaleza) y che (gente) y entre che y mapu, lo
que deja por los suelos la consabida oposición entre cultura y naturaleza
de la que generalmente parte la educación moderna en casi todas sus
versiones y mentalidades” (CATRIQUIR y DURÁN, 2005).
Esta realidad esto se ve hondamente comprendido por la evidencia
de la mayor esclavitud de la naturaleza que se hace en la persona del niño.
Por todo esto podemos continuar diciendo amparándonos en la
reflexión que para la filosofía latinoamericana hace Raúl Fornet-Betancourt,
en el sentido de que una calidad de educación transformada, renovada y
apropiada puede lograrse “al hacerse cargo precisamente del impacto que
las tradiciones indígenas significan para ella” superando el dominio
eurocentrista, antropocentrista e incluso mestizo tributario de
occidentalismo, que venimos dando a esa calidad y trabajo determinado
por una “filosofía que hemos heredado y que continuamos, con nuestros
métodos monoculturales” (FORNET-BETANCOURT, 2001)
Cabe entonces preguntarnos ¿qué es ahora y aquí, la educación?
¿Con qué contamos para una respuesta adecuada? ¿Qué importancia
debieran tener los saberes andinos en la búsqueda y construcción de una
calidad de educación para este ahora y este aquí mundial? Ensayo
respuestas diciendo: aceptar la invitación que nos hace la oscuridad y
aprender a encender la luz. Contamos con la diversidad de seres y saberes.
Los saberes andinos tienen que cumplir con su misión de servir para ser
runacuna, haciendo minga con sus hermanas culturas del mundo en una
pluriversidad e interversidad.
Indudablemente que se trata de una de las mayores oportunidades
que tenemos los humanos de reconstruir-construir un Sumak Ally Kausay
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planetario solo en la medida de naturalizarnos naturalizando el
pensamiento, la calidad general e integral de la vida, redescubriendo que
su calidad de Madre es una espiritualidad oiko-nómica, oiko-lógica y oikoménica y que por no ser universalizante dado su carácter de reciprocidad
y complementariedad está abierta a toda inclusión de calidad armónica es
decir, no pretendiente de dominio.
Esta espiritualidad de la Madre Tierra invita a construir un espaciotiempo para ritos, mitos y sentidos que al devolvernos nuestra calidad de
seres llamados a ser sagrados, recuperemos lo sagrado de la creación,
continuemos con esta obra aprendiendo y educándonos en estos caminos
de diversidad y que desde sus contenidos hagamos y seamos comunidad
de aprendizaje intercultural.
Notas
1
Doctor em Sociologia. Director de la Escuela de Educación y Cultura Andina - Universidad
Estatal de Bolívar. E-mail: [email protected]
REFERENCIAS
CACERES VAZQUEZ, Milton. Documentos internos de la Escuela de Educación y Cultura
Andina-EECA. Universidad Estatal de Bolívar. 2006-2008.
CATRIQUIR, Desiderio y DURAN, Teresa. Revista ANTHROPOS No 207. Universidad
Católica de Temuco, 2007.
COLOM, Antoni. La (de) construcción del conocimiento pedagógico: Nuevas perspectivas
en teoría de la educación. Papeles de Pedagogía. Barcelona: Paidós, 2002.
ESTERMANN, José. Filosofía Andina: Sabiduría indígena para un mundo nuevo. Instituto
Superior Ecuménico Andino de Teología –ISEAT- La Paz, Bolivia. 2006.
FORNET-BETANCOURT, Raúl. Transformación Intercultural de la Filosofía. Palimpsesto.
Desclée De Brouwer. Bilbao. 2001.
MEMORIA DEL IV ENCUENTRO –TALLER ECUMÉNICO LATINOAMERICANO DE
TEOLOGIA INDIA. Quito: Ediciones Abya Yala, 2004.
MORIN, Edgar. El Paradigma Perdido: Ensayo de Bioantropología. Barcelona: Kairós, 1993.
PANIKKAR, Raimon. El Mundanal Silencio. Barcelona: Ediciones Martínez Roca, 1999.
PROAÑO, Leonidas. Educación Liberadora. Quito: Corporación Editora Nacional, 1993.
URBINA R., Fernando. Las Hojas del Poder: Relatos sobre la coca entre los uitotos y
muinanes de la.Amazonía colombiana. Universidad Nacional de Colômbia: Centro
Editorial, 1992.
VILLACORTA BAÑOS, Francisco. Cultura y Mentalidades en el s. XXI. Madrid: Ed, Síntesis.
1993.
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DIVERSIDAD RELIGIOSA
EN COLOMBIA: SITUACIÓN Y DESAFÍOS
Olga Consuelo Vélez Caro1
Introducción
Asistimos a un proceso creciente de diversidad religiosa en
Colombia. Es un fenómeno que no se puede pasar de largo porque la
homogeneidad religiosa ha constituido la cultura colombiana y cualquier
cambio en este sentido afecta el mismo ser de los varones y mujeres de este
país. Más aún, haciendo uso de la categoría de análisis “género” podríamos
decir que este cambio afecta de diferente manera a cada uno de los sexos
porque tradicionalmente las mujeres son las que más han expresado su fe
y los varones la han reservado a una esfera más privada, sin por eso decir,
que no se han visto constituidos también por esa experiencia religiosa.
La importancia de esta reflexión puede expresarse también en lo
que algunos analistas han llegado a afirmar en el sentido de que las
transformaciones de los últimos cincuenta años no se dan tanto en los
partidos políticos, en los sindicatos, en los movimientos guerrilleros, ni en
la estructura socioeconómica, sino en la transformación religiosa que ha
influido decisivamente en la sociedad civil (BIDEGAIN y DEMERA, 2005,
p. 14). Cabe anotar, que esta realidad no es exclusiva del contexto
colombiano sino que se puede reconocer en toda Latinoamérica aunque
con diferentes acentos y matices2.
Dividimos nuestra exposición en tres partes. Partimos de afirmar la
hegemonía católica en Colombia y de las causas que fueron quebrando
esa hegemonía. Acompañaremos esta presentación con la legislación civil
que fue expresando esa transformación. En un segundo momento
presentaremos la conformación religiosa plural que hoy podemos ir
reconociendo en la realidad colombiana. Finalmente, señalaremos algunas
reflexiones y desafíos que se desprenden del panorama aquí presentado.
No pretendemos hacer una descripción completa sobre esta realidad pero
sí ofrecer unas pautas para una reflexión ulterior que, como dijimos antes,
es central para comprender y acompañar este nuevo momento que se
percibe en la realidad colombiana.
1 Transformacion de la Hegemonía Católica Colombiana
Podemos afirmar que la historia del país está marcada por una
vivencia cultural compartida en la que el catolicismo ha jugado un papel
determinante. Éste integró y forjó la cultura nacional, a partir de la cual se
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valoraron o se rechazaron todas las demás propuestas culturales que
llegaron por diferentes medios.
Hasta 1950 la hegemonía católica fue indudable. A tal punto que
en el gobierno de Laureano Gómez (1950-1953) la defensa de esa
hegemonía justificaba la persecución efectiva de los protestantes. Cabe
anotar que no faltaron intentos de gobiernos liberales (1853-1886) de
implantar un laicismo que propiciara la secularización y quebrara el
monopolio católico aunque sin éxito y, por el contrario, afianzaron la
hegemonía católica o sociedad de cristiandad (BIDEGAIN, 1985, p. 35).
Es verdad que existían acuerdos legales para permitir otras expresiones
religiosas (protestantismos históricos y judaísmo) pero no lograron romper
la primacía de la cultura católica.
Ahora bien, hay que distinguir entre el sustrato cultural católico
vigente y la experiencia religiosa individual de los colombianos y
colombianas. A este respecto existen investigaciones que demuestran la
existencia de una pluralidad religiosa en ese ámbito individual (BIDEGAIN,
1995). Pero sin duda, a nivel institucional y en el imaginario nacional sólo
se da paso a la diversidad étnica, cultural y religiosa en el país, con la
Constitución de 1991.
1.1 Causas de la Transformación Religiosa En Colombia
Como acabamos de decir, hasta la mitad del siglo XX, el 99% de la
población colombiana se declaraba católica. Es después de esa época que
el panorama empieza a cambiar por diversas razones internas y externas
que señalaremos a continuación (BIDEGAIN y DEMERA, 2005, p. 15-18).
Causas externas:
•Las misiones adelantadas por las conferencias evangélicas que consideran
a América Latina desde comienzos del siglo como tierra de misión.
•Los cambios operados en el catolicismo desde 1948 con el reconocimiento
de la libertad de conciencia y de cultos, así como la preparación y
realización del Vaticano II. Todo esto fue fruto de una apertura a la
modernidad.
•Nuevas cosmovisiones como resultado del fin de la Segunda Guerra
Mundial y el inicio y desarrollo de la Guerra fría.
•La política exterior de Estados Unidos frente a la expansión del
comunismo, el marxismo y la teología de la liberación, explicitadas en los
documentos de Santa FE I y II.
•El impacto de los medios de comunicación.
•La modernización, industrialización y urbanización en el conjunto de
América Latina.
•El reavivamiento y expansión mundial de nuevos movimientos religiosos
originarios tanto de Oriente como de Occidente.
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Causas internas:
•Hasta la década del 50 la mayoría de la población colombiana se
concentraba en las zonas rurales. La violencia (1948-1953) produjo un
fenómeno migratorio que cambió la configuración de la población rural
y urbana del país.
•La pastoral típicamente rural no encontró los caminos adecuados para
inculturarse en el mundo urbano perdiendo espacio y significatividad.
De la misma manera entre las clases medias y altas, afectadas por los
valores traídos por la modernización, muchas de las prácticas
devocionales católicas fueron perdiendo vigencia.
•La incapacidad del clero colombiano para entender el cambio cultural
que se producía en la realidad colombiana, muchas veces, por la obsesión
de centrar todo su esfuerzo en combatir el comunismo.
•La estrecha relación de la jerarquía católica con los gobiernos del Frente
Nacional a los cuales legitimara entre las décadas de 1960 y 1980
produciendo un desencanto entre la población católica y favoreciendo la
migración hacia otros grupos cristianos (PEREIRA, 1996, p. 43-65).
•La aceptación y justificación por parte de la jerarquía y de las
comunidades religiosas (OSPINA, 1945) de la persecución a los
protestantes (MADRID-MALO GARIZÁBAL, 1991, p. 23) durante la
violencia (1948-1953) provocando sentimientos anticatólicos entre la
población. Dicha persecución no sólo consistió en expulsarles de sus tierras
sino también en agredirles físicamente y robarles sus bienes (PEREIRA,
1996).
•La afirmación de las identidades étnicas que ha traído consigo la
valoración de sus religiones ancestrales.
1.2 Legislación Civil Colombiana Y Diversidad Religiosa3
Un breve recorrido histórico por el camino legislativo colombiano
sobre esta materia, nos permitirá entender la transformación religiosa que
ha sufrido el país. Antes que nada vale la pena recordar las declaraciones
internacionales que anteceden a la Constitución de 1991 en la que se
reconoce efectivamente el derecho a la libertad religiosa. Nos referimos a
la Declaración Universal de Derechos Humanos (10 diciembre 1948,
artículo 18), el Pacto Internacional de Derechos civiles y políticos (16
diciembre 1966, artículo 18) y a la Convención Americana de Derechos
Humanos (22 de noviembre de 1969, artículo 12). En todos esos
documentos encontramos la afirmación de la libertad a nivel de
pensamiento, conciencia y religión y la libertad para expresarlo en la
enseñanza, la práctica, el culto y la observancia. En Colombia esa libertad
religiosa se reconoce en la Constitución de 1991 en sus artículos 18: “se
garantiza la libertad de conciencia. Nadie será molestado por razón de
sus convicciones o creencias ni compelido a revelarlas ni obligado actuar
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contra su conciencia” y 19: “se garantiza la libertad de cultos. Toda persona
tiene derecho a profesar libremente su religión y a difundirla en forma
individual o colectiva. Todas las confesiones religiosas e iglesias son
igualmente libres ante la ley”.
Antes de la Constitución del 91 podemos también señalar los
momentos fundamentales en este camino legislativo. Una vez separados
de la corona española, el estado de Cundinamarca expide la constitución
de 1811 donde se reconoce a la religión católica apostólica y romana como
la religión de este Estado. Posteriormente todos los otros Estados del Nuevo
Reino de Granada proclaman sus constituciones coincidiendo en este punto.
En 1821 el Libertador Simón Bolívar convoca al Congreso
constituyente el cual elabora una constitución en la que no se menciona la
religión. Es en 1828 en la Convención de Ocaña, en ausencia del Libertador,
se expide un decreto orgánico que reconoce a la religión católica como
religión de los colombianos. En la Constitución de 1830 se reafirmó la
religión católica, apostólica y romana como la oficial y se invoca al gobierno
a protegerla y no permitir ningún culto público de otro credo. Sólo tolera
las creencias individuales y su ejercicio privado.
En la Constitución de 1853 se hace una reforma en la que se admite
la profesión libre, pública y privada de la religión que a bien tengan con tal
de que no se turbe la paz pública, la sana moral e impida a los otros el
ejercicio de su culto.
En la de 1863 se deja de invocar el nombre de Dios en el preámbulo
y por eso se considera una Constitución atea. Aunque permitía la libertad
religiosa y de cultos sirvió para desapropiar de los bienes a la Iglesia Católica
y se expulsaron algunas comunidades religiosas.
Una vez sofocada la revolución contra Núñez, se redacta la
Constitución de 1886 que es teocrática y así se expresa en el artículo 38:
“La religión Católica, Apostólica y Romana es la de la Nación. En
consecuencia, los poderes públicos la protegerán como esencial elemento
de orden social. Se entiende que la Iglesia católica no es ni será oficial y
conservará su independencia”. A partir de ahí se reconoce a la Iglesia
católica la personería jurídica y se faculta al Estado colombiano a celebrar
convenios con la Santa Sede.
En 1897 se establece por primera vez el Concordato. En la
convención adicional de 1892 se refiere al fuero eclesiástico, la
administración de los cementerios y el manejo del registro civil por parte
de la Iglesia.
La reforma de 1936 derogó el artículo 38 que consideraba la religión
católica como la oficial y se eliminó la obligación del Estado de brindar la
educación católica en los establecimientos públicos. Se modificó la expresión
de tolerancia de cultos por la de libertad de cultos. En 1957 se vuelve a
incorporar el nombre de Dios como fuente de toda autoridad y la religión
católica como elemento esencial del orden social. Con estos antecedentes
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se establece el Concordato de 1973 que concedió muchos privilegios y
derechos a favor de la religión católica y su clero.
Para 1990 la situación social del país era muy tensa por la presencia
de la guerrilla, el narcotráfico, la descomposición política y la desconfianza
en las instituciones. El asesinato del candidato presidencial Luis Carlos
Galán (1989) propició un movimiento estudiantil que lideró la formulación
de una nueva constitución. Es así como el gobierno de César Gaviria
convoca la Asamblea Nacional Constituyente que elabora la Constitución
de 1991 a la que ya hemos hecho referencia.
Es importante recordar que en la Asamblea Nacional constituyente
estuvieron presentes las confesiones cristianas protestantes y en especial
las denominaciones pentecostales. Éstas que habían crecido notablemente
en el país a partir de los años 70, comenzaron a participar a nombre
confesional en la contienda política de 1982 agrupadas en la Confederación
Evangélica de Colombia, apoyando primero a candidatos liberales que
consideraban más cercanos a sus posturas y en 1988 con candidatos
propios presentándose al Consejo de Bogotá y a la contienda presidencial.
No ganaron en esos comicios pero consiguieron dos curules en la Asamblea
Nacional Constituyente. Lamentablemente su presencia no fue tan
significativa como se esperaba porque sus esfuerzos se concentraron (y
aún hoy, en muchos casos, se concentran) en ganar privilegios para ellos y
derogar los de la iglesia católica más que en hacer propuestas efectivas de
transformación social y compromiso con la realidad del país (HELMSDORF,
1996).
Podemos entonces afirmar que con la Constitución del 1991 se
establece en el país la libertad religiosa y se deroga el Estado confesional.
Posteriormente con base en la Constitución algunos ciudadanos presentan
demandas contra el Concordato de 1973 consiguiendo que se declare
inconstitucional. Se expide así la Ley 133 de 1994 en que se estipula lo
siguiente:
•Ninguna Iglesia o confesión religiosa es, ni será oficial o estatal (art. 2)
Cabe anotar que esto no significó una relación hostil entre Estado e Iglesia
ya que el Estado no se declara ateo, ni irreligioso, ni anticlerical.
•Se reconoce la diversidad religiosa del país (art. 3)
•Excluye del ámbito de la libertad religiosa el satanismo, el estudio y
experimentación de fenómenos psíquicos y parapsicológicos, las prácticas
mágicas, supersticiosas o espiritualistas u otras análogas ajenas a la religión
(art 5).
•Además se garantizan como parte de la libertad religiosa:
•Los efectos civiles de los matrimonios religiosos
•La asistencia religiosa pública de su propia confesión
•La de impartir enseñanza religiosa en lugares públicos
sLa libre elección por parte de los padres de la educación religiosa dentro
y fuera del ámbito escolar que deseen para sus hijos
•La creación de sus propios institutos de formación y estudios teológicos
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•El reconocimiento de la actividad ministerial o jerárquica
•El cumplimiento de actividades de educación, beneficencia o asistencia
social
•El reconocimiento de la personería jurídica especial a las Iglesias,
confesiones y denominaciones religiosas, sus federaciones, confederaciones
y asociaciones de ministros.
El Decreto 354 de 1998 establece un convenio de derecho público
interno con algunas entidades religiosas cristianas no católicas. En dicho
decreto se otorga el derecho efectivo de:
•Celebrar matrimonios religiosos no católicos con efectos civiles.
•La libertad de escoger educación religiosa no católica en los
establecimientos educativos del país
•La introducción de la educación religiosa no católica en los
establecimientos educativos del país
•La regulación sobre docentes y textos para este tipo de educación religiosa
no católica
•La asistencia religiosa espiritual y pastoral cristiana no católica en los
establecimientos de la fuerza pública, en los centros educativos, en los
hospitales y en los centros de reclusión del Estado.
Participan de estos derechos las siguientes confesiones religiosas:
Adventistas del Séptimo Día, la Iglesia Pentecostal Unida de Colombia, la
Iglesia Anglicana, Concilio de las Asambleas de Dios en Colombia, la Iglesia
Comunidad Cristiana Manantial de Vida Eterna, la Iglesia Cruzada
Cristiana, la Iglesia de Dios en Colombia, Casa sobre la Roca, Iglesia
Cristiana Integral Casa sobre la Roca, la Iglesia de Dios Pentecostal, el
Movimiento Internacional de Colombia, la Iglesia Wesleyana, la Iglesia
Cristiana de Puente Largo y la Federación Consejo Evangélico de Colombia
(Cedecol). Con el Decreto 1321 de 1998 se crea el comité interinstitucional
para la reglamentación de los convenios de derecho público interno.
Este recorrido legislativo que hemos hecho nos permite afirmar que
si por una parte se reconoce y se hace efectiva la libertad religiosa y de
cultos, por otra parte, ha llevado, en muchos casos, a duplicar los privilegios
de los que antes gozaba la iglesia católica y su clero en las iglesias y ministros
de las otras confesiones cristianas. Además surgen otras dificultades como
el control de los divorcios ya que al tener efectos civiles los matrimonios de
todas las confesiones religiosas no siempre se realizan los procesos civiles
que comportan, y es muy difícil todavía garantizar la oferta educativa y a
la presencia pastoral de las otras denominaciones cristianas en los entes
públicos.
De todas maneras todavía se puede afirmar que la iglesia católica
mantiene un liderazgo y un reconocimiento mayor que las otras
denominaciones no sólo por su tradición histórica sino por su compromiso
social con el país. Se le reconoce como una institución creíble y capaz de
ser un interlocutor válido en la búsqueda de solución para los conflictos
que se viven, especialmente, lo que tiene que ver con la urgencia de la paz
y de la justicia social.
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2 Hacia Una Pluralidad Cristiana Y Otras Expresiones Religiosas
Una vez visto el camino recorrido de una hegemonía católica abalada
por un Estado confesional hasta una legislación que garantiza la diversidad
religiosa, conviene mostrar el panorama religioso que hoy se presenta en
el país. Antes de hacerlo es importante hacer una constatación
fundamental: frente al vaticinio del fin de la religión o de su privatización
e individualización y de una secularización radical proclamada por la
modernidad, en países como Colombia se puede observar un proceso
completamente inédito que cuestiona ese paradigma y merece ser
examinado más de cerca para pensar el desarrollo de la religión en la
modernidad tardia (BASTIAN, 2005, p. 323-324). Muy al contrario de lo
que se esperaba, no sólo la religión no ha desaparecido sino que se ha
diversificado y desarrollado en muchas y diversas formas. Al mismo tiempo,
no se ha quedado en la esfera privada sino que busca una visibilización y
protagonismo público bien sea en su reconocimiento legal como en la
participación política, aunque, como se dijo antes, esa presencia pública
aún no ha dado los resultados esperados en el sentido de un trabajo efectivo
por la transformación social del país (HELMSDORF, 1996).
En 1989 en un sondeo realizado en 523 parroquias del país se
constató que el 5.5% de la población profesaba otras confesiones cristianas,
el 93% se consideraba católico pero sólo 43% se declaraban practicantes,
el 1% pertenecían a otras iglesias no cristianas y el 0,5% se declaraban no
creyentes (SPEC, 1989). En ese mismo año se podían reconocer en Colombia
la existencia de unas 50 confesiones religiosas cristianas diferentes a la
católica, incluidas las iglesias históricas y se veía un aumento progresivo
en el número de fieles. De 9.000 personas en 1930 pasó a 69.000 en 1969 y
cerca de 4’000.000 en la década de 1990 (ADARVE, 1993; PEREIRA, 1996).
Hoy se puede afirmar que unos 7’000.000 pueden estar en las distintas
denominaciones cristianas no católicas que clasificaremos
esquemáticamente a continuación (BELTRÁN, 2005, 257-291):
2.1 Los Protestantismos Históricos
Defienden su autenticidad en el hecho de ser los herederos de los
desarrollos doctrinales de los grandes reformadores europeos, especialmente
de las doctrinas luteranas y calvinistas y su capacidad de mantenerse a lo
largo de la historia. La Iglesia presbiteriana reclama el título de ser la
primera iglesia protestante en Colombia con una historia nacional de más
de un siglo lo que la hace merecedora de un lugar privilegiado dentro del
movimiento protestante nacional. En general no aceptan las “obras” como
medio de salvación. La salvación depende de la “sola fe” y por lo tanto los
ritos son sólo simbólicos. Algunas iglesias históricas han adoptado algunas
prácticas del pentecostalismo. En este grupo podemos reconocer las
siguientes denominaciones: Misión Wesleyana, Iglesia Bautista, Iglesia
Discípulos de Cristo, Iglesia Menonita, Iglesia Evangélica Luterana, Iglesia
Metodista, Iglesia Presbiterana e Independientes.
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CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS
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2.2 El Protestantismo Fundamentalista
Es más conocido como Evangelicalismo y a sus seguidores se les
denomina “evangélicos” (aunque así se denomina, muchas veces, a todos
los que no son católicos). Es una vertiente doctrinal del protestantismo
histórico, una reacción frente a los desarrollos de la razón que se
desprendieron de la Ilustración y la Modernidad (evolucionismo, ateísmo,
comunismo, teología liberal). Se oponen al relajamiento moral de occidente.
Afirman la inerrancia e infalibilidad de la Biblia y promueven el “cambio
de vida radical” o “un nacer de nuevo”. Además creen en el “rapto o
arrebatamiento” que consiste en que un día cualquiera Cristo recogerá a
sus fieles de la tierra y de ahí la necesidad de vivir diariamente en santidad
y rectitud. Estas confesiones también han dado un giro hacia el
pentecostalismo por razones de atracción de más fieles. En este grupo se
inscriben: Casa sobre la Roca, Cruzada cristiana, Iglesia cristiana Filadelfia,
Confraternidad Cristiana, Iglesia del Nazareno, Alianza Cristiana y
Misionera, Misión Interamericana, Ejército de Salvación, Iglesia Cruzada
Evangélica y Templo Bíblico.
2.3 El Movimiento Pentecostal
Representa la segunda fuerza religiosa del país. Una característica
básica es su capacidad de adaptarse a la cultura de cada realidad
incorporando ritmos, cantos, rezos, oraciones de la cultura en que surgen,
acercándose a la religiosidad popular. Al contrario del protestantismo
histórico, su concepción de Dios es mágica con lo cual atraen a muchas
personas deseosas de recibir beneficios de la divinidad. Su expansión deriva
de las misiones de las Asambleas de Dios (la mayor organización
pentecostal en el mundo), la Iglesia Cuadrangular y el Movimiento
Misionero Mundial junto con organizaciones pentecostales surgidas en el
propio contexto como la Iglesia Panamericana. Se destaca la importancia
de la música, la manifestación de los dones del Espíritu, las expresiones
emotivas del culto, la forma de gobierno en cabeza de un líder carismático
y las manifestaciones sobrenaturales como milagros y exorcismos.
Este movimiento pentecostal lo podemos dividir en tres clases. Los
pentecostalismos fundamentalistas (Iglesia Pentecostal Unida, Asambleas
de Dios, Independientes, Centro Misionero Bethesda, Iglesia Cuadrangular,
Misión Cristiana Sendero de Paz, Movimiento Misionero Mundial, Misión
Panamericana, Iglesia Evangélica Discípulos de Cristo, Iglesia de Dios
Pentecostal, Misión Cuerpo de Cristo, Asamblea de Iglesia Cristianas, Casa
de Oración, Iglesia de Dios de la Profecía, Iglesia Cristiana del Norte, Iglesia
de Dios en Colombia, Comunidad Cristiana de Colombia, Misión Cristiana
en Colombia, Dios está formando un Pueblo, Iglesia Universal de Jesucristo,
Roca de la Eternidad, Misión Cristiana Fuente de Vida Eterna, Misión
Bethesda Internacional); los neopentecostalismos o movimientos
carismáticos (Misión Carismática Internacional, Independientes, Cruzada
Estudiantil y Profesional, Avivamiento Centro para las Naciones, Proyecto
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de Alcance internacional, Comunidad Cristiana de Fe, Centro de Alabanza
Oasis, Iglesia Cristiana Orabes, Misión Ados de Colombia) y los
pentecostalismos mágicos (Oración Fuerte al Espíritu Santo, Dios es Amor,
Iglesia Ministerial de Jesucristo). Todos ellos tienen una característica
común: son movimientos autónomos con una dinámica propia, que no
admite ningún tipo de control o fiscalización de su actividad religiosa.
2.4 Los Movimientos Seudoprotestantes
Aquí se ubica la Iglesia de Jesucristo de los Últimos Días (Mormones),
los Adventistas y los Testigos de Jehová movimientos que se desprendieron
del protestantismo estadounidense en el siglo XIX. Nacen de una nueva
revelación a través de un profeta quien se considera tan importante como
el mismo Jesucristo. Son milenaristas y su misión es preparar al mundo
para la futura y definitiva intervención de Dios en la historia que está a
punto de suceder.
2.5 Otras Denominaciones No Cristianas
En este grupo podemos reconocer las religiones amerindias y
afroamericanas que han introducido sus prácticas chamánicas y los rituales
de origen africano no sólo entre sus propios grupos sino que han permeado
diversos sectores de población mestiza.
Los ritos de origen oriental han penetrado las grandes urbes y
convocan especialmente a las clases media y alta.
El Islam se ha fortalecido especialmente entre los descendientes de
inmigrantes sirio-libaneses instalados en Colombia desde 1920 que habitan
principalmente las costas pacífica y Caribe colombianas.
Finalmente, el judaísmo posicionado históricamente en el país desde
sus orígenes constituye una comunidad pequeña pero respetable. En
centros universitarios como la Javeriana se ha admitido desde tiempo atrás
que la formación teológica obligatoria para todos sus estudiantes sea
impartida por un rabino judío para los estudiantes judíos y cuentan con el
permiso institucional para ausentarse de las clases en los días de
cumplimiento de sus deberes religiosos.
2.6 Configuración Social de los Grupos Protestantes
Para finalizar este apartado conviene decir una palabra sobre la
configuración social de los miembros de las denominaciones cristianas no
católicas. Las congregaciones históricas, los neopentecostales y los
mormones tienen entre sus seguidores gente de origen urbano porque su
culto es menos emotivo y más racional ya que uno de sus ejes importantes
es la lectura del texto sagrado. Los jóvenes de origen urbano y las clases
medias son allegados a los movimientos neopentecostales porque
encuentran espacio para una religiosidad de desahogo y de posibilidad de
prosperidad. Hay grupos que se han especializado en atraer universitarios
como la Misión Carismática Internacional o la Cruzada Estudiantil y
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Profesional. Los protestantismos fundamentalistas se aproximan mucho a
los sectores más desfavorecidos que son más propensos a aprender una
doctrina sin ningún cuestionamiento al estilo tradicional católico.
Congregaciones que ofrecen milagros atraen a gente de toda clase social
pero sobretodo, a los marginados, especialmente aquellos que llegan a la
ciudad y necesitan un espacio de acogida y orientación frente a su nueva
situación.
3 Algunas Reflexiones Y Desafios Que Emergen De Este Nuevo
Contexto De Diversidad Religiosa En Colombia
Este recorrido realizado hasta aquí nos ilustra sobre el panorama
religioso que vive Colombia actualmente y cómo se ha llegado a este
momento. Pero esto no es suficiente. ¿Qué hacemos con estos datos y de
qué manera influyen en la identidad nacional? Más aún, en un país
marcado por la violencia y la injusticia social ¿qué significa una
diversificación de la experiencia religiosa? ¿de qué manera afecta la cultura
y las relaciones sociales?
Queremos esbozar aquí un intento de respuesta a estas interrogantes,
conscientes de la necesidad de una profundización ulterior.
3.1 Tomar En Cuenta Y Comprometerse Con La Nueva Configuracion
Cultural Y Religiosa
El primer elemento que queremos destacar es que si el catolicismo
configuró la identidad nacional, hoy estamos asistiendo a una nueva
configuración de identidades que aún no está alcanzada y que supone
ruptura, desorientación y muchos desafíos. Nos encontramos entonces con
unos procesos complejos y que necesitan una reflexión profunda y detallada.
El imaginario cultural aún está marcado por la hegemonía católica pero
las personas individuales comienzan a explorar múltiples y distintos
caminos. Esto ha de llevarse en cuenta a la hora de una educación, una
evangelización y cualquier mensaje que quiere llegar a los colombianos y
colombianas. No se puede dar por supuesto una identidad que ya no está
permeando la cultura colombiana pero tampoco se puede dejar de lado.
El desafío consiste en ser capaces de descubrir los imaginarios culturales
que siguen existiendo y, al mismo tiempo, trabajar por construir nuevos
referentes. Es necesario además denunciar aquellos imaginarios culturales
que no han sido positivos para la construcción nacional y anunciar nuevas
posibilidades y concreciones del ethos colombiano.
Una realidad muy palpable es la urgencia de trabajar por una ética
civil que constituya a los habitantes del país. Si los principios católicos
comienzan a no ser significativos en las relaciones sociales el peligro que
palpamos es la falta de principios que norteen la vida social. No significa
que no se siga apelando a la experiencia religiosa para formar la conciencia
moral del pueblo colombiano. Pero junto a eso, no se puede olvidar que la
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migración religiosa y la fragilidad de las nuevas experiencias no son
suficientes para garantizar el ethos moral de un país. Se necesita una
formación ética que teniendo en cuenta la dimensión religiosa, la trascienda
en el sentido de favorecer una convivencia humana y responsable
independiente de la experiencia religiosa que profesen las personas.
3.2 El Debate Educativo Que Contemple La Libertad Y Formación Religiosa
En Colombia ha sido constante el debate sobre la formación religiosa
en el sistema educativo público. Se exige una formación plural y el derecho
a recibir la educación religiosa de la denominación a la que pertenecen los
padres o a la que se escoja en el caso de los jóvenes. Vemos como positivo
el derecho a ser educado en la propia confesión y el garantizar tal derecho.
Sin embargo esto implica una formación adecuada de los docentes y unas
condiciones que garanticen que este derecho se cumpla. Podemos caer en
el extremo de “deformar” la conciencia religiosa de los pueblos al no cumplir
con las condiciones para tal formación y aumentar el relativismo ético y
religioso. Pero el desafío no queda aquí. ¿Cómo tener una adecuada
formación ecuménica e interreligiosa que posibilite brindar una formación
religiosa desde ese horizonte? Esta es una reflexión que nos compete a
todos y que está por estrenar. Por eso la urgencia de crear espacios que
hagan posible esa realidad. Y no menos urgente un compromiso de cada
confesión religiosa de revisar todo su horizonte doctrinal en ese horizonte
ecuménico e interreligioso de manera que se tengan elementos adecuados
para brindar posteriormente una formación en ese mismo sentido. En otras
palabras, el desafío es formar en la propia identidad, en el contexto de la
diversidad, el respeto y la tolerancia frente a los demás.
3.3 Globalización Y Diversidad Religiosa
No podemos dejar de lado el fenómeno de la globalización que
afecta diversos aspectos de la vida social pero también influye directamente
en este panorama de diversidad religiosa. Aunque la religión siempre ha
tenido un aire expansionista por su misma razón de ser evangelizadora,
en la actualidad el fenómeno de la globalización mundial también influye
en ese hecho y podemos constatar un paso de lo internacional a la
transnacional. Hasta estos últimos años, las estrategias de expansión
religiosa, por ejemplo, no se encontraban tan ligadas como antes a las
expansiones políticas imperialistas y corresponden más a nuevas lógicas
que no dependen más de las relaciones entre los Estados. Si la exportación
de religiones estuvo estrechamente ligada a la historia de las expansiones
coloniales, los actuales flujos religiosos no corresponden a esa única lógica.
Se observa un proceso de globalización religiosa que escapa a los Estados
y trasciende las fronteras. Lo religioso se desarrolla más y más a través de
configuraciones en redes, a partir de necesidades y demandas, de parte de
grupos y de individuos en búsqueda de identidad, de promoción cultural
y social, de reestructuración personal o de métodos alternativos de salud y
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bienestar. En este sentido puede decirse que la globalización religiosa no
lleva a la homogenización sino al particularismo que fomenta identidades
locales, regionales o internacionales (BASTIAN, 2005, 325-326).
La transnacionalización religiosa es un proceso de difusión
multilateral que atraviesa fronteras sin que vaya emanando de un punto
de arraigo específico, ni determinado por intereses estatales. Se pueden
señalar tres rasgos de la transnacionalización religiosa: la multilateralidad,
la hibridez y la visibilidad mediática de las prácticas y de las creencias en
situación de mercado.
Desde la primera mitad del siglo XIX la expansión de los
protestantismos en América Latina se operó a través de un movimiento
misionero de origen estadounidense. Pero cabe anotar que no se puede
analizar ese fenómeno en forma lineal sino que supuso la selección de
ciertas prácticas para ciertos agentes, en provecho de ciertas
reelaboraciones simbólicas autóctonas rompiendo los lazos con las iglesias
madres y sin necesitar de su apoyo financiero. Surgieron líderes en las
propias regiones con sus recursos propios y también han exportado su
presencia religiosa a otros lugares del planeta. Y esa exportación religiosa
que va para todos lados no responde a la transmisión de una verdad sino
a la lógica del mercado. Parece que los predicadores externos tienen más
acogida y eso es aprovechado en todos los lugares A esto hay que sumarle
la nueva realidad con la que afloran esta pluralidad de oferta religiosa. Se
caracteriza por lo híbrido, abandonando toda pureza de doctrina y optando
por la yuxtaposición de todo aquello que garantice el éxito de la oferta
religiosa. Por último la visibilidad mediática de las prácticas juega un papel
determinante en la expansión y venta del productor religioso. Ya no se
trata de predicadores que anuncian un mensaje sino de pastores de show
televisivo que adaptan músicas y estilos autóctonos para garantizar la
acogida y cercanía con los fieles y usando todos los recursos mediáticos
disponibles (BASTIAN, 2005, 3228-331).
3.4 Presencia Y Participación De La Mujer En Este Nuevo Panorama
Religioso4
En las últimas décadas la participación de la mujer ha aumentado
en la vida eclesial. Tanto por los diferentes ministerios pastorales que están
siendo ocupados por mujeres como por la producción teológica. Esto está
siendo posible por esta diversidad religiosa y cabe anotar que precisamente
las otras denominaciones cristianas han abierto espacios en sus ministerios
y en la formación teológica a las mujeres. Sin embargo, esto no significa
que se haya transformado radicalmente la organización patriarcal que ha
constituido las instituciones religiosas. Puede observarse que en muchas
denominaciones cristianas no católicas el papel de la mujer sigue siendo
limitado en los niveles de decisión. En algunos grupos se destaca su papel
como esposa del Pastor pero no por su propio valor. En realidad en pocos
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grupos hay una verdadera igualdad entre varones y mujeres y un
reconocimiento del liderazgo eclesial que está llamada a ejercer.
No significa que en las bases no haya más participación. En muchos
grupos pentecostales la posibilidad de evangelizar y de ser protagonista
en el culto que tiene la mujer es notoria y podría explicar la migración de
tantas mujeres a esos grupos. Pero esta realidad no es determinante. Muchas
veces esos grupos mantienen el rol tradicional asignado a la mujer en la
familia y en la sociedad y, de alguna manera, la exigencia sigue siendo
dupla: responder a sus roles tradicionales multiplicándolos con los servicios
en la iglesia. De todas maneras no se desconoce que no sólo la mujer sino
también los varones quieren una participación más efectiva en la
comunidad eclesial a la que pertenecen y buscan espacios para ello. Si
éstos se les niegan ya tienen menos dificultad para exigirlos y/o migrar a
otro grupo religioso que valore su protagonismo y le permita desplegar su
ser personal y su responsabilidad evangelizadora.
En este sentido la iglesia católica tiene un inmenso desafío porque
aunque ha abierto muchos espacios de participación y en su discurso
reconoce el nuevo momento eclesial que se exige, en la práctica tiene
disposiciones generales y locales que desdicen una comunidad eclesial
verdaderamente inclusiva donde todos y todas sientan su pertenencia en
igualdad de deberes y derechos.
A Modo de Conclusión: Hacia Una Diversidad Religiosa Que Permita
La Construcción De Sujetos Integrales, Capaces De Vivir La Identidad
En La Diferencia
Concluimos nuestra reflexión con la propuesta de comprometernos
con la posibilidad de vivir la diversidad religiosa sin que eso menoscabe la
integralidad de los sujetos y sin postular un relativismo o subjetivismo que
impida la construcción de sociedades verdaderamente plurales, tolerantes
y diversas.
No es suficiente proclamar y defender la diversidad religiosa. La
dimensión trascendente de toda existencia humana no es un añadido o un
aspecto sin importancia en la propia vida. Por el contrario está dimensión
es fundamental y constituye mucho de las sociedades actuales. Más aún,
estamos inmersos en un mundo donde la guerra no es sólo de ideologías
políticas sino que las religiones están jugando un papel determinante en la
construcción de la paz. ¿Cómo entonces detenernos en esta dimensión
humana y comprometernos con su auténtico desarrollo? ¿No podemos
esperar que de una experiencia religiosa surjan sociedades más justas e
inclusivas, más auténticas y generadoras de valores humanos que posibiliten
el desarrollo integral de los individuos?
Lo anterior no se logra sin un trabajar por la propia identidad
religiosa a partir de la cual se pueda entender la diferencia con los otros
grupos. No me refiero a una identidad cerrada sobre sí misma o a la
defensiva. Sino la que surge de una búsqueda sincera y una apertura
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constante a dejarse recrear y cuestionar y que esté dispuesta a dejar la
seguridad de lo alcanzado para abrirse a la asimilación de lo nuevo. Sólo
desde una identidad sincera, con raíces firmes pero no anquilosadas, con
pilares sólidamente fundamentados pero no inamovibles, se podrá abrirse
al diálogo ecuménico e interreligioso que posibilite la construcción de un
nuevo orden social donde las religiones contribuyan a la unidad y no sean
motivo de separación, conflicto y muerte.
La riqueza de la diversidad sólo alcanzará a los sujetos particulares
en la medida que estos sepan dar razón de su fe y asuman libremente su
creencia y pertenencia eclesial. Por eso la formación continúa siendo un
desafío inaplazable. Pero no la formación que responde a una actitud
defensiva, no la que pretende emprender campañas proselitistas sino la
que se abre a los desarrollos actuales del quehacer teológico y se deja
confrontar con los retos del tiempo presente. En este sentido no se puede
dejar de lado el diálogo intercultural, la cuestión social, el problema
ecológico y la subjetividad personal que a nivel étnico y genérico reclama
un lugar en sociedades verdaderamente igualitarias y justas, incluyentes y
solidarias.
Finalmente queremos reconocer los esfuerzos de la Conferencia
Episcopal Colombiana por crear un departamento de ecumenismo y diálogo
interreligioso en el que se han llevado jornadas de oración por la paz y un
encuentro sobre bioética con expositores de diferentes denominaciones.
Además está constituido un comité permanente en el que participan
miembros de diferentes confesiones religiosas permitiendo así un espacio
de diálogo y de trabajos comunes. Por parte de las iglesias cristianas y de
las otras confesiones religiosas también se perciben acercamientos y
apertura al diálogo pastoral, teológico, litúrgico y eclesial.
De todas maneras para todas las denominaciones religiosas en
Colombia, el desafío de construir una patria justa y en paz, está vigente.
No bastan obras asistenciales sostenidas por ellas ni manifestaciones
públicas para alcanzar una reforma legislativa o una presencia pública
en determinado contexto. Se necesita una seria reflexión sobre la doctrina
que se anuncia y el compromiso solidario que se vive. Más aún se exige
una revisión de su eficacia real en la construcción de la identidad
colombiana y de su pertinencia a la hora de visibilizarse y reclamar
espacios educativos. “La fe sin obras es muerta” (St 2, 26) y una diversidad
religiosa no puede olvidar esta realidad fundamental. Por el contrario
debe multiplicar su capacidad de responder a la realidad social mostrando
que el Dios al que se sigue es un Dios vivo que vela por la vida de su
pueblo.
Notas
1
Doctora en Teologia. Diretora de la Facultad de Teología de la Pontificia Universidad
Javeriana. E-mail: [email protected]
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2
Diferentes autores, ponencias y artículos en que se afirma esta realidad pueden verse en
Bidegain y Demera, 2005, p. 14, nota 1.
3
Para este apartado seguimos algunos de los aportes de Múnevar, Jorge, “La libertad
religiosa en Colombia. Orígenes y consecuencias”, 247-256.
4
Cfr. BELTRÁN CELY, 2006, p. 302-309.
REFERENCIAS
ADARVE, Mauricio. Presencia de la diversidad confesional en Colombia. Ponencia
presentada en el I Encuentro del ICER (Instituto colombiano para el estudio de las religiones)
sobre la Pluralidad del hecho religioso en Colombia. Bogotá, noviembre, 1993.
BASTIAN, Jean-Pierre. Pentecostalismos latinoamericanos. Lógicas de mercado y
transnacionalización religiosa. En: BIDEGAIN GREISING, Ana María y DEMERA VARGAS,
Juan Diego (compiladores). Globalización y diversidad religiosa en Colômbia. Bogotá:
Facultad de Ciencias Humanas, Universidad Nacional de Colombia, 2005. p. 323-344.
BELTRÁN CELY, William Mauricio. De microempresas religiosas a multinacionales de la
fe. La diversificación del cristianismo en Bogotá. Serie Religión, sociedad y política 1,
Bogotá: Editorial Bonaventuriana, 2006.
______. La diversificación del cristianismo en Bogotá. En: BIDEGAIN GREISING, Ana María
y DEMERA VARGAS, Juan Diego (compiladores). Globalización y diversidad religiosa en
Colômbia. Bogotá: Facultad de Ciencias Humanas, Universidad Nacional de Colombia,
2005. p. 257-291.
BIDEGAIN, Ana Maria. Iglesia, pueblo y política. Bogotá: Universidad Javeriana, 1985.
BIDEGAIN, Ana Maria. La pluralidad religiosa en Colômbia. Arte y cultura democrática,
Bogotá: Instituto Luis Carlos Galán, 1995.
BIDEGAIN GREISING, Ana María y DEMERA VARGAS, Juan Diego (compiladores).
Globalización y diversidad religiosa en Colômbia. Bogotá: Facultad de Ciencias Humanas,
Universidad Nacional de Colombia, 2005.
CONFERENCIA EPISCOPAL COLOMBIANA. El ser y quehacer del movimiento ecuménico
hoy en Colômbia. Bogotá: Editorial Bonaventuriana, 2005.
HELMSDORF, Daniela, Participación política evangélica en Colombia (1990-1994). Historia
crítica, nº. 12, 1996.
MADRID-MALO GARIZÁBAL, Mario. La libertad de rehusar. Bogotá: Centro de
publicaciones ESAP, Ed. Príncipe, 1991.
MÚNEVAR, Jorge, La libertad religiosa en Colombia. Orígenes y consecuencias. En:
BIDEGAIN GREISING, Ana María y DEMERA VARGAS, Juan Diego (compiladores).
Globalización y diversidad religiosa en Colômbia. Bogotá: Facultad de Ciencias Humanas,
Universidad Nacional de Colombia, 2005. p. 247-256.
OSPINA, Eduardo. El protestantismo en Colombia. Bogotá: Ed. Javeriana, 1945.
PEREIRA, Ana Mercedes, El pentecostalismo: nuevas formas de organización religiosa en
los sectores populares. Origen, evolución y funciones en la sociedad colombiana, 19601995. Historia crítica, nº. 12, enero-julio, 1996. p. 43-65.
SPEC. Proliferación de sectas. Bogotá: SPEC, 1989.
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7
DIVERSIDAD RELIGIOSA EN COSTA RICA:
CRISTIANISMO Y DIALOGO INTERCULTURAL
Juan Carlos Valverde Campos1
[...] Nunca podrán con un lugar así, de lluvias torrenciales, de eternas
inundaciones y de suampos perennes, de podredumbre y gangrena, tanto
que hasta los frutos de mi vientre están podridos, enfermos y malsanos,
contaminados por este ambiente húmedo de acequia y fosa séptica, los canales
inmóviles donde ponen huevos miles de zancudos de paludismo [...]
María la noche. Anacristina Rossi2.
El título de este encuentro es “Culturas y diversidad religiosa:
investigaciones y perspectivas pedagógicas”, y a mí se me ha solicitado
que les presente el tema de la “Diversidad religiosa en Costa Rica:
cristianismo y diálogo intercultural”.
Logro identificar varias problemáticas, todas muy importantes:
culturas, religión, diversidad religiosa, diálogo intercultural y perspectivas
pedagógicas.
Es interesante notar que aunque se me invita a reflexionar sobre la
diversidad religiosa en Costa Rica, el énfasis recae en el cristianismo en el
contexto de un diálogo con las culturas. En este sentido yo invertiría los
términos para hablar de “Los retos que la diversidad religiosa y la
interculturalidad le plantean al cristianismo en Costa Rica”.
No podría dar inicio, sin embargo, a esta presentación sin aclarar
antes al menos dos términos. El primero de ellos es el de cultura seguido
éste del de religión. Permítanme recordar que el vocablo cultura proviene
del latín cultus el cual a su vez deriva de la voz colere que significa cuidado
del campo o del ganado. En el Siglo de las Luces (siglo XVIII) aparece el
sentido figurado del término que conocemos, a saber, cultivo del espíritu.
De ahí que se diga que una persona sea culta, es decir, instruida, que pasó
por las aulas universitarias y que además tiene un comportamiento
reconocido socialmente. Sin lugar a dudas esta acepción del término es
muy pobre. No es ciertamente la única.
Entenderé la cultura como todas las formas y expresiones de una
sociedad determinada. Esto incluye costumbres, prácticas, códigos, sexo,
normas y reglas de la manera de ser, vestimenta, religión, rituales, normas
de comportamiento y sistemas de creencias. En la cultura encontramos
todo cuanto hombres y mujeres hacen y las razones por las que lo hacen.
Así, el homo religious es una producción cultural; las religiones son
igualmente un producto de la cultura y por tanto no pueden comprenderse
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fuera del contexto en el que nacieron en el pasado y se encuentran en el
presente.
Ahora, ¿Qué entiendo por religión? Encontramos definiciones (en
función obviamente de los/as autores/as que las proponen) que hablan
de sistemas de creencias y prácticas relacionadas con fuerzas que
configuran el destino de los seres humanos (G. Lenski) o conjunto de
símbolos que ordenan y dan sentido a la vida de los seres humanos
(Clifford Geert). Xabier Zubiri afirma que el hombre en su apertura a la
realidad, lejos de experimentarse como un ser “arrojado” a la existencia,
se siente un ser “religado”. La religación es el acceso del hombre a Dios.
La religión es así la vía o el camino que me da acceso a Dios, es lo me une
con lo trascendente. La desligación es asentarse en la facticidad. Decir
religión y no pensar en aquello que desde siempre ha sido llamado DIOS
es imposible.
Menciono estas pocas ideas para decir que no existe consenso entre
los/as estudiosos/as con respecto a una posible definición de la religión.
Entenderé aquí como religión el conjunto de símbolos, creencias y prácticas
relacionadas con un “algo” trascendente que dan sentido y orientan la
vida y por tanto el comportamiento de los seres humanos. En cuanto a
DIOS, prefiero decir que es un símbolo, el producto de convenciones
sociales. Entorno a él nacen todos los días cientos de mitos.
Dicho esto, daré inicio a mi presentación la cual consta de tres
momentos, precedidos ellos de una introducción que considero
fundamental. Dividiré mi presentación en tres secciones:
1. Introducción. Costa Rica hoy (diversidad cultural y religiosa).
2. Breve ubicación histórica: culturas y religión en CR.
3. Interculturalidad y cristianismo en Costa Rica: propuesta pedagógica.
Dado que la religión es un producto de las culturas, por lo tanto de
las sociedades, es decir hechura en buena medida de manos humanas, no
puedo no decir algo de la situación actual de mi país.
1 Introducción. Costa Rica Hoy.
En Costa Rica, como ciertamente sucede en muchos países más,
muchas cosas están sucediendo. No estamos bien. La gran clase media
que nos caracterizaba está desapareciendo o polarizándose cada vez más.
Hemos comenzado a ver cómo funciona el crimen organizado, los sicarios
son ya parte del sistema. Funcionarios públicos y privados buscan
enriquecerse sin importar los medios que utilicen o de quién sea el dinero
que tomen. El dinero no alcanza. Calles y autobuses exponen a cientos de
hombres, mujeres, niños y niñas solicitando nuestra ayuda. La actual y ya
célebre crisis está dejando a cientos o miles sin empleo. Costa Rica se ha
convertido en un paraíso para quienes quieren evadir el fisco, para albergar
el crimen organizado, para trasegar droga. Costa Rica es el refugio de
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CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS
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delincuentes en las películas hollywoodenses. Este modelo de sociedad está
llegando a su agotamiento. La competencia desencarnada en la que unos/
as luchan por ser mejores que otros/as nos conduce al abismo. Las
diferentes expresiones religiosas no han escapado de esta dinámica. Las
iglesias se “pelean” a los fieles ofreciéndoles de todo. También hemos visto
nacer en medio de nosotros las iglesias de la prosperidad o las que tienen
como premisa “pare de sufrir”.
Ciertamente no todo es malo. El acceso a la educación universitaria
ha aumentado – aunque eso no sea garantía de empleo –, la tecnología ha
entrado actualmente en un porcentaje bastante alto en muchos hogares,
la seguridad social atiende a nacionales y extranjeros. La diversidad es
evidente, algunos sectores desprotegidos dan luchas y ganan terreno.
Pero Costa Rica no está sola. Según el informe, Estado de la Región
2008, en la actualidad,
Centroamérica enfrenta una nueva y más apremiante situación internacional
con la carga de importantes deficiencias históricas: una mano de obra barata
y no calificada, mayorías pobres, distribución de la droga, una alta población
emigrante, un medio ambiente degradado y débiles Estados de derecho. Este
escenario reduce las opciones estratégicas para afrontar los nuevos desafíos.
En cada uno de estos ámbitos Centroamérica, como región, necesita dar pasos
firmes.
Todas las sociedades centroamericanas viven profundos y rápidos
cambios. Desde el punto de vista de la población, los 41,3 millones de
personas que habitaban el istmo en 2007 representan casi un 20% más
que las registradas en 1995 (8 millones más), pese a que, para el año 2006,
más de cuatro millones de centroamericanos habían migrado dentro o
fuera de la región. Las sociedades son mayoritariamente urbanas, lo que
contrasta con la situación prevaleciente a lo largo de la historia, cuando la
mayoría de las personas residía en el campo.
En los últimos años, Costa Rica ha experimentado cambios en
natalidad y migración. Esto último es particularmente importante para
nuestro propósito. En efecto, con la llegada de personas de otros horizontes
culturales hemos visto aumentar el número de prácticas religiosas. La
disconformidad de los nacionales se ha hecho sentir ante las diferentes y
variadas prácticas culturales que nos llegan de fuera.
La educación es otro rubro importante. Hasta hace algunas décadas
muy pocos/as jóvenes terminaban sus estudios de secundaria y todavía
menos los que ingresaban a la universidad. Costa Rica cuenta hoy con
aproximadamente 53 universidades privadas y 4 públicas. Del hecho
mismo de su existencia infiero que todas han de tener una abundante o
razonable población estudiantil. Eso es una muy buena señal. A principios
de los años 70 se hablaba de democratización de la educación y fue así como
nació la primera universidad privada.
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En los últimos años han visto la luz muchas ciudadelas y barrios
cuyos habitantes provienen tanto del campo como de otros países. En
estas zonas la pobreza extrema es una constante y con ella vienen la
violencia y los muchos intentos de sobre vivencia. Obviamente no estoy
diciendo que la violencia es fruto de la pobreza aunque ciertamente existe
alguna relación.
Los y las jóvenes se reúnen en torno a la música y nuevas costumbres
o prácticas. Algunos de los grupos que permanecen son los siguientes: los
Rockeros, los Metaleros, los Hippies, los Mods (Modernos), los Grunge, los
High Class, los Punks, los Raperos, los Skatos o Patinetos, los Surfos, los
Skinsheads, los Góticos, los Rasta, los Ragga‘s, los Emo´s, los Reggetoneros,
los Friáis, los Otakus. Todos estos grupos han sido llamados por algunos
estudiosos culturas emergentes, nuevas formas de agruparse para celebrar
lo que tienen en común. En este sentido yo me atrevería a hablar de nuevas
religiones o prácticas religiosas.
Estoy convencido que los profundos cambios que experimentamos
a nivel religioso tienen algo que ver con esta difícil situación de nuestros
pueblos. Al final volveré sobre este punto.
¿Qué corre por la sangre de los y las costarricenses de hoy? ¿De
quiénes somos hijos e hijas? En la búsqueda de nuestros orígenes debemos
recorrer la época precolombina, la cruenta colonización europea, los
variados intentos de estructuración de la nueva Costa Rica independiente
y, más recientemente, los intercambios culturales fruto de la llamada era
de la globalización. Así, tenemos costarricenses de origen indígena, negro,
asiático, europeo y/o muy probablemente un/a costarricense con un poco
de todo ello. El proceso de mestizaje entre indígenas, españoles y afrodescendientes, con sus tonalidades y sincretismos culturales, ha adoptado
rasgos particulares en las diferentes regiones del país, desde la Época
Colonial hasta la actualidad. Aunque no todas las migraciones han tenido
la misma importancia en número, sí han sido igualmente significativas en
términos culturales, para la conformación de la Costa Rica multicultural y
multiétnica que hoy conocemos.
Permítanme hacerles una pregunta: ¿Alguna vez han tenido la
oportunidad de saborear un delicioso casado? El casado es un platillo que
acostumbramos a pedir en los restaurantes y que ilustra muy bien lo que
somos. Muchos ingredientes en un solo plato formando una montaña
inmensa y todo ello revuelto.
Una porción importante de costarricense son hijos de los primeros
africanos traídos a Costa Rica en condición de esclavitud y más tarde,
para la construcción del Ferrocarril al Atlántico y el desarrollo de las
plantaciones bananera, enriqueciendo de igual forma la diversidad del
pueblo costarricense.
Buscando nuevas oportunidades que en su país no podían encontrar
por causa de la pobreza y la sobrepoblación, los chinos migraron al país
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desde mediados del Siglo XIX, para trabajar en algunas haciendas en el
Valle Central. Con la construcción del Ferrocarril al Atlántico aumentó la
presencia de chinos, los que luego orientaron sus actividades dentro de la
economía hacia el sector comercial, sobre todo, en los puertos de Limón y
Puntarenas.
La migración ha sido una constante en la historia centroamericana.
Esto se incrementa en la década de 1980 cuando muchos nicaragüenses,
salvadoreños, guatemaltecos y otros huyen de la guerra y buscan refugio
en el país. La relativa paz alcanzada en la región no ha hecho que cesen
estos movimientos. La pobreza es ahora la nueva explicación.
A finales del Siglo XIX y principios del XX, llegaron españoles,
italianos, árabes, judíos e hindúes, algunos buscando trabajo en la
construcción del ferrocarril y otros huyendo de la crisis económica de sus
países, de la persecución o de la guerra. También llegaron otros europeos
y estadounidenses que se integraron principalmente a las actividades
comerciales de las clases altas y medias.
Quiero terminar este apartado haciendo una breve anotación sobre
la situación religiosa de la Costa Rica de hoy. Ya mencioné las culturas
emergentes y las nuevas religiones que generan. En el siguiente cuadro
encontrará el lector una síntesis numérica, relacionada con lo que está
sucediendo en Costa Rica a nivel religioso, basada en una encuesta reciente.
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De este gráfico vale la pena señalar el crecimiento significativo de
los llamados “sin religión” quienes pasan de un 3,5 en 1988 a un 11,3 en el
2007. Por otro lado, los protestantes se mantienen bastante regulares, de
un 10,2 en 1991 a un 13,8 en el 2007. De igual forma es significativo que
los católicos practicantes estén ahora en un 44 % cuando en el 2000 eran
el 53%.
La mayoría de la población judía costarricense es de tipo ortodoxa
y askenazí aunque existe una sinagoga reformista. Se calculan unos 3000
los judíos en Costa Rica. El Islam en Costa Rica es practicado por
aproximadamente 150 familias (por lo que habrían más de mil individuos
incluyendo menores de edad), la mayoría inmigrantes del Medio Oriente
pero incluyendo conversos. En cuanto al budismo se refiere, Costa Rica es
el país centroamericano que cuenta con mayor cantidad, aproximadamente
96.000 personas, los cuales en su mayoría son emigrantes chinos, japoneses
y coreanos, pero también existen costarricenses conversos. Los budistas
cuentan con unos cinco templos budistas entre ellos una pagoda de
budismo chino situada en Pavas (San José), el templo budista tibetano de
barrio Amón (San José), el budismo nichiren situado en Rohrmoser (San
José) y la Casa Zen de Costa Rica situada en Heredia. Finalmente, diferentes
prácticas religiosas indígenas se preservan entre los indígenas costarricenses,
tanto cabécar, bribri y boruca, como el culto a Sibö.
¿En qué creen los ticos3 y las ticas? ¿A qué le tienen fe? ¿Cuáles son
sus miedos, esperanzas y sueños? Con la finalidad de dar respuesta a estas
preguntas, Demoscopía encuestó en noviembre del 2002 a 1.213 personas
y se obtuvo como resultado el documento que lleva como título “Fe y
creencias de los costarricenses”.
Como ya hemos visto, parece claro que en los últimos años la
sociedad ha experimentado un cambio y, por eso, en ciertos temas, sobre
todo sociales y religiosos, los/as ticos/as se muestran más tolerantes que
nunca antes. Por ejemplo, en el último quinquenio disminuyó en 17 puntos
porcentuales la cantidad de gente que cree que exista una única religión.
Es decir, hay un mayor número de personas convencidas de que no es
determinante si se es católico, evangélico o de otro culto cristiano. Es más,
la cantidad de católicos/as ha disminuido y se ha incrementado el número
de fieles de otras religiones. Quizá, por esta misma apertura espiritual que
está viviendo el pueblo costarricense, muchos/as de los/as ticos/as (el 42
por ciento) aseguran que estarían de acuerdo en votar por un candidato
no católico (el menor apoyo lo tienen los judíos) e incluso, en llevar a la
silla presidencial a un ateo. Esto era simplemente impensable en otras
épocas.
La mayoría en Costa Rica sigue creyendo en el poder de Dios y está
convencida de que su presencia es clave dentro de sus vidas, sobre todo en
tiempos difíciles, 3 de cada 10 de los encuestados no comparten la afirmación
de que una persona no creyente sea un individuo sin valores morales.
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Este cambio de perspectiva no solo invade el campo religioso. En
ámbitos tan controversiales como el aborto se nota un mayor respaldo,
especialmente en el área metropolitana y en el resto del Valle Central. Casi
un 6 por ciento más de entrevistados/as que en 1996 se mostraron a favor
de la interrupción voluntaria de un embarazo. Obviamente, esta
mentalidad “liberal” respecto a asuntos controversiales no es generalizada,
pues todavía hay un marcado apego a los valores familiares tradicionales.
Ejemplo de ello es que el 93 por ciento de los/as ticos se proclaman en
favor de los derechos y las garantías de la “familia nuclear”, compuesta
por hombre y mujer.
La mayoría de los expertos que analizaron los resultados de esta
encuesta coinciden en que los/as costarricenses están insertos/as en la era
de la globalización, que es también la era de Internet, de la ciencia y la
tecnología. Por eso, no es extraño que los/as ciudadanos/as de hoy, más
empapados/as de lo que ocurre en todos los rincones del planeta, piensen
muy distinto a sus abuelos y acepten costumbres o prácticas otrora
rechazadas tajantemente. Esto no significa necesariamente que estamos en
crisis, como podría percibirse de buenas a primeras, aclara José Alberto
Rodríguez Bolaños. En criterio de este sociólogo, lo que sucede es que la
sociedad está modificando sus valores y no es correcto calificar este
comportamiento como positivo o negativo, pues todo depende del cristal
con que se mire. En ese sentido debería verse como ventajoso el hecho de
que existe una creciente noción de los derechos humanos y de la igualdad
entre géneros, así como un mayor respeto hacia quienes tienen preferencias
sexuales distintas a las que el patriarcado judeocristiano calificaba de
normales. Preocupa, ciertamente, estar en la era de la comunicación y ver
al mismo tiempo los serios problemas de comunicación que tenemos.
Igualmente llama a la preocupación – considera el sociólogo y
exrector de la Universidad Nacional, Jorge Mora – no ese deseo de cambio,
que a la postre podría arrojar más beneficios que perjuicios, sino la falta de
credibilidad en quienes deberían conducirnos hacia la transformación
anhelada, hacia la sociedad justa y equitativa. De acuerdo con los resultados
de la encuesta, es palpable que los/as ticos/as no confían en sus líderes
religiosos ni políticos. En la actualidad, la mitad de los costarricenses
consideran que no hay nada en la labor o la actitud de monseñor que sea
digno de imitación y el 52 por ciento piensa lo mismo del presidente. De
modo semejante opinan los/as entrevistados/as sobre otros/as líderes
religiosos/as, sobre los/as jueces y magistrados/as, sobre los/as
empresarios/as y sobre los políticos en general.
Para la psicóloga social y catedrática de la Universidad de Costa
Rica, Isabel Vega Robles, el costarricense muestra desconfianza y falta de
crédito hacia las personas de su comunidad, instituciones públicas y quienes
la representan. Y esa insatisfacción parece provenir, principalmente, de lo
que percibe como ineficiencia y falta de atención a sus necesidades. La
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crisis económica, que en los últimos años ha golpeado con fuerza a la clase
media, la corrupción generalizada, los escándalos en que se ha visto
envuelta la Iglesia Católica (al igual que algunos pastores de otras
denominaciones religiosas), la crisis de los partidos políticos tradicionales
y la inseguridad ciudadana son factores que también contribuyen a que
los/as ticos/as se muestren desencantados/as y desesperanzados/as,
agrega el sociólogo Jorge Mora.
Pero si los costarricenses no creen en sus líderes tradicionales ni en
ellos mismos, ¿hacia dónde van? El futuro es incierto. No obstante, por esa
necesidad propia del ser humano de buscar respuestas en fuerzas superiores
a la humana, un número creciente de católicos ha abandonado su redil
para partir hacia otras iglesias. Si bien este fenómeno es más notorio entre
los católicos por ser el grupo con mayor número de seguidores, lo mismo
está sucediendo con fieles de otros cultos que, de igual manera, deciden
experimentar en nuevas sectas, explica el rector del Seminario Teológico
Bautista, David Guevara. También están quienes se aferran a lo místico o
sobrenatural para hallarle sentido a sus vidas. Así, el 94 por ciento de los
encuestados creen en los milagros y, al compararse los nuevos datos con
las respuestas obtenidas en 1996, se ve que ha habido un incremento en el
porcentaje de personas que creen en los ángeles, la reencarnación, los
fantasmas, los espíritus, la brujería y la magia blanca o negra (aunque, al
igual que sucede con el resto de los líderes, la gente cree menos en quienes
dicen tener poderes psíquicos).
El impacto de los medios de comunicación, el apogeo de los
programas televisivos que explotan los asuntos paranormales, las películas
que desarrollan historias de extraterrestres, el fenómeno de la New Age y
la demanda por libros de autoayuda, podrían justificar, de cierto modo, el
auge que están cobrando estas corrientes místicas. Un sector considerable
de la población se encuentra hoy atrapado en estas tendencias,
probablemente como consecuencia de la decepción que le han producido
los planteamientos espirituales tradicionales.
Terminemos diciendo que, contrario a lo que afirman muchos/as,
Costa Rica sigue siendo un país profundamente religioso y
mayoritariamente cristiano. Estamos lejos aún de los procesos de
secularización tan avanzados en Europa. Es más, no tiene por qué suceder
de la misma manera.
Esta es la Costa Rica de hoy. No podemos hablar de pureza, sino de
diversidad. Esto es lo que somos, la misma naturaleza canta lo que somos.
En un mismo árbol conviven tantas especies en armonía como personas
recorren nuestras calles y avenidas. No hemos terminado de aprender a
vivir juntos en medio de este pluralismo. A penas empezamos a caer en la
cuenta y eso causa un cierto dolor. En los últimos años hemos comenzado
a ver acrecentarse otro fenómeno: la xenofobia. Debe haber una o muchas
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explicaciones. Los que detentan el poder han trabajado arduamente para
hacernos creer que somos uno solo, que la diversidad es mala. La gran
mentira de la unicidad. Pero la diversidad es evidente y no estamos
acostumbrados a ella. Aunado a esto tenemos la praxis de las sociedades
capitalistas que han alcanzado un punto tal que estamos a las puertas de
una auto destrucción que causa horror.
Ahora debemos hacer un alto en la reflexión y devolvernos en el
tiempo para buscar en él nuestras raíces. Veamos.
2 Breve Ubicación Histórica
“Costa Rica es un país mestizo” (ULLOA, 1999, p. 25).
Efectivamente, la identidad del tico/a debe ir a buscarse muchos siglos
atrás. Como afirma F. Corrales, no resulta imposible establecer conexiones
entre la población actual y los grupos precolombinos. Algunos grupos
indígenas han incluso permanecido. Otros grupos se fueron integrando
con el paso del tiempo.
Es de todos y todas harto sabido que Cristobal Colón se embarcó en
1492 buscando una ruta más corta a Asia y poder así abaratar los productos
que se necesitaban en Europa. Había, además, en el ambiente europeo un
deseo de expansión y un ansia de buscar un hombre nuevo. Marco Polo es
testigo de ello. Sus aventuras en Asia lo demuestran.
El 12 de octubre de 1492 Colón se topa4 con unas tierras que creyó
era lo que andaba buscando. Primero llegó a una de las islas de las Bahamas
llamada Guanahaní creyendo haber llegado a la India supra Ganges5. En
su cuarto y último viaje, en septiembre de 1502, partiendo de Cariarí (Limón,
Costa Rica), recorre las costas ricas en oro y las llama Veragua 6 .
Desembarcan en la isla de Quiribrí (Uvita) y así comienza el largo y cruel
proceso de conquista con la lógica desestructuración cultural,
“arrancando” al nativo de su tierra, por medio de las ya conocidas
encomiendas y reducciones. Recuerdos de la conquista quedan en
numerosos nombres de lugares, ríos y pueblos.
¿Quiénes habitaban estas regiones antes de la llegada de los
españoles? Los habitantes de Abya Yala7, hoy llamada América, entraron
por el estrecho de Bering, las islas Polinesias y las islas Pascuas. Muy
probablemente el continente americano comenzó a ser ocupado hace unos
40.000 años (MOLINA; PALMER, 1997, p. 3) y el actual territorio de Costa
Rica entre 12.000 y 8.000 años atrás. Al descubrimiento de América,
poblaban el territorio que llegaría a ser Costa Rica diferentes agrupaciones
de aborígenes cuya población se calcula era de unos 40.000 seres humanos.
Estos se dividían en diferentes reinos, agrupados básicamente en dos
grandes áreas de influencia cultural, por un lado la Mesoamericana (Mayas
y Aztecas) y por el otro lado, la cultura Suramericana.
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Los estudiosos 8 coinciden en afirmar que Costa Rica tenía la
característica de ser el punto de congruencia de ambas tradiciones
culturales, por lo que se convirtió en una gran área de paso y comercio, lo
que explica la gran variedad de riqueza cultural, en un espacio territorial
tan pequeño. Otra característica es lo relativamente pequeño de sus
infraestructuras, esto debido a que este territorio no pertenecía directamente
a ningún reinado mayor. Se podría decir que era una tierra sin conquistar
por parte de los grandes reinados indígenas, ya que su población se
distribuía en pequeñas aldeas o tribus, que para el caso de la región de
influencia Mesoamericana, era un poco más estratificada, con
asentamientos bien establecidos y con concentraciones importantes de
población (algunos cientos). En la región Caribe había pequeñas
agrupaciones muy dispersas con algunas decenas de personas. En lo que
se conoce hoy día como el Valle Central existían tribus bien definidas y
estratificadas, pero su número de habitantes no era muy desarrollado. En
el caso de la región Caribe nunca fueron sometidos, además eran bastante
belicosos, lo que dificultó su conquista por parte de los españoles.
En 1502, el territorio costarricense estaba poblado, como decía, por
diferentes grupos indígenas. La zona noroeste se encontraba habitada por
indígenas chorotegas, de tradición mesoamericana. En el resto del territorio,
región central y costa atlántica, se ubicaban grupos de influencia
suramericana, a saber, los huetares y los bruncas. La llegada de los españoles
a Costa Rica hace que se formen otros grupos que tendrán gran importancia
en la estructura social, económica y política del territorio nacional. Estos
son: españoles, criollos, indígenas, negros (traídos en el siglo XVII) junto a
los ladinos (mestizos, mulatos y zambos) y también chinos.
Obviamente los españoles asumirán desde el inicio el rol de grupo
dominante aunque también ellos estarán divididos en varias categorías9, a
saber:
• Los Caballeros Hijosdalgos, naturales de las Indias Occidentales y residentes
en Cartago.
•Los Hijosdalgos de Pobladores de Sangre, descendientes de pobladores de
Indias pero que no tienen pruebas de su hidalguía paterna.
•Los Hijosdalgos de Pobladores de Privilegio cuya hidalguía solo se reconoce
en América.
•Los Segundones de las tres categorías anteriores.
•Los hijos de los españoles nobles y de Indias.
•Los indios nobles y sus descendientes en línea directa.
En contraste con este grupo dominante se encuentra otro que
constituye la mayor parte de la población, compuesta de españoles pobres
(plebeyos), los indígenas y los ladinos. Aunque ciertamente en Costa Rica
no existió la desigualdad tal como se concibió en otras regiones de
Centroamérica, es claro que no se puede hablar de una sociedad
igualitaria.
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Con la llegada de los conquistadores viene también un nuevo dios
que prevaleció sobre los dioses ancestrales de los indígenas. Como afirma
M Picado, “el cristianismo entró a América Latina de la mano de los
vencedores.” (GATJENS, 2008, p. 5). Este mismo autor señala que en
realidad la conquista espiritual fue un complemento de la conquista militar.
La colonización española procuró eliminar las religiones amerindias por
considerarlas claramente como bárbaras. El demonio había tomado
posesión y desde luego había que desterrarlo de estas tierras.
En honor a la verdad, se debe decir que la opinión de los estudiosos
está dividida en cuanto a la participación de la iglesia Católica en el proceso
de colonización. Constantino Láscaris (1983, p. 24) defiende la idea de
que los frailes ejercieron un fuerte dominio en la Provincia de Costa Rica a
pesar de la escasa asistencia de la población a los cultos religiosos. Otros
historiadores ven a la iglesia Católica como la gran terrateniente de la
época colonial. Lo cierto es que algunas cofradías inscribieron a su nombre
grandes extensiones de tierra. Las capellanías prestaban dinero o alquilaban
tierras para que fueran trabajadas y con las ganancias se pagaban tanto
los estudios de algún seminarista en Nicaragua o Guatemala como su
manutención en el ejercicio del ministerio. De igual forma algunos
sacerdotes acumularon riquezas a título personal. M. Picado Gatjens (2008, p.
11)
insiste, por su cuenta, que todo lo anterior debe ser visto como casos
aislados, la iglesia católica en la Costa Rica colonial, carecía de bienes
cuantiosos. El verdadero problema durante la Colonia no fueron las
riquezas sino la violencia que se ejerció contra los indígenas.
El estado costarricense nació y creció de la mano de la iglesia Católica
tanto así que incluso en la división geográfica del territorio fue sumamente
importante la división eclesiástica. Para defender internacionalmente las
fronteras del país se citaban las diócesis y los templos existentes en esos
territorios.
El 15 de septiembre de 1821 la Provincia se independiza dando
inicio a una nueva aventura. Costa Rica debe comenzar a organizarse.
Aclaremos que en Costa Rica no existía un movimiento fuerte en pro de la
Independencia. Simplemente fue acogida cuando llegó la noticia. La
independencia se llevó a cabo, además, en etapas. En primer lugar, Costa
Rica se independizó de España. En un segundo momento lo hizo del
Imperio Mexicano y finalmente de la República Federeal Centroamericana.
Mientras en Costa Rica se aceptaba sin problemas a Fernando VII, en
Nicaragua la situación se complicó al grado de iniciarse una lucha entre
una junta gubernativa y un grupo de insurgentes.
En nuestra historia patria el siglo XVIII es particularmente
importante. Los encomenderos que habían explotado a los aborígenes y se
enriquecieron se transformaron en hacendados durante el siglo XVII. En
el siglo siguiente pasarán a ser comerciantes exportadores e importadores
y llegarán también a apropiarse de las tierras que eran de la Corona
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Española. Igualmente era frecuente que acapararan los puestos más
importantes, tanto civiles como eclesiásticos. Por otro lado tenemos a los
encomenderos pobres quienes recibieron pocos indígenas o no recibieron
ninguno. Estos se convirtieron en pequeños y medianos productores. Es
así como aparece la pequeña y mediana propiedad, diríamos la clase media.
Esta clase media estableció relaciones de comercio y crédito con los
hacendados y generalmente eran empresas familiares. Así, la principal
transformación que sufrió Costa Rica en el siglo XVIII fue la expansión de
la producción campesina. Los agricultores se lanzaron a colonizar
acaparando la tierra en Cartago. El Valle Central, con su producción
campesina y una estructura social que no se basó en la servidumbre, era
un espacio más integrado étnica y culturalmente. Fuera del Valle Central
la estructura económica y social era muy diferente. El cultivo itinerante
era practicado por los indígenas en áreas lejanas.
Los misioneros católicos encontraron numerosas dificultades en la
tarea de convertir los nativos al cristianismo. Los frailes franciscanos
intentaron de muchas maneras reunirlos en poblados con pocos resultados
positivos. Aunado a la negativa de los pueblos indígenas de “juntarse” o
agruparse en territorios comunes, tenemos la aparición de piratas ingleses
y los llamados zambos-mosquitos quienes comenzaron a penetrar en
Talamanca para atacar a los habitantes y llevarlos presos para venderlos
como esclavos en Jamaica.
La dispersión fue así una de las características de los pobladores de
entonces que hacía cada vez más difícil cualquier intento de unificación.
Gustaban de entrar en bosques y hacer surgir allí milpas, trigales,
cañaverales, tabacales, frijolares, entre otros, evitando el contacto con otros.
Además, estos primeros pobladores no obedecían las órdenes que los
religiosos les daban. En 1711, nos dice C. Monge Alfaro (1959, p. 117),
vino a Costa Rica el obispo de Nicaragua, Benito Garret y Arlovi, y al ver
la situación en la que se encontraban los habitantes ordenó construir
oratorios para que pudieran cumplir con sus deberes religiosos. Así se hizo,
sin embargo, pasaron varios años y todo se mantuvo en su lugar. Al final
el prelado excomulgó a los habitantes de Costa Rica.
Costa Rica se fue llenando de parcelas que los colonos, en su mayoría
ladinos, iban apropiándose10. Cada familia tenía su parte, convirtiéndose
en propietaria de su predio. Estos labriegos solamente reaccionaban cuando
intentaban moverlos de su rancho. La mayor parte de la gente era sencilla
y sin formación. La única preocupación fue el cultivo de la tierra, cada
uno tenía lo suyo, nadie se sintió sometido a la explotación feudal.
La catequización consistía en memorizar la doctrina cristiana
(catecismo). La religión en este tiempo se practicaba en los hogares, las
familias eran los agentes de la catequesis, la fe se transmitía en el seno de
los hogares, por la madre y el padre.
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Las iglesias cristianas protestantes
Con la independencia llegan también otras iglesias cristianas. Así,
por ejemplo, en 1844, el marino inglés William Le Lacheur, de religión
protestante, se establece en estas tierras y con él el comercio regular entre
Costa Rica e Inglaterra y en 1891 llega a Puerto Limón William McConnell,
primer misionero protestante. Es el comienzo de una relación a veces
complicada aunque no siempre entre la iglesia Católica y las iglesias nacidas
de la Reforma.
3 Interculturalidad Y Cristianismo En Costa Rica: Propuesta Pedagógica
a) Tiempos y momentos
No puedo dejar de mencionarlo: la pluralidad de tiempos y
momentos ha sido olvidada. Nos han hecho creer – y hemos caído en la
trampa – que la historia es lineal y que en esta línea del tiempo están todos
los tiempos y momentos. Así, estamos acostumbrados a inscribir los sucesos,
eventos o cuanto hacemos y sucede en una línea continua del tiempo.
Hemos hecho coincidir en una misma línea temporal el logos cristiano –
con el misterio de la encarnación – con otros logos. Todo en una misma
línea temporal. Empero, la realidad es mucho más compleja. Cabe entonces
preguntarse si hay coincidencia entre realidad e historia. De igual manera
debemos interrogarnos sobre la realidad.
La hoy conocida epistemología intercultural desea incluir otras
narraciones que han sido olvidadas. Las narraciones que conocemos surgen
de los centros de poder, debemos rememorizar la historia desde otras
memorias olvidadas. En esta línea de pensamiento, debemos afirmar con
firmeza que, por ejemplo, los tiempos de los niños y las niñas no han sido
tomados en cuenta, tampoco los tiempos de las mujeres, los indígenas, los
afro-descendientes. Los centros de poder les han impuesto otros ritmos
que no son los suyos. Los niños y las niñas, las mujeres, los indígenas, los
afro-descendientes sienten y viven según otros tiempos, otras realidades.
Raúl Fornet-Betancourt (2008) habla del “crucigrama de los muchos
tiempos contextuales y memoriales de la humanidad.” Esta imagen me
parece maravillosa. No hay líneas continuas, hay líneas que corren en
múltiples y diversas direcciones y que eventualmente se encuentran pero
que no siempre coinciden. Esas líneas en otras direcciones son tan reales e
importantes como las de los poderosos que escriben la historia. Me pregunto
cómo sería una historia narrada desde la realidad de los niños y las niñas.
Otro mundo es posible, otra educación es posible, la actual es excluyente.
Debemos hacer justicia y reconocer esas voces que desean poder pronunciar
su propio logos.
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b) Interculturalidad y moda
Ante nuestros ojos hemos visto pasar muchas y diversas teorías que
fueron o están siendo rechazadas o discutidas, la famosa y aceptada
inculturación, por ejemplo. Quisiera insistir en esto: la interculturalidad
no debe ser vista como una moda o nueva teoría. Se trata de un principio
epistemológico y de vida fundamental. Es la existencia del otro u otra lo
que está en juego. Es el respeto esencial y primario del otro de la otra. Este
respeto debe traducirse en escucha y conocimiento de su mundo, de sus
razones, de su historia, de sus tiempos. Cuando digo escucha y
conocimiento no estoy diciendo comprensión. Estoy hablando más que
todo de una contemplación silenciosa del misterio. El otro, la otra es un
misterio que se debe respetar en un gesto de adoración.
c) Interculturalidad y pedagogía
El sistema educativo costarricense es excluyente. Contamos con una
educación gratuita y obligatoria en primaria y gratuita en secundaria. Esto
de gratuita y obligatoria es ciertamente discutible.
La educación en Costa Rica está pensada para las clases media y
alta. La clase baja difícilmente podrá enviar a un hijo o hija a estudiar, son
ingresos que se pierden.
Los y las estudiantes con dificultades de aprendizaje y los
superdotados son un problema. La educación está pensada para niños,
niñas y jóvenes obedientes, buenos repetidores y que no piensan demasiado.
Estos/as ultimos/as son especialmente molestos/as.
Volvemos al punto antes mencionado de los tiempos y momentos.
¿Qué se debe aprender y cómo hacerlo? Las universidades nos encontramos
en esa misma encrucijada. ¿Enseñar lo que pide el mercado hoy?
Quedaríamos reducidos, al menos en Costa Rica, al inglés y la informática.
En un encuentro que tuvimos recientemente en Costa Rica sobre
Teologías de la Liberación e interculturalidad un compañero de la Escuela
Ecuménica, Dr. Mario Méndez (2009), presentó una ponencia de la que
quisiera rescatar los siguiente puntos:
•Para qué de la educación. Dado que la educación es una mediación, la
interculturalidad nos ayuda a revisar el tipo de mediación. Desde la
interculturalidad se hace posible un equilibrio epistemológico en el que
se supere la deslegitimación de saberes que no coinciden con los
paradigmas que dominan en la actualidad. Una transformación
intercultural de la educación nos colocaría en la posibilidad de acoger,
reconocer y valorar la diversidad de referencias culturales, de memorias
y ritmos que caracterizan la vida cotidiana de los actores y actoras de los
procesos educativos. La educación no sería, entonces, un paréntesis que
hace abstracción de la vida, sino un espacio en el que confluye la vida
con toda su diversidad. Desde la interculturalidad se pueden construir
ambientes en donde todas las voces sean escuchadas. Desde la
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interculturalidad las personas educadoras se piensan más como
servidoras y no como dueñas de los procesos educativos. Las personas
educadoras son, entonces, más mediadoras de interrelaciones y de
intercambios interculturales que transmisoras de contenidos en cuya
selección no ha tomado parte; son actoras que pueden aprenden a ver la
diversidad más como una posibilidad que como un obstáculo para el
aprendizaje. Tal diversidad (cultural, epistemológica, contextual) debe
quedar reflejada en los programas educativos (planes curriculares,
planeamiento didáctico), lo cual garantizaría – al menos en parte – el
desarrollo de procesos educativos interculturales: “de esta forma los
programas educativos serían el espacio en el que se efectúa el diálogo
con muchos saberes y se aprende a sopesar el lugar que les corresponde
en nuestras vidas y en el mundo que queremos habitar” (FORNETBETANCOURT, site, p. 39).
•No neutralidad de la educación. Los procesos educativos no son neutrales.
Frente a esto, la interculturalidad nos recuerda el carácter ético-político
de la educación y la exigencia de realizar opciones en que se favorezcan
la acogida y la aceptación solidaria de todas las personas. Como hemos
dicho, la educación tal y como está planteada en nuestros días es
excluyente. Se trata pues de hacer propuestas que superen la exclusión.
La interculturalidad puede ofrecer a la educación la posibilidad de
generar adecuaciones curriculares que den respuesta a las demandas de
justicia cultural presentes en los ambientes educativos y en sus entornos.
De todos y todas es sabido que, en general, las adecuaciones curriculares
obedecen sobre todo a limitaciones (discapacidades) motoras, visuales,
auditivas, mentales. Sin embargo la realidad multicultural de nuestros
países, así como la creciente migración y el surgimiento de nuevas culturas
urbanas y juveniles, exige que en las aulas seamos capaces de desarrollar
también adecuaciones curriculares “culturales” que ayuden a superar
las asimetrías generadas por la existencia de grupos y culturas dominantes
y de culturas llamadas “minoritarias”. No son los actores y actoras – con
sus referencias culturales – quienes deben adecuarse al sistema, sino el
sistema (planes, estructuras, procesos) el que debe adecuarse a las
personas concretas, reconociendo y valorando sus diferencias.
•Convocar y convidar. El diálogo entre educación e interculturalidad debe
ayudar a repensar los procesos educativos, las actoras y los actores han
de sentirse mutuamente con-vocados y con-vidados (NAJMANOVICH,
2001, p. 206)
; como dinamismos en los cuales se superan las asimetrías y se
aprende desde las diferencias. Las personas educadoras que asumamos
una perspectiva intercultural tendremos que renunciar a nuestras
pretensiones de posesión de la verdad, para ser buscadores y buscadoras
en comunión con otras personas que también se consideran y están en
situación de búsqueda. Reconoceremos que lo que podemos compartir
es una perspectiva, y que otras perspectivas son igualmente válidas y
dignas de reconocimiento. Las personas educadoras nos sentiremos
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LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.)
invitadas a escuchar, nos descubriremos interpelados e interpeladas por
otros saberes y perspectivas y entenderemos esa interpelación como una
posibilidad, más que como una amenaza. Seremos conscientes, por lo
tanto, de la contextualidad de nuestro propio aprendizaje y del
aprendizaje de las otras personas.
d) Un ejemplo para terminar
Permítanme cambiar de tema y describirles, para terminar, lo está
sucediendo actualmente en Costa Rica, relacionado con la Enseñanza de
la Religión en escuelas y colegios. Este me parece un ejemplo claro de lo
que no se debe hacer. Contrario, a todas luces, a lo que acabo de proponer
en los párrafos anteriores.
El artículo 75 de nuestra Constitución Política dice lo siguiente:
La Religión Católica, Apostólica, Romana, es la del Estado, el cual contribuye
a su mantenimiento, sin impedir el libre ejercicio en la República de otros
cultos que no se opongan a la moral universal ni a las buenas costumbres.
Este artículo de la Constitución ha sido el argumento único y
suficiente para que tanto en primaria como en secundaria se enseñe la
religión católica como una materia obligatoria que se debe aprobar al lado
de las matemáticas, los estudios sociales, la química, la biología, entre otras.
Los protestantes o quienes no deseen que sus hijos o hijas asistan a las
clases de religión deben indicarlo de manera explícita con una carta dirigida
al director o directora de la institución.
El gobierno de la República puso en manos de la Conferencia
Episcopal la organización y administración de los programas de religión y
la contratación de los/as profesores/as. Se elaboraron las guías y un
reglamento que han llamado “Reglamento de otorgamiento y remisión de
la Missio Canonica”. Esta organización y administración es paralela a la
de cualquier otra institución gubernamental. Los profesores y las profesoras
de Religión se ven sometidos a un régimen disciplinario diferente al de
todos los empleados y las empleadas públicas. Así por ejemplo, se requiere
que tengan una vida ejemplar (según los criterios de la iglesia Católica).
Un joven que se divorcia y vuelve a casar pierde la missio y el trabajo.
Aunado a lo anterior, la Conferencia Episcopal decidió que
solamente serán contratados/as aquellos/as que estudian y/o se gradúan
de la Universidad Católica violando el derecho a la libre elección del centro
educativo al que se desea asistir. Se impide igualmente la posibilidad de
que cualquier universidad, pública o privada, ofrezca esta carrera.
Las iglesias tienen todo el derecho de conservar su enseñanza pero
en el marco de la catequesis o escuelas varias que ofrecen. Ya no se debe
utilizar más la enseñanza oficial para catequizar. Por el contrario, el estado
debe garantizar una formación que les dé herramientas a los y las jóvenes
de hoy para ser, actuar con responsabilidad ante las tantas situaciones
que se les presentan.
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Notas
1
Académico de la Escuela Ecuménica de Ciencias de la Religión - Universidad Nacionales
de Costa Rica. E-mail: [email protected]
2
Bella imagen propuesta por una mujer costarricense describiendo el Atlántico rudo con el
que tuvieron que haberse encontrado los españoles.
3
Término familiar utilizado para referirse a los y las costarricenses.
4
Cristóbal Colón no descubrió un continente, se encontró con uno que ya estaba habitado.
Así lo explica FERRERO, 1986, p. 17.
5
Por este equívoco llamó a los habitantes de esta región “indios”.
6
Colón sigue creyendo que se encuentra en Asia, de hecho afirma estar en Ciamba al sur del
actual Vietnam, del cual ya Marco Polo había hablado.
7
Vocablo Kuna que designa los territorios comprendidos entre Alaska y Patagonia y cuyo
significado es “Tierra madura”. Véase FUNCOOPA. 1999.
8
Así, por ejemplo, ALFARO, 1959, p. 17. También MOLINA; PALMER. 1997, pp. 4-5 y
ULLOA. 1999, pp. 25-26.
9
Para mayores detalles véase GARCÍA, 1985, pp. 86-91.
10
Esto hacía que los indígenas se quejen ya que tanto sus tierras como sus ganados son
integradas en cofradías y los ladinos y los criollos son los verdaderos beneficiados. Cf.
GARCÍA. 1985, pp. 86-91.
REFERENCIAS
ALFARO, C. Monge. Historia de Costa Rica. San José, C.R.: Trejos, 1959.
FERRERO, L. ¿Por qué prehistoria si hay historia precolombina? San José, C.R.: EUNED, 1986.
FORNET-BETANCOURT, Raúl. La interculturalidad a prueba. Versión en PDF disponible
en la página web de la Universidad Centroamericana José Simeón Cañas (UCA), <http://
www.uca.edu.sv/deptos/filosofia/web/admin/files/1210106845.pdf>
FORNET-BETANCOURT, Raúl. Teoría y praxis de la filosofía intercultural. La
interculturalidad o por una universalidad más allá de la historicidad. Documento inédito.
Será publicado en la Revista SIT de la Escuela Ecuménica de Ciencias de la Religión en el
volumen 1, 2008.
FUNCOOPA. Los pueblos indígenas de Costa Rica. Historia y situación actual. San José, C.
R: Fundación Coordinadora de Pastoral Aborigen, 1999.
GARCÍA, Y. González. Continuidad y cambio en la historia agraria de Costa Rica. San José,
C.R.: Editorial Costa Rica, 1985.
GATJENS, M. Picado. La Iglesia Católica de Costa Rica en la historia nacional: desafíos y
respuestas. San José: EUNED, 2008.
LÁSCARIS, C. Desarrollo de las ideas filosóficas en Costa Rica. San José, C.R: Editorial
Studium, 1983.
MÉNDEZ, Mario. Aportes de la filosofía intercultural en la tarea educativa. Ponencia. Texto
inédito. Mayo 2009.
MOLINA, I.; PALMER, S. Historia de Costa Rica. San José, C.R.: Ed. De la Universidad de
Costa Rica, 1997.
NAJMANOVICH, Dense. Pensar la subjetividad. Complejidad, vínculos y emergencia.
Utopía y Praxis Latinoamericana, Año 6, Nº 14. 2001.
ULLOA, F. Corrales. Más de diez mil años de historia precolombina. En: SOBRADO, Ana
María Botey (coordinadora). Costa Rica. Desde las sociedades autóctonas hasta 1914. San
José, C.R.: EUCR, 1999.
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8
DIVERSIDADE RELIGIOSA NO BRASIL:
DINÂMICAS, CONFLITOS E ACOMODAÇÕES
Afonso Maria Ligorio Soares1
Diversidade, Sim. Diálogo, Talvez
O honroso convite para participar deste I Seminário Internacional
Culturas e Desenvolvimento, cujo fio condutor é o tema “Culturas e
Diversidade Religiosa: Pesquisas e Perspectivas Pedagógicas”, oferece-me
a oportunidade de revisitar uma questão que me é cara e tem me ocupado
ao longo das últimas décadas, ou seja, a questão das interações religiosas
entre nós.2 Aliás, é incrível como ainda existam setores latino-americanos
em que falar de Diálogo Inter-Religioso (DIR) entre os povos que compõem
nossos países soe como novidade. Tal diálogo, pensa-se, comumente, é o
desafio vital das igrejas cristãs que se encontram nos países da Ásia e da
África. Para elas, é imperativo pôr-se à escuta de verdadeiros patrimônios
da humanidade, tais como o hinduísmo, o budismo, o confucionismo, o
taoísmo, o xintoísmo e, com cada vez mais urgência, o islamismo.
Entre nós, deste lado do Atlântico, a teologia cristã do pluralismo
religioso apenas engatinha. Durante séculos, e até mesmo nas primeiras
décadas que sucederam ao IIº Concílio Ecumênico do Vaticano – para
ficarmos aqui apenas no caso da igreja católica, outrora hegemônica – tal
esforço teológico-pastoral simplesmente inexistia, em razão da absoluta
“ausência” de interlocutores para o diálogo.
Explico-me. Reinava, hegemônica, a convicção de que o povo latinoamericano era essencialmente cristão – mais até: católico. Setores e práticas
da população que se mostrassem mais heterodoxos eram tolerados como
superstição e religiosidade popular ou atacados como perversões
demoníacas herdadas de nossos ancestrais indígenas e africanos.
O caso brasileiro é lapidar a esse respeito. Desde o início do século
passado, e com a permissão mais ou menos tácita da hierarquia católica, as
casas de candomblé e, posteriormente, as tendas de umbanda foram
sistematicamente perseguidas pela polícia. A diversidade político-religiosa era
assim fichada e relegada aos dossiês de crimes comuns. Alguns autores
afirmavam, até mesmo, que as religiões de origem africana eram fonte de
criminalidade (FERNANDES apud ORTIZ, 1978, p. 179-180). A nascente
psiquiatria nacional rapidamente elencou a umbanda na lista das causas de
doença mental - juntamente com a sífilis, o alcoolismo e os males contagiosos.
O fenômeno do transe místico em rituais do candomblé foi mal traduzido
como possessão e associado à loucura e a sintomas histéricos.
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Embarcada nessa maré de ataques, a igreja católica, em vez do diálogo,
preferiu avançar contra “o adversário”. Assim, lamentava-se o Cardeal Motta,
arcebispo paulistano e grão-chanceler da PUC-SP, alguns anos antes do último
Concílio Ecumênico do Vaticano:
Além do fetichismo dos nossos indígenas e daqueles povos provindos da Ásia
e da Europa, nosso povo recebeu esta triste herança oriunda também da África,
por intermédio dos antigos escravos negros. Hoje em dia, por uma insensata
aberração e falta de espírito, cultiva-se até mesmo a macumba africana com um
esnobe pretexto folclorístico. E se presta culto a uma tão bárbara superstição de
magia negra justamente em centros que deveriam ser mais representativos da
civilização brasileira, como Rio de Janeiro e Bahia. É uma ignomínia a prática
de tais abusos entre cristãos... É triste constatar que a marcha do nosso progresso
espiritual e cultural seja feita da senzala ao salão, e não do salão à senzala. A
macumba é um dos maiores atentados contra a fé, contra a moral, contra os
nossos direitos de educação, contra a higiene e contra a segurança. É a atestação
alarmante da nossa ignorância religiosa e científica, e da insuficiência da proteção
que a polícia nos oferece (MOTTA, 1953, p. 302).
Poder-se-ia retrucar que essas são águas passadas e vivemos um
novo tempo de abertura ao diálogo, ao menos na Igreja católica. Quem
sabe, mas as fumaças espessas que se levantaram com o recente acordo
diplomático entre o Vaticano e o Estado brasileiro nos fazem ficar, como
se dizia antigamente, “com as barbas de molho”.
1 Preconceitos e Mal-Entendidos a Partir das Ciências Sociais
Por outro lado, quero deixar claro que a dificuldade em lidar com a
diversidade religiosa não é privilégio da hierarquia católica nem de teólogos
cristãos. As pesquisas de religião na área de Ciências Sociais também têm
seus senões. Exemplifico com o caso que conheço melhor aqui, no Brasil:
as interações entre religiões afro-indígenas e o cristianismo. Conforme S.
Ferretti, “o fenômeno do sincretismo não foi especialmente analisado pelos
estudiosos das religiões afro-brasileiras e não interessou aos maiores
expoentes no estudo da religião nas ciências sociais”. A razão do silêncio
parece estar no fato de que os deuses cujos sequazes detêm as melhores
armas tendam a incorporar, liquidar ou segregar as divindades vencidas
(FERRETTI, 1995, pp. 41-74).3 A história é pródiga em relatos de destruição
de concepções divergentes.
Todavia, de uma forma ou de outra, o tema acaba entrando na
literatura científica brasileira. Embora sem usar o termo sincretismo em
seus trabalhos, (FERRETTI, 1995, p. 41) o médico baiano Raimundo Nina
Rodrigues inaugura a abordagem da questão no Brasil. Ficou famosa a
sua tese acerca da ilusão da catequese do negro, dada a incapacidade
física “das raças inferiores para as elevadas abstrações do monoteísmo”
(FERRETTI, 1995, p. 42). Tal incapacidade impediria que negros africanos
e seus descendentes compreendessem bem o culto católico, levando-os a
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simplesmente adicionar santos católicos à galeria de deidades africanas.
Com o passar das gerações, tornava-se cada vez mais tênue o imaginário
tradicional africano, tendo por consequência a adoração, de fato, dos santos
católicos. Seja como for, a equivalência das divindades daria essa ilusão,
pois “sem renunciar aos seus deuses ou orixás, o negro baiano [tinha] pelos
santos católicos uma profunda devoção” (RODRIGUES, 1935, p. 182).
Mais tarde, entretanto, o médico baiano proporá duas formas de
adaptação fetichista do culto católico: uma interna ou subjetiva; outra
externa ou cultual. A primeira dava-se quando a direção do culto cabia a
um sacerdócio mais ou menos esclarecido (caso do candomblé); a segunda,
quando os negros dirigiam livremente o culto (caso da cabula) (FERRETTI,
1995, pp. 42-43)
Artur Ramos, divulgador e continuador das intuições de Nina
Rodrigues, analisa o sincretismo na perspectiva da teoria culturalista. Diz
ele: “o que Nina Rodrigues julgou ser uma justaposição no negro e uma
fusão no crioulo e mulato, não são mais do que etapas do processo de
aculturação, graus de sincretismo, pela maior ou menor percentagem de
aceitação, por um grupo religioso, dos traços culturais de outro grupo”
(RAMOS, 1942, p. 9). Para Ramos, se o negro não compreendeu o
cristianismo, isso se deveu antes à mentalidade atrasada que herdou de seu
grupo social de origem. Todavia, essa “deficiência” poderia, em tese, ser
suprida do ponto de vista psicológico e sociológico (RAMOS, 1951, p. 114)4.
Gonçalves Fernandes e Waldemar Valente, médicos da Escola de
Recife de Estudos Afro-brasileiros, são, conforme S. Ferretti, os primeiros a
publicar trabalhos entre nós com título sobre sincretismo. 5 Também
culturalista, Valente define sincretismo como “um processo que se propõe
a resolver uma situação de conflito cultural”, e o faz por meio de “uma
intermistura de elementos culturais, uma interfusão, uma simbiose entre
componentes de culturas em contato” (FERRETTI, 1995, p. 47). Tal processo
percorre uma primeira etapa de acomodação, ajustamento e redução do
conflito social. Em seguida, vem a assimilação, que implica um lento e
inconsciente movimento de interpretação e fusão (VALENTE, 1976, p. 12).6
Valente entende que a influência cada vez maior do catolicismo é decisiva
na superação da incapacidade mental do negro (VALENTE, 1976, p. 72).
Mas, pelo menos, Valente destaca que tal relação não se processa como
estratégia ou disfarce, a não ser em escravos diretamente oriundos da
África; 7 e afirma que o sincretismo religioso é uma obra realizada
inconscientemente por tais grupos, sem um prévio planejamento.
O tom pejorativo dos estudos interculturais começa a mudar com
Roger Bastide, um dos pesquisadores mais publicados e influentes no campo
dos estudos afro-brasileiros. Estudaram com ele autores hoje respeitados,
como R. Ortiz, J. E. dos Santos e outros. Ele explica o chamado sincretismo
afro-católico, baseando-se em três relações que facilitaram os contatos interreligiosos. Primeiramente, o padrão teológico católico da intercessão aos
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santos para se chegar a Deus Pai, que se acomodou à cosmovisão iorubana
dos orixás como intercessores dos humanos junto a Olorum. Em segundo
lugar, a relação cultural: em se tratando de cura e proteção, os santos
estão para as necessidades cotidianas como os orixás para as situações do
mundo natural. Por último, a teia social construída entre as nações africanas
e confrarias criadas e/ou permitidas pela Igreja Católica (BASTIDE, 1971,
p. 362).
Da análise dessa correspondência externa (BASTIDE, 1971, p. 374),
o sociólogo francês passa ao estudo do sincretismo interno correspondente
à primeira relação, ou seja, aos mecanismos psíquicos postos em ação pelo
negro nessa identificação do orixá com o santo católico. Ao centrar-se em
tal análise, Bastide chega, aos poucos, à conclusão de estar trabalhando
com um pseudoproblema, somente encarado pelos negros quando
entrevistados a respeito (BASTIDE, 1973, p. 160). O fato é que os fiéis não
sentem contradição alguma entre os orixás e os santos.
Para tentar explicar semelhante processo, Bastide afirma que o
chamado sincretismo não tem a ver com misturas ou identificações (entre
orixás e santos), mas com semelhanças e equivalências. Conforme tal
explicação, o indivíduo das sociedades tradicionais divide o universo em
certo número de compartimentos estanques, realizando as participações
no interior dessas divisões e não de uma divisão a outra (FERRETTI, 1995,
p. 56). Não sendo os compartimentos encaixáveis uns nos outros, não
existiria, por conseguinte, entre os adeptos do candomblé, uma pessoa
dividida entre dois mundos.
Portanto, quando um dos fiéis se diz católico não está mentindo;
ele é, ao mesmo tempo, católico e membro do candomblé. Pela lei da
analogia, ambas as pertenças não são opostas, apenas separadas.8 A cisão
consiste em que, se houver num templo de candomblé um altar católico e
um peji africano, estes se correspondem, mas, por desempenharem papéis
distintos, não se identificam.9 Em suma, o sincretismo religioso constatado
entre as tradições africanas e o catolicismo brasileiro implicaria justaposição,
jamais mistura.
Finalmente, em As Américas negras, Bastide fala de um sincretismo
cujas formas passam do nível morfológico (sincretismo em mosaico ou
espacial) ao institucional (sistema de correspondências entre deuses
africanos e santos católicos), e deste aos fatos da consciência coletiva
(reinterpretação) (BASTIDE, 1974, pp. 140-143). O primeiro nível é o dos
“sólidos indeformáveis” como os pejis africanos, que coexistem no terreiro
com altares católicos, embora sejam reciprocamente discordantes. O
seguinte, visível, sobretudo, na combinação dos calendários litúrgicos, provê
uma contínua retroalimentação entre o universo católico romano e o
africano. O terceiro, mais presente nos meios protestantes devido à maior
pressão catequizadora, significa a saída possível da reinterpretação da
Bíblia com base na mentalidade negra.10
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Um crítico atual assevera que Bastide “não foi capaz de perceber,
na própria cosmovisão afro-brasileira, o critério que possibilita a
reconstrução da sua experiência religiosa [...] um critério mais profundo,
de ordem existencial-antropológica: a busca de participação na força vital
do Axé” (VASCONCELOS, 1999, p. 197).11
As pesquisas mais recentes (1980 em diante) são, porém,
promissoras. O antropólogo P. Sanchis debate-se nos mal-entendidos
suscitados pelas concepções de sincretismo e propõe que se deixe a
consideração meramente descritiva de seu conteúdo, aspecto substancialista
e valorativo, para defini-lo simplesmente “como um processo
tendencialmente universal dos grupos humanos quando em contato com
outros: a tendência a utilizar relações apreendidas no mundo do outro
para ressemantizar realidades e relações do seu próprio universo”.12
Todavia, além de tendência, Sanchis o vê como “princípio dinâmico de
ordenamento e de transformação”, que configura “um processo que se
cria a si próprio, tanto quanto cria o seu produto, nunca acabado”
(SANCHIS, 1996, p. 159). No Brasil contemporâneo, Sanchis depara com
dois processos diferentes de sincretismo: o tradicional, fruto de um encontro
desigual de civilizações, por ele chamado de “sincretismo de ida”; e o
“sincretismo de volta”, que vai da religião efetivamente praticada em
direção às raízes atávicas do indivíduo. Em quase vinte anos de convivência
com Agentes de Pastoral Negros (APNs) e, mais especificamente, pela
amostragem recolhida em depoimentos, pude constatar a expansão do
“sincretismo de volta” nesse meio.13
R. Motta tem-se somado às fileiras dos que contestam a concepção
de “simples disfarces”, entendendo por sincretismo não somente concessão
dos escravos aos senhores (por medo) ou destes aos primeiros (como
estratégia de dominação), mas também uma legítima apropriação dos bens
do opressor pelo oprimido (MOTTA, 1982, p. 7). Já M. Augras, ao incluir
como essencial, na definição de sincretismo, a fusão de vários elementos,
desconfia “que o sincretismo seja mais aparente que real, e, sobretudo,
não seja vivido do mesmo modo pelas diversas religiões de origem africana”.
Assim, infere a autora, haveria sincretismo na fusão de divindades e ritos
da umbanda, mas, justaposição, no caso do candomblé de rito nagô. Houve,
sim, fusão real no nível das divindades africanas, mas, “no candomblé
tradicional, não há fusão, nem síntese entre a ideologia cristã e o sistema
nagô” (AUGRAS, 1983, pp. 27-32).
O argentino A. Frigerio reclama do pouco que se tem estudado sobre
o sincretismo. Em Salvador, diz ele, dos cerca de 3.000 terreiros existentes,
menos de 20 (os mais ortodoxos) foram estudados. Critica R. Bastide pela
noção do candomblé como enquistamento cultural e J. E. dos Santos por
utilizar material africano na análise de dados brasileiros. Mas, a maior
contribuição de Frigerio tem sido a pesquisa das religiões afro-brasileiras
em sua expansão pelo Cone Sul (FRIGERIO, 1993). Nessa mesma direção,
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vão os estudos mais recentes de A. P. Oro, (1999)14 que procuram analisar
a transnacionalização das chamadas “religiões do axé” para o Mercosul,
mais especificamente para o que ele chama de “área do batuque”.15 O
avanço e a sistematização desse novo veio têm contribuído com o
questionamento e a reelaboração, já em andamento, de muitos dogmas
clássicos das ciências que se detiveram nas religiões africanas e afrobrasileiras. Por exemplo, a pressuposição do caráter étnico de tais religiões,
o desinteresse missionário daí decorrente, certa visão depreciativa da
umbanda como adversária do candomblé tradicional (tido como mais
puro), as implicações econômicas e culturais do fenômeno, e assim por
diante.
R. Segato verifica que o sincretismo cumpre hoje a tarefa de
complementar o que o povo-de-santo considera incompleto na mitologia
dos orixás. Assim, para dar ideia da postura de Ogum, serve-se do cavaleiro
São Jorge, enquanto a imagem de N. Sra. da Conceição saindo do mar
retrata a superioridade distante e a melancolia de Iemanjá. Esse seria o
único campo em que se nota uma ponte semântica entre catolicismo e
candomblé.
Segundo a autora, tal qual nos sonhos, o sincretismo ajuda numa
visão mais clara dos orixás incorporados nos devotos em transe. Tal
fenômeno, mais que estratégia de ocultação, foi uma necessidade decorrente
da perda quase completa da estatuária africana na diáspora negra,
tornando inevitável a substituição, a fim de não comprometer o processo
iniciático de atribuição de orixás (SEGATO, 1998, pp. 80-81).
Entretanto, também ocorre um fenômeno distinto do sincretismo
strictu sensu. Detendo-se na noção de crença do candomblé tradicional do
Recife e da Bahia, a autora explica que esse crer não tem o sentido de uma
escolha, como para os cristãos. Portanto, é possível crer isto e aquilo também.
Candomblé e catolicismo, diz ela, são, aos olhos dos filhos-de-santo,
suplementares, coexistentes, complementares. O catolicismo oferece o limite
moral (separação entre o bem e o mal) e a possibilidade de transcendência;16
o candomblé articula um discurso para o mundo social, as relações
interpessoais e a dimensão psíquica.17 Os orixás são um “léxico para a
introspecção”, que aproximam o candomblé de uma sociologia e de uma
psicologia práticas, das quais está ausente uma linguagem de redenção
(pecado, salvação, céu).
Portanto, aos olhos dos adeptos, candomblé e catolicismo (popular,
nesse caso) oferecem uma complementaridade sem superposição: um é
filosófico, o outro, ético; um é utópico, o outro, pragmático. Não se pode,
pois, traçar uma equivalência entre ambos; é mais adequado explicar a
maneira como os sujeitos envolvidos operam a coexistência em termos de
“alternância de códigos”.
Nesse âmbito da complementaridade, embora com sinal trocado,
estão algumas posições que recolhi de intelectuais ligados ao candomblé e
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com bom trânsito nas pastorais católicas. Para eles, o catolicismo
(cristianismo) vem a ser a base mínima indispensável ao povo. A partir
daí, o candomblé oferece aos mais aptos (mais sensíveis ou audazes) a
oportunidade de voos mais altos.18
Pois bem, ao final desse sucinto percurso pelas ciências sociais,
gostaria de retomar as cinco fases localizadas por S. Ferretti, nos debates
sobre sincretismo religioso afro-brasileiro (FERRETTI, 1995, p. 87-89). A
primeira, de R. Nina Rodrigues, é a da teoria evolucionista. A segunda, de
A. Ramos e seguidores, segue o culturalismo e vê o sincretismo como etapa
que inclui conflitos, acomodação e assimilação rumo à desejada
aculturação.
R. Bastide e discípulos inauguram uma fase de explicações mais
sociológicas, analisando a mentalidade do negro e a religiosidade afrobrasileira por meio da sociologia em profundidade e do princípio de cisão.
Daí a insistência de J. E. dos Santos, uma de suas ex-alunas, na “capacidade
do negro ‘digerir’ ou africanizar as contribuições e os cultos se acomodarem
sem se embranquecer” (FERRETTI, 1995, p. 88). A quarta fase, sobretudo
entre os anos 70 e 80, detém-se no chamado “mito da pureza africana”.
Autores como P. Fry criticam a nagoização ou nagocracia dos terreiros,
que faz com que os pesquisadores voltem-se mais para a África idílica do
que para o Brasil sincrético.
Nesse sentido, também B. Dantas dá sua contribuição quando
demonstra, ao investigar uma pequena área de Sergipe, que a busca de
pureza não abdica da mistura; apenas rejeita algumas delas. Portanto,
talvez seja o caso de repensar a polarização entre puro e misturado ou,
pelo menos, de esclarecer a lógica com que se adultera a presumida pureza
original. “A perda da pureza”, infere Dantas, “não decorre simplesmente
de combinações de coisas diferentes, mas de determinados tipos de
combinações, donde se conclui que a própria noção de ‘mistura’ é
culturalmente definida, [sendo] fruto de certas percepções” (DANTAS,
1988, p. 141). 19
Ferretti identifica uma quinta fase, que vem à tona a partir dos anos
80, e volta-se para aspectos específicos como, por exemplo, uma melhor
precisão do conceito em questão. Não são mais aceitas as seguintes
proposições: a tese do sincretismo como máscara colonial para driblar a
dominação; a hipótese do sincretismo como estratégia de resistência; a
sinonímia com justaposição, colcha de retalhos, bricolagem (Lévi-Strauss)
ou aglomerado indigesto (Gramsci), pois, não explicariam os casos em que a
religião permanece como um todo integrado. Tem-se maior consciência do
preço que pagaram certos conceitos por estarem atrelados a determinadas
teorias. Ou ainda, do reducionismo de ver o sincretismo num arco de
bipolaridades do tipo pureza versus mistura, separação versus fusão etc.
Oferecendo sua própria contribuição ao debate, Ferretti sugere que
“o sincretismo também se enquadra nas características desta capacidade
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brasileira de relacionar coisas que parecem opostas” (FERRETTI, 1995, p.
17).20 E a fim de driblar mal-entendidos e confusões, o autor propõe um
quadro com três variantes dos principais significados do conceito de
sincretismo. Partindo de um hipotético caso zero de separação ou nãosincretismo, chega ao nível três, da convergência ou adaptação, passando
por dois níveis intermediários: a mistura, junção ou fusão (nível um) e o
paralelismo ou justaposição (nível dois). Desse modo, Ferretti (1995, p. 91)
pode tecer as seguintes distinções:
[...] existe convergência entre idéias africanas e de outras religiões, sobre a
concepção de Deus ou sobre o conceito de reencarnação; [...] existe paralelismo
nas relações entre orixás e santos católicos; [...] mistura na observação de
certos rituais pelo povo-de-santo, como o batismo e a missa de sétimo dia, e
[...] separação em rituais específicos de terreiros, como no tambor de choro ou
axexê, no arrambam ou no lorogum, que são diferentes dos rituais das outras
religiões. 21
2 Na Casa do Abbá e das Iyas Há Tantas Moradas Habitáveis
Isso me recorda um Simpósio Ecumênico Internacional do qual
participei, e que reuniu, em Belo Horizonte, Brasil (abril-2003), teólogos e
teólogas brasileiros, franceses e alemães para pensarmos juntos os caminhos
da fé neste início de século. Risquer la foi dans nos sociétés foi seu lema. O
que lá constatei é que o tema da diversidade é muito mais amplo do que se
pensa, e abrange questões de gênero e de opção sexual, questões de geração
(juventude do século 21) e de cibercultura (até cyber religion).
O encontro foi muito rico, principalmente por ajudar a quebrar
certos paradigmas, já que, como dizia um dos ponentes do Simpósio, “para
muchos teólogos europeos, América Latina sigue siendo un continente
vibrante, con una teología comprometida con los grandes problemas
sociales, políticos y económicos, con comunidades de base muy vivas, en
fin: como un continente eminentemente católico en un sentido más político
que espiritual. Para sus colegas en América Latina, la teología europea
sigue teniendo prestigio y un cierto grado de seducibilidad, pero también
como un quehacer demasiadamente académico e intelectualista, y las
iglesias son consideradas como empresas que administran el patrimonio
cristiano sin entusiasmo ni mayor compromiso político”.22
“La fuerte ola de globalización neoliberal que vivimos todas y todos”,
proseguia Estermann, “aunque de manera muy diversa, en las dos costas
del Atlántico, llevó a una revisión paulatina, cuidadosa o hasta audaz de
estos estereotipos. Nos damos cuenta que también en Europa hay un “sur”,
y en América Latina hay un “norte”, que muchos fenómenos anteriormente
limitados a un cierto contexto geográfico se presentan tanto en Brasil como
en Alemania. El mundo se ha tornado mucho más complejo, hasta tal
punto que explicaciones simples, monocausales e ideológicas ya no dan
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para más. Existe en Brasil una teología muy conservadora, como existe
una teología progresista en Alemania; hay gente sin teche en las calles de
Francfort como hay yuppies hedonistas en São Paulo”.23
Em sua fala, Estermann continuava dizendo que só teríamos a
ganhar se perdêssemos o medo e nos dispuséssemos a aprender uns com
os outros. Porém, superação das diferenças que nos separam não é meltingpot. A pluralidade não é eliminável, mas deve ser fonte e motor de um
diálogo intercultural teológico. “Tenemos que mantener la curiosidad por
la alteridad”, concluía o autor.
Essa lembrança me remeteu a um dos dias daquele Simpósio, que
teve por lema e desafio “Pensar o agir das igrejas”. O fórum do qual
participei como especialista ou “pessoa-fonte” (resource person) intitulavase “Comunidades cristãs e dispersão das trajetórias espirituais”. Animados
ao longo da jornada por Josef Estermann, ouvimos e analisamos três
experiências muito distintas, e que poderiam dar algumas pistas para o
tema que me foi proposto nesta conferência: Arnd Bünker (Münster) deu
seu testemunho sobre a prática comunitária das comunidades “queer”,
numa paróquia alemã; Sérgio Vasconcelos apresentou aspectos do
sincretismo ou da dupla pertença religiosa afro-católica na região de Recife
(Pernambuco, Brasil); e Denis Villepelet (Paris) expôs os desafios da igreja
católica francesa, cada vez mais identificada com comunidades de anciãos
distantes do interesse e dos questionamentos da juventude.
No início dos trabalhos matinais, Arnd Bünker expôs um tema
extremamente delicado para o cristianismo, principalmente para a igreja
católica: a existência de homossexuais no seio das igrejas e seu crescente
desejo de plena visibilidade em suas respectivas comunidades de fé. Quais
são as regras de pertença à igreja? Perguntava-se Bünker. É possível ser
gay e católico ao mesmo tempo? Sim, respondia o jovem teólogo, se
aceitarmos a ruptura entre identidade e pertença.
Para Bünker, os cristãos gays não são apenas objetos da pastoral ou
tema da teologia (moral); eles são sujeitos na igreja e em todo o arco da
teologia. Na realidade, o fulcro teórico da questão é a teoria queer, um
desenvolvimento da teologia de gênero que desidolatriza a identidade
sexual, quando preconiza que o ser humano pode ter outras orientações
sexuais (homo, hetero, trans). Ademais, a iniciativa das comunidades queer
apresenta-se como alternativa à estrutura paroquial europeia, que gira em
torno da família tradicional. Elas são comunidades de acolhida e diaconia
de todos aqueles que não têm lugar na sociedade hodierna: anciãos, pessoas
fora dos padrões de beleza, doentes e demais solitários da nova urbe.
No debate que seguiu ao depoimento de Bünker, o subgrupo que
discutiu o desafio queer reafirmou que a visibilidade recente dos católicos
gays sugere que a identidade nunca é cabalmente definível, mas dá-se no
processo, numa constante rede de pessoas. Se antes até se falava de uma
antropologia de identidades, hoje é preciso aceitar distintos níveis de
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pertença (que, de resto, sempre existiram, mas poucas vezes foram
assumidos por princípio); as pertenças são provisórias, nômades, precárias.
Eis aí uma primeira pista para os que pensam serem possíveis novas
modalidades de diálogo entre as religiões – e não simplesmente uma
cooperação mútua frente a problemas globais.
O segundo testemunho concreto foi-nos proporcionado por Sergio
Vasconcelos, que narrou sua aproximação ao fenômeno do sincretismo
afro-católico no nordeste brasileiro. Salientou o espírito de diálogo que o
norteou e o consequente esforço para compreender seu significado, embora
reconhecendo que cada sincretismo é único. Da lentidão e gradualidade
de tal processo é prova a própria experiência de Vasconcelos, que levou
oito anos de relações de amizade na comunidade até descobrir quais de
seus vizinhos eram do candomblé.
Com a autoridade de quem fez a experiência, mas também domina
as categorias da teologia e das ciências da religião, Vasconcelos propôs
uma categoria fundamental para entender a lógica do sincretismo: a força
vital ou o axé. Há um desejo de fundo na comunidade (terreiro) de participar
dessa força. Daí a facilidade de fazer sincretismo, já que o axé está em
tudo e permeia todas as coisas.
A partir dessas premissas, Vasconcelos levantou duas questões
bastante instigantes com respeito à chamada “inculturação” e ao pretendido
“diálogo inter-religioso”:
1. O que seria uma inculturação para a(s) cultura(s) afro? Pois, afinal, o
que a igreja está propondo somente agora já é feito há séculos pelos
negros e isso é chamado de sincretismo.
2. Fala-se hoje de diálogo entre cristianismo e religiões de origem africana.
Já é um avanço, pois foram necessários quase 500 anos para reconhecer
o candomblé como religião. Entretanto, em que termos fazer tal diálogo,
uma vez que 90% dos membros do candomblé já são católicos?
A discussão posterior, desenvolvida nos subgrupos, enriqueceu a
reflexão iniciada por Vasconcelos. Falou-se da grande sensação de liberdade
que envolve essas múltiplas experiências, que vão fazendo parte da
normalidade. “Não nos sentimos mais clandestinos”, desabafava alguém
do grupo. E, ao jogo da teologia, não cabe nenhuma mudança radical de
propósitos; ela deve continuar fazendo o de sempre: ajudar as pessoas a
construir sentido em suas vidas.
Falou-se também da politerminologia que ronda a área: inculturação,
interculturalidade, inreligionação, sincretismo, dupla e múltipla pertença,
vivências plurais24 e por aí vai. Foi ficando muito clara a importância de
deixar os verdadeiros sujeitos serem sujeitos, mesmo que o preço seja a
perda das ideias claras e distintas, pois, como dizia Vasconcelos, em feliz
formulação: “A teologia que leva em conta o sujeito gagueja por honestidade
intelectual”.
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Claude Geffré foi chamado em causa em nome dos contemporâneos
que têm insistido neste aspecto: só é possível falar de dupla pertença, uma
vez que a questão cultura-religião jamais se resolverá. Por isso, propugnar
algo semelhante a uma inculturação pode significar, em certos ambientes,
uma variável platônica, na medida em que se pretenda que um núcleo
intocado vá ao encontro de toda cultura. De outra parte, se inculturação
significar, como diz a igreja católica, um “revelar a cultura a si mesma”,
na opinião de alguns, isso é simplesmente absurdo.
De minha parte, creio que o debate não deve disfarçar a seguinte
questão: o que há de positivo, de complexo e de criativo nas construções
sincréticas afro-católicas? E o que há de preconceituoso ou simplesmente
equivocado nos estudos que se realizaram sobre o assunto? Como já
mencionei antes (SOARES, 2004, p. 136), muitas explicações desse
fenômeno já foram descartadas pela comunidade científica.
Pois bem, como ler tudo isso teologicamente, levando em conta as
luzes que vêm das ciências da religião? No meu modo de entender,
precisamos de uma nova categoria que ouso jogar no debate: a fé
sincrética. Penso que uma teologia (fundamental e dogmática) mais
arejada não se furtará a reconhecer, com o auxílio das ciências da religião,
a condição e os condicionamentos radicalmente humanos do acesso à fé
cristã (e a qualquer outra, afinal). A fé sincrética é absoluta quanto aos
valores fundamentais que estão em jogo na escolha aparentemente
contraditória dos significantes religiosos (dimensão fé); mas é relativa
quanto aos resultados efetivamente atingidos (dimensão ideológicosincrética). Pode-se falar, portanto, de fé sincrética para identificar o modo
mesmo de uma fé “concretizar-se”. De fato, não existe fé em estado puro;
ela mostra-se na práxis.
Creio que até se possa aproximar a fé sincrética da fé inculturada.
Desde que se perceba a diferença de trajeto, ou seja, o ponto de vista de
onde se observa a invenção religiosa popular. A comunidade eclesial
propõe-se a inculturar ou inreligionar a mensagem evangélica; o povo
responde, acolhendo a “novidade”, de acordo com suas reais estruturas
significativas. Dizer fé inculturada é pressupor um dado transcendente,
um valor absoluto finalmente garantido pelo Ser Absoluto acolhido na fé.
Presumindo que tal verdade esteja sob sua custódia, a igreja dá o passo de
comunicá-la para além das fronteiras originais. Mas, quando afirmo a fé
sincrética, saliento que o sopro do Espírito já esteja agindo nas demais
tradições culturais, contra ou mesmo apesar do contato com as
comunidades cristãs.
O povo-de-santo inreligiona o que pode ou quer acolher da Tradição
cristã. De fato, muitos praticantes da tradição dos orixás, da umbanda e
de outras variáveis religiosas de nossa herança africana sentem-se
sinceramente católicos. Acolheram em suas tradições de origem o enxerto
cristão, expurgaram o que lhes pareceu desumano ou sem-sentido,
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misturaram o que não tinha muita importância, e mantiveram o que
julgaram positivo e enriquecedor para sua própria cosmovisão.
Voltando aos depoimentos instigantes do mencionado Simpósio
França-Alemanha-Brasil, tivemos a oportunidade de acolher uma terceira
experiência, ainda não muito sentida em ambientes latino-americanos
(embora já definitivamente presente nas metrópoles existentes também
entre nós). Relatou-a Denis Villepelet e fez-nos voltar para outro ângulo
da discussão: a dispersão das trajetórias espirituais numa diocese parisiense
em que 60% da população ainda se diz cristã, mas só 2% querem participar
da comunidade. A realidade das novas cidades é de homens e mulheres
que trabalham, com grande número de oriundos da África que seguem o
islamismo. Os mais jovens, muitas vezes, submetem-se a três horas de
viagem para ir trabalhar. O resultado na prática religiosa é que a
comunidade cristã é constituída por anciãos na faixa dos 60 anos, enquanto
a juventude procura bem-estar a seu modo e se deixa fascinar pelo apelo
new age.
Villepelet partiu do pressuposto de que religião é questão de pertença
ou de identidade. Por isso, encerrou sua fala com três conclusõesprovocações:
•De início, é preciso aceitar que a noção de igreja como comunidade
paroquial está desaparecendo para sempre. Teremos de aprender a lidar
com isso.
•Daí decorre que a noção de comunidade esteja agora em questão: inserida
em uma sociedade a ela indiferente, a igreja tende a demarcar sua área
com normas, reúne-se em grupos por afinidade ou vive a nostalgia da
noção de bairro e de família. Como descobrir, então, o que significa fazer
“comunidade fraterna”, ser igreja?
•Por último, qualquer que seja o perfil dessa nova comunidade, ela deve
se caracterizar por não fugir dos desafios. Um deles, segundo Villepelet,
é a Internet.
Embora não tenhamos aprofundado muito a questão da www nos
debates do Fórum, creio que há recursos muito positivos nessa nova “rede”
de comunicação. Ouvi, certa vez, de uma professora de comunicação que
a Internet é o contrário da “paranoia”; ela é uma pronoia. Ou seja, em vez
de imaginar, doentiamente, que alguém está me perseguindo, uma das
utopias dessa nova rede é que alguém, a qualquer momento, vai me ajudar.
Ademais, creio que o conceito de comunidade virtual (que não se confunde
com os milhões de chats espalhados pelo mundo afora) mereça uma atenção
cada vez maior de nossa parte, pois nada mais é do que um novo degrau
na histórica e contínua busca humana de expansão de seu corpo físico
(como foram, a seu tempo, as pinturas rupestres, as pirâmides, os papiros,
o livro, a invenção da imprensa, o cinema, o telefone, a televisão e quem
sabe o que mais está por vir).
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Do debate desencadeado depois, no subgrupo correspondente, o
relato de Villepelet suscitou uma conclusão bem marcante e
evangelicamente positiva: a igreja francesa (e tantas outras em similar
situação) está redescobrindo a sensibilidade para a fraqueza. O centro da
igreja está-se desfazendo (“Hoje vivemos um policentrismo”, declararia
Henri-Jerôme25 mais tarde, no plenário do último dia) e ela se vê cada vez
mais pobre, à margem, excluída. O que está prestes a renascer após essa
era glacial poderá ser, para todos nós, ocasião de graça.
Os três depoimentos fizeram-me pensar, já naquela ocasião e ainda
hoje, sobretudo porque vinham de pessoas ao mesmo tempo francas e
decididamente cristãs. Retomando-os agora, à luz do tema geral deste
Simpósio, eu gostaria de destacar três insights que, por sua vez, não eliminam
nem inibem outras possíveis abordagens. É uma breve amarração (talvez,
provocação), cujos principais itens registro a seguir.
Falou-se muito, ao longo daquele Fórum, de catolicidade – é preciso
salvaguardá-la, redescobri-la, iluminá-la etc. Foi uma preocupação evidente
da equipe organizadora. Poderíamos perguntar, então: onde está a
catolicidade dessas/nessas três experiências/testemunhos partilhadas
acima? Ocorreu-me aquela conhecida frase bíblica: “Na casa de meu Pai
há muitas moradas”. Parece incrível, mas o conceito de (a nota da)
catolicidade amplia-se para contemplar uma pluralidade de experiências
que têm em comum o encontro com Jesus de Nazaré. Pode ser que nem
todas geraram ou gerarão o seguimento strictu sensu, mas cruzaram com
Jesus no caminho (de Emaús?). Enfim, a catolicidade não é nem poderá
ser nunca uma propriedade da instituição igreja católica.
O mencionado Vasconcelos reforçaria essa linha mais tarde, em
um debate ulterior, ao recordar-nos que a igreja é católica porque já vive
escatologicamente a salvação. Assim, nenhuma configuração histórica do
cristianismo seria normativa. Henri-Jerôme retrucou que a igreja é
apostólica, e isso é normativo. Bünker devolveu-lhe outra questão: “Mas,
quem decide qual comunidade é fiel?”.
Creio que precisamos ter presente alguns critérios consensuais, ou
não faremos caminho juntos. No caso cristão, fala-se da Tradição (com T
maiúsculo), da Escritura e do cimento da experiência da comunidade. As
três iluminam-se reciprocamente. A Tradição sozinha ou correndo na
paralela degenera em tradicionalismo; a sola Scriptura pode virar
literalismo/fundamentalismo (ou, no mínimo, exegese sem hermenêutica);
a simples experiência comunitária do presente, por si só não vai além de
um clube ou, como se diz hoje em dia, de uma tribo urbana.
Nesse ponto, creio que também é preciso chamar a atenção para a
experiência (humana) do Transcendente. É um ganho da teologia
contemporânea a redescoberta de que a revelação ou autocomunicação
do divino é um processo histórico, com momentos/dimensões que têm seu
sentido próprio (DV 15: a pedagogia divina), mas não são definitivas. Nesse
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processo, o povo bíblico (autores e comunidades leitoras) sempre procurou
modular em linguagem humana o sopro e as ressonâncias do Espírito
Santo. Daí vem a força (e a fraqueza) do umbral cristão: este depende
intrinsecamente de uma experiência ineludível que só tem sentido se o
indivíduo a fizer por si mesmo. Nem é garantido que o resultado deva,
necessariamente, configurar-se como uma comunidade nitidamente eclesial
(ao menos, nos moldes em que as podemos descrever hoje). E mesmo que
o fosse, isso não eliminaria a inevitável ambiguidade da tradução “práxica”
deste encontro, ou seja, da vida cristã. É por isso que costumo dizer que
nossa condição humana empurra-nos ao sincretismo. O que requer do
cristianismo uma contínua crítica e autocrítica do statu quo, de suas
realizações pastorais, de suas formulações teórico-teológicas, e assim por
diante.
Uma segunda consideração. Algo que vislumbrei nos três
testemunhos descritos acima foram variações de uma experiência de amor
(Ou, se quisermos, um evento de graça, ou de gratuidade, ou de
espiritualidade). E onde há amor, repetia-nos um velho professor, não há
pecado.26 Por que a comunidade de Arnd teima em ter a missa, a eucaristia
e a reunir-se como católicos queer? “Chi lo sa”? É um caso de amor por
essa velha senhora nariguda (a igreja, segundo a imagem sugerida na fala
de Veronika Prüller, também ponente no referido Simpósio). Por que o
povo-de-santo (do candomblé) não desgruda da igreja? Talvez tenha razão
o octogenário Dom Boaventura Kloppenburg, antigo inimigo figadal das
religiões mediúnicas nas décadas anteriores ao Vaticano II: “São aqueles
que mais amam a igreja católica aqui no Brasil”, admite o prelado, “embora
sejam os que mais apanham dela”.
Sempre digo a meus alunos e alunas que a história da revelação divina
é uma história de amor entre Deus e a humanidade, e tem por tálamo a história.
Porque, como dizia mestre Juan Luis Segundo, faz parte da revelação
também a maneira como os povos foram chegando aos dogmas, isto é, em
meio a avanços e retrocessos, erros e acertos, gestos amorosos e
pecaminosos. Só assim podemos entender como o conjunto de “revelações”
auto-excludentes, recolhido e mantido em contiguidade pelos redatores
bíblicos, componha hoje a “Palavra de Deus”. Em suma, outras variáveis
possíveis, a partir de uma mesma intuição original, têm lugar na Tradição
cristã. É o caso da fé abrâmica a que hoje se reportam tanto judeus quanto
cristãos e muçulmanos. E se assim é, estou certo de que o sincretismo é a
história da revelação em ato, pois o vejo como o caminho real da pedagogia
divina em meio a povos como o (afro-) brasileiro. É claro que faço aqui
uma leitura teológica do sincretismo.
A terceira consideração foi inspirada no livro de Adolphe Gesché,
Dieu pour penser. Ou seja, Deus como condição de possibilidade para pensar
qualquer coisa. A teologia é assim “ciência dos excessos”, que pensa o
impensável, vai até os limites do pensamento, e tem em Deus a metáfora
para esse limite. Se, de um lado, como dizia K. Rahner, toda teologia é
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antropologia, de outro, ela pretende estudar Deus mesmo, Deus em si,
pondo-se no lugar Dele. É uma ousadia, da qual também não queremos
abrir mão.
Pois bem, pensei nisso ao tentar considerar a teima dos “sincretistas”
em permanecer no colo do cristianismo: o problema é que eles não querem
largar nenhum dos dois amores (catolicismo e candomblé, por exemplo).
Querem os dois; são contra a monogamia. Os três testemunhos ouvidos
(Arnd, Vasconcelos, Villepelet) mostram que ainda estamos longe do limite.
Pode ser desesperador para a antiga escolástica (pois, como dizia
Vasconcelos no debate, quando a gente narra, desconcerta), mas é
fantástico para a mística de ontem, hoje e sempre. É fascinante (sem deixar
de ser tremendo) para quem está vivendo a experiência. Porém, é um saber
experiencial que gera um novo poder oriundo dessa nova experiência. E
isso é conflitivo, pois, o saber sempre foi uma forma de administração do
poder e esses novos sujeitos aqui testemunhados (queers, afrodescendentes,
juventude do século XXI) provêm de um não-poder.
Indicações Provisórias
Isso posto, a título de interrupção do debate, retomo algumas ideias
que permeiam este texto e poderiam consistir em três pequenas conclusões
provisórias:
•As três experiências nos sensibilizam a uma acolhida generosa. Em sua
inevitável ambivalência, e sem querer ser ingênuos diante dos pecados
de nossa história cristã, é impossível não vê-las também como casos de
amor. O silêncio obsequioso prévio à palavra segunda da teologia é mais
do que oportuno no julgamento dessas experiências; afinal, de certa forma,
Jesus também foi queer, pois seu comportamento causou estranheza. E
Estermann arrematava: “Ele também era inter-identidades”.
•As experiências testemunhadas dão conta de novos sujeitos assumindo
o leme, dentro e fora do cristianismo deste novo século. É um
acontecimento em que emergem o parcial, o provisório e o conflitivo.
Como, de resto, em qualquer acontecimento da história. Entretanto,
sabemos que a teologia é sempre parcial e não se pode procurar totalidades
rápidas.
•Finalmente, essas experiências mais (para alguns) ou menos (para outros)
desconcertantes nos põem diante do desafio de uma nova catolicidade a
ser construída [não, evidentemente, aquela configurada hoje como igreja
católica], uma catolicidade juntamente com e para além das nítidas
configurações religiosas. E as perguntas multiplicam-se: como fazer
comunidade em cada um desses contextos? Que significa hoje fraternidade
e sororidade? Como lidar com o medo diante do novo, principalmente
desses sujeitos emergentes? Algumas pistas muito ricas têm sido sugeridas
nos mais diversos areópagos hodiernos. Houve quem apelasse para o
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recente jargão da Física moderna e propusesse que as energias dissipativas
do fenômeno que estamos chamando de “dispersão das trajetórias
espirituais” afastam-se para se reagruparem em novas configurações. E
a experiência de Jesus bem poderia ser capaz de reorganizar as energias.
Mas por que não a tradição dos orixás?
Por outro lado, a partir de sua experiência parisiense, Villepelet
insistia em um dado importante: o caos é contínuo; já é hora de aceitarmos
que estaremos sempre em crise e não há situação ideal de equilíbrio. E
talvez o equilíbrio mais difícil seja a sutil distinção proposta por Estermann,
da qual me aproprio para interromper (sem concluir) estas considerações:
ao falar de catolicidade, é preciso distinguir entre o “tudo cabe” (eclético
refrão pós-moderno) e o “todos cabem” (este, sim, utopicamente evangélico
e evangelicamente utópico).
Com certeza, nosso diálogo intra e inter-religioso está apenas
começando. E Oxalá continue gerando bons frutos pelos caminhos da vida.
Axé!
Notas
1
Livre-docente em Teologia (PUC-SP), pós-doutorado em Teologia (PUC-Rio), doutorado
em Ciências da Religião (Umesp), mestrado em Teologia Fundamental (P. Univ.
Gregoriana, Roma). Professor Associado da PUC-SP, onde leciona e pesquisa no Programa
de Estudos Pós-graduados em Ciências da Religião.
2
Tratei desse tema anteriormente em Soares, A. M. L. Algunos desafios del diálogo
interreligioso en América Latina. Iglesia Viva, 208 (2001), p. 19-29. De forma mais
exaustiva em Interfaces da revelação: pressupostos para uma teologia do sincretismo
religioso (Paulinas, 2003) e No espírito do abbá: fé, revelação e vivências plurais (Paulinas,
2008).
3
Para corroborar sua opinião, o autor cita BERGER & LUCKMANN, 1973, pp. 148 e 164.
4
Ferretti observa (1995, p. 45) que Ramos acaba não distinguindo bem sincretismo de
aculturação, além de não entender sincretismo como forma de resistência cultural. Isso
diminui a abrangência e a objetividade de sua teorização sobre a realidade. Para Liana
Trindade (2000, p. 20), “a concepção de sincretismo como justaposição, fusão ou mistura,
conforme se apresenta na teoria antropológica de Artur Ramos, [e outros culturalistas]
traz implícita a noção de uma sociedade homogênea e a idealização de uma hegemonia
aglutinadora da cultura dominante, em que não há rupturas, nem conflitos entre as
diferenciações de conhecimentos”. Ao contrário, a autora constata a “existência, ainda na
atualidade, de aspectos cognitivos e afetivos da cultura africana entre brancos e negros
brasileiros, assim como a presença de concepções e práticas religiosas divergentes e,
muitas vezes, antagônicas em um mesmo contexto social e como explicação e respostas
aos mesmos problemas sociais”.
5
Fernandes em 1941; Valente em 1953 (O sincretismo religioso afro-brasileiro).
6
Vasconcelos esclarece que, na visão de Valente, o catolicismo leva grande vantagem no
momento da assimilação, pois teria uma superioridade evidente nessa simbiose. Nos
casos em que tal superioridade ainda não tivesse se manifestado, só restava aguardar
que a “base mental” dos negros cedesse “aos conceitos delicados e sutis do cristianismo”
(VASCONCELOS, 1999, pp. 151-153).
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7
S. Vasconcelos reconhece ser difícil, porém, pela falta de material disponível, analisar os
sentimentos dos escravos em relação ao cristianismo. O autor não está convencido da
diferenciação efetuada por Nina Rodrigues em que negros africanos teriam realizado
uma justaposição, enquanto os mulatos seriam iniciadores do processo de sincretismo. E
assim se explica: “Nos três séculos de escravidão no Brasil, houve um movimento
permanente de chegada de novos escravos vindos da África, mas, ao mesmo tempo, já
nas senzalas, nas vilas e cidades, o desenvolvimento de uma população mestiça. Como
seria, então, possível afirmar que os dois grupos, africanos e mulatos, possuíram ao
mesmo tempo duas posturas diferentes diante do catolicismo, tendo em vista que não
houve, até a abolição da escravidão, uma superação do negro africano pelo mulato?
Dessa forma é, a nosso ver, difícil de afirmar a localização de uma linha divisória entre
os que realizaram uma justaposição estratégica e os que iniciaram o sincretismo”
(VASCONCELOS, 1999, p. 153, n. 477).
8
“Os escravos trazidos ao Brasil pertenciam a etnias extremamente diversas, cada uma
tendo seus deuses e sua religião. Os negros procuraram analogias entre essas divindades.
Frisemos bem: não se tratava de identificá-las, nem de misturá-las, o que seria o verdadeiro
sincretismo, no sentido exato e original do termo. Tratava-se de encontrar, entre elas,
equivalências. Cada ‘nação’ conserva seus deuses, mas todos esses deuses estão reunidos
conjuntamente por séries de equivalências místicas. Apresentam a mesma realidade
sobrenatural, mas numa língua diferente; portanto, é necessário compor uma espécie de
dicionário que nos permita traduzir uma religião na outra. É claro que a tradução atingirá
apenas as semelhanças, não as identidades, pois cada religião tem o seu paideuma”
(BASTIDE, 1973, p. 183).
9
Um informante do autor lhe diz que “rezando ladainhas não mistura nada de africano e
que em outros momentos celebra festas africanas e não mistura nada de católico”. P.
Verger também declara que “candomblé e catolicismo são como água e óleo – podem
ficar no mesmo copo, mas não se misturam”. E o mesmo Verger assevera que, “com o
passar do tempo, [...] eles se tornaram tão sinceramente católicos quando vão à igreja,
como ligados às tradições africanas, quando participam, zelosamente, das cerimônias do
candomblé” (FERRETTI, 1995, p. 57). Assim, “... os santos católicos são colhidos nas
malhas dessas participações e se, se quiser falar de sincretismo, será preciso acrescentar
que se trata de um sincretismo de gênero especial, pois se organizou no interior de uma
mentalidade com uma lógica diferente da nossa” (BASTIDE, 1973, p. 185).
10
Guardadas as devidas proporções, creio ter sido uma variável desse terceiro processo
que vigorou na constituição do catolicismo negro de Minas Gerais.
11
E conclui o autor: “Esta categoria antropológica afro-brasileira é a base existencial
primeira que deve iluminar a compreensão das várias dimensões constitutivas da
interpretação desse fenômeno. Todo o drama religioso com a complexidade da sua
constelação simbólica deve ser compreendido e analisado com base nessa busca”
(VASCONCELOS, 1999, p. 197).
12
Essa é, para Sanchis, “uma tendência das sociedades humanas a entrar num processo de
redefinição da própria identidade, quando confrontadas ao sistema simbólico do outro”
(SANCHIS, 1996, p. 155).
13
“Se, tradicionalmente, os fiéis afros se viam compelidos a adentrar o catolicismo, o
processo contemporâneo faz os negros católicos, em nome mesmo do seu catolicismo,
reassumir a religião atávica” (SANCHIS, 2006, n. 50). Em confirmação a essa observação
de Sanchis, ver, por exemplo, Rocha, 1994, p. 28. Cf. também Rocha, Negros: um clamor
de justiça, 1988.
14
Esse estudo, pela primeira vez, resume e unifica as investigações realizadas por estudiosos
argentinos, uruguaios e brasileiros acerca da expansão dessas religiões nessa região.
“Este livro constitui, provavelmente, a primeira etnografia sobre a transnacionalização
de bens culturais populares no Mercosul” (FRIGERIO, 1999, p. 11).
15
Tal expressão não se refere a uma rígida demarcação territorial; é “uma formulação
ideal-típica, cujo valor heurístico reside, sobretudo, no fato de que, num determinado
território (Rio Grande do Sul, Argentina e Uruguai), historicamente se desenvolveu
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uma religião de origem africana própria, o batuque, independentemente de outras
prestigiosas religiões da mesma tradição, como o candomblé” (FRIGERIO, 1999, p. 20).
16
Eis o depoimento que a autora recolhe de um pai-de-santo: “O Deus cristão coloca o
limite, porque o orixá não dá sentido moral do bem e do mal, não dá religiosidade nesse
sentido. Para isso, o fiel vai para o catolicismo. Por outro lado, o ‘culto do ori’ [fazendo
referência à cerimônia de dar de comer à cabeça do novo adepto com que começa o
processo de iniciação] faz você se conhecer. Os orixás são forças da natureza. Essas forças
podem servir tanto para se construir como para se aniquilar. Eles não dão limites.
Então, para essa religiosidade, a gente necessita lançar mão do catolicismo” (SEGATO,
1998, p. 78).
17
Essa qualidade do candomblé é discutida em Segato, 2005.
18
Cf. depoimentos recolhidos durante a IIª Consulta Ecumênica de Teologia e Culturas
Afro-Americana e Caribenha (nov./1994. Arquivo do Grupo Atabaque).
19
Ver também Dantas, Repensando a pureza nagô. Religião e sociedade. pp. 15-20.
20
O autor alia-se aqui a R. Da Matta, para quem “é uma característica brasileira (...) a
facilidade de inventar relações, de criar pontes entre espaços, de unir tendências separadas
por tradições distintas, de sintetizar, de ficar no meio” (DA MATTA, 1991, p. 117).
21
O autor adverte, porém, que “nem todas essas dimensões ou sentidos de sincretismo
estão sempre presentes, sendo necessário identificá-los em cada circunstância. Numa
mesma casa e em diferentes momentos rituais, podemos encontrar assim separações,
misturas, paralelismos e convergências” (FERRETTI, 1995, p. 91).
22
Cito a fala de J. Estermann ((MWI, Aachen)), bem como as Atas do Simpósio foram
publicadas em Hadwig Müller & Denis Villepelet. Risquer la foi dans nos sociétés: Églises
d’Amérique latine et d’Europe en dialogue. (Paris: Karthala. Coll.: “Chrétiens en Liberté”,
2005. 343p).
23
Ibidem.
24
Esta última é a que adoto em meu último livro: No espírito do Abbá: fé, revelação e
vivências plurais (Paulinas, 2008).
25
Professor do Institute Catholique de Paris.
26
Henri-Jerôme discordou depois dessa última afirmação. Para ele, só quando há amor é
possível pecar, pois somente quem ama reconhece o pecado. Não vejo contradição, mas
ênfases complementares em nossas perspectivas. Quem ama está mais alerta ao dano
que se comete contra as pessoas; mas o ato amoroso em si não é pecaminoso, embora,
pela nossa própria concupiscência, no sentido que K. Rahner deu a esse termo, ele
sempre será um gesto ou atitude mesclado, ambíguo.
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O PAPEL É PACIENTE, A HISTÓRIA NÃO É: COTIDIANO
SAGRADO, EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE RELIGIOSA NO BRASIL
Nancy Cardoso Pereira1
Expulsos do tempo e do espaço, os sobreviventes das culturas
prá-colombianas se refugiam no único território possível: o
mito. Porque um povo expulso da história não pode retornar
para a história através da história mesmo... mas, sim, através
do mito. O mito é a armadura que protegerá os seres vulneráveis,
a casca que defenderá na lagarta o que ela poderá ser no futuro...
Em certos casos a história de um povo não está no ontem, mas
no amanhã: uma necessidade de existência dos seres, o esqueleto
que sustentará a carne da palavra retomada (GONZÀLEZ, 1980).
O fator religioso e mítico coloca diante de nós o desafio de resignificar o que entendemos por mística ou espiritualidade. Não! Não é
tática nem só estratégia! Não é dinâmica de grupo nem encenação! Pensar
a educação popular e a religião popular como cascas de lagartas, exercícios
do mito, estruturas cotidianas de reinvenção que sustentarão a palavra
retomada de novas relações sociais de poder.
Como religião imposta o cristianismo não tem contribuição positiva.
Não há maneira de mudar essa avaliação sem comprometer os dados e as
interpretações da história já conhecida por todos/as. O cristianismo oficial
entre nós foi mecanismo eficiente de violenta expulsão da história dos povos
de muitos nomes e muitos deuses e deusas.
O cristianismo deixa de ser religião imposta quando, finalmente,
olha nos olhos do continente, nas muitas caras de muitos povos... quando
aceita ser uma religião entre outras, uma possibilidade salvadora entre
outras. Assim... o cristianismo pode deixar de ser religião imposta para ser
religião acolhida, apropriação popular marcada pelo sincretismo.
Nossa possibilidade de reinvenção e superação do cristianismo
comprometido com o poder das elites está na história precária da
evangelização, na qual fomos subevangelizados, mal-evangelizados, semievangelizados. Uma avaliação dos 500 e tantos anos de conquista das
Américas não pode desprezar ou menosprezar o peso que a questão
religiosa tem assumido na formação da identidade latino-americana, de
modo especial o catolicismo ibérico, que tem moldado ideológica e
culturalmente o continente. Sem restringir o impacto civilizatório somente
entre seus fiéis, o catolicismo é, na verdade, matriz reguladora de
comportamentos e atitudes, forjador de normas e parâmetros.
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Se for verdade que o catolicismo identificado com o Estado tratou
de dificultar a chegada de missões protestantes no continente sulamericano, também é verdade que o protestantismo que aqui chegava não
oferecia alternativas que viabilizassem outro modelo de sociedade, a
convivência entre cristãos e entre outras religiões. Marcado pela etnia ou
por interesses de expansão de modelos missionários norte-americanos, o
protestantismo latino-americano participou também no estabelecimento
do clima de proselitismo e intolerância que caracteriza as relações
interconfessionais no continente.
Outras religiões também se viram forçadas a se estabelecer no
continente, movimentando-se no interior de opções e espaços sob influência
hegemônica do catolicismo oficial. Também, nesses casos, o proselitismo
classista ou o vínculo étnico circunscrevia os limites que cada grupo poderia
pretender, fazendo com que assumissem ares folclóricos ou de curiosidade
tolerável, uma vez que não questionavam as estruturas sociais impostas.
Monólogo vencedor, violenta liturgia, o cristianismo nas Américas
se confunde com o modelo civilizatório do homem branco ocidental. Pai,
patrão, senhor, marido. Intransigente e intolerante, o cristianismo combate
e devora até mesmo suas variáveis e alternativas, tornando quase impossível
o diálogo entre cristãos.
Mas tem sido as mulheres do continente - dos povos indígenas, das
nações africanas ou europeias - que mais têm sofrido com a fala e as práticas
de exclusão do cristianismo:
El choque cultural de la conquista ibérica de la América Central y Sur asume
una dimensión especialmente trágica para las mujeres autóctonas. La agonía
de los viejos dioses y diosas es un proceso traumático tico que arrastra consigo
toda una visión del mundo, de los hombres y mujeres y de sus interrelaciones:
la nueva ética, la nueva moral del severo cristianismo español de la
Contrarreforma, cuando no es coartada para los explotadores y violadores,
resulta amargo veneno que enturbia lo que era el placer erótico. Ni la bondad
de sacerdotes individuales como de Las Casa, ni la dulzura inherente al
Evangelio bastan para salvar a los americanos de la miseria sexual que ser su
destino hasta hoy (MARCOS, 1988).
Ao passar por cima de modelos outros de organização social, os
conquistadores reforçaram os mecanismos de opressão da mulher que, de
modo diferenciado, já perpassavam outras culturas. Na imposição do
modelo patriarcal ocidental cristão, os colonizadores estabeleciam não só
o domínio de uma civilização sob outras... mas estabeleciam e reforçavam
o domínio do masculino.
A religião cristã não só cumpriu um papel importante na
consolidação do modelo de exploração econômica e política, como também
foi elemento primordial de justificação do poder masculino e da
subordinação das mulheres como elemento intrínseco e natural. Aqui, a
análise precisaria ser elaborada a partir de muitos referenciais, fazendo
interagir as questões de classe, gênero e raça para uma avaliação que desse
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conta das particularidades e, ao mesmo tempo, tratasse do fenômeno social
do feminino excluído da cultura e das culturas, da espiritualidade e das
espiritualidades.
Não é suficiente lamentar e registrar o sofrimento milenar dos povos
primeiros do continente; ainda é pouco denunciar o massacre de povos e
culturas quase que por completo... o lamento, o registro, o estudo e a
denúncia precisam assumir o caráter sexista da conquista das Américas.
Ao assumir essa característica tanto a metodologia historiográfica como a
teológica passam a exigir instrumentais e procedimentos de desconstrução
e crítica das estruturas e linguagens religiosas exclusivamente masculinas.
A ideia de um continente consensualmente cristão já não resiste a
um teste de opinião pública. Somos um continente com pluralidade
religiosa. Costumávamos falar da África e da Ásia como sendo continentes
com diversidade de religiões e, por isso mesmo, marcados por conflitos.
Nós, latino-americanos, de certo modo, orgulhávamo-nos de nosso
cristianismo. A emergência de movimentos de libertação, étnicos e de
mulheres ao lado das organizações populares e a tentativa de recuperar a
história a partir dos pobres, de fazer teologia a partir e com os pobres
revelaram um continente cortado por religiões, deuses e deusas. Essa
descoberta tem trazido desafios enormes para o cristianismo-já-não-tãohegemônico: uns querem resolver a contradição com um pedido apressado
de desculpa e uma rápida justaposição de religiosidades e divindades
dizendo...é tudo a mesma coisa! Deus é um só! Incorpora-se, na liturgia e na
pastoral das igrejas, um ou outro elemento de outros cultos e divindades,
fazem-se ajustes e recauchutagens teológicas... tudo rápido e simples num
proselitismo disfarçado de ecumenismo Na pressa acabam reforçando os
esquemas de dominação e exclusão. Roubam os cultos e os deuses e deusas
dos outros/outras... para que fiquem obedientes e contentes dentro dos
limites impostos pelo cristianismo. Muitos chamam isso de inculturação.
Outra possibilidade tem sido a de tratar da religião dos outros/
outras como tema de estudo, exotismo a ser explorado, vídeo a ser feito,
terreiro a ser visitado, conferência a ser feita, livro a ser publicado... num
exercício de tolerância que, reduzindo a fé - do outro/a - em coisa, foge-se
do enfrentamento e crítica do suposto lugar de consenso e liderança que o
cristianismo goza nas sociedades latino-americanas. Reduzidos à tese de
doutorado, os deuses e deusas do continente continuam encurralados por
esse olhar aparentemente displicente e desapaixonado, mas que, a partir
da objetividade científica, continua servindo aos interesses de um
cristianismo que come na mesa do poder.
Difícil tem sido aprender que somos uma religião entre outras, que
nosso Deus é único só dentro de nossas tradições, igrejas e credos, mas
tem que conviver com outras divindades no dia a dia da vida dos povos
pobres, do continente latino-americano. Difícil tem sido perder a pose de
monoteísmo esclarecido, de ecumenismo compreensivo para aprender a
conversar e conviver, de igual para igual, com o sagrado plural.
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Uma reflexão que pretenda se ocupar das religiosidades populares
deve aceitar o desafio de revisão da forma do discurso. Na afirmação da
reflexão construída a partir das falas e narrativas das práticas religiosas
das classes populares - especialmente mulheres - contraria-se o discurso
competente de ordenação da realidade de domínio exclusivo dos
dominantes - especialmente homens - e seus instrumentais de controle da
ciência, da história, do documento, dos sentidos. A pluralidade de falas
não deve ser vista como obstáculo à objetividade da reflexão, mas como
matéria-prima fundamental para a produção de um conhecimento do real
que reconhece o tecido social como malha complexa de relações.
A emergência de novos atores sociais, até então negligenciáveis, e o
reconhecimento da multiplicidade dos processos e dos agentes constitutivos
das práticas sociais populares trazem a necessidade da crítica das
metodologias desenvolvidas e a construção de instrumentais que deem
conta da presença de agentes como mulheres, crianças, minorias, raças,
trabalhadores da economia informal e suas expressões culturais e religiosas.
De acordo com Carlos Rodrigues Brandão (1980, p. 296):
Talvez, a melhor maneira de se compreender a cultura popular seja estudar a
religião. Ali ela aparece viva e multiforme, mais do que em outros setores de
produção de modos sociais da vida e de seus símbolos; ela existe em franco
estado de luta acesa, ora por sobrevivência, ora por autonomia, em meio a
enfrentamentos profanos e sagrados, entre o domínio erudito dos dominantes
e o domínio popular dos subalternos.
O problema é que a religião e, em particular, as expressões populares
de religiosidade, sempre foram vistas com muita desconfiança por
historiadores e cientistas sociais... até mesmo por teólogos! Relegadas ao
campo da alienação, as religiões populares eram avaliadas como obstáculos
à construção da consciência de classe e entendidas como instrumentos de
dominação por parte dos dominantes. Uma idealização das CEBs
(comunidades eclesiais de base) pode reinventar a máxima “fora da igreja
não há salvação” pela fórmula: “fora das CEBs não há salvação”,
imobilizando a radical encarnação do evangelho na cultura. Brandão
chama a atenção para dois enganos: primeiro, o que reduz a discussão ao
âmbito da história e da etnografia, e um segundo, que se expressa na lógica
funcionalista, que vincula mecanicamente o serviço prestado por agentes
do sagrado a determinados grupos sociais como legitimação pura e simples
de determinada ordem social.
Dizer da educação e da teologia da libertação não pode ser um
projeto dominado por uma temporalidade ordenada, linear, tratando de
alinhavar bem-sucedidas prosas teológicas. Não! Não será pela lista pródiga
de livros e escritos, nem pelo número de conferências e ouvintes. Não se
poderia avaliar a educação popular a partir dos nomes de seus filhos mais
ilustres... Parida na luta de classes dos terríveis anos de chumbo na América
Latina, o pensamento crítico latino-americano não pode ser uma montagem
seletiva de autores, ideias e escritos.
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O cristianismo deixa de ser religião imposta, quando, finalmente,
olha nos olhos do continente, nas muitas caras de muitos povos... quando
aceita ser uma religião entre outras, uma possibilidade salvadora entre
outras. O processo de inculturação do cristianismo na América Latina exige
a quebra da hegemonia dos modelos de cristandade trazidos de fora
(católico e protestante) e inaugura um complexo e ininterrupto processo
de formatação eclesial. Assim... o cristianismo pode deixar de ser religião
imposta para ser religião acolhida. Esse é um processo complexo e
exuberante, que tem sua explicação mais desenvolvida nos esforços da
teologia da libertação, mas não pode ser resumido a esta expressão2.
Meu lugar de inserção é a Teologia e a Bíblia: mas, não! É meu lugar
de interpretação e produção de conhecimento.
O texto organizado por Raúl Vidales de 1982, Volveré... y seré
millones3 apresenta uma reflexão sobre “El sujeto historico de la Teologia de
la Liberación” e abre para o debate com Enrique Dussel, Hugo Asmmann,
Jurgen Moltmann, Luis Rivera Pagan e outros (num tempo em que as
teólogas ainda não existiam, eles diriam!). As perguntas e os debates são
extremamente honestos, quase severos, difíceis. Nada fica intacto! Tudo
pode ser criticado!
Dussel (1985) dispara:
si la teologia parte de la teologia, entonces yo tomo el Worterbuch de Kittel.
Si la teologia parte de la comunidad cristiana, entonces yo parto de la historia
de la iglesia. Pero si la teologia quisiera partir de la realidad concreta de la
acción de esas mayorias oprimidas el problema es mucho mas complejo y
exige uma precisión categorial mayor también.
Nesse diálogo se pode perceber as inquietações da Teologia da
Libertação e as implicações metodológicas para a investigação bíblica: a
Bíblia mesmo não é o ponto de partida, nem a motivação. Mas, então,
deveria haver um suposto de que o “camponês/sujeito popular” é cristão
e lê a Bíblia. Seria, então, necessário estabelecer que a Bíblia é central na(s)
religiosidade(s) do “camponês/sujeito popular”.
Enuncio meu exercício, lembrando que:
Aprendemos com Marx e Engels que as ideias não têm história. Naturalmente
não se discute que haja uma história das ideias, mas o que se quer dizer é que
a força impulsionadora dessa história não são, de novo, ideias, e sim que a
história material forma o subtexto da história ideal. (HAUG, site, 2009)
O teólog@, entre os viventes, é o canibal, um ‘polemista’ (do grego
pólemos = luta, combate). A teologia como linguagem polêmica, de luta,
com sua lógica alegórica criando uma distância explícita entre os signos
e as coisas, de tal sorte que o mundo da linguagem se torna plural.
Compreendido como valor, como mediação, deixa de impor um sentido
único, automático e viciado da significação.
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A Teologia da Libertação não explica: desexplica! Sem caráter
descritivo, não se contenta em estabelecer nexo causal entre isso e aquilo,
Deus e o mundo. A teologia atrasa relógios, ataca o mecanismo de
permanência e constância, desinstala o tic-tac ininterrupto e participa da
criação desse tempo de agora, o momento exato em que é possível intervir,
alterar, destruir, transformar. Como narrativa e ritual, a teologia pode
fissurar o tempo e estilhaçar o fluxo vazio do tempo passante do
“progressismo” burguês.
E Deus também não pode ser “o grande relógio” a marcar o tempo
e a história como mecanismo fora do tempo mesmo e da história. A teologia
burguesa de um deus intervencionista e onipotente funcionou e funciona
como normatizador do relato dos vencedores. O deus de Jesus, encarnado
na história, morre na luta dos pobres e ressuscita na luta dos pobres, não
como fator de certeza e justiça predestinadas, mas como exercício constante
de radical solidariedade e amor revolucionário, profunda misericórdia e
fidelidade à vida.
Assim, não há certezas escatológicas nem especulações metafísicas
garantidoras de uma ação divina realizadora da justiça... que confortem
teólogos e teologias em suas cátedras “rasas e confortáveis”... parafraseando
o mesmo Mariátegui:
A teologia burguesa se satisfaz com uma crítica racionalista do método, da
teoria, da técnica das práticas pastorais... Que incompreensão! A força dos
agentes eclesiais de base não reside em sua ciência e sim em sua fé, sua
paixão, sua vontade. É uma força religiosa, mística, espiritual. É a força do
Mito. A emoção revolucionária [...] é uma emoção religiosa. As motivações
religiosas se deslocaram do céu para a terra. Elas não são divinas, mas humanas
e sociais (MARIÁTEGUI, 1925).
Escolho minhas polêmicas. Escolho meus materiais de imaginação
e desejo sem precisar me explicar demais: trabalho com os estalidos da
realidade não mais como destino ou necessidade, mas desconhecendo
qualquer fronteira entre orgasmo e terremoto no corpo da minha história
pessoal e coletiva, no corpo subevangelizado dessa América Latina. Minha
referência não é a teologia, nem a igreja... nem a Teologia da Libertação,
nem as CEBs ou outra eclesialidade. Na lida entre a história, a antropologia
e o corpo, essas dimensões se confundem e se afirmam já como exercício
de teologia feminista.
1 Das Leituras Populares
Um camponês achava estranho que o padre da paróquia lia um trecho da
Bíblia a cada domingo, e cada domingo a Bíblia lhe dava a razão. O camponês
dizia: “Não pode ser que a Bíblia sempre dê razão ao padre e nunca a nós, os
camponeses. Acho que o padre não lê tudo, mas escolhe o que lhe convém”.
E assim foi: os textos propostos pela liturgia eram textos selecionados e os
pregadores comentavam o que lhes convinha. Ora, o que interessava aos
camponeses era justamente o resto, aquilo que os clérigos não liam e muito
menos comentavam (COMBLIN, 1985).
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Essa pequena narrativa, apresentada por José Comblin, faz parte
da Introdução Geral do Comentário Bíblico Latino-Americano, de 1985.
O texto inicia afirmando: Este é um comentário latino-americano da Bíblia.
Na forma de parábola, o autor apresenta a identidade e as motivações do
Comentário Latino-Americano.
De um lado, o “camponês” e sua desconfiança. Do outro lado o
“padre da paróquia” e seu controle sobre o texto bíblico. Esse encontro
entre a desconfiança do camponês e o poder do padre acontece “a cada
domingo”, no espaço da “liturgia”. O poder de seleção e comentário dos
textos bíblicos pertence ao “padre”, que exerce sua leitura com a autoridade
de “escolher o que lhe convém”. O “camponês” tem o poder da suspeita,
de ouvir a leitura e identificar as lacunas de sentido, identificar o texto
atrelado às “razões do padre” e desautorizar a Bíblia por seu desinteresse
com a “razão camponesa”. A desconfiança do “camponês” se expressa
na fórmula: “não pode ser!” como intuição de que a Bíblia não está sendo
comunicada na sua inteireza - “o padre não lê tudo” - e como reivindicação
de que da Bíblia se leia o que “interessa aos camponeses”.
Esse texto traduz bem o momento da leitura bíblica latinoamericana, em 1985, no âmbito das lutas de libertação que atravessavam
o continente, dos movimentos de resistência contra a violência de ditaduras
militares, a organicidade dos processos de educação popular e na
radicalidade evangélica da Teologia da Libertação. Assim como no espaço
da educação, os conflitos da luta de classes se expressam também no espaço
eclesial, nos “domingos” e em suas “liturgias”, no poder desigual entre o
“padre” e o “camponês”, na leitura bíblica marcada por interesses
contrários, na luta pelo processo de produção, gestão e socialização de
significados de crença.
A leitura da Bíblia controlada por um corpo burocrático sacerdotalintelectual impede que leigos tenham acesso ao processo hermenêutico e
participem da produção dos significados teológicos. Mais do que a oposição
clero-leigo, a leitura popular assume a contradição de classe no âmbito do
espaço da educação e da produção de conhecimento, na oposição entre
um segmento de controle de saber versus o saber “camponês”.
A educação e a leitura popular assumiam – e assumem -, assim, a
parcialidade hermenêutica como valor, inviabilizando qualquer tentativa
e pretensão de universalidade e objetividade de qualquer comentário outro.
Os conhecimentos produzidos, também no campo das ciências bíblicas,
são historicamente e politicamente engendrados, vinculando os conceitos
e as formulações teóricas e interpretativas às relações sociais de poder
vividas e experimentadas.
A pretensão de fazer educação e interpretação na prática do povo
é apresentada como um projeto assumidamente “parcial”, “vivido” e
“experimentado”, que se insere numa prática real, numa trajetória política
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e organizativa. Essa explicitação do caráter de conflito da produção de
conhecimento e de significados é vital nas formulações metodológicas e
implica um reconhecimento do campo religioso latino-americano, marcado
pela luta de classes e por interesses de classe.
2 Os Lugares Plurais da Educação e da Leitura Popular: Cotidianos
A exigência de partir da realidade concreta das maiorias exige maior
precisão de categorias de análise, mas não substitui a “ação das maiorias
oprimidas”, que era assumida como o lugar da experiência. O pensamento
crítico latino-ameircano assume a experiência de vida das maiorias
oprimidas como ponto epistêmico e hermenêutico. Uma distinção entre
ponto de partida e motivação pode ser importante aqui. Tomar a experiência
das maiorias oprimidas como ponto de partida pode reduzir a experiência
da realidade a casos exemplares, sem intervenção real na construção do
conhecimento mesmo.
Assim será possível identificar as práticas, textos e leituras do período
que assume a realidade das maiorias oprimidas como prólogo de estudos,
exemplos sem interferência efetiva nos procedimentos de crítica e análise,
limitando-se, muitas vezes, à delimitação do tema. Temas populares,
introduzidos por relatos da vida do povo, seguidos de procedimentos de
crítica tradicionais. Se entendermos a realidade das maiorias oprimidas
como motivo e motivação, devemos identificar a materialidade dessa
experiência, interferindo e modificando o método, subordinando os
procedimentos metodológicos às materialidades da experiência dessas
maiorias oprimidas. O processo de concretização da razão das maiorias
oprimidas vai se diversificando na difícil articulação entre classe – gênero
– etnia.
Quando o camponês estranhava a leitura do padre nas liturgias
dominicais, expressava um estranhamento cultivado na leitura comunitária
e militante da Bíblia. Um aprendizado de instrumentos de análise e
interpretação que formatou e continua formatando um sem número de
comunidades que leem a Bíblia a partir da realidade. O método se curva
diante da vida material, da vida cotidiana e faz da hermenêutica bíblica
um exercício comunitário de construção de significados existenciais e
sociais. A Bíblia é livro de religião. A Palavra de Deus não está no Livro...
mas no encontro da vida no texto com a vida na realidade. Eu sou - e
muitos somos - herdeira e aprendiz desse processo nos últimos 20 anos, na
América Latina. A consciência é material.
Na conversa registrada no livro de Raul Vidales (1982) há um
diálogo interessante. Jurgen Moltmann pergunta: “por qué tenía que llegar
a ser cristiano? Si comienzo por este método no veo razón de hacerme cristiano.”
Responde o jovem Hugo Assmann:
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Aquí sí me vuelvo materialista. Se trata de la última instancia material de la
vida real. Ni Marx ni yo jamás hemos dicho otra cosa: la vida, la produción de
la vida real, la reproducción de la vida real, la reproducción de las condiciones
de la vida real... La consciencia es material. El funcionamento de todo lo que
implica la capacidad de la alegria, la capacidad de pensar, la capacidad real de
gustar la belleza, todo eso es material porque se inscribe en el ser material de
los hombres. Esa última instancia de la vida para mi... no puede ser contestada
sin la intromisión de uma transcendentalidad em el seno de la vida real... en
el encuentro entre el materialismo histórico y los reclamos más originales de
la tradición judío-cristiana.
3 Cotidianos Ágrafos – um Exercício de Não-Leitura Bíblica
Mas, de que maneira se pode dizer que esses esforços, estudos e
práticas do movimento bíblico expressam/objetivam a razão camponesa
ou a razão das maiorias oprimidas? De que maneira a leitura popular da
Bíblia participa do esforço emancipatório da construção da razão dos
oprimidos na América Latina e de seus projetos revolucionários?
O cristianismo é uma religião de livro, de leitura, de alfabetizados...
tanto no modelo fundamentalista de repetição literal como no modelo
crítico-histórico de interpretação. Na América Latina, as maiorias
oprimidas, em especial o campesinato, participam de maneira limitada
das oportunidades de educação. As maiorias oprimidas são
subalfabetizadas e, o mais importante, pertencem a um mundo ágrafo,
isto é, um mundo de representação cultural em que a escrita/leitura não
são hegemônicas.
Se for verdade que houve/há um sistemático e criativo processo de
“alfabetização” nas experiências das comunidades de base e das pastorais
sociais, na expressão de processos de educação popular de interpretação
da realidade, interpretação do texto bíblico e das comunidades como
agentes de intervenção e espiritualidade, esse modelo não pode ser
idealizado nem silenciar outras formas culturais das maiorias oprimidas.
Se, por um lado, existe o esforço de tradução da Bíblia para línguas indígenas
ou a produção de traduções na linguagem de hoje, mais acessível, o grande
desafio, por outro lado, continua sendo não deixar que a centralidade/
autoridade da leitura/escrita bíblica continue sendo elemento de destruição
das formas culturais que não dependem da leitura/escrita.
Bruna Franchetto (2009, site), por exemplo, aponta alguns dos
pontos principais da preocupação dos linguistas quanto à situação de
“comprometimento lingüístico ou línguas em perigo de extinção”:
• “Nos 500 anos que se seguiram à chegada dos europeus,
aproximadamente, 85% das línguas indígenas do Brasil foram perdidas”;
• “O Brasil continua sendo um país com a mais alta densidade linguística
(muitas línguas diferentes em um mesmo território) e uma das mais baixas
concentrações demográficas por língua (muitas línguas e poucos
falantes)” (FRANCHETTO, 2009, site).
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A leitura popular da Bíblia também deve ser identificada no avesso
dos grupos de base, organizados nas formas dos movimentos sociais, isto
é, no complexo mundo das pentecostalidades latino-americanas. Esta
pentecostalidade tem como característica comum a relação autônoma com
formatações do cristianismo histórico (católico romano ou protestante). A
Bíblia funciona como objeto de poder sem exigir tratamento históricocrítico, curvando-se a um uso simples, narrativo, alegórico e imagético.
Carrega-se a Bíblia. Canta-se a Bíblia. Repete-se a Bíblia... sem precisar
estudar, sem precisar do especialista e do tradutor. O perigo real de leituras
fundamentalistas e rasteiras é relativizado pela extrema fluidez do texto e
pelos excessos de interpretações. Tal fluidez evidencia um acelerado
processo de desnormatividade do texto e um movimento constante de
deslocamento da autoridade bíblica. Sem os instrumentos de poder e de
autoridade eclesiáticos e científicos, o livro é facilmente acessado e usado,
inviabilizando hegemonias interpretativas.
Outra variação “variadíssima” e antiga é a presença do texto bíblico
nas festas populares brasileiras, em que é muito difícil dizer onde começa
e onde termina o religioso.
As maiores contribuições da Bíblia à cultura nacional foram: construção de
acervo para as diferentes narrativas da literatura brasileira; narrativas e
enredos bíblicos começaram a servir de tema para muitas expressões da arte;
as religiosidades passaram a usá-la como devoção particular; narrativas e
personagens fazem parte do imaginário nacional (MAGALHÃES, 2009).
A presença das narrativas e imagéticas bíblicas nas festas populares
brasileiras também desafia as lógicas discursivas e controladoras das igrejas
tradicionais. Numa apropriação laica, não dogmática, mas, sim,
performática, as festas populares dialogam com as tradições bíblicas nos
espaços híbridos do sagrado e profano, e na ambiguidade do calendário
religioso latino-americano. Assim, as festas de junho associadas a São João
e os cantos de cururu, no centro-oeste brasileiro, reinterpretam a vida e
morte de João Batista, mesclando informações bíblicas com elementos da
cultura religiosa local (SOUZA, 2004); também na Festa de Sairé:
Promovida há cerca de 300 anos pela comunidade de Alter do Chão, em
Santarém, no Pará; o Sairé é um semicírculo de madeira, que contém o relato
bíblico do dilúvio: o grande arco representa a arca de Noé; os espelhos, a luz
do dia; os doces, as frutas; a abundância de alimentos existentes na arca, o
algodão; o tamborim, a espuma e o ruído das ondas durante os 40 dias de
dilúvio. Os três semicírculos simbolizam a Santíssima Trindade (FESTA, 2009).
Também os festejos da Folia de Reis, que acontecem entre o Natal e
o dia 6 de janeiro, onde grupos de cantadores e músicos trajando
fardamento colorido percorrem as ruas de pequenas cidades brasileiras,
entoando cânticos bíblicos que relembram a viagem a Belém dos três Reis
Magos (Baltazar, Belchior e Gaspar) para dar boas-vindas ao Menino Jesus.
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Do lado de fora, os palhaços vestidos a caráter e cobertos por máscaras,
representando os soldados do rei Herodes, de Jerusalém, dançam ao som
do violão, do pandeiro e do cavaquinho, recitando versos.
Estas festas populares são vividas simultaneamente com as práticas
eclesiais e as normatividades bíblicas, escapando dos olhares teológicos e
exegéticos, e sendo melhor estudadas no campo da antropologia cultural
(PESSOA; FÉLIX, 2007).
Para uns é superstição, mas, para os foliões, apenas a fidedignidade à narrativa
bíblica. É assim que eles são rigorosos às normas e rituais, sempre relembrados
e estudados, antes de seguirem o trajeto. O jovem Reinaldo Pessoa, de 24
anos, é um dos mais emocionados e compenetrados. Pudera. Sua função – a
de embaixador – requer improviso, agilidade, oralidade e, sobretudo,
conhecimento da tradição. “Dentro da folia, narro a história cantando... Só
que não tem nada decorado. É tudo no improviso mesmo. O que precisa
saber é a história dos Reis Magos (TRADIÇÃO, 2007).
Assim, a referência à razão camponesa ou às maiorias oprimidas
não pode ser reduzida a formas eclesiais de organização, mas precisa ser
expressão abrangente e complexa das formas religiosas das classes
populares na América Latina. O reducionismo às formas consagradas das
comunidades eclesiais de base ou a outros processos eclesiais de leitura da
Bíblia restringe e atrofia a dimensão vital da presença da Bíblia nas múltiplas
formas das culturas populares latino-americanas, como resistência,
apropriação autônoma e disputa dos imaginários de poder da religião
imposta (NORGET, 1997). Nas palavras de Humberto Cholango:
La vida nos ha enseñado que al “árbol se lo conoce por sus frutos”, como dijo
el Cristo, y sabemos distinguir quien le sirve en los pobres y quien se sirve
de ellos. Cabe comunicar al Pontífice que nuestras religiones JAMAS
MURIERON, aprendimos a sincretizar nuestras creencias y símbolos con las
de los invasores y opresores. (RESPOSTA, 2009).
Para além das sistemáticas teológicas, para além das dogmáticas e
metafísicas, para além do texto emoldurado por metodologias, a leitura
popular da Bíblia escapa das tentativas de controle e se realiza como
linguagem, descosturando as intencionalidades de um projeto de
evangelização/colonização opressor e se misturando com outras figuras,
outros mitos, outras possibilidades e rituais diversos.
Mais do que uma teologia da hermenêutica do símbolo – dizia Dussel
(1985, p. 283) - que se esgota na identificação da cultura popular como
forma de resistência, o desafio de uma teologia da libertação continua sendo
o de dissolver as fronteiras eclesiológicas e cristológicas, recusando qualquer
triunfalismo cristão latino-americano e recolocando a Bíblia em relação.
Não se trata do sincretismo asseado e sutilmente violento das inculturações
que perpetuam a conversão e a inserção do sagrado dos outros, na
ordenação tolerante da cristandade. Significa perceber a religião da Bíblia
como uma religião entre outras, de forma plural, descentrada, fragmentada
e conflitual (CANEVACCI, 1996, p. 14).
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4 Cotidianos Erotizados: Religiões e Relações Sociais de Gênero
As mulheres dos muitos povos indígenas, as mulheres dos muitos
povos negros e as mulheres pobres do continente europeu produziram
formas de resistência e sobrevivência de sua espiritualidade que, de certo
modo, confundem-se com a possibilidade de sobrevivência também da
identidade cultural. Alguns exemplos que vêm sendo estudados (A mulher
mexicana no Movimento Cristero; Mulher mapuche e cristianismo: reelaboraçåo
religiosa e resistência étnica; As muitas formas da devoção de Maria e inculturação
na pesquisa Maria e os pobres: um modelo de ecumenismo evangelizador
(MARCILIO, 1984); Religiosidad popular y mujer andina (TAMEZ, 1986,
p.189); O poder do feminino no culto aos orixás (TAVARES, 1990, p.157)
apresentam um quadro complexo e estimulante no resgate das teologias
de mulheres nesses 500 anos.
Maioria absoluta do grupo “dos” fiéis, minoria absoluta nas
hierarquias administrativas e acadêmicas, as mulheres tiveram que conviver
com o domínio masculino, aceitando-o e negando-o ao mesmo tempo,
gerando expressões religiosas que, se formalmente não superam a
intolerância e o proselitismo que marcam as instituições, tecem uma rede
ecumênica que habita o sagrado nas relações do cotidiano.
Talvez nas religiões afro e índias e no cristianismo popular ainda se
encontre elementos, não de uma fantasiosa supremacia e fraternidade
natural de mulheres, mas núcleos privilegiados de expressão de uma
religiosidade extremamente vinculada com a luta diária pela vida. O que
se sabe dessas culturas aponta para uma estrutura patriarcal. Mas, nas
formas de resistência das mulheres, é possível encontrar elementos que
vislumbram outras formas de organização e convivência que não puderam
se apresentar como alternativas de modelo civilizatório nas Américas, uma
vez que o paradigma do cristianismo tratou de silenciar e anular
possibilidades.
O que se encontra no sincretismo religioso popular, tanto nas
religiões afro como no catolicismo popular, como no pentecostalismo e em
outras expressões, não poderia ser chamado de campo religioso privilegiado
e livre de mulheres, porque não o é. Mas seria possível reconhecer elementos
de expressão de uma espiritualidade de resistência de mulheres. O campo
vasto e complexo das religiões populares seria mais propício a isso, porque
foge, de certo modo, do controle das hierarquias, todas elas masculinas.
Na pesquisa, O poder feminino no culto aos orixás, Cristiane Cury
e Sueli Carneiro afirmam que:
[...] a organização social do candomblé procura reviver a estrutura social e
hierárquica de reinos africanos que a escravidão destruiu, porém, na diáspora
esta forma de organização visa reorganizar a família negra, perpetuar a
memória cultural e garantir a sobrevivência do grupo e, ainda, a transmutação
nos deuses africanos serem a fonte de sustentação dessas mulheres para o
confronto com uma sociedade hostil (CURY & CARNEIRO, 1990, p.159).
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Aurora Lapiedra registra experiência semelhante no que diz
respeito à Religiosidad popular y mujer andina:
La mujer andina es un artífice fundamental en la nucleación de relaciones para el
desarrollo de la actividad agropecu ria...Tres elementos se hallan constituyendo
una importante y dinâmica unidad: la agricultura, la familia y la mujer. La
interrelación entre ellos constituye uno de los espacios más privilegiados por
donde circula la religiosidad andina (LAPIEDRA, 1986, p. 52).
Essas religiões populares articulam muito mais o espaço da casa,
da família e da sobrevivência diária, cotidiana das populações. Daí, talvez,
a explicação para o grande número de mulheres que atuam e até mesmo
lideram esses grupos religiosos.
No candomblé, no pentecostalismo, no catolicismo popular e até
mesmo nas CEBs e nas congregações femininas, sem querer pretender uma
utópica liderança e expressão exclusiva de mulheres, o que se pode perceber
é a viabilização da espiritualidade da mulher. Os doentes, o casamento, as
crianças, as comidas... coisas da casa e de rotina doméstica se revestem de
linguagem religiosa e recebem tratamento teológico. Nas orações e nos
trabalhos, nos serviços prestados e nas comidas das festas, a mulher traduz
sua relação com o sagrado.
Essas formas de expressão se mostram de modo ambíguo, uma vez
que passam pelo crivo do poder masculino. Nessa ambiguidade, as
expressões religiosas das mulheres encontram os espaços de sua resistência
e de sobrevivência. Esta ambiguidade não só deve ser entendida como
limite, mas deve ser avaliada como elemento fundamental da
espiritualidade feminina, uma vez que o caráter ambíguo da mulher é
visto de formas diferenciadas em todas as religiões, merecendo, por isso,
uma legislação especial, ou o afastamento no estabelecimento do tabu de
determinadas práticas, como o sacerdócio, e a negativa do acesso pleno a
todos os níveis desta ou daquela organização religiosa.
Ao esvaziar a mulher e seu corpo do sagrado e ao permitir o
estabelecimento de uma dupla moral violentadora da dignidade das
mulheres dos povos conquistados, a evangelização no continente passou
por cima de alternativas de religiosidade que consideravam a mulher, seu
corpo e a sexualidade de outra maneira.
De acordo com a pesquisa de Sylvia Marcos, a partir da análise de
tradições de povos mexicanos:
Mientras el sexo huele a sucio en todo el continente cristiano y todas las
energías se dedican al ascetismo negador del impulso sexual, las culturas
arcaicas de América colocaban al centro de rituales religiosos. La
espiritualidad sexual americana tuvo en sus sacerdotisas, celebrantes
privilegiadas...A través de la represión del erotismo indígena, la moral católica
logró sacudir las bases de la cosmovisión americana (MARCOS, 1988, p. 31)
O mesmo poderia ser avaliado na experiência dos povos africanos
que tiveram
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o horizonte simbólico africano [...] desarranjado a partir do seqüestro de
corpos biológicos, humanos, mas também dos corpos das representações
materiais produzidas artisticamente como expressão do agir e do pensar no
seu mundo cotidiano (TAVARES, 1990, p.133).
O cristianismo se mostrou decididamente violento na erradicação
dos cultos e gestos das religiões dos povos conquistados, que se articulavam
em torno das expressões corporais e sexuais, inviabilizando, de modo
específico, as expressões religiosas de mulheres. É que tivemos sempre
joelhos tão mal-evangelizados... dobrados liturgicamente na forma do
Medo, da Festa e da Morte. A gestualidade final da conquista cristã do
continente latino-americano, marcada pelo longo alcance da Inquisição
(final do século XVI no Brasil), educou os joelhos para a desproporção
entre o gesto e a crença. Os corpos aprenderam a obedecer, primeiro, pelo
peso da violência e do castigo que acompanhava a catequese e a homilia.
Ninguém foi convidado ao convencimento. Os joelhos foram coagidos à
flexão e assim se inventou a crença: contra o corpo, sem o corpo, apesar
do corpo. Pois, então, trata-se da desevangelização dos joelhos!
A contribuição ética do feminismo se dá na insistência de que o
pessoal é político, o cotidiano é histórico, a reprodução é produtiva, a
produção é distributiva, o consumo é criativo. Essta reversabilidade dos
sentidos e de suas relações confronta qualquer modelo político metafísico
de alienação das relações cotidianas e fetichização de desejos e
necessidades.
Nossas teologias têm cheiro de corpo. Pedimos, aqui, que a Teologia
da Libertação caminhe uma segunda milha. Já foi feito o caminho de
construir a teologia a partir da realidade e seus conflitos, fazendo-o de
modo comprometido na preferência pelos pobres. As teologias feministas
insistem que a mediação socioanalítica não pode se esgotar no pobre-ideal
e insiste em apontar o corpo como ponto de mediação hermenêutica. O
corpo cheira, é contextualizado, datado, situado. Mais que isto, o corpo é
sexuado. Raça e gênero não são, portanto, mero apetrecho decorativo da
reflexão, mas, na interação com o corte socioeconômico, circunscrevem
as condições objetivas e subjetivas aonde a interpretação e a formulação
do discurso e da prática do sagrado acontecem. Radical encarnação. Deus
conosco.
Essas expressões e organizações ainda não foram visitadas e
avaliadas e consideradas... continuam como desafio para historiadores/
as, cientistas sociais e teólogas/os que, comprometidos com as lutas
feministas, reconheçam o espaço da religiosidade das mulheres como
campo de trabalho privilegiado na construção da memória e da presença
da mulher nas Américas. Fala poética, política e teológica que se esconde
e brilha no inesperado, no cotidiano e no corpo. Nas palavras de Ivone
Gebara:
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Aquilo que chamamos salvação, entra nesse mesmo jogo da vida. Não é mais
uma única direção, não é mais algo dado por um Deus todo-poderoso de uma
vez por todas, não é mais o gozo eterno no céu. É marcada pela conflitividade
de nossa existência histórica, pelos interesses em disputa, pelas buscas honestas
que fazemos em meio à nossa fragilidade constitutiva. E acontece de forma
sempre renovável como é renovável a vida de todos os seres que existem.
(GEBARA, 2007, pp. 105-108).
Deus conosco.
Notas
1
Doutora em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo/UNIMESP.
Professora de Bíblia no Rio de Janeiro (Universidade Severino Sombra). Pastora metodista
e agente de pastoral da Comissão Pastoral da Terra/CPT. E-mail: [email protected]
2
Sobre a leitura fundamentalista da Bíblia, confira: ZABATIERO, site, 2009.
3
O título do livro recupera a expressão atribuída a Tupac Katari, liderança indígena na luta
contra a violência colonial.
REFERÊNCIAS
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Os deuses do povo - um estudo sobre a religião popular. São
Paulo: Brasiliense, 1980.
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PARTE III
1
EDUCAÇÃO E A CIDADANIA PARA UM NOVO MUNDO
Pedro Alonso Puentes Reyes1
Introdução
O nosso artigo busca refletir sobre a afirmação de que a educação
tem como objetivo a formação de um cidadão. A partir dessa colocação,
reflete-se sobre a compreensão de cidadania num mundo pós-moderno.
Isto é, sob um processo de globalização que fragmenta o que antes era
visto como unificado. Para tanto, busca-se estabelecer algumas das
características da globalização e que marcam ou configuram a cidadania
nas sociedades de hoje.
Um aspecto a ser destacado nesta reflexão é a pergunta por um
“algo fundamental” que perpasse as realidades fragmentadas, tornandose comum a todas elas. Respondemos que esse “algo fundamental” é um
saber que impele o ser humano a agir numa certa direção, e, quando age
contra essa direção, ele destrói a vida, e com ela a si mesmo. Dessa forma,
o existir da pessoa estará sempre perante uma opção. O viver humano
sempre tem implicações éticas. Entretanto, a indagação sobre essa
compreensão tem como finalidade a questão dos possíveis desafios para a
ética na educação.
1 Mudanças na Cidadania
A “Declaração de Margarita”2, de novembro de 1997, colocou em
destaque um conceito de cidadania que, de alguma forma, acabaria
moldando os objetivos da educação no continente latino-americano. Esse
documento anota, no seu terceiro ponto, o seguinte:
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Estamos convencidos de que a democracia não é apenas um sistema de
governo, mas também uma forma de vida, à qual os valores éticos dão
consistência e durabilidade. A tolerância, a capacidade de valorizar e aceitar
o pluralismo; o direito à livre expressão e ao debate público; o respeito, a
promoção e a proteção dos direitos humanos, a aplicação das regras de
convivência civilizada estabelecidas pela lei; a validade do diálogo na
solução dos conflitos; a transparência e a responsabilidade na gestão pública
são princípios jurídicos e valores éticos da prática democrática, que devemos
fortalecer e promover dentro de programas efetivos e estratégias nacionais
de formação da cidadania. (OEI, 1997).
No Brasil, esse conceito é incorporado ao projeto educativo
através dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). Neles (PCN, v.8,
2001), a cidadania é entendida como democracia. Entretanto, a
democracia assume o sentido de sociabilidade. Dessa forma, quer-se
apontar para uma mudança no âmbito das relações sociais. O que se
sugere é que, em nível social, há a passagem de uma “cidadania passiva”
(como receptora e portadora de direitos e deveres) para uma “cidadania
ativa” (criadora de direitos). Isso significa que a cidadania quer ser
caracterizada pelo compromisso que intervém e transforma a realidade,
orientada pelos princípios da dignidade da pessoa e da igualdade de
direitos.
Das palavras anteriores, podemos afirmar que a cidadania busca
ser compreendida como uma dinâmica crítica e criativa, que tem como
finalidade a procura de novas maneiras de articular as relações humanas.
Nesse sentido, a cidadania carrega o desafio de organizar a vida já não
mais pela desigualdade, depredação, abuso e dependência, muito pelo
contrário, o desafio é articular a vida para a paz, a igualdade, a
preservação, a saúde, o desenvolvimento, a autonomia, o cuidado e a
responsabilidade. No fundo, a cidadania foi amarrada à sua dimensão
ética. Quer dizer, não é possível pensar cidadania sem as exigências dos
compromissos éticos e morais que ela ocasiona.
Assim sendo, a cidadania hoje exige da educação um compromisso
com determinados aspectos éticos e morais. Compromisso acolhido e
articulado pela educação através dos conteúdos transversais propostos
pelos PCN. Entretanto, o antes exposto sobre a cidadania deve ser
confrontado com outro antecedente, a fragmentação da identidade.
2 A Identidade Fragmentada
Não é nenhum segredo que a cidadania está vinculada à questão
da identidade, e é aqui onde surge um dos nossos problemas: qual é o
conceito de identidade com que estamos trabalhando?
Para responder a essa pergunta será necessário dirigir um olhar,
mesmo que geral e sucinto, para três concepções de identidade
configuradas no Ocidente. A primeira é a identidade do sujeito do
Iluminismo. Nele, a pessoa era tida como um “indivíduo totalmente
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centrado, unificado e dotado das capacidades de razão, de consciência e
de ação, cujo ‘centro’ consistia num núcleo interior” (HALL, 2005, p. 11).
Aqui, a educação tinha a missão de desenvolver aquele núcleo, que
permanecia essencialmente o mesmo. E, a cidadania, nesse contexto,
manifestava-se na atuação dos papéis e na ocupação dos espaços
designados pela sociedade para cada indivíduo. Espaços e relações a serem
moldados, segundo o gênio ou caráter do indivíduo.
A segunda identidade corresponde a do sujeito sociológico. Em meio
à complexidade do mundo moderno, surge uma crescente percepção de
que aquele núcleo interior do sujeito “não era autônomo e autossuficiente.
[A identidade e o núcleo do sujeito do iluminismo] é formado e modificado
num diálogo contínuo com os mundos culturais ‘exteriores’ e as identidades
que esses mundos oferecem” (HALL, 2005, p. 11). Nessa articulação da
identidade, a educação passa a ser vista como vinculada a um projeto
social que visa a construção ou preservação de uma determinada sociedade.
Isso é assim, porque a cidadania passa a ser entendida como expressão
externa do mundo interno da pessoa. Mundo interno que não é mais do
que a interiorização do mundo externo. Assim sendo, ambos os espaços,
interno e externo, tornam-se recíprocos, interdependentes e unificados.
A terceira identidade é aquela do sujeito pós-moderno. Com as
mudanças estruturais e institucionais do mundo externo, produz-se uma
quebra naquela reciprocidade entre os espaços interno e externo, por
conseguinte, a perda da identidade unificada. Esta última aparece agora
como fragmentada, aberta e contraditória. Como diz HALL (2005, p.13):
“à medida que os sistemas de significação e representação cultural se
multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante
e cambiante de identidades possíveis, e com cada uma das quais poderíamos
nos identificar – ao menos temporariamente”.
Entendemos que essa identidade pós-moderna é o nosso contexto
atual. Assim sendo, surgem novos questionamentos. Foi sugerido,
anteriormente, que a “cidadania ativa” é a expressão e a manifestação da
identidade. Entretanto, perante uma “pluralização” de identidades, como
falar de “cidadania ativa” em singular? Nesse contexto, que componentes
éticos significativos podem ser apontados para ser articulados pela
educação na formação do cidadão?
3 Globalização e Identidade(s)
Antes de esboçar uma possível resposta à pergunta acima, parecenos pertinente anotar alguns efeitos da globalização sobre a identidade.
Uma característica apontada por HALL (2005, p. 68) é a “‘compressão
espaço-tempo’, a aceleração dos processos globais”. O autor observa que
as coordenadas do espaço e tempo, mesmo que simbólicas, são
fundamentais para a representação e localização da identidade. No
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entanto, a modernidade colocou num processo de distanciamento o espaço
do lugar. Citando Giddens, Hall (2005, p. 72) escreve:
Nas sociedades pré-modernas, o espaço e o lugar eram amplamente
coincidentes, uma vez que as dimensões espaciais da vida social eram, para a
maioria da população, dominadas pela presença – por uma atividade
localizada... A modernidade separa, cada vez mais, o espaço do lugar, ao
reforçar relações entre outros que estão ‘ausentes’, distantes (em termos de
local), de qualquer interação face a face.
Esse processo de distanciamento, na globalização, teria entrado num
destroço do espaço por meio do tempo. Quer dizer, enraizados num lugar
que permanece fixo, o espaço é comprimido num instante, seja de maneira
real ou virtual. Por exemplo, por um avião ou E-mail, respectivamente.
Essa compressão do espaço-tempo expõe as culturas nacionais às
influências de fora, enfraquecendo-as e, com isso, “as identidades se tornam
desvinculadas – desalojadas – de tempos e lugares, histórias e tradições
específicos e que parecem ‘flutuar livremente’” (HALL, 2005, p. 75).
Outra característica é a resistência à globalização (homogeneização
global), a qual encontra, segundo Hall, três qualificações: a primeira é uma
atração pela diferença, pelo local, que leva a uma nova articulação entre
as novas identidades globais e locais. A segunda avalia a globalização como
um processo desigual com sua própria distribuição do poder pelo mundo.
E a terceira é que, mesmo a globalização afetando o mundo todo, ela é um
fenômeno eminentemente Ocidental.
A última característica é que as identidades nacionais estão em
declínio, mas novas identidades – híbridas – estão tomando o seu lugar
(HALL, 2005, p. 69). Nesse contexto, alguns defendem o sincretismo (o
híbrido) como aquilo que possibilita a criação de novas formas de identidade
cultural. Outros, porém, olham com desconfiança para o hibridismo por
causa da sua indeterminação, seu relativismo, propondo como alternativa
a reconstrução de identidades puras, identidades culturais homogêneas,
que possam restaurar uma antiga coesão. Exemplos dessa perspectiva são
o nacionalismo e o fundamentalismo.
Perante tais características, que moldam a identidade cultural
expressa na “cidadania ativa”, trazemos novamente a pergunta antes
anotada: existe algo fundamental que sobreviva e perpasse as diferentes
realidades sociais do nosso mundo atual e que se constitua num componente
ético significativo, a ser articulado pela educação na formação do cidadão
para uma “cidadania ativa”?
4 Por um Componente Ético Significativo
O que é aquilo que torna a pessoa um agente ético? As respostas
são variadas. Por exemplo, a teologia cristã nos diz que a construção da
pessoa à imagem de Deus permite que ela possa discernir e interpretar a
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lei, ou vontade de Deus, base de toda ética, e com isso alcançar um
conhecimento de si e de seu mundo, mesmo que derivado da revelação.
A Filosofia, no entanto, destaca a razão como o mais próprio do
humano. Mediante o raciocínio, as pessoas podem adentrar num
entendimento da lógica existente por trás da organização da realidade
toda, inclusive do bem e do mal.
A Psicologia, por sua vez, assinala para a consciência. Por ela o ser
humano tem a possibilidade de alcançar uma autocompreensão de si
mesmo. Pela consciência de si, ele sabe que pode viver e organizar a sua
existência para além dos instintos.
Todas essas respostas colocam o acento numa diferença, uma marca
de “distintividade” presente no ser humano para fundamentar a sua
capacidade do agir eticamente. Quer dizer, a pessoa pode ser um agente,
porque possui algo único, exclusivo, algo que não está presente no resto
da natureza. Agora, bem, cabe também observar que essa “distintividade”
(Imago Dei, Razão ou Consciência) tem sido geralmente vinculada a uma
função cognitiva, seja mediante um processo racional, ou como uma
apropriação veiculada pela corporeidade, como propõem as perspectivas
feministas.
No fundo, é a capacidade de conhecer ou saber o que,
tradicionalmente, tem-se colocado como aquilo que marca e fundamenta
o agir ético da pessoa. Entretanto, esse componente de distintividade
geralmente tem sido usado como base para distanciar o humano da
natureza, colocando-o acima de toda a ordem natural. E, uma vez instalado
no topo, e quase fora do natural, foi constituído na medida de todas as
coisas, inclusive da ética, criando-se uma organização das diversas relações
que hoje não são mais sustentáveis.
Tudo parece indicar que a capacidade de saber não é suficientemente
fundamental como para se tornar um componente ético significativo. O
que talvez nos possa auxiliar seja seguir o conselho de não separar aquilo
que deve permanecer unido. Isto é, o conhecedor e o conhecido, a pessoa
e a informação.
O fato de que o ser humano se encontre em condições de conhecer
é porque o conhecido é crucial. Uma chave não tem valor em si mesma.
Seu valor é diretamente proporcional àquilo que ela consegue desvendar.
A pessoa humana tem a capacidade de “enxergar” o seu mundo e a si
mesmo, porque aquilo que ela “enxerga”, o modo de viver/existir do ser
humano é o que a constitui num agente ético.
Não é apenas a capacidade de saber o que faz com que a pessoa
humana seja agente ético, mas aquela informação fundamental que ela
capta acerca de si mesma e do mundo. Por isso, a pessoa nunca poderá
deixar de ser um agente ético, e nunca poderá ser a medida da ética. Então,
qual é essa informação que leva o ser humano a atuar como um agente
ético? O saber do qual a pessoa humana se apropria, e que a converte num
agente ético, é: o modo mais fundamental da vida humana, nas suas
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diferentes dimensões, acontece sempre “em meio de” e “enfrente a”. Isto
é, o ser humano existe numa “teia” ou “rede”, não tanto pelas relações
que ele estabelece, quanto por ser essa a sua condição mais básica.
Esse fato é geralmente esquecido no decorrer da reflexão ética por
causa da antropologia iluminista, herdada e perpetuada pela modernidade,
e ainda presente na pós-modernidade, a saber: um sujeito de existência
individual e autônoma. Assim sendo, a reflexão ética se converte, nas mais
das vezes, na afirmação de uma existência humana como incondicionada.
Entretanto, o que essa imagem de sujeito individual e autônomo oculta é o
seu reverso: que a vida só acontece “em meio de” e “enfrente a”.
Dois exemplos podem ajudar na nossa exposição. O primeiro é a
situação de um recém-nascido, que pode ser expressa nas seguintes
palavras:
A mudança relativamente súbita da existência fetal para a humana e o
seccionamento do cordão umbilical marcaram a emancipação do bebê do
corpo da mãe. Esta emancipação, no entanto, só é real na mera acepção de
separação dos dois corpos. Em sentido funcional, o bebê continua sendo parte
da mãe: ele é alimentado, carregado e cuidado em tudo que é vital por esta.
(FROMM, 1983, p. 30).
Da nota anterior duas coisas devem ser observadas. A primeira é o
óbvio que não é tão óbvio: que nos primeiros tempos de um ser humano
ele é total e absolutamente dependente da “teia” ou contexto que o gera e
o sustenta. Esse fato é fundamental, já que sem a possibilidade de estar
“em meio de” e “enfrente a” nenhum recém-nascido pode existir.
A segunda coisa tem relação com aquilo que o contexto diz sobre o
recém-nascido. Mesmo que ele não tenha noção da qualidade da sua
própria existência, para essa “teia”, “rede” ou contexto ele já está
qualificado como alguém, uma pessoa. Isto é assim, porque a primeira e
mais fundamental expressão de existência de um ser humano é a sua
corporalidade, ainda que na condição de bebê. As pessoas que fazem parte
do contexto dessa criança agiram em coerência com o que acreditam acerca
dela: que ela é alguém. Essa coerência e agir se constituem, assim, num
polo que levará a criança a configurar os traços da sua própria pessoa.
Outro exemplo que pode ser anotado é tomado do processo de
formação da humanidade.
A existência humana tem início quando a falta de fixação das ações pelos
instintos ultrapassa certo ponto; quando a adaptação à Natureza perde seu
caráter coercitivo; quando o modo de agir não mais é estabelecido por
mecanismos recebidos através da hereditariedade. Por outras palavras, a
existência humana e a liberdade são, desde o início, inseparáveis. Liberdade é
aqui empregada não em seu sentido positivo de ‘liberdade para’, porém no
negativo ‘liberdade de’, ou seja, liberdade da determinação instintiva de suas
ações (FROMM, 1983, p. 35-36).
Cabe notar que esse processo que faz aparecer o humano se dá
numa interação com o entorno. No fundo, dificilmente poderia ter surgido
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o humano como uma pessoa com liberdade, sem uma luta do “homo
sapiens” com a natureza. Então, o saber mais radical que o ser humano
tem a respeito de si mesmo é aquele formulado pela linguagem religiosa
cristã, que diz: “do pó és e em pó te converterás”. Essa frase não é para ser
tomada como informação fatalista acerca da existência humana, mas como
declaração fundamental do existir humano, a saber: que nunca poderá se
desligar totalmente da natureza, já que seu único modo de vida é existir
“em meio de”, “enfrente a” natureza, o mundo e os outros.
A partir do antes exposto, é possível dizer que um ser humano nunca
surge do nada. Ele sempre existirá em, com e por um contexto e nunca
fora dele, nunca em solidão. Por isso, seu agir nunca está isento da ética.
Qualquer ato humano sempre acontece “em meio de”, por isso sempre
está amarrado à responsabilidade, e é exatamente isso o que faz com que
a pessoa humana seja um agente ético. Quer dizer, o ser humano não
pode deixar de ser um agente ético, porque seria ir contra a vida, buscar a
própria morte. Negar-se, então, a vocação de agente ético seria como se
um náufrago, no meio do mar, colocasse fogo na sua balsa para não morrer
de hipertensão.
Resumindo, esse saber que o ser humano percebe sobre sua condição
de existência não lhe escraviza, muito, pelo contrário, busca torná-lo sábio.
Compreender que a vida humana surge e se desenvolve numa certa tensão
de dependência e autonomia adverte para o fato de que a vida
permanecerá, na medida em que se conserve a estrutura que a faz possível.
Esse saber assinala os limites e possibilidades das multirrelações a serem
construídas pelas pessoas, no intuito de manifestar a vida. Quer dizer, o
simples fato de viver humanamente tem implicações éticas.
5 Articulando Palavras de Amarre
Como foi dito acima, esse contexto, ou teia de relações, que acolhe
e permite o desenvolvimento de cada ser humano, que antes foi entendido
como homogêneo pela distância entre os grupos humanos (culturasidentidades) e pelo processo de homogeneização aplicado pela
modernidade, hoje aparece como fragmentado, como foi visto
anteriormente. No entanto, essa fragmentação não nega que o existir
humano seja sempre a partir de um contexto. E que o viver humano seja
sempre um agir ético. Pode ser que esse contexto seja híbrido ou homogêneo,
mas nunca será possível abandonar uma existência referenciada e ética.
Tudo parece indicar que essa aproximação, pelo seu radicalismo,
seja mais pertinente do que um discurso de ética fundamentado na
alteridade. Nesse último, o acento recai na relação entre sujeitos, indivíduos
e pessoas que procuram ser validados como interlocutores de um encontro,
o qual possibilitará o aparecimento do humano e de sua individuação.
Entretanto, o outro nunca é um outro sem contexto, aliás, o outro é sempre
um expoente da sua rede, do seu contexto.
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Começamos dizendo que a democracia, entendida como
socialização, aponta para a construção das relações sociais mediante a
expressão “cidadania ativa”. O fato de que a cidadania seja algo a ser
construído por todos os atores sociais indica que a fragmentação, que
aparece como pluralidade de identidades no âmbito social, está sendo
considerada.
Sem dúvida, o maior desafio hoje é passar da tomada de consciência
do nosso modo de existir para as atitudes e as condutas coerentes com esse
saber. No âmbito da educação, isso significa passar do discurso para a
vivência.
Notas
1
2
Doutor e mestre em Teologia e História pela EST –IEPG/RS. Membro do Grupo de
Pesquisa Ethos, Aleridade e Desenvolvimento - GPEAD.. E-mail:
[email protected]
Documento final da VII Reunião Ibero-Americana de Chefes de Estado e de Governo,
realizada na “Isla de Margarita”, Venezuela, nos dias 8 e 9 de novembro, promovida
pela Organização de Estados Iberoamericanos - OEI em 1997.
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Ministério de Educação. Secretaria da Educação Fundamental. 3. ed., Brasília: A Secretaria,
v. 8, 2001.
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2
PRINCÍPIOS DO ENTENDIMENTO DO
VALOR DA IGUALDADE E DA DIVERSIDADE SOCIAL
Dilnei Lorenzi1
Para superar as desigualdades sociais é indispensável saber,
antes de tudo, que tipo de igualdade se quer instituir, e como fazê-la; ou
seja, ter clareza quanto ao objetivo e precisão quanto ao método de ação
política.
Ao criticar o comunismo de bens, preconizado por Platão, em
A República, Aristóteles observou, na sua obra Política, que o postulado ou
hipótese de base da argumentação socrática, qual seja, a igualdade absoluta
dos cidadãos na polis, era evidentemente inaceitável. A cidade constitui,
pela sua própria natureza, uma pluralidade, de tal sorte que, se a sua
unificação for levada ao extremo, de cidade ela se torna família, e a família,
indivíduo, segundo Aristóteles.
Ainda que pudesse levar a efeito essa unificação total, que para
Platão é o bem supremo da sociedade política, seria preciso evitá-la, pois
ela conduziria fatalmente à sua ruína. Em qualquer cidade, há sempre
diferenças específicas entre os cidadãos, as quais devem ser respeitadas.
A capacidade de respeitar os princípios de diferenças culturais
passa pelo crivo da construção da racionalidade, entendendo-se esta como
quase sinônimo de tolerância, da habilidade de não ficar desconcertado
demais com as diferenças em relação aos outros, e de não responder
agressivamente a tais diferenças. Essa habilidade está par a par com a
disposição de alterar os próprios hábitos – não apenas para obter mais do
que se desejava inicialmente, mas também para transformar-se em outro
tipo de pessoa, um tipo de pessoa que quer coisas diferentes das que queria
antes.
A racionalidade é acompanhada também da confiança e da
persuasão, em vez da força; numa inclinação para discutir, em lugar de
lutar, incendiar coisas ou banir pessoas. É uma virtude que torna indivíduos
em comunidades, de viver e deixar viver, e estabelece novos modos de
vida, sincréticos, comprometidos. Portanto, nesse sentido, a racionalidade
às vezes é pensada, como faz Hegel, como um quase sinônimo de liberdade2.
A tradição intelectual ocidental, com frequência, inspira-se
nesse sentido de racionalidade. Sempre se sugere que só se pode usar a
linguagem e, portanto, a tecnologia para obter o que se quer – ser tão
eficiente quanto somos em satisfazer nossos desejos – porque se tem a
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LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.)
racionalidade, um ingrediente precioso, quase divino, que os parentes
distantes dos homens brutos não possuem.
Com igual frequência, parte-se do pressuposto de que a
adaptabilidade sinalizada é igual à virtude da tolerância que, nesse
momento, denomina-se racionalidade. Ou seja, parte-se do pressuposto
de que, quanto mais hábil a pessoa for em se adaptar às circunstâncias por
meio do aumento da abrangência e da complexidade das respostas dadas
aos estímulos, mais tolerante ela será para com outros tipos de ser humano.
Quando se reúne diversos tipos de entendimento a respeito da
racionalidade, pode parecer evidente que os humanos bons na arte de se
armarem de meios tecnológicos para satisfazer seus próprios desejos,
automaticamente adotarão os desejos corretos – desejos de acordo com a
razão – e mostrarão por que esses desejos indesejáveis foram adquiridos.
Isso produz a ideia de que o local onde surge a maior parte da tecnologia
– o Ocidente – é também o melhor local para manter ideais morais e virtudes
políticas (RORTY, 2005).
A unidade política que implica uma igualdade absoluta entre
os cidadãos, ressalta Aristóteles, só deve existir quanto àquilo que
representa a essência de cada cidade, que é a sua constituição, vale dizer,
o consenso comum quanto à justiça de suas instituições. A igualdade cívica
é, antes de tudo, uma virtude que deve ser encorajada pela educação.
Aristóteles, no último capítulo da Política, enfatiza que a
educação dos cidadãos deve ser adaptada a cada forma particular de
politeia, pois cada uma delas tem o seu ethos, os seus próprios costumes ou
maneiras de ser, os quais a conservam, mantendo a unidade. Disso se
seguem, como consequência lógica, que a educação na polis deve ser uma
só para todos, e que a tarefa educacional é de competência da comunidade,
e não pode ser deixada à pura iniciativa privada, pois a educação
propagada deve expressar os aspectos fundamentais e de tradição cultural
da comunidade.
É necessário destacar o grau de importância que se almeja nesse
momento com o conceito de cultura. Cultura, no seu sentido mais simples,
é um conjunto de hábitos de ação compartilhados, hábitos que permitem
aos membros de determinada comunidade humana conviverem tão bem
quanto lhes é possível, com os outros membros e com o ambiente que os
cerca (JONAS, 2006).
Também é possível pensar a cultura a partir da ideia de ela ser uma
virtude. Nesse sentido, “cultura” significa algo como “cultura elevada”.
Boas indicações de que uma pessoa possui cultura são a habilidade de
manipular ideias abstratas por puro prazer e a habilidade de discutir
longamente sobre o valor de um amplo conjunto de diversos tipos de
pintura, música, obra arquitetônica e obra literária.
A perspectiva que ganha força no Ocidente é, de forma peculiar,
sinônimo do que é produzido pelo uso da racionalidade, principalmente,
à medida que a história se desenvolve, sobre a natureza, sobre o que se
compartilha com os brutos. É a superação do básico, irracional e animal
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por algo universalmente humano, algo que todas as pessoas e culturas são
mais ou menos capazes de reconhecer e respeitar (JONAS, 2006).
O reino universal da cultura é o objetivo maior da história, defendia
Hegel. Dizer que uma cultura é mais avançada do que outra é dizer que
ela se aproxima mais da concretização do “essencialmente humano” do
que outra cultura, que ela é uma expressão de “autoconsciência do Espírito
Absoluto” (FABRE-GOYARD, 2002).
Hegel não foi o único a sistematizar a relação da Cultura e dos
parâmetros sociais de tal forma, pois Montesquieu aprofundou tais
elementos na sua prima-obra, De l’Esprit des lois, havendo distinguido a
“natureza de um governo” do seu “princípio”, indicou como princípio do
regime popular a virtude; do aristocrático, a moderação; do monárquico,
a honra; e do regime despótico, enfim, o temor.
Diante das críticas recebidas por ocasião das primeiras edições do
seu livro, Montesquieu sentiu-se obrigado a acrescentar posteriormente
uma advertência preliminar, a fim de explicar o que quis dizer, ao falar
em virtude no regime popular ou republicano. “É amor da pátria, isto é, o
amor da igualdade”. Não se trata, esclareceu ele, da virtude moral ou
relativa à vida particular de cada um; mas da virtude política.
Na virtude política se manifesta o Direito e a Liberdade, que são
verdadeiros contrapontos entre o poder, o não-poder e o dever. O grande
abolicionista, Nabuco, em A Escravidão, já posicionava que não há direito
sem dever, como não há direito e dever sem justiça; ora, a primeira regra
dessa justiça reguladora é a do direito romano: menimem ladere, não ofender
a ninguém, isto é, não invadir o direito de alguém (NABUCO, 1999).
De tudo isso, argumenta Nabuco, está palpitante que a escravidão
não é um direito, e que, por consequência, não impõe um dever. Entretanto,
para a sociedade, quando sua liberdade sofre restrição considerável que a
muda em direito, o homem não perde certos direitos naturais, primordiais.
Esses direitos são barreiras que não se pode atravessar.
A grande glória da Revolução Francesa é ter conseguido reunir os
direitos fundamentais em um código, que é o código da grandeza humana,
de sua origem divina! Esses direitos a escravidão viola-os em legítimos
proprietários, quer dizer que a escravidão funda-se sobre a violência, que
é um estado de guerra. Destruindo a liberdade humana, na raça
conquistada, ela destrói a noção do Estado, substitui a força à equidade, a
tirania ao direito, a opressão ao dever, por isso não dá direito nenhum ao
senhor sobre o escravo, nem impõe dever algum ao escravo para com o
senhor, diz Nabuco. O grande abolicionista, em texto memorável, faz
referência à Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão e
à Revolução Francesa, como argumento favorável à necessidade de se
valorar a pluralidade no conjunto da sociedade para o bem-estar dos
indivíduos.
A liberdade e a preservação da pluralidade dos valores consolidados
no Estado são elementos decisivos na constituição dos fundamentos de
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um Projeto de Educação. A liberdade, palavra-chave da Revolução
Francesa, apresenta duas perspectivas diferentes: (1) ex-parte principi e (2)
ex-parte populli. A primeira limita a liberdade de ação do Estado, e a
segunda garante a liberdade do cidadão. As duas são interdependentes,
uma complementando a outra. O Estado Constitucional, ao limitar o poder
do soberano, garante os direitos naturais dos indivíduos. As duas
transformações são simultâneas e são a essência do novo Estado
Constitucional ou Estado de Direito.
A racionalização do direito na sua superlegalidade constitucional
significa que, no Estado, a Constituição é a chave da lei e da regularidade
das decisões de direito. Entenda-se por isso que ela se impõe de modo
coercitivo como fonte de legalidade e que, por essa razão, torna inteligível,
desde seus princípios primeiros, todo o sistema jurídico do Estado. Em
outras palavras, ela permite pensar o sistema do direito segundo as
categorias da razão. A doutrina constitucionalista corresponde, com efeito,
a uma preocupação de racionalização da ordem jurídica (FABREGOYARD, 2002).
A regra constitucional é a chave da lógica da ordem jurídica,
principalmente, a ideia do constitucionalismo, que pertence à doutrina
moderna, e mergulha não obstante suas raízes longe do tempo. É fato que
a questão jurídica do legicentrismo estatal de Hobbes só ganhava sentido
através da racionalização do poder político e de seu exercício: a
promulgação e a publicidade das leis e decretos “expressos por signos
adequados”, sua clareza obtida graças à exposição dos considerandos que
os motivaram, sua autenticação pela assinatura dos ministros e pelas
chancelas públicas, sua reunião em compilações oficiais e outros são
exigências de uma metodologia jurídica que provêm de uma intenção de
racionalidade.
É decisivo incutir uma coerência interna e uma generalidade unitária
do direito do Estado e organizá-lo num edifício sistematicamente ordenado.
Deve ser lembrado, segundo Hobbes, que o direito é construído como uma
ordem artificial hipotético-dedutiva more geométrico.
No corpus das regras, cuja clareza é acompanhada de
obrigatoriedade, a potência calculadora e instituinte da razão torna-se uma
capacidade prática de regulação: a razão jurídica é normatizadora.
Hobbes decerto não desenvolvia, nas formas, uma concepção
constitucionalista da ordem de direito. Mas seu cuidado com a
racionalização e a unificação da esfera jurídica era tal que, sob a autoridade
suprema do Estado-Leviatã, a razão impunha irrevogalmente uma
consequência: ninguém pode escapar da regra, já que toda contravenção
submete imediatamente o contraventor a outra regra, punitiva, pertencente
à mesma ordem do direito, pois a racionalização do direito lhe confere sua
força imanente.
Em torno desse filosofema fecundo, a nomofilia que invade as
últimas décadas do século XVIII impõe às regras de direito uma estrutura
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lógica e hierarquizada que, de patamar em patamar, determina-lhe o
funcionamento e a existência, pois só as forças constituintes e organizadoras
da razão garantem a legitimidade da legalidade e da juridicidade. Sem
dúvida, os constituintes pensavam inicialmente, num projeto
fundamentalmente político, em combater o absolutismo e a arbitrariedade
régia. Mas, em seu otimismo jurídico, lançam um desafio simultaneamente
às figuras da transcendência e às vertigens da espontaneidade natural
(FABRE-GOYARD , 2002). Nesse sentido, segue a ideia de que contra o
poder pessoal, contra o direito divino, contra a ordem natural afirmam a
ordem racional do corpus das regras de direito e atribuem ao Estado do
cálculo, cujo soberano poder provém do contrato social, a pesada e sublime
tarefa de assumir, sob a Constituição, como desejara Rousseau, em instituir
de justiça e de liberdade.
A Constituição, de fato, fixa a distribuição das competências dos
diferentes órgãos do Poder: é o estatuto matricial da institucionalização
que, materialmente, estende-se a todos os campos da vida social (JONAS,
2006). Do ponto de vista político, a Constituição é, portanto, uma proteção
contra os riscos de arbitrariedade e de absolutismo que acompanham como
uma sombra a individualização do poder. A Constituição é a garantia dos
direitos e das liberdades.
Do ponto de vista jurídico, a supremacia da Constituição é a
caracterização do que se chama o “Estado de direito”, não só porque ela
exclui a arbitrariedade individual dos governantes, mas porque, por
comandar a processualidade interna da ordem jurídica, firma-se também
como critério de sua validade. Kant, que compreendeu perfeitamente a
necessidade da subsunção do “direito privado” no “direito público”, a fim
de transformar a “provisoriedade” de sua naturalidade em
“peremptoriedade”, viu, ao mesmo tempo, no “republicanismo” a
soberania da lei suprema.
Na ordem jurídica, cuja pedra angular são as leis constitucionais, o
importante para ele é decifrar a não-subordinação do direito à ética: direito
e moral são formalmente distintos a tal ponto que “mesmo um povo de
demônios” poderia – até mesmo deveria – viver sob uma Constituição. A
consequência é clara: o direito de resistência é uma contradição nos termos.
Impõe-se, hoje, uma constatação: a concepção formalista do direito,
que remete classicamente à racionalidade constitucional, está ameaçada
por uma outra concepção do mundo jurídico. Esta depende menos da
lógica que da prática: tudo se passa como se, no universo jurídico, o fato
tendesse a se igualar ao direito, como se o fundamento da juridicidade
tivesse se deslocado da razão para a experiência, do universal para o
singular. O resultado é claro na perspectiva apresentada: o direito está
sendo processado.
Os princípios fundamentais de coerência sistemática e de hierarquia
das normas que, na via do constitucionalismo, davam à ordem jurídica
sua unidade e sua densidade, hoje estão sob suspeita. No próprio
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funcionamento da ordem jurídica, constatam-se incessantes idas e vindas
entre o direito e o fato. Dessa forma, um ordenamento jurídico tende a se
caracterizar pela passagem do fechado para o aberto, de modo que a
“produção de seus elementos constitutivos, as normas jurídicas, depende
da intervenção de agentes externos” (BERMANN, 1995).
Outro fator importante é a ideia segundo a qual cabe a órgãos
constitucionalmente habilitados promulgar as regras de direito que se
encontram fragilizadas, o que abala a fundação do direito e sua natureza:
sua fundação, pois já não é certo que a velha máxima Jus ex facto non oritur
conserve sua verdade e que seja o direito que cria o direito: sua natureza,
pois o direito já não poderia apresentar-se como um corpus de regras, de
categorias e de conceitos abstratos de alcance mais ou menos geral.
A fisionomia do racionalismo jurídico oriundo da Filosofia das Luzes
francesas perde nitidez: já não pode ter a forma altiva e pura de uma
ordem sistemática; curva-se e se flexibiliza ao sabor das múltiplas e
incessantes relações com seu contexto social.
Os fenômenos sociais e políticos, econômicos e históricos, ao
intervirem como outros tantos elementos determinantes na construção do
direito e nas suas aplicações em sociedade, não só condenariam as regras
jurídicas a uma mutabilidade e a transformações perpétuas, mas
modificariam o caráter da normatividade jurídica. A moderna humanidade
se vê em meio a uma enorme ausência e vazio de valores, mas, ao mesmo
tempo, em meio a uma desconcertante abundância de possibilidades de
construção de processos, que permitem a ampliação da presença legítima
da pluralidade e diversidade no seio social.
Notas
1
Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUCSP. Secretário
Executivo da Associação Nacional de Educação Católica do Brasil/ANEC Professor do
Centro Universitário de Brasília - UniCeub. E-mail [email protected]
2
Milan Kundera descreve a utopia impregnada de racionalidade como o “paraíso de
indivíduos”, vislumbrado pelo romance europeu.
REFERÊNCIAS
BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: CIA das Letras. 1995.
FABRE-GOYARD, S. Os fundamentos da ordem jurídica. Rio de Janeiro: Martins Fontes,
2002.
JONAS, H. O princípio responsabilidade. Rio de Janeiro: Editora PUC-RIO. 2006.
NABUCO, J. A escravidão. São Paulo: Atlas. 1999.
RORTY, R. Verdade e progresso. São Paulo: Manole, 2005.
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DIVERSIDADE CULTURAL E RELIGIOSA NO BRASIL:
ENTRE DESAFIOS E PERSPECTIVAS PARA UMA
FORMAÇÃO DOCENTE
Cledes Markus1
Lilian Blanck de Oliveira2
Introdução
A sociedade brasileira é caracterizada pela diversidade étnica,
cultural e religiosa. Vivem hoje, no território nacional, cerca de 2103 etnias
indígenas, entre as quais, Kaingang, Xokleng, Guarani no sul do país;
Xavante, Bororo, no Centro-Oeste; Baniwa, Tukano, Piratapuia no noroeste
amazônico; Xocó, Fulniô, Kiri no nordeste. Cada uma com identidade e
cultura própria, tradição religiosa diferenciada e representando riquíssima
diversidade.
Convive igualmente um grande número de grupos com culturas e
religiões específicas, formados pelos descendentes de povos africanos, entre
os quais, Daomeanos, Iorubás, Gegês, Kêtus, Bantos, Congoleses, Angolanos
e Moçambicanos. Faz parte também um numeroso grupo de imigrantes e
descendentes de povos de vários continentes com diferentes tradições
culturais e religiosas, como portugueses, espanhóis, ingleses, franceses,
italianos, alemães, poloneses, húngaros, lituanos, egípcios, sírios, libaneses,
armênios, indianos, japoneses, chineses, coreanos, ciganos e latinoamericanos.
Apresenta ainda uma variedade de grupos específicos e singulares,
que formam novas configurações e identidades a partir de uma convivência
intercultural, como: caboclos e cafuzos, entre outros grupos. Um mesmo
indivíduo pode vincular-se a diferentes grupos ao mesmo tempo,
reportando-se a cada um deles com igual sentido de pertença.
Em consequência das especificidades étnico-culturais, os grupos que
vivem no Brasil e formam sua população apresentam os mais variados
recortes linguísticos, religiosos, artísticos, simbólicos e regionais. A
diversidade se apresenta com diferentes cosmologias, organização social,
relação com a natureza, vivência religiosa, valores éticos e projetos de vida.
Essa configuração de construção cultural muito complexa apresenta traços
históricos oriundos das relações desiguais de poder, tecidas sob formas de
exploração e discriminação.
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LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.)
O presente texto busca trazer à roda das discussões algumas falas e
aportes relativos à diversidade cultural e religiosa em trânsito no contexto
social e escolar brasileiro, em interlocução com os desafios que estas lançam
à comunidade educadora, no intuito de contribuir e (pró)vocar estudos,
discussões e pesquisas envolvendo essa temática de abrangência
internacional.
1 Homogeneidade e Igualdade Cultural Brasileira?! Um Discurso em
Telhado de Vidro
Historicamente, a diversidade e complexidade presentes na
construção dos povos e vidas brasileiras foram ignoradas e/ou
descaracterizadas. Atitudes de omissão e/ou invisibilização à diversidade
cultural e religiosa têm múltiplas origens e podem ser identificadas de forma
acentuada em momentos históricos distintos.
Um deles, o período de colonização - um processo impositivo de
homogeneização por parte do Estado com uma cultura dominante de
origem europeia, conduzido por leituras e critérios de superioridade, usava
a justificativa do “civilizar pelo evangelizar” os povos incultos e bárbaros
(RAMPINELLI; OURIQUES, 1999). O nacionalismo exacerbado nos
períodos autoritários da história brasileira (RIBEIRO, 1998) também
organizou e impôs ações de caráter homogeneizador na sociedade, algumas
destas veiculadas e respaldadas pelas gerações anteriores. As ações
governamentais buscavam interpretar e construir um Brasil na perspectiva
da homogeneidade e igualdade étnico-cultural. Neste intento, foram
construídos, instituídos e amplamente divulgados discursos ideológicos em
todos os espaços sociais.
Na esteira dessas práticas, um pensamento foi tomando forma,
ganhando força, discurso e incurso nos espaços e lugares mais diferenciados:
o “mito das três raças”, que descaracterizava e buscava suprimir por
completo a percepção de uma diversidade étnico-cultural brasileira,
buscando decretar a homogeneidade brasileira. Esse “mito” afirmava que
a população, a cultura e a sociedade brasileira foram constituídas através
das influências de três raças: branca (europeia), negra (africana) e a
indígena, que se dissolveram paulatinamente, dando origem a um povo
homogêneo, único, especial e inconfundível.
Segundo Darcy Ribeiro (1979), antropólogo e político brasileiro, as
três matrizes se conjugaram para, num processo de fusão, constituir o
perfil do povo brasileiro. Esse autor salienta a peculiaridade dos traços
uniformes da nação brasileira, embora de origens diversas, ao referendar
que,
[...] apesar da disparidade das matrizes originais e das diferenças ecológicas,
plasmou-se no Brasil uma etnia peculiar: racialmente heterogênea e em pleno
processo de fusão, mas culturalmente coesa pela unidade do idioma, dos
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modos de ação sobre a natureza, das formas de organização social, das
crenças e da visão do mundo. Este foi o processo básico de formação de
todos os Povos-Novos. O que têm os brasileiros de singular decorre das
qualidades diferenciadoras trazidas por suas matrizes indígenas,
africanas e europeias, da proporção particular em que elas se
congregaram no Brasil (RIBEIRO, 1979, 221).
Esse “mito”, vindo com argumentos persuasivos, defendia e ainda
defende (uma vez que ainda circula em muitas leituras e falas sociais) a
mistura como o principal elemento identitário da população brasileira.
Traz a visão de um Brasil miscigenado e mestiço como característica da
identidade nacional. Apresenta uma diversidade de noções problemáticas
em sua fundamentação e que não encontram respaldo teórico. Uma das
noções que o integram é tratar a diversidade étnico-cultural com critérios
raciais. Nessa argumentação se encontra o determinismo biológico, há muito
tempo rechaçado pela antropologia e pela própria biologia.
Segundo DaMatta (1987, p.85), “do ponto de vista biológico, raça é
uma variação genética e adaptativa de uma mesma espécie. Mas na
conceituação social elaborada no Brasil, ‘raça’ é algo que se confunde com
etnia e assim tem uma dada ‘natureza’.” Nesse sentido, o autor acrescenta
que, no Brasil, ao abordarmos as questões da diversidade étnico-cultural
em nosso meio, “o biológico se confunde com o social e o cultural,
permitindo assim, realizar uma permanente miopia em relação à nossa
possibilidade de autoconhecimento.” (DAMATTA, 1987, p.85).
Outra noção problemática é considerar as categorias “europeia”,
“africana” e “indígena”, como dados singulares e homogêneos,
desconsiderando-se toda diversidade étnico-cultural existente em cada uma
delas. E, não por último, difunde-se a noção da mistura apropriada do
negro, branco e índio, que, através de um processo de fusão, vão criar um
‘tipo brasileiro’ com cor, cultura, língua, organização, religião e cosmovisão
única. Segundo DaMatta (1987, p. 81), aí se configura “a antiga noção de
que a ideia de um povo contém em si o postulado básico da identidade e
homogeneidade física, social, cultural e política.
Essa noção, desenvolvida tanto no senso comum quanto em obras
de autores como Darcy Ribeiro (2000) e Gilberto Freire (1998), ao afirmarem
que a sociedade brasileira foi constituída através das influências culturais
de três raças, que, dissolvidas, originaram um povo homogêneo,
descaracteriza e conflita frontalmente com o contexto étnico, social e
cultural brasileiro. Ao divulgar-se uma concepção de cultura uniforme
depreciam-se e velam-se os múltiplos traços que compõem a identidade e
o “rosto” da nação brasileira.
Em termos de ações, esse discurso ideológico foi implantado e
imposto através de políticas de integração nacional, onde as diversidades
eram coagidas a se acomodar/submeter a um panorama nacional,
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caracterizado pela homogeneidade. A escola foi um espaço importante
para a divulgação e aplicação das políticas nacionais de homogeneização
preconizadas no país, através da edição de materiais didáticos, processos
de formação de formadores, abordagens metodológicas, entre outros meios.
É comum, na atualidade, ainda termos acesso a registros orais ou
escritos de descendentes de imigrantes europeus, indígenas, asiáticos e
outras etnias acerca dos sofrimentos vivenciados ao adentrarem o contexto
escolar, onde eram obrigados a “esquecer” sua língua, cultura e crenças,
para adotar a língua e ordem nacional - uma política de assimilação e
homogeneização. As ações oficiais para proceder à homogeneização foram
acompanhadas pela pregação de outra ideia, que se compôs nesse cenário,
que é a do “mito da democracia racial”, que dissimulava o quadro real do
racismo sofrido pelas populações discriminadas. Este mito, analisado por
Roberto DaMatta (1987), refere-se à perspectiva de um Brasil “de braços
abertos”, acolhedor, onde todas as pessoas, etnias e culturas vivem em
igualdade e fraternidade. Assim, na sociedade em geral, discriminações
praticadas com base em diferenças ficam ocultas sob o manto de uma
igualdade que não se efetiva, e coage homens e mulheres para uma zona
de sombras, pontuada por vivências de sofrimento e exclusão.
Esses “mitos” difundidos em dados momentos históricos continuam
sendo (rea)firmados no contexto social e escolar na atualidade. As ideias
de um Brasil igualitário buscam neutralizar e/ou invisibilizar diferenças
culturais, instaurando a subordinação de uma cultura à outra, a
instauração e/ou manutenção de estereótipos dos mais diversos. Objetivam
mascarar as muitas e diferenciadas violências sobre os povos ameríndios,
africanos e os que lhe acompanham no processo formador da nação
brasileira. Referendam práticas de colonização, seja pelas matrizes iniciais
europeias, seja pelas formas transcriadas no decorrer dos processos
históricos, como o caminho necessário para a construção de um relativo
equilíbrio de forças, “harmonia” social e cultural, quando de fato inocula
o desequilíbrio ontológico e social, a perda de referenciais, culturas e
identidades de povos, etnias e culturas.
Essas interpretações conduziram e ainda conduzem a atitudes e
dados estatísticos a dissimular traços, feições, cicatrizes do e no “rosto”
brasileiro em constante (re)construção, gerando preconceitos difusos, porém
efetivos, com inferências diretas e precisas na vida cotidiana das
populações. Incisões de caráter cirúrgico, ora sutis, ora causticantes; ora
ínfimas, ora exacerbadas; ora perceptíveis, ora invisíveis, marcaram e
marcam profundamente as vidas, as histórias, as memórias e as culturas
de homens e mulheres, que habitam este país.
Buscam tecer discursos, mentalidades e atitudes para a leitura e
olhares de um tecido imaginário de cores, pontos e desenhos múltiplos,
porém coesos e homogêneos – harmônicos, cujo ideário perverso busca, de
forma subliminar, abstrair a dignidade, a identidade, a respeitabilidade
do cidadão brasileiro como sujeito.4
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Se, por um lado, existe o discurso à imagem de um Brasil homogêneo,
sem diferenças, camuflando preconceitos e discriminações, por outro lado,
os diferentes grupos étnicos e culturais, articulados em movimentos sociais,
desenvolvem uma história de resistência a padrões culturais que
estabelecem e sedimentam injustiças. O telhado de vidro que acobertava
tais construções gradativamente vai se rompendo e sucumbe a ventos e
impactos de uma realidade que se faz por ouvir, ver e ser.
Esse movimento é fortemente impulsionado pelo contexto da
Declaração Universal dos Direitos Humanos, que assume a importância
do tema da diversidade étnico-cultural em termos globais. A Organização
das Nações Unidas - ONU, preocupada com a conquista da paz mundial,
promove conferências que buscam propostas e iniciativas que visem à
superação do preconceito e da discriminação. Incentiva a contribuição na
construção da democracia, a partir da promoção de princípios éticos da
alteridade, dignidade humana, respeito mútuo, justiça, solidariedade e
diálogo.
A “Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural”5 reafirma
a convicção de que o diálogo intercultural é um caminho para buscar e
garantir a paz, rechaçando-se todo e qualquer choque ou barbárie entre
culturas e civilizações. Propõe que os países assumam grandes linhas para
um plano de ação; que seu texto se torne uma ferramenta para o
desenvolvimento capaz de humanizar as nações, criando ações com
parcerias entre o setor privado e a sociedade civil; que se traduzam estas
iniciativas em políticas inovadoras do desenvolvimento das comunidades
e superem-se concepções fundamentalistas, vislumbrando um mundo
aberto, democrático e solidário.
A Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura - UNESCO reafirmou sua adesão à plena
realização dos direitos humanos e às liberdades fundamentais, proclamadas
na “Declaração Universal dos Direitos Humanos”, apresentando
instrumentos universalmente reconhecidos, entre eles: os Pactos
Internacionais de 1966 relativos aos direitos civis e políticos, aos direitos
econômicos, sociais e culturais.
Como resultado de muitas lutas, foram e continuam sendo
conquistados espaços para a construção de lugares, leituras e olhares às
manifestações diferenciadas com uma legislação específica, no que diz
respeito às peculiaridades e diferenças de grupos sociais, etnias e povos. A
Constituição Brasileira de 1988, pela primeira vez, reconheceu o Brasil
como um país multiétnico e pluricultural, e, a partir disso, estabelece a
discriminação racial como crime; prevê o direito, o respeito e a proteção
das distintas identidades étnicas; e garante o pleno exercício dos direitos
culturais.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN nº 9394/
96, fiel às determinações da Carta Magna brasileira, a partir de seus ditames,
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LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.)
encaminha os enunciados para as construções teóricas, pedagógicas de
forma teórica e pedagógica e técnicas nos contextos formadores do país.
Este édito legal, por sua vez, desencadeia urgências de (re)formulação das
leis subsequentes no Estado da federação, assim como dos documentos
curriculares que as fomentam e efetivam no contexto educativo.
Em relação às histórias e culturas dos povos africanos e indígenas,
a Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008, altera a LDBEN no 9.394, de 20 de
dezembro de 1996, já modificada pela Lei no 10.639, de 09 de janeiro de
2003, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade
da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.
No que se refere ao componente curricular de Ensino Religioso,
historicamente de caráter homogêneo, em grande parte do território
nacional é questionado em sua gênese epistemólogica e metodológica pela
Lei nº 9475/97, que altera e dá nova redação ao artigo 33 da LDBEN e
estabelece o desafio à construção de um currículo e práticas pedagógicas,
que respondam às exigências legais, assegurando “o respeito à diversidade
cultural e religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo”
(BRASIL, 1996).
Nesse sentido, urge a construção de propostas para formação de
docentes, que atendam à diversidade cultural religiosa e busquem a
superação de práticas educacionais com viés da homogeneidade, para
assumir uma perspectiva intercultural, numa atitude de abertura e respeito
às diferentes culturas e tradições religiosas.
2 Diversidade Cultural e Religiosa no Brasil: Desafios a Novos Olhares,
Leituras à Práticas de Formação Docente
O cenário no qual se encontram os estudos e pesquisas relacionados
à diversidade cultural religiosa no contexto escolar e área de conhecimento6
de Ensino Religioso, no Brasil foi alterado a partir de 1997 com a revisão
do artigo 33 da LDB (Lei nº 9.475/97), delegando aos Sistemas de Ensino
da federação a responsabilidade de orientar este componente curricular
quanto à organização de seus conteúdos e à formação de seus professores.
O Ensino Religioso passou a integrar uma discussão em uma esfera
mais ampla: a da diversidade cultural, quando, historicamente até a década
de setenta, era prioritariamente de caráter catequético cristão romano,
excetuando-se alguns Estados da federação com propostas e práticas
ecumênico-cristãs (FIGUEIREDO, 1994). Dessa forma, ainda sob os
impactos de um passado próximo, de mais de 500 anos, encontramos na
atualidade, no Brasil, situações diversificadas para a compreensão dos
aspectos que explicitam a identidade do Ensino Religioso, enquanto área
de conhecimento, no que diz respeito aos seus aspectos estruturais,
funcionais, curriculares e à formação de professores.
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CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS
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O cotidiano escolar e formador é um dos espaços onde,
continuamente, transitam sujeitos e conhecimentos, cujas vivências e redes
de significados se percebem entretecidas com questões que circunscrevem
e indicam a presença do religioso. As diferentes vivências, percepções e
elaborações integram o substrato cultural da humanidade, cujos relatos e
registros elaborados sistematicamente por diferentes grupos sociais se
constituem em uma rica fonte de conhecimentos a instigar, e a desafiar, as
gerações vindouras.
Conhecer significa captar e expressar as diferentes dimensões das
comunidades de forma mais ampla e integral. Nesse sentido, problemáticas
que envolvem questões, como discriminação étnica, cultural e religiosa,
têm a oportunidade de sair das sombras que levam à proliferação de
ambiguidades nas falas e atitudes, alimentando preconceitos, para serem
trazidas à luz, como elementos de aprendizagem, enriquecimento e
crescimento do contexto escolar como um todo (BRASIL, 1997).
De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais - PCNER são requisitos essenciais ao profissional de Ensino Religioso: a constante
busca do conhecimento das manifestações religiosas; clareza quanto à sua
própria convicção de fé, e sensibilidade à pluralidade e consciência da
complexidade sociocultural da questão religiosa. A disponibilidade para o
diálogo, a capacidade de articulá-lo a partir de questões suscitadas no
processo de aprendizagem do educando, a arte de escutar, ser o
interlocutor entre Escola e Comunidade, mediar conflitos e considerar a
família e comunidade religiosa espaço privilegiado para a vivência religiosa
e opção da fé, colocando seu conhecimento e experiência pessoal a serviço
da liberdade do educando, configuram o perfil desejado para este
profissional (FONAPER, 1997).
Na atualidade, os educadores responsáveis pela formação de
docentes do Ensino Religioso, atentos às exigências de um contexto
histórico, político e cultural plural, em constante reconfiguração, vêm se
debruçando em avaliar os processos em desenvolvimento e construção.
Pesquisas, discussões e estudos, que tomem por objeto ênfases, deficiências,
ausências e necessidades percebidas instigam outras formas e possibilidades
de respostas em relação aos diferentes desafios oriundos do contexto
educacional e formador.
Compartilhamos, a seguir, algumas percepções identificadas e
registradas no decorrer das rodas de algumas de nossas pesquisas,
interlocuções e interações como educadoras.. Na provisoriedade desse
alinhavo, objetivamos contribuir para com discussões e reflexões, que
circunscrevem uma formação de docentes, que tenha como pressuposto a
diversidade dos sujeitos, que desvele “mitos” de uma suposta
homogeneidade cultural brasileira e deem espaços para exercícios e
vivências de e em alteridade.
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2.1 Leituras de Totalidade
A LDBEN nº 9394/96 encaminha que “a educação, dever da família
e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de
solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do
educando” (BRASIL, 1996, título I, art. 2º), estabelecendo, desta maneira,
os pressupostos éticos a gerir o processo educativo, assim como o fim último
deste em relação aos seus sujeitos. Essa percepção de totalidade requer
currículos que viabilizem uma formação voltada para todas as dimensões
do ser humano, num processo de íntima relação com as diversidades
presentes no universo que o circunda. Isso propiciará, ao futuro
profissional da educação, um ferramental para leituras ampliadas, de
caráter diferenciado com perspectivas de interações críticas, criativas e
contextualizadas.
Como fazê-lo na atualidade, questiona Miguel Arroyo (1999, p. 147),
se “a visão tecnicista, utilitária e mercantil desqualificou a educação básica,
o papel de seus profissionais e os processos de sua formação”? Ou quando,
segundo Freire (2000, p. 130), “a desconsideração total pela formação
integral do ser humano e a sua redução a puro treino fortalecem a maneira
autoritária de falar de cima para baixo”?
Identificam-se aqui linhas paralelas em direções opostas. De um
lado, encontram-se orientações para propostas de formação de docentes
tendo como pressuposto o desenvolvimento pleno de ser humano e, de
outro lado, práticas formadoras desconectadas dessas premissas. A
conjugação e sintonia entre pressupostos e práticas de formação de
docentes, que incorporem abordagens, conteúdos e metodologias inter e
trans disciplinares minimizarão dicotomias entre fins, objetivos e
formativas, assim como propiciarão um olhar teórico-prático diferenciado
de totalidade de ser humano, cultura, sociedade e educação.
Nas palavras de Andreola (1999 p. 68),
[...] a aventura de compreender os segredos da vida não pode se reduzir, por
isso, a uma tarefa solitária ou ao empreendimento paralelo e estanque das
diferentes ciências. A visão do todo, a perspectiva da totalidade impõe-se
como necessidade. A interdisciplinaridade é, pois, um compromisso ético
com a vida e uma exigência ontológica, antes ainda de se impor como
imperativo epistemológico e metodológico.
Um processo de formação de docentes, atento às questões
mencionadas, deve tecer suas reflexões e práticas pedagógico-didáticas,
percebendo o cotidiano acadêmico como um espaço de construção de
saberes e competências profissionais comprometidas com as
diversidades históricas, culturais e religiosas, que transitam no contexto
escolar e social.
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2.2 Percepção Histórica de Ser Humano e Educação
O ser humano, segundo Freire, de natureza finita e inconclusa,
percebe-se condicionado por fatores culturais e sociais aos quais se encontra
sujeito, mas jamais sendo determinado por eles, pois tem a história como
tempo de possibilidade e superação. Movido pela curiosidade, indaga,
questiona, busca formas de ser mais e melhor, faz e constrói história
(FREIRE, 2000).
Enquanto ser histórico, é herdeiro das gerações passadas, construtor
e interventor nas gerações onde se encontra inserido e responsável direto
pelas que o sucederão. Todo educador é primeiramente um homem e uma
mulher que, antes de ser educador, foi educado e continuamente se educa
no cotidiano. Traz em seu corpo as marcas indeléveis da construção de
sua própria história. História como ser social, religioso, familiar, político e
acadêmico. Essa construção é um processo lento, imperceptível a olhos
menos avisados, mas que, na coleta de dados mil, vai tecendo a teia que se
configura na sustentação perene de toda uma existência e um agir
(OLIVEIRA, et. al., 1997).
De modo formal e informal, o ser humano vai incorporando
conceitos que, no decorrer de sua vida, serão decodificados e ancorados a
outros esquemas que, por sua vez, irão construindo o ser educador. Segundo
Freire (1993, p. 87), “[...] não nasci, porém, marcado para ser um professor
assim. Vim me tornando desta forma no corpo das tramas, na reflexão
sobre a ação, na observação atenta a outras práticas ou a prática de muitos
sujeitos”.
Propostas de formação de docentes, que omitirem ou minimizarem
leituras e percepções de ser humano como ser histórico, e a visão do processo
educativo também como histórico inibirão possibilidades de (re)construção
de concepções epistemológicas e pedagógicas amalgamadas no decorrer
de suas vidas.
Para Catani (2000, p. 34) e colegas pesquisadoras,7
[...] as concepções sobre as práticas docentes não se formam a partir do
momento em que os alunos e professores entram em contato com as teorias
pedagógicas, mas encontram-se enraizadas em contextos e histórias
individuais que antecedem, até mesmo, a entrada deles na escola, estendendose, a partir daí, por todo o percurso de vida escolar e profissional.
A utilização de metodologias que incorporem histórias de vida e
autobiografias como uma das formas de acesso, desenvolvimento e/ou
decodificação de situações ou paradigmas postos no processo formador,
exercita a eticidade ontológica, percepções de totalidade e uma profunda
reflexão epistemológica. Implica, outrossim, assumir que ninguém forma
ninguém e que a “formação é inevitavelmente um trabalho de reflexão
sobre os percursos da vida” (NÓVOA, 1998, p. 116) e, por isso mesmo,
essencialmente histórica.
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2.3 Relações e Interações Cotidianas
O ser humano, um todo multifacetado, porém um conjunto
indivisível, inconcluso, condicionado, mas não determinado historicamente,
com capacidades de intervir, criar e recriar, constitui-se num ser de relações,
em relação e constantes interações com o(s) outro(s), a natureza e o
Transcendente (FONAPER, 1997).
É no estar “face a face”8, que o ser humano se exige e é exigido,
descobre-se a si mesmo. Este relacionamento é definido por Ebeling como
coram9 e nele confundem-se as formas como o ser humano se encontra
com os outros, como estes se encontram com ele e como ele se encontra
consigo mesmo. Esse movimento lhe constrói e constitui humanidade, na
medida que percebe e percebe no outro a sua provisoriedade, inacabamento,
necessidades, historicidade, que clamam por superações conjuntas, movidas
ambas pela esperança que desaloja, desinstala e propõe a construção e
percepção do outro.
O processo de formação de docentes para o Ensino Religioso,
enquanto agente fomentador de reflexão, construção e intervenção
históricas, é constrangido a um diálogo permanente em suas práticas
cotidianas. Serão suas leituras de mundo, ser humano, sociedade,
educação, cultura, sagrado em contínuos processos de (re)construções,
que encaminharão a qualidade do processo educativo.
Segundo Freire (1994), para a efetivação de um diálogo superador
faz-se necessário que ambos, educador e educando, tenham muito amor
ao outro, respeito no ouvir, muita troca, partilha de saberes, humildade
no dar e receber, negar e acatar. Torna-se fundamental, nesse processo, a
fé nos homens e mulheres parceiros e cúmplices nesse projeto de
construção, assim como a prática da esperança com vistas à concretude
do mesmo, compostos pelos seus diferentes e iguais.
Uma sociedade gerida pela competição instaura mecanismos de
poder e hierarquização, que premiam o conhecimento e a força em
detrimento de relações e sentimentos/sensibilidades, entre elas a
gratuidade, identificados enquanto fraquezas e/ou meios para um fim.
As práticas desenvolvidas sob tal paradigma são altamente excludentes
na perspectiva de um paradigma homogeneizador.
Os processos de formação em seus níveis e modalidades necessitam
rever suas práticas educativas, a partir de leituras cuidadosas das relações
e interações (des)envolvidas nos mesmos. Arroyo aponta nessa direção ao
questionar os tempos e espaços de formação a que são ou foram submetidos
os docentes, de forma particular os de Educação Básica. A partir de sua
prática formadora cotidiana, o autor revela,
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[...] que a maioria dos aprendizes de magistério, de licenciatura e de pedagogia
trabalha e estuda, tem pouco domínio de seu tempo de estudo, passa o mínimo
de tempo nos centros, [...] são frequentadores de disciplina, em tempos
espremidos, corridos, [...] encontrando-se nos espaços de formação estabelecem
interações sociais e culturais, profissionais e afetivas, que tendem a fechar o
grupo, a reproduzir expectativas, perfis, traços e imaginários [...] os mais
iguais em classe, gênero e raça (ARROYO, 2000, p. 130)
Nesse contexto, perguntamo-nos: como se (pró)vocariam relações
e interações de cunho pedagógico com vistas a uma reflexão crítica sobre
a práxis, que estabelece significados numa percepção de formação de
docentes, que percebe o ser humano e a vida de forma integral, inserido
com possibilidades de intervenção na história, desafiado a vivenciar relações
conduzidas em processos de alteridade? Como subverter conceitos e
práticas, que postulam enunciados de homogeneidade e igualdade de
direitos, acesso, culturas, etnias e credos com vistas à promoção de bem
coletivo imaginário?
Pesquisas e estudos revelam a presença de possibilidades históricas
da construção de relações emancipadoras, a partir do exercício de
produções, reflexões e trocas, de saberes e conhecimentos nas múltiplas
relações e interações de um projeto de formação docente, inserido no atual
contexto social brasileiro, que se perfila contraditório, complexo e
excludente.
2.4 Sensibilidade e Compromissos Éticos
Numa sociedade fragmentada, competitiva, regida por um sistema
político neoliberal, intervenções educacionais e formadoras que objetivem
coerência por parte de seus autores, transparência de suas práticas
pedagógico-didáticas e pressupostos vinculados à promoção e emancipação
de todos são uma força que se propõe a caminhar em sentido contrário ao
movimento posto.
O desenvolvimento de sensibilidade e compromissos éticos, que
integram a diversidade de culturas e expressões religiosas e levam o ser
humano a buscar, ouvir, acolher e conferir dignidade ao outro constituemse em premissa, que, por sua vez, reclama um compromisso corporificado
em ações cotidianas. Freire (1995, p. 44) credita seu apreço em ser gente
precisamente ao fato de ser portador de uma responsabilidade ética e
política em relação ao mundo e aos outros. Para ele, a educação é um
movimento que, sozinho, não tem o poder de transformar a sociedade,
mas sem ele tampouco a sociedade tem condições de mudar.
Na introdução da coleção “Docência em formação”, os autores
argumentam que o exercício do magistério requer que seus agentes sejam
portadores de conhecimentos científicos, pedagógicos e educacionais, bem
como capazes de indagação teórica e criatividade para encarar as situações
por vezes ambíguas, incertas, conflituosas, discriminadoras e até violentas,
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presentes nos contextos escolares e não escolares. Para interagir com essas
situações, “o profissional da educação necessita da competência do
conhecimento, de sensibilidade ética e de consciência política” (MANFREDI,
2002, p.15).
Diante do atual, complexo e excludente quadro mundial, vozes se
elevam em todo o planeta em defesa da construção de uma ética que
encaminhe vivências fraternas e solidárias e espírito de alteridade. As
religiões e a educação são pontas do iceberg a demarcar espaços vitais a
serem mobilizados. Hans Küng (1992) enfatiza que não haverá futuro de
vida no planeta sem o exercício de uma ética mundial, um estado de paz
no mundo. A educação é apontada como uma das formas basilares a
inibirem barbáries como a de Auschwitz10 e possibilitarem a assunção de
seres humanos, enquanto sujeitos construtores e interventores históricos,
capazes de promover vida em constantes processos de libertação.
É muito mais que exercitar a empatia, ou estar com o outro, é ser
com o outro. Não seriam estas as pistas seguras a apontar caminhos
desafiadores para mobilizar e (re)orientar propostas e práticas de formação
docente de cunho diferenciado, no contraditório, complexo e excludente
contexto educacional brasileiro?
2.5 Participação da Família na Formação de Docentes?!
Esta reflexão-ação se apresenta como desafio numa época e contexto
onde cada vez mais crianças e adolescentes crescem e se desenvolvem sob
a tutela da escola. A responsabilidade dos famíliares e do Estado, no tocante
à oferta de uma educação de qualidade para seus filhos e cidadãos,
obrigatoriamente deve passar pela formação profissional destes.
Pesquisas apontam para uma histórica ocupação do Estado
relacionada à educação de seus cidadãos, ora por questões ideológicas
maquiadas sob o beneplácito de cuidados para com sua polis, ora como
pressão de situações e órgãos externos de coerção social.11 Em função desses
pressupostos, constata-se uma política de formação docente que, ainda
atrelada a tais mecanismos, acaba por gerir profissionais que reproduzem,
no cotidiano, representações apreendidas nos tempos/espaços do exercício
formador (ARROYO, 2000).
Historicamente, são reduzidos os registros de propostas e referências
de governos, academias ou responsáveis pela formulação de projetos de
formação de docentes, que incluíram ou incluem em sua pauta de consultas
os interesses e saberes da família e/ou responsáveis pelos educandos, em
relação ao perfil dos profissionais a serem formados para interagir e
orientar a educação dos cidadãos. Instâncias como documentos oficiais,
consultas do mercado profissional e interesses de caráter filosófico-político
são as que, em grande parte, definem as diferentes propostas de formação
docente.
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Lutero, educador e reformador religioso do século XVI, desafiou os
pais e a sociedade alemã a se envolverem com as questões relativas à
formação dos educadores e dos currículos escolares para seus filhos.
Também os comissionou às tarefas pertinentes à educação dos filhos,
cobrando-lhes igual responsabilidade de ensino e acompanhamento de
sua educação (LUTERO, 1995).
Nesse sentido, é pertinente o questionamento: numa sociedade
regida por um código democrático, quais e como se interpretam e efetivam
os pressupostos à (in)/(ex)clusão do grupo diretamente interessado e
responsável pela educação de crianças, adolescentes e jovens, como um
elemento participativo na elaboração de propostas e/ou ações de formação
de docentes?
2.6 Currículo de Formação de Docentes Comprometido com a Vida
Solidária
Muitas são as definições sobre currículo e oferecer uma de validade
e aceitação de cunho universal torna-se extremamente dificultoso e
inoperante, uma vez que cada uma dependerá de marcos e perspectivas
variáveis aos quais se encontrará sujeita. Contudo, segundo Sacristán
(1998), é importante considerar em qualquer conceitualização e discussão
sobre currículo, que este serve para oferecer uma visão da cultura que se
dá nas instituições formadoras; entendido como um processo
historicamente condicionado, mas não determinado; um campo no qual
interagem reciprocamente ideias e práticas. Por se tratar de um projeto
elaborado culturalmente, pode condicionar e/ou limitar o trabalho docente,
necessitando, portanto, de uma pauta com diferentes graus de flexibilidade
e mediações.
O currículo de uma proposta de formação de docentes tem a
capacidade de encerrar, em si, pontos estratégicos para a reforma ou
manutenção de um determinado status quo educacional. Entre estes,
encontram-se os referenciais filosóficos, epistemológicos e pedagógicodidáticos, que deveriam direcionar a escolha dos profissionais, materiais
didáticos, atividades, posturas e relações mediadoras no processo. Essa
visão extrapola o conceito de currículo como mera especificação de temas
e conteúdos de todo tipo, explicitados num documento repleto de objetivos
e planos.
Para Sacristán (1995, p. 86), currículo,
[...] é a consequência de se viver uma experiência e um ambiente prolongados
que propõe - impõe - todo um sistema de comportamentos e de valores e não
apenas de conteúdos de conhecimento a assimilar, [...] a soma de todo o tipo
de aprendizagens e de ausências que os alunos obtêm como consequência de
estarem sendo escolarizados.
A presença de diversas culturas, saberes e de conhecimentos num
sistema educacional exige uma tomada de consciência na definição e
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encaminhamento de suas diretrizes curriculares. As singularidades dessas
situações, denominadas por Sacristán (1995) como multiculturais, criam
dificuldades quanto à disponibilidade de esquemas conceituais e modelos
pedagógicos válidos, que extrapolam de certos contextos para outros, indo
muito além da mera clarificação de um conjunto de objetivos e ideias. Na
atualidade, a discussão e o pensamento educacional em relação a essas
questões encontram-se ainda numa fase embrionária, decorrência da
educação ocidental secularizada e unicultural, que, de forma abrangente,
aciona seus mecanismos “extracurriculares” de propagação e consequente
perpetuação dos estereótipos culturais e homogeneizadores de crenças e
valores sobre a identidade dos diferentes povos, nações, religiões e culturas.
Urge considerar e efetivar mudanças nos pressupostos
epistemológicos e pedagógicos, buscando construir propostas formadoras
que veiculem a complexidade das culturas e das experiências humanas e
conduzam à discussão, reflexão e encaminhamento de processos e práticas
formadoras e educativas, comprometidas radicalmente com a diversidade,
num contexto marcado por desigualdades, singularidades e diversidades.
As diferentes “vivências curriculares” revelam as reais
intencionalidades e possibilidades de um projeto e/ou ação formadora. A
organização curricular de um curso pode ser um meio que relaciona teoria
e prática no aprofundamento de interações geradoras de conhecimentos,
mas são as vivências deflagradas que constroem, num processo contínuo
de (re)construção, os envolvidos no exercício formador.
O combate às diferenças é próprio de uma sociedade pautada por
uma política de competição e exclusão, pois estas são guiadas pela
intolerância e descaso aos diferentes regidos por um processo de
globalização, que longe de suas falácias doutrinárias de preocupação e
suporte para com todos, visa o monopólio (pelo exercício da privatização)
dos mais fortes, conforme denuncia Carlos Alberto Torres (1995).
Para Suaréz, esse lastro organizacional da sociedade atinge de igual
modo os encaminhamentos e processos formadores de docentes,
manifestando ingerências próprias de um currículo pautado por princípios
educacionais neoliberais em detrimento das reais necessidades da escola,
predominantemente a pública. Isto se dá, de acordo com o autor, quando,
[...] um dado grupo social que, em junção de relações de poder favoráveis,
prioriza a inclusão hierarquizada de certos conteúdos e valores (próprios)
como se fossem objetivamente e universalmente válidos e legítimos, em
detrimento de outros (alheios), aos quais desqualifica ou ignora (SUARÉZ,
1995, p. 265).
Nessa perspectiva, a presença de diversas culturas com suas
diferentes expressões de ordem linguística, artística, religiosa, entre outras,
num sistema educacional exige uma tomada de conciência e constantes
(re)flexões sobre os encaminhamentos e elaboração de suas diretrizes
curriculares. Estas são algumas das questões, que obrigatoriamente devem
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perpassar uma reflexão mais acurada sobre os pressupostos curriculares
de um processo de formação docente para o Ensino Religioso, inspirado
“nos princípios de liberdade e solidariedade humana”, (BRASIL, 1996,
art. 2º), inserido num projeto de educação superior, que tem como uma de
suas finalidades “estimular o conhecimento dos problemas do mundo
presente, em particular, os nacionais e regionais, prestar serviços
especializados à comunidade e estabelecer com esta uma relação de
reciprocidade” (BRASIL, 1996, art. 43º, VI).
2.7 Pressupostos Epistemológicos e Metodológico-Didáticos
A opção e a utilização de pressupostos epistemológicos e
encaminhamentos metodológico-didáticos coerentes entre si, com as
especificidades do projeto formador e necessidades, limites e possibilidades
dos estudantes na pluralidade de situações e aspectos do contexto
acadêmico, visando promover uma aprendizagem com sentido e
significativa, talvez sejam os maiores desafios para uma qualitativa
efetivação da proposta formadora. Num primeiro momento, implica
conhecer o grupo de pessoas para o qual a proposta de formação se destina;
suas expectativas, interesses, limites, possibilidades, saberes, conhecimentos,
relações, atividades cotidianas, entre outros pontos. Implica, outrossim,
conhecer profundamente o projeto de formação a ser desenvolvido em
relação a seus pressupostos, objetivos e especificidades, enquanto área(s)
de conhecimento. No entrecruzamento dessas informações, obter-se-á
indicativos a direcionarem a escolha e a utilização de pressupostos
epistemológicos e encaminhamentos metodológico-didáticos para a
efetivação das práticas de formação de docentes.
Participar desse movimento exige de seus articuladores
(res)significar pensamentos, valores, posturas, sentimentos, imaginários,
autoimagens. Exige redefinir competências, práticas e capacidades de fazer
escolhas. Propõe outro sentido e significado para o exercício formador e
para a própria existência humana.
Muitas propostas de formação de docentes se configuram, na
atualidade, a partir dos referenciais e reflexões de teóricos e educadores
preocupados com essas questões. Considerando a elaboração de
conhecimentos e diferentes conjugações entre saberes práticos e teóricos
no cotidiano do processo de formação docente, o professor de Estudos
Urbanos e Educação Donald Schön propõe, sobre a formação de
profissionais reflexivos12, um novo design13 para o ensino e a aprendizagem.
Schön (1992), alicerçado no pensamento de John Dewey, organiza
uma proposta de reforma educativa na área de formação de docentes,
tomando por princípio o fator “reflexão-na-ação” e “reflexão sobre a
reflexão-na-ação”, enquanto chave que acessa e (de)codifica os mecanismos
de formação/reprodução postos pelas instituições formadoras.
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O autor situa a questão nas duas formas diferentes de se considerar
o conhecimento, a aprendizagem e o ensino: a noção de “saber escolar” e
a noção de “saber tácito”. Para Schön (2000, p. 81), “o saber escolar se
pauta pela onisciência do conhecimento que os professores supostamente
possuem para transmitir aos acadêmicos, na “visão dos saberes como fatos
e teorias aceitas, [...] significando uma profunda e quase mística crença
nas respostas exatas”. O saber tácito ou conhecimento na ação é tido como
um conhecimento espontâneo, intuitivo, experimental, que se (re)vela nas
circunstâncias instigadoras e emergentes do cotidiano, sugere
possibilidades, descortina horizontes, provoca diálogos e encaminha a um
conhecimento que se dá na ação, pela reflexão de e para as questões postas.
Para o autor (1992), um professor reflexivo se permite ser
surpreendido com o que o estudante faz, reflete sobre a questão, procura
compreender a razão de sua surpresa, reformula o problema suscitado
pela situação, formula hipóteses e aplica-as, investigando possibilidades
de compreensão ou superação da questão posta. Essa reflexão que se
processa no decorrer da ação nem sempre se vale de palavras. Através do
processo de reflexão-na-ação, o professor reflexivo poderá chegar a discernir
entre a compreensão figurativa de um estudante e a formal de outro, assim
como valorizar e encorajar a confusão destes e a sua própria confusão,
pois é impossível aprender sem ficar confuso. Além do exercício da reflexãona-ação, Schön desafia o professor a fazer uma reflexão sobre a sua
reflexão-na-ação, ou seja, olhar retrospectivamente sobre a sua prática
docente no cotidiano, observando, descrevendo e (res)significando o seu
devir educativo.
Freire também advoga um amplo processo de reflexão sobre a prática
dos docentes, visando desocultar formas de opressão, levando-os a se
perceberem enquanto seres oprimidos e/ou opressores. O autor enseja
uma formação autêntica que considera as situações-limite de docentes e
discentes, buscando a sua superação pelo processo de conscientização. É
uma reflexão crítica sobre a práxis, que estabelece significados e passa a
ser compreendida como compromisso ético diante do ser humano e da
vida como um todo.14
O aspecto reflexivo, enquanto pressuposto epistemológico em um
processo de formação de docentes, é de importância basilar para a efetivação
de uma aprendizagem com sentido e significativa para todos os envolvidos.
No entanto, será a coerência, profundidade e íntima relação entre os
pressupostos epistemológicos, os encaminhamentos metodológico-didáticos
com as necessidades, expectativas, possibilidades, diferentes leituras de
mundo, sociedade, cultura e educação em políticas públicas de formação,
doscentes e estudantes, que encaminharão o grau de qualidade e criticidade
da reflexão e consequentes aprendizagens no processo formador.
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2.8 O Exercício do Diálogo
Um processo de formação de docentes comprometido com práticas
metodológico-didáticas cotidianas, numa perspectiva de formação inicial
e continuada, precisa ter clareza sobre a relevância e exata compreensão
da presença do outro no exercício educativo. Este outro difere do grupo
ou na relação pessoa a pessoa, ou seja, aquele que anda diferente, que fala
diferente, que vê o mundo com outros olhos, que tem cor da pele diferente,
que crê de modo diferente, que deseja e se identifica de outro modo, que
pertence a outra cultura, a outra geração, outra etnia. Esse outro, percebido
como “presença/presente”, presente que não é invólucro, mas conteúdo.
Presença, enquanto ser e estar ali, em sua historicidade, provisoriedade,
inconclusão, limitação, busca em sua digna humanidade (OLIVEIRA, et.
al., 2007).
Uma das muitas diferenças presentes no contexto educacional está
relacionada com a questão religiosa, originada na diversidade cultural
própria dos diferentes grupos de humanos. Ela envolve toda uma gama
de relações, interações e conexões, associada a outras questões, que movem,
facilitam ou emperram o processo educativo como um todo.
É fundamental, que os diferentes estágios, momentos e espaços para
formação de docentes tratem com urgência desse assunto, com toda a
seriedade conferida aos demais conteúdos curriculares. Como
anteriormente refrendado,, não se trata de acrescentar meramente alguns
conteúdos sobre diversidade cultural religiosa ao projeto formador, ou seja,
incluir algumas perspectivas visando suprimir e ou minimizar certos
estereótipos em função de algumas situações delicadas a integrar o cotidiano
educativo (SACRISTAN, 1995). Trata-se, sim, do desenvolvimento de uma
aquilatada formação, também nessa área do conhecimento, visando à
construção de uma prática pedagógica subsidiada pela sensibilidade diante
de qualquer discriminação religiosa no trato cotidiano, pelo respeito à
identidade na alteridade dos diferentes e suas opções de fé, pela admiração
percebida na delicadeza da tessitura, no encontro com as diferentes
expressões religiosas, pela possibilidade de descoberta das muitas
afinidades entre os diferentes, pela conscientização do educador de se
flagrar também um diferente num universo de diferentes.
Em texto escrito por solicitação do FONAPER, por ocasião da
elaboração dos PCNER, o rabino Henry Sobel (1996, p. 1) assim se expressa:
Infelizmente não sei qual é a cura para a intolerância, o radicalismo, o
fanatismo, o fundamentalismo religioso. Mas sei que para evitá-los é preciso
cultivar o respeito mútuo entre os seres humanos. [...] O que se faz necessário
não é tolerância, e sim um respeito de reverência, reverência pela
diversidade, diversidade pelas crenças alheias. É somente esta reverência,
este profundo respeito mútuo, que pode conduzir-nos à paz.
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O diálogo, na concepção de Freire, é um espaço interativo e educativo
que propicia e encaminha a libertação comunitária. Nesse exercício, saberes
diferentes vão sendo socializados, revendo situações, limites, posturas,
decisões, num movimento que atinge, emociona, desaloja e desafia o
individual e o coletivo, onde o objetivo e o subjetivo se casam numa dança
em que o corpo expressa o conflito e o desejo do surgimento de uma nova
consciência. Nesse lugar de encontro, para ele, “não há ignorantes
absolutos, nem sábios absolutos: há homens que em comunhão buscam
saber mais” (FREIRE, 1987, p. 81), homens e mulheres que na
(re)apropriação de suas palavras e significados vão sendo mais,
conhecendo-se e reconhecendo-se sujeitos e agentes da e na história.
Os PCNER elegem o diálogo enquanto processo para o cultivo dessa
reverência no processo educativo. Estabelecem que o Ensino Religioso tem
a função de garantir que todos os educandos tenham a possibilidade de
estabelecer diálogo. E, como nenhuma teoria sozinha explica completamente
o processo humano, é o diálogo entre elas que possibilita construir
explicações e referenciais, que escapam do uso ideológico, doutrinal e
catequético (FONAPER, 1997).
Atividades de formação de docentes visando conhecer, discutir,
aprender a encaminhar questões pertinentes ao religioso, passam
necessariamente pelas muitas concepções de ser humano, sociedade,
educação, cultura e sagrado; pelas diferentes percepções de história e
processo educativo; pelas diferentes relações entre os seres humanos; pela
sensibilidade e compromisso ético de todos os envolvidos e, portanto, exigem
muitos e diferentes diálogos. Diálogos que buscam a graça da convivência
entre pessoas de leituras e concepções religiosas diferentes, não em
decorrência de suas semelhanças, mas com as suas diferenças,
Pesquisas, seminários, trabalhos, filmes, documentários, avaliações
são algumas entre muitas atividades que buscam contribuir com o processo
formador nos seus diferentes níveis e espaços. Os autores e obras escolhidos
são de suma importância; a organização das atividades e qualidade dos
docentes, fundamental; a diversidade de abordagens um fator estratégico;
a opção por uma metodologia participativa, crítica, criativa e prazerosa,
um requisito elementar; possibilidades de trocas, uma necessidade; mas,
dialogar com e em saber e amor é o exercício que possibilita (des)velar e
(re)construir tramas e tessituras do processo educativo em constantes
exercícios de e em alteridade.
Enquanto os processos de formação de docentes apenas sugerirem
o diálogo para as práticas educativas, debaterem exaustivamente sobre
diferentes formas de diálogos, ensinarem passos metodológicos para a
efetivação do diálogo no ambiente escolar, mas não exercitarem o diálogo
no cotidiano pedagógico formador, poucas posibilidades existirão de
práticas dialógicas em relação aos diferentes. Para Freire (1995, p.74),
dialogar não se restringe a uma abordagem metodológica; é, antes de tudo,
uma ferramenta epistemológica.
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É no exercício do diálogo com o diferente que o ser humano gesta a
possibilidade de se flagrar também como um diferente e como outro
diante de alguém outro. Quando o eu e o outro se percebem, nasce a
ética. Dialogar é exercitar essencialmente o ouvir; é conhecer o outro em
diferentes espaços e situações; é buscar compreender na alteridade; é
respeitar os costumes e dizer o que precisa ser dito com palavras que
soam serenas; é usar de delicadeza, respeito, humildade, ternura, muita
empatia e, acima de tudo, olhar o outro com o olhar da afetividade, do
amor. Dialogar não é falar do outro, sobre o outro, dialogar é falar com o
outro (FREIRE, 2000).
Um processo de formação de docentes com vistas à construção de
educadores comprometidos com a vida numa perspectiva de diversidade
deverá passar inicialmente e impreterivelmente pelo exercício do diálogo,
visando criar lastro e competências para o transcender de diferenças
discriminatórias, processos homogeneizadores e invisibilização de
conteúdos na proposta que o organiza e sustenta.
Considerações Finais: Reunindo Alguns Traços
Uma formação de docentes conduzida em diálogo e
consubstanciada com a presença das diversidades, que encoraje
posturas onde o gosto da pergunta, o deleite no ouvir o outro, a paixão
de saber com o outro, movida pela curiosidade em (des)cobrir, pela
alegria de criar e o prazer de conviver nas e com as diferenças constitui
a liturgia de um processo libertador e inovador nas vidas dos que ali se
descobrem e se encontram sujeitos, propõe-se, enquanto permanente
estudo e pesquisa crítica, a ser dialógica e consciente do e no universo
educativo. O caráter de diversidade cultural e religiosa em um processo
de formação de docentes desafia a extensão, multiplicidade e qualidade
das práticas cotidianas empreendidas, que transcendem os tempos e
espaços institucionais, processos reducionistas e cristalizados
historicamente.
Estudos, pesquisas, discussões e reflexões, que circunscrevem uma
formação de docentes, que tenha como pressuposto a diversidade dos
sujeitos e culturas que os constituem e com os quais interagem em suas
práticas, requerem a construção de outras epistemologias e
metodologias, assim como outras organizações curriculares. Quebrar o
ritmo posto é muitas vezes “pagar um preço alto pela coerência entre o
que se faz e o que se diz, o que se escreve. A coerência do formador e
do educador não se limita à atividade docente” (GADOTTI, 1989, p.
98); transcende o espaço educativo formal e se encarna no cotidiano
que o constitui.
Ousemos fazê-lo?!
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Notas
1
Mestra em Educação pela Fundação Universidade Regional de Blumenau – FURB/SC.
Especialista em Antropologia pela Pontifícia Universidad Católica del Peru – PUC/Lima/
Peru. Coordenadora do Conselho de Missão entre Índios - COMIN/IECLB-RS. E-mail>
[email protected]
2
Doutora em Teologia – Área: Educação e Religião pela Escola Superior de Teologia/ESTRS. Pegadoga e Especialista em Séries Iniciais e Educação Pré-Escolar. Docente e pesquisadora
no Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional da Universidade Regional de
Blumenau. Líder do Grupo de Pesquisa Ethos, Alteridade e Desenvolvimento - GPEAD. Email: [email protected].
3
Consulte o site do Instituto Socioambiental - ISA para ver dados da história, cultura e
localização de todos os povos indígenas no Brasil: www.socioambiental.org/.
4
Sujeito é a categoria usada por Freire para definir homens e mulheres que, libertos de sua
condição de oprimidos, a partir de um processo de educação progressista, libertam-se e
libertam seus pares, assumindo uma postura de compromisso diante da vida, dos outros
e de si próprios. Leia-se a obra de referência Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire,
traduzida em muitas línguas. É leitura obrigatória para quem concebe o ato educativo
como um devir/compromisso ético dos seres humanos para a construção de uma sociedade
que prime pela dignidade conferida aos seus cidadãos.
5
A Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, assinada e aprovada por unanimidade
em Paris, no dia 2 de novembro de 2001, na 31ª Reunião da Conferência Universal da
UNESCO, realizada dois meses após a queda das Torres Gêmeas, em Nova York (11 de
setembro de 2001).
6
De acordo com a Resolução nº 02/98 da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional
de Educação do Brasil, a Educação Religiosa é área do conhecimento, na forma do artigo 33
da LDBEN.
7
As pesquisadoras integram o Grupo de Estudos “Docência, Memória e Gênero”, da
Faculdade de Educação da USP/FEUSP. O grupo desenvolve pesquisas e práticas de educação
continuada com educadores da rede de ensino público, contando com trabalhos publicados
no Brasil e no exterior.
8
“Face”, “cara”, “rosto” se diz em hebraico panim, em grego prósopon (de onde vem em
latim persona). Dussel, filósofo, historiador e teólogo leigo latino-americano diz que
“quando estou com meu rosto frente ao rosto do outro na relação prática, na presença de
práxis, ele é alguém para ele. O ‘face a face’ de duas pessoas ou mais pessoas é ser pessoa”
(DUSSEL, 1994, p. 19).
9
De acordo com Ebeling (1988), a preposição latina coram usualmente carrega o
significado de “diante de”, em sentido espacial, mas que se torna insuficiente. A partir
da etimologia, o significado mais apropriado seria “face a”, apresentando termos
equivalentes de estruturas etimológicas iguais, tanto no grego como no hebraico. Para
o autor, a percepção do “face a” significa o mesmo que “na presença de”. Isto constitui o
entendimento de que “algo é definido como tal não em si, mas na sua relação para fora,
para com o outro, ou melhor: a partir do outro”10. Na presença do outro, o ser humano
é exigido por ele e vice-versa. Ambos se encontram na presença um do outro,
implicando um olhar de natureza ambivalente; ou seja: ativo (o momento de olhar) e
passivo (o momento de ser olhado).
11
12
Leia-se interessante colóquio entre Theodor Adorno e Helmut Becker, transmitido em
programa radiofônico na Rádio de Hessen, na Alemanha, que versa sobre “a educação
contra a barbárie”. Este se encontra transcrito integralmente na obra de Theodor W.
Adorno (2000, p. 155-168).
A partir de 1759, já existem referências sobre o surgimento do ensino público brasileiro
e sobre a precariedade da oferta de corpo docente do mesmo (RIBEIRO, 1998).
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13
14
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PIMENTA (2002) analisa a apropriação do conceito “professor reflexivo” no Brasil, seus
desdobramentos na área de formação de professores, limitações históricas e contextuais,
apontando para a necessidade de políticas públicas para sua efetivação e ampliação
conceitual.
O autor usa esta expressão própria ao contexto das artes, uma vez que sua proposta
educativa decorre de observações e interações com cursos de arquitetura.
Com sua obra “Pedagogia do oprimido”, Freire subsidia uma verdadeira revolução
político-educativa. Suas bases essencialmente antropológicas e políticas dão sustentação
ao processo gnosiológico que se parteja pelo exercício de um diálogo superador. Em sua
obra “Pedagogia da autonomia”, Freire discute os saberes necessários à prática educativa,
intrinsecamente conectados às práticas de formação docente, necessárias para o
cumprimento de tal atividade.
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_____. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
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4
ENSINO RELIGIOSO EM SANTA CATARINA: EXERCÍCIOS
NA PERSPECTIVA DE UMA EDUCAÇÃO INTERCULTURAL
Adecir Pozzer1
Elcio Cecchetti2
Simone Riske-Koch3
Não fomos educados para olhar pensando o mundo, a
realidade, nós mesmos. Nosso olhar cristalizado nos
estereótipos produziu em nós paralisia, fatalismo, cegueira.
[...] Também não fomos educados para a escuta. Em geral não
ouvimos o que o outro fala; mas sim o que gostaríamos de
ouvir. Neste sentido imaginamos o que o outro estaria
falando... Não partimos de sua fala; mas de nossa fala interna.
Reproduzimos, desse modo, o monólogo que nos ensinaram
(FREIRE WEFFORT, 1996, p. 10).
Palavras Iniciais
A trajetória da cultura ocidental hegemônica é marcada por uma
espécie de autocontemplação da sua própria “superioridade” ética, política,
econômica e cultural. Esta superioridade foi justificada das mais diversas
formas, desde a narrativa religiosa que afirmava a superioridade do Deus
Cristão sobre todos os outros, até a sofisticada narrativa filosófica que
colocou o projeto da Modernidade como sendo a realização na história do
próprio espírito universal, como afirmava Hegel.
A Modernidade começou com a afirmação cartesiana da ciência
que representava o mundo e se constituiu pela afirmação da autoridade
do pensamento. O mundo tornou-se um fato produzido pela racionalidade
europeia. Pensar o mundo como fato, sem levar em conta os pressupostos
de sua constituição, é continuar nos domínios das certezas, sem pensar
alternativas novas. Assim, no Racionalismo Moderno, a figura do sujeito
centrado em si mesmo foi/é exaltada em detrimento da heteronomia. A
alteridade é negada, esquecida, suprimida pelo sujeito autônomo e
autoconsciente. O discurso abstrato tentou normalizar a diversidade e as
identidades foram/são forjadas, segundo os moldes de um único padrão,
tido como universal, e, por isso, o “mais” verdadeiro e o “mais”
desenvolvido. As outras epistemologias e organizações sociais – as diferenças
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LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.)
– eram/são julgadas a partir desta posição (CECCHETTI, 2008). O atual
contexto de exclusão e desigualdade e a complexidade das relações sociais
do mundo contemporâneo requerem novas orientações epistemológicas,
especialmente no campo educativo - o qual ainda (re)produz uma visão
essencialista, universalista e monocultural da história, dos saberes e valores
– que promovam o desenvolvimento das identidades pessoais/sociais e o
reconhecimento das diferenças, ao mesmo tempo em que estimulem o
diálogo intercultural.
No Brasil, o debate sobre as relações multi/interculturais na
educação é bastante recente, assimilando inicialmente elementos dos
estudos que vêm se elaborando na Europa, na América do Norte e em
alguns países da América Latina. Trata-se de um debate complexo, em
que interagem diferentes vertentes teóricas e políticas, no qual é preciso
manter o foco sobre a especificidade das relações culturais no contexto
brasileiro (FLEURI, 1999). Neste, a dimensão intercultural se reveste de
significados específicos: colonialismos e migrações, dominações e
convivências, processos de aculturação, fusões híbridas violentas,
preconceitos e discriminações invisibilizadas, perda de identidades
culturais, entre outros, são elementos que caracterizam a gênese da
sociedade brasileira. O encontro/confronto/desencontro entre culturas
diferentes configura as raízes da formação social do Brasil, inserindo a
Interculturalidade como paradigma emergente para a orientação de novas
formas de relacionamento entre grupos socioculturais diferentes.
Para Fleuri (1999), é imprescindível conhecer os complexos itinerários
de formação e produção cultural que configuram o Brasil e a América
Latina, contextos fortemente hibridizados, caracterizados por graves
problemas sociais, para que se problematize a imagem de “democracia
racial” que acoberta grande parte da conflitividade das relações
interculturais nesses contextos, ocultando os graves fenômenos de racismos
e discriminações étnica, social e religiosa. Tal conhecimento também pode
orientar perspectivas pedagógicas que possam amadurecer novos níveis
de consciência, focalizando, na própria reflexão e na própria prática, a
dialética identidade/alteridade, como eixo sobre o qual gira a possibilidade
de integração emancipatória dos grupos em desvantagem social.
Isso posto, apresentaremos neste texto, inicialmente, breves noções
sobre Interculturalidade e Educação Intercultural, para, em seguida, fazer
memória do Ensino Religioso, uma das disciplinas do currículo escolar das
escolas brasileiras, focando especialmente sua trajetória em Santa Catarina,
com o objetivo de compreender seu papel, num primeiro momento,
enquanto instrumento colonizador responsável pela aculturação
sistemática das culturas não-católicas e, num segundo momento, enquanto
possibilidade de (re)leitura crítica da diversidade cultural religiosa brasileira,
com significativos “exercícios” na perspectiva de uma Educação
Intercultural. “Exercícios” porque, no imaginário coletivo dos brasileiros,
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CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS
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nas decisões políticas, econômicas e educacionais e no hábitus docente,
embora o Brasil seja considerado um estado laico, encontram-se práticas,
discursos, metodologias e conteúdos de Ensino Religioso fortemente
vinculados ao ensino confessional, com ampla hegemonia da tradição cristãcatólica, em detrimento da religiosidade de muitos outros grupos
socioculturais presentes no país.
O presente texto tem o intuito de apresentar e pontuar como o
processo de implantação e adequação do Ensino Religioso foi e está se
configurando no Estado de Santa Catarina, de acordo com a legislação
vigente, numa perspectiva intercultural, buscando assegurar o respeito e
o (re)conhecimento da diversidade cultural religiosa presente na sociedade
catarinense e brasileira.
1 Educação Intercultural: Breves Aproximações
Os termos “Intercultural” e “Interculturalidade” são de uso recente
no Campo das Ciências Humanas na América Latina. Segundo Salas
Astrain (2003), somente no final da década de 1980 é que tem início o seu
emprego na Antropologia, Pedagogia, Sociologia, História e Filosofia. A
noção de Interculturalidade emergiu em meio a um tipo de sociedade na
qual comunidades étnicas e grupos socioculturais se veem desafiados a
reconhecer suas diferenças e a buscar sua mútua compreensão e
valorização, sob pena de produzir e legitimar violências, conflitos e
processos de exclusão e dominação.
Para o autor (2003), o prefixo “inter” expressa uma interação
positiva que, concretamente, busca suprimir as barreiras entre povos,
comunidades étnicas e grupos humanos, quaisquer que sejam seus traços
identitários. Supõe que a procura pelo diálogo esteja focada na aceitação
mútua e na colaboração entre culturas que se entrecruzam. Desse modo,
Interculturalidade não pode ser definida somente como duas culturas em
contato que se mesclam ou integram, mas tem a ver com os múltiplos
processos culturais que tendem à hibridação ou à identificação diferenciada.
Assim, a Interculturalidade emerge do
[...] diagnóstico de um mundo ferido pela guerra, pela violência e pelo poder,
mostrando que a crise cultural que afeta a totalidade de culturas tradicionais
e modernas é parte de uma crise da humanidade como não-idêntica a uma
sociedade moderna que impôs uma lógica comum, nos últimos séculos, das
“verdades” e dos “bens públicos”, em que se tentou “civilizar” os outros, “os
bárbaros”, os que não têm o saber nem o atuar “corretos” (SALAS ASTRAIN,
2003, p. 338).
O filósofo Raúl Fornet-Betancourt (2004) compreende
Interculturalidade não como uma posição teórica, nem só um diálogo de/
e/ou entre culturas “fechadas”, idealizadas, mas como “[...] aquela postura
ou disposição pela qual o ser humano se capacita para, e se habitua a viver
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“suas” referências identitárias em relação com os chamados “outros”, quer
dizer, compartindo-as em convivência com eles” (p. 13). Trata-se de uma
atitude que abre o ser humano e o impulsiona a um processo de
reaprendizagem e recolocação cultural e contextual, permitindo-o “[...]
perceber o analfabetismo cultural do qual nós nos fazemos culpáveis,
quando cremos que basta uma cultura, a “própria”, para ler e interpretar
o mundo” (p. 13).
Desse modo, pode-se perceber que a proposta da Interculturalidade
não é um modismo de agora, mas uma demanda histórica por justiça
cultural, principalmente daqueles grupos que foram marginalizados,
reduzidos, silenciados e invisibilizados no decorrer dos tempos. Responde
aos diversos problemas que afetam os grupos étnicos, comunidades e grupos
socioculturais que coexistem na diversidade cultural, a fim de sentar as
bases para uma nova forma de convivência humana. Trata-se de uma
reflexão profunda sobre o “saber viver”, sobre o “saber conviver”, buscando
os valores identitários em diversos tons, cores e sabores, enfrentando a
crescente fragmentação e homogeneização que irrompe na quase totalidade
do planeta (SALAS ASTRAIN, 2003).
A Interculturalidade implica nova forma de relação social e de
representação dos “nós” e dos “Outros”, questionando as hierarquias
sociais e os padrões culturais que impedem não só interações
enriquecedoras, mas o conhecimento dos Outros e de nós mesmos.
Historicamente, as sociedades ocidentais se constituíram com base em um
sistema padronizador, homogeneizador e discriminador que tem modelado
e limitado significativamente a maneira como se tem compreendido e
interagido com o mundo e com a diversidade. Por isso, é necessário o
questionamento, uma vez que cada sujeito constrói ou desconstrói imagens
e relações discriminatórias, antidemocráticas e excludentes. Desse modo,
falar de Interculturalidade não é só falar de sistemas sociais, relações de
poder e cosmovisões, mas de nós mesmos (BETANCOURT, 2004).
Nessa perspectiva, a Interculturalidade exige mudança de
paradigmas, pois requer a consideração do diferente em sua alteridade,
tendo o “Outro” como ponto de partida e não mais o “eu”. Efetiva-se,
assim, um diálogo intercultural que abre horizontes ao novo e predispõe à
escuta do Outro, modificando e ampliando pontos de vista, condição
imprescindível para a convivência pacífica. O diálogo entre culturas não
impede, necessariamente, a continuidade das raízes culturais de cada um
e não implica romper com a própria identidade e com a dos seus
antepassados, com suas tradições e com seus valores. Ao contrário, “[...]
somente através de um intercâmbio fluido teremos a possibilidade de
encontrar novas soluções para nossas diferenças culturais” (MONTIEL,
2003, p. 43). O diálogo com outras culturas e o enriquecimento mútuo
mediante a incorporação de novos elementos possibilita o crescimento das
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sociedades. Desse modo, o reconhecimento das diferenças não é um
obstáculo, mas, sim, a condição histórica indispensável para alcançar uma
convivência solidária entre os distintos povos do mundo.
Assim, para Fleuri (1999), a Educação Intercultural apresenta-se
como um processo, ou seja, um caminho aberto, complexo e
multidimensional, pois envolve uma multiplicidade de fatores e dimensões:
os sujeitos e grupos sociais, a cultura e a religião, a língua e a alimentação,
os preconceitos e as expectativas,
Mas não se reduz a uma simples relação de conhecimento: trata-se da interação
entre sujeitos, o que significa uma relação de troca e de reciprocidade entre
pessoas vivas, com rostos e nomes próprios, reconhecendo reciprocamente
seus direitos e sua dignidade. Uma relação que vai além da dimensão individual
dos sujeitos e envolve suas respectivas identidades culturais diferentes. A
educação intercultural se configura como uma pedagogia do encontro até
suas últimas conseqüências, visando promover uma experiência profunda e
complexa, em que o encontro/confronto de narrações diferentes configura
uma ocasião de crescimento para o sujeito, uma experiência não superficial e
incomum, de conflito/acolhimento (FLEURI, 1999, p. 208).
Uma educação de perspectiva intercultural, portanto, longe de ser
um instrumento homogeneizador ou um mecanismo de substituição da
cultura tradicional de cada povo pela cultura da modernidade, acolhe as
diferentes culturas, independente de sua origem ou forma, como elementos
constitutivos da identidade humana, tendo em vista que devem ser
respeitadas e valorizadas como um dos patrimônios mais valiosos da
humanidade. Reconhecer que todas as culturas, embora internamente
diversas, possuem saberes e valores próprios que constituem fonte para o
desenvolvimento humano, educando para o diálogo intercultural, significa
contribuir para a formação de sujeitos capazes de integrarem-se social e
culturalmente no contexto em que se encontram inseridos.
A diversidade cultural das sociedades significa enriquecimento e
não ameaça, e, por isso, uma educação intercultural se propõe a educar
para o respeito e convivência a partir da luta contra toda forma de
discriminação entre as pessoas, buscando a efetiva igualdade de
oportunidades, dirimindo os processos de exclusão e de desigualdades que
assolam a contemporaneidade. Para isso, é necessário subsidiar práticas
educativas que eduquem para o acolhimento da diversidade, que
modifiquem estereótipos e preconceitos por meio do conhecimento de todas
as culturas, em mesmo grau e valor, promovendo atitudes e relações sociais
que evitem a discriminação e favoreçam interações positivas, possibilitando
o desenvolvimento das culturas, em especial, a dos grupos em desvantagem
social.
A Educação Intercultural requer rupturas com processos educativos
atuais, que descendem de uma perspectiva homogeneizadora e que
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transformou a instituição escolar em espaço/lugar de uniformização, onde
a ideologia, a pedagogia e a organização predominantes foram
configuradas, desde o início, a partir dos interesses da cultura dos grupos
hegemônicos (LOBROT, 1992). Constituídas sobre as bases da Modernidade
Ocidental, as escolas vêm desempenhando a função de (con)formar os
sujeitos aos padrões de racionalização e burocratização de uma sociedade
urbano-industrial e monocultural, selecionando, classificando,
hierarquizando e padronizando formas de ver a realidade, anulando e
subestimando as diferentes maneiras encontradas por inúmeras culturas
para explicar e compreender a existência (CECCHETTI, 2008).
Por isso, é necessário modificar os padrões gerais de funcionamento
da educação, da escola e dos mecanismos de seleção/desenvolvimento
dos currículos, tendo presentes diversidade cultural, interesses e
necessidades plurais dos sujeitos, por meio de uma estrutura curricular
distinta da dominante e de uma mentalidade diferente por parte dos
educadores, educandos, pais, gestores e autores de livros/subsídios
didáticos, assim como dos sistemas de ensino em sua totalidade. Para Fleuri
(1999), a realização dos objetivos da Educação Intercultural exige, ao
menos, três mudanças no sistema escolar:
a) a realização do princípio da igualdade de oportunidades: a Educação
Intercultural requer que se trate, nas instituições educativas, dos grupos
populares e minoritários não como cidadãos de segunda categoria, mas
que se reconheça seu papel ativo na elaboração, escolha e atuação das
estratégias educativas. Além disso, é preciso repensar as funções, os
conteúdos e os métodos da escola, de modo a se superar o seu caráter
monocultural;
b) a (re)elaboração dos livros didáticos, a adoção de técnicas e de
instrumentos multimediais: a Educação Intercultural requer profundas
transformações no modo de ensinar. A prática educativa é estimulada a
se tornar sempre mais interdisciplinar e multimedial. De modo particular,
dever-se-á utilizar as técnicas e as metodologias ativas, do jogo à
dramatização. Mas, principalmente, os livros didáticos deverão sofrer
profundas mudanças. Estes são escritos geralmente na perspectiva da
cultura oficial e hegemônica, e não para alunos pertencentes as “muitas
culturas”, diferentes entre si, justamente no modo de interpretar fatos,
eventos, modelos de comportamento, ideias, valores. E, talvez, sejam
usados justamente por aqueles alunos cujas culturas são representadas
e julgadas, a partir da cultura hegemônica, de modo preconceituoso e
discriminatório;
c) A formação e a (re)qualificação dos educadores são, talvez, o problema
decisivo, do qual depende o sucesso ou o fracasso da proposta
Intercultural. O que está em jogo na formação dos educadores é a
superação da perspectiva monocultural e etnocêntrica que configura os
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modos tradicionais e consolidados de educar, a mentalidade pessoal, os
modos de se relacionar com os outros e de atuação nas situações concretas.
Além disso, para Jordan (1996), é necessário considerar todo contexto
político, econômico, cultural e religioso das sociedades, tendo em vista
outros elementos imprescindíveis:
a) inclusão significativa no currículo escolar das diferentes culturas, em
alteridade, e não em uma perspectiva compensatória ao déficit existente;
b) conscientização de que a educação é uma prática social com profunda
relação com a dinâmica da vida social concreta, e que, por isso, os
resultados, as experiências e vivências decorrentes do processo educativo
podem marcar positiva ou negativamente a vida social de cada sujeito;
c) articulação das políticas educativas e das práticas pedagógicas tendo
em vista a valorização e o (re)conhecimento da diversidade cultural,
uma vez que o sucesso escolar é um direito de todos.
Para finalizar, a Educação Intercultural procura possibilitar, no
cotidiano escolar, uma preciosa oportunidade de crescimento e
desenvolvimento da cultura pessoal de cada um, assim como de mudança
das relações sociais na perspectiva de construção de uma sociedade mais
livre, mais justa e mais solidária (FLEURI, 1999).
2 O Ensino Religioso em Santa Catarina: da Negação à Busca de
Acolhimento da Diversidade Religiosa
A implementação e a difusão da cultura escolar europeia, em
território brasileiro, ocorreram com o processo de invasão e colonização
empreendido pelos portugueses, a partir dos séculos XV e XVI. Os
primeiros passos na formação do povo brasileiro foram dados em meio à
exploração das riquezas desta terra e da submissão dos nativos aos
esquemas da metrópole. Os portugueses aportaram nestas terras como
“descobridores” e “civilizados”. Seus valores, costumes, religiosidade e
conhecimentos eram apresentados como “superiores”, restando aos
colonizados a obrigação de tudo aceitar sem questionar e avaliar (HENZ,
2002).
A catequese e a educação mediaram o transplante dos bens
simbólicos e culturais europeus, cujo controle, domínio e manipulação
garantiam a dependência da Colônia. O ensino da religião cristã servia
para manter os desníveis sociais vigentes, reforçando os privilégios das
classes dominantes. Desde meados do século XVI, no Brasil-Colônia, o
ensino da religião se constituiu como instrumento do colonizador,
assegurado pela presença dos Padres Jesuítas, responsáveis pela educação
dos habitantes do território em processo de conquista, por meio do exercício
da catequese e instrução, pois o êxito do empreendimento colonizador
dependia da aculturação sistemática e intensiva dos povos indígenas, aos
valores espirituais e morais da civilização ocidental-cristã. Mais tarde, essa
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mesma estratégia foi utilizada para com os povos africanos, que aqui foram
feitos escravos.
A partir de 1549, são fundados seminários para a formação de
sacerdotes-membros da Companhia de Jesus e os primeiros colégios
destinados à formação de uma elite letrada. Iniciava-se aqui um longo
período histórico, no qual a catequese da Igreja Católica Apostólica Romana
esteve presente nas escolas brasileiras, sendo um dos meios de propagação
do catolicismo no Brasil (CECCHETTI e THOMÉ, 2007). O sistema escolar
por eles implantado seguiu os moldes da metrópole portuguesa, também
dirigida pela mesma ordem de religiosos.
A Igreja Católica manteve-se, por um longo período, aliada ao
Estado, chegando a tornar-se ora dependente deste, ora orientadora de
sua ação política e, até mesmo, seu sustentáculo no projeto colonizador
(FIGUEIREDO, 1995). Desse modo, no Brasil-Colônia, o Ensino Religioso,
compreendido e efetivado como ensino da religião, era um dos elementos
dos acordos estabelecidos entre a cúpula da Igreja Católica e o monarca
de Portugal, de acordo com os princípios do Regime do Padroado. Nesse
processo, os valores e a religiosidade dos povos indígenas e africanos eram
considerados empecilhos à propagação da verdadeira fé. O método de
doutrinação empregado revelava o caráter imposto e disciplinador da
catequese, que visava à submissão, à conquista e à adesão dessas culturas
à fé católica (FIGUEIREDO, 1995).
Entre 1750 e 1777, a Colônia brasileira passou por transformações
administrativas e sociais, implantadas pelo Marquês de Pombal, que
extingue o sistema de capitanias hereditárias e tenta implantar a bandeira
do Iluminismo. Para promover o espírito científico e diminuir a hegemonia
da Igreja, Pombal, em 1759, expulsa os Jesuítas do território português.
Com a saída forçada dos Jesuítas, o sistema educacional brasileiro,
impregnado pelo Iluminismo, passa a incorporar os princípios de laicidade,
em oposição ao método jesuítico. No entanto, essa mudança atinge
somente a burguesia, pois os grupos populares ficam à margem, em
completo estado de analfabetismo.
O Ensino Religioso, nesse período, continua como ensino da religião
católica, dirigido aos “índios”, escravos e à classe subalterna. Os
colonizadores portugueses se autoafirmavam “evangelizados” e
“catequizados”. Constituía-se um ensino, portanto, que antes de valorizar
os sistemas de crenças de cada sujeito, negava-os ao impor um único
modelo de fé.
A vinda e a permanência da Família Real no Brasil (1822)
produziram modificações na estruturação política brasileira, mas, no campo
educativo, o ensino da religião continuou atrelado ao sistema de
protecionismo da metrópole, concretizado pelo juramento do imperador
em manter, oficialmente, a Religião Católica (FIGUEIREDO, 1995). A
Constituição de 1824, em seu artigo 5º, assim declarava:
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A religião Católica Apostólica Romana continuará a ser a religião do Império.
Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico ou
particular, em casas para isto destinadas, sem forma alguma exterior de
templo.
Em decorrência, o ensino da religião se efetivava sob o
protecionismo do Estado, considerado disciplina e, como tal, competência
e responsabilidade estatal. Na prática, o Ensino Religioso, compreendido
e tratado como catequese, era considerado um componente curricular
que, através do uso dos manuais de catecismo, nos padrões tridentinos,
difundia a doutrina católica (FIGUEIREDO, 1995, p. 41).
O Ensino Religioso é mencionado, pela primeira vez, num
documento oficial relativo à educação escolar em 15 de outubro de 1827,
no art. 179 da Constituição Imperial, o qual ordena a criação de escolas
de primeiras letras em todas as cidades, vilas e nos lugares mais populosos
do Império. Além disso, no artigo 6º, lia-se que
[...] os professores ensinarão a ler, escrever as quatro operações de
arithmética, prática de quebrados, decimaes, proporções, as noções, mais
geraes de geometria prática, a gramática da língua nacional, e os
princípios de moral christã e da doutrina da religião cathólica
apostólica romana, proporcionados à compreensão dos meninos;
preferindo para as leituras a Constituição do Império e a história do
Brasil (grifos nossos).
Com a instalação do Regime Republicano (1889), visualiza-se o
rompimento entre Estado e a Igreja, pelo Decreto de Laicização de 1890.
Seguindo esse princípio, a primeira Constituição da República dos Estados
Unidos do Brasil (1891) declara, no artigo 72, parágrafo 6, que “será leigo
o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos”. A partir de então, não
foram poucos os embates sobre a questão da permanência do Ensino
Religioso na escola. O debate entre os que defendem a sua exclusão e os
que reiteram a sua permanência nos sistemas de ensino se prolonga na
atualidade.
Não foram poucos também os acordos firmados entre Igreja e os
Governos de Estados, onde, como em Santa Catarina, em 1919, em pleno
regime republicano, o Estado cedeu espaços nas Escolas Públicas para o
ensino da religião católica (HEERDT, 1992). O autor vê, nessa
reaproximação entre a Igreja e o Estado, o surgimento de um novo modelo
de Cristandade:
No modelo anterior, o da Cristandade, o Estado providenciava a estrutura a
partir da qual a Igreja mantinha sua ação evangelizadora. E, a partir do
surgimento do modelo Neo-cristandade, novamente o Estado coloca à
disposição suas escolas para a Igreja usar como local de ensino religioso,
poupando a Igreja Católica da instalação e manutenção de novas Escolas
Paroquiais (HEERDT, 1992, p. 178).
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Tentando conciliar os movimentos dos prós e dos contras à
permanência do Ensino Religioso na escola pública, a promulgação da
Constituição Brasileira em 1934 assegura, no Art. 153, que o Ensino
Religioso, de matrícula facultativa, será ministrado de acordo com a
convicção religiosa do aluno, manifestada pelos pais ou responsáveis,
constituindo matéria nos horários normais das escolas públicas (CARON,
1995). Esse enunciado visava proteger a liberdade religiosa e a
confessionalidade como prática pedagógica.
Na Constituição do Estado Novo, de 1937, e na Constituição Federal
de 1946, o continuum da confessionalidade se manteve, apesar das duras
críticas dos educadores da Escola Nova, adeptos do Positivismo, que
defendiam as escolas laicas, gratuitas e obrigatórias. Na elaboração da Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) nº. 4024/61, o Ensino
Religioso continua sendo confessional, de matrícula facultativa.
Portanto, até o final da década de 1960, o aspecto da
confessionalidade esteve muito presente no percurso histórico do Ensino
Religioso na educação brasileira e em Santa Catarina. A Igreja Católica
exercia ampla hegemonia:
Ao defender a existência do Ensino Religioso nas escolas, a Igreja Católica
manteve a concepção do ER e de natureza confessional, sendo, por isto,
ministrado nas escolas públicas de forma catequética, sem muita
preocupação quanto ao espaço da escola, que é pública e aconfessional
(CARON, 1995, p. 29).
A partir dos anos 70, emerge uma reflexão educacional significativa
com a promulgação da LDBEN nº. 5.692/71, a qual apresentava o Ensino
Religioso como oferta obrigatória por parte das Unidades Escolares,
possibilitando ao educando o direito de optar pela frequência ou não. De
acordo com Figueiredo (1996, p. 05), esse fato possibilitou
um salto de qualidade na busca da identidade do ER, com distinção entre ER
na escola e catequese na comunidade eclesial. Criaram-se programas de
formação de professores e curriculares, em que aspectos antropológicos,
sociológicos, pedagógicos e políticos foram evidenciados, deixando para trás
conteúdos doutrinários e práticas desvinculadas da experiência científica
cultural.
Particularmente em Santa Catarina, nesse período, ocorreu também
um processo de identificação e redefinição do papel do Ensino Religioso,
ocasionado pela própria discriminação da disciplina no contexto escolar,
o que resultou na construção de novas experiências na perspectiva de um
enfoque mais ecumênico, voltado para o campo da religiosidade. Buscouse integrar diferentes credos, embora o Cristianismo continuasse sendo o
marco referencial da proposta. Nascia um Ensino Religioso que
privilegiava a convivência entre cristãos de diferentes credos religiosos,
de forma ecumênica. Para efetivar tal compreensão, foram criadas
propostas de formação para os professores e materiais didáticos com
linguagem diferenciada daquela adotada até então.
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Algumas experiências de acolhimento e respeito entre igrejas cristãs
diferentes levaram, posteriormente, a repensar novamente o Ensino
Religioso, principalmente buscando agora uma aproximação interreligiosa.
Ao mesmo tempo, a realidade sociocultural brasileira mostrou-se cada
vez mais heterogênea e diversificada, e, principalmente, no campo religioso,
portadora de uma multiplicidade imensa, marcada pelo crescimento do
pentecostalismo, com permanente trânsito religioso e com a emergência
de novos grupos e movimentos religiosos.
Devido a isso, uma nova concepção de Ensino Religioso foi sendo
gestada, que acabou legitimada pela Lei nº. 9.475/1997, que alterou o
artigo 33 da LDBEN nº. 9.394/1996, na qual a disciplina é considerada
parte integrante da formação básica do cidadão e reconhecida como uma
das áreas do conhecimento (Resolução CEB/CNE nº 2/1998), que
assegura o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas
quaisquer formas de proselitismo.
Por isso, na atualidade brasileira e catarinense, o Ensino Religioso
visa proporcionar o conhecimento dos elementos básicos que compõem o
fenômeno religioso, a fim de possibilitar esclarecimentos sobre o direito à
diferença, valorizando o pluralismo e a diversidade cultural presentes na
sociedade, para que as culturas sejam conhecidas em mesmo grau e valor,
com reverência e respeito à alteridade.
Sem dúvida, esse é um fato histórico para a educação brasileira,
pois, pela primeira vez, criaram-se oportunidades de sistematizar o Ensino
Religioso como disciplina escolar que não seja doutrinação religiosa nem
se confunda com o ensino de uma ou mais religiões.
Dessa forma, o Ensino Religioso, ao proporcionar o conhecimento
dos elementos básicos que compõem o fenômeno religioso, a partir das
experiências religiosas percebidas/vivenciadas no contexto dos educandos,
discute e fomenta o direito à diferença, valorizando a diversidade cultural
presente na sociedade, auxiliando na constituição de relações alteritárias
entre culturas e religiões distintas, territórios e territorialidades, identidades
e diferenças, no constante propósito de promoção dos direitos humanos.
3 Educação Intercultural e Ensino Religioso: Práticas, Desafios e
Perspectivas
O Ensino Religioso em Santa Catarina, bem como na maioria dos
estados brasileiros, enquanto componente curricular, ao considerar as
diferentes vivências, percepções e elaborações que integram o substrato
cultural da humanidade, cujos relatos e registros, elaborados
sistematicamente por diferentes grupos sociais, constituem-se em uma rica
fonte de conhecimentos a instigar, desafiar e subsidiar as gerações
vindouras, oportuniza a liberdade de expressão religiosa, viabilizando a
prática da “Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural”
(UNESCO, 2001).
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Desse modo, problemáticas que envolvem questões como
discriminação étnica, cultural e religiosa têm a oportunidade de sair das
sombras que levam à proliferação de ambiguidades nas falas e nas atitudes,
alimentando preconceitos, para serem trazidas à luz, como elementos de
aprendizagem, enriquecimento e crescimento do contexto escolar como
um todo (BRASIL, 1997). Nesse sentido, o estudo do fenômeno religioso
em um estado laico, a partir de pressupostos científicos, visa à formação
de cidadãos críticos e responsáveis, capazes de discernir a dinâmica dos
fenômenos religiosos que perpassam a vida em âmbito pessoal, local e
mundial. As diferentes crenças, grupos e tradições religiosas, bem como a
ausência deles, são aspectos da realidade que devem ser socializados e
abordados como dados antropológicos e socioculturais, capazes de
contribuir na interpretação e na fundamentação das ações humanas
(FONAPER, 2008).
As orientações oficiais para o desenvolvimento do Ensino Religioso
em Santa Catarina descendem de uma perspectiva intercultural, uma vez
que compreendem a docência como ação educativa construída e focalizada
na valorização e no (re)conhecimento da diversidade cultural religiosa,
presente na sociedade brasileira, por meio do exercício do diálogo, da
pesquisa, do estudo, da construção, da reconstrução e da socialização dos
saberes, desenvolvendo-se na articulação entre conhecimentos científicos
e culturais, valores éticos e estéticos, discutindo as relações de poder que
permeiam as concepções históricas, culturais e religiosas que constituem
as sociedades. O exercício pedagógico do Ensino Religioso considera os
conhecimentos anteriores dos educandos, bem como o contexto históricosocial no qual estão circunscritos, tendo em vista a continuidade progressiva
no conhecimento e na compreensão do fenômeno religioso, pelo estudo,
pela pesquisa e pela discussão em exercícios de alteridade, desenvolvendo
um processo de (re)conhecimento, respeito e valorização dos diferentes e
das diferenças.
Embora as culturas e os currículos de grande parte das escolas
públicas catarinenses ainda estejam centrados numa perspectiva
monocultural, os pressupostos e encaminhamentos pedagógicos do Ensino
Religioso, ao buscarem compreender, respeitar e valorizar os princípios
históricos, culturais, filosóficos, éticos, doutrinais e morais das diferentes
matrizes religiosas (africana, indígena, oriental e semita/ocidental),
rompem com conceitos e práticas excludentes e discriminatórias, presentes
no contexto social e escolar, possibilitando o exercício do diálogo
intercultural. Essa concepção de Ensino Religioso rompe com as práticas
doutrinadoras e segmentadoras de um passado ainda recente no Brasil,
ao promover e respeitar a diversidade cultural religiosa que transita no
cotidiano escolar, permitindo que todos os educandos tenham acesso ao
conjunto dos conhecimentos religiosos que integram o substrato das
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culturas, vedadas quaisquer formas de proselitismo, garantindo a liberdade
religiosa dos cidadãos e assumindo o compromisso da construção de uma
escola que proporcione a inclusão de todos, pelo acesso e pela valorização
dos conhecimentos de todas as culturas e tradições religiosas.
Nesse sentido, as possibilidades são de outras narrativas, de outros
discursos, de outros currículos, de outras práticas pedagógicas e de outras
metodologias avaliativas que sejam capazes de (re)conhecer a diversidade
na sua totalidade. Tal perspectiva da educação intercultural é complexa,
pois exige um (re)pensar constante dos diferentes aspectos e componentes
que tecem o cotidiano de cada escola.
Muitos foram/são os esforços e investimentos públicos e privados
para a efetivação deste Ensino Religioso, de perspectiva intercultural, em
Santa Catarina. Um dos frutos do trabalho e da dedicação de inúmeros
gestores, educadores e pesquisadores foi a criação, em 1996, do Curso de
Graduação em Ciências da Religião – Licenciatura em Ensino Religioso,
pioneiro no país, o qual, desde então, tem atendido educadores das redes
pública e privada em várias regiões do Estado. O referido curso vem
habilitando educadores para o exercício pedagógico do Ensino Religioso
através da busca e construção do conhecimento, a partir de conceitos e
práticas que expressem a relação com o fenômeno religioso em suas diversas
manifestações na vida humana, bem como vem propiciando a reflexão
sobre as bases das diferentes matrizes religiosas, numa perspectiva inter/
transdisciplinar, para desenvolver, no cotidiano escolar, a capacidade de
acolhimento à diversidade religiosa, através do diálogo e respeito às
alteridades.
Graças a essa realização, inúmeros docentes universitários e
educadores egressos desses cursos vêm realizando diferentes atividades,
dentre as quais se destacam: assessorias mantidas junto às Secretarias de
Educação e de outras instituições educacionais, sociais, governamentais e
não-governamentais; inúmeros trabalhos de conclusão de cursos e
dissertações de mestrados voltados à temática das culturas, diversidade
religiosa e direitos humanos na perspectiva de exercícios que encaminhem
e referenciem práticas de ética, alteridade e Interculturalidade; elaborações
de documentos curriculares e cadernos pedagógicos; comunicações em
eventos; organização de obras bibliográficas; promoção de eventos
regionais, estaduais e internacionais.
A partir daí, desencadeia-se um processo diferenciado no trato do
Ensino Religioso em Santa Catarina. Os acadêmicos e educadores,
amparados por universidades e sistemas de ensino, lutaram/lutam pelo
espaço e (re)conhecimento legal junto às redes públicas de ensino, por
meio de práticas pedagógicas significativas, exercícios de uma educação
intercultural.
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Notas
1
Especialista em Formação de Professores de Ensino Religioso (PUC/PR). Bacharelado em
Ciências Religiosas (PUC/PR). Graduando em Ciências da Religião – Licenciatura em
Ensino Religioso pela Universidade Regional de Blumenau. Presidente da Associação dos
Professores de Ensino Religioso do Estado de Santa Catarina (ASPERSC/gestão 20072009). Membro do Grupo de Pesquisa: Ethos, Alteridade e Desenvolvimento - GPEAD.. Email:: [email protected]
2
Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Graduado em
Ciências da Religião – Licenciatura em Ensino Religioso, com Especialização em
Fundamentos e Metodologia de Ensino Religioso em Ciências da Religião pela
Universidade Regional de Blumenau FURB. Secretário do Fórum Nacional Permanente
do Ensino Religioso (FONAPER). Membro do Grupo de Pesquisa: Ethos, Alteridade e
Desenvolvimento - GPEAD. Assistente Técnico-Educacional na Assessoria de Formação e
Prática Pedagógica da Secretaria de Estado da Educação de Santa Catarina (SED/SC). Email:: [email protected]
3 Mestra em Educação; graduada em Pedagogia e Ciências da Religião – Licenciatura em
Ensino Religioso, com Especialização em Fundamentos e Metodologia de Ensino Religioso
em Ciências da Religião pela Universidade Regional de Blumenau (FURB). Coordenadora
do Colegiado do Curso de Ciências da Religião – Licenciatura em Ensino Religioso da
Universidade Regional de Blumenau (FURB). Membro do Grupo de Pesquisa: Ethos,
Alteridade e Desenvolvimento - GPEAD.. E-mail:: [email protected]
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DIVERSIDADE CULTURAL E RELIGIOSA NO
CONTEXTO ESCOLAR: UM CONVITE A PRÁTICAS
PEDAGÓGICAS INTERCULTURAIS
Dolores Henn Fontanive1
Francisca Helena Cunha Daneliczen2
Mariane do Rocio Peters Kravice3
Introdução
A escola entre muitos espaços é um dos lugares onde a diversidade
registra sua presença. Etnias, culturas, religiões, entre outras
particularidades identificam pessoas, vivências, conflitos e perspectivas,
que transitam e tecem o cotidiano escolar. Um dos grandes desafios da
educação brasileira na atualidade são estudos e pesquisas sobre a
diversidade cultural e religiosa existentes no contexto histórico-cultural
da escola.
Estudos e pesquisas buscam identificar ausências, formas de diálogo
e respeito entre e com as diferenças, que se apresentam no cotidiano escolar
fortemente marcado por práticas de caráter historico homogêneo e
centralizador.
Diante da diversidade cultural e religiosa no contexto escolar somos
convidados a construir práticas pedagógicas diferenciadas, que valorizem
e integrem as diferenças em uma perspectiva de alteridade.
1 Diversidade Cultural e Religiosa no Contexto Escolar
A educação é um processo que oportuniza e propicia o
desenvolvimento do ser humano, na busca ilimitada para transcender sua
finitude e provisoriedade. O cotidiano escolar é um dos lugares em que o
educando busca, através das relações empreendidas, respostas às questões
que indaga sobre sua existência, seus projetos, dúvidas, seus mais diferentes
conhecimentos e necessidades. A escola é um dos espaços onde a
diversidade está presente e, por meio dela, o educando conhece diferentes
culturas e aprende a respeitar e conviver com as diferenças.
Ao considerar a relevância da escola na vida dos educandos,
podemos argumentar que as práticas discursivas desempenham um papel
importante no desenvolvimento da conscientização deles sobre a sua
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identidade e a do outro. Entendemos a escola como um espaço de
construção de conhecimento, de aprendizagem e de construção identitária.
Nela, as identidades são constituídas e podem desempenhar um papel
importante na vida dos educandos, ao se depararem com outras práticas
discursivas as quais ainda não experenciaram em seu ambiente familiar
e/ou cultural.
Tais práticas discursivas se mostram e se revelam pelo conhecimento
e pela linguagem e permitem ao ser humano interpretar e construir
maneiras de se inserir na realidade. Segundo André e Lopes (2002), o
conhecimento e a linguagem são manifestações do saber que vêm da
existência e a elas correspondem níveis de intencionalidade, padrões e
elementos culturais. Ou seja,
[...] se as identidades [...] são constitutivas do processo de uso da linguagem,
isto é, se o modo como construímos as identidades das pessoas é central na
definição de como nos engajamos e engajamos outros no discurso e
construímos significados, como argumentado aqui, a conscientização da
natureza socioconstrucionista do discurso e da identidade [...] é um ponto
relevante em qualquer processo de ensinar e aprender [...]. (MOITA LOPES,
2002, p. 54).
Ainda para o mesmo autor, é preciso considerar a linguagem como
um fenômeno essencialmente social, pois pelo seu uso se constroem as
várias identidades no discurso e o modo como estas afetam os significados.
O discurso, como construção social, é, portanto, percebido como forma de
ação no mundo e, ao investigá-lo, a partir dessa perspectiva, é analisado
como os participantes envolvidos na construção do significado estão agindo
no mundo por meio da linguagem e construindo suas realidades sociais e
a si mesmos.
A escola, como instituição social e de cultura, é articuladora de
processos de educação, um espaço para viver aspirações de um ser criativo
em constante desenvolvimento, o qual adquire e produz cultura, conforme
suas necessidades vitais. Assim, suas aspirações e conhecimentos baseados
em princípios ajudam a estabelecer confrontos entre o que promove a vida
e o que a depreda, entre o que favorece o desencadear do processo e o que
limita a sua ação.,
Notável pela sua composição populacional o Brasil por muito tempo
veiculou a imagem de um país homogêneo, sem diferenças, embora nas
escolas acontecessem manifestações de discriminação de ordem religiosa e
étnica, por parte de educadores e educandos, ainda que por vezes de forma
involuntaria, mas que traziam dificuldades ao processo educacional pelo
sofrimento e constrangimento aos quais os envolvidos se viam expostos.
Diante disso, movimentos sociais foram se desenvolvendo ao longo da
história, com resistências a padrões culturais que estabeleciam e
sedimentavam injustiças.
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LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.)
Sacristán (1995, p. 82) afirma que “discutir a integração de minorias
sociais, étnicas e culturais ao processo de escolarização constitui uma
manifestação muito concreta de um objetivo mais geral: o da educação
multicultural”. Para ele um problema mais amplo é a capacidade da
educação para acolher a diversidade; fazer com que os membros de uma
minoria cultural sintam-se acolhidos e discutir, com propriedade, a questão
da diversidade em geral.
A escola não opera no vazio; a cultura que ali se transmite não cai
em mentes sem outros significados prévios. Aqueles que aprendem dentro
da educação escolarizada são seres com uma bagagem prévia de crenças,
significados, valores, atitudes e comportamentos adquiridos fora da escola
(SACRISTÁN, 1995). Sendo a escola um espaço de relações, cabe a ela
oferecer as condições para o pleno desenvolvimento de identidades na
diversidade cultural, como, por exemplo: criar um ambiente de diálogo
cultural, baseado no respeito mútuo; perceber cada cultura na sua
totalidade e incluir, como conteúdos, as contribuições das diferentes
culturas para um país plural (BRASIL, 2001).
Ao refletir sobre a escola com relação à diversidade, Sacristan (1995,
p. 84), ainda afirma que isso “[...] é possível apenas quando existe variedade,
e o problema fundamental está no fato de que nem o currículo, nem as
práticas pedagógicas, nem o funcionamento da instituição admitem, na
atualidade, muita variação”.
O problema reside no fato de que o currículo, as práticas pedagógicas
e o funcionamento das instituições não admitem variações e aberturas das
culturas distantes daquelas em que estão inseridas. Ou seja, para Sacristán
(1995, p. 84) “a escola tem-se configurado, em sua ideologia e em seus
usos organizativos e pedagógicos, como um instrumento de
homogeneização e de assimilação à cultura dominante”. As palavras de
Sacristán parecem fornecer fortes argumentos e justificativas para a
realização de estudos e pesquisas contemplando as temáticas que envolvem
a diversidade cultural e como tal conhecimento poderá fazer parte do
currículo e da prática educacionais.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais: pluralidade cultural e
orientação sexual (BRASIL, 2001), ao referendarem as questões das
culturas, apontam que elas são produzidas pelos grupos sociais ao longo
das suas histórias, na organização da vida social e política, nas suas relações
com o meio e com outros grupos, na produção de conhecimentos. No espaço
escolar, os educandos entram em contato com a diversidade cultural e
têm a oportunidade de desenvolver conhecimentos sobre as suas origens e
participantes de grupos culturais específicos, entre eles os de ordem religiosa.
Ao valorizar as diversas culturas presentes em seu meio, o educando poderá
perceber seu próprio valor, promovendo a sua autoestima como ser
humano. Nesse sentido,
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[...] cabe à escola buscar construir relações de confiança para que a criança
possa perceber e viver, antes de mais nada, como um ser em formação, e para
que a manifestação de características culturais que partilhe com seu grupo de
origem possa ser trabalhada como parte de suas circunstâncias de vida, que
não seja impeditiva do desenvolvimento de suas potencialidades pessoais.
(BRASIL, 2001, p. 52).
A escola é um espaço de construção e socialização dos conhecimentos
historicamente produzidos e acumulados pela humanidade, também no
aspecto das religiões, que devem ficar à disposição de todos os que quiserem
acessá-los (FONAPER, 1997). Ao trabalhar a diversidade dos
conhecimentos humanos, ampliam-se horizontes para o educador e para
o educando, proporcionando uma abertura para a consciência de que a
realidade em que vivem é apenas parte de um mundo complexo, fascinante
e desafiador. Nesse exercício,
A problemática que envolve a discriminação étnica, cultural e religiosa, ao
invés de se manter em uma zona de sombra que leva à proliferação da
ambigüidade nas falas e nas atitudes, alimentando com isso o preconceito,
pode ser trazida à luz, como elemento de aprendizagem e crescimento do
grupo escolar como um todo. (BRASIL, 2001, p. 57).
Conhecer para respeitar e valorizar a diferença não significa aderir
aos valores do outro, mas percebê-los como expressão da diversidade, que
confere dignidade e identidade. Também “é trabalho de construção, no
qual o envolvimento de todos se dá pelo respeito e pela própria constatação
de que, sem o outro, nada se sabe sobre ele, a não ser o que a própria
imaginação fornece” (BRASIL, 2001, p. 57).
Segundo Koch (2006), o ser humano vive em constante relação com
outros seres humanos e, possivelmente, nessa relação se depara com uma
infinidade de diferenças, que produzem os diferentes. Logo, o que está
relacionado aos diferentes e à diferença tem como pano de fundo a
linguagem, e o que está relacionado e constitui a linguagem tem como
pano de fundo a diferença.
O cotidiano escolar se apresenta como um dos espaços para a
reflexão e, consequentemente, à mudança de mentalidades, superação de
preconceitos e combate a atitudes discriminatórias. A escola tem um papel
importante a desempenhar nesse processo, porque é um dos espaços em
que se dá a convivência entre educandos de origens diferentes, com
costumes diferentes daqueles que cada um concebe e com visões de mundo
diversas daquela que cada um compartilha em família. No espaço escolar,
transitam seres humanos com suas aspirações, crenças, vivências que
precisam ser atendidas e respeitadas.
Assim, novas exigências surgem, havendo necessidade de repensar
o espaço educativo, objetivando reconhecer e respeitar a presença do outro,
que histórica e culturalmente constitui-se em um diferente. Registra-se,
portanto, a necessidade de a prática pedagógica escolar incluir abordagens
sobre a importância de uma postura ética em relação à alteridade.
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2 Interculturalidade e Cotidiano Escolar
Na existência humana, é impossível aprender sem conhecer. Para
tanto, é fundamental a interação do ser com seu meio: o processo histórico,
social, cultural, religioso e científico. Segundo Tomaz Tadeu da Silva (2003),
o outro cultural apresenta-se como problema, pois coloca em xeque nossa
própria identidade. A questão da identidade, da diferença e do outro é
um problema social e, ao mesmo tempo, pedagógico e curricular.
[...] social porque, em um mundo heterogêneo, o encontro com o outro, com
o estranho, com o diferente, é inevitável. [...] pedagógico e curricular não
apenas porque as crianças e os jovens, em uma sociedade atravessada pela
diferença, forçosamente interagem com o outro no próprio espaço da escola.
[...] a questão do outro e da diferença não pode deixar de ser preocupação
pedagógica e curricular. (SILVA, 2003, p.97).
O currículo escolar, com algumas exceções, abrange a totalidade
dos aspectos da vida humana. Entretanto, muitas vezes, prioriza apenas a
visão de um único grupo cultural, caracterizando-se como projeto
educacional homogeneizador. O currículo escolar que privilegia uma
cultura coloca em risco a identidade dos educandos e do grupo social e
cultural do qual são integrantes. Essa postura homogeneizadora não leva
em conta as diferenças claramente manifestadas no espaço escolar.
Tal prática poderá resultar em reflexos de relações e confrontos
culturais, percebidos e identificados no ambiente escolar. A escola como
espaço social e instância de poder pode (re)produzir integralmente ou
parcialmente uma cultura discriminadora e desenvolver atitudes
educacionais que marginalizem os sujeitos inseridos no processo de
escolarização, deixando de oportunizar o conhecimento e (re)conhecimento
do outro, do diferente, na diversidade dos grupos e expressões culturais.
Ao mesmo tempo, percebe-se a reflexão incansável de muitos pesquisadores
e teóricos em dar diferentes significados ao currículo, na tentativa de
possíveis práticas pedagógicas que incluam as diferenças e reconheçam a
alteridade.
Percebe-se, de acordo com Fleuri (2000), a necessidade de
mudanças curriculares na formação dos profissionais da educação para
a efetivação de uma escola, que esteja atenta e comprometida com a
diversidade das culturas em suas múltiplas manifestações que transitam,
cotidianamente, no contexto escolar. Nesse sentido, o currículo deverá
(re)contextualizar-se, porque novas áreas do conhecimento vão se
formando por desdobramento de novas práticas culturais; portanto, o
currículo sempre deverá estar ligado ao entendimento do sujeito social e
culturalmente.
Uma perspectiva educativa que abrange as reflexões já colocadas
neste texto referentes à diversidade cultural é a Interculturalidade. O espaço
escolar situa-se como tempo e lugar privilegiados para a interculturalidade.
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Nele acontece o confronto e encontro das diversidades culturais, tornando
possível o desenvolvimento de projetos interculturais. Dessa maneira, Paola
Falteri expõe que um projeto de tal natureza,
[...] pretende intervir nas mudanças induzidas pelo contato com a diversidade,
de modo a promover atitudes abertas ao confronto e conduzir os processos
aculturadores para uma integração entre culturas que não ‘colonializem’ as
minoritárias [...] começa somente quando se criam condições para a troca,
quando se estabelece uma relação de reciprocidade, quando, no reconhecer o
‘outro’, tornamo-nos conscientes de nossa própria cultura. (FALTERI, 1998,
p.37, 38. Apud FLEURI 1998, p. 25).
Nesse sentido, uma educação que integre encontro, confronto,
conflito, conhecimento e respeito com as diferenças, a partir da diversidade
cultural, têm na interculturalidade um referencial para “ambientes criativos
de movimentos de identificação subjetivos e socioculturais.” (FLEURI, 2001,
p. 32). Trazemos à tona Souza e Fleuri (2001) quando se referem ao
paradigma da complexidade sendo algo compreendido como percepção
dos diversos sujeitos e orientação de suas relações e interações, o que se
constitui em uma das formas de pensar, propor, produzir e dialogar com
o processo de aprendizagem, pois a realidade não é subdividida, mas
permite particularidades. É importante observar que o direito à educação
intercultural se funda na necessidade de o educando viver numa sociedade
formada por muitas culturas.
A escola deve respeitar cada cidadão e grupo social, garantindo,
por imperativo legal e ético, que os educandos acessem a totalidade dos
conhecimentos elaborados pela humanidade, não somente o que é específico
dos diferentes grupos culturais e/ou interesses das diferentes instâncias
de poder, mas também o que é indispensável ao convívio de todos os seres
humanos numa sociedade intercultural.
Concebendo a alteridade como prerrogativa para lidar com as
diferenças, respeitando-as e preservando-as, uma educação que pretenda
atender a esses pressupostos ganha um perfil desafiador, ou seja, rompe
com a postura tradicional de que as diferenças devem ser eliminadas.
Entende-se que a interculturalidade se dá, principalmente, por promover
acolhimento, compreensão, conhecimento, valorização e integração das
diferenças e não sua eliminação ou extinção.
Segundo pesquisas de Sidekun (2003, p. 259), “a interculturalidade
cria um paradigma interpretativo novo, que opera pela interpretação do
próprio e do Outro, como resultado da interpelação comum, mútua, em
que a voz de cada um é percebida e reconhecida em sua alteridade”.
A abordagem referente às formas de conceber o pensamento, o
conhecimento e a prática pedagógica, em uma perspectiva intercultural,
mostra a importância de saber efetivamente o que caracteriza a cultura do
outro, para se estabelecer o que se espera no cotidiano educativo. Convém
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lembrar que o ser humano desenvolve suas capacidades a partir das
necessidades de sobrevivência. Possui a capacidade de pensar, permitindo
conviver com a realidade, conhecendo-a, compreendendo-a, explicandoa e realizando intervenções.
De acordo com Freire (2000), os humanos como seres éticos são
capazes de intervir no mundo, de comparar, de ajuizar, de decidir, de
romper, de escolher; são capazes de grandes ações, de significantes atitudes,
mas também de impensáveis atitudes de indignidade, como, por exemplo,
as atitudes de discriminação às diferenças sociais, culturais, étnicas,
religiosas, entre outras.
Buscar construir outras práticas pedagógicas , que tenham a
interculturalidade como pressuposto demandam uma percepção em
constantes exercício de e em alteridade.
3 Práticas Pedagógicas Interculturais: Construindo Autonomia e
Dignidade no Contexto Escolar
Planejar e construir uma prática pedagógica que esteja voltada para
a dignidade da vida é o desafio que tem a alteridade como parceira
indispensável. A alteridade depende da forma e da consciência com que
as pessoas envolvidas lidam e respeitam as diferenças.
No cotidiano escolar, percebemos que não é possível pensar o ser
humano como um ser igual, determinado ou concluso. Percebemos, sim, o
diferente e as diferenças. Segndo Wickert, (2008), todas as perspectivas de
convivências e conflitos com o outro são resultantes da não-compreensão
das diferenças do outro. Acolher e respeitar as diferenças é um modo de
educar, que acolhe possibilidades de complementaridade e totalidade.
Devemos considerar a pessoa humana constituída de um corpo lócus, que
dá visibilidade ao fazer e ao ser e requer reconhecimento, autonomia e
liberdade.
Uma educação voltada para a vida em plenitude, que induza o ser
humano à percepção de que está imerso em um mundo voltado
exclusivamente para o utilitarismo e não para o respeito à diversidade, na
sua singularidade, exige empenho, determinação, preparo e uma
constituição teórica bem-fundamentada. Segundo Boff (2000), cabe
destacar a importância da solidariedade, quando se pretende debater ações
que tenham dignidade como foco.
O homem adquire sua dignidade a partir da valorização dele mesmo,
como fim em si mesmo, não tão somente como meio. Kant (1988, p. 161)
assegura que “o que constitui a condição única que pode fazer com que
algo seja um fim em si não tem apenas um valor relativo, isto é, não tem
preço, mas um valor intrínseco, isto é, dignidade”. Dessa forma, não há
possibilidade de uma sociedade se nomear como digna onde o ser humano
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se constitui em sua própria destruição e onde os meios econômicos definem
os rumos e as condições de todos e de todo o planeta.
De acordo com o relatório da pesquisa “Dignidade Humana e Paz”,
vinculada à Campanha da Fraternidade 2000 do Conselho Nacional de
Igrejas Cristãs – CONIC1, a palavra dignidade é entendida, na linguagem
corrente, como honestidade, sinceridade, responsabilidade, e, num sentido
ético, como condição humana, como atributo essencial do ser humano,
independente do que ela faça ou deixe de fazer para merecê-la. Nesse
segundo sentido a palavra “dignidade” costuma ser usada com o adjetivo
“humana”, passando a ser escrita com letra maiúscula: Dignidade
Humana.
É possível relacionar a palavra “respeito” tanto à Dignidade
Humana, atributo de todo o ser humano, como à dignidade, algo que se
conquista e que torna alguém respeitado e respeitável diante dos demais.
Ao se tratar da dignidade como algo que é conquistado e como conduta
moral, portanto, vinculada às normas da sociedade, as pessoas fazem uma
distinção entre diferentes níveis de dignidade que devem ser respeitados.
Entendem que é justo respeitar as diferenças naturais como as morais,
existentes entre os indivíduos, e entendem que o respeito tem limites,
possibilitando a formação de preconceitos e classes sociais.
Podemos pensar a Dignidade Humana na condição relacional com
o todo do universo, na medida em que todo humano se torna digno de si,
quando promove o encontro com a totalidade. A dignidade é condição
primária de todos os seres; não deve ser apenas do humano. Somos dignos
de ser denominados humanos, quando respeitamos, nas devidas
proporções, os não-humanos.
Dignidade não é apenas uma esfera subjetiva, mas também objetiva,
pois perpassa todas as instâncias sociais. É a paixão pela vida e pelo viver.
Por isso que,
[...] pathos é a capacidade de sentir, de ser afetado e de afetar. Esse é o
Lebenswelt, o arranjo existencial concreto e protoprimário do ser humano. A
existência jamais é pura existência; é co-existência, sentida e afetada pela
ocupação e pela preocupação, pelo cuidado e pela responsabilidade no mundo
com os outros, pela alegria ou pela tristeza, pela esperança ou pela angústia
(BOFF, 2003, p.80).
Toda relação educativa é digna de ser verdadeiramente humana e
humanizadora, quando exclui toda relação de violência. Lévinas deixou
para a humanidade um enorme legado bibliográfico, com muitos livros
ainda a serem traduzidos. Vem nos auxiliar com uma proposta de ética
voltada para o Outro, como prioridade sobre o Eu. É no Outro que se
encontra o infinito e o finito. Quando você olha o rosto do outro, ele é
muito mais do que a visagem. O Outro é o excluído, o escravo, o órfão, o
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LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.)
homossexual, o desempregado, o indígena, a mulher marginalizada, o semteto, o negro, entre muitos outros.
A dignidade se apresenta em Lévinas (2005) como a condição
primordial do respeito a todas as categorias nas quais se organiza a
sociedade. É preciso conceber a todos como seres humanos e, por essa
razão, todos devem ser dignos de ter sua morada, seu lar e condições de
satisfação mínima em todos os sentidos. Mas, a alternativa para superar a
condição de desumanidade dá-se na medida em que todos tiverem
contemplado o seu ethos como lugar da diversidade e do bem-estar social
e econômico. “Outrem, como Outrem, não é somente um alter-ego. Ele é o
que eu não sou: ele é o fraco, enquanto eu sou forte; ele é o pobre; ele é a
viúva e o órfão” (LÉVINAS, 2005, p. 162).
Para o autor, o Outro é diferente nas suas diferenças. Todos nós
somos diferentes. Nós não somos convidados a respeitar as diferenças,
este é o princípio. Somos sim, responsáveis pelas diferenças, pelos diferentes.
A diferença é o Outro, nós não escolhemos. Sou interpelado pelo Outro.
Somos diferentes em nossa individualidade. O Outro me conduz e seduz.
Tenho obrigação de respeito para com o Outro. Pivatto (2001), remete-nos
para a necessidade do respeito ou igualdade pelo Outro. Por isso
Não há ética quando se considera só um indivíduo, não há ética quando
construída a partir do Eu, considerado protótipo de toda a humanidade. Acima
e antes de tudo, a ética é uma relação primordial. Esta relação constitui o fato
primeiro, é o ôntico fontal sobre o qual pode erguer-se o ontológico e que a
própria racionalidade supõe e exige (PIVATTO, 2001, p. 219).
Encontramos em Lévinas uma exigência primeira de uma Ética
coletiva, rompendo o princípio do cogito ergo sum, de Descartes: Penso,
logo existo. Se penso e, em consequência, o Eu existe, logo ele age a partir
do seu existir como pressuposto do pensar. Pensar é a regra fundamental
para a Ética. Portanto, individual e subjetiva. E é a esta perspectiva
cartesiana-kantiana da proposta linear e dentitária que Lévinas dirige a
postura da Ética da Alteridade. É preciso e fundamental, para Lévinas,
trazer para o centro da fundamentação ética o princípio da heteronomia,
em detrimento da desvalorização da autonomia.
Heteronomia pressupõe o múltiplo, o diverso, os sem-identificação,
os sem-endereço, os sem-teto, os excluídos. Diante disso, Lévinas propõe a
prática do acolhimento, não como um favor, mas como um dever,
responsabilidade42 irrecíproca, uma obrigação que o outro nos impõe. É
exatamente nessas circunstâncias que Lévinas propõe uma ação concreta
e eficaz, denominada de acolhimento e hospitalidade.
A Dignidade em Lévinas (2002) é face e linguagem do acolhimento
e da hospitalidade. Isso implica sermos responsáveis por aquele (a) a quem
acolhemos, tornando-o hóspede, dando-lhe um lugar de direito. O Outro
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está no mundo como um todo. Se você se separar do Outro, responsável,
você se separa do mundo. Não podemos nos isentar dessa responsabilidade.
“Responsabilidade em preocupação de reciprocidade: tenho de responder
por outrem sem me ocupar da responsabilidade dele para comigo”
(LÉVINAS, 2002, p.16).
O acolhimento é a porta que se abre para a exterioridade, ao infinito
que é convidado a entrar na casa da alteridade, lugar que é de todos,
espaço da partilha e da solidariedade. Encontro e desencontro do finito e
do infinito. O Rosto como o único capaz de promover o encontro da finitude
e infinitude compreendida na epifânia do face a face. É transcender e
acolher numa atitude ética o existente que grita e sofre pela exclusão. Por
essa razão, “no acolhimento do outro, eu acolho o Altíssimo ao qual minha
liberdade se subordina” (DERRIDA, 2004, p.71).
O acolhimento é sempre o acolhimento do Outro, pois é tão somente
o Outro que pode dizer sim. O acolhimento não é derivado, nem tampouco
o rosto, e não há rosto sem acolhimento. É como se o acolhimento, tanto
quanto o rosto, tanto quanto o léxico que lhe é co-extensivo e, portanto,
profundamente sinônimo, fosse uma linguagem primeira, um conjunto
formado de palavras quase primitivas e quase transcendentais. É preciso
pensar, sobretudo, na possibilidade do acolhimento para pensar o rosto e
tudo o que se abre ou se desloca com ele, a ética, a metafísica ou a filosofia
primeira. O acolhimento determina o “receber”, a receptividade do receber
como relação ética (DERRIDA, 2004).
A dignidade humana ocorre quando o ser humano é reconhecido
como humano e não como objeto, tanto na sua vocação ontológica, como
histórica. Kant (1785 apud Comparato 2006, p. 434) enfatiza que,
[...] o ser humano distingue-se das coisas materiais porque tem dignidade e
não um preço, e nenhum homem deve, jamais, submeter-se à vontade do
outro para servir de meio à consecução de uma finalidade, qualquer que ela
seja, dado que a pessoa humana é, sempre e em todo lugar, uma finalidade
em si mesma.
Se não amarmos o mundo, se não amarmos a vida, se não amarmos
os homens, não nos é possível o diálogo. Andreola (2002) nos afiança que
o diálogo não pode ser um diálogo elitista, entre intelectuais. O diálogo é
um encontro dos homens para a tarefa comum de saber agir, que se rompe
se seus polos (ou um deles) perderem a humildade. Como dialogar, se
alienamos a ignorância, isto é, se a vemos sempre no outro, nunca em nós?
Como dialogar, se nos admiramos como homens diferentes, virtuosos por
herança, diante dos outros, meros “isto”, em quem não reconhecemos o
outro eu?
Em seus escritos, Andreola (2002, p. 140) apresenta o “diálogo
intercultural como estratégia política indeclinável para construir uma nova
humanidade num projeto que não se conforme com o caminho suicida da
especulação, da ganância, da competição, da fome e da guerra”. É através
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do diálogo que os diferentes pontos de vista enriquecem a reflexão,
possibilitando a ampliação do conhecimento para um pensar crítico e
criativo.
Os educadores, segundo Hoff (2005), têm um papel importante
a desenvolver e construir com seus educandos: uma cultura de respeito
e de abertura ao diálogo, ao diferente e ao outro. Esse papel de colocarse frente a frente com o outro, de sensibilizar-se para a beleza e
diversidade de diferentes culturas é parte essencial da estrutura de cada
ser humano.
A dignidade do ser humano não pode ser violada em relação a si
mesma, em relação ao outro, na relação com a natureza e com o
Transcendente. A escola é um espaço em que as máscaras devem dar
lugar ao Rosto, à transparência de mundos, vidas, sonhos, possibilidades,
saberes e conhecimentos, para que, sem medos ou disfarces, perceba-se
o sabor de uma convivência em dignidade. É preciso convencer e mover
para que o abraço se transforme na acolhida sonhada. É preciso que o
mestre se incline e tenha a humildade de aceitar-se como eterno aprendiz
da e na alteridade.
É preciso (re)aprendermos a respeitar o Outro e “corrermos atrás
do prejuízo” de termos esquecido, no porão de nossas autodescobertas, a
excelência de nossa identidade: a dignidade humana. Dignidade é resultado
de um exercício incomparável da relação com o outro, o estranho, o
diferente e o indiferente que machuca, que fere; é o amor, o face a face, o
rosto transformado em pérola.
Assim como a pérola, a dignidade se constrói, cria rosto a partir de
suas defesas, na relação com o elemento estranho que a invade, machuca
e tortura. Para a construção de uma sociedade justa, fraterna e livre, cujos
sujeitos percebam a dignidade como sua extensão, é fundamental a
compreensão ética e superadora do Outro, sujeito em movimento no
exercício educativo. Nesse sentido, Oliveira (2007, p. 32) destaca que,
[...] esse outro que pode deferir do grupo ou na relação pessoa a pessoa, ou
seja, aquele que anda diferente, que fala diferente, que vê o mundo com
outros olhos, que tem cor da pele diferente, que crê de modo diferente, que
deseja e se identifica de outro modo, que pertence a outra cultura, a outra
geração ou a outro grupo social. Esse outro percebido como presença/presente,
presente que não é invólucro, mas conteúdo. Presença, enquanto o ser e estar
ali, em sua historicidade, provisoriedade, inconclusão, limitação, busca; em
sua digna humanidade.
Reconhecer que a escola é um espaço pedagógico onde convivem
diferentes sujeitos, com costumes diferenciados, diversas tradições religiosas
e diferentes concepções de mundo, requer propostas de formação de
docentes comprometidas radicalmente com o cultivo e promoção da
dignidade humana.
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Considerações Finais
As perspectivas da interculturalidade na proposta curricular e
prática pedagógica na escola objetiva diálogos entre diferentes saberes entre
si, percebidos no convívio social e cultural dos educandos. Essa concepção
tem como objetivo maior educar o ser humano para conhecer, compreender
e respeitar as diferenças culturais, estabelecendo diálogo com o outro, a
partir da vivência e convivência em sua família, comunidade escolar,
sociedade e religião, como pré-requisito da cultura. Essa proposta de
trabalho educativo integra as discussões e ações de uma Educação
Intercultural para a alteridade.
A educação intercultural focaliza os problemas de relação,
integração e conflito entre etnias e culturas diferentes, e objetiva
oportunizar contextos educativos em que a integração e a cooperação,
bem como as relações sociais e culturais de diferentes sujeitos sejam
favorecidas.
É por meio da convivência e da construção de práticas
pedagógicas atentas às diferenças que será possível sentir e reagir às
discriminações religiosas no trato cotidiano. Isso será possível, na medida
em que houver respeito à identidade e às diferenças e admiração
permeada de delicadeza no encontro com os diferentes, no qual
educandos e educadores possam se flagrar também como “um diferente
num universo de diferentes exercitando a valorização da alteridade,
experimentando quem eu sou, quem somos nós e quem podemos ser”
(OLIVEIRA, et.all, 2007, p.33).
Notas
1
2
3
4
Mestra em Educação pela Universidade Regional de Blumenau - FURB. Coordenadora
de Ensino Religioso na 12ª SDR/ Gerência de Educação de Rio do Sul. Membro do
Grupo de Pesquisa: Ethos, Alteridade e Desenvolvimento - GPEAD. E-mail:
[email protected]
Mestra em Educação e graduada em Pedagogia e Ciências da Religião – Licenciatura
Plena em Ensino Religioso (FURB/SC). Especialista em Interdisciplinaridade na
Educação, Membro do Grupo Ethos, Alteridade e Desenvolvimento –,GPEAD Assessora
Pedagógica na Rede Municipal de Balneário Camboriú e Blumenau/SC [email protected]
Mestra em Educação pela Universidade Regional de Blumenau – FURB. Graduada em
Ciências da Religião – Licenciatura em Ensino Religioso – UNIVILLE. Especialista em
Fundamentos e Metodologia do Ensino Religioso em Ciências da Religião – FURB.
Membro Membro do Grupo de Pesquisa: Ethos, Alteridade e Desenvolvimento - GPEAD.
E-mail:[email protected]
Essa responsabilidade pelo outro é estruturada como um-pelo-outro, até um ser refém
do outro, refém em sua própria identidade de convocado insubstituível, antes de qualquer
retorno sobre si. Para o outro à guisa de si – mesmo, até a substituição do outro”
(DERRIDA, 2004, nota rodapé, p. 23).
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MITOS E CULTURAS AFRO-BRASILEIRAS
COMO PRÁTICA PEDAGÓGICA DA DIFERENÇA
Carla Fernanda da Silva1
Marcos Rodrigues da Silva2
Respeitem meus cabelos, brancos
Respeitem meus cabelos, brancos
Chegou a hora de falar
Vamos ser francos
Pois quando um preto fala
O branco cala ou deixa a sala
Com veludo nos tamancos
Cabelo veio da África
Junto com meus santos
Bengueles, zulus, gêges
Rebolos, bundos, bantos
Batuques, toques, mandigas
Danças, tranças, cantos
Respeitem meus cabelos, brancos
Se eu quero pixaim, deixa
Se eu quero enrolar, deixa
Se eu quero colorir, deixa
Se eu quero assanhar, deixa
Deixa, deixa a madeira balançar
(CÉSAR, 2003)
Nesta primeira década do século XXI, diferente dos séculos
anteriores, o Sagrado e o Mito recuperam lugar nas discussões teológicas e
filosóficas, ganhando destaque também em novos movimentos de
conhecimento, como a filosofia e a psicologia, que surgiram e se fortaleceram
com a intenção de ampliar a compreensão do humano. Quando
observamos o homem em atitude de veneração a um objeto natural,
enquanto objeto sagrado, não significa que adore o objeto como tal, mas a
manifestação sagrada contida neste objeto. Uma pedra sagrada, um
espaço, um rio, por exemplo, quando venerados, não deixam de ser
identificados como tal. Mas, não é ao seu estado real que se atribui a
contemplação, e sim ao que é manifestado.
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Nas sociedades primitivas, o homem vivia mergulhado nas
hierofanias, a tendência era predominantemente viver o mais próximo
possível dos objetos consagrados, a natureza em si era sagrada, o tempo, o
espaço, a moradia, o próprio corpo humano era algo consagrado, embora,
ainda hoje, nas sociedades “modernas”, seja possível encontrar alguns
povos com suas culturas, que vivem profundamente mergulhados no
mundo da sacralidade. O homem moderno, ao entrar num shopping center,
assume uma postura de reverência ao sagrado mercado, da mesma forma
que o homem primitivo assumia postura de reverência quando se
aproximava de uma árvore ou de outro referencial considerado como
vinculado à adoração.
As constantes mudanças, tanto do homem moderno quanto do
primitivo, na busca de locais e tempos de reverência, provocam rupturas e
quebras que se devem às manifestações do sagrado, portanto, às
hierofanias. Assim, há espaços sagrados e espaços não sagrados. Para o
homem não religioso, o espaço é homogêneo e neutro, uma vez que não
diferencia seus espaços com experiências religiosas, que para o homem
religioso tem “forte” e intensa dimensão do sagrado.
Uma motivação para você que se aproxima desta reflexão sobre o
mito, a diversidade cultural africana na diáspora, deve ter presente a dimensão
do povo afro-americano na América Latina e Caribe. As culturas religiosas
e expressivas de matriz banto participaram em processos de africanização
do cristianismo de longa data, na América Latina e o Caribe, desenvolvidos
em Confrarias e Irmandades de N. S. do Rosário, São Benedito (San Benito),
São João, entre outros.
Em La Havana, as crônicas históricas referem-se às Confrarias e
aos Reinados Congos em procissão pelas ruas da cidade. Na Venezuela, a
expressão desse tipo de irmandade se desenvolveu em múltiplas formas.
Os Chimbángueles, no sul do Lago Maracaibo, são formados por uma
hierarquia de capitães e vassalos de São Benedito, em torno de uma
orquestra formada por sete tambores, realizando cortejos e procissões na
rua~ no leste, na região do Barlovento, os três tambores culo e puya ou
“redondos” se alternam nos cortejos das festas de São João, com o mina e
o curbeta. Na costa do Caribe, de Puerto Cabello à La Sabana, as festas
religiosas são animadas pelos cumacos, grandes tambores de tronco sobre
o chão, e as pipas, construídas de grandes tonéis.
Os tambores ngoma, que cronistas como Cavazzi reportaram no
Congo no século dezesseis, encontram semelhanças nos tambores
“redondos” do Barlovento; no “tambor de crioula” em São Luiz de
Maranhão, no Brasil; nos tambores de yuka, em Cuba; e nos “atabales”,
em Santo Domingo, tocados de pé e amarrados à cintura. Os grandes ngoma
encontram semelhança nos “cumacos” do litoral venezuelano, assim como
nos tambores dos cultos Cumina, na Jamaica e em outras ilhas do Caribe.
As organizações para rituais e procissões festivas, como os Chimbángueles,
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na Venezuela, encontram paralelos na América toda e, no Brasil, na forma
de Congados, Catupés, Moçambiques e Reinados, tanto formas devocionais
africanizadas como formas de organização política alternativas às
dominantes.
A história das populações africanas e afro-brasileiras, que é a de,
aproximadamente, 60% das pessoas no território brasileiro, é reconhecida
por muita luta, resistência e pela autodeterminação. Na diáspora africana,
esse povo se afirma como cultura marcada pela pluralidade étnica e
diversidade religiosa, numa sociedade neoliberal onde apenas consegue
reconhecer-se na sua realidade multicultural. O desafio está em dar um
passo adiante na afirmação da pluralidade étnica e na valorização da
diversidade cultural, como parte integradora da identidade brasileira.
Podemos compreender que, entre outras possibilidades, sobre uma
reflexão teológica a partir e com a dimensão desse povo afro, a diáspora é
um lugar onde logos e mythos podem se justapor. Isso pode encaixar-se no
âmbito dos estudos acadêmicos através da categoria fundamental do
“sentido”. Considerando, numa perspectiva de africanidade, que o mito
surge como uma narrativa imagética e dramática de instauração de sentido,
podemos também considerá-lo como fundamental para a compreensão
de um modo de ser que nossa limitada capacidade de conceituação poderia
chamar de “inefável”. Este “inefável” é algo que se manifesta sob aspectos
que nossas também limitadas categorias tentam apreender – a de
“sagrado”. O “sagrado”, no contexto de africanidade, na diáspora, pode
ser compreendido como a totalidade da vida do homem e da mulher negra,
e ainda, tudo que o envolve como ser em relação, contribuindo na interação
da identidade deste povo.
O mito pode ser uma ponte entre ambos, entre a experiência religiosa
e as formulações teológicas a respeito: o mito pode ser entendido como
fundamento das práticas religiosas e como expressão de sua religiosidade.
O mito, nesse sentido, funciona como uma espécie de “condensador” de
significado religioso, portador e verificador da verdade religiosa, como
guardião da ação do sagrado e como expressão narrada desta ação. Uma
abordagem da religiosidade no mito, a nosso ver, não pode prescindir da
noção de “sagrado”. Esta noção, fundamental no campo de estudos das
religiões, remete a uma especificidade inegável do fenômeno religioso.
Ainda que, de um ponto de vista crítico, o conceito de “sagrado” possa ser
relativizado, para o homo religiosus ocorre o que tão bem expressa Mircea
Eliade:
Um fenômeno religioso somente se revelará como tal com a condição de ser
apreendido dentro de sua própria modalidade, isto é, de ser estudado à escala
religiosa. Querer delimitar esse fenômeno pela fisiologia, pela psicologia,
pela sociologia e pela ciência econômica, pela lingüística e pela arte, etc. é
traí-lo, deixar escapar precisamente o que existe nele de único e irredutível,
ou seja, seu caráter sagrado. (ELIADE, 1990, p. 16).
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Chamamos aqui, a exemplo de Mircea Eliade (1960, p. 25), de
“hierofania” essa manifestação do sagrado, que exprime uma modalidade
e um momento de sua história. Temos, pois, para nosso efeito, que
estabelecer uma distinção de duas ordens, ou seja, a do numinoso e a do
sagrado, que é mais propriamente sua expressão e que se manifesta sempre
numa certa situação histórica, através de suas modalidades. Uma
modalidade é um modo de ser, e os modos de ser do sagrado são estrutural
e historicamente diferenciados. O sagrado se manifesta na forma de mitos,
ritos, formas divinas, objetos sagrados e venerados, símbolos, cosmologias,
homens, animais, plantas e lugares consagrados. Cabe, pois, ressaltar outros
problemas terminológicos que envolvem a questão. Se enveredarmos pelo
aspecto não racional, ou a-racional, do fenômeno religioso, qualquer
aproximação ao numen escorrega e se perde nos labirintos da linguagem
que a delimita, mas não a apreende em sua totalidade.
Na África, o sagrado está na voz do griot, termo do vocabulário
franco-africano, criado na época colonial, para designar o narrador, cantor,
cronista e genealogista que, pela tradição oral, transmite a história de
personagens e famílias importantes, para as quais, em geral, está a serviço.
Presente, sobretudo na África ocidental, notadamente onde se
desenvolveram os impérios medievais africanos (Gana, Mali e Songai),
recebe denominações variadas: dyéli ou diali, entre os Bambaras e
Mandingas; guésséré, entre os Saracolês, wambabé, entre os Peúles, auoloubé,
entre os Uolofes (LOPES, 2004, p. 310). O griot responsável pela memória
dos povos africanos permite que os mitos cheguem até nós. Mas como
pensá-los na contemporaneidade? No passado, o espaço do mito foi as
aldeias africanas e, para além do território africano, a àgora, o teatro grego,
presente no canto dos aedos ou em conversas em torno de fogueiras, no
ensinamento de pais para filhos, ou seja, o mito era parte do cotidiano de
todos.
Hoje é estudado, dissecado, analisado nas universidades, mas como
eco distante no cotidiano do grande público. Se na academia o mito
encontra o seu lugar, o mesmo não ocorre no espaço escolar. Ao pensar na
possibilidade do uso dos mitos na prática pedagógica, percebe-se que o
mesmo também pode ser um bom princípio para estudar e compreender a
multiplicidade cultural. Neste artigo, em particular, pensamos os mitos
africanos como meio de abordar essa cultura em sala de aula, ou seja, ir
além do conteúdo continuamente abordado sobre a história africana e
afro-americana no Brasil, que, por vezes, limita-se ao processo de
escravidão, à submissão do negro ao trabalho escravo e ao processo de
abolição, em que os brancos libertam esses escravos, ou seja, estuda-se a
história africana e afro-americana a partir da perspectiva de uma sociedade
em que os negros estão sujeitos às decisões de outros, em que os mesmos
não são protagonistas da história.
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Assim, compreendemos que iniciar o estudo dessa cultura a partir
de seus mitos torna-se uma possibilidade de entendê-la a partir da realidade
africana, ou seja, contada por seus povos. Pretende-se, assim, refletir sobre
a identidade atribuída ao povo africano, identidade esta naturalizada,
cristalizada e essencializada (SILVA, 2000, p. 73) pelo modo como é
conduzido o estudo de outras culturas em sala de aula. A distância com
que as culturas são apresentadas destaca o curioso, o exótico reforçando a
ideia de identidade em que o outro é aquele que não sou.
Segundo Tomaz Tadeu: “Isto reflete a tendência a tomar aquilo
que somos como sendo a norma pela qual descrevemos ou avaliamos aquilo
que não somos.” (SILVA, 2000, p. 76). Imbricado nessa afirmação da
identidade e da enunciação da diferença está o desejo dos diferentes grupos
sociais em garantir acesso privilegiado aos bens culturais e sociais (SILVA,
2000, p. 81), ou seja, estabelecer relações de poder e, por vezes,
hierarquização das diversas culturas. Ao pensar as outras culturas pela
perspectiva do exótico, busca-se afirmar a nossa cultura como normal,
como referência, e, assim, inferiorizar as demais culturas. Fato que se
percebe destacado ao estudarmos a relação das demais culturas com o
sagrado, em que, por vezes, pretende-se reforçar a concepção de verdade,
de normalidade em confronto com o exótico. É preciso refletir que “a
normalização é um dos processos mais sutis pelos quais o poder se
manifesta no campo da identidade e da diferença.” (SILVA, 2000, p. 81).
Ao classificar culturas como normal e exótica se estabelece uma
hierarquização, em que, para a cultura dita normal, é atribuído valores
positivos, fazendo desta uma referência de positividade, desejável, e, por
vezes, pensada como natural (SILVA, 2000, p. 83). Portanto, torna-se
necessário repensar a prática pedagógica de forma que as identidades não
sejam fixadas (nós x eles), hierarquizadas, naturalizadas, mas, sim, em
que seja possível questionar a forma de perpetuação dessas representações.
Em um ponto específico é preciso questionar a forma como as
culturas africana e afro-americana vem sendo representada em sala de
aula e nos livros didáticos. É preciso conceber uma prática pedagógica em
que o aluno possa explorar novas possibilidades de pensar o outro como
diferente, e mais ainda: possibilitar a ele esta diferença, sem querer
conformar e entender a sua cultura a partir dos parâmetros da minha
cultura, ou seja, compreender a outra cultura pela sua multiplicidade.
Para tanto, é possível pensar a prática pedagógica a partir do mito
e da literatura africana contemporânea, de forma que se possa conhecer a
tradição oral mitológica dos povos africanos, presentes nas comunidades
negras do Brasil, refletindo sobre estes povos africanos antes da diáspora.
Provocar o impensado em nossos alunos, pensar os povos africanos para
além da escravidão, para uma existência além da presença branca, ou
seja, desconstruir a identidade naturalizada da cultura negra. Assim,
pensar a África a partir dos mitos de seus povos é pensá-la antes da presença
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europeia em seu território, é estimular a compreensão da vivência desses
povos como livres em seus territórios, e não mais como povos escravizados,
cuja existência é meneada pelo outro.
Para melhor analisar essa prática, a partir de uma pedagogia da
diferença (SILVA, 2000, p. 101), destacamos o mito: Ogum dá aos homens o
segredo do ferro, reunido em livro por Reginaldo Prandi (2001):
Na Terra criada por Obatalá, em Ifé, os orixás e os seres humanos
trabalhavam e viviam em igualdade. Todos caçavam e plantavam, usando
frágeis instrumentos feitos de madeira, pedra ou metal mole. Por isso o
trabalho exigia grande esforço. Com o aumento da população em Ifé, a
comida andava escassa. Era necessário plantar em uma área maior. Os
orixás então se reuniram para decidir como fariam para remover as árvores
do terreno e aumentar a área da lavoura.
Ossaim, o orixá da medicina, dispôs-se a ir primeiro e limpar o
terreno. Mas seu facão era de metal mole e ele não foi bem sucedido. Do
mesmo modo que Ossaim, todos os outros orixás tentaram, um por um, e
fracassaram na tarefa de limpar o terreno para o plantio.
Ogum, que conhecia o segredo do ferro, não tinha dito nada até então. Quando
todos os outros orixás já tinham fracassado, Ogum pegou o seu facão, de
ferro, foi até a mata e limpou o terreno. Os orixás, admirados, perguntaram a
Ogum de que material era feito tão resistente facão. Ogum respondeu que era
o ferro, um segredo de Orunmilá.
Os orixás invejavam Ogum pelos benefícios que o ferro trazia, não só à
agricultura, como à caça e até mesmo à guerra. Por muito tempo, os orixás
importunaram Ogum para saber o segredo do ferro, mas ele mantinha o
segredo só para si. Os orixás decidiram oferecer-lhe o reinado em troca de
que ele lhes ensinasse tudo sobre aquele metal tão resistente. Ogum aceitou
a proposta. Os humanos também vieram a Ogum pedir-lhe o conhecimento
do ferro. E Ogum lhes deu o conhecimento da forja, até o dia em que todo
caçador e todo guerreiro tiveram sua lança de ferro. (PRANDI, 2001, p. 86-87).
Esse mito nos permite questionar: que tempo foi esse? Qual o
significado de viver em igualdade? A partir de qual momento esse tempo
termina? Quem eram os orixás? Primeiramente, destacamos que o mito
nos transporta para o continente africano, Ifé, num tempo em que viviam
em igualdade, um tempo antes da diáspora, antes da colonização, ou seja,
uma África pouco estudada em nossas escolas. Assim, primeiramente, é
preciso entender o continente africano, sua história, geografia e a
diversidade de povos que ali vivem. Ou seja, a compreensão dessa narrativa
necessita de uma pesquisa deslocando o estudo comumente existente em
sala de aula. Assim, por meio do estudo da arte e dos mitos desses povos é
possível refletir este tempo de igualdade da vivência em tribos e, após, o
surgimento dos reinos africanos.
A pesquisa, bem-orientada e diversificada em termos de fontes,
possibilita um novo olhar, para além do que os livros didáticos têm oferecido.
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LÍLIAN BLANCK DE OLIVEIRA, ELCIO CECCHETTI, ROSA ASSUNTA DE CEZARO, SIMONE RISKE-KOCH, (orgs.)
Ao deslocar o estudo para além dos livros e do mundo virtual, e trazer
para a sala de aula pessoas que estejam vinculadas ao movimento negro, à
música, à capoeira e às religiões de matriz africana, permite-se ao aluno o
convívio e a troca de experiência com outras pessoas, estudando a história
a partir da vivência, percebendo essa história africana e afro-americana
na contemporaneidade, a partir de seu passado.
Portanto, ao propor a leitura do mito, em que Ogum dá aos homens
o segredo do ferro, pretende-se assinalar o momento de mudança em que
diversos povos africanos abandonam o nomadismo e tornam-se sedentários,
como outros povos nos demais continentes. Porém, remeter-nos ao tempo
em que orixás e homens conviviam em Ifé e refletir sobre a origem mítica é
pensar também num mundo muito remoto, em que o tempo não se nomeia
em datas. Remeter o estudo do continente africano para seus primórdios é
uma possibilidade de “estimular, em matéria de identidade, o impensado
e o arriscado, o inexplorado e o ambíguo, em vez do consensual e do
assegurado, do conhecido e do assentado. Favorecer, enfim, toda
experimentação que torne difícil o retorno do eu e do nós ao idêntico.”
(SILVA, 2000, p. 100).
Na atualidade, as imagens do continente africano são de miséria,
fome, doença e guerras, que perpetuam um preconceito, mas não explicam
as causas da miséria africana, apenas reforçam um estigma. Um estudo a
partir dos mitos e da literatura pode nos mostrar um continente africano
anterior à miséria infligida à sua população. Estudar a história africana a
partir da voz de africanos é estudar essa história a contrapelo (BENJAMIN,
1991), é romper com a identidade africana e afro-americana essencializada
e naturalizada, para nos deslocar até uma pedagogia da diferença, em
que a multiplicidade é valorizada e disseminada. Multiplicidade que é
possível analisar em cada mito em que os “orixás alegram-se e sofrem,
vencem e perdem, conquistam e são conquistados, amam e odeiam. Os
humanos são apenas cópias esmaecidas dos orixás dos quais descendem.”
(PRANDI, 2001, p. 24). Estudar a mitologia e a literatura africana também
nos ajuda a compreender as relações humanas, compreender o outro com
quem convivo, possibilita que o ‘outro seja como eu não sou, deixar que ele
seja esse outro que não pode ser eu, que eu não posso ser, que não pode ser
um (outro) eu; significa deixar ser uma diferença que não seja, em absoluto,
diferença entre duas identidades, mas diferença da identidade.” (PARDO,
1996, p. 154).
Assim, o aluno, ao perceber um mundo africano anterior à invasão
europeia, pode compreender melhor a contemporaneidade, como Mia
Couto inicia seu livro Terra Sonâmbula: “Naquele lugar, a guerra tinha
morto a estrada. Pelos caminhos só as hienas se arrastavam, focinhando
entre cinzas e poeiras. A paisagem se mestiçara de tristezas nunca vistas,
em cores que se pegavam à boca.” (COUTO, 1995, p. 09). A escrita de Mia
Couto relata a guerra recente no continente africano, iniciada durante a
colonização, mostra o sofrimento, a tristeza desses povos. A literatura, de
modo simples, para além dos estereótipos disseminados nos meios de
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CULTURAS E DIVERSIDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA: PESQUISAS E PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS
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comunicação, permite-nos ler aqueles que vivem em solo africano. Explorar
a literatura africana da contemporaneidade é importante para comparar
à sua mitologia, perceber, por meio dessas duas narrativas, dois momentos
distintos da história desse continente: um tempo anterior à invasão
europeia, e um tempo posterior, em que:
A guerra crescia e tirava dali a maior parte dos habitantes. Mesmo na vila,
sede do distrito, as casas de cimento estavam agora vazias. As paredes, cheias
de buracos de balas, semelhavam a pele de um leproso. Os bandos disparavam
contra as casas como se elas lhes trouxessem raiva. Quem sabe alvejassem
não as casas mas o tempo, esse tempo que trouxera o cimento e as residências
que duravam mais que a vida dos homens (COUTO, 1995, p. 27).
O mito e a literatura, portanto, mostram uma possibilidade de
questionar as identidades que são impostas, e iniciar um trabalho a partir
de uma pedagogia da diferença, que nos possibilita o impensado, e, acima
de tudo, ouvir o outro, permitindo ir além das identidades naturalizadas.
Notas
1
Mestra em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC.
Professora substituta do Departamento de História e Geografia da Universidade Regional
de Blumenau – FURB. E-mail: [email protected];
2
Mestre em Teologia pela Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção/SP – Professor
do Departamento de História e Geografia da Universidade Regional de Blumenau – FURB.
Membro do Grupo de Pesquisa Ethos, Alteridade e Desenvolvimento – GPEAD. E-mail:
[email protected];
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. Teses sobre a filosofia da história. Org. Flávio Kohte. SP: Ática, 1991.
CÉSAR, Chico. Respeitem meus cabelos, brancos. 2003.
COUTO, Mia. Terra sonâmbula. RJ: Nova Fronteira, 1995.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: A Essência das Religiões. Lisboa: Ed. Livros do
Brasil, 1960.
_______. Tratado de história das religiões. Lisboa: Ed. Cosmos, 1990.
LOPES, Nei. Diáspora africana. São Paulo: Selo Negro Edições, 2004.
PARDO, José Luis. El sujeto inevitable, in CRUZ, Manuel (org.) Tiempo de subjetividad.
Barcelona: Paidós, 1996.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. SP: Cia das Letras, 2001.
SILVA, Tomaz Tadeu. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2000.
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