Volume 15 - nº 2

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ISSN 1517-4115
ISSN eletrônico 2317-1529
Disponível Online em:
http://www.anpur.org.br/revista/rbeur/index.php/rbeur
REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS URBANOS E REGIONAIS
Publicação semestral da Anpur
Volume 15, número 2, novembro de 2013
EDITOR RESPONSÁVEL
Carlos Antônio Brandão (IPPUR-UFRJ)
EDITORA ASSISTENTE
Fernanda Sánchez (PPGAU-UFF)
EDITORA CONVIDADA DESTE NÚMERO
Luciana Correa do Lago (IPPUR/UFRJ)
COMISSÃO EDITORIAL
Jorge Ramón Montenegro Gómez (PPGEO-UFPR), Marcio Moraes Valença (PPGEUR-UFRN),
Maria Lúcia Refinetti Martins (PPGAU - USP), Saint-Clair Trindade Júnior (NAEA - UFPA), Tânia Fischer (CIAGS – UFBA)
CONSELHO EDITORIAL
Ana Cristina Fernandes (UFPE), Ana Fani Alessandri Carlos (USP), Ananya Roy (University of California, Berkeley), Benny Schvarsberg (UNB),
Bernardo Campolina Diniz (UFMG), Bernardo Mançano Fernandes (UNESP-PP), Carlos de Mattos (PUC- Chile), Clara Irazabal (Columbia
University, Nova York), Denise Elias (UECE), Edna Ramos de Castro (UFPA), Emilio Pradilla Cobos (Universidad Autonoma Metropolitana,
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COLABORADORES
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Denise Elias (UECE); Eduardo Davel (UFBA); Fernanda Sánchez (UFF); Edna Ramos de Castro (UFPA); Genauto Carvalho de França Filho
(UFBA); Geraldo Magela Costa (UFMG); Heloisa Soares de Moura Costa (UFMG); Ivo Marcos Theis (FURB); João Cleps Jr. (UFU);
Jorge Luiz Barbosa (UFF); Jorge Ramón Montenegro Gómez (UFPR); José Aldemir de Oliveira (UFAM); José Júlio Ferreira Lima (UFPA);
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Nelson da Nobrega Fernandes (UFRJ); Pedro Cláudio Cunca Brando Bocayuva Cunha (UFRJ); Roberto Luís Monte-Mór (UFMG);
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SECRETARIA
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PROJETO GRÁFICO
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COORDENAÇÃO E EDITORAÇÃO
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Indexada na Library of Congress (EUA),
Latindex e Portal de Periódicos da CAPES
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais – v.15, n.2,
2013. – Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional; editor
responsável Carlos Antônio Brandão: A Associação, 2013.
v.
Semestral.
ISSN 1517-4115
O nº 1 foi publicado em maio de 1999.
1. Estudos Urbanos e Regionais. I. ANPUR (Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento
Urbano e Regional). II. Brandão, Carlos Antônio.
711.4(05) CDU (2.Ed.) 711.405 CDD (21.Ed.) UFRJ
BC-2001-098
Economia Social, Popular e
Solidária, Autogestão e Território
11 Las tres corrientes de pensamiento y
acción dentro del campo de la economía
social y solidaria – José Luis Coraggio
25 A produção associada autogestionária
na construção civil como estratégia para a
integração do sistema da economia social na
autogestão territorial – Cristiano Gurgel Bickel
43 A nova fábrica é o bairro? O trabalho
político e territorial de duas organizações
de cooperativas na periferia de Buenos Aires –
Javier Walter Ghibaudi
61 Circuitos da economia urbana e economia
dos setores populares na fronteira amazônica:
o cenário atual no sudeste do Pará – Harley
Silva, Sibelle Diniz, Vanessa Ferreira
ARTIGOS
123 Movilidad social espacial en los
asentamientos informales de Buenos Aires –
Jean-Louis van Gelder, María Cristina Cravino e
Fernando Ostuni
139 Subsidiariedade e planejamento urbano
em contextos comparados: uma análise entre
Portugal, Itália e Brasil – Juliano Geraldi
159 O Programa Minha Casa Minha Vida
na metrópole paulistana: atendimento
habitacional e padrões de segregação – Eduardo
Marques e Leandro Rodrigues
179 Urbanização extensiva e o processo de
interiorização do estado de São Paulo: um
enfoque contemporâneo – Admir Antonio
Betarelli Junior, Roberto Luís de Melo Monte-Mór
e Rodrigo Ferreira Simões
77 Novas formas associativas na produção
recente de moradia social no Brasil – Camila
Moreno de Camargo
199 Políticas sociais e políticas de cultura:
territórios e privatizações cruzadas – Cibele
89 Empresas recuperadas por trabalhadores
no Brasil e na Argentina – Flávio Chedid
Henriques e Michel Jean-Marie Thiollent
RESENHAS
107 Economía urbana y economía social. Un
reconocimiento pendient – Ruth Muñoz
Saliba Rizek
213 Urbanismo na Era Vargas: a transformação das
cidades brasileiras. – por Fania Fridman
217 Território, Estado e políticas públicas espaciais
– por Ricardo Farret
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
EM PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL – ANPUR
Gestão 2013-2015
PRESIDENTE
Virginia Pitta Pontual
(MDU/UFPE)
SECRETÁRIA EXECUTIVA
Lúcia Leitão Santos (MDU/UFPE)
SECRETÁRIO ADJUNTO
Fabiano Rocha Diniz
(MDU/UFPE)
DIRETORES
Eduardo Alberto Cusce Nobre (PPGAU/USP)
Ivo Marcos Theis (PPGDR/FURB)
Pedro de Novais Lima Júnior (IPPUR/UFRJ)
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CONSELHO FISCAL (TITULARES)
Benny Schvasberg (PPGAU/FAU-UnB)
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Simaia do Socorro Sales das Mercês (NAEA/UFPA)
CONSELHO FISCAL (SUPLENTES)
Clarice Maraschin (PROPUR/UFRGS)
Francisco de Assis da Costa (PPGAU/UFBA)
Geraldo Majela Gaudêncio Faria (PPGAU/UFAL)
Apoio
Editorial
A RBEUR sempre teve no centro de seu projeto editorial a necessidade de procurar abrigar a riqueza e a diversidade das leituras postas a cada momento na comunidade anpuriana,
ao mesmo tempo em que busca estar atenta às problemáticas e aos temas emergentes em seu
campo de conhecimento.
Este número traz os resultados da exitosa chamada temática que buscou instigar reflexões
acerca das articulações entre economia social, popular, solidária e autogestionária e a produção
do espaço, reunindo trabalhos que analisam, do ponto de vista teórico ou prático, as condições objetivas e as potencialidades das experimentações sociais e solidárias na América Latina.
Ousou inovar em sua estratégia editorial, ao convidar um editor para ajudar na organização
da chamada e definição do núcleo temático proposto. A experiência foi bem sucedida e devemos agradecer o empenho da Profa. Luciana Correa do Lago, que exerceu primorosamente as
funções de Editora convidada. O sucesso da chamada foi extraordinário. Dezenas e dezenas de
artigos de alta qualidade foram submetidos neste campo multidisciplinar em construção que
procura avaliar a potência transformadora e os limites das práticas autogestionárias enquanto formas associativas de produção e consumo assim como práticas econômicas, políticas e
culturais alternativas à ordem neoliberal, orientadas pela busca de melhor qualidade de vida
para todos os envolvidos e, em muitos casos, pela construção de uma outra sociedade, onde o
princípio da solidariedade se sobreponha ao do mercado.
O desafio foi selecionar os trabalhos que buscavam compreender os vínculos territoriais
dessas práticas, seja com a comunidade do entorno, seja com as redes produtivas regionais e
nacionais.
Nesse sentido, o bloco temático de economia social, popular e solidária, autogestão e
território é aberto pelo artigo Las tres corrientes vigentes de pensamiento y acción dentro del campo de la Economia Social y Solidaria (ESS): sus diferentes alcances, escrito por um dos maiores
especialistas internacionais do tema, José Luis Coraggio, que sistematiza, em uma visão panorâmica, as três principais vertentes teórico-analíticas da ESS, apresentando suas distintas abordagens, estratégias e interpretações. O autor apresenta alternativas de articulação e integração
entre as três visões, entendendo-as como três níveis de intervenção possíveis na dinâmica dos
empreendimentos populares, plurais e sociosolidários.
Em seguida, o artigo de Cristiano Gurgel Bickel, A produção associada autogestionária
na construção civil como estratégia para a integração do sistema da economia social na autogestão
territorial, visa ampliar algumas noções teórico-práticas acerca dos modos de organização socioprodutiva do setor da construção, problematizando a cultura produtiva na construção civil,
procurando antepô-la a um sub-sistema de produção associada autogestionária, que lograsse
articular cooperativas de trabalho, produção e consumo, atuando nos segmentos imobiliário,
infraestrutura e serviços de construção etc., integrando trabalho-produção-consumo autogestionários na produção do espaço. O trabalho é ainda propositivo, ao elaborar os conceitos de
canteiro-escola para autogestão e de redes de construção autogestionária, com potencial de
constituição de um processo mais amplo de emancipação social.
O terceiro artigo temático A nova fábrica é o bairro?: o trabalho político e territorial de
duas organizações de cooperativas na periferia de Buenos Aires, de Javier Ghibaudi, discute a ação
coletiva das populações periferizadas do Conurbano Bonoarense na década de 2000, tanto no
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que se refere a sua territorialização quanto a sua relação com o trabalho. O autor destaca os
modos como tais propostas e ações de trabalho territorial recriam tradições de classe, questionam a divisão entre lutas sociais fora e dentro da fábrica e quebram o senso comum sobre a
incapacidade de ação coletiva de pressupostos excluídos sociais.
O quarto artigo, Circuitos da economia urbana e economia dos setores populares na fronteira amazônica: o cenário atual no sudeste do Pará, de Harley Silva, Sibelle Cornélio Diniz, Vanessa Cardoso Ferreira, investiga diversas formas de ocupação atinentes ao circuito
inferior (informal, popular, solidária e familiar etc.), na variedade de fronteiras presentes
na Amazônia e em presença de inúmeras formas alternativas de inserção econômica da
população pobre ali residente. O artigo discute a necessidade de um renovado modo de
exploração dos recursos da floresta que possa permitir a incorporação das mais diversas
frações desta população. Defende, ao final, uma ampla articulação econômica e institucional, que possa contribuir para ações de fortalecimento e expansão da economia dos setores
populares naquele território.
Camila Camargo, no quinto artigo de experiências solidárias, discute as Novas formas
associativas na produção recente de moradia social no Brasil, abordando a produção habitacional da modalidade “Entidades” do programa Minha Casa Minha Vida, buscando avançar na
análise da provisão de moradias pela via da autogestão no Brasil. Aborda virtudes, problemas
e indagações dessa modalidade, em termos da qualidade dos produtos e das relações sociais e
de produção do espaço urbano que engendra.
Comparando experiências de empresas recuperadas por trabalhadores, a partir dos resultados de ampla pesquisa empírica que elegeu cinco casos, de um universo visitado, sendo
quatro na Argentina e um no Brasil, Empresas recuperadas por trabalhadores no Brasil e na Argentina, de Flávio Chedid Henriques e Michel Jean-Marie Thiollent, discute os limites e possibilidades da construção de novas relações sociais de produção, perseguindo a identificação
de inovações que foram produzidas no campo da organização do trabalho, materializadas por
iniciativas de lutas dos trabalhadores pela autogestão na América Latina.
Fechando essa sessão da chamada temática, o artigo Economía urbana y economía social: un reconocimiento pendiente, de Ruth Muñoz, realiza uma tentativa de por em diálogo
dinâmico a economia social e solidária e a teoria dos dois circuitos da economia urbana.
A partir da constatação do enorme acúmulo de experiências solidárias e reivindicativas no
espaço urbano, a autora procura realizar tal diálogo, que, segundo ela, teria enorme potencial
para promover disputas no campo em torno de melhores condições de vida, trabalho e de
luta pelo direito à cidade.
Abrindo a sessão “artigos”, o texto de Maria Cristina Cravino, Jean Louis van Gelder e
Fernando Martín Ostuni, Movilidad social y espacial en los asentamientos informales de Buenos
Aires, analisa o desenvolvimento da informalidade urbana assim como os padrões de mobilidade social e trajetórias residenciais no habitat popular metropolitano das últimas décadas.
O artigo mostra as distintas perspectivas e estratégias dos atores para construir a posse segura
de suas casas e traz a discussão acerca das políticas públicas enquanto condição para o desenvolvimento da informalidade.
Em seguida, Subsidiariedade e planejamento urbano em contextos comparados: uma análise
entre Portugal, Itália e Brasil, de Juliano Geraldi, ensaio que parte das bases filosóficas do
debate e que tem como objetivo compreender como o conceito de subsidiariedade opera os
instrumentos de planejamento urbano em Portugal, Itália e Brasil. Tais casos foram escolhidos por representarem as três formas de organização vertical do Poder: unitária, regional e
federativa. Os parâmetros de análise acionados foram: os sujeitos, os objetos e as asserções
6
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normativas, na perspectiva de observar a relação entre Estado e sociedade no planejamento urbano, de forma comparativa, nestes países.
Eduardo Marques e Leandro Rodrigues analisam O Programa Minha Casa Minha Vida
na metrópole paulistana: atendimento habitacional e padrões de segregação, ao investigarem o
volume de produção, sua adequação à demanda habitacional para cada faixa de renda na
região, assim como a localização dos empreendimentos. Acabam logrando identificar padrões
de segregação dos empreendimentos com relação a distâncias, centralidades e equipamentos
públicos, considerando os padrões de localização dos conjuntos existentes e faixas de renda
comparáveis. Ao final, sugerem que o programa tem produzido conjuntos menos isolados do
que as políticas prévias.
Urbanização extensiva e o processo de interiorização do Estado de São Paulo: um enfoque
contemporâneo, de Admir Antonio Betarelli Junior, Roberto Luís de Melo Monte-Mór e Rodrigo
Ferreira Simões, concilia três diferentes métodos já clássicos nos estudos regionais para discutir
a formação, produção e organização do espaço urbano no Estado de São Paulo a partir da
extensão e do transbordamento das condicões gerais expansivas do tecido urbano-industrial
na configuração do processo de urbanização-interiorização da indústria, com claras e distintas
centralidades e polaridades urbanas na (re)organização e (re)definição da produção do espaço.
Políticas sociais e políticas de cultura: territórios e privatizações cruzadas, de Cibele Saliba
Rizek, traz para o debate o inquietante cruzamento entre modos de gestão terceirizada da cultura
e as ações e equipamentos de saúde na Zona Leste da Cidade de São Paulo. A autora identifica
nessa inédita interssetorialidade a conformação de um planejamento social privado por parte de
Organizações Sociais de Cultura e de Saúde que redesenham formas de atuação e margens do
Estado nas suas relações com programas sociais. Uma gestão privada da vida da população em
condições de vulnerabilidade, problematizada neste artigo, se estende nos territórios onde tais
organizações se fazem presentes.
Duas resenhas integram, ainda, as contribuições deste número. Apresentam dois relevantes
livros, lançados recentemente, para os debates de nosso campo de conhecimento. A primeira,
realizada por Fania Fridman, nos apresenta a coletânea, organizada por Vera Rezende, Urbanismo na Era Vargas, que reúne onze artigos de diversos especialistas da Rede de Pesquisa Urbanismo no Brasil, os quais avançam na elucidação de importantes elementos das especificidades
e da importância do urbanismo e do planejamento urbano no país. O segundo, realizado por
Ricardo Farret, nos apresenta outra coletânea, organizada por Marília Steinberger, Território, Estado e políticas públicas espaciais, que reúne artigos sobre as várias estratégias territoriais (regional,
urbana, rural, industrial, logística, ambiental etc.), buscando identificar se e como o espaço e o
“território usado” estão nelas presentes.
Carlos Brandão
Editor responsável
Fernanda Sánchez
Editora assistente
Luciana Correa do Lago
Editora convidada do núcleo temático
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Economia Social,
Popular e Solidária,
Autogestão e
Território
Las tres corrientes
de pensamiento y acción
dentro del campo de la
economía social y solidaria
José Luis Coraggio
Resumen
El artículo se propone distinguir y revistar la existencia de distintas
corrientes actualmente vigentes en el campo de prácticas de la economía social y solidaria
(ESS), tanto a nivel del pensamiento como de la acción. Se presentan tres “corrientes”
denominadas como tales en tanto entre los actores, fundamentalmente promotores,
predomina una u otra práctica y visión sobre el alcance de la ESS.
La primera corriente procura la (re)inserción a través del trabajo actuando a nivel
microeconómico y focalizando en el alivio de la pobreza. La segunda, promueve la creación
de un sector orgánico (subsistema) de ESS y problematizan la sostenibilidad y eficiencia de
los emprendimientos promovidos. Por su parte, la tercera corriente piensa y actúa también
a nivel sistémico, proponiendo la construcción de Otra Economía. Desde esta última, no se
trata de corrientes sino de tres niveles de intervención que se necesitan mutuamente para
poder concretarse.
P a l a b r a s - c l a v e economía social y solidaria (ESS); economía mixta;
economía plural; luta contrahegemónica; Otra Economía.
Introducción
En las dos últimas décadas, junto con los procesos de empobrecimiento y
exclusión de masas de la población emergieron una diversidad de prácticas y formas
económicas, en buena medida ya institucionalizadas, que se ubican bajo el paraguas
de la ESS o de la Economía Solidaria (por propia auto-denominación o por quienes
las caracterizan así desde afuera). Micro-emprendimientos asociativos, trabajadores o
usuarios auto-gestionados, empresas recuperadas, comercio justo, microcrédito, redes
de abastecimiento o comercialización, etc.
En lo inmediato, todas se dirigen con prioridad al segmento de los pobres o
excluidos, y marcan su intención de diferenciarse de las prácticas asistencialistas
(que no es lo mismo que asistenciales, pues siempre es necesaria una dosis de
asistencia), atacando la cuestión social desde la (re) inserción en la economía que
operó los efectos excluyentes.
Hay otras prácticas cuya legitimidad como parte de la ESS es puesta en duda
por algunas nuevas corrientes y que reclaman para sí el adjetivo de “economía social”,
“solidaria” o de “ESS”. Por ejemplo: las cooperativas tradicionales, las asociaciones
(generalmente sin objetivos pecuniarios) y las mutuales de diverso tipo, todas ellas
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L AS TRES CORRIENTES DE PENSAMIENTO Y ACCIÓN DENTRO
formalizadas, incluso siguiendo estatutos legales que han sido uniformados a través de
los continentes. Hay también prácticas que nadie pensó en incorporar, como las de
los sindicatos o la del presupuesto participativo y, desde otro lado, las comunidades
indígenas. Finalmente otras que – sobre todo en Europa – son cuestionadas por su
sesgo empresarial, como las empresas sociales, organizadas como empresas de capital
pero con objetivos sociales. Otro ejemplo es el la llamada “responsabilidad social de
las empresas”. ¿Tiene algo que ver con la ESS? En todo caso, se hace evidente que el
recurso usual de definir una categoría por enumeración de casos no es fácil de aplicar.
Tomemos un punto de partida autorizado. Para el Centro Canadiense de la
Economía Social, ésta es definida así:
1 Ver: <http://www.ciriec.
ula.ve/callforpapersSEspanishformat.pdf>.
La Economía Social se distingue del sector privado y del sector público e incluye las
cooperativas, las fundaciones, las cooperativas de ahorro y crédito, mutualidades, organizaciones no gubernamentales, el sector voluntario, las organizaciones benéficas y las
empresas sociales.1
Así, incluyen las ONGs y las fundaciones, que pueden estar financiadas por
grandes empresas privadas, y a la vez excluyen al “sector privado”. Por sector privado
se refieren a las empresas con fines de lucro, pero incluyen las empresas sociales y
excluyen a las empresas públicas. Excluyen al sector público y, por tanto, sus empresas
públicas, sus programas de asistencia social, algo en que prácticamente todos van a
coincidir, pero incluyen a las empresas que tienen fines “sociales” y las organizaciones
benéficas. Cabe hacer la pregunta: ¿qué tienen en común las formas que entran en esta
enumeración y qué las diferencia de las que no incluyen?
Si se adopta esta clasificación, habrá un debate sobre qué relación (externa) hay
que tener con el estado dejado fuera de la ESS. Al presentar la economía mixta, hemos
propuesto una definición de economía solidaria que incluye una parte del sector público,
por ejemplo el presupuesto participativo o los servicios públicos, y que reconoce que las
ONGs y fundaciones pero también las empresas con cogestión obrera pueden ser formas
con elementos de solidaridad a considerar. Ni ellos ni nadie incluye a los sindicatos,
nosotros proponemos que sus luchas y acciones colectivas sí son (o pueden ser) parte de la
ESS… Y las comunidades étnicas, de ser reconocidas, suelen ser vistas como “otra cosa”,
lo que implica ajustar el concepto de racionalidad económica a la lógica instrumental de
la acumulación y no de la racionalidad reproductiva, propia de la ESS que propugnamos.
2 Ver: Jean‐Louis Laville
(Comp.), Economía social y
solidaria. Uma visión europea, UNGS/ALTAMIRA, Buenos Aires, 2004.
Por otro lado, tenemos la propuesta llamada del Tercer Sector, definido por la
negativa: está integrado por “organizaciones sin fines de lucro”. Prácticamente queda
sólo un conjunto de ONGs y Fundaciones.
Llama la tención que incluyen a este sector, una parte importante del cual está
financiado por fundaciones empresarias privadas, pero excluyen al estado que también
es sin fines de lucro. Excluyen también a las cooperativas que no son empresas de
capital que buscan lucrar sin límite sino que, hasta por estatuto, tienen que cumplir
funciones sociales. Respecto a esta corriente, que predomina en el mundo anglófono,
Jean-Louis Laville, un exponente de la ESS en Europa, particularmente en el mundo
francófono, pero no solamente, pugna por diferenciarlas de la ESS.2
El espacio de acción de las prácticas que ejemplificarían la ESS es, entonces, muy
heterogéneo y con bordes poco claros o, al menos, no consensuados. Anticipamos que
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JOS É
LUIS
CORAGGIO
las propuestas más complejas (y políticas), como es usual, abren lugar a diferencias
ideológicas a veces muy marcadas. A nuestro juicio y el de Laville, la ESS es un
sub-campo del campo de prácticas económicas que está cruzado con el campo de la
política. Mientras para autores como Alain Caillé la política es una esfera diferenciada
de la economía, para nosotros está ya en el interior mismo de la definición sustantiva
de economía.3
Si los sistemas económicos son construcciones socio-políticas y no resultado
de evoluciones naturales y necesarias, como propugnaría la visión de una secuencia
de modos de producción de marxismo vulgar, o la de la evolución necesaria hacia
una sociedad de mercado (el “fin de la historia” de Fukuyama), es preciso pensar la
posibilidad de otra economía desde la lucha política contra-hegemónica, tratando de
desestructurar la cultura económica capitalista, sumando a esto lo que consideramos
ineludible: criticar su modo de definir y ejercer la autoridad social. Esto es así, tanto
si se ejerce como poder de dominación vertical, donde los subordinados tienen que
obedecer, como si, en el mejor de los casos, se ejerce como hegemonía, que se basa en
convencer a los subordinados, que incluso pueden aportar voluntariamente para hacer
más férrea la asimetría entre el arriba y el abajo. Ninguno es realmente democrático
(donde el pueblo es el soberano).
En este marco de inevitable problematización sobre qué es y que abarca la ESS, y
partiendo de las prácticas mismas, proponemos que pueden delinearse tres corrientes
de pensamiento y acción, más o menos virtuales, más o menos reales, que el sentido
común de los mismos activistas latinoamericanos tiende a reducir, como veremos, a la
primera o, eventualmente, la extiende a la segunda.4
1. La primera corriente, que procura la (re) inserción por el trabajo actuando
a nivel microeconómico, se caracteriza por un conjunto de prácticas que se focalizan
en lograr la integración social, y en el alivio de la pobreza vía re-inserción (o la primera
inserción) de grupos de personas excluidas del mercado de trabajo. Así, promover
y apoyar el surgimiento de emprendimientos asociativos locales, gestionados por
sus trabajadores-propietarios va en la dirección del autoempleo. Para las estadísticas
dejarán de aparecer como desocupados, aunque puedan ser sub-ocupados o
“improductivos” según las categorías neoclásicas del análisis de este cuasi-mercado.
Eso va acompañado de una serie de prácticas más específicas, en buena medida ya
institucionalizadas (véanse las cartillas que enseñan cómo promover o cómo organizar
micro-emprendimientos), que intentan crear las condiciones que requieren esos
emprendimientos para prosperar:
(a) formación: inyección de espíritu de empresa, contabilidad, conocimientos sobre los
trámites u otras relaciones con el estado, identificación de mercados potenciales, métodos
de propaganda y comercialización, selección de técnicas de producción, gestión elemental
del negocio y, muy importante para muchos promotores, una nueva cultura de separación
del emprendimiento y la familia…
(b) donación de una dotación de medios de producción iniciales o un crédito inicial para
adquirirlos (“igualdad de oportunidades”),
(c) dar acceso recurrente a crédito para acompañar el proceso de consolidación o para
atender necesidades de consumo de los emprendedores.
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3 Ver: Alain Caillé, Jean‐Louis
Laville, Cyrille Ferraton y José
L. Coraggio (Org.), ¿Qué es lo
económico? Materiales para
um debate necessário contra
el fatalismo, ICCUS, Buenos
Aires, 2009.
4 En lo que sigue implícitamente suponemos que las
corrientes son encarnadas
en los promotores, pero obviamente pueden estarlo en
los actores mismos de la ESS.
L AS TRES CORRIENTES DE PENSAMIENTO Y ACCIÓN DENTRO
5 Ver: José L. Coraggio, Economía y política. Sobre la
sostenibilidad de los emprendimientos mercantiles
de la economia social, em J.
L. Coraggio, Economía Social,
acción pública y política, CICCUS, Buenos Aires, 2007.
6 Organismos como el Banco
Mundial han mostrado uma
gran capacidade para tomar
y resignificar los términos que
va proponiendo la ESS: microcrédito, participación, etc.
En general, esta corriente, preocupada por lograr la sustentabilidad de los
emprendimientos mercantiles, tiene como paradigma la empresa de capital (explícita o
implícitamente): su modo de cálculo de los costos y resultados, el concepto de “ganancia”
y de “capital”, pero sobre todo su concepto de eficiencia y por tanto de racionalidad.5
Esto da lugar a prácticas que ya están claramente institucionalizadas: el
microcrédito, las incubadoras de emprendimientos mercantiles, las mismas cartillas
de formación, etc. y a la búsqueda de regulaciones que reconozcan a estas formas en su
especificidad y faciliten su funcionamiento: que puedan facturar sus compras y ventas,
pagar o ser exentos de impuestos, recibir apoyos del estado, tener acceso a crédito, etc.
Otra característica es la separación propugnada entre el micro-emprendimiento
(visto como semilla de una microempresa) y la economía doméstica/familiar o
comunitaria (que no pertenece al ámbito del mercado). Asimismo se busca evitar
la proliferación de emprendimientos unipersonales por cuenta propia, afirmando la
necesidad de alcanzar escalas mínimas requeridas para alcanzar la eficiencia, es decir,
la competitividad. Esto último, para formas de producción intensivas en fuerza de
trabajo, implica que los emprendimientos deben estar formados por un grupo de
trabajadores asociados que cooperan, creando así una capacidad mayor que la suma de
las individuales, que procuran asumir el productivismo por trabajador como criterio
de organización interno. El asociacionismo “utilitario”, la absolutización del interés
material de los trabajadores, es característico de esta corriente.
Estas prácticas de promoción son de nivel microeconómico en el sentido crematístico,
y no dejan de serlo porque piensen en cadenas de valor, mecanismos de abastecimiento
o comercialización conjunta, etc. pues las relaciones así consideradas son exclusivamente
de intercambio en base a contratos según las leyes del mercado o sus variaciones (acuerdos
de conveniencia que se rompen cuando el cálculo indica que hay opciones mejores).
Los promotores pueden ser ONGs pero también programas de gobierno financiados e
impulsados desde organismos internacionales.6 Aunque no son empresas se adscriben
a la racionalidad instrumental, no plantean una crítica al mercado como institución y se
concentran en lograr una producción y circulación de mercancías competitiva y procurando
el mayor valor neto posible para esos trabajadores/propietarios.
Dándole otro énfasis a la caracterización, cuando es reduccionista, esta opción
podría también denominarse “integracionista”, pues afirma que el papel de las nuevas
(o viejas, reactivadas o renovadas) formas económicas es llenar el vacío que deja el
mercado capitalista global, y que deberían integrar a los trabajadores excedentes
y sostenerse sobre la base de sus propios resultados produciendo eficientemente y
compitiendo entre sí y con las empresas capitalistas en los mismos mercados.
Agreguemos a todo lo dicho que estas prácticas suelen estar dirigidas a los sectores
más pobres, lo que establece un punto de partida que marca todo el proceso de promoción.
2. Una segunda corriente, la que procura la creación de un sector orgánico
(subsistema) de ESS, estaría conformada por las prácticas que, iniciadas como
las anteriormente descriptas o saltando “etapas”, van más allá, al advertir que
la sostenibilidad de las formas económicas promovidas no se logra sólo con (i) la
eventual articulación de los micro-emprendimientos asociativos a través de relaciones
oportunistas de mercado, y (ii) una mayor eficiencia definida como la de las empresas
(rentabilidad monetaria). Se advierte que hacen falta redes no meramente económicas,
sino de reciprocidades, de solidaridades sociales y políticas. Esas solidaridades se espera
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que se concreten en la formación de sujetos colectivos, como asociaciones locales pro
desarrollo local, o diversas sectoriales y transversales de trabajadores autogestionados.
En este caso, desde el comienzo de la intervención se trata de evitar la fragmentación
de los emprendimientos y promover la conformación de un sector articulado orgánico.
Por “orgánico” nos referimos a algo más que una sumatoria mecánica, como cuando
se asocian productores para reclamar mejores precios. La palabra apela a la idea de
un subsistema de partes que cumplen funciones en un todo interdependiente y que,
en el caso de un organismo social, conlleva la emergencia de un sujeto colectivo con
capacidad de responder al contexto, como subsistema.
Se trata también de incluir el proceso económico en su conjunto: producción,
distribución, circulación y consumo, generando asociaciones de productores, de
comerciantes, de financiadores, de consumidores, pero además articulaciones
conscientes entre todos ellos como actores o sujetos. Se trata además de incluir las
acciones para lograr mejores relaciones de reciprocidad y redistribución a través del
estado: asignaciones monetarias, ingreso ciudadano, tasas de interés, tasa e impuestos,
acceso a bienes públicos (salud, educación, servicios subsidiados como el de transporte,
energía, agua, etc.). Pues sin ellas faltaría un piso básico que protege a los productores
contra la alta vulnerabilidad de sus emprendimientos.
Implica partir de la economía popular y su cultura colonizada, subordinada
e individualista, pero apoyándose en componentes solidarios sin los cuales no se
lograría la sobrevivencia, incluyendo en los programas a: (i) trabajadores individuales
procurando su asociación en algún nivel (artesanos que comercializan juntos,
campesino que no quieren compartir la tierra pero sí un tractor o un crédito para
canales de riego, etc.), (ii) emprendimientos familiares.
Se incluye y promueve como actividad económica del subsistema la producción
para el autoconsumo familiar o comunitaria (huertos, infraestructuras, etc.). Se trata
también de no ver a la escuela pública formal como contexto externo sino de integrar
sus elementos (maestros, alumnos, currículo) como parte del sector. Otro tanto con
los centros de salud…
Es evidente la diferencia en los enfoques conceptuales, pero lo principal es que
hay claras consecuencias sobre las prácticas. Así, para la segunda corriente no se trata
solamente de:
(a) partir de un grupo de individuos, ver qué pueden producir y cuáles son las condiciones para que se organicen para hacerlo y poder sostenerse a partir de los resultados de
mercado, para luego,
(b) dados los problemas que se van dando de comercialización, de abastecimiento, o de
pérdida del valor agregado a manos de los intermediarios, etc. pensar en armar “cadenas
de valor” articulando emprendedores en distintos eslabones.
Lo anterior son relaciones de mercado que se dan al primer nivel, el
microeconómico. Por lo demás, esas relaciones de mercado pueden estar centralizadas
por empresas de capital, como pueden ser los supermercados como subcontratantes
que dominan las cadenas de abastecimiento e imponen productos, tecnologías, costos.
En cambio de trata de construir incluso lo microeconómico, comenzando por una
anticipación de las cadenas posibles y desde allí lograr que actores o sujetos vayan
generando más o menos paralelamente los emprendimientos que van a articularse
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(ejemplo: no comienzo con productores textiles a partir de materias primas compradas
y con bocas de salida usuales, sino que ya se incluyen de entrada los participantes
potenciales para cubrir cada eslabón de la cadena: productores de lana, transportistas,
productores de hilo, de tejidos, confeccionadores, comercializadores, entidades o
mecanismos de financiamiento, vinculación con agencias de asesoría tecnológica,
etc. O por lo menos lo tenemos como horizonte antes de que el aislamiento sea
un problema, mientras vamos avanzando con grupos de productores que se van
organizando y compartiendo esa visión… No es entonces un resultado del mecanismo
de mercado sino una construcción consciente que puede además tener otros objetivos
(ejemplo: la seguridad alimentaria, aunque no sea “eficiente”).
Para dar un ejemplo: en esta perspectiva no alcanza con el crédito personal
y pequeño sino que se requiere un sistema de ahorro y crédito de otra escala, con
fondos públicos de garantía que le permitan prestar para actividades productivas o
con un período más largo de recuperación (como las inversiones en infraestructura)
y con modalidades que admiten tomadores de crédito colectivos. Algo por construir
que será parte de la ESS si se trata de un sistema de finanzas SOLIDARIAS, autogestionado democráticamente. Y su sostenibilidad no será solo financiera sino social,
por la existencia de relaciones solidarias con la comunidad, entre los participantes.
El concepto de economía mixta: economía
empresarial capitalista, economía
pública, economía popular y su relación
con el sector y/o los principios de la
ESS. El alcance de la segunda corriente
Toda economía puede ser analizada como compuesta por tres sectores o formas
de organizar los procesos económicos: (a) el empresarial privado, (b) el del estado o
público, (c) el de economía popular.
El de economía empresarial privada es un sector que se organiza como un
subsistema más o menos articulado de empresas de capital. El sentido del sector,
transmitido a la subjetividad de los empresarios, es acumular capital, ganar sin límite,
y para ello competir y ganar y, para lograrlo, aplicar la racionalidad instrumental.
Según la ideología económica hegemónica, para sobrevivir en el sistema de mercado,
toda forma económica tiene que asumir esos criterios, sea el estado, una ONG, o un
emprendimiento familiar (esto no garantiza que efectivamente sobrevivan, incluso las
empresas de capital, que quiebran de a decenas de miles cada año). En una sociedad
capitalista, el tipo ideal de empresa de capital, el que Weber planteó como la forma
superior de la organización económica, se ha convertido además en el paradigma
de la organización racional en general (teoría de la acción racional). Sus categorías
fundamentales son: capital invertido, costos, ingresos, ganancias media por su masa
o por su tasa respecto al capital, estructura del capital (fijo, circulante, etc.), crédito,
riesgo,… Su articulación está dada por el mercado, pero en el mercado real se forman
y actúan grupos económicos concentrados, sistemas de clusters y subcontratación,
hay empresas formadoras de precios, etc. que operan lejos de la utopía del mercado
competitivo de libre concurrencia.
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El sector de economía estatal o pública abarca las unidades administrativas de
organización de los estados: instancias de gobierno central, presidencia, ministerios,
provincias, municipios, empresas públicas, organizaciones que proveen servicios
públicos (como la escuela o el hospital), y para funcionar requieren recursos
económicos que provienen del sistema fiscal de redistribución, de lo que producen
sus empresas o del crédito. Su sentido, no siempre es el mismo para cada partido de
gobierno o para cada segmento del subsistema. En general pueden ser: incentivar y
orientar la inversión y el proceso de crecimiento nacional, asegurar la gobernabilidad
del sistema, acumular poder y, finalmente: lograr el bien común. Uno puede subordinar a
los demás, o darse una combinación más pareja de todos ellos. Sus categorías centrales
son: presupuesto, gasto, ingresos fiscales, deuda pública, déficit o superávit, tasas de
interés (“riesgo país”)… Su articulación está dada por la rígida estructura burocrática
y verticalista que une sus elementos.
El sector de economía popular tiene como base de organización económica
las unidades domésticas, básicamente los hogares, sus extensiones (organizaciones
económicas de diverso tipo) y las comunidades. Este sector, lejos de estar articulado
como tal, es magmático, fluye, cambia de formas. Puede pasar de un peso importante de
la inserción en el mercado de trabajo en relación de dependencia a la multiplicación de
emprendimientos, cooperativas, asociaciones, mutuales. Puede pasar de comunidades
bien consolidadas a comunidades en proceso de desintegración por la migración, la
dependencia del mercado, etc. Si acumula es a niveles elementales, como inversión
inmediata para los emprendimientos, o en la vivienda y sus instalaciones (esta
acumulación no es de capital, sino de formas de la riqueza para su uso). Su sentido
es la reproducción biológica y social de la vida de sus miembros en las mejores condiciones
posibles. Sus categorías principales son: ingresos, consumo, hibridación de recursos,
oportunidades de trabajo, emprendimientos, programas asistenciales, ayuda mutua,
condiciones y calidad de vida… Su articulación está dada por relaciones de mercado
(generalmente altamente competitivas), así como por relaciones de redistribución y
reciprocidad vinculadas a diversos tipos de afinidades.
A nivel agregado (macro) podemos graficar la economía mixta como sigue:
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Las intersecciones entre los tres octógonos reflejan formas mixtas como una
empresa cogestionada, o una empresa “mixta” (Privada-estatal), o una empresa de
servicios públicos con participación de los usuarios.
El movimiento de conjunto de una economía mixta puede apreciarse por
la dinámica cuantitativa y cualitativa que resulta de la aplicación de los recursos
organizados o utilizados por la combinación de los diversos tipos de organización
orientadas por los tres sentidos o grupos de sentidos mencionados. Esto puede
ponderarse cuantitativamente, por ejemplo en base a los pesos relativos de cada sector
para distintas variables (población ocupada, valor de la producción, demanda efectiva,
contribuciones a los balances exteriores, etc.), o cualitativamente, por ejemplo según
las negociaciones y conflictos en proceso entre agentes-sujetos de los distintos sectores
pero sobre todo según las relaciones entre la base material (la economía) y la hegemonía
o dominio políticos vigentes en la sociedad.
Entre los tres sectores hay intercambios mercantiles pero también transferencias
unilaterales monetarias o no monetarias (subsidios, impuestos, donaciones, bienes
públicos, remesas, etc.) cuya evolución, estructura y tendencias deberemos estudiar
en cada caso concreto.
La ubicación de la economía solidaria
en la economía mixta
Nuestro punto de partida es siempre una economía mixta. En nuestros países
es una economía mixta periférica con dominancia capitalista. Es decir que, aunque
hay contradicciones, la lógica del capital subordina los otros sentidos presentes en el
sistema económico.
Si tenemos que ubicar el sector de economía solidaria en la economía mixta lo
podemos hacer como se refleja en el diagrama siguiente. Hay componentes solidarios
en la economía popular, pero esta no es siempre ni predominantemente solidaria.
Los hay, muy importantes, en la economía pública (principalmente las relaciones de
redistribución progresiva). Y los hay también en el sector empresarial privado (aunque
sea una solidaridad filantrópica y unilateral).
En este diagrama hay una tensión (flechas azules) por la lucha contrahegemónica
contra la dominancia de la lógica capitalista. Se avanza ampliando el sector de
economía solidaria articulándolo como un subsistema orgánico, construido desde el
piso fértil de recursos y relaciones de reciprocidad y redistribución de la economía
pública y la popular y ampliando su sentido del de la reproducción de la vida de los
miembros de cada UD al de la reproducción ampliada de la vida de todos (solidaridad).
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Esta economía mixta sigue teniendo los tres sectores, en particular el capitalista
privado, pero con otros pesos, formas de organización y roles, y las líneas de fuerza
amplían sus fronteras no sólo por la lucha por recursos y mercados, sino por acción del
proyecto contra-hegemónico, tomando contenidos de democratización del estado, de
resistencia al clientelismo político y de avance de los derechos ciudadanos, de avances
en la legitimación de la reapropiación de recursos y actividades por los trabajadores,
las comunidades o el Estado democrático, así como de institucionalizar otros
límites morales a las acciones de los agentes del capital (provisoriamente, podríamos
ejemplificar esta situación como la actual de los procesos en Bolivia, Ecuador y
Venezuela).
Los trabajadores organizados necesitan no solo trabajar y sindicalizarse para
defender el salario nominal y las condiciones de trabajo, o asociarse como productores
autónomos para lograr mejores términos de intercambio en el mercado, sino ejercer
fuerza en el conjunto del campo de relaciones de la economía mixta (por ejemplo:
las movilizaciones de protesta o los movimientos organizados de usuarios de servicios
que pugnan por el acceso, por la gratuidad, o por evitar aumentos en los precios de
bienes y servicios públicos esenciales para la subsistencia). Para que el estado aporte a
la expansión y profundización del subsistema de economía solidaria se requiere que
las fuerzas políticas en el gobierno tengan un proyecto en tal sentido, superando las
tendencias cortoplacistas y clientelistas. Y todo esto tiene que ver con la política.
La economía popular no es un mundo cerrado. Tampoco es un mundo de
sumatoria de unidades o emprendimientos “micro-socioeconómicos”, sino que
hay redes que operan a nivel “meso-socioeconómico”, como las redes de ayuda,
asociaciones de productores que compran insumos, o comercializan, o generan ahorros
y se dan crédito juntos, intercambios que pueden ser regulados a través de relaciones
mercantiles, pero también de reciprocidad, de ayuda mutua. Esto es también parte
de una Economía Popular, son extensiones de las UD y sus micro-emprendimientos.
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Sin embargo, no llega a constituir un subsistema, y avanzar en esa dirección implica
ampliar el alcance de las relaciones de solidaridad.
El mercado no es exclusivo de la economía empresarial privada, en ocasiones
mal denominada sector de mercado. El mercado atraviesa también la economía
popular y puede generar comportamientos extremadamente competitivos, como en
el denominado “sector informal urbano”. En la situación de exclusión masiva y de
dificultad para la reproducción que se ha agravado estos años, han resurgido formas
de organización de mercado, como las ferias, por ejemplo, que son una forma de
institucionalizar el intercambio como centro de encuentro directo y solidario entre
productores y consumidores.
En general esta economía popular no vende bienes y servicios a la economía
pública, porque la economía pública está formateada con créditos del Banco Mundial
que indican que las compras del Estado tienen que ser licitaciones internacionales
para que haya “competitividad”. Por eso una reivindicación de los propulsores de la
economía popular mercantil es la modificación de las reglas de compra del estado,
facilitando la inclusión de pequeñas y medianas organizaciones, especialmente
cooperativas. Tiene que existir un reconocimiento previo del papel de esta economía
popular para que el poder social y del Estado se oriente a que ésta se supere y desarrolle
otras formas, otras capacidades y calidades.
Hay también transferencias de valor o abiertamente monetarias entre la economía
pública y la popular. Los subsidios a los servicios o las transferencias de ingresos
mínimos a desocupados o pobres, que han estado difundiéndose como nueva política
social, van en esa dirección; pero también hay una transferencia en sentido inverso: el
pago de impuestos, muchas veces con gran inequidad fiscal.
Deberíamos poder hacer un análisis más macro de los términos de intercambio
que se dan entre estas economías, la economía popular, la economía empresarial,
la economía estatal, y además con la economía internacional, pero la falta de
reconocimiento de la economía popular hace que sea difícil rastrear sus resultados y
movimientos económicos agregados. Un ejemplo claro de esto es el trabajo doméstico
de reproducción (cocina, lavado, limpieza, cuidado de las personas, confección y
arreglo de vestimenta, autoconstrucción de la vivienda, etc.), usualmente realizado
por la mujer, que no es reconocido como actividad económica ni se contabiliza en el
PIB porque no se intercambia por dinero ni está mercantilizado (el sistema de registro
contable nacional de Francia ha estimado que puede alcanzar al 40% del PIB!). En
el caso de Ecuador se está avanzando en este reconocimiento. Tanto por el lado del
registro por el Banco central que mide el producto nacional como por las políticas de
asignación de ingresos y pensiones a las mujeres que se han dedicado a la economía
doméstica.
En resumen: el enfoque meso-socioeconómico permite superar la reducción
al microemprendimiento al mirar lo micro desde una visión de la articulación
económica posible en base a relaciones de solidaridad. Asimismo conlleva una visión
del sistema económico (economía mixta) en el cual pude conceptualizar la ubicación
de la economía popular realmente existente y su potencial como parte de un sector/
subsistema de economía solidaria. Advierte la necesidad de la lucha contrahegemónica
dentro del sistema con predominancia capitalista buscando modificar las estructuras
para ampliar la economía solidaria y poniendo límites a los otros dos sectores/
subsistemas.
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3. Una tercera corriente, que piensa y actúa también a nivel sistémico, va más
allá de la propuesta de construir un subsistema de ESS dentro de una economía mixta.
Procura la construcción de Otra Economía (otro sistema económico).7
Aquí se trata de buscar formas de “superación” del sistema cultural capitalista,
que impulsa no sólo la crítica teórica y práctica de las relaciones de explotación
capitalista del trabajo sino también las propias del patriarcado y otras formas de
explotación, y pretende establecer una relación de contradicción y conflicto continuo
con la economía del capital y la estatal. Esto implica no sólo diferenciarse y separarse
sino proponerse como forma superior a las prácticas propias del capital, disputando el
sentido de criterios, prácticas, propuestas a nivel micro y mesosocioeconómico, en una
lucha donde economía, política y cultura se ven fuertemente imbricadas.
7 Ver: Diccionario de la Outra
Economía, David Cattani, José
L. Coraggio, Jean-Louis Laville (Org.), UNGS/ALTAMIRA/
CLACSO, Buenos Aires, 2009.
Se trata de construir otro sistema económico (Otra Economía), que substituya al actual,
sobreconformando las relaciones de competencia entre intereses particulares con relaciones de redistribución, solidaridad y reciprocidad y el predominio de un bien común
legítimamente establecido. En la transición, se puede hablar de una “economía plural”. La
definición de esa economía plural tendría que saldar debates importantes respecto a, entre
otros: el papel del estado, el grado admitido de automatismo de mercado, las formas de
propiedad y apropiación, el papel y control del dinero y el grado de mercantilización del
trabajo y la naturaleza, así como a los valores morales propugnados como constitutivos de
la nueva economía. En todo caso, no está claro ni es fácilmente decidible si se presenta
como un principio de utopía o como una propuesta de economía realizable. Las instituciones de esa otra economía no están predeterminadas ni han sido deducidas de la crítica
al capital, ni se saldan con la discusión sobre el socialismo como transición ya experimentada. En todo caso hay un largo proceso de acción experimental, recuperación histórica,
producción teórica y aprendizaje, donde las ideologías cristalizadas y autoreproductivas
no ayudarían mucho.
Un ejemplo “duro” de esta postura sería el de la economía socialista centralmente
planificada que se inventó en la URSS y luego se modeló e implantó (con algunas
variantes) en Cuba. Otra menos “dura” es la del estado de bienestar desarrollado en la
posguerra en Estados Unidos y Europa, luego importado en versión lavada en nuestra
región como estado desarrollista. Aún otra, menos explícita como sistema complejo,
fue la propuesta de Marcel Mauss – o ahora de Paul Singer – de construir un “mundo
de cooperativas”, que algunos vinculan con la experiencia del socialismo yugoslavo.8
Posteriormente, Mauss revisó su posición, indicando que no es posible imponer a la
realidad un paradigma de cambio, sino que a lo sumo la ley (digamos el estado) solo
puede sancionar a partir de realidades, de prácticas existentes, y que la sociedad real
tiene una diversidad que no pueden reducirse imponiendo un modelo uniforme.
Esto cualifica el postulado de que es posible construir otra economía; es posible, pero
no será diseñando prototipos y sobre-imponiéndolos a la realidad, en una suerte de
ingeniería social. Y esto tiene que ver con la política.9
En todo caso, ya no se trata “sólo” de proponer la construcción y desarrollo de un
subsistema dentro de otro sistema, de reestructurar una economía mixta teniendo en
cuenta, claro está, las vinculaciones de la economía solidaria con el resto, es decir con
el sector empresarial, con el estado, con la economía popular, tal como caracterizamos
la segunda corriente. Aquí se trata de la relación de conjunto entre los campos de la
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8 Ver: Paul Singer, Economía
solidaria. Um modo de producción y distribución, em
J.L. Coraggio (Org.), La economia social desde la periferia. Contribuciones latinoamericanas, UNGS/ALTAMIRA,
Buenos Aires, 2007.
9 Sobre esto puede verse,
José Luis Coraggio: La construcción de otra economía
como acción política (2013,
inédito). Disponible en:
<www.coraggioeconomia.
org>.
L AS TRES CORRIENTES DE PENSAMIENTO Y ACCIÓN DENTRO
10 Ver: Franz Hinkelammert
y Henry Mora, Economía,
sociedade y vida humana.
Preludio a una segunda crítica de la economia política,
UNGS/ALTAMIRA,
Buenos
Aires, 2009.
sociedad, de la economía, de la cultura y de la política, y de su posicionamiento en el
sistema interestatal global.
Implica pugnar por revertir la autonomización del mercado, profundizada por
el neoliberalismo, avanzando en su regulación desde la sociedad y la política, sin caer
en la absolutización del principio de planificación [se trata de ir a una sociedad con
mercado, no de mercado].
Implica redefinir los mecanismos y alcances del principio de redistribución de
dinero y bienes públicos, incorporando la redistribución de la tierra, del agua, del
conocimiento, el control del dinero como bien público y no como mercancía. Sin
embargo, con respecto a esto último, no se trataría sólo de distribuir de otra manera
lo existente, sino de revisar las reglas de apropiación y disposición de los medios
productivos. Supone no sólo redistribuir (algo que hoy caracteriza a los gobiernos de
sentido popular, no necesariamente autodenominados revolucionarios, en América
Latina) sino transformar la estructura productiva interna (qué y cómo se produce),
los modos de legitimación de las necesidades y de consumo y las relaciones externas
(grado de soberanía alimentaria, energética, financiera…).10
Incluye claramente redefinir las relaciones entre sociedad y naturaleza. Implica
reestructurar el sistema de generación de conocimiento científico y tecnológico, hoy
orientado a producir conocimientos patentables privadamente para hacer negocios,
y el sistema educativo en su conjunto… Una última característica de esta corriente
virtual que estamos delimitando es la de que, antes que concentrarse en el alivio de
la pobreza a través de la redistribución del excedente generado por un crecimiento
acelerado, plantea la inseparabilidad de la continuidad de la pobreza a pesar del
crecimiento económico, por un lado, y la creciente concentración de la riqueza por
el otro. Y no se limita a lograr un gobierno que negocie mejores condiciones en los
intercambios con el sector empresarial, sino que ataca las consecuencias de la primacía
de las corporaciones por sobre la política democrática.
La necesaria articulación
y mutuo reconocimiento de las tres
“corrientes” de la ESS
Para dar otro ejemplo: ubicados en la primera corriente esperaríamos
que la universidad desarrolle incubadoras o asesorías puntuales gratuitas a los
emprendimientos que van surgiendo; en la segunda corriente pugnamos para que el
subsistema local de ESS establezca otra relación con la universidad regional, pudiendo
establecer algunos convenios menos puntuales, procesos de formación específicos para
los actores de la ESS. En la tercera corriente ya se plantea revolucionar la universidad
como institución y sus relaciones con la sociedad como un todo, y por tanto su relación
con el conocimiento (a su vez sometido a crítica en tanto absolutización de la ciencia),
la formación y los servicios. Pero además conlleva recuperar su papel de institución
del intelecto, es decir que sea no sólo instrumental, útil, sino lugar de reflexión crítica
de la realidad existente.
Estas tres corrientes tienen, claramente, un alcance distinto y proyectan de
otra manera el accionar si se asume uno u otro horizonte. Sin embargo, las tres
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son significativas, en cierto sentido se necesitan mutuamente. Lógicamente es en base
al aprendizaje enfrentando los desafíos del primer nivel que surgen los problemas
conceptuales y prácticos que llevan al segundo y así siguiendo. Como en la realidad
hoy los tres coexisten, parte de la tarea política es dialogar y lograr alianzas, vincular
la atención de la urgencia inmediata con la mirada estratégica, analizar en cada
situación concreta el papel que cada tipo de intervención o proyecto puede tener en
el movimiento de conjunto.
Para admitir esto es muy importante revisar la dinámica de estos procesos. El
nivel de prácticas integradoras al mercado laboral, si no tiene intereses espurios, lleva
necesariamente a advertir la necesidad del segundo nivel, y éste, al avanzar, encuentra
limites que sólo pueden franquearse si se pasa el nivel tres. O, la lectura inversa:
no es posible pretender transformar toda la economía por la ley, aunque sea una
Constitución, si no hay actores microsociales predispuestos a resignificar sus acciones,
o si no hay subsistemas que no solo movilicen recursos, personas y comunidades sino
que den una base firme a la formación de sujetos colectivos que sustenten el proyecto
de construcción de otra economía. (Nuevamente: Bolivia, Ecuador, Venezuela)
Sin embargo, la falta de diálogo y la competencia pueden dar lugar a antagonismos
cuando los actores de una u otra corriente se posicionan ideológicamente defendiendo
su práctica a rajatablas y viendo las otras como “poca cosa” (si es que no “funcionales
al sistema”) o, a la inversa, como utópicas o “políticas”.
En definitiva, las llamamos “corrientes” en tanto entre los actores de la ESS
predomina una u otra práctica y visión del alcance de la ESS. Sin embargo, visto desde
la “corriente 3”, se trata de tres niveles de intervención que se necesitan mutuamente
para poder concretarse. Se puede actuar al nivel 3, pero sin el piso de las prácticas del
nivel 2 y 1 no podría pasar de ser un proyecto estatizante. Se puede actuar al nivel
1, pero sin el nivel 2 se pierde eficacia y sostenibilidad. Si no se llega al nivel 3, las
realizaciones a nivel 1 y hasta 2 pueden quedar aislados o subordinados dentro de una
economía donde predomina el principio de mercado.
Finalmente, hay que tener presente que estas tres corrientes especificamente
identificadas desde la perspectiva de las visiones y prácticas de la ESS, pueden estar
atravessadas por corrientes y proyectos ideologico-políticos particulares orientados, por
ejemplo, por la acumulación de poder partidario, o por la emancipación humana. Por
lo pronto, no presumimos que haya uma correspondência unívoca entre el pensamento
sistémico y una orientación de izquierda, ni que la acción a nível microeconómico
relativamente alienada sea de por sí politicamente regresiva. Los tres niveles pueden
darse dentro de proyectos de motivación utilitarista o de afirmación del reconocimiento
del otro y la solidaridad democrática. Esto tiene que ver com la política.
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José Luis Coraggio é Investigador y Docente del Instituto del Conurbano, Universidad Nacional de General
Sarmiento (UNGS). E-mail:
<[email protected]>
L AS TRES CORRIENTES DE PENSAMIENTO Y ACCIÓN DENTRO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Buenos Aires, UNGS/ALTAMIRA/CLACSO, 2009.
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mercantiles de la economía social. In: CORAGGIO, J. L. Economía social: acción pública y
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HINKELAMMERT, F.; MORA, H. Economía, sociedade y vida humana: preludio a una
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UNGS/ALTAMIRA, 2004.
SINGER, P. Economía solidaria: um modo de producción y distribución. In: CORAGGIO,
J. L. (org.). Economía social desde la periferia: contribuciones latinoamericanas. Buenos Aires,
UNGS/ALTAMIRA, 2007.
Abstract
This paper aims to critically revisit the existence of different
approaches currently adopted in the field of popular economy both in the level of theories
and actions. Three approaches are presented here and each one sustains different practices
and conceptions regarding the reach of the popular economy. The first approach seeks the
reinsertion through work and acts in a microeconomic level focusing on poverty relief.
The second one promotes the creation of an organic sector (subsystem) of the popular
economy while underscores the sustainability and efficiency of the enterprises. In turn, the
third approach thinks and acts in a systemic level, proposing the construction of Another
Economy. This latter approach comprises three levels of intervention that are mutually
interdependent.
K e y w o r d s social and solidarity economy (SSE); popular economy; mixed
economy; plural economy; counter hegemonic struggles; Another Economy.
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A produção associada
autogestionária na
construção civil como
estratégia para a integração
do sistema da economia social
na autogestão territorial
Cristiano Gurgel Bickel
Resumo
Neste trabalho problematiza-se o segmento autogestionário da construção
civil como um lugar teórico-prático de transformação socioeconômica para a superação
da produção capitalista do espaço. Para tanto, formulam-se críticas à cultura produtiva,
em suas formas heterogestionária e autogestionária, estabelecendo-se proposições teóricopráticas para um amplo funcionamento da economia social no setor da construção civil.
Essas proposições estão sintetizadas nos conceitos de canteiro-escola para autogestão e redes
de construção autogestionária, enfocando-se respectivamente a reprodução sociopolítica do
trabalho associado na construção civil e a reprodução socioeconômica da produção associada
em autogestão no território. Dessa forma, por meio da atuação integrada de cooperativas
de trabalho, produção e consumo nos segmentos imobiliário, infraestrutura e serviços de
construção civil, concebe-se um sistema socioprodutivo em economia social como estratégia
para a autogestão territorial.
Pal avras-chave:
Autogestão; Construção Civil; Cultura Produtiva;
Economia Social; Produção do Espaço.
Introdução
A investigação crítica proposta pelo presente trabalho visa a ampliar noções
teórico-práticas acerca dos modos de organização socioprodutiva do setor da
construção civil no sistema da economia social, por meio do trabalho e da produção
associada em autogestão no território como estratégia para o desenvolvimento
socioeconômico-espacial sustentável e responsável. Com esse enfoque, problematizo
a cultura produtiva na construção civil na atualidade em seus encaminhamentos
heterogestionários e autogestionários, considerando suas diferentes interações na
vida social, economia e produção do espaço. No desdobramento dessa análise
crítica, considerando o segmento autogestionário do setor da construção civil
como um lugar teórico-prático de transformação socioeconômica para superação
das práticas capitalistas na produção do espaço, formulo proposições à cultura
produtiva autogestionária, estabelecendo premissas teórico-práticas baseadas na
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lógica da economia social para promover a reprodução sociopolítica das práticas
autogestionárias do trabalho associado e a reprodução socioeconômica da
produção associada em autogestão no território, respectivamente, com as noções
de canteiro-escola para autogestão e de redes de construção autogestionária. Essas
proposições visam a ativar, por meio das atividades socioprodutivas da construção
civil, um sistema de produção associada autogestionária no conjunto da economia
social e seu respectivo mercado não concorrencial e solidário. Por sua vez, esse
sistema socioprodutivo autogestionário da construção civil na economia social é
caracterizado fundamentalmente pela integração de cooperativas de trabalho,
produção e consumo, atuando nos segmentos imobiliário, infraestrutura e serviços
de construção, articulados à autogestão territorial. Em última análise, as presentes
proposições teórico-práticas são concebidas para contribuir no desenvolvimento da
integração socioeconômica do sistema da economia social brasileira e, por extensão,
sul-americana. Essas proposições apontam fundamentalmente para os desafios de
superação das práticas capitalistas dominantes, mediante a reordenação da cultura
produtiva autogestionária na construção civil, direcionada para uma atuação
integrada da economia social na produção autogestionária do espaço.
Crítica da produção da construção civil
na produção capitalista do espaço
A construção civil é central para a economia e a sociedade, estando presente em
qualquer tipo de espaço, de permanência contínua ou temporária, em qualquer escala,
com fins individuais, coletivos, privados ou públicos. Dessa forma, é perceptível que a
representação social do setor da construção civil se insere numa relação direta e objetiva
ao atendimento das demandas construtivas da sociedade com a produção propriamente
dita de espaços e respectivos suportes materiais. Além disso, esse setor possui uma
representação econômica compreendida tanto pelo senso comum quanto pelo douto
na estrita função de desenvolver a economia, mediante o atendimento das demandas
sociais construtivas que provêm esses suportes espaciais e materiais para a vida cotidiana.
Assim, na produção da construção civil, várias práticas socioeconômicas estão
aí imbricadas, ativando-se a circulação e recirculação de produtos diretos e indiretos
ao setor da construção civil, em suas formas usuais mercadológicas de compra,
venda, revenda, arrendamento, locação e financiamento imobiliário e produtivo, e
em recentes virtualizações financeirizadas. Essas práticas socioeconômicas envolvem
elementos produtivos e financeiros aplicados, por exemplo, em propriedades imóveis
e fundiárias, incorporações e títulos de renda fixa lastreados por créditos imobiliários.
Com isso, o setor da construção civil incrementa o resultado global da produtividade
econômica do país, elevando o produto interno bruto, ao diversificar as operações
produtivas e de investimentos financeiros. Essa atuação garante a geração de benefícios
econômicos diretos, indiretos e futuros para proprietários e investidores, os quais estão
relacionados como agentes da produção propriamente dita, incorporação, mercado
de crédito imobiliário e de títulos financeiros. Nesse contexto socioeconômico,
concepções utilitaristas e economicistas, muito presentes e reforçadas na atualidade
socioprodutiva do setor da construção civil, favorecem a intensificação da segregação
econômica e socioespacial.
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Por conseguinte, as relações sociais de produção, articuladas especialmente ao
setor formal da construção civil, lidam com formas heterônomas exploratórias do
trabalho humano, promovem alta concentração de recursos financeiros, beneficiam
uma economia especulativa da terra, utilizam materiais, tecnologias e recursos
naturais de maneira não sustentável, entre outros aspectos próprios dos mecanismos
socioeconômicos manejados por sua cultura produtiva heterogestionária, submetida
à lógica da produção capitalista do espaço. Dessa forma, o setor da construção civil se
insere amplamente nas diversas práticas socioeconômicas segregadoras que comandam
a produção e reprodução dos espaços propriamente ditos, com sua socioeconomia
dominada por interesses privados e seus respectivos usos sociais e econômicos
orientados à reprodução da acumulação de capital.
Portanto, no âmbito teórico-prático da produção da arquitetura e do
urbanismo, essa crítica da produção capitalista dirigida ao setor da construção civil
deve ser problematizada à luz da crítica da produção do espaço, sob o enfoque da
teoria socioespacial lefebvriana, ultrapassando-se as usuais concepções utilitaristas e
economicistas, para elaborar uma problematização mais aprofundada do fenômeno
socioeconômico-espacial relacionado à dinâmica da construção civil na produção do
espaço submetido ao capital. Dessa forma, a concepção lefebvriana da produção social
do espaço é fundamental para a elaboração teórica da presente reflexão crítica para
situar a produção da construção civil no interior das contradições socioeconômicas
da produção capitalista do espaço. Nesse sentido, Lefebvre (2008, p. 80) combate
pressupostos de uma racionalidade urbana funcionalizada pela lógica do capital,
alertando para a essencialidade da tomada de consciência e reconhecimento da
dinâmica segregadora da produção capitalista do espaço, “para não perpetuar um erro
teórico e prático; erro que consiste em pretender derivar da racionalidade empresarial,
experiência da industrialização, modelos e esquemas aplicáveis à realidade urbana
em formação”. Na abordagem socioespacial de Lefebvre (1973; 2008), a própria
sobrevivência do capital no cotidiano da vida social se configura pela reprodução das
relações de produção na produção do espaço. Por sua vez, a construção civil possui um
papel essencial na produção propriamente dita de espaços e seus respectivos suportes
materiais, desempenhando um papel central no cotidiano da “reprodução das relações
de produção” na economia e na sociedade. Assim, é preciso investigar a dinâmica
socioeconômico-espacial envolvida nas diversas interações do setor da construção civil
com as esferas social, política, econômica, cultural e espacial, mediante a análise da
própria dinâmica da reprodução dessas relações de produção na vida cotidiana e na
produção do espaço. Nesse sentido, Lefebvre (2008, p. 47-48) afirma que o avanço
das forças produtivas capitalistas conduziu a uma mudança radical do paradigma da
transformação do espaço urbano relacionado à “reprodução dos meios de produção”
para a “reprodução das relações de produção”, na própria totalidade da “produção do
espaço”, o que engendra as condições socioeconômico-espaciais para a “vida cotidiana”.
Por sua vez, Carlos (2011, p. 63) reforça essa perspectiva lefebvriana de que o
espaço é “condição, meio e produto da reprodução social”. Porém, em um determinado
momento da história, o espaço se transforma em mercadoria e seu valor de troca se
impõe como condição para a realização social de forma a destituir seu valor de uso. Ou
seja, de meio para a realização da vida, o espaço passa a obedecer a lógica de reprodução
da acumulação de capital. Nesse sentido, conforme situa Lefebvre (2001, p. 171), “a
cidade e a realidade urbana seriam, nessa hipótese, o lugar por excelência e o conjunto
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dos lugares onde se realizam os ciclos da reprodução, mais amplos, mais complexos,
que os da produção que eles envolvem”. Dessa forma, sob o controle do capital, o
processo de reprodução da vida social realiza-se como fenômeno socioeconômico
circunscrito à produção do espaço.
Todavia, o resultado da produção capitalista do espaço é a contraditória constituição
socialmente degradada do espaço na vida urbana. Para Lefebvre (2008, p. 149), a
urbanização da sociedade corresponde à “deterioração da vida urbana”, envolvendo a
privatização da vida social e a segregação socioespacial, sendo denominada pelo autor
como “contradição do espaço”, de maneira que “de um lado, a classe dominante e
o Estado reforçam a cidade como centro de poder e de decisão política, do outro, a
dominação dessa classe e de seu Estado faz a cidade explodir”. Nesse sentido, a tomada
de consciência dessa problemática da produção social do espaço, que encerra a vida
urbana na lógica da produção capitalista do espaço, conduz Lefebvre (2006, p. 116117) à famosa proposição crítica que reivindica amplamente o “direito à cidade”, sob
a condição de que “só pode ser formulado como direito à vida urbana, transformada,
renovada”. Assim, considera a condição urbana “lugar de encontro, prioridade do valor
de uso, inscrição no espaço de um tempo promovido à posição de supremo bem entre
bens”, e, portanto, necessita encontrar “sua base morfológica, sua realização práticosensível. O que pressupõe uma teoria integral da cidade e da sociedade urbana que
utiliza recursos da ciência e da arte”. Por sua vez, Kapp (2012, p. 465) reforça a
contemporaneidade desse conceito lefebvriano do direito à cidade, em sua amplitude
crítica conexa às tranformações sociais radicais dirigidas à emancipação social, alertando
para o uso indiscriminado desse conceito, em uma perspectiva reducionista do termo,
para fins de aplicações sociais parciais e, sobretudo, apaziguadoras. Além disso,
ampliando esse debate, Harvey (2008, p. 23) afirma que o direito à cidade vai além da
dimensão individual de inclusão ou de acesso aos recursos urbanos e serviços públicos
essenciais. O direito à cidade toca-nos no direito “de mudar a nós mesmos mudando a
cidade”. E, mais que um direito do indivíduo, o direito à cidade é da ordem dos direitos
fundamentais da cidadania, uma vez que “depende do exercício de um poder coletivo de
remodelar o processo de urbanização”.
Diante desse horizonte crítico, é possível inferir que a construção civil, ao edificar
os suportes materiais e espaciais propriamente ditos nas cidades, contribui para
estruturar relações socioeconômicas de segregação socioespacial, dirigindo a produção
propriamente dita do espaço à reprodução das relações capitalistas de produção na
produção social do espaço. Em outras palavras, a significação socioespacial das práticas
construtivas na produção capitalista do espaço não se reduz à simples resolução de
questões de ordem construtiva ou espacial ocultando formas exploratórias do trabalho
humano aliadas ao rentismo de propriedades imobiliárias e fundiárias, as quais,
edificadas nas cidades, utilizam privativamente os espaços urbanos e mantêm os
mecanismos segregadores em sua reprodução socioeconômica. Portanto, o setor da
construção civil, como parte estruturante da produção capitalista do espaço, contribui
para ordenar a vida urbana a fim de favorecer a reprodução da acumulação de capital,
mantendo privilégios sociais de classe e ocupação privilegiada de espaços, constituindo
suportes materiais e espaciais para a manutenção dessa dinâmica de reprodução
socioeconômica segregadora. Contraditoriamente, a própria produção desses suportes
materiais e espaciais pela construção civil contribui para deteriorar a vida urbana que
se constrói socialmente, como forma de segregação socioespacial.
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Em contraposição, partindo desse posicionamento crítico à produção da construção
civil na produção capitalista do espaço, a discussão elaborada neste trabalho se dirige à
radicalidade da teoria socioespacial lefebvriana, que aponta para a necessidade de criar
estratégias de autogestão na produção do espaço, generalizadas na vida social, com vistas
à formulação de alternativas para a efetivação do direito à cidade.
Considerações à autogestão
na produção social do espaço
Num horizonte amplo, o conceito de autogestão lefebvriano implica autonomia
e emancipação social, que se desdobram em noções sociopolíticas e socioeconômicas
relacionadas à ativação da cidadania ativa na vida social, como também à gestão
organizacional democrática e poder de decisão sobre os processos de urbanização.
Assim, conforme concebe Lefebvre (2008, p. 144-145), a autogestão é um “novo modo
de produção”, que se insere não somente por meio das transformações das relações de
produção, mas conserva sua força e subversão também pelo fato de apresentar uma
nova forma de produzir o espaço. Ou seja, além de estabelecer uma forma coletiva de
gestão dos meios de produção, essa nova forma de produzir se define pela “gestão e
produção coletiva do próprio espaço”. Por outro lado, para Mothé (2009, p. 45), a
autogestão parte de uma “ambição antropológica” com vistas à libertação social das
pessoas, por meio de sua emancipação da ideologia capitalista dominante. Dessa forma,
o termo traz consigo outra conotação para o sentido socioeconômico de progresso,
que se desprende da noção de produção ampla e contínua de riquezas para atrelar-se à
produção social de uma “democracia criadora”. Sendo assim, autogestão significa uma
verdadeira revolução nas bases sociais, culturais, políticas, econômicas e territoriais,
por meio de complexas redefinições das relações sociais entre economia, sociedade e
desenvolvimento espacial. Por sua vez, Singer (2002) propõe ao conceito de autogestão
a sua aplicação à gestão de empreendimentos cooperativos e, em especial, às estruturas
socioprodutivas do cooperativismo. Nesse sentido, o autor define autogestão como
outra forma de organização da produção e do trabalho associado, que é própria da
gestão cooperativista, diferindo-se da heterogestão, que se estabelece com controle,
divisão e hierarquização do trabalho na produção capitalista. Dessa forma, a noção de
autogestão está especialmente relacionada à autonomia socioprodutiva, convergindose em formas de participação democrática direta e de poder decisório coletivo
compartilhado entre os próprios trabalhadores associados no contexto organizacional
e operacional de suas atividades autogeridas. Desse direcionamento socioprodutivo
coletivo e autogestionário decorre também a articulação entre concepção e execução,
havendo a integração de todos os membros da organização no exercício laboral dos
trabalhos manuais e intelectuais, sem hierarquização de suas funções socioprodutivas
e socioeconômicas. Assim, esse modelo socioprodutivo de autogestão, sob a forma de
produção associada autogestionária, compreende desde a socialização dos meios e dos
resultados produtivos até as práticas de consumo responsável em formas de democracia
e cidadania ativas, praticadas no trabalho, produção, consumo e na vida social. Além
disso, pela democratização e horizontalização das relações sociais do trabalho e da
produção associada autogestionária, há uma perspectiva objetiva para se reduzir
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desigualdades socioeconômicas, fortalecendo formas autênticas de autonomia pela
participação direta e práticas de solidariedade, em uma cidadania ativa e socialmente
responsável, o que se apresenta como um caminho para a emancipação e justiça social,
em sentidos amplos e irrestritos dos termos.
Apesar de toda a complexidade teórico-prática em discussão, parece somente
haver dois caminhos possíveis para as práticas socioprodutivas, que podem ser
situados nas práticas heterogestionárias ou autogestionárias. E, em ambos os casos,
são reproduzidas relações de produção na produção do espaço, que são socialmente
distintas. Por esse raciocínio, a cultura produtiva pode estar em uma condição
socioprodutiva heterônoma, que controla hierarquicamente e divide socialmente o
trabalho, submetendo a produção a desígnios externos. Disso decorre que, na vida
social e, consequentemente, na produção social do espaço, haja a predominância de
uma condição socioprodutiva heterônoma, alienando, controlando hierarquicamente
e dividindo socialmente o trabalho, além de submeter a produção, o espaço e a vida
cotidiana a uma externalidade normativa, totalitária, que, por sua vez, reproduz
socialmente formas de alienação, controle e privilégios de classe. Por outro lado, a cultura
produtiva pode estar em uma condição produtiva autogestionada, que, autônoma e
democraticamente, gere o trabalho e a produção em formas de autodeterminação e
autonomia coletiva, autogestionando as relações sociais de produção com princípios
de solidariedade, reciprocidade e democracia, o que implica uma construção social
autonormativa e libertária, em cujas relações socioeconômicas existem capacidades
de promover-se emancipação e justiça social. Em linhas gerais, essa dualidade entre
a heterogestão e a autogestão, como formulações estruturantes para a vida social na
produção do espaço, constituem premissas fundamentais para a elaboração crítica do
presente trabalho.
Assim, reforço a citada perspectiva lefebvriana, que situa o sentido da autogestão
como forma de transformação social, passando pela formulação de um novo modo
de produção autogestionário na produção do espaço, conduzido à emancipação e
justiça social. Consequentemente, esse modo de produção pressupõe o exercício da
autonomia em uma dada coletividade socioprodutiva, engendrando novas formas
libertárias para a produção social do espaço, que se reproduziriam por meio de sua
respectiva cultura produtiva autogestionária.
Nesse contexto, apresento a seguir proposições teórico-práticas para
uma reordenação da cultura produtiva autogestionária da construção civil,
como estratégia para uma atuação integrada da economia social na produção
autogestionária do espaço.
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Proposições à produção associada
autogestionária na construção civil
para a autogestão territorial
As presentes proposições teórico-práticas de constituição de um autêntico
sistema de economia social articulado à autogestão territorial, pela integração
socioeconômica-espacial da produção associada autogestionária na construção civil,
voltam-se, especialmente, para a necessidade de uma profunda mudança do paradigma
socioeconômico da própria cultura produtiva autogestionária para desenvolver
interações socioprodutivas que integrem territorialmente o trabalho associado à
produção autogestionária e o mercado solidário. Nesse sentido, os instrumentos
teórico-práticos de economia social, focando na integração trabalho-produçãoconsumo autogestionária na produção do espaço, apontam possibilidades factíveis
para estabelecer-se uma socioeconomia autogestionária territorializada, sustentável,
responsável, justa e emancipada do capital ou da dependência do Estado.
A cultura produtiva autogestionária na construção civil brasileira, na atualidade,
relaciona-se principalmente com o setor informal e alternativo da construção civil
e se caracteriza fundamentalmente pelas práticas autogestionárias do trabalho e da
produção associada, por meio de grupos informais e entidades formalizadas como
associações e cooperativas, em que prevalecem as práticas sociais de reciprocidade,
cooperação e solidariedade. Nesse contexto, são geralmente atribuídas aos atores
da produção associada autogestionária funções socioeconômicas especialmente
relacionadas à resolução prática de demandas de interesse social. Assim, é recorrente
a noção de que atividades socioeconômicas realizadas por meio da autogestão sejam
atividades socioprodutivas emergenciais ou complementares ao capitalismo. Por esse
entendimento, cumpre à produção associada autogestionária efetivar direitos sociais
essenciais, como o acesso à moradia e geração de trabalho e renda, como também
realizar atividades secundárias pelos desfavorecidos pelo capital.
Com efeito, o papel social da produção associada autogestionária na construção
civil é compreendido no lugar socioeconômico que o Estado ou as empresas capitalistas
não conseguem atender ou não se interessam por realizar, seja em razão da complexidade
econômica e do risco dos investimentos de capital envolvidos, seja pela baixa
lucratividade que as demandas sociais representam. Além disso, são desconsideradas
várias formas de ativações socioeconômicas e alternativas socioprodutivas não
monetárias, que são típicas da economia social, como permutas e redes de trocas
solidárias; como também são relativizados na produção associada autogestionária na
construção civil aspectos socioeconômicos envolvidos em financiamentos produtivos,
créditos imobiliários, compras coletivas e a ativação econômica de cadeias produtivas
diretas ou indiretas à construção civil. Nesse conjunto, enfatizo ainda a grande
dispersão das atividades socioprodutivas na construção civil, o que dificulta uma
análise mais precisa do comportamento e da amplitude do segmento autogestionário
no setor da construção civil e da sua inserção no sistema da economia social brasileira.
Essas considerações importam aqui exatamente pela compreensão, no senso
comum e douto, sobre a atuação da produção associada autogestionária na construção
civil ocorrer restrita ao atendimento de interesse social, notadamente no segmento
habitacional e circunscrita a práticas socioprodutivas fragmentárias, cuja orientação
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socioeconômica é voltada para atividades de subsistência que são eminentemente
antieconômicas. Assim, geralmente, as associações e cooperativas habitacionais são
compreendidas como organizações mutualistas, em uma forma especial de assistência
social, o que conduz à inobservância das características socioeconômicas próprias
das sociedades cooperativas, inerentes à sua configuração formal como categoria
econômica da economia social.
Por sua vez, essa condição socioeconômica mutualista não permite constituir na
economia social uma base socioeconômica organizada sob a lógica do cooperativismo
que seja adequada à reprodução socioprodutiva em autogestão e estruturada no
território para desenvolver suas funções sociais e econômicas concomitantes. De fato,
na prática, a produção associada autogestionária na construção civil desenvolve suas
atividades socioeconômicas de maneira doméstica, fragmentada e dispersa, o que não
contribui para a inserção global das atividades da construção civil no conjunto da
economia social. Essa condição implica uma redução da amplitude socioeconômica
dessas atividades socioprodutivas relacionadas ao segmento autogestionário do setor da
construção civil no sistema da economia social. Além disso, recai no recorrente equívoco
de considerar que não seja possível articular desenvolvimento socioeconômico sem os
fins lucrativos, envolvendo todos os segmentos socioprodutivos da construção civil,
compreendidos desde as atividades imobiliárias até as atividades de infraestruturas e
serviços de construção em geral.
Todos esses pressupostos necessitam ser problematizados, uma vez que apontam
para noções equivocadas no âmbito dos próprios princípios socioprodutivos
autogestionários e das possibilidades de atuação no sistema da economia social da
produção associada autogestionária na construção civil. Dessa forma, contrapondo a
esse cenário, o presente trabalho defende proposições de viabilidade socioeconômicoespacial para a constituição de outra cultura produtiva autogestionária para a produção
associada na construção civil e a configuração de um respectivo sistema socioprodutivo
de construção em redes autogestionárias, baseadas em autogestão no território e em
afirmação dos princípios essenciais da economia social, relativos à reciprocidade,
cooperação e solidariedade, para a produção autogestionária do espaço.
Para tanto, primeiramente, considero a necessidade de implementar mudanças
nos processos de formação e capacitação profissional para a autogestão. Portanto,
proponho o conceito de canteiro-escola para autogestão, voltado ao desenvolvimento
de uma perspectiva político-pedagógica para o trabalho associado na construção
civil, de maneira que, pela produção associada autogestionária, possibilite-se a
educação para a autogestão como um processo mais amplo de emancipação social
e reprodução sociopolítica da lógica autogestionária. Além disso, considerando a
organização socioprodutiva das atividades da produção associada autogestionária,
relacionadas à construção civil, e para uma atuação do conjunto dessas atividades
em um sistema socioeconômico de economia social, proponho o conceito de redes de
construção autogestionária, referente ao próprio desenvolvimento do sistema produtivo
autogestionário e da formulação do seu respectivo mercado autogestionário em
economia social, pela integração da produção associada autogestionária na construção
civil em autogestão territorial.
A noção de uma economia social efetiva, a partir do segmento autogestionário
da construção civil, mediante a formação profissional para autogestão e a
organização de um sistema de produção associada autogestionária em redes
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territorializadas, surge, em amplo sentido, do objetivo de buscar alternativas
concretas para a economia e a sociedade se orientarem à emancipação social em
contraposição à submissão irrestrita ao capital, dominante na produção socioespacial
contemporânea. Ambos os conceitos implicariam, assim, transformações na própria
cultura produtiva autogestionária e em suas formas de educar, trabalhar, produzir e
consumir, organizadas, sincronicamente, na atuação da construção civil no sistema
da economia social e na produção socioespacial.
Dessa forma, a concepção teórico-prática desse sistema socioeconômico em
autogestão para a construção civil é caracterizada, fundamentalmente, por cooperativas
de trabalho, produção e consumo, atuando por meio da intercooperação de vários
segmentos de cadeias produtivas em autogestão no território, incluindo a concepção
de educação para a autogestão, trabalho livre, produção emancipada e mercado
autogestionário solidário para um efetivo sistema de economia social, constituído
territorialmente através da atuação integrada do segmento autogestionário do setor
da construção civil. Consequentemente, contribuiriam também para alterar-se o
paradigma dominante heterogestionário da produção capitalista, a fim de estabelecer o
paradigma autogestionário da produção associada em economia social, promovendose o desenvolvimento socioeconômico aliado ao desenvolvimento socioprodutivo em
autogestão territorial.
Canteiro-escola para autogestão:
reprodução sociopolítica das práticas
autogestionárias do trabalho
associado na construção civil
Em uma perspectiva de educação para a autogestão integrada à produção
associada autogestionária na construção civil, apresento a presente proposição teóricoprática do canteiro-escola para a autogestão. Esse conceito está fundamentalmente
dirigido à reprodução das práticas sociais de autogestão, em constante aprendizado
dos valores e princípios autogestionários, para a constituição de uma base sociopolítica
de reprodução ampliada do trabalho associado e promoção de desdobramentos das
experiências autogestionárias, realimentando-se a produção associada autogestionária
da construção civil no sistema da economia social. Por sua vez, é importante enfatizar
que o canteiro-escola relaciona-se formalmente às sociedades cooperativas, em
autonomia laboral e gestão socioprodutiva autogestionária, em que trabalhadores
socialmente organizados possuem participação direta e poder decisório compartilhado
coletivamente, em constante debate social acerca do trabalho e da produção organizada
em autogestão. Além disso, todos os membros da organização, sem hierarquização
de funções ou divisão social do trabalho, articulam conjuntamente a concepção e
a execução das operações socioprodutivas autogestionárias, integrando o exercício
laboral dos trabalhos manuais e intelectuais, aprendendo e ensinando a gestão
democrática pelo seu próprio exercício coletivo da autogestão.
A noção de um canteiro-escola para a autogestão compreende o constante
aprendizado autogestionário das atividades socioprodutivas de construção civil nos
próprios ambientes de trabalho da produção associada autogestionária, envolvendo
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A PRODUÇÃO ASSOCIADA AUTOGESTIONÁRIA NA CONSTRUÇÃO CIVIL
o desenvolvimento das atividades produtivas paralelamente ao desenvolvimento
das competências laborais para trabalhar e produzir em autogestão, por meio da
reciprocidade, cooperação e solidariedade. Dessa forma, primeiramente, o canteiro
de obras de uma produção associada autogestionária em construção civil deveria
conformar-se sob a lógica da cultura produtiva autogestionária para poder elaborar
as competências laborais relacionadas à autogestão. Posteriormente, a vivência e o
aprendizado do próprio trabalho associado autogestionário poderiam promover
desdobramentos para ir além do aprendizado do trabalho socioprodutivo propriamente
dito, reproduzindo as práticas sociais autogestionárias em outras frentes de trabalho
associado. Isso possibilitaria condições sociopolíticas para a reprodução do trabalho
em autogestão e representaria a reprodução socioeconômica da produção associada
autogestionária na construção civil por meio da organização de novas cooperativas
de construção autogestionária, o que, portanto, poderia favorecer o conjunto da
economia social em sua integração socioeconômica articulada à autogestão territorial.
Nesse sentido, o canteiro-escola aponta para o saber contido nas próprias relações
sociais de produção, articulando a práxis socioprodutiva à práxis socioeducativa em
uma dinâmica sociopolítica de “ação-reflexão-ação”. Conforme concebe Freire (2006,
p. 84): “[...] aí se encontram as raízes da educação mesma, como manifestação
exclusivamente humana. Isto é, na inconclusão dos homens e na consciência que
dela têm. Daí que seja a educação um que fazer permanente. Permanente, na razão
da inconclusão dos homens e do devenir da realidade.” E, a partir dessa perspectiva
freiriana, que considera o trabalho princípio educativo para a emancipação social,
Tiriba (2001) propõe a noção de uma “pedagogia da produção associada”. Tal conceito
repactua trabalho e educação, redimensionando tanto os processos socioeducativos
quanto os processos socioprodutivos, o que implica uma construção social ampla,
e sua perspectiva se orienta para a emancipação social, colocando-se em contato
direto com a própria dialética das práticas sociais o sujeito, o trabalho associado e
a produção autogestionária. Conforme propõe Tiriba (2001, p. 217), “o desafio é
como articular os dois campos de conhecimento e de ação, por meio de um processo
práxico que redimensione, ao mesmo tempo, a questão da racionalidade econômica
e da racionalidade educativa”. Portanto, a educação é compreendida como parte
de um processo social de transformação do próprio processo de autonomia laboral
pela autogestão. Assim, ainda segundo Tiriba (2001, p. 225), “para os trabalhadores
associados, tornam-se indispensáveis os espaços educativos que privilegiem a
socialização e a produção teórica, tendo o saber prático como ponto de partida e os
novos saberes e as novas práticas sociais como ponto de chegada”. A produção associada
autogestionária, ao oportunizar a educação para a autogestão, cria condições para
alterar o próprio exercício associativo do trabalho autogestionário, transformando as
estruturas sociopolítico-econômicas envolvidas. Tiriba (2001, p. 191-192) considera,
com isso, a consciência da práxis autogestionária um fundamento teórico-prático, em
que “o processo de trabalho mostra-se como instância e como processo educativo,
em que o trabalhador articula o que-fazer com o pensar, criando novas técnicas e
buscando os fundamentos práticos e teóricos que podem dar sentido à sua atividade”.
E, como uma “cultura do trabalho de novo tipo”, na concepção de Tiriba (2007),
a “pedagogia da produção associada” carrega as sementes para uma nova cultura do
trabalho associado na produção autogestionária.
Nesse sentido, Tiriba (2007, p. 92-93) aponta para três princípios teórico-práticos,
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que fundamentam essa noção pedagógica da produção associada autogestionária.
O primeiro princípio refere-se à ativação da cidadania como premissa fundamental
para ultrapassar a reivindicação de direitos sociais e promover a sua efetivação nas
práticas sociais cotidianas. O segundo princípio é a práxis social, que afirma a conexão
entre o aprendizado dos valores solidários e os comportamentos sociais necessários
ao estabelecimento das novas relações de produção. E, por fim, o terceiro princípio
refere-se à construção cotidiana da solidariedade, que deve ser incorporada e praticada
na própria organização do trabalho e na gestão da produção associada. Além disso,
Tiriba (2001, p. 195) formula a sua “pedagogia da produção associada”, tomando
por base a perspectiva político-pedagógica de Gramsci, destacando o conceito de
hegemonia como forma política das relações sociais entre o trabalhador e seu grupo
associado, em que o consenso move as práticas sociais autogeridas. Portanto, para o
processo autogestionário no sentido da emancipação social é importante ressignificar
os sujeitos na autonomia individual e coletiva de seu trabalho, como contribuição
única do indivíduo na coletividade inscrita pelo grupo social de suas atividades
produtivas associadas em autogestão.
Por sua vez, desdobrando-se as experiências do trabalho associado para a produção
associada autogestionária em outros processos socioprodutivos na construção
civil, a atual conformação dos canteiros de obras do segmento autogestionário da
construção civil, muitas vezes restrito à “assistência social” e compreendido como “não
econômico”, poderia capacitar as pessoas consideradas “desqualificadas” pelo capital
para atividades socioprodutivas em autogestão no território. Sendo assim, o canteiroescola qualificaria as pessoas para a continuidade das práticas autogestionárias,
emancipando-as da exploração capitalista do trabalho, com a abertura de novos
arranjos socioprodutivos de trabalho associado em produção autogestionária, que se
voltariam para o conjunto da reprodução social, política e econômica das atividades
da produção associada autogestionária na construção civil em autogestão territorial.
Nesse cenário prospectivo, o canteiro-escola conforma-se em uma verdadeira
escola sociopolítica para a autogestão socioprodutiva, possibilitando ao trabalhador
ampliar o trabalho autogerido pela aquisição da sua qualificação profissional para
atuar continuamente em autogestão no território. Por essa perspectiva, a produção
associada como exercício político-pedagógico de autogestão abre-se à multiplicação
de suas esferas de inserção social, política e econômica contribuindo para reproduzir
os contextos socioprodutivos, socioeconômicos e socioespaciais do trabalho associado
e da produção associada autogestionária na produção do espaço. Assim, o canteiroescola é extremamente relevante para constituir qualificação profissional para a
autogestão. Porém, sua maior relevância está nos desdobramentos socioespaciais das
práticas autogestionárias que poderiam estruturar-se em um sistema socioeconômico
de produção associada autogestionária na construção civil.
Nesse desdobramento sistêmico do canteiro-escola para autogestão, proponho o
conceito de redes de construção autogestionária, conforme se segue.
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A PRODUÇÃO ASSOCIADA AUTOGESTIONÁRIA NA CONSTRUÇÃO CIVIL
Redes de construção autogestionária:
reprodução socioeconômica
do sistema da economia social
em autogestão territorial
A proposição teórico-prática do conceito de redes de construção autogestionária
corresponde, fundamentalmente, à dinâmica socioeconômica de reprodução das
relações de produção autogestionárias no desenvolvimento socioeconômico-espacial,
a partir da constituição de um autêntico sistema de economia social, por meio da
produção associada autogestionária na construção civil brasileira e, por extensão,
sul-americana. Assim, esse sistema autogestionário de economia social é concebido
para promover-se a integração das atividades socioprodutivas autogestionárias da
construção civil que atuam nos segmentos autogestionários relacionados à produção
imobiliária, infraestrutura e serviços de construção em autogestão territorial. E, por
conseguinte, a produção associada autogestionária na construção civil se abre para um
mercado autogestionário solidário, essencialmente não concorrencial, que se integraria
a esse sistema socioprodutivo em redes de autogestão no território. Dessa forma, a
presente proposição de constituição das redes de construção autogestionária, orientada
à autogestão territorial a partir da produção associada autogestionária na construção
civil, representa fundamentalmente alternativas estratégicas para a reordenação das
relações sociais do trabalho e das formas de organização da produção e consumo,
o que implicaria, no conjunto da economia e da sociedade, formas sustentáveis e
responsáveis para o desenvolvimento socioespacial.
Para subsidiar essa proposição das redes de construção autogestionária e ampliar o
debate crítico acerca da superação das práticas capitalistas na produção do espaço e da
reconfiguração da cultura produtiva autogestionária na economia, na sociedade e no
desenvolvimento espacial, baseio-me no conceito de “redes de colaboração solidária”,
elaborado por Mance (1999; 2002). Para tanto, evidencio a seguir a dinâmica das
redes autogestionárias como estratégia socioeconômica, que fundamenta a viabilidade
socioeconômica-espacial para o estabelecimento da cultura produtiva autogestionária
na construção civil, sob o marco da autogestão territorial. Primeiramente, para Mance
(1999, p. 24), a noção de redes em autogestão compreende
[...] uma articulação entre diversas unidades que, através de certas ligações, trocam elementos entre si, fortalecendo-se reciprocamente, e que podem se multiplicar em novas
unidades, as quais, por sua vez, fortalecem todo o conjunto na medida em que são fortalecidas por ele, permitindo-lhe expandir-se em novas unidades ou manter-se em equilíbrio
sustentável.
Por sua vez, essa ligação entre as unidades de uma rede estabelece um vínculo
reverberante, na medida em que cada ligação gera um fortalecimento de cada unidade
entre si. Isso gera novas unidades, fortalecendo o conjunto. E, finalmente, o conjunto,
fortalecido, dissemina-se em mais unidades ou se mantém em equilíbrio no sistema
autogestionário de que participa. Em amplo sentido, as redes autogestionárias
configurariam uma nova forma de organização da economia e sociedade pela autogestão.
Nesse contexto, Mance (1999, 2002) define dez propriedades básicas relacionadas ao
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funcionamento socioeconômico de uma rede autogestionária. Para tanto, considera
três propriedades revolucionárias: autopoiesis, intensividade e extensividade; três
propriedades de crescimento: diversidade, integralidade e realimentação; e quatro
propriedades operacionais: fluxo de valor; fluxo de informação, fluxo de matérias e
agregação. Por sua vez, a conjugação de todas essas propriedades é o que chamo de
capacidade de convergência das redes autogestionárias em determinados segmentos
socioeconômicos e em determinadas socioespacialidades, que é capaz de constituir,
sistemicamente, conforme define Mance (1999, p. 203), um verdadeiro “círculo
virtuoso” entre trabalho, produção e consumo. Portanto, segundo Mance (1999,
p. 208), as redes de colaboração solidária são capazes de aproximar continuamente
organizações sociais, econômicas, políticas e culturais em laços socioeconômicos, que
conectam unidades de produção, consumo e serviços em um movimento contínuo
de reprodução socioprodutiva autogestionária. Isso permite a criação de postos de
trabalho, o aumento da renda dos participantes, o fortalecimento da economia e do
poder local e a transformação sociocultural das sociedades em que o sistema de redes
autogestionárias é implantado.
Por sua vez, Coraggio (2000, p. 122) ressalta que
[...] é preciso que as redes canalizem intercâmbios substantivos de bens e serviços, desenvolvendo relações de complementariedade entre os distintos elementos da economia
popular, gerando tensão para as microestruturas no jogo estimulante de ser necessário
para outros e de ter necessidade dos outros, em relações dinâmicas.
Nesse sentido, para as redes de construção autogestionária funcionarem de
forma efetiva, é preciso constituir-se relações dinâmicas entre os diversos atores e
segmentos autogestionários da construção civil, em uma constante intercooperação na
economia social, baseada no intercâmbio solidário de produtos e serviços integrados
em colaboração solidária.
Assim, para estabelecerem-se ações efetivas da produção associada autogestionária
na construção civil, no âmbito do sistema da economia social, é pertinente que o
ponto de partida ocorra pelo segmento socioprodutivo mais presente e recorrente
na atualidade da autogestão na construção civil, que é a produção imobiliária
habitacional. Nesse ponto de partida, situam-se principalmente as demandas por
moradia, atendidas por iniciativas de autoprodução organizadas em associações e
cooperativas habitacionais, conforme discutido anteriormente. Dessa forma, a partir
do canteiro-escola, as redes de construção autogestionária poderiam realizar inicialmente
ações de integração desses atores socioeconômicos.
Nesse contexto, essas ações seriam integradas a partir das atividades autogestionárias,
diretas ou indiretas à produção habitacional, podendo, posteriormente, ser ampliadas
a todos os segmentos da construção civil. Oportunamente, no processo produtivo
da produção habitacional autogestionária estariam os embriões de cooperativas de
construção autogestionária, configurando sociedades cooperativas de trabalho,
produção e consumo, tanto para a produção habitacional quanto para a produção
autogestionária da construção civil em geral. Sobretudo, partindo da produção
habitacional e dirigindo-se à infraestrutura urbana, haveria desdobramentos da
produção associada autogestionária na construção civil em redes autogestionárias
de trabalho, produção e consumo solidário, que, por sua vez, consolidariam a
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A PRODUÇÃO ASSOCIADA AUTOGESTIONÁRIA NA CONSTRUÇÃO CIVIL
perspectiva sistêmica da presente proposta para a constituição de redes de construção
autogestionária na construção civil brasileira e, por extensão, sul-americana. Além
disso, as ações socioconstrutivas organizadas em economia social e integradas em
autogestão no território poderiam iniciar um processo de constituição de um sistema
socioeconômico-espacial de economia social a partir do desenvolvimento das redes
de construção autogestionária, como um sistema socioprodutivo autogestionário
de construção em redes de colaboração solidária em autogestão territorial, capaz de
intercambiar, em um mercado solidário, os diversos atores da produção associada
autogestionária na construção civil e a sociedade como um todo. Assim, a produção
associada autogestionária na construção civil em autogestão no território não apenas
permitiria convergir os materiais, as tecnologias e os serviços laborais, que constituem
os valores de uso para a produção da construção civil, mas se iniciaria concretamente
um amplo processo de reconfiguração de valores de uso socioeconômico-espaciais no
conjunto da economia social em autogestão territorial.
Nesse sentido, as redes de construção autogestionária, além de produzirem novas
edificações e novas espacialidades urbanas ou rurais, por exemplo, requalificariam
edificações insalubres e abandonadas, recuperariam áreas degradadas e as dotariam
de infraestrutura física, em diversas situações socioespaciais. Essas ações significam
arranjos socioprodutivos que cooperativas de construção autogestionária poderiam
realizar integradas às redes em autogestão no território, inclusive para alavancar a
atuação sistêmica e sua convergência socioespacial. Nessa prospecção teórico-prática,
as ações autogestionárias coordenadas sistemicamente poderiam desenvolver cadeias
produtivas de economia social no segmento autogestionário do setor da construção
civil, envolvendo trocas diretas, moedas sociais e comércio justo em redes integradas
socioeconomicamente pela produção associada autogestionária, gerando inúmeras
oportunidades para atender, sem fins lucrativos, diversas demandas socioconstrutivas
e socioespaciais, contribuindo para efetivar formas sustentáveis e responsáveis no
desenvolvimento socioeconômico-espacial autogestionário. Com isso, os atuais
entraves à produção associada autogestionária na construção civil e à formação de seu
respectivo mercado autogestionário solidário reduziriam-se à medida que a integração
das cooperativas de construção autogestionárias ocorressem em redes no sistema
socioeconômico da economia social e as demandas construtivas e socioespaciais passem
a ser atendidas pelas próprias relações autogestionárias estruturadas no território.
Nesse horizonte de atuação do segmento autogestionário da construção civil
na economia social, adotar-se-ia a lógica da cultura produtiva autogestionária,
diferentemente da lógica heterogestionária da produção capitalista, que é atualmente
predominante na construção civil. Assim, a produção associada autogestionária na
construção civil, ampliada à autogestão no território e envolvendo a ativação da
cidadania, contribuiria para o desenvolvimento socioespacial atrelado ao cumprimento
de suas funções sociais, com maior poder de decisão coletiva sobre o espaço público
por parte dos cidadãos. Isso implicaria melhorias gerais nas condições de vida e de
uso dos espaços urbanos, como também ampliariam e potencializariam reordenações
territoriais locais e regionais, capazes de intervir na dinâmica de expansão urbana e
nas excludentes práticas socioespacializadas do capitalismo contemporâneo. Em
suma, a reprodução das relações autogestionárias solidárias entre trabalhadores,
produtores, usuários e consumidores tornar-se-ia a base socioeconômica fundamental
que articularia esse movimento contínuo do segmento autogestionário da construção
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civil, por meio da conformação das redes de construção autogestionária no sistema da
economia social. Por esse encaminhamento, a satisfação das demandas construtivas e
socioespaciais possibilitaria, de um lado, a geração de trabalho e renda, realimentando
as atividades socioprodutivas autogestionárias; e, de outro lado, a autonomia coletiva
na autogestão territorial, fortalecendo a economia social e organizando a convergência
das ações socioeconômicas no território. Assim, o estabelecimento das práticas
socioprodutivas autogestionárias criaria condições para a reprodução socioeconômica
da produção associada autogestionária na construção civil numa determinada
socioespacialidade de atuação das redes de construção autogestionária. Nesse contexto,
as funções socioeconômico-espaciais das redes de construção autogestionária serviriam
para reordenar relações entre economia, sociedade e produção socioespacial, numa
dimensão ampla para a inserção socioeconômica do segmento autogestionário do
setor da construção civil na dinâmica cotidiana da vida social.
Por fim, a produção associada autogestionária atuando na construção civil
como um todo configuraria intervenções produtivas mais significativas para o
desenvolvimento socioeconômico-espacial, favorecendo e fortalecendo o próprio
sistema da economia social e, consequentemente, incrementar-se-ia a autogestão
territorial, conduzindo-se à emancipação e justiça social.
Conclusão
A efetivação dessa proposição teórico-prática, possuindo uma exigência sistêmica
socioeconômica-espacial, demanda, pois, uma conjugação ampla e generalizada na
vida social, capaz de integrar diversas esferas da produção associada autogestionária
na construção civil às ações socioeconômicas territorializadas. Além disso, os diversos
atores sociais, econômicos, políticos, práticos e intelectuais necessitam constituir-se
como novos agentes socioespaciais para reinventar suas relações socioeconômicas no
sistema da economia social em autogestão territorial. Dessa forma, para haver um espaço
concreto de economia social na construção civil em autogestão no território, é preciso
haver uma constante reflexão acerca das ações autogestionárias e uma disseminação
criteriosa de experiências e práticas socioprodutivas para a constante apropriação e
ressignificação solidária dessas práticas socioeconômicas e socioespaciais. Em um
autêntico sistema de economia social, mediante a produção associada autogestionária
na construção civil, é preciso investigar continuamente os rumos das ações associadas
autogestionárias junto às próprias práticas sociais, instituições e políticas públicas
envolvidas. Assim, a prerrogativa da economia social na autogestão territorial
requer espaços de avaliações críticas, discussões e questionamentos, preparando-se
constantemente as pessoas para ser gestoras coletivas do próprio trabalho e da produção
associada autogestionária, em conexão e convergência com os respectivos espaços
sociais e territoriais implicados, bem como se relacionando solidariamente com o
mercado autogestionário, que permite convergir trabalho, produção e consumo não
concorrenciais e solidários, no cotidiano da produção social do espaço. Essa condição
convoca, num horizonte amplo, a própria rearticulação das representações políticas
dos movimentos sociais, cooperativas, associações, ONGs, sindicatos, universidades,
como também as instâncias de governo relacionadas ao desenvolvimento da economia
social nos âmbitos local, regional e internacional.
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A PRODUÇÃO ASSOCIADA AUTOGESTIONÁRIA NA CONSTRUÇÃO CIVIL
No Brasil e em outros países latino-americanos do Cone Sul, como Uruguai
e Argentina, é possível identificar a possibilidade da aplicação prática das presentes
proposições do canteiro-escola e das redes de construção autogestionária, a partir de
uma mudança de paradigma com relação às noções sociais e econômicas dos papéis
desempenhados pelo trabalho, produção e consumo no conjunto da construção
civil, no cotidiano da vida social e na produção do espaço. Nesse sentido, espaços
institucionais de governo voltados ao fomento da economia social (como a SENAES
no Brasil, o INACOOP no Uruguai e a INAES na Argentina) poderiam promover,
em suas políticas públicas direcionadas ao desenvolvimento da economia social, essa
perspectiva sistêmica, mais ampla e integradora da produção associada autogestionária
na construção civil, com vistas a uma atuação efetiva da economia social no
desenvolvimento socioeconômico-espacial, nos respectivos contextos sul-americanos.
Por sua vez, espaços de representação e organização sociopolítica do cooperativismo e
associativismo – como a Organização das Cooperativas Brasileiras no Brasil, o Instituto
Nacional del Cooperativismo no Uruguai e a Confederación Nacional de Cooperativas de
Trabajo na Argentina – já exercem um papel importante em direção à consolidação
das diversas redes autogestionárias de colaboração solidária, que poderiam aprofundar
essa perspectiva sistêmica da intercooperação socioprodutiva, socioeconômica e
socioespacial, especialmente pela convergência dos grupos associados e cooperativas
às federações e confederações no sistema da economia social. Por conseguinte, atingirse-ia desde a escala local até a internacional, pelas múltiplas conexões sociais, políticas
e econômicas relacionadas às redes em autogestão territorial. Isso contribuiria para
integrar diversos segmentos e promoveria transformações radicais no atual contexto
de fragmentação da produção associada autogestionária na construção civil, em
direção à integração sistêmica dos agentes socioprodutivos em múltiplas escalas da
economia social. Por outro lado, as universidades, em suas relações com a produção
e compartilhamento do conhecimento, poderiam contribuir para desenvolver
modelos alternativos em autogestão para o trabalho, produção e consumo, sem
fins lucrativos, especialmente pela incubação e apoio ao desenvolvimento de
empreendimentos relacionados à produção associada autogestionária na construção
civil. Nesse conjunto de práticas sociais, destaco também as possíveis contribuições
ao desenvolvimento tecnológico e à assessoria técnica apropriados e apropriáveis aos
usos e fins sociais, mediante conexões entre conhecimentos e demandas da produção
associada autogestionária, para desenvolver-se recursos teórico-práticos voltados para
potencializar o desenvolvimento socioeconômico-espacial em autogestão.
A partir do exposto, é possível pensar na real constituição de uma nova economia
socioespacial, que, partindo da produção associada autogestionária na construção civil,
constituiria cooperativas de construção autogestionária. Atuaria também em autogestão
territorial, por meio de canteiros-escolas para a educação para autogestão e de redes de
construção autogestionária em colaboração solidária. Desse modo, poderiam superar
os atuais limites mutualistas não econômicos de sua inserção, principalmente na
produção habitacional e infraestrutura urbana. Por esse encaminhamento, poderiam
também efetivar formas emancipadas de autonomia coletiva no atendimento
socioeconômico autogestionário das demandas socioconstrutivas articuladas à
autogestão territorial. Para tanto, é preciso incubar as condições socioprodutivas
para uma ampla transformação socioeconômico-espacial da cultura produtiva
autogestionária na construção civil, voltando-se para a atuação sistêmica dos atores da
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economia social, nos próprios empreendimentos autogestionários de construção civil e
em suas especificidades territoriais. Por conseguinte, fortalecendo esse direcionamento
sociopolítico e socioeconômico, respectivamente pelo trabalho associado e pela
produção associada autogestionária na construção civil, constituiriam-se as bases de
economia social para essa ampla reordenação sistêmica das relações sociais, políticas
e econômicas entre educação, trabalho, produção e consumo, numa dimensão ampla
da vida cotidiana e da produção social do espaço. E, com isso, ressignificar o atual
conjunto de atividades socioprodutivas em um sistema socioeconômico de economia
social mais amplo e efetivo para a emancipação e justiça social.
O estabelecimento de uma cultura produtiva autogestionária na construção civil,
baseada na economia social, poderia gerar muitos impactos positivos nas cidades em
uma efetiva autogestão no território. Por fim, penso que a chave da transformação
social rumo à sociedade pós-capitalista, emancipada do capital, encontra-se
nas possibilidades que se desdobram da produção associada autogestionária na
construção civil, por meio do desenvolvimento socioeconômico-espacial, sustentável
e responsável, e que perpassa necessariamente pela reformulação da cultura produtiva
autogestionária e, especialmente, por sua inserção na efetividade socioprodutiva
das demandas construtivas e espaciais na vida cotidiana, conduzindo-se à produção
autogestionária do espaço.
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Cristiano Gurgel Bickel é
arquiteto-urbanista e artista plástico. Doutor em
Arquitetura e Urbanismo
e mestre em Artes Visuais
pela Universidade Federal
de Minas Gerais. Professor
adjunto da Escola de Belas
Artes da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail:
<[email protected]>.
A PRODUÇÃO ASSOCIADA AUTOGESTIONÁRIA NA CONSTRUÇÃO CIVIL
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v27n71/a06v2771.pdf>. Acesso em: 27 set. 2012.
A b s t r a c t This paper presents a synthesis of the propositions of the author’s
dissertation entitled: “A construção civil na economia social: proposições à cultura
produtiva autogestionária.” In this paper, civil construction is problematized as a
theoretical and practical location of socioeconomic transformation in order to overcome
the capitalist production of space. Thus, one formulates critiques to the productive culture
in heterogestionary and autogestionary manners, establishing theoretical and practical
propositions to a social economy wide operating in civil construction. These propositions are
summarized in the concepts of construction site-school for autogestion and autogestionary
construction networks focusing respectively sociopolitical reproduction of the associated
work in civil construction and socioeconomic reproduction of associated production in selfmanagement in territory. Therefore, through the integrated action of work, production and
consumption cooperatives cooperatives in segments such as real estate, infrastructure and
building services, it is conceived a socioproductive system in social economy as a strategy for
territorial autogestion.
Key-words:
Autogestion; Civil Construction; Productive Culture; Social
Economy; Production of Space.
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A NOVA FÁBRICA É O BAIRRO?
O TRABALHO POLÍTICO
E TERRITORIAL DE DUAS
ORGANIZAÇÕES DE
COOPERATIVAS NA PERIFERIA
DE BUENOS AIRES
Javier Walter Ghibaudi
Resumo
O artigo discute as mudanças e permanências na ação coletiva de
setores dominados na periferia de Buenos Aires na década de 2000, em termos de processos
de territorialização e na sua relação com o trabalho. Concentra-se em dois estudos de caso de
organizações que se apresentavam como autônomas dos partidos e sindicatos tradicionais,
defendiam a criação de relações de trabalhos cooperativas e propunham uma política a
partir do bairro. Destaca-se como as suas propostas e ações de trabalho territorial recriam
tradições de classe, questionam a divisão entre lutas sociais fora e dentro da fábrica e
quebram o senso comum sobre a incapacidade de ação coletiva de pressupostos excluídos
sociais.1
Palavras-chave:
Cooperativismo; Ação Coletiva; Periferia; Buenos Aires;
Organizações de Trabalhadores Desempregados; Economia Popular e Solidária.
A fábrica era o lugar onde você se formava, onde aprendia a história, onde se construía e
recuperava a identidade e a memória como trabalhador. Hoje não existe mais […] Evidentemente, temos de nos organizar no bairro
[...] a nova fábrica é o bairro...
(Entrevista com Victor De Gennaro;2 CECEÑA, 2001)
1 Este artigo resume uma
parte dos resultados de minha tese de doutorado defendida no IPPUR/UFRJ em
2010 e com apoio do CNPq
e da CLACSO. Gostaria de
agradecer as pessoas entrevistadas para a pesquisa e a
colaboração de professores
e colegas como Virginia Manzano (UBA), Héctor Palomino (UBA), Héctor Poggiese
(FLACSO-Argentina), Gabriel
Fajn (UBA) e meu orientador
de tese de doutorado, Carlos
Vainer. Sou grato também ao
debate dos resultados com
colegas e professores ao longo do trabalho de tese e sua
defesa, como Ana Clara Torres Ribeiro, Henri Acselard,
Frederico Araújo, Flávia Braga e Guilherme Marques, do
IPPUR/UFRJ, e Carlos Walter
Porto Gonçalves (UFF).
2 Vitor De Gennaro era na
época secretário-geral da
Central dos Trabalhadores
da Argentina (CTA), organização formada na década
de 1990 em oposição aos
sindicatos tradicionais e que
podia ser localizada como
mais à esquerda no espaço
político argentino.
1. Introdução
O presente artigo tem como questão-marco o estudo das mudanças e permanências
na ação coletiva de setores dominados na periferia de Buenos Aires na década de 2000,
em termos de processos de territorialização e na sua relação com o trabalho. Interessa ler
historicamente essas relações em termos de lutas de classes – no sentido de Thompson
(1966; 2001) e de territorialização – no sentido dado por Haesbaert (2004). Nesse marco, o
artigo entende periferia no sentido relacional e como parte de processos de territorialização
onde são construídas, e também questionadas, relações de dominação. Em Buenos Aires,
essa periferia toma a denotação social de Conurbano Bonoarense,3 e sua formação se articula
com a constituição da sua classe trabajadora, suas ações e sua identidade.
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3 O Conurbano Bonoarense
ou Grande Buenos Aires
(INDEC, 2005) faz referência
aos municípios da Província
de Buenos que, com a Capital
Federal, formam a Área Metropolitana de Buenos Aires.
Segundo o último Censo, o
GBA tem 9.859.658 e a Capital Federal 2.827.535 moradores, totalizando 12.687.193,
aproximadamente um terço
da população da Argentina
(INDEC, 2010).
A NOVA FÁBRICA É O BAIRRO?O TRABALHO POLÍTICO E TERRITORIAL
Especificamente, a pesquisa observa como duas organizações de desempregados
na periferia de Buenos Aires na década de 2000 expressariam mudanças na ação
coletiva dos dominados em relação com a fábrica e o bairro. Procura-se interpelar
assim a clássica divisão entre lutas do/pelo trabalho e lutas pelas condições de vida
(HARVEY, 1982), sendo que a síntese de De Gennaro sugere uma reviravolta (e uma
rebelião) da ação política face o que indicariam modelos teóricos mais tradicionais
vindos dos países centrais.
A Associação de Produtores Familiares (APROFA) e o Movimento de
Trabalhadores Desempregados de La Juanita (MTD), como será visto em seguida,
focam as suas reivindicações na construção de relações de trabalho como um direito
a partir da sua condição de desempregados. Enfatizam também, em seus Projetos de
transformação — na acepção latina do termo de proposta para o futuro —, uma ação
no entorno mais imediato e nas práticas do cotidiano: o bairro. Propõem relações
de trabalho diferentes das salariais, enfatizando uma maior corresponsabilidade na
produção e uma maior igualdade na distribuição do produto do trabalho através da
formação de cooperativas. Defendem não somente sua autonomia, mas também sua
oposição às instituições políticas tradicionais e às suas práticas na periferia de Buenos
Aires. Nesse sentido, formavam parte do grupo que certos pesquisadores designaram
organizações autônomas e de ação de bairro dentro do universo mais amplo de
organizações piqueteiras (SVAMPA; PEREYRA, 2003). São contemporâneas, não por
acaso, de fenômenos como as recuperadas, fábricas em crise ocupadas e geridas por seus
trabalhadores também em forma de cooperativa (FAJN, 2003; PALOMINO, 2003;
REBÓN, 2004).
As técnicas de pesquisa priorizadas foram a observação e as entrevistas com
lideranças e membros das organizações e daquelas com as quais se relacionam,
em trabalhos de campo realizados durante o ano de 2005 e com uma série de
entrevistas de controle e atualização em 2010. Foram analisados também estatísticas
socioeconômicas, boletins e publicações das organizações e de outras instituições,
assim como matérias em jornais de mais ampla divulgação. Ao trabalho com os casos
de estudo se agregou a leitura de outras etnografias e pesquisas de abrangência mais
geral, que também descrevem e discutem a ação coletiva a partir de dominados em
Buenos Aires no mesmo período.
O artigo começa apresentando a formação das organizações em estudo e o
surgimento de seus empreendimentos cooperativos. Em seguida, analisa essas ações
em relação com a construção territorial das organizações. Posteriormente, em um
diálogo crítico com alguns autores de referência da Economia Popular Solidária,
observa-se o trabalho cooperativo em sua perspectiva de Projeto Político e inscrito em
relações sociais mais amplas. Nas considerações finais são sintetizados os principais
resultados da pesquisa.
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2. Os casos em estudo:
MTD La Juanita e APROFA
2.1 Surgimento, membros e entorno territorial do Movimiento de Trabajadores
Desocupados (MTD) La Juanita
Começando pelo Movimiento de Trabajadores Desocupados4 La Juanita (MTD),
em uma primeira análise sobressai sua relação com as ações que se agregam, em forma
simplificada, sob o termo “movimiento piquetero”. Mais especificamente, e seguindo
os conceitos de Svampa e Pereyra (2003), estaria dentro da vertente piqueteira
“barrial” ou “de bairro”, que tem como base uma tradição e um trabalho territorial
mais intenso, sendo isso mais comum nas organizações localizadas no Conurbano
(SVAMPA; PEREYRA, 2003, p. 11-52). Seus objetivos publicamente divulgados
são a obtenção de “trabalho digno” para seus membros, questionando o Estado pela
“crise do desemprego”5 e participando, nas suas origens, do bloqueio de estradas, os
“piquetes”, para tornar visíveis suas demandas, iniciativas comuns às organizações
piqueteiras, segundo esses dois autores.
A partir das tradições políticas de seus membros e das relações com outras
organizações – com destaque para Las Madres de Plaza de Mayo e o Instituto
Movilizador de Fondos Cooperativos (IMFC) –,6 foram se diferenciando de outras
agrupações piqueteiras ao sublinhar sua recusa em se tornar beneficiários dos planos
de transferência de renda do Estado – los planes –7 e apoiar, sim, a geração de trabalho
mediante cooperativas e uma maior articulação com o entorno social mais imediato.
Em agosto de 2005 eram quinze os membros ativos da organização. Entre os que
exerciam uma maior liderança, encontra-se um antigo operário metalúrgico com
militância em agrupações de esquerda nas décadas de 1970 e 1980 e experiência no
trabalho “de base” em bairros de La Matanza, incluindo a ocupação de terras.8 Além
da importância de “antigos companheiros de política de bairro”, destaca-se a função de
uma participante docente, com experiência de trabalho em educação popular nessas
mesmas décadas e que se integrara ao MTD no fim da década de 1990. Trata-se de
pessoas com mais de 40 anos de idade que se articulam com outros membros que têm
em média 25 anos e que, na sua maioria, se aproximaram do MTD por intermédio
das Madres de Plaza de Mayo.
O entorno socioespacial mais imediato à organização, conhecido como bairro La
Juanita, formou-se a partir do loteamento de uma antiga propriedade rural. Localizase em La Matanza — município com mais de um 1,2 milhão de moradores (INDEC,
2010), no sudoeste do Conurbano —, reconhecido também por sua tradição de lutas
sindicais, pela importância histórica do partido peronista (PJ) e pela presença de
grandes organizações piqueteiras de atuação nacional. La Juanita apresenta indicadores
socioeconômicos típicos do segundo “cordão” dos subúrbios da Capital Federal, com
valores inferiores aos desta e aos do primeiro cordão de seus subúrbios. Mesmo que
a sua formação esteja dentro dos padrões formais de ocupação, é vizinho das áreas
urbanas que surgiram com a ocupação de terras para moradia, principalmente na
década de 1980 – os chamados assentamentos, onde mais da metade de seus membros
mora ou morava. Segundo reconhecem membros e vizinhos do MTD, trata-se de uma
área rica na ação de “punteros” ou “cabos eleitorais” do PJ.9
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4 “Desocupados”, no nome
original em espanhol, deve
ser entendido como “desempregados”.
5 Ver Flores (2005) e boletins
do MTD (2002, 2003, 2004).
6 A primeira surge na última
ditadura militar (1976-1983),
com as passeatas feitas na
Plaza de Mayo – sede do poder executivo de Argentina –
pelas mães que reclamavam
pela localização de seus filhos que, na sua maioria torturados e assassinados pela
ditadura clandestinamente,
são hoje conhecidos como
“desaparecidos”. O IMFC é
uma instituição formada em
1958 e que procura fomentar
o cooperativismo na Argentina. Ver IMFC (2008), AMPM,
(1996) e La Vaca (2007).
7 Trata-se de planos de transferência de renda a partir de
uma contraprestação em termos de trabalho temporário.
Tendo variados nomes e
versões — Plan Trabajar, de
1996 a 2002; Plan Jefes y Jefas de Hogar, desde 2002 —,
ganharam força em 2002 e se
estenderam ao governo de
Nestor Kirchner (2003-2007)
(SVAMPA, 2008, p. 48-52)
(SVAMPA; PEREYRA, 2003, p.
86-100).
8 Para o fenômeno da
ocupação de terras em La
Matanza na década de 1980,
ver Merklen (1991). Para a
ação política em setores populares na década de 1970 na
Argentina, ver Werner e Aguirre (2007).
9 Com o termo punteros
são denominadas as pessoas que, ligadas a partidos
políticos e sem pertencer formalmente à administração
pública, atuam intermediando recursos de origem
estatal para famílias de baixa
renda, pressupondo uma
retribuição em termos de
fidelidade política e eleitoral
(AUYERO, 2001).
A NOVA FÁBRICA É O BAIRRO?O TRABALHO POLÍTICO E TERRITORIAL
2.2 Surgimento, membros e entorno territorial da Asociación de Productores
Familiares (APROFA)
A APROFA se formou em 1998. Sua origem está relacionada a um grupo de
jovens que trabalhavam em uma horta comunitária dirigida por um padre católico.
Inconformados com a negativa do padre em ampliar as atividades da horta para
atividades com vizinhos, os membros desse grupo decidiram formar sua própria
organização e começaram a trabalhar com uma primeira horta para dez famílias do
bairro e com ferramentas obtidas através do Plano Hortas Familiares do estatal Instituto
Nacional de Tecnologia Agrária (INTA). Como no caso do MTD, rejeitaram os planes
de transferência monetária e procuraram gerar trabalho e renda a partir de relações de
trabalho cooperativas.
A APROFA é uma associação cujo núcleo está formado na sua maioria por jovens
entre 20 e 30 anos, muitos com segundo grau completo e alguns na universidade.
Uma parte está presente desde o início – seus membros já se conheciam por relações
de vizinhança e também familiares. Outros, em menor número, integraram-se a partir
de atividades de extensão em universidades, como a de Luján e Moreno, em áreas
de assistência social e agricultura comunitária. Também participam ativamente da
organização três pessoas com mais de 40 anos de idade, vizinhos do bairro, sendo dois
desempregados e um relacionado com uma escola comunitária de um bairro vizinho,
com princípios de cooperativismo, chamada Creciendo Juntos. Finalmente, chefes de
duas famílias do bairro somaram-se para participar ativamente, sendo primeiramente
simples destinatários das ações de APROFA – frequentavam seu refeitório –, com
poucos anos de escolaridade formal (primeiro grau incompleto) e morando dentro
da área mais pobre do bairro. É esse o perfil dos indivíduos que, de fato, a APROFA
tentaria não somente beneficiar, mas também integrar ativamente na sua organização.
A maioria dos membros e das ações da APROFA limitava-se inicialmente ao
bairro La Quebrada ou, no máximo, à região conhecida como Paso del Rey, sempre
dentro do município de Moreno. O fato de sua atividade original ter sido a de
hortas comunitárias pode associar-se, em parte, às características urbano-rurais do
município. Localizado nos limites do oeste do Conurbano, seu primeiro crescimento
demográfico significativo está relacionado ao desenvolvimento dos subúrbios de
Buenos Aires na segunda metade do século XX, oferecendo terras de pouco valor
monetário aos imigrantes vindos do interior da Argentina. Sem um desenvolvimento
industrial próximo, os moradores de Moreno sempre o consideraram um “município
dormitório”, sendo que a maioria de seus habitantes trabalhava na Capital Federal
ou nos distritos mais industrializados de seus subúrbios. Essa situação começa a
mudar na década de 1990: o fechamento de fábricas e a falta de emprego em geral
determinariam que uma parte crescente da população nem sequer tentasse viajar às
áreas centrais. Como mencionado já no caso de La Matanza, em Moreno também
domina o PJ junto a seus punteros. No município existe também uma maior presença
de organizações associativas e cooperativas ligadas ao fornecimento de bens coletivos,
especialmente desde o surgimento de assentamentos para moradia em lugares que
careciam de infraestrutura, na década de 1980. Suas lideranças e organizações não
pertencem à estrutura do partido peronista, tampouco a sindicatos ou outros partidos.
Diferentemente de La Matanza, essas organizações não derivaram nem podem ser
confundidas com grupos piqueteiros — relativamente escassos no município.
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3. A origem dos empreendimentos
cooperativos: tradições políticas,
sobrevivência e “prova e erro”
para o trabalho digno
[...] logo percebemos que só trabalhando coletivamente poderíamos sobreviver.
(Declaração de Soledad Bordegaray, do MTD, FUM, Rio de Janeiro, março de 2010,
tradução minha)
[...] a cooperativa é uma forma para poder participar mais no trabalho e nas decisões.
(Entrevista com membro da APROFA, janeiro de 2005, tradução minha)
A partir da reconstrução das trajetórias do MTD e da APROFA pode-se afirmar
que, longe de se reduzir ao senso comum que as indica como uma “resposta à exclusão”,
as formas de trabalho desenvolvidas pelas organizações em estudo expressam tradições,
valores e relações mais amplas. A proposta de desenvolver outras formas de relações de
trabalho — cooperativas — e de troca — feiras comunitárias ou de trueque — não surgiu
espontaneamente por reação automática face aos indicadores de desemprego. Nos casos
aqui em estudo, os valores — e também o apoio material concreto — para se formarem cooperativas chegaram fundamentalmente a partir de organizações mais antigas: as
mencionadas Madres de Plaza de Mayo, o IMFC e a escola Creciendo Juntos. Assim,
recriaram tradições de ação de caráter socialista e mutualista muito presentes na primeira
metade do século XX em Buenos Aires (ROMERO; ROMERO, 2000; GUTIERREZ;
ROMERO, 1995). Envolveram não poucas atividades de discussão, cursos e oficinas
com os membros da APROFA e do MTD, e se construíram fundamentalmente na prática concreta, enfrentando desistências e precisando de apoios mais contínuos.
Do lado dos primeiros membros e das lideranças, com maior experiência de
ação política, existia uma referência ao ideal socialista e uma opção de nova estratégia
política, a partir do bairro e a favor da “autonomia”. Foram eles, de fato, os principais
interlocutores com as instituições que atuaram como mediadores na construção das
organizações. Nessa interação se foi formando, aos poucos, uma proposta específica —
o trabalho cooperativo e autônomo — dentro do contexto mais geral de desemprego
e falta de representatividade das instituições políticas tradicionais:
[...] fomos percebendo que somente trabalhando de forma coletiva podíamos sobreviver
[...] criamos nossos próprios trabalhos, pois sabíamos que os muito jovens sem experiência e os velhos não tinham como conseguir emprego [...] (Declaração de Soledad,
liderança do MTD, Fórum Urbano Mundial – FUM –, Rio de Janeiro, março de 2010).
[...] a falta de opção era clara no bairro e entre os jovens, por isso tentamos fomentar ações
coletivas que gerassem alguma renda ou permitissem garantir alguns bens básicos [...]
(Declaração de liderança da APROFA, entrevista em janeiro de 2005, tradução minha).
Já entre os membros que não ocupavam posições de liderança ou não eram parte
do grupo fundador, as motivações primeiras tinham menos influência de tradições e
interações políticas. Uma grande maioria aproximou-se das organizações “procurando
um bico [...], algo de trabalho [e] uma forma de subsistir”. Desse modo explicam a
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sua chegada através das primeiras atividades produtivas das organizações, como os
refeitórios e hortas da APROFA ou a padaria e a feira relacionadas ao MTD (Quadros
1, 2 e 3). O contato dava-se a conhecer pelo bairro graças às lideranças e às iniciativas
das organizações ou aos vínculos familiares com os que já eram membros, na medida
em que se iam agregando participantes que chamavam seus parentes para trabalhar em
alguma coisa ou “arranjar alguma renda”.
Quadro 1. Empreendimentos econômicos da APROFA (ano 2005)
EMPREENDIMENTO
(FREQUÊNCIA DA
PRODUÇÃO)
Refeitório
(de segunda-feira a
sábado)
TRABALHADORES
Duas famílias
responsáveis da
cozinha e dois
membros da APROFA
responsáveis pela
gestão
ORGANIZAÇÃO
DO TRABALHO
Distribuição
das tarefas entre
famílias voluntárias
Contabilidade e
planejamento da
APROFA
Cada membro
faz uma atividade
similar
Fábrica de massas
(4 dias por semana)
Doze mães de família
beneficiárias do
refeitório
A contabilidade
e a programação
semanal dependem
dessas mães
O planejamento
e o seu controle
são feitos pela
APROFA
Oficina de serigrafia
(atividade irregular,
dependendo de
encomendas de
instituições afins)
Criação de frangos
e produção de ovos
(produção contínua)
Horta
(produção contínua)
Três membros ativos
da APROFA
Todos com tarefas
semelhantes
Contabilidade e
gestão próprias
Quinze famílias
recebem as ferramentas
e assessoria para a
produção da APROFA
Cada família é
responsável por
uma produção
mínima
determinada
pela direção da
APROFA, também
responsável pelo
planejamento e
controle
Dez famílias, como
mostrado acima
Produção
assessorada e
monitorada pela
APROFA e de
responsabilidade
das famílias
FORNECEDORES
E DESTINATÁRIOS
Alimentos fornecidos:
pela prefeitura
(menos de 25%) e o
resto comprado com
recursos da ONG
Acción Contra el
Hambre (ACH)
ou produzido pelos
empreendimentos da
APROFA
O capital inicial e
os insumos vêm de
recursos de ACH
Mais de 50% da
produção vão para o
refeitório, 25% são
para autoconsumo e o
restante é vendido nas
proximidades
Capital inicial da
ACH, e recursos por
pagamento adiantado
dos clientes
Capital inicial e
recursos correntes de
ACH
Assessoria técnica
de estudantes
da Universidade
Nacional de Luján
Insumos e
ferramentas do Plano
Hortas Comunitárias
do Governo Nacional
RETRIBUIÇÃO
AO TRABALHO
Trabalho
voluntário para o
refeitório
A produção
que excede as
necessidades
do refeitório
é distribuída
segundo as horas
trabalhadas,
para ser depois
autoconsumida
ou vendida de
forma conjunta
Retribuição
igualitária
50% da produção
vão para o
refeitório, o
resto é para
consumo próprio
das famílias, e
deste uma parte
pode vir a ser
comercializada
com a ajuda da
APROFA
Toda a produção
é para o consumo
das famílias
Fonte: Elaboração própria, com base em entrevistas e observações em fevereiro, maio e agosto de
2005.
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Quadro 2. Empreendimentos econômicos do MTD La Juanita (ano 2005)
EMPREENDIMENTO
(FREQUÊNCIA DA
PRODUÇÃO)
Oficina de Costura
(5 dias por semana)
TRABALHADORES
Oito
ORGANIZAÇÃO
DO TRABALHO
FORNECEDORES
E DESTINATÁRIOS
Cada trabalhador
faz uma atividade
semelhante
Trabalho
predominante por
encomenda: entrega
de matérias-primas
e pagamento por
produto produzido
para terceiros
Um membro do
MTD faz a gestão
e programação da
produção
Diretrizes
mais gerais são
discutidas com os
membros ativos do
MTD
Principais clientesfornecedores:
Boutique Martín
Churba (ver
LUDUEÑA, 2005)
e uma fábrica de
cortinas
RETRIBUIÇÃO
AO TRABALHO
Igualitária,
segundo as horas
trabalhadas
Capital inicial:
recursos de
fundações ligadas
a representações
diplomáticas
(embaixada do Japão)
Insumos comprados
de pequenos
atacadistas
Padaria
(5 dias por semana)
Oficina de serigrafia
(segundo encomendas
de instituições
interessadas, sem
produção no momento
da pesquisa)
Quatro
Dois
Igual ao anterior,
sendo os membros
do MTD
responsáveis
pela gestão
administrativa
Igual ao anterior,
um membro do
MTD responsável
pela gestão
administrativa
Venda de varejo na
sede do MTD e
para moradores das
proximidades
Parte da produção é
para a merenda dos
alunos da escola
Igual ao anterior
Capital inicial:
recursos de
fundações ligadas
a representações
diplomáticas
(embaixada do
Canadá)
Trabalho por
encomenda
Igual ao anterior
Fonte: Elaboração própria, com base em entrevistas e observações em fevereiro, maio e agosto de
2005.
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Quadro 2. Empreendimentos econômicos do MTD La Juanita (ano 2005)
Editora
(para boletins ou
publicações específicas)
Entre três e quatro
membros do MTD
Fora o trabalho
de redação —
feito pelo núcleo
do MTD —,
a distribuição
das tarefas é
relativamente
igualitária,
incluindo a gestão
administrativa
Sendo parte
da política de
divulgação
do MTD, seu
planejamento é
feito pelo núcleo
da organização
Recepção de estagiários e
pesquisadores
Dois membros do
MTD
Tarefas
equivalentes,
planejamento e
controle do MTD
Recursos monetários
e divulgação de
instituições que
apoiam de forma geral
o MTD
Venda no varejo em
eventos e na sede da
agrupação
Igual ao anterior
Acordo mais recente
com editora comercial
para reedição de livros
da organização, antes
de publicação própria
Recurso inicial de
doações. Custos
correntes financiados
com a renda do
empreendimento
Igual ao anterior
Fonte: Elaboração própria, com base em entrevistas e observações em fevereiro, maio e agosto de
2005.
Quadro 3. Empreendimento associado ao MTD La Juanita (ano 2005)
FEIRA COMUNITÁRIA:
Aproximadamente 40 vizinhos reúnem-se diariamente
para a troca e compra-venda de produtos
• Origem dos produtos: bens usados; bens produzidos artesanalmente; sobras de cestas de alimentos
distribuídas pelo poder público; frutas e verduras compradas em mercados de atacado.
• Organização do intercâmbio: preços em moeda corrente, inferiores aos dos estabelecimentos comerciais
vizinhos. Cada vendedor tem de pagar uma quantia fixa de 1 peso à gestora da feira. Os elementos de
trabalho para a venda são fornecidos pelos próprios feirantes.
• Gestão: de responsabilidade de uma pessoa com experiência em feiras anteriores e que não fazia parte
ativa do MTD.
• O MTD somente fornece o espaço físico para a feira acontecer na sua sede
Fonte: Elaboração própria, com base em entrevistas e observações em fevereiro, maio e agosto de
2005.
Quadro 4. Estrutura organizativa da produção na APROFA e no MTD La Juanita
(ano 2005)
a) Assembleia central: formada pelos membros ativos de cada organização, responsável por definir a
estratégia e as diretrizes dos empreendimentos. Formal e juridicamente é ela a organização.
b) Empreendimentos econômicos e culturais: nem todos os trabalhadores são membros ativos da
assembleia, mas têm de indicar um delegado para representá-los nela. As decisões cotidianas de produção
são tomadas pelo conjunto de seus trabalhadores.
Fonte: Elaboração própria, com base em entrevistas e observações em fevereiro, maio e agosto de
2005.
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A opção de não aderir ao que denominaram como malditos planes de transferência
de renda do governo foi um marco em termos identitários e também em quantidade
de aderentes, tanto para a APROFA quanto para o MTD. Nos membros que ficaram
nas organizações após essa decisão, a motivação material não podia ser mais única nem
suficiente para explicar a sua permanência e a sua adesão ao longo do tempo — até
porque os planes rejeitados ofereciam na época uma renda fixa mensal superior à das
atividades produtivas tanto da APROFA quanto do MTD. Nas trajetórias e nos valores
que aparecem nas entrevistas desta pesquisa, fica claro o processo de identificação que
tem como um de seus elementos constitutivos o “trabalho digno” e que as propostas de
trabalho cooperativo procurariam concretizar. Quando perguntados sobre as motivações
para formar parte da organização ou quando indagados sobre os principais objetivos do
grupo, membros da APROFA e do MTD afirmam que se trata principalmente de “ter a
possibilidade de viver de forma digna” no sentido de “não depender nem se submeter a
ninguém”, principalmente “ao governo e à esmola em troca de votos”.
O trabalho digno a partir do cooperativismo, como proposto nas duas
organizações, expressa também uma resistência à premissa, especialmente divulgada
junto com a implantação das reformas trabalhistas na Argentina na década de 1990,10
de que era culpa dos indivíduos estar desempregados — por falta de capacitação
ou iniciativa empreendedora. Nesse sentido, destacam-se as palavras de ordem do
MTD — “Da culpa à autogestão” —, que sintetizam o confronto com esse discurso
dominante (FLORES, 2005).
O trabalho digno indica um distanciamento das políticas implantadas desde a
metade da década de 1990 para “aliviar” a situação generalizada de desemprego; políticas
presentes em programas de transferência de renda e de ocupação transitória, os planes
acima mencionados. Diferencia-se dos agentes e das práticas dominantes da política
nos subúrbios de Buenos Aires, com seus punteros ou cabos eleitorais. Distingue-se
também da reivindicação sindical mais tradicional de abertura de empregos e aumento
salarial. Diante do crescimento generalizado do desemprego11 e do que descrevem como
o fechamento de quase todas as fábricas de perto ou onde os vizinhos trabalhavam, o
emprego assalariado parece não ser mais um objetivo. Em seu lugar, surge a proposta de
desenvolvimento de formas alternativas de trabalho. A “procura da dignidade”, entendida
como não submissão, envolve também a organização coletiva para o fornecimento de
bens de sobrevivência: padarias e hortas, para produzir alimentos; refeitórios e feiras de
escambo, para garantir o acesso aos bens considerados básicos.
O desenvolvimento de empreendimentos produtivos a partir de relações
cooperativas foi, em ambas as organizações, um processo no qual as dificuldades e
os avanços a partir de “prova e o erro” ajudaram a construir os valores de trabalho
“digno e autônomo”. As organizações mediadoras prestavam conhecimento técnico,
contatos comerciais e alguns recursos materiais para a produção tanto no MTD
como na APROFA.
A interação com profissionais de fora das organizações não deixava de ser tensa,
sobretudo quando questões específicas de gestão eram apresentadas por professores e
técnicos segundo os parâmetros tradicionais dos negócios: o preço ótimo e de produção
de equilíbrio que os modelos de microeconomia recomendavam não era compatível
com o interesse das organizações de vender barato e gerar a maior quantidade de
trabalho. Nessa situação, os membros das organizações optaram por uma solução
que teria sido reprovada no cálculo de custos marginais da microeconomia ortodoxa,
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10 Essas reformas consistiam
em “flexibilizar” as relações
de trabalho, reduzindo as
garantias de estabilidade e
outros direitos relacionados
às contribuições patronais ao
sistema de segurança social,
às férias e à jornada de trabalho. Ver Beccaria (2001) e
Rofman (1997).
11 A taxa de desempregou
chegou a 21,5% em julho de
2002, seguindo uma tendência da década anterior (BECCARIA, 2001).
A NOVA FÁBRICA É O BAIRRO?O TRABALHO POLÍTICO E TERRITORIAL
mas claramente coerente com a sua proposta política e de cooperativismo: continuar
vendendo barato, mas trabalhando e produzindo mais para garantir a mesma sobra
monetária final.
Outras opções políticas também tinham seus custos para os empreendimentos. O
objetivo principal de gerar trabalho fazia com que “qualquer companheiro que tivesse
uma proposta de empreendimento fosse apoiado, e tentávamos”, pois “ninguém podia
nem queria dizer ‘não’ a um companheiro desempregado”. De fato, essa construção
a partir do aprendizado e com outras regras de trabalho fez com que muitas pessoas
saíssem, fosse por não se adaptarem à maior divisão de responsabilidades, fosse por
necessitarem de outras fontes de renda.
As pessoas que mesmo nessas circunstâncias ficaram na APROFA e no MTD,
assim como as que viriam a se somar posteriormente, desenvolveram atividades
fundamentais para o processo de constituição das organizações para a sua proposta
de “autonomia e dignidade” e o seu Projeto Político. Essa prática concreta envolvia
também a construção de novas territorialidades.
4. As relações de trabalho cooperativas
construindo territórios
As relações materiais em torno do trabalho mostram o entorno territorial
mais imediato como um âmbito intencionalmente central tanto na APROFA
quanto no MTD (Quadros 1, 2, 3 e 4). As pessoas que realizam o seu trabalho nos
empreendimentos e os destinatários de sua produção localizavam-se, principalmente,
no que os membros das organizações denominam “o bairro”. Na APROFA, segundo
foi observado, os empreendimentos tinham por objetivo dar trabalho aos vizinhos e a
produção estava orientada para produtos considerados básicos — alimentos — para
serem consumidos no entorno territorial. O pouco que não era para autoconsumo ou
para redistribuição no refeitório era comercializado com famílias do bairro (Quadro
1). No MTD, isso também era claro em empreendimentos como o da padaria (MTD;
DOBIN-BERNSTEIN, 2007), que, como acima mencionado, procurava vender
alimentos a preços baixos aos vizinhos, e quando dava o seu apoio e um espaço para a
realização da feira diária (Quadros 2 e 3).
Dessa forma, as relações materiais estabelecidas pelas organizações oferecem
um primeiro indicador do sentido que a nova fábrica atribui ao bairro em termos de
territorialidades da ação coletiva e em torno do trabalho. Partindo da fábrica, e segundo
indica Sack (1986), o tradicional estabelecimento industrial (fordista) construía em
seu espaço e em sua inserção produtiva uma territorialização hierarquizada com o
objetivo de garantir o controle do processo de trabalho capitalista. Quando a fábrica
fecha na periferia de Buenos Aires, os desempregados que aderem às cooperativas
da APROFA e do MTD constroem, de fato, outra territorialidade relacionada com
o seu trabalho. O espaço mais restrito da produção a partir de relações de trabalho
cooperativo não tem as formas de controle tradicionais do trabalho assalariado. Ficam,
ademais, intencionalmente expostos e “abertos ao público”: aos vizinhos que vão
comprar os produtos ou perguntar se há algum trabalho que eles possam fazer, aos
membros de organizações não governamentais e fundações interessados em realizar
doações ou em ver o andamento dos projetos que financiam. Mais importante, e
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além da territorialidade relacionada ao espaço restrito à produção em sentido mais
imediato, o trabalho nos empreendimentos serve assim para construir novas relações
com o entorno: opção de renda para alguns vizinhos, oferta de produtos mais acessíveis
a preços populares ou espaço de interação cotidiano no caso da feira comunitária, para
muitos outros.
A proposta de autonomia e a oposição aos planes não impedem que algumas
relações materiais se desenvolvam com o poder público, sobretudo através das
prefeituras municipais. Os militantes preocupam-se em enfatizar, porém, que essas
relações nada tinham em comum com aquelas geridas pelos tradicionais punteros.
Assim, por exemplo, a APROFA articulou-se com outras organizações que possuíam
refeitórios para exigir um plano de distribuição de alimentos da prefeitura de Moreno.
Também obteve subsídios de um programa do governo nacional para a compra de
insumos para hortas e de outro para compra de ferramentas para as associações e
a cooperativa (Quadro 1). O MTD negociou com a prefeitura de La Matanza o
desenvolvimento de um centro de saúde comunitária na sede do movimento. Já
com empresas privadas e a câmara de vereadores, obteve a realização de uma rede
de gás a preços populares para o “bairro”, “acabando com anos de negociações malintencionadas e atos de corrupção que não deixavam o gás chegar ao bairro”.
A forma através da qual as duas organizações se identificam com o território não
se restringe ao destaque por elas dado a uma estratégia barrial — no e a partir do
bairro —, mas também em sua autorreferência a um território singular: La Juanita,
no MTD; La Quebrada, na APROFA. Essa referência não se apresenta no sentido de
pretender representar o bairro, mas, como destacam membros e lideranças, é a forma
escolhida de identificação e de apresentação pública, diferenciando-se de identidades
que envolvem uma escala maior e da qual desconfiam.
Dessa forma, pode-se afirmar que o bairro da ação das organizações, longe de
refletir a regionalização oficial, é uma territorialização construída pelos sujeitos dessas
ações e que serve para identificar quem está fora e quem está dentro (BOURDIEU,
2004). Nos termos sugeridos por Haesbaert (2004), aparece então uma tentativa de
territorialização ligada aos Projetos das organizações e à sua procura por substituir as
atuais relações de poder por outras.
5. Economia e Política Popular na
Periferia de Buenos Aires: o Trabalho
como um dos fundamentos dos Projetos
políticos das organizações estudadas
Nos empreendimentos da APROFA e do MTD, assim como em sua relação com
o entorno social mais imediato, nota-se que são desenvolvidas relações de trabalho e de
troca diferentes das práticas capitalistas dominantes. Essas relações, entretanto, dãose de forma complexa e tensa dentro das relações de produção capitalista dominantes.
No caso do MTD, onde a sua visibilidade e o seu apoio de instâncias sociais permitem
uma escala de produção e comercialização maior, a remuneração do trabalho depende, em
última instância, da realização de seu produto como mercadoria, dentro das relações de
produção capitalistas dominantes. Se o produto da padaria ou da oficina de costura não é
vendido, por exemplo, os empreendimentos têm de fechar, como de fato já aconteceu até
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12 Entende-se relação de
mercado como aquela definida por trocas de caráter impessoal, no sentido de que
a compra e a venda não dependem das características
específicas das pessoas envolvidas, mas sim dos preços
e das quantidades negociadas no mercado e orientadas para a obtenção de um
benefício material individual
(POLANY, 2000).
serem reabertos com novos apoios. Quando as roupas produzidas são encomendadas por
uma empresa de moda — inclusive quando esta tem como primeira motivação apoiar o
movimento — ou, mais ainda, quando uma fábrica quer terceirizar parte de sua produção
contratando os serviços dos empreendimentos do MTD, a definição do ritmo e do preço
da produção passa pelo poder de negociação maior desses agentes, que, por sua vez, vendem
no mercado com critérios comerciais (Quadro 2).
No caso da APROFA, a troca dos produtos dos empreendimentos dá-se numa
extensão menor e baseada em relações de caráter mais pessoal e, nesse sentido, menos
mercantil.12 Mesmo assim, quando tentam vender o excedente não consumido das
hortas, devem seguir os preços do mercado mais amplo: se forem mais caros, ninguém
os compra num bairro com baixa renda; se forem muito baratos, os “números não
fecham”, para manter o processo produtivo da horta (ver Quadro 1).
Do mesmo modo, tanto no MTD quanto na APROFA muitos dos recursos
que recebem de ONGs e de programas públicos são condicionados a gerar uma
“sustentabilidade”; em outras palavras, a garantir a sua continuidade comercializando
a sua produção no mercado ou a garantir o autoconsumo a baixos custos. Assim, as
determinações da forma da mercadoria e a sua influência nas condições de trabalho
continuam presentes.
Essa tensão pode ser lida, em termos conceituais mais rigorosos, como
consequência da complexa articulação de relações de trabalho cooperativas dentro
das relações de produção capitalista dominantes. As práticas concretas da APROFA
e do MTD contradizem, dessa forma, as prédicas e questões colocadas por alguns
estudos da Economia Popular e Solidária (EPS) para experiências cooperativas
de movimentos sociais. As afirmações de alguns aderentes à EPS sobre o grau de
“alteridade e oposição ao capitalistas” tendem a confundir relações de trabalho com
relações de produção e tendem a reduzir a análise da ação coletiva a uma análise
dicotômica, simplista, entre capital e não capital. Para Singer (2001, 2002), é possível
uma economia solidária diferente da capitalista, com princípios e dinâmica próprios,
“superadora” do capitalismo. ;Para Coraggio (1996, 2003), a Economia Popular —
que não garante solidariedade, mas sim um foco na realização do trabalho — também
tem especificidades que a diferenciam da “economia capitalista” e postula uma possível
complementaridade de ganhos mútuos. Ambas as análises de referência, portanto,
não destacam conceitualmente as contradições de propostas de relações de trabalho
cooperativas que se articulam concretamente no modo de produção capitalista. A
riqueza, a complexidade e as contradições próprias dessa articulação parecem assim ser
omitidas por conta do viés dicotômico de suas propostas teóricas.
Pode-se afirmar, entretanto, que as relações de trabalho propostas e construídas
pelas organizações não são meras alternativas de “geração de trabalho e renda”, mas
parte fundamental, e subordinada, da construção de um Projeto político. Nos casos
concretos da APROFA e do MTD, pode-se observar que a implantação concreta dos
empreendimentos não está livre de tensões com o ideal “emancipatório” colocado
pelas lideranças das organizações, expresso em: autonomia em relação ao Estado e
questionamento de vínculos de subordinação. Procuram, sim, a construção do
“trabalho digno”, em clara oposição às práticas e aos valores que caracterizam a política
popular na periferia de Buenos Aires. Essas relações construídas nos empreendimentos
são parte do objetivo de transformar o espaço mais restrito do bairro em favor dos
mais pobres e em construir relações políticas e de trabalho mais igualitárias.
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Como sugere Hanna Arendt (2006, p. 82-83), é valorizando a ação política
que podem ser mais bem compreendidas as relações econômicas como parte — mas
não determinante — das relações e transformações sociais, retomando assim o que,
segundo esta autora, havia de mais original e esclarecedor no pensamento de Marx.
É dessa forma que ganham sentido as ações de prova e erro de criação de
empreendimentos, mesmo precários e contrariando os princípios tradicionais de
gestão e de formação de preços. É nesse dia a dia da produção e da tentativa que
as organizações vão também construindo o seu Projeto. A conclusões semelhantes,
não por acaso, chegam outros pesquisadores na periferia de Buenos Aires – como
Manzano, quando analisa as práticas cotidianas de grupos de organizações piqueteras
no município de La Matanza. Atividades em refeitórios, oficinas e empreendimentos
situam-se, como demonstra também essa pesquisadora, dentro de um “marco de
relações de intercâmbio social e político” (MANZANO, p. 280).
Trata-se, em outras palavras, de analisar a Política Popular e observar as relações
entre dominados e dominantes e as suas transformações e continuidades. Busca-se,
portanto, evitar a armadilha analítica e política de entender os dominados como setor
econômico autônomo e excluído.
6. Considerações finais
Temos aqui primeiros indícios das continuidades e transformações nas identidades
e na luta de classes quando a fábrica fecha na periferia de Buenos Aires e organizações
de “bairro” tentam recriar relações de trabalho cooperativas.
Do lado das continuidades, e diferentemente do que a maioria das análises mais
gerais sobre a ação coletiva postula na Argentina (SVAMPA, 2008; MERKLEN,
2005), os membros da APROFA e do MTD reconhecem-se como trabalhadores,
como parte de uma classe que foi derrotada nas últimas décadas e que luta por manter
a sua dignidade. Na mesma direção, não é trivial que a proposta dos empreendimentos
seja construir relações cooperativas que sigam tradições mais antigas de movimentos
internacionalistas e, mais próximas no tempo e no espaço, as experiências de
cooperativas e associações socialistas dos bairros portenhos. Do lado das mudanças, elas
podem ser lidas começando-se pelas diferenças com respeito a essas mesmas práticas
cooperativistas mais antigas. Essas eram parte de propostas de transformação mais
radical da sociedade dentro do processo de formação e luta de classes nas primeiras
duas décadas do século XX. Centradas na mudança das condições de vida no bairro,
subordinavam-se a Projetos políticos socialistas e anarquistas que colocavam como seu
Outro os patrões, entendidos como agentes da exploração inerente ao sistema capitalista
(Gutierrez, 2000a, 200b; TORRE, 2000). No MTD e na APROFA, não aparece uma
crítica explícita e única aos “capitalistas”, mas sim às formas de dominação imperantes,
à falta de trabalho e, sobretudo, às práticas e aos valores mais tradicionais na política,
nos setores de baixa renda. Reconhecendo-se como trabalhadores, e desempregados,
propõem relações de trabalho cooperativas para substituir as relações salariais já
não acessíveis como alternativa de sustento. APROFA e o MTD não reivindicam
a obtenção do trabalho assalariado dentro das fábricas; entendem que ele já não é
uma alternativa acessível e que também não traz mais as garantias de estabilidade e
promessas de progresso social que, segundo acreditam, teriam tido no passado. Como
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resume uma das lideranças do MTD, a proposta política de trabalho cooperativo,
de “trabalho digno”, foi construída diferenciando-se dos discursos e das práticas das
instituições tradicionais:
[...] começamos a desenvolver nosso próprio trabalho enfrentando [...] o governo, que
nos chamava de inúteis [...] as regras do mercado de trabalho, que nos consideravam
velhos ou jovens demais [...] os sindicatos, que nos pediam que ficássemos em casa para
não atrapalhar a quem ainda tinha trabalho [...] os partidos de esquerda tradicionais, que
diziam que não podíamos ser um sujeito histórico. (Declaração de Soledad Bordegaray,
FUM, Rio de Janeiro, março de 2010, tradução minha).
Observou-se também como as ações de APROFA e do MTD conseguem
desenvolver um processo de territorialização dentro de um projeto de ação política.
Não se trata de ações de segregados e excluídos, mas de dominados que tentam uma
ação, também territorial, que mude as relações de dominação imperantes – relações
que se refletem na sua condição de desempregados, de trabalhadores transitórios e
mal remunerados e de moradores de territórios periféricos, lugar de políticas focais
e transitórias. As duas organizações, pode-se interpretar, procuram construir um
território que se contraponha às tendências territoriais dominantes (e a partir dos
dominadores) presentes na periferia de Buenos Aires onde vias expressas e bairros
fechados para setores de alta renda se articulam com villas e assentamentos sem maiores
recursos estatais (CATENAZZI; LOMBARDO, 2003; CRAVINO, 2008; CUENYA;
FIDEL; HERZER, 2004; SILVESTRI; GORELIK, 2000). Em outros termos, os
‘bairros’ da ação de APROFA e do MTD buscam desenvolver relações e condições
diferentes face os cada vez mais numerosos espaços periféricos que, longe de estarem
excluídos, mostram uma integração à dinâmica econômica dominante que piora as
condições de vida e de trabalho de seus moradores.
Mostrar constatações contrárias às categorias da exclusão e da segregação não
significa ignorar as mudanças na ação coletiva a partir de dominados e sua articulação
com processos de territorialização. Seguindo a análise de David Harvey (HARVEY,
1982, p. 35)., a ação dos casos em estudo parece quebrar a dicotomia clássica “[...]
imposta pelo capital [...] para fragmentar [a luta da classe trabalhadora entre o lugar]
do viver e do trabalhar [...]”. Reformulando, mas ativando, uma tradição de lutas
na periferia, APROFA e o MTD parecem dar a razão ao dirigente sindical Vitor De
Gennaro citado neste artigo quando ele coloca que o fechamento da fábrica estimula a
ter no bairro – construído pela ação – um lugar de ação e de recriação da identidade de
trabalhadores, agregando de ex-operários a jovens sem experiência laboral, integrados
na causa comum de ‘trabalho para todos’.
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Javier Walter Ghibaudi é
professor adjunto e pesquisador do Departamento de Economia da Universidade Federal Fluminense (SEN/UFF).
Economista pela Universidade de Buenos Aires (UBA),
mestre e doutor em Planejamento Urbano e Regional
pelo IPPUR/UFRJ. E-mail:
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Abstract
The article discusses the patterns of the collective action and
their changes undertaken by the dominated ones in relation to territoriality and labor
in the outskirts of Buenos Aires during the first decade of the 21st century. The research
focuses on two case studies of organizations that presented themselves as: autonomous from
traditional parties and unions, advocated the creation of cooperative work relations and
proposed a policy from the “neighborhood”. The article highlights the ways in which these
organizations maintain and recreate a working class tradition in contrast with the theories
that emphasize the end of social classes and the traditional division, in urban studies,
between social struggles outside and inside the factory.
Keywords:
Cooperativism; Collective Action; Periphery; Buenos Aires;
Unemployed Workers; Popular and Solidarity Economy.
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Circuitos da economia urbana
e economia dos setores
populares na fronteira
amazônica: o cenário atual
no sudeste do Pará1
Harley Silva
Sibelle Diniz
Vanessa Ferreira
R e s u m o Embora a expansão do mercado trabalho formal seja uma tendência
sustentada no Brasil nos últimos anos, a persistência de formas de ocupação ligadas ao circuito
inferior da economia é uma realidade ampla e mal compreendida. Isso é particularmente
verdade para as diversas fronteiras da Amazônia brasileira, onde a economia informal,
popular, solidária e familiar persiste, a despeito dos grandes investimentos destinados ao
circuito superior. Esse trabalho investiga a situação vigente no sudeste paraense, onde a
economia formal de alguns municípios tem crescido a “taxas chinesas” e ao mesmo tempo
há a presença massiva de formas alternativas de inserção econômica da população,
particularmente a de baixa renda.
Pal avras-chave
economia dos setores populares; economia informal;
circuito inferior; fronteira amazônica; sudeste paraense.
Introdução
Embora a expansão do mercado de trabalho formal seja uma tendência
sustentada no Brasil nos últimos anos, a persistência de formas de ocupação ligadas
ao circuito inferior da economia é uma realidade ampla e pouco compreendida. Isso
é particularmente verdade para as diversas fronteiras da Amazônia brasileira, onde
a economia informal, popular, solidária e familiar persiste, a despeito dos grandes
investimentos destinados ao circuito superior.
Este trabalho propõe uma discussão dessas formas alternativas de produção,
investigando tal cenário no sudeste do estado do Pará, onde a economia formal
de alguns municípios tem crescido a “taxas chinesas” e ao mesmo tempo persiste
a presença massiva de formas de inserção econômica fora do mercado de trabalho
formal para grande parte da população, particularmente a de baixa renda.
Parte-se da discussão clássica dos circuitos da economia urbana proposta por
Santos (1979), aproximando-a das relações entre urbanização e mercado de trabalho
nas fronteiras da Amazônia contemporânea. As fronteiras de terras e recursos conferiram
historicamente um significado peculiar às relações econômicas em geral e às de trabalho
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1 Este trabalho foi produzido a partir das discussões
e trabalhos de campo vinculados ao projeto “Urbis
Amazônia: qual a natureza
do urbano na Amazônia
contemporânea?”, financiado pelo ITV-DS – Instituto
Tecnológico Vale – Desenvolvimento Sustentável – e
pela Fundação Vale através
de convênio estabelecido
com a FUNCATE – Fundação de Ciência, Aplicações
e Tecnologia Espaciais. Os
autores agradecem à instituição financiadora e aos
demais colegas do Urbis pelas contribuições.
Circuitos da economia urbana e economia
em particular na Amazônia (COSTA, 2012a). No cenário atual de crescimento
econômico, nessa região impulsionado e moldado pela atividade mineradora, cabe
indagar uma vez mais o significado da trajetória histórica das fronteiras do Norte do
país e suas transformações contemporâneas.
O recurso à visão dos dois circuitos abre também espaço para a discussão do
processo de urbanização contemporânea na região. Surge como um desdobramento
da dinâmica econômica, mas também como seu suporte e uma das formas de seu
enraizamento na região. Nessa via, assumimos a perspectiva da urbanização extensiva
(MONTE-MÓR, 1994), chave para uma abordagem compreensiva das dinâmicas
da cidade e de seu entorno: seus efeitos desagregadores/integradores do urbano como
espaço físico da emancipação material e suporte da vida política, todos estes aspectos
particularmente cruciais no contexto amazônico.
Além de dados secundários, são empregadas informações colhidas em trabalho de
campo realizado pelos autores em julho de 2012.
Desenvolvimento, circuitos
da economia urbana e mercado
de trabalho na Amazônia
2 Conceito devido ao economista chileno Aníbal Pinto
Santa Cruz. Refere-se à coexistência e interdependência
de setores, em sociedades
subdesenvolvidas, de estrutura produtiva e ocupacional
díspar. Ver Rodríguez (2006).
Quinhentos anos após o início do processo de incorporação dessa região à
dinâmica da economia capitalista, a Amazônia permanece como uma das fronteiras do
planeta. Fronteira de recursos, de conhecimento novo, de possibilidades de construção
de um novo padrão de desenvolvimento. A potência do novo na Amazônia ainda não
emergiu de fato, em parte devido ao próprio padrão de incorporação que a região
experimentou desde a chegada do colonizador e que se prolongou na história brasileira.
Esta se baseou numa ocupação para a retirada de recursos, exportadora de matériaprima. Operou, portanto, “segundo o paradigma sociedade-natureza denominado
‘economia de fronteira’, em que o crescimento econômico é visto como progresso
linear e infinito através da incorporação de terra e produtos naturais percebidos
igualmente como inesgotáveis” (BECKER, 2005, p. 401).
A Amazônia brasileira se construiu voltada para fora, como espaço derivado
(SANTOS, 2009), “ocupada e povoada em surtos associados às grandes inovações da
expansão da economia-mundo” (BECKER, 2009). Conectada a impulsos do novo
que não partiram de dentro, mas de fora, como de resto tem sido a trajetória do
crescimento com dependência da sociedade brasileira, a região, talvez ainda mais que
o restante do país, chama a atenção por sua heterogeneidade estrutural.2
Para além de dualidades, a sociedade amazônica é heterogênea. Marcada
simultaneamente por experiências da chegada e da busca do novo. Um novo que procura
formas no patrimônio desconhecido da biodiversidade local e no conhecimento que
lhe corresponde, parte dele detido, ironicamente, por aqueles que são rotulados como
os povos tradicionais. Marcada pela recorrente chegada do moderno que, ao se instalar
de fora, ignora o novo que ali já reside, e se realiza combinado ao arcaico que traz em
si e que encontra.
Essa constante renovação e conservação ganha concretude nas realidades paradoxais
da Amazônia. Floresta urbana; cidades da selva; riqueza de biodiversidade a reduzir-
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se em matéria-prima genérica e terra arrasada qualquer; promessa de emancipação a
realizar-se como subdesenvolvimento recorrente. Em parte os paradoxos são realidades
dissimuladas, não decifradas. Complexidade que se apresenta como transparência no
absurdo. Desafios do desenvolvimento brasileiro, que se apresentando como carentes
de lógica passam à margem do enfrentamento; aquele que desvendando relações e
determinantes os traria a um saber e a uma prática ainda não construídos, mas que
forneceriam soluções reais.
Essa heterogeneidade paradoxal pode ser encontrada em um mercado de
trabalho cindido pelo que Milton Santos denominou os dois circuitos da economia
urbana. Ela também se revela no caráter simultaneamente fragmentado e interligado
(LEFEBVRE, 2008) do espaço amazônico com um todo, para além das cidades e dos
fluxos econômicos apenas. É assim a urbanização presente em todos os espaços, mas
que ao mesmo tempo compõe cadeias produtivas e fluxos fragmentados.
Milton Santos (1979), em sua análise do ‘espaço dividido’ nos países
subdesenvolvidos, aponta para a existência, nas cidades desses países, de dois
circuitos econômicos. A configuração dos circuitos tem origem nos processos de
industrialização e de modernização vivenciados nesses países, guiados por firmas
multinacionais intensivas em tecnologia e geradoras de um número limitado de
empregos. Como resultado de tais processos, formam-se dois circuitos. O superior,
altamente beneficiado pelo processo de modernização; o outro, inferior, que parcial
ou absolutamente não se beneficia do progresso técnico, do avanço organizacional e
das vantagens a eles relacionadas.
A presença de uma massa populacional com salários muito baixos, dependendo de trabalho ocasional para viver, ao lado de uma minoria com altos salários, cria na sociedade
urbana uma distinção entre os que têm permanente acesso aos bens e serviços oferecidos
e os que, mesmo apresentando necessidades similares, não podem satisfazê-las. Isso cria
ao mesmo tempo diferenças qualitativas e quantitativas de consumo. Essas diferenças
são, ambas, causa e efeito da existência, isto é, da criação ou manutenção, nestas cidades,
de dois sistemas de fluxo que afetam a fabricação, a distribuição e o consumo de bens e
serviços. (SANTOS, 2008, p. 95).
No circuito superior, os negócios bancários, comércio e indústria para exportação.
A indústria urbana moderna, comércio e serviços modernos, comércio atacadista e
transporte. Caracteriza-se por atividades capital-intensivas, mas quase unicamente
imitativas ou avessas à inovação. Produção em grande escala, articulada para fora da
cidade e da região, tendo como objetivo principal a acumulação de capital. No circuito
inferior, atividades intensivas em trabalho, produção em pequena escala e, em certo
paradoxo, grande potencial criativo. Forte articulação à vida local, à cidade e à região,
possuindo como objetivo primordial “sobreviver e assegurar a vida familiar diária,
bem como participar, o quanto possível, de certas formas de consumo peculiares
ao moderno modo de vida” (SANTOS, 2008, p. 102). Compõe-se basicamente de
serviços não modernos, abastecidos pelo comércio em pequena escala.
Longe de serem realidades estanques, os dois sistemas de fluxos da economia
urbana estão em relação permanente, ainda que truncada e seletiva. São relações
determinadas por condições históricas gerais, especialmente ligadas à forma de
penetração das atividades modernas no território, e pela ação do Estado, que atua como
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Circuitos da economia urbana e economia
3 Distinção estabelecida por
Costa (2012b) entre extrativismo de coleta e extrativismo de aniquilamento.
Enquanto o último trilha
o caminho da anulação do
ecossistema original na
medida em que toma suas
partes como estoque de
matéria-prima, o primeiro
se estrutura como valores
que se retiram de um fluxo
cuja lucratividade derivada
no mercado depende da sua
continuidade, portanto da
existência de uma natureza
viva que se reproduz.
4 É preciso destacar que no
sul da colônia o processo de
mestiçagem entre o português e o índio forjou também
o caboclo paulista, agente
fundamental na apropriação
portuguesa do território e
suas riquezas. Ver Ribeiro
(2006).
5 “No curto espaço de quatro anos, na década de 1750,
foram criadas na Amazônia
brasileira cerca de sessenta
povoações. Um verdadeiro
boom urbanizador... Aldeamentos indígenas foram
radicalmente transformados,
convertendo-se em vilas planejadas no campo da racionalidade geométrica.” (RISÉRIO, 2012, p. 127-128).
intermediário entre os agentes inovadores, portadores dos impulsos que modificam/
perpetuam sua distinção em sistemas, e as realidades locais e regionais diversas.
Na formulação de Santos, aos dois sistemas de fluxos correspondem relações do mercado
de trabalho. Resultando de interações de impulsos de modernização que se difundem a
partir dos centros do sistema – tecnologias aplicadas à produção e sua organização, padrões
de consumo e contextos culturais a eles relacionados, entre outros aspectos –, os circuitos
refletem relações peculiares entre trabalho e capital. Em regra, as rodadas de tecnologia
foram poupadoras de mão de obra. Tornaram supérfluos contingentes de trabalho não
especializado e simultaneamente elevaram as exigências de especialização para os segmentos
de mão de obra ainda requisitados. Ao mesmo tempo, essas rodadas adentram o sistema
econômico introduzindo novos produtos, ou novos conjuntos articulados de produtos,
na cadeia de consumo, em geral no topo dessa cadeia. O sistema avança renovando as
contradições entre os circuitos, mas dificilmente diluindo-as.
Importa discutir o quanto o ambiente Amazônia insere algo novo nesse quadro
e o quanto ele se modifica no contexto brasileiro contemporâneo, com o crescimento
econômico dos anos 2000. Obviamente não pretendemos oferecer respostas definitivas
a essas questões, restando trazê-las ao debate e tentar uma contribuição.
A criação de reservas de mão de obra foi uma questão crucial na formação do
espaço econômico brasileiro. Num território vasto e desconhecido, o conhecimento do
colonizador não se comparava ao saber concreto do nativo. A criação de mercadorias
trilhou o caminho do trabalho escravo do homem trazido da África. A força de
trabalho indígena tornou-se de início impossível ou segunda opção a contragosto. Mas
na Amazônia a agricultura em larga escala não conseguiu instalar-se em função das
características do ambiente. Ela veio a se metamorfosear numa economia extrativista
peculiar, o extrativismo de coleta.3 Ali, num ecossistema de características únicas,
sobre o qual o nativo era o único detentor de conhecimento, este se transformava
em trabalho (altamente) qualificado. Ao contrário do restante da colônia, ocorre
algo muito distinto do índio ou mestiço como mão de obra de segunda categoria.4
A população cabocla amazônica, à semelhança do mestiço no restante do Brasil, irá
formar parcela da sociedade privada de direitos. Mas desde o primeiro momento
se estabelece uma relação especial com o mercado de trabalho. O quadro natural
oferece ao não proprietário formas de negar (pelo menos relativamente) a submissão
às formas de trabalho de interesse exclusivo do colonizador, e mais tarde a empresa
capitalista (COSTA, 2012a). Para isso, contribui a abundância de recursos para a
sobrevivência (valores de uso) e gêneros passíveis de valorização no mercado, assim
como aquele herdado que, embora constantemente classificado como arcaico, mostrase repetidamente rico e dotado de eficiência reprodutiva específica para assegurar os
meios de vida de parcelas extensas da população.
Esse processo se consolida ainda nos Seiscentos, ganha instituições e permanência
com a ação jesuítica e prolonga-se, modificado, com as reformas introduzidas pelo
Diretório dos Índios, promulgado pelo marquês de Pombal em 1755. Este visava a
retirar a população indígena da influência direta dos jesuítas. Tal modificação seria
levada a cabo pela transformação dos aldeamentos indígenas em vilas, cujo espaço
e práticas seriam regulados nos termos de uma prática “urbana”:5 a transformação
das aldeias jesuíticas em vilas, enraizando na Amazônia a apropriação do espaço e
suas formas de riqueza, incluídos aí o saber e a força de trabalho índia-cabocla
imprescindível no acesso às drogas do sertão (RISÉRIO, 2012).
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O período da borracha na Amazônia renova o valor do conhecimento tradicional
sobre o ecossistema. O caboclo foi o fator trabalho fundamental na busca do látex,
agora sob o sistema de controle da mão de obra do aviamento. Esgotados os altos e
baixos da produção da borracha, a população se adapta a outras formas de produção
e reprodução da vida, particularmente a pequena produção agropecuária. Esses
altos e baixos incluem o fracasso da maior empresa do capitalismo mundial, a Ford,
que permanece por 18 anos na região e fracassa. Mais do que perda de interesse
ou realocação racional de investimentos, a companhia não obteve êxito na longa e
dispendiosa luta com as condições locais, em parte devido a sua relação conflituosa
com a mão de obra local (COSTA, 2012c, p. 35), a população cabocla, em parte em
função da singularidade amazônica, a qual tanto é natural como social:
É natural na medida em que deriva de ecossistema único no planeta, onde os processos
reprodutivos dos ciclos vitais da natureza supõem condições não familiares a estruturas
produtivas do capitalismo enquanto sistema... É também singular enquanto espaço socioeconômico com características de fronteira onde os trabalhadores diretos podem ter
acesso a recursos da natureza, seja pela abundância relativa de terras, seja pela impossibilidade técnica ou política de estabelecimento do monopólio da propriedade do solo
por uma classe social especifica, seja por uma conformação do Estado que o impede de
garantir um tal monopólio, ou ainda pela combinação variada desses elementos. Tais
características, bloqueando a formação de um mercado de trabalho, trazem complicações
que requerem soluções emergenciais para o empreendimento capitalista...
A singularidade do espaço amazônico permanece como um aspecto marcante
na realidade contemporânea amazônica, após as notáveis modificações pelas quais
passa a região nas últimas quatro décadas? Não há resposta definitiva, mas um olhar
sobre o mercado de trabalho e as relações econômicas correntes ajuda a jogar luz
sobre a questão.
Os últimos quarenta anos foram de intensa transformação. A urbanização revela-se
no acelerado crescimento do número de centros urbanos e da população ali assentada,
com consequências sobre a modificação do bioma cuja expressão mais comumente
mencionada é a agressão à floresta. Difundem-se as condições de infraestrutura de
transportes e comunicações, intensificando uma rede de condições urbanas, técnicas
e produtivas que alcança a região de forma abrangente. De forma mais sutil, ocorre a
difusão de formas de consumo e capilarização de instituições antes restritas à cidade,
das relações de trabalho e previdência, da organização da sociedade civil, do exercício da
cidadania que se instala nos espaços de vida e produção dispersos na floresta e na cidade
(BECKER, 2004). São as condições de urbanização extensiva (MONTE-MÓR, 1994),
a dispersão e significação daquilo que uma vez nasceu como traço físico ou prática social
na cidade, mas que alcança virtualmente todo o espaço social na sociedade urbana.
O recente crescimento da economia brasileira, que se estende à Amazônia,
também introduz mudanças no cenário regional. Algumas regiões têm experimentado
expansão econômica e demográfica elevada, particularmente onde se instalou
recentemente a indústria extrativa mineral, como o caso do sudeste do Pará. Áreas
urbanas se expandiram de modo célere no último decênio, abrigando população que
se desloca em busca de oportunidades criadas direta e indiretamente pela atividade
mineradora, sua cadeia e pela base urbana que lhe é indispensável.
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Circuitos da economia urbana e economia
Ao mesmo tempo, mesmo em face da expansão de condições de emprego formal,
permanecem elevados os percentuais de informalidade. Conserva-se alta a parcela da
população que recorre a estratégias de reprodução que não passam pelas relações de
trabalho formais. É possível dizer, no entanto, que o significado da “informalidade”
não se esgota na negatividade implícita na abordagem usual da questão, mais ainda
no contexto da Amazônia contemporânea. Ali, formas alternativas de organização
do trabalho e da produção possuem tanto uma longa tradição e enraizamento na
prática social quanto um substrato real dado pelas condições naturais abundantes.
Essa abundância possui (ou pode ser transformada em) extenso conjunto de valores de
uso de absoluta originalidade, capazes de assumir valor de troca realizável no mercado.
Esse processo ademais se abre à atuação de pequenos agentes (em termos de posse de
recursos) e às formas cooperativas e solidárias de produção.
Como sugere a abordagem de Costa (2012b), a existência de alternativas de
sobrevivência do trabalhador na Amazônia teve como fundamento, desde os primeiros
momentos, a existência de recursos naturais e de um saber prático detido pelo homem
da região. Esse cenário, nos parece, oferece mais do que opções de trabalho e renda, na
medida em que tem como base um bioma de riqueza extensa e ainda pouco conhecido
por meios formais, amplamente sujeito e favorável à introdução de novas formas de
valor, de “trabalho novo” (JACOBS, 1970), o que, como argumentado por diversos
autores, é aspecto fundamental para o avanço econômico (FURTADO, 2009;
BECKER, 2009). Retornando à proposição de Milton Santos sobre as características
dos dois circuitos da economia urbana, é importante rememorar que o autor destaca
o circuito inferior por seu caráter criativo intrínseco, embora impulsionado não raro
pela carência; ainda assim, para além do negativo implícito, o reino do informal é
também o do experimental, do novo, do que se abre para a experiência cotidiana e por
isso para um panorama de desenvolvimento alternativo.
Nossa intenção aqui, pouco mais além de colocar a questão, é discutir aspectos da
realidade no sudeste do estado do Pará, a fim de permitir uma aproximação empírica
para as questões sobre a permanência e a importância das distinções entre o trabalho
formal e informal na Amazônia.
Evidências para o sudeste paraense
Nesta seção, são apresentados dados secundários e informações coletadas
durante pesquisa de campo realizada em julho de 2012 no sudeste paraense. O
conjunto de municípios selecionados compreende a região da Terra do Meio/
Carajás: Canaã dos Carajás, Marabá, Ourilândia do Norte, Parauapebas, Tucumã,
São Félix do Xingu e Xinguara.
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Figura 1: Municípios selecionados – Pará
Fonte: Craice e Souza (2013).
A escolha do estado do Pará se justifica por ser, dentre os estados da Amazônia
Legal, o que apresenta o mosaico mais diverso de novas formas socioespaciais e de
seus arranjos espaciais, configurando-se um recorte representativo da produção da
urbanização extensiva na Amazônia.
Encontramos no Pará assentamentos, projetos de colonização, populações tradicionais,
ribeirinhos, floresta, acampamentos de sem-terra e conflitos, cidades médias e uma importante capital, a mineração das grandes companhias mineradoras e dos núcleos de garimpo, enfim, um mosaico dos atores e de suas estratégias para sua integração às estruturas
econômicas regionais, nacionais e internacionais. (INPE, 2011, p. 19).
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Circuitos da economia urbana e economia
A missão de campo assumiu como pontos extremos as cidades existentes antes da
implantação dos grandes projetos federais na região. Marabá e São Félix do Xingu foram
fundadas no período da extração da borracha, vivenciando o escoamento dessa produção
pelos rios Tocantins e Xingu, respectivamente. Além da acessibilidade e da possibilidade
de exploração extrativista (borracha, castanha, jaborandi), tais cidades tinham em
comum a riqueza mineral, explorada a princípio por garimpeiros e depois por empresas
mineradoras, a partir dos anos 1960. As ações do Governo Federal passaram também
por assentamentos rurais e rodovias, alterando completamente a dinâmica do território.
Parauapebas surgiu como apoio à atividade de mineração. O apoio do GETAT aos
assentamentos rurais e à produção agrícola deu origem ao núcleo inicial de Canaã dos
Carajás. Já uma parceria entre Governo Federal e a empresa Andrade Gutierrez envolveu
a criação dos núcleos iniciais de Tucumã e Ourilândia. A dinâmica (mais recente) da
pecuária na região é vista com maior clareza no município de Xinguara (INPE, 2012).
A região é marcada por um histórico de conflitos pela posse da terra, com práticas
sociais e ambientais abusivas. O grande montante de recursos movimentado pelo
circuito superior (pecuária, comércio e serviço de alto padrão, mineração) torna a
migração um processo importante (CRAICE; SOUZA, 2013).
Dinâmica do circuito superior
A região em foco é marcada por uma dinâmica acelerada nos anos recentes. A
mineração e a agropecuária em pequena e larga escala movimentam os investimentos
de maior monta e orientam/induzem investimentos no comércio e nos serviços,
provocando ainda grandes movimentos migratórios de estados mais empobrecidos do
Norte e Nordeste.
Esse conjunto de municípios tem expandido seu peso na economia do estado
do Pará. No ano de 1996 essa participação era de 8,6% do PIB estadual; em 2009,
a região alcança algo próximo a 20%, um quinto do produto total do estado. Tal
escalada está principalmente ligada ao desempenho da indústria (extrativa mineral)
localizada nos municípios de Parauapebas e Canãa dos Carajás. Comparando o
crescimento médio dos municípios em foco e o do restante do estado, temos 10%
de incremento médio anual para o primeiro conjunto contra 4% para o restante do
Pará. Chama atenção, no entanto, o comportamento instável e cíclico desse ritmo de
crescimento, e sua aderência a ciclos econômicos internacionais, como atestam os vales
que coincidem com as crises internacionais de 2003 e 2008, fato óbvio em função da
natureza exportadora da principal atividade industrial da região: a mineração de ferro.
Em termos da distribuição dessa produção entre os municípios, Parauapebas e
Marabá dividem as contribuições mais expressivas. Em 2009, Parauapebas representava
52% do PIB do conjunto dos municípios em análise, enquanto Marabá detinha 28%,
tendo sido este o cenário médio ao longo dos dez anos que viemos analisando. Canãa
dos Carajás teve um crescimento importante no período, visto que representava
apenas 1% da produção do conjunto contra 8% dez anos mais tarde.
Em relação à distribuição setorial do emprego, destacam-se a perda de peso da
agropecuária, o crescimento do comércio e da construção civil e uma queda da
participação relativa dos empregos diretos na mineração. O grupo comércio e serviços,
no entanto, teve acréscimo importante, principalmente no comércio. É possível que
esse crescimento se conecte indiretamente à base exportadora minerária, que nesse caso
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transmitiria dinamismo a outros setores, seja por demandas intersetoriais, seja pela renda
gerada na forma de salários e outras remunerações que chegam assim ao terciário local.
Gráfico 1: Pará – Municípios selecionados: Evolução da distribuição setorial (relativa) do emprego,
1990-2010.
Fonte: RAIS-MTE.
Se analisarmos a composição do emprego por município, teremos duas tendências
mais facilmente identificáveis. De um lado, Marabá e Parauapebas, com tendência de
crescimento do emprego formal nos setores de comércio e serviços e construção civil,
além das indústrias extrativa mineral e de transformação. Marabá, centro regional
de importância há décadas, aparentemente passa a compartilhar com Parauapebas a
condição de polo de serviços. No outro extremo, temos Xinguara, São Félix do Xingu e
Sapucaia, com importância ainda elevada da agropecuária e da administração pública.
O grupo intermediário, formado por Ourilândia, Tucumã e Canãa dos Carajás, possui
mercados de emprego formal ainda pequenos, mas em processo de diversificação.
Circuito inferior e economia dos setores populares
Na região visitada, a produção ligada à economia dos setores populares configurase principalmente pelas seguintes atividades:
• produção familiar em torno da agricultura (sobretudo arroz, feijão, milho,
mandioca, hortaliças, cacau), pecuária (sobretudo leiteira), pesca e piscicultura;
• comércio em pequena escala, sobretudo do setor de confecções e pequenos
negócios nos bairros distantes do centro: pequenas “vendinhas”, salões de beleza,
bares e restaurantes;
• ambulantes do setor de alimentação, confecções, produtos eletrônicos, CDs e
DVDs “piratas” e importados diversos.
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Circuitos da economia urbana e economia
Os dados do Censo Demográfico 2010 apontam um grau de informalidade nos
municípios visitados superior ao brasileiro. A soma dos empregados sem carteira, por
conta própria e não remunerados para o conjunto dos oito municípios é cerca de 54%,
valor maior do que a média nacional (47,7%) (Gráfico 2). Ao se observar os municípios
separadamente, a soma dos empregados sem carteira, por conta própria, não remunerados
e na produção para o próprio consumo chega a 73,3% em São Félix do Xingu e 71,3%
em Tucumã (contra 47,7% no Brasil e 67,2% em todo o Pará). Os trabalhadores por
conta própria também representam um percentual superior ao brasileiro, embora inferior
à participação no estado do Pará. Os não remunerados e os que produzem para o próprio
consumo são muito mais representativos que no caso brasileiro, sendo que em São Félix do
Xingu 12,5% dos ocupados se encaixam neste último grupo (Gráfico 3).
Gráfico 2: Pará – Municípios visitados – Total: Percentual da posição na ocupação no trabalho principal (ocupados com 10 anos ou mais de idade), 2010.
Fonte: Censo Demográfico 2010 – IBGE.
Gráfico 3: Pará – Municípios visitados: Posição na ocupação no trabalho principal
(ocupados com 10 anos ou mais de idade), 2010.
Fonte: Censo Demográfico 2010 – IBGE.
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O gráfico a seguir apresenta o elevado papel da agropecuária e pesca na
absorção de trabalhadores (destaques para São Félix do Xingu e Tucumã), além dos
serviços, comércios e mercados (destaques para Marabá, Parauapebas e Xinguara) e
das ocupações elementares, que incluem os ambulantes, domésticos, entre outros
(destaques para São Félix e Tucumã).
Gráfico 4: Pará – Municípios visitados: Grandes grupos de ocupação no trabalho
principal (ocupados com 10 anos ou mais de idade), 2010.
Fonte: Censo Demográfico 2010 – IBGE.
A agricultura familiar, na maior parte dos casos, caracteriza-se pela produção
para o próprio consumo com venda do excedente. Os principais pontos de
comercialização, tanto da agricultura quanto da pecuária e da pesca familiares,
são as feiras municipais. Os produtos ofertados vão das carnes (boi, frango vivo,
camarão e peixes) às diversas variedades de farinha de mandioca e grãos, passando
também pelas verduras e frutas. A produção de alimentos e a criação de animais,
no entanto, é incapaz de abastecer o mercado local, sobretudo devido ao ritmo de
transformação da região. A falta de apoio técnico e de infraestrutura para o transporte
da produção é também apontada como causa. Essa é a posição, por exemplo, dos
técnicos da FECAT (Federação das Cooperativas de Agricultura Familiar do Sul
do Pará). A FECAT, entidade de ‘apoio logístico, operacional, técnico e político’ à
agricultura familiar, possui uma de suas bases em Marabá e atua prioritariamente
em projetos de assentamento, oferecendo orientação com relação à fruticultura e à
diversificação produtiva.
Em Tucumã, Ourilândia e São Félix do Xingu a produção de cacau é
significativa. A Coopertuc – Cooperativa Agrícola Mista de Tucumã, fundada
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Circuitos da economia urbana e economia
pela Andrade Gutierrez em 1982 – possui papel importante na articulação entre
o pequeno produtor local e as grandes empresas compradoras do cacau (Cargill,
Nestlé, Barry Callebaut e outras). Esse papel é desempenhado também pela Cappru
– Cooperativa Alternativa de Pequenos Produtores Rurais e Urbanos, em São Félix
do Xingu, criada em 1992 a partir de quatro associações de produtores locais.
Realiza, além da intermediação do cacau, ações de acompanhamento e capacitação
dos produtores, por meio de recursos captados juntos aos governos estadual e
federal. Outras iniciativas são um projeto piloto para certificação do cacau orgânico,
a manutenção de um banco de sementes nativas e o apoio ao artesanato (licor de
cacau e embalagens a partir das folhas secas do cacau).
O setor de comércio e serviços em pequena escala é significativo em toda a
região e parece acompanhar o ritmo dos investimentos de grande monta destinados
ao circuito superior. Segundo o presidente do Sindicato dos Comerciários de
Marabá, João Luiz, as expectativas de investimento na mineração alavancam o setor
(principalmente os serviços mecânicos e elétricos, mas também os serviços pessoais e
o comércio). Do mesmo modo, expectativas de paralisação de investimentos geram
demissões e enfraquecimento do setor.
O comércio de bairro é acessado, na maior parte dos casos, em situações
emergenciais. Nesses casos, a compra é feita em unidades fracionadas, o que não é
possível nos grandes supermercados. Praticamente tudo que é vendido não é produzido
localmente, à exceção de poucos produtos da agricultura familiar. Quanto aos serviços
pessoais, boa parte dos entrevistados afirmou que estes são de baixa qualidade e que
falta qualificação e apoio para seu aprimoramento.
Em Marabá e São Félix do Xingu, o turismo ligado aos rios (praias) gera
renda para ambulantes do setor de alimentação e barcotáxis. O turismo de pesca
também é considerável, especialmente em São Félix, como apontado por funcionárias
da Colônia dos Pescadores Z65 de São Félix do Xingu. A Colônia agrega cerca de
400 famílias que vivem principalmente da pesca. No entanto, a renda da atividade
não é suficiente, dados os altos custos enfrentados (com material, transporte etc.),
dificuldades no acesso ao crédito, entre outros. Por essas dificuldades, a Colônia possui
demandas definidas (e não atendidas), como o apoio técnico por meio de estudos
(sobre o período adequado da piracema para as espécies locais, berçário de espécies,
tanques-rede, entre outros), o apoio à pesagem dos peixes no momento da chegada
dos pescadores e o apoio ao turismo de pesca de base comunitária (integração entre o
turista e o pescador local).
O artesanato é bastante incipiente e pulverizado nos municípios pesquisados.
Destaca-se a Cooperativa de Bioarte de Tucumã, criada a partir de curso de capacitação
em artesanato oferecido pela Estação do Conhecimento Vale desse município. A
Cooperativa produz brincos e colares (biojoias) a partir de sementes nativas e conta
hoje com 34 mulheres. A Estação do Conhecimento realizou a capacitação das
primeiras cooperadas, a compra do maquinário e das primeiras matérias-primas, além
de ceder o espaço para trabalho e exposição dos produtos.
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Iniciativas de apoio
Do ponto de vista do apoio, o CredCidadão, programa de microcrédito
do governo do estado do Pará, possui escritórios nas prefeituras de Marabá e
Xinguara. Nesse município, o programa atende sobretudo os revendedores do
setor de confecção, embora também tenha atendido aos produtores da agricultura
e mototaxistas. Entretanto, apresenta ainda baixo alcance, dada a dificuldade de
atendimento dos requisitos por parte dos solicitantes (documentação das terras,
nome no SPC ou SERASA etc.).
Todas as prefeituras visitadas oferecem cursos de qualificação profissional de curta
duração na área de serviços pessoais, informática, eletricista, entre outros. Apenas em
Xinguara encontramos ações de apoio voltadas especialmente à Economia Solidária.
A Prefeitura Municipal conta com um Departamento de Economia Solidária ligado
à Secretaria de Desenvolvimento Econômico, com uma legislação específica para a
economia solidária (aprovada em julho de 2006) e com um fundo municipal de apoio
à economia solidária (FundoSol). Tais iniciativas tiveram origem na ação dos membros
da Cooperativa de Serviço e Apoio ao Desenvolvimento Humano e Sustentável Atioro
– Coopatioro, fundada em 1997 com apoio da Diocese e da Comissão Pastoral da
Terra (CPT), e que hoje se denomina uma Associação (Apatioro) com o objetivo do
fomento à pequena produção popular e solidária. São ações do Departamento de
Economia Solidária no município: cadastramento dos ambulantes; apoio às feiras locais;
manutenção de um posto de apoio ao empreendedor no Mercado Municipal; cessão
de uma loja na rodoviária para exposição dos produtos dos artesãos locais; tentativas
de organização dos produtores para a compra coletiva de insumos; orientações para a
estruturação de pequenos empreendimentos, participação em licitações, formalização
das atividades e uso do microcrédito produtivo.
Quanto ao apoio universitário, a Incubadora Tecnológica de Empreendimentos
Solidários do Sul e Sudeste Paraense (ITESP/UFPA), localizada em Marabá, propõese a assessorar grupos já existentes com o fim de aprimorar a produção e potencializar
sua atuação na região (Marabá e entorno). O público-alvo é composto de agricultores
familiares, agricultores urbanos e periurbanos, grupos de mulheres em condições de
vulnerabilidade, grupo de artesãos, associações de moradores, entre outros.
Uma característica das ações de apoio é a ausência de integração entre as mesmas:
os programas das prefeituras não contemplam parcerias com ONGs, SEBRAE ou
Universidades – quando contemplam, as ações conjuntas são incipientes. É o caso da
Agência de Desenvolvimento Econômico e Social de Canaã dos Carajás – Agência
Canaã, entidade sem fins lucrativos que conta com representantes da iniciativa privada,
do terceiro setor, do poder público e da sociedade civil organizada. A entidade, sem
fins lucrativos, é mantida com recursos da Prefeitura e da Vale, e tem como um de
seus objetivos a geração de trabalho e renda no município, tendo apoiado projetos
de piscicultura, apicultura e hortas comunitárias. Entretanto, as ações são ainda
embrionárias, uma vez que a Prefeitura Municipal não atua de forma significativa e o
apoio técnico é fraco.
Entre os grupos apoiados pela Agência Canaã encontra-se a Associação de
Artesãos e Artesãs Solidários de Canaã dos Carajás, grupo de mulheres ligadas ao
movimento nacional da Economia Solidária. Desde 2005, o grupo atua junto à
Prefeitura e a outras instituições buscando compradores e parceiros para divulgação
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Circuitos da economia urbana e economia
e comercialização dos produtos e também na área de capacitação. A metodologia
utilizada passa pela valorização e divulgação dos princípios da Economia Solidária
em todas as ações, participação nos Conselhos Municipais e parcerias com as escolas
e demais instituições de formação. O grupo conquistou uma loja na avenida central
do município, cedida pela Prefeitura, e mais dois espaços, sendo um na sede e o
outro distante. Atualmente, são 28 grupos, embora 84 famílias já tenham passado
pela Associação. Alguns dos grupos apoiados já celebraram contratos de venda para a
Prefeitura Municipal (uniformes) e a Vale (uniformes e lanches).
Considerações finais
6 Ver, por exemplo, Costa
(2005, 2006, 2009), Homma
(2005, 2006), CGEE (2009,
2011).
Esta investigação busca colaborar para a discussão sobre o desenvolvimento
atual e futuro da região Amazônica, podendo subsidiar ações de fortalecimento e
expansão da economia dos setores populares, entendendo ser esta uma alternativa
para a geração de emprego e renda baseada em atividades de baixo impacto ambiental
e intensivas em trabalho. Embora essa alternativa seja ressaltada por boa parte dos
trabalhos acadêmicos sobre a região,6 observam-se poucos desdobramentos em termos
de políticas públicas e ações de outros agentes na região.
A produção em pequena escala que caracteriza o circuito inferior na região
estudada padece das mesmas dificuldades e gargalos verificados em outras regiões do
país: baixa qualificação em geral, dificuldades para captação de crédito, ausência de
apoio técnico e de articulação com escolas técnicas e universidades. Outro aspecto
importante é que essa produção apresenta poucos vínculos no nível local e regional,
quase sempre dependendo de insumos vindos de fora do estado, o que encarece os
produtos e impede a formação de cadeias produtivas locais. Ademais, alguns setores
de grande potencial, como o turístico, de fitoterápicos, reciclagem e extrativismo
florestal de produtos não madeireiros são praticamente inexistentes. Em boa parte dos
casos, demandas específicas de apoio técnico são claramente definidas pelos próprios
trabalhadores e grupos entrevistados. Conclui-se que o apoio a essas iniciativas possui
grandes efeitos potenciais, em termos de geração de trabalho e renda, sobretudo
para a população não inserida nos grandes investimentos minerários previstos e em
implantação na região.
A articulação entre o circuito superior e o inferior é ainda muito fraca, ou
praticamente inexistente; entretanto, o crescimento recente do circuito superior
abre possibilidades para um fortalecimento do circuito inferior, tendo como
exemplos maiores a demanda por alimentos e por serviços produtivos e pessoais.
Observa-se também que esse potencial de articulação não se realiza por falta de
apoio institucional e de mediação entre os dois setores. Existe grande espaço para
inovação e coordenação de ações entre os dois setores, implicando o envolvimento
dos diversos atores e rompendo com a relativa acomodação na linha de ação de
grandes produtores, que utilizam grandes fornecedores distantes; faltam também
referências e/ou repertório para os atores nos dois circuitos e nas possíveis mediações,
para promover as sinergias necessárias.
A desarticulação ou a simples vacância de elos inteiros das cadeias produtivas
contrastam com o crescimento do sistema econômico regional. Essa realidade
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configura ao mesmo tempo um empecilho e uma oportunidade econômica de monta.
Naqueles setores mais amigáveis à atuação de agentes pequenos, o crescimento
de ações de natureza cooperativa, que contribuam para superar o baixo nível de
organização e capacidade de ação em ambiente de mercado capitalista, pode ser mais
facilmente desenvolvido.
Surge como caminho possível a articulação visando a mudanças institucionais
que orientem o “trabalho novo”, a partir do conhecimento tradicional e dos saberes
locais. Um novo paradigma de exploração dos recursos da floresta que permita a
incorporação das diversas fatias da população, permitindo elos mais intensos nas
cadeias produtivas e a exploração sustentável do ecossistema, como proposto por
Becker (2009). O desafio maior parece estar na integração institucional necessária
entre setor público, instituições produtoras de conhecimento, o setor privado, e as
diversas unidades produtivas da economia popular, familiar e solidária.
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75
Harley Silva é economista e
historiador, doutorando em
Economia pelo Cedeplar/
UFMG. E-mail: <harley@
cedeplar.ufmg.br>.
Sibelle Diniz é economista,
doutoranda em Economia pelo
Cedeplar/UFMG. E-mail: <[email protected]>.
Vanessa Ferreira é economista, assistente de pesquisa
no Cedeplar/UFMG. E-mail:
<[email protected]>.
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A b s t r a c t Although the expansion of formal labor market is a sustained trend
in Brazil, occupation in the lower circuit of the economy is persistent and poorly understood.
In Brazilian Amazon frontiers, informal, family and solidarity economy persists, in spite of
large investments destinated to the upper circuit. This work investigates the current context
of the southeast of Pará, where the formal economy of some municipalities has grown at
“Chinese rates”, while alternative forms of economic integration incorporate the majority
of the population.
Keywords:
popular economy; informal economy; lower circuit; Amazon
frontier; southeast of Pará.
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NOVAS FORMAS
ASSOCIATIVAS NA PRODUÇÃO
RECENTE DE MORADIA
SOCIAL NO BRASIL
Camila Moreno de Camargo
Resumo
O presente artigo aborda aspectos relacionados à produção
habitacional da modalidade “Entidades” do programa Minha Casa Minha Vida,
a partir de observações de campo. Pretende-se elaborar uma chave de leitura que
destaque, no contexto de atendimento do programa federal mencionado, as entidades
organizadoras e os diferentes graus de vinculação e relação que estabelecem com os
movimentos de luta por moradias nacionais, a sociedade e o próprio Estado. Tais
questões vêm se construindo e nos mostram certa urgência de análise e pesquisas mais
aprofundadas, no sentido de avançar na discussão acerca da produção habitacional
por meio da autogestão no Brasil, visto que, ainda que inexpressivo do ponto de
vista quantitativo e em comparação com a produção mais massiva empreendida pelo
mercado, ela nos revela uma série de transformações que vem redefinindo as relações
sociais e a produção do espaço urbano contemporâneo.
P a l a v r a s - c h a v e : Habitação de interesse social; Minha Casa Minha
Vida; Entidades; Movimentos Sociais; Política habitacional.
No ano de 2009, em resposta à crise econômica mundial, o Governo Federal
lançou o programa habitacional Minha Casa Minha Vida (MCMV), com o objetivo
de produzir um milhão de casas no país. Atualmente, em sua segunda fase, o programa
tem como meta a produção de mais dois milhões de unidades no território nacional.
Visando aquecer a economia através de estímulos às atividades da construção civil
no país, pelo reconhecimento do seu potencial “anticíclico”, o MCMV foi moldado
para atender a promoção pública habitacional, mas sobretudo o segmento econômico
popular de mercado. Essa produção se dá por meio de parcerias entre agentes diversos,
passando pelas três esferas governamentais, empresas construtoras e, em uma modalidade
específica do programa, entidades organizadoras sem fins lucrativos.
Tal produção enseja toda uma reflexão sobre as relações institucionais e políticas
entre esferas de governo; entre governo e construtoras; entre governo, construtoras e
entidades organizadoras; e entre esses agentes e os beneficiários do referido programa,
os futuros usuários do produto habitacional e urbano.
O presente artigo se dá a partir do apontamento de algumas questões que
surgem de nossa pesquisa de doutorado, que se encontra em andamento, e também
de nossa participação em pesquisa coordenada pela professora Cibele Rizek através do
LEAUC – Laboratório de Estudos do Ambiente Urbano Contemporâneo (grupo de
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pesquisa vinculado ao Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP) – e da assessoria
técnica Peabiru – trabalhos comunitários, que apresentam como objeto de estudo
a modalidade “Entidades” do programa MCMV, exatamente porque é nela que se
pode apreender mediadores e operadores, bem como resquícios, permanências e
redefinições de entidades populares provenientes dos movimentos de moradia, que
tiveram papel fundamental na reivindicação do “direito à cidade” e de uma política
habitacional voltada aos mais pobres.
A realização dessa investigação parte de dois casos específicos e emblemáticos,
definidos em decorrência de pesquisa de campo de caráter exploratório feita a partir
do universo de contratações realizadas por essa modalidade do programa entre os
anos de 2009 e 2012, por revelarem uma série de questões que contribuem para a
compreensão das formas recentes de produção de moradia. Pretende-se promover uma
abordagem transversal que perpasse questões do processo – acesso das famílias e das
entidades ao programa e ao financiamento, mobilização das famílias pelas entidades,
gestão dos empreendimentos – e do produto habitacional – inserção urbana, tipologias
habitacionais, qualidade construtiva, para contribuir com as investigações recentes
acerca da financeirização habitacional e urbana.
Assim, considerando o quadro das políticas sociais do Brasil contemporâneo,
especificamente nos governos Lula e Dilma Rousseff, para o presente artigo, pretende-se
elaborar uma chave de leitura que destaque, no contexto de atendimento do programa
federal mencionado, as entidades organizadoras e os diferentes graus de vinculação e
relação que estabelecem com os movimentos de luta por moradia nacionais, a sociedade
e o próprio Estado, na composição da demanda e na atuação local.
Destaca-se que, ainda que inexpressivo do ponto de vista quantitativo e
em comparação com a produção mais massiva empreendida pelo mercado, essas
experiências nos revelam uma série de transformações que vêm redefinindo as relações
sociais e a produção do espaço urbano contemporâneo.
1. Novas chaves de leitura sobre
as cidades brasileiras
Na passagem dos anos 1970 para os anos 1980, diante de um contexto de piora
das carências urbanas, novos atores – os movimentos sociais urbanos – despontarão
no cenário urbano e social tornando visíveis as desigualdades de condição de vida,
marcas das cidades regidas pela modernização conservadora, que operava a partir de
um Estado fortemente centralizado e pesadamente autoritário.
Por um lado, constatava-se que, ao contrário das expectativas anteriores, as
camadas pobres das grandes cidades provavelmente não poderiam ser pensadas
como alvos futuros de uma integração que associasse indústria, assalariamento
e melhores condições de vida, já que a ditadura empreendia políticas de expansão
industrial, acompanhada de margens significativas de arrocho salarial e de processos
repressivos que obstaculizavam a organização sindical e política dos trabalhadores.
Por outro, no final da década de 1970 e meados da de 1980, com os movimentos
sindicais e manifestações de apoio às greves do ABC paulista, novos temas e novas
questões tomavam corpo: tratava-se do contraponto entre Estado e sociedade civil
acompanhado de mapeamentos fortemente ideologizados (SINGER; BRANT, 1981).
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MORENO
DE
CAMARGO
A ideia de virtude (OLIVEIRA, 2006) associada aos movimentos sociais e às formas
mais ou menos populares de organização, enquanto lugar da ação política e dos processos
e anseios de democratização, permitia desnaturalizar e problematizar as desigualdades
e seu desenho urbano. O Estado e seu caráter autoritário, centralizado, burocratizado
ganhavam o sinal contrário: lugar dos circuitos viciosos; sujeito de um conjunto de
equívocos que era preciso identificar e combater; instituinte de um conjunto de empresas
que desenhavam um setor produtivo estatal crescentemente autonomizado, em que se
entrelaçavam favores, grupos e capitais, fora de qualquer controle social. Nesse quadro,
uma das mais importantes chaves de leitura da cidade brasileira e de seus processos de
constituição, devidamente politizados (no contraponto à questão e dimensão técnicas,
por exemplo, ou mesmo simplesmente sociais) foi constituída a partir dos movimentos
sociais – novos personagens que entravam em cena, como queria Eder Sader (1990) ou
mesmo sujeitos coletivos de novo tipo que reconfiguravam o presente e o passado à luz
da ideia de “protagonismo” da sociedade civil.
As novas pautas propostas atrelavam a produção da cidade e sua politização à
visibilidade e à compreensão de uma mistura heterogênea de atores e de mobilizações
– mulheres pobres, comunidades de base, movimentos de moradia, ocupações de
parcelas de terra pelas periferias, experiências de autogestão, assessorias técnicas
devidamente politizadas, igrejas e correntes religiosas, movimentos de favelados, ao
lado de movimentos e formas de organização sindical e política reconfigurados.
Nesse contexto, mesmo que a classe operária, ou classe trabalhadora, cedesse
lugar para “as classes populares”, a dinâmica das classes nas lutas pela cidade era, ao
mesmo tempo, indicadora de leitura e modo de compreensão das formas urbanas
de sociabilidade (PAOLI; SADER; TELLES, 1984). Tratava-se, então, de ler e
compreender quem eram os trabalhadores urbanos para além das situações de
silenciamento e de cooptação – como no caso dos sindicatos, por exemplo, alargando
em muito a leitura e a compreensão do que era a cidade como modo de existência.1
Assim, duas concepções ganhavam centralidade: a ideia de sociedade civil e as
classes, não como lugares vazios, mas como experiência da exploração, da cidade, do
conflito. Essas duas dimensões, devidamente recobertas pela concepção de sujeitos
históricos, foram transformadas em sedes das virtudes políticas e de processos de
politização da questão urbana, cada vez mais permeável à discussão da democratização
da sociedade brasileira. Com base nesse novo cenário social e político, na contramão
da década perdida, do ponto de vista econômico, tendo como eixo um novo patamar
de legitimação dos conflitos sociais e urbanos, outro tema se desenha fortemente: a
questão dos espaços e esfera públicos e a leitura da cidade, dos movimentos sociais, das
linhas de força que permeavam as conformações urbanas.
A cidade como espaço público ou como lugar da esfera pública – topos da política
enraizada nas formas de apropriação de espaços e tempos, de processos cotidianos, de
lutas e conflitos – aparecia como uma das bases de reflexão para a chamada elaboração
cidadã, para os temas de uma cidadania incompleta, truncada e dilacerada que buscava
se recompor pela e na luta pela redemocratização, pela e na luta pela Reforma Urbana,
cujo horizonte foi o que ganhou as ruas como o que se entendia, de forma bastante
livre como o direito à cidade. Da periferia aos centros urbanos, a questão da cidade
passa por novas configurações.
Se os anos 1980 trouxeram grandes transformações nas práticas e concepções que
nortearam a leitura das cidades, inclusive do ponto de vista da crítica às formas centralizadas
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1 A ideia está presente em
“São Paulo 1975 – Crescimento e Pobreza”, mas pode
ser encontrada em outros
momentos da produção de
Lúcio Kowarick. Ver Camargo
et al. (1975).
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de intervenção urbana e produção de habitação social, os anos 1990 seriam marcados
por um primeiro esvaziamento da legitimidade, do protagonismo e da centralidade dos
movimentos sociais como atores e como chave de leitura da cidade. Neles se localiza uma
primeira crise das representações clássicas. Se na década de 1980 a chave dos movimentos,
da autonomia da sociedade civil e das lutas democráticas colocava em primeiro plano a
ideia de luta pela cidadania – e a bandeira do direito à cidade, tantas vezes empunhada
pelo movimento nacional pela Reforma Urbana, foi uma das linhas mestras dessa reflexão
–, a década seguinte seria marcada pela institucionalização da democracia formal, pelas
múltiplas experiências de democracia participativa principalmente no âmbito municipal
e pelo declinar das esperanças nas virtudes dos “encontros entre sociedade civil e Estado”
(DAGNINO, 2002). Essas virtudes foram devidamente transformadas em confluência
perversa entre o suposto protagonismo da sociedade civil e a desresponsabilização do
Estado, em relação ao que se configurou como “a questão social brasileira” espacializada
na cidade e na metrópole (DAGNINO, 2002).
Entre os anos 1990 e a primeira década do século XXI, um leque de novos
temas e novas questões conformaria os modos de leitura da cidade brasileira, bem
como seu afastamento da questão social na sua face urbana. Ganhava corpo os temas
da governança e governabilidade, fortemente inspiradas na chamada governança
corporativa; das políticas sociais e políticas urbanas – sob a denominação de políticas
públicas; da dinâmica pendular Estado e mercado, a partir da ideia das parcerias
tanto em relação aos processos de intervenção quanto em relação à filantropização
e refilantropização da pobreza; da financeirização, globalização e grandes projetos de
intervenção urbana; da fragmentação urbana e do fim da ideia de totalidade; novas
formas de “combate à pobreza” por meio de um conjunto de programas sociais que
recobrem os territórios da precariedade; políticas públicas de “inclusão”, de renda, de
geração de emprego, de cultura que reconfiguram territórios e constituem atores, redes
e institucionalidades; e, finalmente, o tema das violências e dos ilegalismos, em suas
múltiplas formas e expressões na cidade (OLIVEIRA; RIZEK, 2007).
Lembrando a expressão weberiana relativa ao paradoxo das consequências, as
duas últimas décadas viram nascer a passagem do protagonismo da sociedade civil
para a nova gestão, administração e pacificação da pobreza, no avesso da legitimidade
dos conflitos e da construção da questão da desigualdade como questão social. Assim
também o lugar e o papel do Estado – marcado por uma dinâmica concebida como
pendular em relação à sociedade civil e ao mercado – se transformariam, passando a ser
concebidos como fronteiras atravessadas por um emaranhado que borrou distinções
clássicas e suas polarizações.
Talvez ainda seja necessário indagar de que modo se transformaram, se
“rotinizaram” e se adaptaram às experiências inovadoras dos anos 1980, destruindo
suas dimensões políticas, para uma nova roupagem técnica – isto é, transformando as
práticas, os núcleos associativos e os processos de politização das dimensões urbanas
em tecnologias sociais e de gestão, em empresariamento e autoempresariamento,
em empreendedorismo social ou não. Assim, por exemplo, pode-se perseguir os
recentes estudos acerca das assessorias técnicas aos movimentos sociais pouco a
pouco transformadas em ONGs, OSs e OSCIPs e, posteriormente, substituídas ou
transformadas em grandes empresas de gestão das questões sociais relativas à habitação
e/ou urbanização de favelas, ou mesmo gestão social e/ou técnica que se transforma
em condicionalidades ou pré-requisitos da produção de infraestrutura urbana.
80
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C A MIL A
MORENO
DE
CAMARGO
A partir do final dos anos 1990, uma parte das experiências de produção da
cidade para as classes populares foi absorvida como programas institucionalizados pelo
Estado brasileiro, que passaram a ser vistos sob a chave da “habitação de interesse
social”. De lideranças políticas na disputa pela cidade, esses atores passaram a ser
vistos como “público alvo” de programas habitacionais. Por outro lado, na primeira
década deste século, outra parte dessas mesmas classes pôde ascender socialmente e
engrossar a agora considerada “classe C” que, por sua vez, foi descoberta como um
nicho promissor e lucrativo para o mercado imobiliário.
Se anteriormente a leitura da cidade poderia ser feita sob a chave do encontro
entre sociedade civil e Estado, nos últimos anos ela tem que se haver com a confluência
entre Estado e mercado – a que se soma mais recentemente o capital financeiro
(PAULANI, 2008). Dessa confluência, derivaram-se tanto os grandes projetos
urbanos em metrópoles brasileiras (sobretudo São Paulo), na perspectiva de integração
ao mercado financeiro mundial (FIX, 2007; FERREIRA, 2007), como a produção
de empreendimentos de espaços urbanos padronizados, privatizados, fechados e
destinados para residências da “classe C” – que se espalharam pelo território nacional.
2. Dimensões de um campo de
investigação – construindo questões
Inseridos neste quadro, os movimentos de moradia e suas assessorias, entidades
profissionais e organizações do campo da reforma urbana formularam a proposta
do Fundo Nacional de Moradia Popular (FNMP), em 1991, visando garantir
investimentos para a moradia popular e viabilizar, no plano nacional, recursos
permanentes para a autogestão na habitação social. A criação do Sistema e do Fundo
Nacional de Moradia Popular (SNHIS e FNHIS) será uma das principais bandeiras das
Caravanas e Marchas organizadas pela União Nacional de Moradia Popular (UNMP),
Movimento Nacional de Luta por Moradia (MNLM), Confederação Nacional de
Associações de Moradores (CONAM), Central de Movimentos Populares (CMP) e
pelo próprio Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU), durante todo o longo
período entre a apresentação do projeto de lei de iniciativa popular na Câmara (1991)
e a data de sua aprovação, em 2005.
Durante esse período de “banho-maria”, como incita Moreira (2009), vão
ocorrer importantes experiências de produção habitacional envolvendo procedimentos
autogestionários em âmbito local. Destaca-se a gestão municipal de Luiza Erundina
em São Paulo, de 1989 a 1992, como caso paradigmático da concretização de certas
propostas. Os movimentos de moradia queriam respostas rápidas e, sem poupar a gestão
progressista, faziam pressão com atos e acampamentos, “atuando [...] como agentes
impulsionadores e legitimadores do espaço que se abria na HABI/SEHAB com o
FUNACOM”2 (FELIPE, 1997, p. 42). A proposta de produção habitacional por meio
da autogestão foi incorporada gradualmente enquanto linha de ação da Superintendência
de Habitação Popular (HABI), com certa resistência dentro da própria Secretaria de
Habitação, inicialmente sugerindo apenas o caráter experimental à proposta.
Ainda assim, havia expectativa que o processo de organização autogestionária dos
indivíduos em torno da produção de sua própria moradia ensaiaria formas superiores
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2 O FUNAPS foi criado em
1979 para viabilizar à PMSP
uma atuação independente do SFH, e seus recursos
poderiam ser destinados, a
fundo perdido, para o atendimento de famílias com até
quatro salários mínimos moradoras de habitações precárias. Ver Ronconi (1995), Felipe (1997), Carvalho (2004),
Baravelli (2006).
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novas até mesmo de organização social da cidade: “[…] falava-se, por exemplo, que a
organização das classes populares em torno de um determinado processo autônomo
de gestão produtiva e reprodutiva de segmentos urbanos promoveriam, a médio prazo,
‘áreas libertas’ da cidade” (LOPES, 2006).
Mais do que isso, que a politização do ato de construir, a possibilidade de gerir
pelo menos um dos aspectos da produção material da vida, poderia instituir uma
evolução em cadeia, estendendo a consciência do autor que decide sobre si mesmo e
realiza sua própria história para os outros âmbitos da existência. Além disso, a alteração
das formas de organização do trabalho no canteiro promoveria não só transformações
no objeto casa – por meio de projetos decididos no diálogo participativo entre
profissionais e usuários, materiais aplicados de qualidade superior, composições
urbanísticas e arquitetônicas mais cuidadas etc. -, mas também estabeleceria outro
patamar de interlocução profissional. Uma forma de questionar a ação pública e do
mercado no que tangia à produção de habitação de interesse social.
Será diante desse quadro de reivindicações que, em 2004, no bojo da aprovação
do Plano Nacional de Habitação e do FNHIS, que serão construídos três programas
de Habitação de Interesse Social, voltados para a autogestão. O primeiro, o
Programa Crédito Solidário (PCS), lançado em 2004, utilizou recursos do Fundo de
Desenvolvimento Social (FDS). Foi pioneiro ao gerar novas demandas para a Caixa
Econômica Federal, agente operador acostumado a trabalhar apenas com construtoras.
O segundo programa idealizado foi a Ação de Produção Social da Moradia (APSM),
lançada em 2008 após a modificação da Lei do SNHIS (através da Lei no 11.578/2007),
que garantia o acesso das associações e cooperativas ao FNHIS. Por último, o terceiro
programa, lançado em 2009, foi o Programa Minha Casa Minha Vida Entidades, que
hoje é o principal programa a incorporar a autogestão em seus processos produtivos.
Os apontamentos a seguir surgem de uma primeira fase do trabalho de campo das
investigações mencionadas e que se deu junto a alguns estudos de caso representativos
das produções dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Goiás.
Para a construção desses campos primeiros de investigação, foram sistematizados e
analisados dados relativos aos contratos firmados desde o lançamento do Programa
Minha Casa Minha Vida Entidades, em 2009, até o final do ano de 2012, advindos do
Ministério das Cidades/ Secretaria Nacional de Habitação, Caixa Econômica Federal
e registros obtidos junto às entidades organizadoras envolvidas e movimentos sociais.
O aprofundamento de algumas hipóteses que se delineiam estão se dando a partir de
pesquisa de campo de caráter etnográfico junto a dois estudos de caso presentes na
Região Metropolitana de São Paulo, a fim de “dar relevo” a um conjunto de questões
construídas, uma vez que a análise dos dados quantitativos oficiais não é reveladora do
processo percorrido pelos atores envolvidos.
Sobre esse aspecto vale dizer que quando a contratação vira um número oficial
já se passaram anos de negociações entre a entidade e o proprietário do terreno, a
demanda já foi composta e recomposta inúmeras vezes a assessoria técnica envolvida
na elaboração do projeto urbanístico e arquitetônico, bem como no projeto técnicosocial, já foi incrivelmente desgastada e a relação com o poder público local, ou seja,
o jogo de forças que irá se estabelecer em determinado momento com lideranças de
bairro, partidárias ou ligadas aos movimentos sociais de moradia, também vai sofrendo
alterações na medida em que também se alteram os contextos políticos.
Os cancelamentos de contrato também ficam na invisibilidade. Somente
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comparando momentos distintos de sistematização dos dados podemos perceber que
alguns contratos “sumiram” da planilha oficial. As causas dos cancelamentos não é
indicada. Não é considerada informação a ser sistematizada, mas pode revelar inúmeras
questões importantes para a análise do programa e para seu desenho operacional,
justamente por indicar seus gargalos, aquilo que “não é” e por isso mesmo “é”. O
que há por trás desses cancelamentos? São questões ligadas ao processo, resultado da
disputa de um campo de forças e que compõem o quadro da produção recente de
moradia social.
Outra questão também merece destaque justamente por dizer respeito ao produto
fim-cidade. Trata-se do porte real dos empreendimentos, da sua inserção urbana e
do impacto gerado sobre o conjunto de serviços públicos e infraestrutura urbana.
Alguns empreendimentos são fragmentados em três ou quatro contratos a fim de se
viabilizarem burocraticamente, mas na verdade correspondem a um único grande
empreendimento. É o que estamos identificando como contiguidade de contratos e
que, em geral, irá se dar por um consórcio de entidades (o movimento de moradia
“cria” entidades e distribui as demandas entre elas).
Para além das questões relativas à localização predominantemente periférica
dos empreendimentos, a manobra realizada através dos instrumentos urbanísticos
presentes nos próprios Planos Diretores municipais, a esse “campo de disputa”
pela compra da terra criado entre entidades e grandes empreiteiras, os aspectos
produtivos – abordando os desenhos urbanos (parcelamento e implantação) e da
unidade habitacional –, os processos construtivos, os tipos habitacionais, entre outros,
destacam-se o papel desempenhado pelas entidades organizadoras e os diferentes graus
de vinculação e relação que estas estabelecem com os movimentos de luta por moradia
nacionais, a sociedade, o mercado e o próprio Estado, na composição da demanda e
na atuação local.
Em São Paulo, as entidades organizadoras, em geral, são vinculadas a um dos
movimentos nacionais de luta por moradia – a UNMP. Na capital do estado, esse
movimento organiza-se a partir dos bairros de atuação, por exemplo, a União dos
Movimentos de Moradia (UMM) Zona Oeste. Serão nas sedes desses escritórios
regionais que se darão o cadastro das famílias, a organização da documentação, as
reuniões de avaliação de todo o processo, a elaboração de cronograma de atividades e a
rede de informes. A partir do mapeamento das demandas são criadas as entidades que
irão solicitar a aprovação do projeto junto ao Programa MCMV Entidades, inclusive
nas cidades no entorno, como Santo André (ABC paulista), Mauá, Suzano, entre outras.
Também é o movimento que articula a aquisição do terreno, contrata o projeto
arquitetônico, organiza as famílias em torno da construção, coordena os trabalhos de
mutirão – quando é o caso – e acompanha o processo de aprovação na Caixa Econômica
Federal (CEF). Desempenha um papel fundamental, que é o de permanente avaliação
do programa, dos resultados obtidos e dos conflitos e entraves que se apresentam
em meio ao processo, a partir do qual irão reivindicar alterações nas normativas do
programa junto ao Ministério das Cidades, dado seu histórico de lutas em torno do
direito à cidade e ao acesso à moradia, que já mencionamos.
Cabe destacar que a UNMP foi criada em 1989 e que hoje atua em 19 estados
brasileiros, sendo também responsável pela implementação desta modalidade do
programa na Bahia, em alguns casos de Goiás, Minas Gerais, Maranhão, entre
outros. Além disso, o movimento faz parte de uma rede latino-americana, a SELVIP
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3 Todos os trechos de depoimentos expostos no artigo
foram coletados em entrevistas gravadas e transcritas
pela pesquisadora e comporão sua tese de doutorado.
– Secretaria Latino-Americana de la Vivienda Popular –, que discute e reivindica a
autogestão e a ajuda mútua (mutirão) na produção habitacional há mais de vinte anos.
Ainda assim, apesar do nível de consciência política e de lutas envolvendo o direito
à moradia, na prática observa-se que todo o processo acaba por girar em torno do
produto-fim: a casa própria.
Em São Paulo, assim como no Rio de Janeiro, é marcante a presença das assessorias
técnicas desde a elaboração e discussão sobre o projeto arquitetônico e urbanístico,
como também no processo de construção e no desenvolvimento do trabalho técnico
social, em geral a ela vinculada. No entanto, novas assessorias vêm ocupando esse
espaço e estabelecendo outras formas de relação com o movimento social e suas lutas.
Assim, quando questionados pelo trabalho cada vez mais “profissionalizado” e qual
o significado disso, a resposta foi bastante direta: “Graças a Deus eles optaram por
contratar uma construtora para toda a obra (administração indireta), já que eles não
têm a menor experiência com mutirão […] isso atrasaria demais a obra.”3
Essa ideia de “profissionalização” também está presente no próprio movimento,
cujas principais lideranças declararam “[estar] aprendendo muito com a Caixa
Econômica Federal. […] Agora, estamos produzindo unidades [habitacionais]
iguais às do mercado”. Além disso, a nivelação entre a produção de mercado e a
produção vinculada às entidades também aparece na fala de representantes da Caixa
Econômica Federal, que destaca que “a burocracia é a mesma. A documentação
exigida para as entidades é exatamente a mesma exigida para as empresas, então não
sei por que eles reclamam tanto. Eles precisam e estão se profissionalizando. Estamos
avançando em conjunto”.
Além disso, é possível também encontrar uma série de indícios que permitem
identificar e compreender deslizamentos e reconfigurações das representações e
práticas desses movimentos, reconhecidas, por exemplo, no fato de importantes
movimentos de moradia irem de antigas reivindicações por moradia em áreas centrais
à coordenação e gestão de empreendimentos do programa na periferia urbana de São
Paulo, ou então da atuação no campo da alfabetização de jovens e adultos à produção
de moradia em mais de um estado brasileiro, na ideia de “expansão dos negócios”.
No Rio de Janeiro, em seu primeiro e, até agora, único caso de contrato
firmado desde o Programa Crédito Solidário, também será a UNMP, o movimento
que articula a entidade organizadora, a assessoria técnica e das famílias mutirantes.
Há, aqui, a presença da universidade, através do IPPUR, que nos últimos anos vem
ampliando suas análises nesse campo. Em São Paulo, a presença da universidade já
não se faz mais tão presente e ficou evidente nas falas das lideranças certa “rusga”
para com nomes de referência do urbanismo brasileiro, que sempre atuaram junto
aos movimentos paulistanos, devido às recentes falas e críticas acerca do programa
em questão e de seus resultados, principalmente no que tange à inserção urbana e a
à qualidade projetual dos conjuntos.
No Rio Grande do Sul, nota-se a presença de três modalidades de entidades
organizadoras: I) as cooperativas habitacionais ligadas ao MNLM e que há anos
vêm reivindicando o direito à moradia. Para estas, o desafio presente é adequar-se às
normativas e burocracias relacionadas ao programa e até mesmo à ideia de obtenção
de escritura da casa própria, visto que sempre ficou em segundo plano; II) as “coopergatos” (termo utilizado pelas lideranças do MNLM), que dizem respeito às cooperativas
criadas em função do programa e que apresentam funcionamento e lógica operacional
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similar ao de uma construtora, em menor escala; III) ONGs, igualmente criadas para
se habilitar junto ao Ministério das Cidades, cujo funcionamento também se dá por
meio de um “balcão de atendimento ao público”. Em alguns casos, estão sediadas
junto a imobiliárias locais nas cidades em que atuam – visto que trata-se na verdade de
“filiais” presentes em várias cidades.
Não se faz muito presente à crítica ao programa, entendido como bom
exclusivamente por ter recursos, o que em outros momentos da história não acontecia.
Mas quando questionados sobre a diferença de investimento na produção empresarial
e na produção ligada às entidades, “nós [o movimento] não estamos suficientemente
organizados para canalizar os recursos do Minha Casa Minha Vida” e por isso “o
movimento precisa se profissionalizar”.
O debate em torno da localização dos empreendimentos fica centrado na
dificuldade de aquisição de terrenos dado o desequilibrado campo de disputa
estabelecido com o mercado imobiliário, que vai disputar as mesmas terras periféricas,
porque são mais baratas, restando às entidades “a periferia da periferia”. Nas falas dos
futuros moradores, tanto em São Paulo como no Rio de Janeiro, observam-se certo
conformismo com essa situação e a tentativa de se ressaltar os aspectos positivos do
futuro local de moradia:
“Não me importo não. Tem um ônibus que passa aqui… demora pra chegar, mas hoje em
dia qualquer lugar demora né!?. Olha que bonito é aqui! Olha quanto verde!”; “é muito
tranquilo aqui. Não tem aquele barulho todo da cidade!”; “daqui a pouco as coisas vão
melhorando, já tem uma vendinha ali na esquina.”
Os desenhos dessas entidades são extremamente porosos. Os responsáveis pelas
entidades, em certos casos, estão em cargos políticos ou são funcionários públicos, que
irão “atender” a demanda a partir do próprio gabinete, ou então é a sede da entidade
que vira o gabinete, estabelecendo relações e vínculos muito pessoais com as famílias,
envolvendo-se, na tentativa de apaziguar, por exemplo, casos de brigas familiares e
tantos outros conflitos cotidianos.
Em outros casos, aparecem por trás das entidades, quando não assumem
abertamente essa posição, ONGs estrangeiras ou então criadas por “grupos de
empresários preocupados com o bem-estar da população brasileira”, que visam “à
integração social e a criação de núcleos multiplicadores de conhecimento e articulação
da sociedade civil” (descrições presentes no site de uma das entidades organizadoras
responsável por dois contratos no Rio Grande do Sul) e que estabelecem horário de
atendimento “normal” e horário de atendimento ao “associativismo”.
Tais questões vêm se construindo e nos mostram certa urgência de análise e
pesquisas mais aprofundadas, no sentido de avançar na discussão acerca da produção
habitacional por meio da autogestão no Brasil, visto que, ainda que inexpressivo
do ponto de vista quantitativo e em comparação com a produção mais massiva
empreendida pelo mercado, ela nos revela uma série de transformações que vem
redefinindo as relações sociais e a produção do espaço urbano contemporâneo.
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Camila Moreno de Camargo
é arquiteta urbanista, doutoranda pelo Instituto de
Arquitetura e Urbanismo da
Universidade de São Paulo
(IAU-USP).
Pesquisadora
do LEAUC – Laboratório de
Estudos do Ambiente Urbano Contemporâneo e do
NAPUrb – Núcleo de Apoio
à Pesquisa em Urbanização
e Mundialização. E-mail:
<[email protected]>.
N OVA S F O R M A S A S S O C I AT I VA S N A P RO D U Ç Ã O R E C E N T E
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A b s t r a c t In response to the global economic crisis of 2009, the brazilian
government launched the Minha Casa Minha Vida – MCMV program, with
the purpose of producing one million houses in the country. In its second phase,
currently the program aims to produce another two million housing in the country.
This production occurs by means partnership among actors at the various political,
commercial, social and voluntary levels. In this context, this article aims to develop
a new key for reading the entities responsible for organising the construction of the
project contracted and the different degrees of attachment and relationship they
establish with the national fight for housing movements, the society and the state
itself, in the composition of demand and performance location.
Such questions show some urgency in the analysis and further research for advancing
in discussion about housing production through self-management in Brazil, it reveals
a series of transformations that has been redefining social relations and production of
contemporary urban space.
K e y w o r d s social interest housing; “Minha Casa Minha Vida”; entities;
social movements; housing policy.
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EMPRESAS RECUPERADAS
POR TRABALHADORES NO
BRASIL E NA ARGENTINA1
1 Este artigo é dedicado à
professora Ana Clara Torres
Ribeiro, que orientou por
quatro anos, com muita
dedicação, a pesquisa aqui
relatada.
Flávio Chedid Henriques
Michel Jean-Marie Thiollent
R e s u m o Este artigo é resultado de uma tese de doutorado que teve como
objetivo identificar inovações no campo da organização do trabalho produzidas pelas
experiências de empresas recuperadas por trabalhadores no Brasil e na Argentina. A
tese central defendida é a de que as limitações impostas pela hegemonia do modo
de produção capitalista não encerram a possibilidade de construção de novas
relações sociais de produção. Os cinco estudos de caso realizados e a experiência de
levantamentos da totalidade das experiências de empresas recuperadas nos dois países
forneceram elementos que permitiram problematizar em vários aspectos a organização
capitalista do trabalho e, por meio de uma crítica prática, como sugere Rebón (2007),
propiciaram a reflexão sobre a possibilidade de superação do modelo hegemônico, que
não passa apenas pela inovação no interior das organizações, mas também da relação
dessas empresas com seus territórios.
Pal avras-chave:
Empresas Recuperadas por Trabalhadores;
Organização do Trabalho; Autogestão; Estudos Organizacionais Críticos.
Introdução
No heterogêneo quadro que compõe o universo da economia solidária no Brasil,
um tipo de experiência chama atenção pelo fato de não se tratar da formação de novos
agrupamentos de trabalhadores. A recuperação de empresas é uma prática desenvolvida
por trabalhadores que, na iminência de ficarem desempregados, negociam ou lutam
pelo acesso aos meios de produção de empresas falimentares. Ruggeri (2009) define
a recuperação de empresas como um processo social e econômico que pressupõe a
existência de uma empresa capitalista anterior cuja falência ou inviabilidade econômica
resultou na luta dos trabalhadores pela autogestão.
Há vários exemplos históricos de manutenção dos postos de trabalho por meio
da ocupação e recuperação das empresas, como na Comuna de Paris em 1871, na
formação dos conselhos (soviets) na Rússia em 1905 e 1917, no Chile de Allende
entre 1971 e 1973, durante a Revolução dos Cravos em Portugal em 1974, entre
outros. A partir da década de 1990, essa prática ressurgiu como alternativa para um
contingente significativo de trabalhadores, sobretudo no Brasil e na Argentina.
No Brasil, há experiências de empresas recuperadas por trabalhadores (ERTs)
desde a década de 1980, como exemplifica o caso da empresa de extração de carvão
mineral em Criciúma (Cooperminas). Mas foi a partir da década de 1990, com o
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EMPRESAS RECUPERADAS POR TRABALHADORES NO BRASIL
2 Com a crise de 2010 novas
fábricas foram recuperadas
e estima-se que ao menos
cerca de 50 novas empresas
foram recuperadas.
apoio da Associação Nacional dos Trabalhadores de Empresas de Autogestão e
Participação Acionária (ANTEAG), que aconteceu o crescimento e a consolidação
dessas experiências no país. A partir de 1999, a Central Única de Trabalhadores
(CUT) passou a apoiar a recuperação de fábricas por meio da Central de Cooperativas
e Empreendimentos Solidários (UNISOL), transformando a recuperação numa das
possibilidades da luta sindical. Em 2002, surgiu o Movimento de Fábricas Ocupadas
diante da falência das empresas do grupo CIPLA de Joinville.
Em uma pesquisa realizada no Brasil, no âmbito da pesquisa que gerou este
artigo, foram identificados 67 casos de ERTs em funcionamento e 78 casos de
recuperação que já foram encerrados. Na Argentina, embora também existam
experiências da década de 1990, a explosão do fenômeno se deu com a crise de
2001. Ocupar fábricas tornou-se uma alternativa concreta para 205 empresas,2
segundo dados do levantamento, feito em 2010, por pesquisadores da Universidade
de Buenos Aires (RUGGERI et al., 2011).
Este artigo sintetiza os resultados de uma tese de doutorado em que foram
realizados cinco estudos de casos, sendo quatro na Argentina e um no Brasil, que
permitiram realizar uma análise qualitativa das inovações produzidas por essas
experiências. Durante o percurso da tese foram visitadas mais de 50 ERTs nos dois
países, com o intuito de descrever com maior clareza o universo estudado.
O artigo estrutura-se em três sessões: na primeira é apresentada a especificidade
da organização capitalista do trabalho, que serve de base para que se evidenciem as
inovações das ERTs; na segunda sessão são apresentados dados das ERTs brasileiras e
argentinas, além das principais pesquisas já realizadas sobre esses países, que ajudam
a traçar um panorama geral das experiências; e, por fim, são relatadas as inovações
identificadas em cinco estudos de casos com relação ao modelo capitalista de
organização do trabalho.
1. A Organização Capitalista do Trabalho
No intuito de identificar as inovações empreendidas pelas práticas de autogestão
das empresas recuperadas se faz necessário perguntar: Que fatores comuns podem ser
identificados nas diferentes escolas de organização do trabalho? Quais desses fatores
são especificidades do modo de produção capitalista?
Além da alcunha de “Administração Científica” conferida ao modelo de Taylor, é
comum que se referencie o modelo capitalista de organização do trabalho como sendo
de “racionalização da produção”. Sem querer entrar na discussão sobre o fato de se
tratar de uma ciência ou não, ou ainda se se trata de um método racional ou não, o
fato é que, caso possam ser assim designados, é preciso ter clareza de que se trata de
uma ciência e de uma racionalidade bem específicas.
Adorno e Horkheimer (2006, p. 11), assim como outros membros da Escola de
Frankfurt, se debruçaram na análise da racionalidade vigente no mundo capitalista e
no que se transformou a ciência no período que se seguiu ao Iluminismo. Perguntam
os autores: “Por que a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente
humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie?” Ocorreu uma grande
distância entre o esclarecimento idealizado e o realizado e, segundo eles, o pensamento
esclarecedor não pode acontecer sem a liberdade na sociedade.
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F L ÁV I O C H E D I D H E N R I Q U E S , M I C H E L J E A N - M A R I E T H I O L L E N T
A escola da gestão capitalista é, em primeira instância, guiada pela razão
instrumental, na qual os objetivos de acumulação do capital estão acima de qualquer
outra variável que possa ser colocada nas funções administrativas. Parte do pressuposto
de que a desigualdade é natural e os diferentes precisam colaborar para que nada se
altere. Como afirmam Adorno e Horkheimer (2006), a naturalização da desigualdade
coloca o homem ainda mais submisso à natureza, dessa vez inventada por ele,
colocando a ciência a serviço da coerção social. Mas como essa escola teórica a serviço
da coerção social se operacionaliza? Que características são intrínsecas das técnicas de
gestão capitalistas?
O primeiro elemento que pode ser extraído das principais escolas de organização
de trabalho, como o taylorismo, o fordismo e o ohnismo, é que a gestão da produção
capitalista é um poder de controle que se exerce sobre o outro,3 ou seja, trata-se de uma
heterogestão. Tal poder é exercido de forma coercitiva por uma minoria detentora dos
meios de produção ou designada por estes, mesmo nos modelos que reivindicam a
participação dos trabalhadores, como no caso do sistema japonês.
O segundo elemento presente nos modelos de organização capitalista do trabalho
diz respeito à expropriação do saber do trabalhador. As técnicas desenvolvidas, físicas
ou de gestão, buscam eliminar o trabalho vivo. Quando não é possível, tentam
restringir ao máximo a possibilidade de haver falha humana. Nesse sentido, convergem
a simplificação das tarefas de Taylor e a autonomação toyotista.
O terceiro elemento é decorrente do fato de a força de trabalho ser uma mercadoria.
A organização capitalista do trabalho por conta disso caracteriza-se pela tentativa de
utilização ao máximo dessa mercadoria, o que é feito por meio da intensificação da
atividade de trabalho.4 Para isso, o próprio conceito de trabalho é ressignificado,
ou restringindo, para o trabalho que agrega valor ao capital, como feito por Ohno
(1997). Como forma de eliminar desperdícios, os tempos ociosos nas fábricas são
vistos como um problema, havendo inclusive um conceito para designá-los, que é o
de “porosidade”. Na gestão capitalista a porosidade é um problema a ser enfrentado
e o ritmo de trabalho é intensificado de sorte a que todo o tempo do trabalhador na
fábrica seja gerador de valor.
Dessa concepção segue uma quarta característica, que diz respeito ao local de
trabalho. A lógica é a de que o que é feito dentro do espaço da empresa tem que
gerar lucro. Mesmo quando são promovidas atividades que não são da produção
propriamente dita, como, por exemplo, confraternizações entre os funcionários, isso
se faz diante de uma lógica de que é possível, com essa forma de interação controlada,
obter mais lucro. Não fogem dessa caracterização as novas concepções de espaço
de trabalho em que atividades de lazer são permitidas e estimuladas nas empresas,
dado que também buscam o aumento da produtividade e, em determinados casos, o
aumento da jornada de trabalho.
O quinto elemento se refere às estratégias de ideologização, em que há uma
apropriação da subjetividade dos trabalhadores. Nega-se, nesses casos, a existência
da luta de classes, buscando fazê-los “vestir a camisa da empresa”, pois desta forma
também supostamente serão beneficiados. Esse processo os faz assumir os valores que
regem o modelo capitalista. Trata-se de uma ideologização no sentido amplo, em que
há também controle da vida social dos trabalhadores.
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3 Como afirma Faria (2009),
o controle é uma característica inerente às organizações,
não sendo o controle a especificidade capitalista, mas,
sim, o controle coercitivo da
classe burguesa sobre a classe operária.
4 Esse elemento refere-se à
produção de mais-valia relativa, que para Marx (1978) é
responsável pelo surgimento
do modo de produção especificamente capitalista.
EMPRESAS RECUPERADAS POR TRABALHADORES NO BRASIL
2. ERTs no Brasil e na Argentina
2.1 Argentina
As ERTs na Argentina foram objetos de pesquisa de inúmeros livros e teses
desde 2001, período de uma das principais crises financeiras da história do país.
Além de variados estudos de casos, que ajudam na compreensão das especificidades
das iniciativas e dos principais motivadores da recuperação de empresas pelos
trabalhadores, houve um esforço sistemático de levantamento de dados, como nos
três mapeamentos realizados pela equipe do Programa de Extensão “Facultad Abierta”,
da Universidade de Buenos Aires. Além dessas referências bibliográficas, baseamo-nos
no trabalho de campo realizado entre março e julho de 2011, no qual foram visitadas
19 empresas argentinas recuperadas.
Foi no fim da década de 1990 que surgiram as experiências que são consideradas
antecedentes diretos das ERTs argentinas. Em 1996, o Frigorífico Yaguané foi
recuperado por seus trabalhadores, seguindo-se a ele, em 1998, a Indústria Metalúrgica
e Plástica Argentina (IMPA) e, mais tarde, no ano 2000, a metalúrgica Unión y Fuerza,
a primeira a conseguir uma lei de expropriação. As três fábricas seguiram caminhos
distintos e formaram diferentes entidades de representação.
Apesar desses casos, é muito difundido que na Argentina o surgimento das
experiências de ERTs se dá a partir da crise de 2001 e 2002. Ruggeri et al. (2011)
demonstram que 14,6% dos casos existentes são anteriores a esse período, o que
equivale a pouco mais de 30 iniciativas. Embora não se possa explicar o fenômeno de
recuperação de empresas apenas pela crise financeira, vale lembrar que o ano de 2001
foi apenas o estopim de uma crise que já se anunciava.
É notório que foi nesse período que surgiu a maior parte dos casos de empresas
recuperadas por trabalhadores. Segundo o último mapeamento realizado, das 205
ERTs identificadas no ano de 2010, 62% das experiências surgiram entre os anos de
2001 e 2004 (RUGGERI et al., 2011). Mas além dos casos previamente existentes,
depois de estabilizada a situação econômica do país, empresas continuaram sendo
recuperadas por trabalhadores.
Se em 2004 a equipe do Programa Facultad Abierta identificou a existência
de 161 ERTs, em 2010 contabilizou 205 casos, envolvendo 9.362 trabalhadores.
Depois de 2007, período de alto crescimento econômico no país, surgiram 10,2%
das iniciativas mapeadas até 2010, ou seja, pouco mais de 20 iniciativas. Nesse último
mapeamento, uma das novidades foi a identificação de uma tendência de crescimento
das experiências no interior do país. Se em 2002 representavam menos de 20% dos
casos, hoje as fábricas fora da área metropolitana de Buenos Aires já representam
pouco mais de 40% (RUGGERI et al., 2005, 2011).
Na Argentina, o principal setor das ERTs é o metalúrgico, com 23,4% das
experiências, seguido pela indústria alimentícia, gráfica e têxtil, com 12,6%, 7,8% e
6,3%, respectivamente, segundo Ruggeri et al. (2011). O setor gráfico se organiza em
uma rede que agrega 19 gráficas com intuito de comercializar e comprar insumos de
forma coletiva, além de ser um importante instrumento político de negociação com o
Estado e de apoio à recuperação de novas gráficas.
Os dados apresentados demonstram que há uma forte relação entre a recuperação
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de empresas e o período mais agudo da crise, mas também revelam que antes do
estopim da crise e depois de seu fim tal ferramenta fez parte das estratégias de luta
dos trabalhadores argentinos. Rebón (2007) acha que a recuperação produtiva de
empresas é a resultante da alteração das identidades sociais e morais pré-existentes por
conta da crise, o que possibilitou a realização de novas articulações. Tais articulações
foram possíveis devido a uma total perda de credibilidade nos políticos e em boa
parcela do empresariado.
Em parte das empresas que foram recuperadas na Argentina houve tentativas de
fraudes no processo de falência. Álvarez (2009), ao analisar o discurso dos legisladores
na aprovação da expropriação de uma empresa, identifica haver um apelo à imoralidade
dos seus proprietários diante das fraudes cometidas, ao que se contrapõe a moralidade
dos trabalhadores que ocuparam as fábricas para manter a produção. Não se tratava,
portanto, de uma afronta ao capital. Como bem observou Ruggeri (2009), havia
uma situação paradoxal na atitude dos trabalhadores que, ao lutar contra as fraudes,
impediam que o capital roubasse a si mesmo.
Foi a partir das articulações feitas para evitar a fraude à indústria nacional argentina
que ganhou legitimidade a luta dos trabalhadores por recuperar suas fontes de renda.
Sem o apoio dos vizinhos das fábricas ocupadas, de sindicatos, assembleias de bairro
e de movimentos sociais, entre eles, os que surgiram para apoiar especificamente as
ERTs, a recuperação de empresas não teria alcançado a mesma magnitude. Como
relatam Ruggeri et al. (2011), em 62% dos casos foi necessária a realização de ações
diretas para a recuperação, sendo a principal delas, em 73,5% dos casos, a ocupação,
seguida do acampamento na porta das fábricas (30,1%) dos que não conseguiram
acessar o interior da fábrica ou que foram expulsos das instalações. Metade dessas
experiências sofreu repressões ou tentativas de despejo e as ocupações duraram, em
média, de cinco a seis meses (RUGGERI et al., 2011).
Finalizando esta parte, vale citar que, em uma reportagem no jornal Página 12
do dia 20 de novembro de 2012, os pesquisadores Julian Rebón e Rodrigo Salgado, da
Universidade de Buenos Aires, revelaram dados de uma pesquisa feita com 600 pessoas
da área metropolitana de Buenos Aires, na qual 70% dos entrevistados demonstraram
conhecer o fenômeno das empresas recuperadas. Destes, 97% apresentaram uma
ideia positiva dessa prática como uma forma de preservar fontes de trabalho e 86%
consideraram justo que haja ocupação de fábricas para que sejam recuperadas.
2.2 Brasil
Até o fim da década de 1990, as pesquisas publicadas se limitaram a estudos de
caso, sobretudo das primeiras empresas que foram recuperadas no Brasil na década de
1980 e início de 1990. Nos anos 2000, foram publicadas as primeiras pesquisas mais
abrangentes que a partir de estudos multicasos tentaram compreender o fenômeno,
ressaltando suas potencialidades e identificando suas fragilidades.
A primeira foi realizada por Candido Giraldez Vieitez e Neusa Maria Dal Ri,
entre os anos de 1998 e 2000, a partir de pesquisa de campo com 19 empresas
autogestionárias do setor industrial e publicada no ano de 2001. Em 2002, em
publicação organizada por Rogério Valle, foi relatada uma pesquisa empírica que
ocorreu entre 1997 e 2000, envolvendo nove empresas que passaram por processos
de recuperação. Em 2001, em uma parceria entre o Instituto Brasileiro de Análises
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EMPRESAS RECUPERADAS POR TRABALHADORES NO BRASIL
5 Que hoje mantém um grupo no CNPq denominado
“Grupo de Pesquisa sobre
Empresas Recuperadas por
Trabalhadores (GPERT)”.
Sociais e Econômicas (IBASE) e a ANTEAG, foram entrevistados 367 trabalhadores
de 13 empresas filiadas à Associação, dentre as quais oito eram provenientes de
processos de recuperação. E, em 2005, foram visitados 27 empreendimentos
provenientes de massa falida pela equipe de pesquisa coordenada por José Ricardo
Tauile (TAUILE et al., 2005).
Mesmo sem o objetivo de englobar a totalidade das experiências de empresas
recuperadas por trabalhadores no Brasil, os estudos supracitados são importantes
pontos de partida para caracterizar a atual situação das ERTs no país. Vieitez e Dal
Ri (2001) buscaram compreender a estrutura das relações de trabalho nas empresas
estudadas, avaliando o estágio de democratização dessas relações. Identificaram haver
“modificações significativas na estrutura empresarial, particularmente na organização
do trabalho (VIEITEZ; DAL RI, 2001, p. 19)”, sendo que para eles as principais
modificações ocorreram na variável “controle do trabalho”, que nestas empresas passa
a ter o significado de “regulação do trabalho”.
Mesmo que Vieitez e Dal Ri (2001) tenham identificado e valorizado os novos
espaços criados para participação dos trabalhadores, não deixaram de notar a formação
de uma elite político-administrativa, que tende a se perpetuar nas funções gerenciais
com relativa autonomia do coletivo de trabalhadores e que podem futuramente
representar o retorno das empresas às condições anteriores de funcionamento.
Holzmann (2001), por meio de um estudo de caso, identificou que os seguintes
fatores prejudicavam a ampla participação dos trabalhadores que recuperaram a Wallig
Sul: a timidez e a internalização por parte deles de que são inferiores para dominarem
processos que vão além de suas atividades rotineiras.
Foram encontrados, portanto, nesses estudos um bom ponto de partida para a
compreensão do universo das experiências de ERTs no Brasil. Entretanto, ainda não
havia uma pesquisa com intuito de gerar informações sobre a totalidade de empresas
recuperadas por trabalhadores no Brasil. A partir de um esforço coletivo envolvendo
dez universidades, foi realizada uma força-tarefa para analisar dados de livros, teses,
artigos, além de bases de dados pré-existentes para definir o número atual de ERTs
no Brasil. Em seguida, buscou-se visitar a totalidade das experiências com intuito de
realizar uma pesquisa censitária.
Como parte do trabalho de campo desta tese, participamos desse grupo,5 que
conseguiu identificar 67 ERTs em funcionamento no Brasil, envolvendo 11.704
trabalhadores e 78 casos de ERTs que já faliram ou se reconverteram em empresas
privadas comuns. Entre as que estão em funcionamento, foram visitadas 52 ERTs.
As demais empresas que não puderam ser visitadas forneceram dados básicos por
correio eletrônico ou telefone, o que permitiu que fosse traçado um quadro geral das
ERTs no Brasil. A seguir, são apresentados alguns dos principais dados dessa pesquisa
(HENRIQUES et al., 2013).
Entre as ERTs estudadas, quase a metade (45%) é do ramo da metalurgia. O ramo
de atividade têxtil é o segundo mais frequente, com 16%. Em seguida, destacam-se ramo
alimentício, com 13%, e a indústria química e de plástico, com 10%. A maioria das
ERTs está concentrada nas regiões Sudeste (55%) e Sul (32%). Com exceção da Região
Centro-Oeste, onde não foram encontrados casos, também foram localizadas ERTs nas
demais regiões: Nordeste (10%) e Norte (3%), onde se encontram apenas 2 casos.
A grande maioria dos casos estudados (81%) revelou que a recuperação da
empresa se iniciou com uma crise financeira ou com a falência da antiga empresa,
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sendo ou não pagamento de salário (43%) e a demissão de pessoal (23%) os principais
motivos que levaram os trabalhadores a lutar por seus postos de trabalho. Os períodos
que apresentam o maior número de recuperações das empresas ainda existentes foram
o de 1995 a 1999, com 31% dos casos, e o de 2000 a 2004, com 29%.
Sobre a existência de conflitos no processo de recuperação, pouco menos da
metade dos casos que responderam a esta questão (26 de 53) relataram ter sido
necessário algum tipo de medida de força, sendo que em 68% dos casos houve
ocupação ou acampamento, com duração média de 52 dias entre 14 empresas que
precisaram o tempo de ocupação.
Há uma predominância entre as ERTs que adotaram a forma jurídica de
cooperativa (85%), seguido de empresas (10%), associações (3%) e um caso de
comissão de fábrica (2%). Algumas ERTs se formalizaram incialmente como
cooperativas e fizeram a mudança legal para microempresa, pois consideraram que a
figura jurídica de cooperativa não tem os mesmos incentivos fiscais que as empresas.
Dentre 21 empresas que responderam sobre o perfil dos seus trabalhadores,
23% são mulheres e 77% homens, sendo 67% sócios dos empreendimentos e 37%
contratados. A amostragem com relação à idade foi de 17 empresas, sendo que 46,2%
estão na faixa etária de 36 a 54 anos, seguidos de 39% na faixa etária de 18 a 35 anos,
12,7% de 55 a 64 anos e 19% acima de 65 anos. O percentual de trabalhadores com
Ensino Médio completo é de 26,1% e com Fundamental completo é de 19,5%. O
percentual de trabalhadores com fundamental incompleto é de 21,7%. Há uma maior
incidência de ERTs entre 0 e 50 trabalhadores, totalizando 28 empresas. De 50 a 100,
há 12. De 100 a 500, 22. Com mais de 500, apenas quatro.
Há 16 casos de empresas que possuem mais contratados do que sócios, o que revela
uma prática de assalariamento em uma parcela significativa das ERTs. Entretanto,
em 39 casos, o número de contratados não ultrapassa 10. Em 19 empresas todos os
trabalhadores são sócios ou têm o mesmo poder na empresa. Com relação a diretores
ou gerentes da antiga empresa, 40% das empresas que responderam (50) informaram
que ao menos um gerente continuou na empresa depois da recuperação, enquanto
60% afirmam não haver a participação desses quadros após o período da recuperação.
Sobre mudanças na organização do trabalho, 43 ERTs (88%) afirmam ter
realizado alguma alteração. As principais mudanças citadas foram: descentralização
de poder e nível hierárquico; colaboração, comprometimento e motivação; rodízio e
polivalência; flexibilidade (horário, função, posto de trabalho); melhoria do diálogo
e relacionamento; autonomia e liberdade e acesso à informação. Corroborando
o que já havia sido observado por Vieitez e Dal Ri (2001), 52% dos entrevistados
compartilham a ideia de que o papel dos supervisores/coordenadores deve ser de
orientação, coordenação/organização do trabalhador e das relações interpessoais.
A assembleia geral (AG) é a instância máxima de decisão das ERTs. Quase todas
as empresas pesquisadas dizem que realizam AGs. A frequência de realização desses
encontros varia bastante, sem apresentar nenhuma tendência predominante: 30% das
ERTs realizam AGs uma vez por mês ou mais; 28% menos de uma vez por mês e mais
de uma por ano; 28% anualmente; e apenas 6% não responderam.
A jornada de trabalho nas empresas pesquisadas é, quase sempre (85% entre
aquelas que responderam a questão), de 8 h/dia ou 44 h/semana, ou bem próximo
disso. Ou seja, seguem a jornada estipulada pela CLT. Na maioria das empresas (34
ERTs), todos os trabalhadores trabalham a mesma quantidade de horas por dia.
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EMPRESAS RECUPERADAS POR TRABALHADORES NO BRASIL
Quanto à remuneração, 49 empresas (96% entre aquelas que responderam a
questão) relataram ter retiradas diferenciadas entre os trabalhadores. A principal
justificativa dada pelos entrevistados para a desigualdade de remuneração é a
diferenciação por função. Apenas uma empresa (2% do total) informou ter retiradas
iguais para todos os trabalhadores – trata-se de uma empresa de pequeno porte que
no momento da entrevista contava com apenas sete trabalhadores produzindo. Esse é
um dos pontos em que os casos brasileiros de ERTs mais diferem dos casos argentinos.
Ruggeri et al. (2011) identificaram que mais de 50% das 205 ERTs argentinas
praticam a retirada igualitária. A média da diferença entre o valor mínimo e o máximo
no Brasil é de 4,76 (máximo/mínimo).
Dentre 42 ERTs, 71,5% mencionaram que os acidentes de trabalho
diminuíram depois da recuperação, sendo que nenhuma empresa mencionou
que os acidentes aumentaram. Entre elas, 90,5% disseram que há mudanças com
relação à pressão, sendo que em 78% dos casos essa pressão diminui. Buscou-se
identificar um padrão de respostas do motivo da diminuição ou da intensificação,
dado que a pergunta do questionário era aberta. A maior incidência de respostas
é de que a diminuição da pressão está relacionada à diminuição do controle e da
hierarquia, que pode ser simbolizada em um dos relatos: “Quem determina o
ritmo hoje é o próprio trabalhador.”
Com relação aos sindicatos se percebe que não existe um único caminho ou
uma única opção tomada. Cada um deles atuou de maneira singular frente aos
processos de recuperação das empresas. Por um lado, existem os casos onde o sindicato
ofereceu assessoria, apoio e acompanhou os trabalhadores durante todo o processo de
recuperação adquirindo, desta forma, um papel fundamental. Também existem os
casos onde o sindicato ofereceu apoio só no início do processo de recuperação. Em
outros casos, desde o início da recuperação, o sindicato se manteve afastado totalmente
do processo, sem prestar qualquer apoio aos trabalhadores, inclusive se colocando a
favor dos empresários no momento de negociar as dívidas.
Outro aspecto relevante para se realçar refere-se a pouco frequente relação entre
as ERTs e a economia solidária, mostrando certo isolamento das experiências. Boa
parte das experiências nunca teve contato com nenhum tipo de organização, fórum ou
empreendimento de economia solidária, nem com outras ERTs. Entendemos que o
pouco contato existente entre as ERTs limita as possibilidades de estabelecer vínculos
solidários e comerciais, que seriam importantes para a implementação de melhorias e
avanços no desenvolvimento das experiências, assim como também o incentivo para a
constituição de redes. Acrescenta-se que essa falta de laços também se apresenta com
o território no entorno das empresas. São muito poucos os casos de ERTs no Brasil
que realizam atividades solidárias ou culturais para a comunidade e a vizinhança.
O caso argentino de empresas recuperadas contrasta com o brasileiro nesse ponto;
enquanto no primeiro há uma relação orgânica com as assembleias de bairro, vizinhos,
movimentos sociais (RUGGERI et al, 2011; REBÓN, 2007), no caso brasileiro há
pouco relacionamento e quando há, são atividades pontuais.
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3. Rupturas identificadas
com os estudos de caso
Foram realizados cinco estudos de caso com o intuito de aprofundar sobre a
organização do trabalho das empresas recuperadas. Entre os casos, havia o de uma rede
de gráficas argentinas (Red Grafica Cooperativa), que envolve 19 empresas deste setor,
das quais foram visitadas 11; uma empresa de cerâmica da província de Neuquen
(Fasinpat Zanón); uma gráfica da cidade de Buenos Aires (Chilavert); uma empresa
que presta serviços de tratamento de solo para o município de Avellaneda (Unión
Solidaria de Trabajadores); e uma fábrica de bombonas de Sumaré, São Paulo (Flaskô).
Como neste artigo não é possível descrever todos os casos, abaixo apresento uma
síntese das inovações identificadas nas experiências analisadas.
3.1 A jornada e o ritmo de trabalho e a segurança do trabalhador
Um dos pontos polêmicos relacionado às ERTs é o que diz respeito à jornada de
trabalho. Alguns estudos, como os de Fajn et al. (2003) e Novaes (2007), apontam
para o risco do que chamam de autoexploração, devido à identificação de casos em
que há o prolongamento da jornada de trabalho.
Os resultados dessas pesquisas apontam que não ocorre a intensificação da
atividade de trabalho nas ERTs, como tentam afirmar alguns teóricos. Mesmo Rebón
(2007), que também chega a falar do risco da autoexploração, identificou que há
uma “desintensificação” da atividade de trabalho, que está relacionado ao novo ritmo,
com mais tempos mortos e sem a pressão da patronal. Ruggeri (2009), a princípio,
relativizou o termo “autoexploração” por ter identificado, assim como Rebón (2007),
a existência de uma menor cadência na execução das tarefas. Mas a partir do último
levantamento realizado em 2010, em que foi identificado que a média da jornada
de trabalho é de 8,6 horas, junto com sua equipe de pesquisa, afirmou que os dados
contrastavam com as afirmações catastróficas sobre a jornada de trabalho nas ERTs
(RUGGERI et al., 2011).
Em todos os casos estudados, a redução do ritmo de trabalho6 foi entendida como
o principal fator para a diminuição do número de acidentes de trabalho. Essa é uma das
principais críticas que os casos apresentados permitem fazer à organização capitalista
do trabalho, responsável pela morte de três mil brasileiros e 410 mil acidentes por
ano.7 Sem a característica principal da organização capitalista do trabalho, que é o
controle externo da atividade de trabalho,8 há relatos que indicam haver uma redução
significativa de acidentes de trabalho.
3.2 A diferenciação salarial
Tanto os levantamentos realizados como os estudos de caso apontam para a
existência de uma redução dos salários mais altos e o aumento dos salários mais baixos
nas ERTs no Brasil e na Argentina. Embora no Brasil haja uma menor tendência na
adoção de retiradas igualitárias, a média é de que os salários mais altos sejam 4,7 vezes
maiores que os mais baixos. Na Argentina, mais de 50% das iniciativas adotam a
retirada igualitária e quando há diferenciações, como nos casos apresentados, elas não
costumam ser superiores a 100%.9
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6 Este fato contrasta com o
terceiro elemento da organização capitalista do trabalho, identificado na primeira
sessão deste artigo, que é a
intensificação máxima da atividade de trabalho.
7 Conforme dados do sítio
<http://www.segurancanotrabalho.eng.br/artigos/acid_
brasil.html>, visitado em 3 de
março de 2013.
8 Na primeira sessão, este foi
o primeiro elemento destacado como uma das características da organização capitalista do trabalho.
9 Nos três casos argentinos
em que houve um maior
aprofundamento a diferença
entre o maior e maior salário
não ultrapassava 30%.
EMPRESAS RECUPERADAS POR TRABALHADORES NO BRASIL
10 Terceiro elemento da organização capitalista do trabalho, identificado na primeira sessão.
Mesmo nos casos em que há uma diferenciação, como na Flaskô, percebe-se
que esta não se define apenas pela lógica de mercado, havendo critérios estabelecidos
pelos trabalhadores que não estão relacionados a uma maior valorização do trabalho
intelectual em detrimento do manual. Nessa fábrica, por exemplo, o teto salarial é
estabelecido de acordo com o maior salário do chão de fábrica, que é o do ferramenteiro.
O que pôde ser verificado é que algumas experiências ajudam a problematizar o
tratamento da força de trabalho como mercadoria,10 mas não superam essa questão por
estarem inseridas no mercado capitalista. Nos casos em que a contratação de trabalhadores
se tornou uma regra, essa questão não só deixa de ser problematizada como é estimulada
para manter os privilégios dos sócio-fundadores, que são, em geral, os responsáveis pela
recuperação das empresas, que passam a explorar trabalhadores assalariados.
3.3 Novos significados do espaço de trabalho
11 Quarto elemento da organização capitalista do trabalho, identificado na primeira
sessão.
12 Essa questão ficou muito
evidenciada também na Zanón, pois anteriormente os
uniformes de setores possuíam cores diferentes para evitar que houvesse circulação
entre eles.
Outra característica marcadamente presente nas ERTs é a alteração do espaço
físico, que dá um novo significado ao ambiente de trabalho. A lógica nas mudanças
promovidas pelos trabalhadores contrasta com a racionalidade instrumental da
organização capitalista do trabalho, que confere a esse ambiente unicamente a função
de gerador de lucro.11
Nesse sentido, há uma série de novidades implementadas pelos trabalhadores.
Uma delas diz respeito à aproximação entre o chão de fábrica e o setor administrativo.
Em dois dos casos apresentados, esse setor foi deslocado para que pudesse funcionar
ao lado da produção, simbolizando uma aproximação entre profissionais que tendem
a ser separados na organização capitalista do trabalho. Em alguns casos, como na
Flaskô, foi ressaltada a ausência de barreiras de entrada no setor administrativo,
além da possibilidade de livre circulação dos trabalhadores na fábrica, que ampliou
o espaço da empresa para muitos trabalhadores que estavam restritos ao seu posto de
trabalho,12 o que contrasta com as fábricas tayloristas e fordistas onde o contato entre
os empregados é evitado.
Todavia, a alteração mais emblemática está relacionada aos novos significados
dados ao espaço de trabalho. Dentro do ambiente de trabalho convivem espaços de
cultura, de ensino, acadêmicos e políticos. Foram identificadas em muitas das fábricas
visitadas a formação de escolas, projeto de universidade popular, de centros culturais,
de teatros, de complexos agroecológicos, de centros de lazer e de esportes, entre
outros, que ressignificam o papel das empresas na sociedade. As visitas de escolas
para conhecerem os processos produtivos são símbolos da quebra do sigilo fabril e
da aproximação entre os trabalhadores e a vizinhança que circunda as empresas, que
passam a ter uma relação de outro tipo.
3.4 Para além dos muros das fábricas – a relação com o território
Além de as experiências de ERTs estarem abertas para receber a sociedade civil,
há em muitos casos estudados a atuação para além de seus muros. A iniciativa mais
emblemática é a da UST, que destina 25% do seu excedente para investimentos na
comunidade que a circunda, o que lhe permitiu implementar uma série de instrumentos
públicos que beneficiaram seus moradores – cerca de 85% dos trabalhadores da
empresa. Trata-se de uma relação nova com o território vizinho à empresa.
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Não menos importantes são os casos da Zanón e da Flaskô, que atuam em
parceria com trabalhadores de distintos segmentos, como professores, profissionais
da área de saúde, além de movimentos sociais, como o movimento dos trabalhadores
desempregados, dos sem-terra, dos sem-teto, na luta por direitos sociais. Essa forma
de atuação classista confronta a negação do conflito de classes e toda tentativa de
ideologização do trabalhador que busca implementar a organização capitalista do
trabalho.13 A Flaskô apoia a ocupação de parte de seu terreno por mais de mil pessoas
que construíram suas casas e os auxilia no processo de urbanização, estabelecendo
diálogo com a prefeitura.
A Red Grafica Cooperativa (RGC) também se demonstrou um caso importante
para exemplificar ações realizadas entre ERTs, em que a identidade de classe dos
trabalhadores superou a de empresários. Sem se preocuparem com a possibilidade de
entrada de novos atores no mercado em que atuam, os trabalhadores que compõem a
rede ajudaram a recuperar gráficas e passaram a atuar em parceria.
3.5 Relações entre os trabalhadores
A relação entre os trabalhadores também foi um dos aspectos muito ressaltados
nas entrevistas. Há uma clara aproximação entre eles, que está relacionada à lógica de
cooperação que passa a ser mais evidente. Muitos relatos ressaltaram que anteriormente
eram estimulados a competir entre si, seja por uma estratégia da própria empresa,
acreditando ser essa a forma de obter maior produtividade, seja pelo fato real de que
um novo trabalhador significava uma ameaça aos mais antigos, que por conta disso
buscavam não ensinar a atividade de trabalho aos seus ajudantes.
O caso da UST, por exemplo, é significativo, pois ressalta a atuação desta empresa
com os trabalhadores desempregados da comunidade de San Lorenzo, seja por meio
da incorporação de novos sócios na empresa, seja pela concessão de microcréditos
para permitir a formação de microempreendimentos. A UST faz parte da Central de
Trabajadores de la Argentina (CTA), uma central sindical que tem longa trajetória de
atividades com os desempregados do país.
O que os casos analisados demonstram é que, embora haja a possibilidade de
acirramento de ânimos devido à necessidade de tomadas de decisões coletivas, o que
ocorre nas experiências de ERTs é uma aproximação dos trabalhadores por haver
uma consciência de que a cooperação entre eles não os ameaça e é um fator que
traz benefícios para toda a empresa. Se antes um novo trabalhador poderia significar
a perda do posto de trabalho para um operário mais qualificado, hoje representa a
possibilidade de que esses tenham substitutos em ocasiões em que seja necessário se
ausentarem, sem representar uma perda de produtividade para o coletivo.
3.6 Mudanças no processo produtivo, no produto e no maquinário
Com relação ao maquinário, foram citadas algumas ideias, como a dos
trabalhadores de Chilavert, que pretendiam reduzir o ruído das máquinas para
que não precisassem utilizar os protetores auriculares. Entretanto, as alterações no
maquinário parecem ter se restringido às adaptações necessárias para que a fábrica
voltasse a funcionar e para que se mantivesse sem a necessidade de compra de
novos equipamentos.
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99
13 Quinto elemento da organização capitalista do trabalho, apresentado na primeira
sessão.
EMPRESAS RECUPERADAS POR TRABALHADORES NO BRASIL
Em alguns casos, observa-se, por exemplo, que há um prolongamento da vida
útil dos equipamentos, o que de certa forma problematiza a lógica predominante de
atualização constante dos meios de trabalho, gerando cada vez mais instrumentos
obsoletos. O fato de 46,2% das ERTs brasileiras e 70,8% das argentinas terem
declarado que suas instalações e máquinas estão em boas condições, contrastando
com diversos parques fabris observados, demonstra que há uma percepção distinta
desses trabalhadores sobre o que consideram “boas condições”. Certamente não
estão se referindo ao fato de terem tecnologias mais avançadas, mas sim adequadas
às suas necessidades.
Com relação às inovações no processo produtivo é curioso notar que na pesquisa
brasileira 74% das empresas declararam ter realizado inovações em alguma parte ou
componente das máquinas ou no processo produtivo. Essa pergunta deveria ter sido
formulada de outra maneira, pois algum tipo de alteração evidentemente foi necessário
para recolocar a empresa em funcionamento – além de ter sido mal-interpretada, pois
muitos, ao citarem as alterações, se referiam a aspectos organizativos, que estavam
sendo analisados por outras questões.
De qualquer forma, baseado em algumas respostas que obtive com os estudos
de caso, pude concluir que apenas alguns poucos trabalhadores têm a consciência
de terem sido realizadas mudanças no processo produtivo. Por exemplo, na Flaskô,
embora tenha entrevistado muitos operadores de máquina, apenas um relatou haver
uma mudança desenvolvida por eles: “A gente desenvolveu um molde que não tinha,
a gente desenvolveu outra maneira de trabalhar mais fácil. A maneira de tirar as
peças das máquinas, por exemplo. Foi conversando para pensar em novas formas de
produzir.” (Trabalhador da Flaskô, Entrevista Concedida em 17.03.2012).
Essa declaração demonstra que uma pesquisa mais aprofundada sobre a atividade
de trabalho, como estudos na área de ergonomia, por exemplo, podem revelar
novidades relacionadas às adequações realizadas pelos trabalhadores de ERTs. Se
parte das máquinas foi projetada para retirar desses trabalhadores a maior quantidade
de mais-valia e se ao mesmo tempo eles afirmam que conseguiram reduzir o ritmo
de trabalho, essa é uma pista de que adaptações foram feitas para que pudessem se
adequar à nova situação de trabalho.
3.7 A divisão de tarefas e o papel da mulher
Nos casos estudados foi identificada a maior possibilidade de realização de tarefas
distintas ao longo da vida laboral. Embora em nenhum deles haja um critério definido
para rodízio de setores, o desejo dos trabalhadores e, por vezes, a necessidade das ERTs
fazem com que seja comum a troca de função. Em alguns casos foram identificadas
rotações de funções, como em Zanón, que define que os trabalhadores que atuam no
sindicato precisam retornar para o setor produtivo, para que não percam a identidade
operária. Verifica-se também nessa empresa a existência de rodízio dos trabalhadores
do setor de imprensa e difusão, que atuam mais nas mobilizações e comunicação da
ERT. Dessa situação, pode-se concluir que há um esforço para que haja um rodízio
nos cargos que têm atuação política.
Esse fato, aliado ao livre acesso a informações e à livre circulação nas fábricas,
permite aos trabalhadores um maior conhecimento do processo produtivo, como
afirmado por muitos entrevistados. Isso representa um processo de desalienação, que
100
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em contraste com o segundo elemento extraído na primeira sessão sobre a organização
capitalista do trabalho devolve o saber expropriado do trabalhador. Ou, seguindo o
conceito de Simone Weil (1979), representa um enraizamento da classe operária.
Em todos os casos estudados foi ressaltado que os coordenadores de produção
ou encarregados, embora ainda exerçam um papel de organização, não têm a mesma
função da empresa anterior de ser um elo entre o patrão com o chão de fábrica. Esses
resultados corroboram a tese de Vieitez e Dal Ri (2001), que identificaram haver uma
mudança de qualidade nas atividades desses trabalhadores, que deixam de exercer uma
função de controle para uma de regulação.
Verificou-se, entretanto, que está mantida a divisão sexual do trabalho nos casos
estudados. As mulheres seguem exercendo funções administrativas, de zeladoria,
de cozinha e em setores leves da produção. Apenas em Zanón pudemos identificar
poucos casos de entrada de mulheres em setores e funções que antes não exerciam,
como de coordenação de setor. Também pudemos entrevistar duas mulheres que
eram presidentes das cooperativas, sendo uma na Argentina e outra no Brasil. Foi
também a Zanón a única empresa na qual identifiquei haver uma luta explícita por
direitos iguais entre homens e mulheres, o que se deve à formação de uma comissão
de mulheres na fábrica. O mural da Zanón que diz que sem as mulheres a luta vai
pela metade simboliza esse processo e ajuda a relembrar a importância das mulheres
no período de recuperação, seja no apoio direto na ocupação, seja na manutenção da
família dos trabalhadores acampados.
3.8 A radicalização da democracia no interior das empresas
A democratização das relações sociais no interior das empresas é o último
ponto a ser destacado na síntese dos aprendizados obtidos com os casos estudados.
Em primeiro lugar é preciso ressaltar a existência de instâncias formais em que há a
efetiva possibilidade do conjunto dos trabalhadores associados interferir em decisões
estratégicas da empresa, como na eleição do conselho administrativo, na demissão de
algum membro, na aquisição de um novo equipamento e na definição das próprias
remunerações. Em geral essas instâncias são chamadas de assembleias, embora em
Zanón recebam o nome de jornadas.
Entretanto, estudos como o de Vieitez e Dal Ri (2001) alertam sob a tendência
de formação de uma elite político-administrativa que tende a se manter nos cargos de
direção e de monopolizar os espaços de decisão das empresas. A esse fato, os autores
deram o nome de gestão de quadros.
Em algumas empresas ligadas à Red Grafica Cooperativa, na UST e na Flaskô
foram levantados problemas relacionados à baixa participação de parte dos trabalhadores
nas assembleias e, em geral, foram vinculados à falta de formação dos mesmos, que pela
dificuldade de formular suas questões optam por atuar apenas no momento de votação.
Casos como o de Chilavert, com número reduzido de trabalhadores, tendem a reduzir o
hiato entre esses quadros e os demais, pois é mais comum que haja reuniões do conjunto
de trabalhadores, rompendo possíveis barreiras que dificultam que se expressem.
Isso não significa que a democracia no interior das fábricas se limite às pequenas
ERTs. A Zanón e mesmo a Flaskô demonstraram que há outras formas de estimular
a participação de um maior contingente de trabalhadores. No caso da Flaskô, a
existência de um Conselho de Fábrica ampliado, com 13 trabalhadores, e uma alta
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101
EMPRESAS RECUPERADAS POR TRABALHADORES NO BRASIL
rotatividade de membros nessa instância ajudam no processo de formação. Em
Zanón, o rodízio implementado entre o chão de fábrica e o setor administrativo é
importante para a formação de novos quadros. Além disso, a existência de outros
espaços de tomada de decisão, como o Conselho de Coordenadores, que se reúne
toda semana, e as reuniões por setores ampliam numérica e qualitativamente a
participação dos trabalhadores nas jornadas. A jornada, que tem esse nome por
ser levada a cabo numa jornada de trabalho de 8 horas, permite que os problemas
políticos e econômicos sejam tratados com cautela.
O quadro das ERTs aponta algumas dificuldades para que essa experiência da
Zanón se generalize. Além da baixa formação já citada, há em algumas iniciativas
limitações impostas pelo mercado, dado que há um número significativo de empresas
na Argentina que produz por facção, o que pode significar uma interferência externa
nas decisões da empresa. Ruggeri et al. (2011) afirmam que 49% das ERTs utilizam
alguma forma de trabalho por facção, sendo que pouco mais de 30% dependem
exclusivamente deste tipo de contrato. No Brasil, a dependência de empresas
externas é menor, sendo que apenas 14,3% vendem mais de 80% da sua produção
para um mesmo cliente.
Nos casos estudados foram identificados espaços de tomada de decisão que não
são meramente informativos, nos quais há uma possibilidade efetiva de reversão de
uma proposta do Conselho Administrativo. Entendo esse processo como um germe de
radicalização da democracia no interior das fábricas, de fundamental importância para
um processo de transição socialista. Não quero dizer que essas práticas irão resultar
numa mudança sistêmica, mas que os aprendizados dessas experiências podem ser de
fundamental importância para que, num eventual processo revolucionário, não sejam
cometidos os mesmos erros do passado, em que o modelo capitalista de organização
do trabalho foi transplantado para experiências de economia planificada.
Conclusão
A experiência das empresas recuperadas por trabalhadores faz parte da luta do
movimento operário. Por um lado, no Brasil e na Argentina representa uma nova
estratégia para manutenção de postos de trabalhos em países que viveram crises
profundas nas décadas de 1990 e 2000, causadas pela adoção da cartilha neoliberal.
Por outro, constitui uma nova etapa do que Nascimento (2005) qualificou como lutas
pela autogestão, mesmo que o motivador inicial para a formação de grande parte
das ERTs não tenha sido o desejo da prática da autogestão. O fato é que essas talvez
sejam as experiências mais longevas em que a classe trabalhadora teve o controle das
empresas que antes pertenciam a um capitalista.
É preciso que as ERTs sejam compreendidas dentro de seus contextos e que esteja
claro que os objetivos iniciais dos trabalhadores que empreenderam essas lutas não era
o de promover uma revolução socialista. Por esse motivo, me parece que boa parte
dos pesquisadores que fala em “degeneração”, para se referir aos casos que deixaram
de apresentar o conteúdo de uma democracia radical, se esquece de que a autogestão
não era o norte buscado por seus protagonistas. Essas considerações têm o objetivo
de fazer uma crítica, ao que Santos (2007) chama de razão indolente, que desperdiça
as experiências reais por estar presa a soluções pré-estabelecidas para os problemas
102
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sociais. É preciso que as iniciativas concretas permitam a ressignificação dos conceitos
e das estratégias de luta para a emancipação social.
Apesar das diferenças explicitadas, Brasil e Argentina apresentam muitas
semelhanças com relação às dificuldades encontradas pelos trabalhadores para
colocarem de pé empresas, que em geral estavam em condições de desvantagem
no mercado globalizado. Os trabalhadores dos dois países também encontraram
algumas soluções similares para enfrentarem esse desafio e tanto no Brasil como
na Argentina podem ser encontradas inovações nas experiências de ERTs, que são
importantes aportes para os estudos da Tecnologia Social, sobretudo os referentes à
organização do trabalho.
Destrinchar esse ponto é tentar responder à questão de pesquisa: “[...] que
inovações no campo da organização do trabalho se produziram nas experiências de
empresas recuperadas por trabalhadores no Brasil e na Argentina?”
A primeira das inovações diz respeito ao controle externo da atividade de
trabalho, que deixou de existir parcialmente nas iniciativas apresentadas. Apesar
de se manterem os líderes de setor, coordenadores e encarregados, esses deixaram
de ter uma função de controle para ter uma função de coordenação. Ou para citar
Vieitez e Dal Ri (2001), uma função de regulação. O profissional responsável por
criar o elo entre a administração e a produção parece não ser mais necessário, pois
há uma linha direta de comunicação que fica ainda mais clara quando há rodízios
entre essas funções. A heterogestão, ao ceder lugar para a autogestão, permite pensar
que o que Marx (1978) chamou de “modo de produção especificamente capitalista”
é parcialmente alterado nessas experiências, pois o controle do processo produtivo
não é mais exercido pelo detentor dos meios de produção. Não se pode, entretanto,
ignorar a pressão externa estabelecida por fornecedores e clientes, como nos casos
das ERTs que trabalham por facção.
A segunda problematização que os estudos de caso permitem fazer está
relacionada à expropriação do saber do trabalhador. Mesmo não havendo um rodízio
sistemático nas ERTs, o maior convívio entre trabalhadores de distintos setores,
a participação nas esferas de tomada de decisões estratégicas e a possibilidade de
diálogo entre os que executam os trabalhos intelectual e manual permitem afirmar
que há um maior conhecimento por parte dos trabalhadores da totalidade das
ações que ocorrem na fábrica. Com isso seus trabalhos passam a fazer mais sentido
dentro do conjunto, sobretudo porque os resultados deles não são apropriados por
outra pessoa. Para utilizar a categoria de Weil (1979), trata-se de um processo de
enraizamento da classe operária.
A terceira ruptura, que está relacionada com a primeira, diz respeito à
desintensificação da atividade de trabalho, tendo sido a questão do ritmo de trabalho
a mais citada nas entrevistas realizadas. Como visto, essa característica representou
nos casos estudados a redução do número de acidentes e uma maior satisfação dos
trabalhadores, que passaram a ser responsáveis por programar suas ações de acordo
com suas reais possibilidades.
A quarta inovação que merece destaque é a ampliação do significado do trabalho
e consequentemente do espaço de trabalho. Na estrutura organizacional dos casos
apresentados sempre esteve presente um setor de mobilização, que estabelece vínculos
das empresas com vizinhos e movimentos sociais. O entendimento sobre o que é
a atividade de trabalho foi ampliado para ações de solidariedade,14 que exigiram
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103
14 Como no caso da Flaskô,
em que foi criado um código para definir que o trabalhador não está operando
porque está em atividade de
mobilização.
EMPRESAS RECUPERADAS POR TRABALHADORES NO BRASIL
Flávio Chedid Henriques é
pesquisador do Núcleo de Solidariedade Técnica (SOLTEC/
UFRJ). Doutor em Planejamento Urbano e Regional. E-mail:
<[email protected]>.
Michel Thiollent, doutor em
Sociologia, é professor do
Programa de Pós-Graduação
em Administração da UNIGRANRIO e professor aposentado da Coppe/UFRJ. E-mail:
<[email protected]>.
modificações no espaço de trabalho, que passou a comportar escolas, centros culturais,
teatros entre outros. São provas de que a atuação das ERTs não se restringe ao âmbito
econômico.
Não se pode ignorar a dependência que essas experiências têm de agentes do
capital, como seus fornecedores, clientes, bancos, competidores, que limitam suas
potencialidades, pois há interferências diretas em suas atuações. Também não se deve
esquecer que os casos estudados foram escolhidos por já apresentarem previamente
indícios de inovações organizacionais mais avançadas, o que não permite a generalização
para o conjunto das ERTs.
Há, entretanto, nas contribuições das distintas ERTs, um conjunto de práticas
que devem ser sistematizadas, divulgadas e trocadas entre as experiências. Há, por
enquanto, uma flor que rompeu o asfalto, o tejo, o nojo e o ódio, como descreveu
Carlos Drummond de Andrade (2008), simbolizando a construção de novas relações
sociais de produção, materializada por iniciativas de luta de mais de 20 anos da classe
trabalhadora. Suas práticas representam o que Ana Clara Torres Ribeiro (2005)
chamava de “arte de resolver a vida”.
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Abstract
This article is the result of a doctoral thesis which aims to identify
innovations in the field of labour organization produced by the experiences of companies
recovered by workers in Brazil and Argentina. The central thesis defended is that the
limitations imposed by the hegemony of the capitalist mode of production do not dismiss
the possibility of building new social relations of production. The five case studies and
the experience with surveys of all experiences recuperated enterprises in the two countries
provided information that allowed questioning in several respects the capitalist organization
of work and, through a critical practice, as suggested Rebón (2007), propitiated reflection
on the possibility of overcoming the hegemonic model, it is not only about innovation
within organizations, but also the relationship of these companies with their territories.
Keywords
Companies recovered by workers; Work organization; Workers
self-management; Critical Management Studies
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105
Economía urbana y economía
social. Un reconocimiento
pendiente1
Ruth Muñoz
Resumen
La economía urbana (EU) surgió de la mano de propuestas
espacialistas y economicismos y continúa siendo tallada por estas A pesar de una evidente
institucionalización de la economía social y solidaria (ESS) en América Latina, que da
cuenta de un creciente pluralismo económico, en la EU perdura la hegemonía del enfoque
del sector informal urbano y sus presiones por transformar en capitalistas cada práctica de
economía popular. Buscando el reconocimiento de la economía social (ES) en este campo,
el artículo ilustra brevemente la institucionalización de la ESS y plantea una provocativa
exploración por poner en diálogo a la ES con la teoría de los dos circuitos. Un diálogo como
este constituye una deuda pendiente que puede aportar a la disputa del campo así como
a encontrar mejores comprensiones y, también, a transformar las economías de nuestros
territorios en un sentido progresivo.
Pal abras-cl ave:
economía urbana; dos circuitos de la economía
urbana, economía social; economía social y solidaria; economía popular.
Introducción
Este artículo busca el reconocimiento de la economía social (ES), inspirada en
las prácticas de economía social y solidaria (ESS) por parte del campo de los estudios
urbanos y, en particular, de la economía urbana (EU). A su vez, apunta a contribuir
que se trascienda el recorte generalizado, fundamentalmente, a través de prácticas de
la denominada ES tradicional o fundacional (cooperativas, mutuales y asociaciones) y
sus aportes al desarrollo local.
Tanto las prácticas de la ESS como de la ES adquieren especial interés teórico y
político en un contexto en el que la creciente insuficiencia dinámica del capital para
absorber como mano de obra asalariada a la población económicamente activa y las
estructuras económicas cada vez más marcadas por la financierización y la economía
criminal agravan las condiciones de vida y de trabajo de las mayorías.
Sin embargo, tanto la EU como el desarrollo económico urbano y regional siguen
tallados por propuestas espacialistas, fundamentalmente, desarrolladas en EEUU o
Europa, que poco se preocupan o entienden2 nuestras economías latinoamericanas,
que son adoptadas de forma bastante acrítica en América Latina y que, como sostiene
Cuervo (2005), toman como referencia ciudades y territorios de los países desarrollados
que constituyen falsos espejos para la ciudad latinoamericana.3
A su vez, observamos como destacable la falta de evidencia empírica sobre
los logros que tienen estas teorías al implementarse en políticas públicas en
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107
1 Este trabajo toma como
base la ponencia “Heterogeneidad estructural de las
metrópolis latinoamericanas.
Una revisión que busca el
dialogo entre los principales
abordajes”, presentada en
el 1er. Congreso de estudios
urbanos: “Pensar la ciudad,
cambiar la ciudad Los retos
de la investigación en América Latina a comienzos de
siglo XXI”. Organizado por
el Programa Universitario
de Estudios sobre la ciudad
(Instituto de Investigaciones
Sociales-UNAM); el Instituto
del Conurbano (UNGS) y la
Revista Mundo Urbano. Los
Polvorines, agosto de 2011.
2 Véase, por ejemplo, Cimoli, M.; Primi; A.; Pugno, M.
(2006). “Un modelo de bajo
crecimiento: la informalidad
como restricción estructural”. Revista de la CEPAL n.
88. Donde rápidamente, antes que buscar entender los
procesos que denominan
“informalidad”, le adjudican
el papel de ser una de las
principales causantes del
bajo crecimiento de nuestras
economías!
3 Sin embargo, vale la pena
señalar que esto no es propio
sólo de las teorías urbanas y
regionales sino del pensamiento económico de la periferia en general, como da
cuenta Sztulwark (2003) al
señalar que el nuevo estructuralismo latinoamericano,
a diferencia del de posguerra (que tiene a Prebisch y la
CEPAL de los inicios como
sus principales exponentes),
denota una mayor preocupación por los aspectos profesionales (instrumentales y
metodológicos) que brindan
“legitimidad académica” al
economista con fuertes presiones por el formalismo; una
pérdida de radicalidad y, también, de originalidad al debilitarse el rasgo propiamente latinoamericano de los aportes
teóricos. Para más detalles,
véase: Sztulwark, S. (2003).
El estructuralismo latinoamericano. Fundamentos y transformaciones del pensamiento
económico de la periferia. Serie Informes de Investigación
n. 16. Los Polvorines, Instituto
de Industria, UNGS.
E C O N O M Í A
U R B A N A
Y
E C O N O M Í A
S O C I A L .
territorios concretos o los resultados que efectivamente alcanzan. Al respecto,
desde la perspectiva de la ES es preciso recordar los hallazgos de Fernández y
Vigil (2009) que, al evaluar políticas de clusters en Argentina, expresaron que era
posible alcanzar una competitividad regional sin inclusión social ni mejora de las
condiciones de vida.
En lo que sigue, se presenta brevemente a la ES como una subdisciplina y, luego,
se ilustra la institucionalización de la ESS en América Latina, poniendo atención sobre
algunos procesos organizativos urbanos. A continuación, se problematiza la vigencia
del enfoque de informalidad y, posteriormente, se plantea un necesario diálogo entre
la teoría de los dos circuitos de la economía urbana en los países subdesarrollados y la
ES. Finalmente, se esbozan algunas reflexiones.
La economía social en su carácter
de subdisciplina
4 Excede una presentación
detallada sobre la economía
social. Una síntesis de este
pensamiento desde la perspectiva aquí desarrollada, se
puede reconstruir a partir
de la Colección Lecturas de
economía social de ediciones
UNGS (http://www.ungs.
edu.ar/areas/publicaciones_temas/43). Para los temas aquí tratados, en particular: Coraggio (Org.) (2007).
La economía social desde la
periferia. Contribuciones latinoamericanas. UNGS-Altamira, Buenos Aires; Cattani,
A.; Coraggio, J. L.; Laville, J. L.
(2009) (Orgs.). Diccionario La
otra economía. Buenos Aires,
UNGS-Altamira-CLACSO; y la
Revista Otra Economía.
5 Definición que se plantea
por primera vez a raíz de las
discusiones en la formulación
del proyecto: “La economía
social y sus aplicaciones a las
economías urbanas, con especial referencia a la Región
Metropolitana de Buenos
Aires” (2009-2011), llevado
adelante en el Área de Sistemas económicos urbanos
del Instituto del Conurbano y
dirigido por Coraggio.
La ES como subdisciplina, en construcción, se nutre fundamentalmente de la
antropología económica, la sociología económica, la historia económica y la economía
política, para abordar “lo económico” como un objeto pluridisciplinario en el que los
principios de institucionalización en la sociedad (categoría de K. Polanyi) se vuelven
centrales para comprender la realidad abordada y lograr salirse de los economicismos
hegemónicos de la literatura económica actual.
De todas formas, excede el alcance del artículo presentar la ES. Apenas
expondremos algunas categorías centrales de Coraggio e iremos aplicándolas
en los puntos subsiguientes. Sin embargo, vale la pena remarcar que varios
autores han realizado un camino dialéctico desde las problemáticas urbanas
latinoamericanas a la ES, entre los que se destacan además de Coraggio, Singer,
Quijano y Federico Sabaté. 4
En este marco, se define la economía de las metrópolis latinoamericanas como
una economía regional mixta, abierta y en posición dominante con el resto del país
y de dependencia con el exterior, siendo una característica sustantiva la hegemonía
capitalista y la incompletitud del desarrollo del capital, en tanto subsiste un gran
sector de economía popular con trabajo organizado de forma autónoma. Por tratarse
de una región central, es preciso complejizar el sector externo de la economía mixta,
teniendo en cuenta tanto las relaciones con el resto del mundo como las que establece
con las provincias.5
Al esquema tradicional de dos subsistemas (Mercado-Estado; privadopúblico), Coraggio (2011a) contrapone un abordaje de la economía mixta con
tres subsistemas o sectores, jerarquizando por sobre otros (como el tamaño o la
propiedad de los medios de producción) el criterio de la racionalidad que sirve
para reagrupar los subsistemas y dar cuenta de las diversas unidades económicas,
recursos y relaciones intra e intersectoriales a través de las que cada sociedad
resuelve lo económico. Encontramos así, por un lado, la economía empresarial
capitalista, cuya principal unidad organizativa es la empresa privada, orientada
por la acumulación privada de capital; por otro, la economía pública, asentada
en la práctica económica de los distintos niveles estatales y las empresas públicas,
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orientados por una combinación de necesidades sistémicas, muchas veces
contradictorias, como el bien común (cuya definición es materia de lucha social)
y la gobernabilidad del capital; y, finalmente, la economía popular, orientada
por la reproducción de las vidas de los miembros de las unidades domésticas,
grupos y comunidades. Aquí, se entiende por economía popular la economía de
los trabajadores, es decir, de aquellos miembros de la sociedad que dependen
de la realización de sus capacidades de trabajo para obtener su sustento. Este
se da a través de la combinación del trabajo para la producción de satisfactores
de consumo doméstico, el trabajo para la producción de bienes o servicios para
la venta en el mercado y el trabajo organizado por patrones que contratan a los
trabajadores como fuerza de trabajo por un salario ya sea estatal o privado. En
este esquema, la ESS se encuentra en la intersección de los tres sectores, con un
fuerte componente en la economía popular organizada y la racionalidad de la
reproducción ampliada de la vida de todos (y no solo de sus miembros).
Hasta aquí la presentación básica, destacando que el campo de prácticas de la ESS
que trataremos a continuación cuenta con una diversidad de interpretaciones, siendo
los desarrollos de Coraggio distintivos debido a que, entre otras cuestiones, analizan
profundamente las prácticas de economía popular y la valoran como un punto de
partida, aunque no el único, para una estrategia política en territorios concretos.
Sobre las prácticas de ESS: otra
economía y otra ciudad son posibles
La institucionalización de la ESS en América Latina es evidente. Nos
concentraremos en este artículo en dicho proceso desde el punto de vista del
Estado, dejando para otros trabajos la institucionalización a raíz de las prácticas
alternativas de la sociedad civil. Aunque, en gran parte, estaremos dando cuenta
de ellas en virtud de que (salvo claramente en el caso de Venezuela) el accionar
del Estado apunta a dar reconocimiento y respuestas a prácticas existentes en la
sociedad civil en relación con la ESS y, por tanto, hablar del Estado es hablar
de ellas mimas. Incluso, más allá de que se identifiquen y/o se autodenominen
como tales o que no lo hagan y que, desde nuestro punto de vista teórico, pueden
ser categorizadas de esta forma (en virtud de su probada racionalidad por la
reproducción ampliada de la vida).
Aproximadamente, en los últimos diez años, varios países han implementado
políticas y/o programas, creado instituciones específicas y hasta establecido nuevas
constituciones que dan reconocimiento a las prácticas de la ESS y las conciben como
sujetos de derecho.
Al respecto, en los casos de Argentina, Brasil, Venezuela, Bolivia y Ecuador,
Coraggio (2011b) señala que, en términos generales, se encuentran diferentes
niveles de problematización sobre qué es lo económico y cuál es el rol del Estado
y los mercados; con Estados que están recuperando su papel interventor a través de
orientaciones “nacionales y populares” y que avanzaron en cierto distanciamiento (en
distinta medida según los casos) de las políticas más tradicionales de promoción del
autoempleo y la microempresa informal propias de la PREALC-OIT.
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6 Muñoz, R. (2013). “Políticas económicas poscrisis.
Aprendizajes y desafíos a
partir de la institucionalización de la economía social y
solidaria en América Latina”.
Capítulo elaborado en base
a la presentación realizada
en la Table ronde “Créer de
nouvelles politiques”, en el
marco del Colloque international “Penser et construire
de nouveaux référentiels
écononomiques”, organizado por el Ministerio Delegado de la economía social
y Solidaria. Bercy, París, 5
de febrero de 2013 y sobre
el cual actualmente se está
editando un libro. Dado que
circulará en francés, se retoman aquí algunas cuestiones
allí desarrolladas.
E C O N O M Í A
7 14 de las 24 provincias
argentinas crearon en los
últimos años unidades organizativas vinculadas a la ESS
y lo mismo hicieron las ciudades de Buenos Aires, Córdoba y Rosario; la mayoría
de estas instancias tiene el
rango de Direcciones y están
ubicadas bajo las órbitas del
“Desarrollo Social”. Para más
detalles, se sugiere la lectura
de: Hintze, S., Deux Marzi, M.
V., Costa, M. I. (2011). “Los
organismos públicos de promoción del trabajo asociativo
autogestionado en la Argentina” en Hintze, S.; Danani,
C.; (coords.). Protecciones
y desprotecciones: la seguridad social en Argentina
1990-2010. UNGS, Los Polvorines; disponible en: <www.
ungs.edu.ar>.
8 En Muñoz (2013) calculamos en base información del
Instituto Nacional de Asociativismo y Economía Social
(INAES), en Argentina hay
21.168 cooperativas, de las
cuales el 71,4% son de trabajo, las cuales crecieron más
de 13 veces desde el 2003 a
la actualidad, resultando de
gran impacto el Programa
Ingreso Social con Trabajo
(PRIST), creado en agosto de
2009 que propone la creación de cooperativas de trabajo de alrededor de 60 trabajadores cada una para la
ejecución de pequeñas obras
de infraestructura (http://
www.desarrollosocial.gov.
ar/ingresosocialcontrabajo/114).
9 Que como explica Coraggio
en el trabajo en el que nos
estamos basando (2011), el
buen vivir es la forma que
asume la reproducción ampliada de la vida en la constitución ecuatoriana, lo que
implica orientar el sistema
económico de manera que
permita lograr cuatro equilibrios: el equilibrio de los
seres humanos consigo mismos; el equilibrio entre los
seres humanos; el equilibrio
de los seres humanos con la
naturaleza; y el equilibrio entre las comunidades de seres
humanos. Una expresión de
esto en términos de política
pública, se puede encontrar
en el Plan Nacional para el
Buen Vivir (http://plan.
senplades.gob.ec).
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Y
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Resumimos muy sucintamente los casos de Argentina, Brasil y Ecuador,
seleccionados por la mayor cercanía a nuestra investigación y para dar cuenta de la
diversidad de contenidos que hacen a dicha institucionalización. Para hacerlo, nos
basaremos en el trabajo de Coraggio (2011b) y en el de Muñoz (2013).6
A la institucionalización de la ESS en Argentina el autor la denomina como una
“política social de economía social” que tomó fuerza luego de la crisis 2001-2002,
con una orientación asistencialista aunque con cambios simbólicos que plantean un
pasaje de “beneficiarios” a “sujetos de derecho”; muchas veces vinculada a la categoría
de “desarrollo local” en programas, planes y nuevas instituciones burocráticas;7 siendo
el Ministerio de Desarrollo Social de la Nación el principal actor que promueve
esta institucionalización con movimientos sociales y sindicales crecientemente
fragmentados.
Los sujetos jerarquizados en tanto destinatarios de estas políticas son
emprendimientos mercantiles populares o asociativos de muy baja escala, con una
creciente focalización en los sectores empobrecidos y/o con problemas de empleo y, en
los últimos años, con el “nuevo” cooperativismo de trabajo que reconfigura el mundo
cooperativo del país,8 a partir de lo que Vuotto (2011) denomina cooperativismo
inducido por el Estado.
A nivel del diseño de las políticas, son comunes las consultas a los destinatarios,
aunque no siempre son vinculantes. A su vez, a nivel de implementación, hay una
gran participación de diversos movimientos sociales, especialmente los más afines
políticamente al gobierno. Son destacables las políticas de gestión asociada que
promueven la ley de microcrédito.
Por su parte, al caso de Brasil Coraggio lo categoriza como “co-construcción de
políticas públicas para la economía solidaria”, que promueven el apoyo, la ampliación
y los encadenamientos de los emprendimientos del sector de economía solidaria,
con énfasis en sus componentes mercantiles, siendo dichas políticas, en su mayoría,
construidas con la participación de los movimientos de economía solidaria.
Se observa una institucionalidad muy interesante, entre la que se destaca la
creación de la Secretaría Nacional de Economía Solidaria (SENAES) en el marco
del Ministerio de Trabajo y Empleo (aunque la economía solidaria aparece en el
discurso de varios ministerios y políticas), el Foro Brasileño de Economía Solidaria
(FBES), la creación del Consejo Nacional de Economía Solidaria (CNES) como
órgano consultivo y propositivo, el Sistema Nacional de Comercio Justo y Solidario
siguiendo la demanda de la II Conferencia de Economía Solidaria (CONAES) y los
mapeamentos realizados fundamentalmente por la red UNITRABALHO.
En general, se trata de políticas de mayor alcance y más estructurales que en
el caso argentino aunque, desafortunadamente, investigaciones recientes arrojan que
(tanto en el caso de Brasil como en el de Venezuela no abordado en este artículo),
las prácticas no son tan intersectoriales ni transversales como sostienen los discursos
(HINTZE, 2010).
Por último, la institucionalización de lo que denominan como “economía
popular solidaria”, en Ecuador, es presentada por Coraggio (2011b) como una
propuesta “hacia un sistema económico social y solidario”, que se ve plasmado en la
Constitución de Montecristi (2008) que tiene el horizonte puesto en el buen vivir
(traducción del Sumaq Kawsay en quechua).9 Esta concepción plantea una nueva
relación entre economía, sociedad y naturaleza, la cual establece un uso racional de los
110
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recursos naturales, cambia las reglas de su apropiación (por ejemplo, el agua no puede
ser privatizada) y establece a la naturaleza como sujeto de derechos.10
Es en este marco que se da un reconocimiento al pluralismo económico, a través
de diversas formas de organización económica: pública, privada, mixta, popular y
solidaria. Por su parte, el sector económico popular y solidario está conformado por
las organizaciones de los sectores cooperativo, asociativo y comunitario, y las unidades
económicas populares (abarcando en ellas a las que se dedican a la economía del
cuidado, los emprendimientos unipersonales, familiares, domésticos, comerciantes
minoristas y talleres artesanales).
A su vez, en Ecuador encontramos una aplicación directa de estos contenidos de
la constitución en marcos normativos más específicos, como son la Ley Orgánica de la
Economía Popular y Solidaria y del Sector Financiero Popular y Solidario (2011) y su
reglamento (2012). Esta normativa fortalece instituciones estatales preexistentes como
el Instituto de la Economía Popular Solidaria (IEPS) en el marco del Ministerio de
Inclusión Económica y Social (MIES) y da lugar a la creación de nuevas instituciones
como la Superintendencia de Economía Popular Solidaria (SEPS).
Teniendo en cuenta estas institucionalizaciones, con las diversas denominaciones,
alcances y orientaciones, pondremos a continuación más atención a procesos más
específicamente urbanos. Si bien en la literatura urbana se suelen valorar las experiencias
de economía popular, fundamentalmente, prácticas de autoconstrucción de la vivienda
y mejoras de asentamientos, villas y barrios populares, es llamativamente dispar el
reconocimiento a iniciativas que han superado el horizonte de la supervivencia y que
dan muestras del potencial de la ESS a nivel socioeconómico.
Pese a las construcciones de barrios enteros por parte de movimientos sociales
(organizados, en general, bajo diversas formas de cooperativas) que exceden
ampliamente la satisfacción individual de las necesidades; y pese a la recuperación
de empresas por parte de sus trabajadores y la densificación de las cadenas en las que
participan, el campo de la EU sigue negándolos, dándoles un tratamiento marginal o
abordándolos con marcos teóricos inadecuados.
¿Con qué conceptos teóricos legitimados en el ámbito de la EU se pueden
explicar casos como la cooperativa de servicios públicos integrales “Comunidad
Organizada. Unidos para Crecer” Ltda. ?11 Se trata de un caso en cuya génesis
estuvo la organización de los vecinos de Cuartel V de Moreno (oeste del Conurbano
Bonaerense - Argentina) para el armado de un fideicomiso a través del cual
financiaron la instalación del gas natural en toda la localidad. Luego, llevaron
adelante el armado de cooperativas de trabajo en el marco del PRIST (ver nota
al pie 9), para el mejoramiento barrial y la promoción del trabajo. Actualmente,
están enfrentando una seria problemática en torno a la gestión de la basura. Estas
acciones, entre otras, dan cuenta de sus principios, motivaciones y racionalidad en
pos de la reproducción ampliada de la vida de todos.
Apelar a categorías como el capital social de los pobres o seguir poniendo la
lupa en la autoconstrucción doméstica, el autoempleo o el acceso a la ciudad a través
de los llamados mercados inmobiliarios informales, sin dar cuenta al mismo tiempo
de iniciativas colectivas como esta, obstaculiza el enriquecimiento de abordajes a
procesos urbanos que tienen vocación de cambio y el reconocimiento de experiencias
que ameritan ser jerarquizadas como sujetos y objetos de estudio y acción política en
el campo de los estudios urbanos, en general, y de la EU, en particular.
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111
10 En relación con este tema,
se sugiere profundizar con:
Acosta, A. (2010). El buen
vivir en el camino del postdesarrollo. Una lectura desde
la Constitución de Montecristi. Policy Paper 9, Friedrich
Ebert Stifgtung, Quito. Disponible en: <http://library.
fes.de/pdf-files/bueros/
quito/07671.pdf>.
11 Se sugiere la siguiente
tesis de la Maestría en economía social (ICO-UNGS) que
analiza, entre otros casos,
el de esta experiencia: Mutuberría Lazarini, V. (2007).
“Los servicios públicos urbanos como medios colectivos
para la producción y reproducción de la vida de los sujetos en sociedad desde la
perspectiva de la economía
social. Análisis de experiencias de gestión colectiva en el
Gran Buenos Aires”. Disponible en: <http://www.ungs.
edu.ar/cm/uploaded_files/file/posgrados/tesis/
Trabajo_final_tesis_Maestria.pdf>.
E C O N O M Í A
12 Coincidíamos entonces con
Lopes de Souza (2004) cuando
señalaba que los analistas de
la reforma urbana examinan
la reproducción de la fuerza de
trabajo en términos estrechos
y que no tratan, o lo hacen de
forma muy marginal, la esfera
de la producción. También
estábamos de acuerdo con su
planteo que apuntaba a “la
división del trabajo académico existente en las ciencias
sociales entre geógrafos, arquitectos, sociólogos y economistas que superenfatizan
aspectos parciales de un mismo problema general” (Lopes
de Souza, 2004: 38) como una
de las causas de la ignorancia
recíproca que observó entre
los promotores de los presupuestos participativos, la reforma urbana y la economía
popular, tan evidentemente
imbricados entre sí. Se sugiere
la lectura de este interesante artículo: Lopes de Souza,
M. (2004). “Reforma urbana,
orçamentos participativos e
economia popular: relaciones
de complementaridade” em
Revista Ciência e Cultura. v. 56,
n. 2. Disponible en: <http://
cienciaecultura.bvs.br/
scielo.php?pid=S00096725
2004000200019&script=s
ci_arttext>.
13 Disponible, por ejemplo,
en: www.hic-net.org/news.
php?pid=4329
14 Por ejemplo, véase el “Encuentro Intercultural por el
Buen Vivir del Campo y la Ciudad”, disponible en: <http://
pichinchaporelsi.blogspot.
com.ar/2011/04/encuentro-intercultural-por-el
-buen.html>.
15 Se recomienda la lectura de Hart, K. (2012). “How
the informal economy took
over the world”, disponible en la página que tiene al autor como uno de
los dos administradores:
<http://thememorybank.
co.uk/2012/10/17/the-informalization-of-the-world-economy/>. En la actualidad,
Hart está acercándose a la
ES, siendo muestra de ello
el libro co-editado con reconocidos autores del campo:
Hart, K.; J. L. Laville; Cattani,
A. D. (2010). The Human Economy. A Citizen’s Guide. London, Polity Press.
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Por otro lado, en línea con la preocupación apuntada en un trabajo anterior
(Muñoz, 2011), en el que señalábamos que las propuestas de reforma urbana tendían
a dejar de lado las cuestiones económicas más estructurales o a focalizar su atención en
los mercados de suelo y vivienda12, haciendo un recorte analítico de la población urbana
en su carácter de “habitantes”, es auspiciosa la emergencia de los foros sociales urbanos.
Según la Declaración del II Foro Social Urbano (NAPOLI, 2012),13 se observa que sí
tienen en cuenta la lucha por el trabajo y la vida tanto de los seres humanos como de la
naturaleza lo que implica, según sus propios términos, la distribución de las riquezas,
la soberanía alimentaria, la defensa de los bienes comunes, la problematización de lo
que denominan la globalización financiera y la democracia participativa, entre otras.
Los foros urbanos de distintas ciudades también ilustran esta tendencia: el
de Quito, por ejemplo, se plantea los lemas de “otra ciudad es posible” y de “otra
economía es posible” de forma inseparable, en un contexto en el que incluso se
está problematizando el buen vivir tanto a nivel urbano como rural en conjunto y
simultáneamente.14
El sector informal urbano:
la hegemonía que perdura
Al contrario de lo que se evidencia en la complejización e interesantes
evoluciones reseñadas en el punto anterior sobre las prácticas económicas urbanas
tanto reivindicativas como de construcción de satisfactores para la satisfacción de
necesidades sociales, a nivel teórico y como fundamente de muchas políticas, seguimos
encontrando que perdura la hegemonía del enfoque de la informalidad que no ven,
niegan o intenta deslegitimar tales prácticas.
Si bien, según Tokman (1995), existen varios enfoques del sector informal
urbano (PREALC, neoPREALC, empiricista, legalista, etc.), estos definen a las
unidades económicas casi de la misma forma y, en general, es remarcable la pérdida
de especificidad urbana.
El concepto de informalidad y el par formal/informal fue propuesto por Keith
Hart a principios de la década de los setenta a partir de un trabajo etnográfico
realizado en África. Sin embargo, años después, criticó tal categoría por ser estática y
dualista15. El concepto fue rápidamente apropiado por la OIT y adaptado al ámbito
latinoamericano a través de la PREALC, siendo hasta la actualidad sustento de
políticas públicas dirigidas a los sectores populares.
En general, a las unidades económicas denominadas informales -comúnmente
categorizadas como “microempresas informales”- se les atribuye una serie de
características, como por ejemplo: baja escala; baja capitalización por cantidad de
trabajadores (habiendo casi una obsesión por el indicador K/L); bajo nivel tecnológico
o muy simplificado; formar parte de mercados competitivos o ser la base de la pirámide
de oferta de estructuras oligopólicas, en actividades con bajas barreras a la entrada;
propiedad de los medios de producción, generalmente, de los miembros-trabajadores
(la categoría utilizada es “mano de obra”); ilegalidad parcial o total; generación de
excedentes reducidos, todo lo cual produce como resultado una “reproducción simple”,
debiendo aclarar aquí que se refieren a la reproducción del capital y no a la de la vida.
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En esta línea, en una de las primeras publicaciones sobre el enfoque en
Latinoamérica, Souza y Tokman (1976: 387) plantean la existencia de un mercado
de trabajo formal estratificado que permite visualizar el sector informal como el
último eslabón en la jerarquización de la actividad económica establecida por la
heterogeneidad estructural. Asimismo y, definen el sector informal como
[…] el conjunto de personas ocupadas en el servicio doméstico, los trabajadores ocasionales, los trabajadores por cuenta propia y los patrones, empleados, obreros y trabajadores
familiares ocupados en empresas cuyos efectivos no excedan de cuatro personas […] Se
utiliza también como criterio alternativo incluir en este sector a las personas que perciben
ingresos inferiores a un cierto mínimo, por lo común el mínimo legal, bajo el supuesto
de que las actividades de baja productividad que caracterizan al sector informal generan,
asimismo, ingresos reducidos.
A pesar de la diversidad de prácticas bajo la informalidad, este enfoque tiene una
clara orientación para las políticas públicas. La mayoría de las políticas que se derivan
de sus recomendaciones son de corte microeconómico, con énfasis en la simplificación
de la burocracia estatal para lograr la formalización; separación del negocio y la familia;
capacitación y crédito destinado a los microempresarios, con miras a lograr “el salto
de la microempresa informal a la empresa moderna”.16 No cualquier capacitación ni
crédito, sino modalidades específicas y de un alcance muy acotado, con una fuerte
complementariedad con las microfinanzas, especialmente, el enfoque minimalista.17
Desde hace años, varios autores vienen criticando estas propuestas. Se destacan,
entre estos, los planteos precursores de Santos (1975), Coraggio (1994, 1995) y
Pradilla (1995). Además de la cuestión estática y dual ya mencionada por el propio
Hart, otra de las cuestiones que se le suele criticar es la inutilidad de la “informalidad”
como categoría analítica, ya que bajo dicho paraguas pueden encontrarse actividades
y racionalidades tan heterogéneas como las actividades de la economía popular, de
la economía criminal, las de empresas capitalistas que evaden impuestos, e incluso
hasta los propios estados que precarizan el trabajo respaldándose en las normas de
la flexibilización laboral. Es tan cierto esto como que muchas de las iniciativas de
la economía popular son totalmente formales. Trabajos más recientes del enfoque
informal han reconocido esta situación, en sus propios términos:
[…] ni el sector informal opera absolutamente “en negro”, ni su opuesto, el sector moderno, lo hace con un irrestricto apego a la legalidad. Predominan en cambio las llamadas áreas grises […]: se cumple con ciertos requisitos de registro, pero no se pagan los
impuestos; se observa parte de las regulaciones laborales, pero no todas. Tal situación es
extensiva a las actividades modernas, particularmente en países con escasa disciplina fiscal
y reducida capacidad de fiscalización; obviamente, en ellas la ilegalidad absoluta es casi
inexistente, pero la legalidad parcial es también significativa. (TOKMAN, 2001: 16-17).
Sin embargo, en vez de profundizar sobre los grises, siguen trabajando sobre la
categoría de informalidad tanto a nivel de las empresas como del trabajo.
Por otro lado, propuestas como los de H. de Soto (2000) exacerban la visión
neoliberal del enfoque, al sostener que titularizar la propiedad de ciertos “activos
de los pobres”18 resuelve problemas de los microempresarios, por ejemplo, el acceso
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16 Esta expresión surge del
trabajo de campo realizado en mi tesis de maestría:
Muñoz, R. (2007) “Alcance
de las microfinanzas para el
desarrollo local. Microcrédito en el Conurbano Bonaerense: el Banco Social Moreno y Horizonte” en Muñoz,
R.; Verbeke G.; Carbonetti,
C.; Ozomek, S. (2007). Las
finanzas y la economía social. Experiencias argentinas. Buenos Aires, Editorial
Altamira.
17 Para más detalles al respecto, se sugiere leer la tesis
mencionada en la nota al pie
anterior.
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18 Un análisis profundo y
detallado de este enfoque se
encuentra en la compilación
de tesis de la Maestría en
economía social plasmada
en: Coraggio, J. L.; Costanzo,
V. (Eds.). Mentiras y verdades
del “capital de los pobres”.
Perspectivas desde la economía social y solidaria. Colección Lecturas de economía
social. Los Polvorines, IMAGO MUNDI-UNGS.
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al crédito formal por pasar a contar con garantías reales. Al respecto, enfoques más
interesantes sobre la informalidad urbana, que ponen el acento en las cuestiones del
hábitat popular, sostienen que existe un incumplimiento de estas promesas. En esa
línea, Calderón (2003) asegura que, en Perú, las familias con título de propiedad
prácticamente siguen sin acceder al crédito formal.
Otra cuestión crítica es que este enfoque está pensando en la inclusión de los
informales en los mercados que ya los excluyeron y donde no caben todos, salvo en
condiciones netamente desfavorables. Como plantea Vázquez (2010), se da un debate
entre modernizar y tolerar. Desde la vertiente de Tokman (2001), se diagnostica que
las microempresas informales deben adecuarse a las empresas modernas, focalizando el
problema en los sujetos que deben ser ayudados para realizar esta transformación con
las políticas señaladas más arriba. En cambio, para Portes y Haller (2004) el problema
está en la estructura económica capitalista periférica y no ven posibilidades de mejora
para estos sectores.
Desde la perspectiva de la ES, en definitiva, es preciso poner énfasis en la negación
por parte de este enfoque del pluralismo económico y en su permanente presión
sobre los sectores populares para que modifiquen sus prácticas según la racionalidad
capitalista. En este sentido, una de sus recomendaciones privilegiadas es la separación
de los gastos, inversiones y patrimonio entre “la microempresa” o “el negocio” y la
familia que lo lleva a cabo, lo que, según nuestro punto de vista, atentaría contra su
propia sostenibilidad.
De todas formas, la vigencia de la hegemonía de este enfoque perdura. Quizá una
ilustración preocupante de esto sea la aceptación que tuvo por parte de la CEPAL al
aggiornar la tesis de heterogeneidad estructural de Prebisch, planteando la existencia
de tres velocidades. Los países de la región presentan una estructura productiva más
heterogénea que en el pasado y que la de otras economías en desarrollo como las de
Asia oriental. Esta situación se puede representar, de manera esquemática mediante un
modelo de economía de […] tres velocidades, según la modalidad de inserción legal y
el tamaño de las empresas que la conforman:
– Un primer grupo está constituido por las empresas informales que, por su estructura y
capacidad, presentan la productividad relativa más baja y operan en un contexto que les
ofrece pocas oportunidades de desarrollo y aprendizaje.
– El segundo está integrado por las empresas formales medianas y pequeñas que, a su vez,
tienen dificultades para acceder a los recursos, especialmente financieros, y a determinados mercados de factores que les permitirían desarrollar su capacidad de competir.
– El último grupo abarca a las grandes empresas, nacionales y extranjeras, que muchas veces tienen un nivel de productividad cercano al de la frontera internacional, pero cuentan
con escasos encadenamientos al resto de la economía nacional y, en algunos casos, exhiben
baja capacidad de generación de innovaciones. (CEPAL, 2004: 90).
A pesar de las fuertes críticas a este enfoque y las evidencias empíricas que niegan
sus predicciones, manifestaciones como estas dan cuenta de que lamentablemente
siguen siendo fundamento de políticas públicas y encontrando eco en la academia.
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La teoría de los dos circuitos y la
economía social: un diálogo pendiente
Planteando una profunda crítica al enfoque del sector informal urbano, la teoría
de los dos circuitos de la economía urbana en países subdesarrollados fue desarrollada
por Milton Santos desde inicios de la década de los setenta (SANTOS, 2008 [1975])
y es permanentemente complejizada y actualizada, fundamentalmente, por geógrafos
brasileros, entre los que se destacan los trabajos de Silveira (por ejemplo, 2007, 2004).
Esta teoría considera que existen dos circuitos de la economía urbana,
tratándose de un “[…] verdadero paradigma nuevo de la geografía urbana y de la
planificación en los países subdesarrollados” (SANTOS, 2008: 38). Se trata de dos
circuitos económicos que surgen de la coexistencia de varias divisiones territoriales
del trabajo. Por un lado, el circuito superior (CS) que surge como resultado directo
de la modernización tecnológica y consiste en las actividades creadas en función de
los progresos tecnológicos de las personas que se benefician de ellos. Por otro lado,
el circuito inferior (CI) que surge como resultado de la misma modernización pero
como resultado indirecto; en él se desenvuelven los individuos que solo se benefician
parcialmente o no se benefician de los progresos técnicos recientes y de las actividades
ligadas a ellos.
La relación entre ambos es una oposición dialéctica, ambos son opuestos y
complementarios, aunque para el circuito inferior, la complementariedad adquiere
la forma de dominación o dependencia (SANTOS, 2008; SILVEIRA, 2007). El
CI es dependiente del CS y no tiene autonomía de significado (como la propuesta
del SIU) porque “[…] no tiene autonomía de existencia en la economía urbana”
(SILVEIRA, 2007: 150).
Siguiendo estos trabajos de Silveira, el papel de la tecno-ciencia, de la información
y de las finanzas explica la difusión de actividades bancarias, comerciales, industriales
y de servicios, frecuentemente orientadas a la exportación, que se localizan en
zonas modernas de la ciudad y componen el CS. Como resultado indirecto de esa
modernización, surge el CI que se instala allí donde el medio construido urbano se
encuentra deteriorado o menos provisto de equipamientos e integrado por formas
de fabricación, comercio y servicios sin uso intensivo de capital que satisfacen las
demandas de los estratos inferiores. Un bajo grado de capital se inmoviliza para
crear, a partir de relaciones técnicas y de organización poco sofisticadas, un número
significativo de puestos de trabajo.
A su vez, como fracción indisoluble del CS, se puede identificar el circuito
superior marginal (CSM), constituido por formas mixtas pertenecientes tanto a
las actividades heredadas como a formas de trabajo emergentes que participan,
subordinadamente, de la división del trabajo hegemónica. Amerita aquí tomar un
ejemplo que permite ilustrarlos: “Si los objetos vinculados a las telecomunicaciones
y a la reparación de máquinas de base industrial amplían el universo del CSM por la
demanda de calificación y de instrumentos específicos, la reparación de buena parte
de la actual base material doméstica fundada en el consumo globalizado (como los
electrodomésticos y a veces los vehículos) se refugia frecuentemente en el circuito
inferior” (SILVEIRA, 2004:3).
A pesar de las escuetas presentaciones de las categorías centrales de la T2C y
la ES, es notable la potencialidad que puede tener ponerlas en diálogo y llama la
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115
E C O N O M Í A
19 Para una mayor rigurosidad, cada uno de los puntos
de encuentro y discusión que
señalamos a continuación, requieren una mayor ilustración
y fundamentación. Sin embargo, por razones de espacio
y por tratarse de una primera
exploración, consideramos
que alcanza para dar cuenta
de la importancia del dialogo
que se ha planteado.
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Y
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S O C I A L .
atención que aún esto no se haya encarado19. Dicha potencialidad proviene del hecho
que ambas teorías tienen una fuerte raigambre latinoamericana, con un diagnóstico
que se preocupa tanto por “lo económico” como por “lo social” y “lo político”, viendo
que ambas rompen con la usual y artificial separación entre dichas dimensiones.
A su vez, ambas consideran las causas y no solo las consecuencias de las
problemáticas urbanas, entendiendo que es el sistema capitalista el que empuja a las
peores condiciones de vida y de trabajo de los sectores populares y, por tanto, ambas
se han ocupado de criticar al enfoque del SIU, en particular, su visión dual de los
procesos socioeconómicos.
Por otro lado, es relevante observar que ambas son multiescalares, considerando
tanto la escala barrial, como la urbana, regional, nacional y global, diferenciándose de
la oposición más generalizada local/global. Al respecto, es preciso recordar que cuentan
con definiciones propias del espacio, alejándose de las nociones tanto administrativo/
políticas como de la economía espacial que sigue proponiendo un espacio euclidiano
bien distinto al del “territorio” realmente existente.
Es destacable, por último, que las dos tienen capacidad de incidencia para
ayudar a transformar el campo de la EU al constituirse en verdaderas escuelas, por
contar con referentes académicos comprometidos con la permanente actualización y
complejización de sus elaboraciones teóricas y con la difusión y formación.
Partiendo de estos puntos de encuentro, que a nuestro juicio no son para nada
insuficientes, señalamos provocativamente algunas cuestiones que pueden llevar a
interesantes discusiones.
1. Sobre la especificidad urbana
20 El número de página corresponde a la introducción
del libro, en la versión disponible en: <www.coraggioeconomia.org>.
21 En los últimos años, desde
el Área de Sistemas económicos urbanos del ICO-UNGS,
se está encarando la problematización de la economía
de las ciudades desde la
perspectiva de la ES y organizando actualmente dos volúmenes sobre la temática, con
contribuciones originales de
autores destacados del campo en América Latina.
Vale la pena señalar, en primer lugar, una cuestión sobre la génesis y evolución
de la corriente de ES en el marco de la cual trabajamos. En los propios términos
de Coraggio: “[…] a medida que avanzábamos en la elaboración, se fue dando un
movimiento conceptual que sigue esta secuencia: crítica del concepto empiricista del
sector informal urbano _ economía popular urbana _ variantes de ESS _ economía del
trabajo” (CORAGGIO, 2004: 5),20 siendo la economía del trabajo una construcción
posible de una economía no organizada según la lógica del capital sino de la
reproducción de la vida a partir de la desalienación del trabajo y, como decíamos al
inicio, la ESS un campo de prácticas orientado por la reproducción ampliada de la
vida de todos.
De esta forma, si bien la ES surge ocupándose fundamentalmente de la
problematización de la economía y la sociedad urbanas, se fue distanciando de la
ciudad y transitando hacia una teoría más general.21
En cambio, la T2C surge de las economías urbanas de los países subdesarrollados
y en ese ámbito ha trabajado desde su génesis. Creemos que esto trae aparejadas las
ventajas de toda especialización y que con los esfuerzos de actualización que se siguen
realizando, se lograría captar especificidades y transformaciones de las ciudades que
pueden perderse en la ES.
116
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RUTH MUÑOZ
2. Sobre las pluralidades de racionalidades económicas y las unidades
de análisis privilegiadas
La ES reconoce en la economía popular que puede darse una racionalidad
económica alternativa a la privada capitalista y la pública en tanto que, entre otras
cuestiones, se da una unidad entre la producción y la reproducción estando la primera
sujeta a la segunda y concebida como un medio y no un fin en sí misma. De esto
se desprende que la unidad de análisis jerarquizada por la ES sean las unidades
domésticas populares y los emprendimientos asociativos. No obstante, vale la pena
aclarar, no se trata de una idealización de la economía popular como pueden sostener
otras corrientes de la ES, sino que se observa la heterogeneidad de lógicas vigentes y
no se le adjudica ex ante una estructuración de las relaciones de determinada calidad
(reciprocidad, solidaridad, etc.).
Si bien la T2C subraya la dependencia del trabajo de los agentes del CI y
el CMS para su vida y analiza cómo se prioriza el trabajo por sobre el capital,
planteando irónicamente un comportamiento “irracional” (desde el punto de
vista hegemónico claro está),22 no ve una racionalidad económica necesariamente
alternativa (al menos, de lo que pudimos captar en estas primeras lecturas que
estamos realizando). A su vez, la teoría no trata la salida asociativa y las unidades
domésticas populares como un sujeto de análisis, al priorizar a las empresas de
pequeña escala y, de hecho, subrayando un distanciamiento con “[…] la literatura
específica [en la que] es frecuente [encontrar] la asociación entre esta economía de
escaso capital, tecnología y organización, y el empleo familiar” (SILVEIRA, 2007:
156). Esta distancia se sostiene en datos que revelan que en el CI y en el CMS no
predominan las relaciones de parentesco, salvo en algunas ramas de la producción
determinadas entre las que se destaca la textil.23
Por su parte, una encuesta realizada desde la perspectiva de la ES en ciudades
de Argentina en 2005 muestra lo contrario (CORAGGIO; FEDERICO SABATÉ,
2010).24 Lamentablemente, en la publicación no se encuentra desagregado el nivel
de relación de parentesco por rama de actividad, lo que sería interesante de indagar.
Más allá de estas diferencias en los resultados, ambos evidencian la importancia de
realizar análisis territoriales y sectoriales que aborden todos los agentes socioeconómicos
realmente existentes, sin forzar la realidad como suelen hacer las investigaciones del
SIU, de forma tal de poder alcanzar diagnósticos más acabados sobre la economía
urbana realmente existente.
3. Sobre el tratamiento de las relaciones entre los distintos circuitos/
subsistemas y las características de los trabajos empíricos llevados
adelante por cada teoría
Ambas teorías plantean las complejas relaciones entre los circuitos (según la
categoría de la T2C) o subsistemas (ES), las asimetrías de poder que tienen el CI y
el CMS o la economía popular con respecto a las empresas capitalistas y al Estado.
Sin embargo, analizando algunos de los últimos trabajos empíricos llevados adelante
por ambos, se observa que la ES pone mayor acento en la economía popular o en
las experiencias de ESS que en el trabajo asalariado o el papel de las corporaciones
globales. Por su parte, la T2C realiza trabajos empíricos de mayor alcance, que logran
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117
22 Como explica Silveira:
“Destinar una proporción
mayor de los rendimientos al pago de mano de
obra en lugar de aumentar y modernizar el capital
fijo (sobre todo localización y maquinarias) no
deja de ser, en el período
actual, una producción
de irracionalidad. Una
buena localización, capaz
de atraer grupos de población de mayor poder
adquisitivo, así como la
compra de equipos más
modernos, que ahorran
mano de obra, sus cargas
sociales y los eventuales
conflictos, serían, ciertamente, formas de producción de racionalidad.
Esencia de las políticas
del poder público y de las
grandes empresas, esa
racionalidad se revela limitada, sobre todo en las
grandes metrópolis […]
Sin embargo ¿cuál es la
racionalidad de una economía urbana que desprecia, como en Salvador,
cerca del 30 % de su PEA?
El hecho es que cada día
hay un número menor de
actividades y de empleos
relacionados con esa racionalidad hegemónica y
esto es más visible en las
grandes ciudades de Brasil. Frente a esa realidad,
una enorme parte de la
población debe encontrar
una actividad” y un lugar
dentro de la ciudad ”que
sea capaz de permitir su
supervivencia. Es una economía de abajo hacia arriba (SANTOS, 1996; 2000)
que parte del principio de
que los más pobres, los
vecinos, los demás trabajadores podrán consumir
los productos y servicios
ofrecidos. Es una cooperación que se completa en la
contigüidad y, por lo tanto, no necesita ser fluida,
ni veloz, ni competitiva.
Esa cooperación puede
así ser lenta, y por eso es
vista como irracional” (SILVEIRA, 2004: 6-7).
23 Los resultados que
presenta Silveira son los
que siguen: “Del total de
las encuestas realizadas,
63,4% señalaron que no
utilizan mano de obra fa-
E C O N O M Í A
miliar, aunque la distribución del fenómeno es bastante heterogénea. Por
ejemplo, en las fábricas de
tejidos y confecciones de
Fortaleza, el empleo familiar es frecuente para más
de la mitad de las firmas
investigadas. Semejante
es la situación de los negocios de materiales de
construcción y de los comercios de herramientas
y herrajes en el centro antiguo de Campinas. Cerca
de la mitad de los agentes
del CI como mercados y
almacenes, casas de variedades y mercerías, bares y
restaurantes, servicios de
reparación, alquiler de videos, cerrajeros, ópticas y
relojerías contratan mano
de obra familiar. Ese tipo
de empleo es menos relevante en las ciudades de
San Pablo, Rio de Janeiro,
Porto Alegre y Goiânia. En
San Pablo menos del 30%
de las firmas encuestadas
utiliza mano de obra familiar (SILVEIRA, 2007: 156).
24 Las relaciones de parentesco en 611 emprendimientos asociativos mercantiles
son del 59,1%, en un universo compuesto por varias
ramas de la producción entre
las que se destacan la producción textil (23,4% de los
emprendimientos), seguida
de cerca por la elaboración
de alimentos (22,6%) (CORAGGIO; FEDERICO SABATÉ,
2010: 47; 37). La relativa
predominancia textil no parece de todas formas estar
sesgando los resultados de
la muestra no representativa,
en virtud de que ni llega a
constituirse en un cuarto de
la misma.
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S O C I A L .
cubrir varias ramas sectoriales y varias metrópolis brasileñas, teniendo en cuenta desde
el fenómeno de las moto-taxis hasta la topología de las corporaciones globales.
Sin embargo, vale tener en cuenta las diferentes condiciones de producción
académica que existen en los países que estamos tomando como referencia (Argentina
y Brasil), siendo el bajo alcance empírico una característica de toda la producción
académica sobre la economía de la RMBA como señalan Palma y Borello (2010).
4. Sobre el papel de las políticas públicas
Del análisis realizado pareciera que la T2C pone mayor énfasis en la comprensión
de los procesos socioeconómicos desde las actividades empresariales a lo largo de los
distintos circuitos que de las políticas públicas. A su vez, se observa una lectura de las
intervenciones del Estado en favor del circuito superior. En el caso de la ES, vemos
interés tanto en los agentes populares como en el Estado, con una visión del mismo
como regulador de la relación capital/trabajo, lo que implica también la búsqueda
del mantenimiento de las condiciones de gobernabilidad deseables en intervenciones
siempre contradictorias, con márgenes de acción y espacios en los que se da lugar a
prácticas más participativas (como puede ser el presupuesto participativo) y hasta la
co-construcción de las políticas. En este marco, es precisamente en esas interfaces en las
que el Estado, junto con una sociedad organizada, lleva a cabo acciones que favorecen
a la economía popular urbana y las experiencias de ESS, con una permanente crítica
a las políticas sociales focalizadas y a la necesidad de formulación e implementación
de políticas socioeconómicas (por ejemplo, CORAGGIO, 1999; HINTZE, 2007).
Podríamos seguir desarrollando más puntos de encuentro y desencuentro,
buscando las posibilidades de construcción teórica articulada entre ambos abordajes.
Sin embargo, creemos haber ilustrado lo suficiente como para dar sustento al puntapié
inicial para encarar dicho diálogo.
Reflexiones finales
La institucionalización de la ESS en América Latina es evidente, así lo indican
diversas prácticas de ESS, políticas y hasta nuevas constituciones como en Ecuador y
Bolivia. Por su parte, a nivel de las prácticas reivindicativas sobre lo urbano, se da una
creciente complejización de la mirada sobre la economía de las ciudades, antes muy
concentrada en el mercado de suelo y la vivienda.
Desarrollos de esta complejidad siguen marcando la necesidad teórica de avanzar
en un tratamiento integrado de forma compleja de los mundos del hábitat y demás
esferas reproductivas (como el cuidado, la protección social, el consumo, etc.) y el
mundo del trabajo y la producción que se dan en nuestras ciudades.
Sin embargo, se mostró que perdura la hegemonía de la informalidad, a pesar de
las críticas, de la falta de evidencia empírica sobre sus predicciones y de la encarnación
del proyecto neoliberal en sus interpretaciones teóricas y recomendaciones de política.
Por otra parte, prácticamente no se detectan intercambios entre sus enfoques
críticos. Al respecto, este artículo propone exploratoria y provocativamente un diálogo
entre la T2C y la ES, llamando la atención sobre el hecho de que a pesar de los
varios puntos de encuentro entre ambas, existe una cuasi ignorancia recíproca. En
118
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RUTH MUÑOZ
posible, una vez más, que los recortes disciplinarios sean la principal causante. Si bien
la ES se basa en un tratamiento pluridisciplinario de lo económico, en las primeras
formulaciones prevalecía la economía, mientras que en el caso de la T2C se ve el
predominio de la geografía. Esto plantea la iniciativa de encarar el trabajo académico
de forma tal de superar los recortes disciplinarios que operan sobre la ciudad en pos de
una necesaria integración analítica.
En esta línea creemos, en particular, que el establecimiento de tal diálogo
constituye una deuda del campo y un desafío a encarar para la construcción de mejores
diagnósticos sobre nuestras ciudades y, en el mejor de los casos, para concretizar aportes
tanto en la formulación y evaluación de políticas como en la creciente complejización
de las estrategias de las organizaciones y movimientos involucrados en las disputas
por el derecho a la ciudad y las mejores condiciones de trabajo y de vida de los seres
humanos y la naturaleza.
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119
Ruth Muñoz é Investigadora
docente del Área Sistemas
Económicos Urbanos del Instituto del Conurbano de la Universidad Nacional de General
Sarmiento (UNGS). Coordinadora académica de la Maestría en Economía Social de la
misma universidad. E-mail:
<[email protected]>.
E C O N O M Í A
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A b s t r a c t The urban economy has been hardly influenced by spatial proposals
and economicism. In Latin America, while the institutionalization of social and solidarity
economy of the last few years shows a growing economic pluralism, in the urban economy field
persists the hegemony of urban informal sector perspective, and its pressures of transforming
in capitalist every popular economy practice. Seeking for recognition of social economy
in this field, the article succinctly illustrates social and solidarity institutionalization in
the region and suggests a provocative exploration to put in dialogue social economy with
two circuits of urban economy theory. Such a dialogue is considered as a debt, which we
understand could contribute to dispute the field, to get better explanations and also to
transform in a progressive sense the economy of our territories.
Keywords:
urban: economy; two circuits of urban economy; social economy;
social and solidarity economy; popular economy
120
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Artigos
MOVILIDAD SOCIAL ESPACIAL
EN LOS ASENTAMIENTOS
INFORMALES DE BUENOS AIRES
Jean-Louis van Gelder
María Cristina Cravino
Fernando Ostuni
Resumo
Como na maioria das cidades da América Latina, uma das formas de acesso
central à terra e à habitação para os setores populares em Buenos Aires é através da criação de
assentamentos informais. Este artigo analisa o desenvolvimento da informalidade urbana,
os padrões de mobilidade social e trajetórias residenciais em empreendimentos informais e
na Área Metropolitana de Buenos Aires, durante as últimas décadas. Usando a informação
quantitativa (gerada com pesquisas próprias) e as informações qualitativas (obtidas através
de entrevistas em profundidade, complementadas pela observação de campo), pretendese mostrar a existência de uma variedade considerável nas perspectivas e estratégias que
os atores usam para construir a posse segura de sua casas. Nesta base, além disso, o texto
discute como as políticas públicas e marcos legais constituem não só uma condição para
o desenvolvimento da informalidade como um fenômeno, mas até mesmo influenciar a
forma e as características adquiridas.
Pal avras-chave:
assentamentos informais; mobilidade social;
movilidad residencial; Buenos Aires; política pública.
Introducción
La intención de este artículo es mostrar las diferentes lógicas de crecimiento
entre las dos modalidades más importantes de urbanizaciones informales del Área
Metropolitana de Buenos Aires: los “asentamientos” y las “villas”.1 Tomando como
punto de partida el surgimiento de cada una de estas tipologías en relación con su
contexto histórico, social y económico, desde hace décadas coexisten y presentan
nuevas características en relación con la dinámica social que les dio origen. De
este modo, analizar en perspectiva las diferencias y continuidades en la población
que habita en uno y otro tipo de barrio, a partir de ciertos ejes transversales, puede
contribuir a arrojar luz sobre los cambios acontecidos no sólo en las características de
una y otra, sino del hábitat popular metropolitano.
En las primeras dos secciones partimos de reconstruir en proceso que dio origen
a cada una de esas formas, haciendo hincapié en la dinámica social y económica
general, pero también atendiendo a las acciones estatales específicas que incidieron en
las posibilidades de acceso al suelo y a la vivienda. Luego, identificamos algunas de las
características predominantes en los barrios informales del AMBA en la actualidad, a
partir de su desarrollo durante las últimas dos décadas. Sobre esa base, analizamos en
R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 5 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 1 3
123
1 Utilizaremos los términos
“villas” y “asentamientos”
para referirnos a cada tipología en forma específica y diferenciándolos del genérico
“asentamientos o barrios informales” que aglutina a las
dos formas predominantes
del hábitat popular en Buenos Aires y sus alrededores.
M OV I L I D A D S O C I A L Y E S PA C I A L E N L O S A S E N TA M I E N TO S
forma transversal ciertos aspectos que permiten observar las continuidades y rupturas
entre los residentes de las villas y los asentamientos partiendo de un conjunto de
interrogantes que nos permiten identificar las dinámica actual en la movilidad social y
espacial en cada uno de estos barrios: cómo incide la localización en los habitantes de
los asentamientos informales, cuáles son las motivaciones para permanecer o cambiar
de lugar de residencia, qué importancia se asigna a la perspectiva de formalizar la
situación legal en cuanto a la tenencia de la vivienda, qué diferencias se observan
en las trayectorias habitacionales de los residentes en villas y en asentamientos,
y cómo problematizan a relación entre el barrio y “el afuera” en cada lugar. Estos
puntos son abordados a partir de análisis de dos encuestas y de una serie de entrevistas
en profundidad, realizadas en diferentes “villas” y “asentamientos” del AMBA.
Finalmente, presentaremos algunas reflexiones que, lejos de intentar presentar
conclusiones taxativas, intentan abrir interrogantes y realizar aportes al debate público
en torno al problema del acceso a la vivienda y del derecho a la ciudad.
Las “villas”: surgimiento y desarrollo
histórico
2 Existen algunas referencias
a pequeñas agrupaciones de
viviendas precarias cerca de
basurales en la zona sur de
la ciudad, pero no llegan a
constituir un barrio, a fines
del siglo XIX.
Desde fines del Siglo XIX hasta la década del 40, los migrantes que provenían de
Europa y llegan a Buenos Aires se hospedaban en cuartos de los llamados “conventillos”
(inmuebles con varias habitaciones, donde los residentes compartían instalaciones como
el baño y la cocina y un patio común), pagando alquileres elevados en condiciones de
hacinamiento. Esta modalidad fue desapareciendo por que las autoridades adoptaron
políticas urbanas higienistas combinadas con represivas, ya que tanto se quería evitar
la propagación de enfermedades como la tuberculosis o cólera como impedir que se
transmitieran ideologías de izquierda entre los trabajadores que habitaban allí. Ante la
crisis mundial de 1930 y la expansión masiva de la desocupación, muchos trabajadores
migrantes no podían pagar un alquiler y se asentaron en construcciones precarias en las
áreas centrales de la ciudad e inclusive en vagones de trenes que no funcionaban cerca
de las estaciones ferroviarias terminales. Así se fueron conformando las “villas miseria”,
el segundo término para connotar que se trataba de barrios donde se concentraba la
pobreza. Si bien la primera urbanización informal de Buenos Aires data de la década de
1930,2 es recién a partir de los años ’50 que los asentamientos informales, nombrados
como las “villas miseria”, adquieren relevancia como uno de los emergentes del
problema de la vivienda popular. En sus orígenes, las “villas” funcionaban como un
espacio habitacional transitorio para los trabajadores inmigrantes europeos en plena
crisis mundial. Pero al poco tiempo se pobló de migrantes internos cuando cambió en
un contexto debido a la adopción por parte de del Estado de un modelo productivo
centrado en la sustitución de importaciones, que derivó en la expansión del mercado
interno. A partir de la década del 40, las oportunidades de empleo, en un ciclo de
movilidad social ascendente, unido a una legislación permisiva en materias de uso
del suelo y a la disponibilidad del mismo a precios accesibles en la periferia, junto a
un sistema de transporte subsidiado, aseguraban que la mayoría de los trabajadores
migrantes externos o internos pudiese mudarse a una vivienda en condiciones legales
al cabo de unos pocos años de haber llegado a la ciudad (TORRES, 1975).
124
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JEAN-LOUIS VAN GELDER, MARÍA CRISTINA CRAVINO, FERNANDO OSTUNI
Hacia fines de la década de 1940, la política de sustitución de importaciones llevó
a la concentración de las industrias en los alrededores de Buenos Aires y atrajo mano
de obra hacia ese territorio, mientras que en las zonas de producción agropecuaria
se generaba un proceso de mecanización del campo, que expulsaba mano de obra
(TORRES, 1975). Desde fines de la década del 40 hasta principios de los 50 unas
200.000 personas llegaron a Buenos Aires en el marco de este proceso (KEELING,
1996). En consecuencia, entre 1947 y 1960 la población del área conurbana de la
Ciudad de Buenos Aires creció más del doble y, a pesar de las políticas habitacionales
y del elevado nivel de inversión pública en vivienda social, la creación de nuevas
viviendas formales fue sobrepasada por el tamaño de la migración (KEELING, 1996).
Las “villas” rápidamente se poblaron de migrantes internos, desapareciendo casi por
completo los europeos.
Durante la década del ’60, nuevamente se modifica parcialmente el perfil de los
habitantes de estos barrios, al llegar un número considerable de población migrante
proveniente de países limítrofes, principalmente de Bolivia y Paraguay. Esta fue una
de sus formas de lograr un lugar para vivir en la ciudad, manteniéndose la idea de
que fuera un lugar transitorio, aunque esa transitoriedad no fuese tal. De esta forma,
la “villa” va consolidándose como un tipo de barrio conocido y reconocido por
todos los habitantes de la ciudad. Siguiendo a Yujnovsky (1984), la población de los
asentamientos informales de Buenos Aires creció en promedio por encima de un 8%
anual entre 1950 y 1970.
En general, las “villas miserias”, que luego pasar a ser llamadas simplemente
“villas” se ubicaron en terrenos vacantes, predominantemente de propiedad estatal,
entrando en conflicto con la normativa urbanística por la forma de la planta urbana
y del tipo de construcción que allí se asentaba. Se destacan por contar con una
trama irregular, con pasajes angostos y “laberínticos”, y condiciones de habitabilidad
deficitarias (CRAVINO, 2006). Debido a la falta de presencia de la regulación estatal,
los habitantes crearon organizaciones internas para normar la vida cotidiana en los
barrios, principalmente para supervisar la distribución de los lotes o fomentar mejoras
en el acceso a los servicios públicos en cada uno de los barrios. Curiosamente, la
primera organización de vecinos surge a partir de clubes de fútbol fundados por los
residentes, los llamados entonces “villeros” (ZICCARDI, 1983). Para comienzos de la
década de 1970, estas organizaciones adquirieron gran envergadura trascendiendo a
cada uno de los barrios y conformaron lo que se autodenominó “movimiento villero”,
alcanzando en ese entonces su punto máximo de desarrollo. Esto implicaba la creación
de una organización de segundo grado conformada por delegados de diferentes villas
que hacían oír sus preocupaciones y demandas hacia el Estado y adquirieron un
fuerte nivel de politización, acompañando a la sociedad argentina y contando con la
presencia de sacerdotes católicos comprometidos con la Iglesia para el Tercer Mundo.
Este proceso organizativo y participativo fue interrumpido cuando la dictadura
militar asumió el gobierno en el año 1976 (permaneciendo hasta 1983) y puso en
marcha una política de erradicación de villas en la Capital Federal, generando una
fuerte disminución en su cantidad de habitantes que pasó de más de 200.000 personas
a poco más de 10.000 a comienzos de la década del ’80 (CUENYA, 1993). Con el
paso de los años, estos barrios fueron nuevamente repoblados y en la actualidad están
alcanzando la misma magnitud que antes de iniciarse dicho proceso de erradicación.
Paralelamente, en la Provincia de Buenos Aires (jurisdicción donde se encuentran
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los municipios conurbanos de la Ciudad de Buenos Aires) en 1977 el gobierno militar
promulgó el Decreto ley 8.912 de uso del suelo. Se propuso interrumpir el veloz
crecimiento de los loteos populares, la modalidad predominante de acceso formal al
suelo urbano para los sectores populares. Esta norma marcaba nuevos estándares y
prohibía realizar loteos para usos urbanos sin la infraestructura correspondiente. Dicha
medida conllevó un aumento considerable en los precios del suelo e interrumpió la
autorización de nuevos parcelamientos y, así, condujo a los sectores populares a la
informalidad urbana. Pocos años después de esta medida, surge la modalidad de la
ocupación organizada de tierra vacante, conocida como “asentamiento”. Éstos se
diferenciaban de las villas por mimetizarse a la trama urbana regular y resultar en
menor densidad habitacional al establecerse sólo una familia por lote. Tal como las
villas, cada grupo familiar autoconstruía su vivienda.
Nuevos modos de informalidad:
la génesis del “asentamiento”
3 Esto es, a menudo son terrenos propensos a inundaciones o al lado o en vertederos antiguos o tierras que son
difícil de explotar comercialmente debido a restricciones
legales (CRAVINO, 2001).
Las leyes y políticas implementadas por la última dictadura militar, junto con
las transformaciones económicas promovidas durante este período, crearon una
situación en la cual amplios sectores de la población fueron empujados a la pobreza
y encontraron un lugar en la periferia de la ciudad, donde se produjeron las primeras
ocupaciones de tierras. Estos “asentamientos” presentaban diferencias respecto de
las “villas” en una variedad de aspectos. Los asentamientos son el resultado de
una ocupación organizada, desarrollada en un momento específico y acotado. Los
ocupantes, en general algunos cientos de familias, invaden colectivamente una
parcela de tierra vacante pública o privada, sobre la cual construyen velozmente sus
primeras viviendas con materiales precarios, las que luego consecutivamente van
mejorando o construyendo en firme. Además, los asentamientos difieren de las villas
en su forma; las últimas densamente pobladas de manera espontánea, sin ningún
patrón prefijado, mientras que los asentamientos presentan una forma urbana
definida, con terrenos delimitados en parcelas y el amanzanado rectangular similar
al de la ciudad formal, siguiendo así los requerimientos de la normativa urbana.
Mientras las villas tienden a estar ubicadas en áreas centrales en la ciudad (capital
federal y primer cordón del conurbano bonaerense), los asentamientos predominan
en la periferia urbana.
Hay una lógica clara que explica la forma espacial y organizativa que predomina
en la conformación de los asentamientos. Por un lado, los primeros asentamientos
generaron una estrategia defensiva hacia un Estado hostil, que respondió a su presencia
con acciones orientadas hacia su erradicación (MERKLEN, 1997). Comparados con
las ocupaciones llevadas a cabo en forma aislada por individuos o grupos familiares
solos, las alternativas colectivas y organizadas tenían mejores posibilidades de resistir
los intentos de erradicación debido a su visibilidad y organización social. Esto también
explica su ubicación en la periferia urbana en tanto hay menos incentivos para
reaccionar de parte de los propietarios de los terrenos (ya sean estatales o privados),
ya que además por lo general los terrenos no eran aptos para el loteo, debido a estar
cercanos a basurales, estar en áreas inundables o simplemente muy alejados de los
medios de transporte.3
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JEAN-LOUIS VAN GELDER, MARÍA CRISTINA CRAVINO, FERNANDO OSTUNI
Además, a diferencia de las villas, los asentamientos han estado desde sus
inicios orientados hacia la regularización de la situación de tenencia del suelo y sus
habitantes han intentado activamente obtener su legalidad a través de la organización
y gestiones ante el Estado. Este aspecto también permite explicar por qué esta forma
de ocupación intenta cumplir con los parámetros establecidos en la legislación de
usos del suelo, tales como la dimensión mínima de cada lote y anchos de calle.
Difícilmente se trate de una coincidencia el hecho de que casi inmediatamente
después de la interrupción de los loteos como resultado de la sanción del Decreto
ley 8912, comenzaran a generarse asentamientos.
En un contexto de represión política y reestructuración económica con una lógica
excluyente, la política pública de la última dictadura militar clausuró las opciones
habitacionales en las áreas centrales de la ciudad, condicionando así la localización de
la nueva informalidad hacia la periferia, mientras que la legislación de uso del suelo
sancionada en ese momento inhibía las opciones de tierra formal a precios accesibles,
consecuentemente contribuía a la emergencia del fenómeno de las tomas de tierra,
influyendo así también en la forma particular o formando la informalidad.
La idea de “no hacer una villa” y “diferenciarnos de la villa” como meta para
facilitar la futura regularización dominial y, al mismo tiempo, para mejorar evitar el
estigma que conlleva esta forma de habitar en la ciudad. Aun cuando compartan misma
situación de estar fuera de la legalidad con las “villas”, y alberguen poblaciones con
niveles similares de pobreza, en términos de identidad percibida, desde la perspectiva
de los residentes el asentamiento debiera ser claramente distinguido de la “villa”, aún
cuando el resto de la sociedad en general no haga esta distinción. Esto implica que
entre las formas legítimas de habitar la ciudad, el “asentamiento” estaría en un estadio
más “tolerable” a los actores de poder en la ciudad. En la sección siguiente haremos
foco en comparar estos dos tipos de urbanización informal y la influencia atribuible
a los modos específicos de desarrollo y organización social propios de cada tipología.
Una característica que resalta respecto de otras ciudades latinoamericanas es que
en Buenos Aires, en especial a partir del retorno de la vida democrática –como ya
mencionáramos- ha existido una mayor tolerancia a las tomas de tierra. Tal vez por
eso la figura del “urbanizador pirata”, tan recurrente en ciudades como Bogotá y Rio
de Janeiro, es poco común en Buenos Aires (GILBERT; WARD; ABRAMO, 2009;
PARIAS; ABRAMO, 2009) y constituye en una forma institucionalizada de acceso al
suelo (CRAVINO, 2006).
Los asentamientos informales desde
la década del 90 hasta la actualidad
Luego del retorno democrático en el año 1983, las acciones represivas contra
las ocupaciones ilegales de tierra fueron mermando, estableciéndose un clima de
mayor tolerancia. No obstante, esta última variaba sensiblemente dependiendo de
la zona donde estuviesen ubicadas las ocupaciones. Debe notarse que pese a la vuelta
de la democracia la legislación restrictiva al desarrollo de opciones de acceso a la
vivienda para los sectores populares permaneció inalterada, estando vigente en la
actualidad (CRAVINO, 1998).
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En 1989 la economía argentina estuvo al borde del colapso, la inflación alcanzó
niveles del 5.000 por ciento anual y la economía urbana se redujo a niveles previos
a los de 1970 (KEELING, 1996). En este contexto, se adoptaron crudamente
los lineamientos del neoliberalismo (bajo la impronta del llamado Consenso de
Washington) y se implementó un paquete de reformas presentado como “cirugía
mayor sin anestesia”, que incluyó la venta de empresas estatales, la privatización de los
servicios públicos, y la desregulación de la actividad económica por parte del sector
público (ZANETTA, 2004). Estas políticas dieron pie a la participación de actores
internacionales en la provisión de los servicios públicos y en el desarrollo de operaciones
inmobiliarias, al tiempo que alentaron la especulación inmobiliaria, intensificaron la
comercialización de tierra urbana, empujaron al alza los precios del suelo y, con ello,
se observó un incremento importante de la informalidad (CLICHEVSKY, 1999).
En línea con la ideología neoliberal adoptada por el gobierno nacional en la
década del ’90, se produjo un cambio en la política pública respecto de las tomas
de tierra. Se inauguró un programa basado en la transferencia de derechos de
propiedad a los asentados en tierras estatales nacionales. Sin embargo, los avances en la
implementación de estas normas fueron reducidos y los desalojos en los asentamientos
informales, especialmente los más recientes, resultaron ilustrativos respecto de la
ausencia de una política integral de tierras urbanas en la Argentina.
Para mantener la estabilidad macroeconómica, el gobierno federal recurrió al
financiamiento internacional y el país enfrentó un proceso de creciente endeudamiento
externo. En 1998, la deuda era equivalente a más del 400% de las exportaciones
anuales. La economía disminuyó y entró en recesión. En el cambio de milenio, la
protesta social explotó con manifestaciones frente a las sedes de los poderes ejecutivo
y legislativo, cortes de rutas y puentes en áreas centrales de Buenos Aires y saqueos
a supermercados. En Diciembre de 2001, Argentina declaró el default –el más
importante en la historia del mundo- sobre su deuda externa y hacia 2002 más de la
mitad de la población se encontraba por debajo de la línea de pobreza.
Desde 2003 en país ha ido recuperando un crecimiento anual a razón de un 8%
entre 2003 y 2008 (INDEC, 2009). Hacia 2005, el gobierno reestructuró su deuda
externa y canceló sus compromisos con el FMI. En los años recientes los niveles de
desempleo disminuyeron en forma significativa. Junto con este cambio de escenario, se
produjo un boom en el sector inmobiliario que condujo a fuertes subas en los precios,
generando crecientes dificultades para el acceso al mercado inmobiliario formal para
las personas de bajos ingresos. A pesar de las políticas neo-keynesianas, el mercado
de suelo y viviendas permanece fuera de su alcance y continúa siendo escasamente
regulado. El crecimiento del sector agropecuario (en particular el vinculado a la
exportación de soja) generó un excedente, que en buena medida fue volcado al sector
inmobiliario como “inversiones seguras” y conservadoras en un escenario de post
crisis, contribuyendo a generar un movimiento de alza de precios.
En el año 2004 hubo un fuerte impulso a las políticas habitacionales para
sectores de bajos ingresos, materializado en la creación del Programa Federal de
Construcción de viviendas. El objetivo del programa era construir 38.000 viviendas
en el Área Metropolitana de Buenos Aires en el primer año, lo que implicaba un
cambio de escala diez veces mayor al de cualquier otra política pública de vivienda en
los quince años precedentes (OSTUNI, 2007). En 2006, se anunció la segunda etapa
del programa, que fijaba como meta construir otras 75.000 viviendas en el AMBA. A
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JEAN-LOUIS VAN GELDER, MARÍA CRISTINA CRAVINO, FERNANDO OSTUNI
pesar de que estas metas físicas implicaron un punto de partida importante cuando
se lo compara con la escala de los programas previos, el Programa Federal presenta
algunos inconvenientes: por un lado, retrasos en su ejecución efectiva; por el otro,
respecto de la ubicación de las viviendas, en general éstas en su mayoría se encuentran
alejadas de las áreas centrales y dinámicas para obtener ingresos, reforzando el patrón de
segregación residencial. Según datos oficiales entre el año 2003 y el 2012 se efectuaron
en la Provincia de Buenos Aires 177.782 soluciones habitacionales (viviendas nuevas
y mejoramientos). El Programa de Urbanización de villas y asentamientos precarios
construyó en el año 2005 y 2012 construyeron 35.829 viviendas en el Gran Buenos
Aires (menos unas pocas en otras localidades).
Consecuentemente, a pesar de las tasas de crecimiento económico, de la
existencia de legislación que habilita la regularización dominial en barrios informales,
de un gasto público considerable en vivienda social, la informalidad sigue creciendo.
Si tomamos los datos más recientes (CRAVINO, 2008c), el Área Metropolitana de
Buenos Aires tiene alrededor de 800 urbanizaciones informales, donde habitan poco
más de un millón de individuos. El Censo de Población y vivienda del 2010 muestra
un mejoramiento de las condiciones habitacionales de todo el país (bajando la cantidad
de viviendas precarias o con deficiencias) en relación al 2001. En particular, en el
Área Metropolitana implica una disminución del 2,8% de las viviendas deficitarias.
También se observa un mejor acceso a los servicios públicos indispensables como
el agua corriente que se amplió en un 16,4%, siendo un 5,4% en el Conurbano
Bonaerense, mientras la población de este aglomerado creció un 23,8%. No obstante,
todo indica que el porcentaje de situaciones de tenencia irregular del suelo no
disminuyó, aún cuando no se publicaron los datos correspondientes. Sólo se conoce
que la población de villas en la Ciudad Autónoma de Buenos Aires pasó de 107.422
habitantes en 2001 a 163.587 en 2010.
Tabla 1 – Población en villas y asentamientos en el Área Metropolitana de Buenos
Aires (AMBA) 2008
Capital Federal
Conurbano Bonaerense
AMBA
Categoría
Cantidad
%
Cantidad
%
Cantidad
%
Villas
108,011
10.5%
518,130
50.3%
626,141
60.7%
Asentamientos
0
0%
404,359
39.2%
404,359
39.3%
Total
108,011
10.5%
922,489
89.5%
1,030,500
100%
Nota: De los 27 asentamientos, que contaban con una población total de 14.365 personas, no pudo
ser constatado con exactitud si se trataba de villa o asentamiento (Fuente: CRAVINO, 2008).
A partir de los rasgos salientes expuestos, es pertinente observar con mayor
detenimiento las dos formas o tipologías predominantes de urbanización informal
en Buenos Aires, las villas y los asentamientos. Intentaremos mostrar que el tipo de
urbanización está fuertemente ligado a las características de las políticas públicas, al
marco regulatorio y a las transformaciones en el modelo económico.
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4 Los datos en que se basa
esta parte del documento
se recogieron por medio de
la aplicación dos encuestas
y entrevistas en profundidad
en once barrios informales.
Los datos cuantitativos se recogieron en los años 2005 y
2007 y complementariamente entre los años 2007 y 2009
por los autores del artículo
realizaron entrevistas en dichos barrios informales.
Diferencias entre residentes
de villas y asentamientos4
Las dos tipologías presentan ventajas y desventajas la una respecto de la otra.
Las “villas”, en particular las más antiguas ubicadas en la Capital Federal, suelen estar
localizadas en áreas centrales de la ciudad, por lo que se encuentran mejor situadas
en términos de oportunidades de empleo y estrategias de reproducción de la vida
cotidiana. Esto se ve reflejado en la Tabla 2, en la cual puede observarse que el nivel
de desempleo es significativamente más alto en los “asentamientos” estudiados que
en las “villas” en las que se desarrollo el relevamiento. Cuando se les pregunta a las
personas por las razones para vivir en su barrio, los habitantes de “villas” mencionan
la proximidad como motivación principal, seguido de la cercanía con algún familiar
como segunda razón. En los “asentamientos” la expansión de la familia es el motivo
referido como más importante. En cambio, la proximidad a los lugares de trabajo
difícilmente sea mencionada por los asentados, mientras que la expansión de la familia
es muy rara vez sugerida por los villeros. A pesar de que en general están ubicados en
lugares menos favorables y más distantes de los centros urbanos, los “asentamientos”
poseen lotes de mayor tamaño que cuentan con la ventaja de tener más espacio para
construir una vivienda que albergue a toda la familia. En las “villas”, en cambio, las
viviendas son más pequeñas, y es más común encontrar familias enteras compartiendo
una única habitación. Las dos tipologías resultan expresivas de necesidades diferentes,
al menos parcialmente. Aún así, las dificultades económicas aparecen como un
denominador común para ir a vivir a cualquiera de las dos modalidades.
Además, las “villas”, en especial aquellas ubicadas en áreas centrales, a menudo
tienen un mercado informal de alquileres e incluso un mercado de la vivienda (sin
título de propiedad), mientras que en los asentamientos generalmente predomina la
tenencia (que los residentes denominan “ser propietarios”, aunque en realidad sea
una tenencia informal). El mercado de alquileres en las “villas” se ha vuelto muy
dinámico, aunque los inquilinos no tienen una cobertura legal equivalente a la de
quienes alquilan en el mercado formal; por lo tanto, tienen una muy escasa seguridad
en la tenencia. No pagar el alquiler del mes puede llevar a un desalojo inminente
(CRAVINO, 2006; 2008b). Esta es la opción para aquellos que no tienen dinero
suficiente para la compra de una vivienda o no encuentran oferta de ellas.
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JEAN-LOUIS VAN GELDER, MARÍA CRISTINA CRAVINO, FERNANDO OSTUNI
Tabla 2 – Razones principales para mudarse al barrio en villas (n = 363) y asentamientos
(n = 429)
Proximidad
del trabajo
Proximidad
de la familia
Dificultadesl
económicas*
Crecimiento
de la familia
Previamente
desalojados
Villas
26.8%
24.8%
12.8%
4%
3.4%
Asentamientos
2.5%
13%
20.8%
25.6%
6.6%
Promedio de la
Muestra
13.1%
17.8%
16.5%
16.6%
5.1%
*
Esta categoría incluye a los encuestados que mencionaron no poder pagar el alquiler de su
vivienda anterior o la pérdida del empleo como principal motivación (Fuentes: Info-Hábitat 2007;
CRAVINO, 2006)
Otra diferencia entre las “villas” de las áreas centrales y los “asentamientos” de
la periferia radica en el hecho de que en las primeras el fenómeno de la inmigración
proveniente de países limítrofes es más relevante en comparación con los segundos
(Tabla 3). Esto último puede ser explicado como consecuencia de la importancia de
las redes sociales en los procesos migratorios y cómo estas fuerzas la concentración en
determinadas localizaciones de ciertos grupos de origen.
Propiedad y ascenso social
Las motivaciones más recurrentes para buscar y querer la propiedad (tanto en
términos formales como informales) es tener seguridad en la tenencia y el deseo de
poder dejar algo tangible como herencia a los hijos. La propiedad inmobiliaria además
implica acceso a un activo estable que incrementa su valor y prestigio con el tiempo en
una sociedad que ofrece muy poco de ambas cosas (VAN GELDER, 2009). En otras
palabras, la idea de que la vivienda significa mucho más que el albergue o el activo
económico se pone claramente en evidencia en el discurso de los habitantes de los
barrios informales de Buenos Aires.
Por lo tanto, una ventaja que presenta el “asentamiento” respecto de la “villa” es el
hecho de que ofrece una perspectiva de largo plazo en la cual los residentes puede con
el tiempo convertirse en los propietarios legales de sus terrenos y que el asentamiento,
en algún momento futuro, puede convertirse en un barrio “normal”. Este no es
el caso de las “villas”, que debido a su estructura y densidad poblacional presenta
posibilidades de la urbanización más complejas y llevan décadas con la fisonomía de
un barrio informal.
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Tabla 3 – Características de la población en villas (n = 363) y asentamientos (n = 429)
Nacionalidada
Edadb
Añosc
Trabajod
Ingresose
Villas
44.3%
36
11
38.9%
AR$ 500
Asentamientos
27%
37
9
62.8%
AR$ 619
Promedio de la muestra
32.5%
37
10
54.5%
AR$ 576
Nota: a = porcentaje de no nacionales; b = edad promedio del entrevistado; c = cantidad promedio
de años que vive en el asentamiento; d = porcentaje de desempleados; e = Ingreso promedio mensual
de los hogares (5 pesos argentinos ≈ 1 US$ al precio oficial, 8 pesos argentinos = 1 U$S al dólar
paralelo) (Fuente: Info-Hábitat, 2007; CRAVINO, 2006).
Trayectorias residenciales
A pesar de que tanto las villas como los asentamientos reúnen una población variada
en cuanto a su origen, existen diferencias considerables en las trayectorias residenciales
que se observa en cada tipología. Cravino (2008a) muestra que la villa es en general el
primer hábitat urbano para los recién llegados a la ciudad. Los procesos migratorios,
que a menudo se desarrollan a través de redes familiares o de amigos que introduce a los
recién llegados con su nuevo lugar y con las diferentes opciones en términos de estrategias
de vida, llevan a los migrantes a asentarse primero en la villa (CRAVINO, 2008). La
Tabla 2 muestra que la “proximidad (física) a la familia” es mencionada casi dos veces
más por los villeros en comparación con los asentados. Aun cuando los residentes en los
asentamientos también pueden presentar diferencias en términos de “origen”, muchos de
sus residentes suelen expresar que en algún momento previo habitaron en una villa. A
menudo el pasaje de la villa al asentamiento es percibido como una mejora significativa
en las condiciones de vida de las familias, así como también es presentada como una
modalidad de ascenso social. Es decir, existe una asociación entre la valoración del tipo
de espacio en que se habita y la condición de estatus social.
Los entrevistados provenientes de una villa que llegaron a vivir en un asentamiento
perciben que este cambio implicó una mejora en sus condiciones habitacionales pero un
deterioro en cuanto a la localización. Además, en las respuestas registradas se observa una
mayor incertidumbre en las villas respecto de la seguridad de tenencia en comparación
con los asentamientos. Esto revela el dilema entre elegir vivir en la periferia pero con
mayor espacio que puede ser utilizado para construir inclusive viviendas para las nuevas
generaciones versus una mejor ubicación, es decir estar más cerca de las oportunidades de
empleo, pero vivir en espacios reducidos, o lo que es lo mismo en una o dos habitaciones
una familia entera, con incertidumbre en la tenencia.
El hecho de que las tomas de tierra hayan sido llevadas a cabo en forma
predominante por familias jóvenes de la ciudad que no podían resolver sus necesidades
de vivienda es un indicador de que este tipo de informalidad es resultado de las
dificultades de una población urbana empobrecida frente a una legislación de uso del
suelo y a una política que va en detrimento de sus necesidades de vivienda. En otras
palabras, se puede decir que la ley y las políticas públicas condicionaron las opciones
habitaciones de una parte de los sectores populares y, por lo tanto, que fueron codeterminantes de las acciones ilegales de los ciudadanos.
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JEAN-LOUIS VAN GELDER, MARÍA CRISTINA CRAVINO, FERNANDO OSTUNI
En un sentido, los asentamientos son la expresión de una movilidad social y
espacial y de la agencia de los sectores populares en Buenos Aires. Constituyen una
estrategia de inconformidad hacia el Estado a través de procesos de movilización
y organización social, en los cuales los sectores populares intentan ganar un lugar
en la ciudad que algún sentido siempre los ha rechazado. No obstante, a pesar de
la inconformidad, el asentamiento se adapta constantemente al sistema legal. Por
ejemplo, el asentamiento intenta evitar contravenir la legislación de uso del suelo todo
lo posible y mantener las consecuencias de la violación al derecho de propiedad al
mínimo (VAN GELDER, 2010). Al mismo tiempo esta conformación urbana alejaría
a sus habitantes del fantasma del estigma de la villa, situación que por lo general no
sucede. Esto también debe comprenderse tomando en cuenta que existe experiencia
conocida donde el Estado toleró ocupaciones, regularizando a posterior su situación
o por lo menos comenzando este proceso. Esto implica que se va institucionalizando
como una forma legítima aunque ilegal de acceso a la ciudad (CRAVINO, 2008b).
El adentro versus el afuera: Los
asentamientos infórmales y la sociedad
Así, hay un claro límite en la villa que la delimita del resto de la sociedad: el
adentro y el afuera del barrio. En el caso de los asentamientos este borde es aún más
prominente en términos simbólicos que en el sentido físico, dado que el barrio puede
parecer pobre, pero formal. En este sentido los límites espaciales de un barrio operan
como un mecanismo unificador, como consecuencia de compartir situaciones de
vida e identidades. No obstante, si se observa más de cerca a las relaciones sociales
dentro de los barrios, puede percibirse que existe una gran variedad en las respuestas
de individuos en situaciones similares respecto de las formas de hacer frente a su
condición urbana, así como también entre las villas y los asentamientos en general.
El mito de que los residentes de asentamientos informales se manejan fuera de la ley
y son capaces de atentar contra el sistema se ha instalado con una fuerza nada desdeñable.
La idea de que “pobres” o “informales” conforman un grupo homogéneo todavía aparece
con mucha fuerza, sin duda de manera errónea. Una modalidad de distinción dentro
de los barrios que aparece como importante tanto entre residentes de villas como de
asentamientos es su creencia en la posibilidad de asenso social y la convicción de que es
posible mejorar su situación (CRAVINO, 2008a). Esta creencia conlleva una diferencia
en la actitud y en la conducta reflejada por ejemplo en la inversión en mejorar la vivienda
en la planificación de largo plazo. Por ejemplo, hemos encontrado familias que envían
sus hijos a escuelas privadas mientras habitan en viviendas muy precarias. Este tipo de
actitud es muy común entre inmigrantes del Paraguay y de Bolivia para quienes vivir en
un asentamiento informal en Buenos Aires no representa retroceder un escalón, sino que
ofrece una ventana de oportunidades respecto de la calidad de vida y los servicios (ej. los
servicios de salud y educación gratuitos) que son severamente restringidos en sus países
de origen (CRAVINO, 2008a). Para muchos residentes argentinos empobrecidos que
gradualmente o de repente perdieron su estatus de clase media durante los últimos años
a menudo se percibe una pérdida de fe en la idea de asenso social. En otras palabras, la
idea de que la villa es el lugar donde se aglutina la pobreza no hace justicia a la variedad
de trayectorias y estrategias de los residentes.
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5 Entrevista con residentes
en el asentamiento 3 de
Mayo, Julio de 2005.
Difícilmente cuestiones como la criminalidad, la inseguridad y la violencia no
sean mencionadas en las conversaciones con los vecinos. Todos resaltan lo difícil que
es vivir en el barrio. No obstante, al mismo tiempo, y paradójicamente a primera vista,
muchos pobladores manifiestan haberse arraigado a sus barrios con el correr de los
años, y expresan reparos sobre la posibilidad de considerar alternativas habitacionales
diferentes de su lugar de residencia. Ante la pregunta de si evaluaría la posibilidad de
mudarse de su casa en un asentamiento a un terreno legal, una residente respondió:
“moriríamos en nuestras casas antes de ir a otro lado”. En el asentamiento más que
en la villa, la relación entre solidaridad entre los vecinos, la lucha (conjunta) por su
terreno y sus esfuerzos en construir tanto sus viviendas como su barrio, que además de
económicos son esfuerzos de carácter emotivo y físico, son elementos que ligan a los
habitantes a sus barrios, y esa ligazón aumenta con su desarrollo: “lo que me mantiene
en este barrio […] es que vivo en mi casa, es mía, es que estoy en lo mío, es por lo que
luché y lo que me ha costado lágrimas, lágrimas y… lagrimas.”5
En general, ni la unidad (barrio) ni la fragmentación cristalizan como el paradigma
central en el discurso de los residentes y la noción de la identidad del villero (o asentado)
juega un rol contradictorio en los asentamientos informales (CRAVINO, 2008a). Por un
lado puede ser fuente de orgullo, pero por el otro la discriminación y la estigmatización
del resto de la sociedad son sentidas con fuerza (VAN GELDER, OSTUNI; ENDRESS,
2005). Auyero (2005) remarca que ni bien hay una conversación sobre (in)seguridad
en Argentina que evita mencionar la “villa”, y que los “villeros”, una etiqueta que es
igualmente aplicada a las personas que vives en barrios pobres, independientemente de
si residen en barrios informales o no, son percibidos como una amenaza a ser evitada.
Vivir en un barrio informal puede atrincherar la pobreza y limitar el asenso social
restringiendo las opciones económicas de los pobladores, pues con la mera mención a
vivir en la villa pueden perjudicar sus opciones de obtener un trabajo formal. Hay casos
en los que la gente alquila una dirección postal fuera de su barrio para ocultar el hecho
de vivir en una villa. Debe destacarse que designarse ellos mismos como “ilegales” ubica
a los habitantes de asentamientos informales en una posición desfavorable porque con
ello el estado puede justificar tanto las acciones hostiles (ej. intentos de desalojo) como
legitimar su ausencia como marco regulador y negar acceso a sus recursos.
Conclusiones
Este artículo ha intentado mostrar de qué modo la ley, las políticas y el desarrollo
socioeconómico han llevado no sólo a la emergencia de los barrios informales en Buenos
Aires, sino que también han influido en su forma y ubicación. A pesar de ser idénticos
en términos de su estatus (i)legal, de los recursos y características socioeconómicas de su
población, así como de otras características, forma y ubicación, en cambio, llevaron al
desarrollo de importantes diferencias entre ellos y determinaron patrones de desarrollo.
Por ejemplo, los asentamientos tienden a formar una solución habitacional de carácter
más permanente y similares al barrio formal, al que aspiran convertirse, a diferencia de
una estrategia habitacional transitoria como la de las villas en sus orígenes (CRAVINO,
1998), aunque en la actualidad esa transitoriedad haya perdido peso también en las villas.
En estos últimos barrios la condición de “ilegalidad” tiene mayor peso como estigma. En
la villa, el ascenso social puede implicar un cambio de situación, pasar de ser inquilino a ser
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JEAN-LOUIS VAN GELDER, MARÍA CRISTINA CRAVINO, FERNANDO OSTUNI
propietario o, en algún caso, mudarse a un asentamiento. En estos últimos, el mejoramiento
pasa fundamentalmente por la condición de la vivienda, es decir, por la posibilidad de
invertir en ella y presionar al Estado para alcanzar la regularización dominial; el objetivo
último es la legalización. Por lo cual es una forma de acceso a la ciudad que apela a la
institucionalidad y a su reconocimiento a partir de la legalización de su existencia, que
implica múltiples pasos para llegar la formalidad (con las incertidumbres que ello acarrea).
En Buenos Aires se ha vuelto claro con los años que si va a abordarse seriamente la
cuestión de la informalidad en la vivienda es ineludible que la problemática adquiera
mayor peso en la agenda pública, lo que requiere una presión considerable desde la
base. Fernandes (2007) sostiene que en diversos países de América Latina académicos,
políticos, movimientos sociales urbanos y ONGs han entendido gradualmente el
hecho de que no hay vía a la reforma urbana posible sin una profunda reforma legal y
política y una creciente conciencia pública de los derechos ciudadanos como derechos
constitucionales, el derecho a la vivienda y los derechos a los servicios básicos e
infraestructura así como también de las obligaciones, en particular de las obligaciones
como contribuyente y consumidores. En particular en la Argentina, que no tiene en
su Constitución la función social de la propiedad y diferentes debate sobre el Código
Civil parecen reticentes a modificar el estatus absoluto de la propiedad. Mientras que
en algunos países los movimientos populares han sido capaces de acumular fuerzas
durante más de dos décadas presionando por una reforma urbana, en la Argentina los
contornos de ese tipo de expresiones han apenas comenzado a emerger en los últimos
años. Pero el hecho de que están ahí y adquiriendo peso es un signo positivo para el
futuro. Recientemente, en Octubre de 2008, la legislatura de la Provincia de Buenos
Aires declaró el estado de emergencia en la provincia con respecto a cuestiones de
tierra y vivienda, lo que es un signo de que la informalidad va ganando importancia
en la agenda pública. La discusión sobre la urbanización de asentamientos informales
incluye cómo hacer este proceso, si construyendo un nuevo barrio o respetando las
prácticas de las estrategias de los sectores populares en relación al hábitat y, por lo
tanto, apostando por la radicación en el lugar. Un debate similar comienza a generarse
en la Ciudad de Buenos Aires en torno a la urbanización de la villa más antigua de la
ciudad. Sin embargo, estas políticas no resuelven las causas de la informalidad.
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Jean-Louis van Gelder é investigador do Netherlands
Institute for the Study of
Crime and Law Enforcement.
Doctor en Derecho Universidad de Amsterdam. E-mail:
<[email protected]>.
María Cristina Cravino é
Investigadora CONICET-Universidad Nacional de General
Sarmiento. Doctora en Antropología. E-mail: <[email protected]>.
Fernando Ostuni é investigador do Instituto Gino Germani de la Facultad de Ciencias
Sociales de la Universidad de
Buenos Aires. Magister en Administración Pública. E-mail:
<[email protected]>.
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JEAN-LOUIS VAN GELDER, MARÍA CRISTINA CRAVINO, FERNANDO OSTUNI
Abstract
As in most Latin American cities, in Buenos Aires one of
the most usual ways low income families can access to land and housing is through
the creation of informal settlements. This article examines the development of urban
informality, patterns of social mobility and residential trajectories into and between
informal settlements in the Metropolitan Area of Buenos Aires during the last decades.
Using quantitative information (generated with own surveys) and qualitative
(obtained through in-depth interviews, supplemented by field observation) we intend
to show the existence of a considerable variety in the perspectives and strategies that
social actors use to build tenure security of their homes. On this basis, additionally the
text discusses how public policies and legal frameworks not only constitute a condition
for the development of informality as a phenomenon, but even influence the shape and
characteristics acquired.
Keywords:
informal settlements; social mobility; residential paths; Buenos
Aires; public policy.
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SUBSIDIARIEDADE E
PLANEJAMENTO URBANO EM
CONTEXTOS COMPARADOS:
UMA ANÁLISE ENTRE
PORTUGAL, ITÁLIA E BRASIL
Juliano Geraldi
Resumo
O presente ensaio tem como objetivo compreender como o conceito
de subsidiariedade opera os instrumentos de planejamento urbano em contextos
comparados. Entendemos que o que se deve estabelecer como ponto de partida não é
uma simples análise do grau de descentralização e participação dos países escolhidos,
mas sim de como se dá a relação entre Estado e sociedade no planejamento urbano. A
escolha de Portugal, Itália e Brasil para a análise comparada se dá por representarem
as três formas de organização vertical do Poder: unitária, regional e federativa.
Para a interpretação dos casos decidiu-se por diferenciar subsidiariedade vertical de
subsidiariedade horizontal na utilização dos parâmetros de análise, nomeadamente:
os sujeitos, os objetos e as asserções normativas.
Pal avras-chave:
subsidiariedade; planejamento urbano; Portugal;
Itália; Brasil.
1. Introdução
O artigo tem como objetivo compreender como o conceito de subsidiariedade
opera os instrumentos de planejamento urbano em contextos comparados.
Entendemos que o que se deve estabelecer como ponto de partida não é uma simples
análise do grau de descentralização e participação dos países escolhidos, mas sim de
como se dá a relação entre Estado e sociedade nos momentos de planejamento das
intervenções urbanas.
Partindo do conceito de subsidiariedade – entendido aqui, a priori, como
a garantia da autonomia na ação de indivíduos e grupos sociais em resolverem os
problemas dos quais são capazes de solucionar –, interessa-nos compreender como
a estrutura do Estado se adapta com o objetivo de garantir um diálogo mais direto
com os indivíduos e os grupos sociais. Apesar de o planejamento urbano ter um
grande vínculo com o poder local, não nos preocupa o local apenas enquanto nível
de governo, mas enquanto espaço de relação de diversas escalas espaciais e temporais
onde o geral se confunde com o particular.
Não serão analisadas apenas as competências privativas dos governos locais,
mas também tentar compreender como, dentro da sua estrutura de poder, o Estado
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estabelece suas formas de intervenção no espaço urbano. A escolha dos países analisados
respeita a divisão estabelecida por Chagnollaud (2005) das formas de Estado a partir
da divisão vertical do poder: Portugal como Estado Unitário, Itália como Estado
Regional e Brasil como Estado Federal. Por fim, concluiremos sobre uma articulação
entre subsidiariedade vertical e subsidiariedade horizontal a fim de percebermos suas
interconexões com o planejamento urbano.
2. O Conceito de Subsidiariedade
A origem etimológica da palavra subsídio – evoluída do latim subsidium, e da
qual se forma a palavra subsidiariedade – dá a noção de reserva, reforço, ajuda, apoio,
socorro, proteção (HOUAISS; VILLAR; FRANCO, 2007) e tinha, na linguagem
militar romana, a designação das tropas de reserva, ou seja, as tropas que eram
chamadas para reforçar os exércitos regulares caso assim fosse necessário (PASARIN,
2001; RINELLA, 1999; ENDO, 1994). Essa noção pode dar à palavra subsidiariedade
duas interpretações: a ideia do que é secundário e a ideia de supletividade (RINELLA,
1999; BARACHO, 1995). No primeiro caso, encontra-se em si a oposição entre uma
coisa principal e aquilo que lhe é secundário: subsidiariedade é a qualidade daquilo
que é secundário ou pouco importante.
No caso da supletividade, são encontradas outras duas acepções: suplementariedade
e complementariedade. Na suplementariedade, a subsidiariedade é entendida
como algo que se acrescenta para conferir integração àquilo que era, inicialmente,
incompleto. Na complementariedade, a subsidiariedade é a qualidade de um elemento
que completa um conjunto de outros elementos, criando um compromisso entre uma
pluralidade de exigências. E é essa última noção de subsidiariedade a qual tem sido
aplicada no campo jurídico contemporâneo.
A origem filosófica da noção de subsidiariedade remonta à Política, de Aristóteles
(2001), como solução ao problema que nasce da tentativa de governar homens livres.
Para Aristóteles, os indivíduos e grupos sociais ocupavam os seus lugares na sociedade em
acordo com a sua suficiência em realizar suas funções. O objetivo final, resultante da forma
como se organizam, deveria ser o da felicidade individual e coletiva. Para tanto, indivíduo,
família, vila e cidade – nesta ordem – colocavam-se de forma concêntrica onde cada
nível era responsável pelas funções que conseguiria realizar, deixando ao nível superior as
funções que não lhes eram possível. A estratégia de Aristóteles para que o Estado garantisse
a felicidade era baseada na ideia de que a tarefa do poder não era em constituir a sociedade
– até mesmo porque a cidade era considerada, para o filósofo, o organismo social mais
perfeito e, por isso, anterior ao próprio indivíduo, o qual constituía apenas uma parte da
sociedade –, mas em manter-se subsidiário a ela (CAVALCANTI, 2008).
Coube a Tomás de Aquino renovar a obra aristotélica no século XIII ao reformular
alguns dos elementos basilares da subsidiariedade. Partindo de uma concepção de
totalidade da sociedade, o autor creditava ao indivíduo um valor inalienável, dando à
sociedade o dever de respeitar e garantir a sua dignidade (RINELLA, 1999). Mesmo
gozando de autonomia e liberdade para agir, o indivíduo devia respeitar o bem comum
para que sua finalidade última pudesse se integrar com a finalidade da sociedade maior.
Assim, a distância entre as aspirações individuais e as aspirações coletivas e as suas
respectivas capacidades para alcançá-las justificava a intervenção do poder superior.
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Nas palavras de Pasarin (2001, p. 22): “[...] o critério da capacidade é o que, em um
momento dado, determina a fronteira entre a autonomia e a intervenção.”1 O que faz
Tomás de Aquino, ao aprofundar a política aristotélica, é aproximar a subsidiariedade
aos conceitos de Justiça Social e Bem Comum (CAVALCANTI, 2008).
Ainda partindo de uma concepção organicista da sociedade, Johannes Althusius,
no início do século XVII, apresentou uma teoria política baseada no princípio da
subsidiariedade. Para o jurista alemão, a sociedade deve se organizar em pactos
sucessivos,2 estipulados de forma a preservar a autonomia dos grupos sociais sem
privá-los da proteção oriunda das instâncias superiores, as quais deviam intervir única
e exclusivamente nos casos necessários (RINELLA, 1999; PASARIN, 2001). Para
alguns autores (ENDO, 1994; RINELLA, 1999; PASARIN, 2001), ao denominar
essas associações simbióticas entre os grupos de foedus (conceito bíblico da aliança
original entre Deus e o Homem), Althusius deu origem à concepção linguística,
teórica e política do federalismo, assim como foi, também, o primeiro a secularizar o
conceito de subsidiariedade.
A ideia de foedus apresentava um sistema corporativo de quase-independência
entre os membros que gozavam coletivamente da soberania. Esse sistema garantia
juridicamente a estipulação das circunstâncias da ingerência por parte do nível maior,
assim como tinha as vantagens de integrar os grupos menores no desenvolvimento do
bem-estar coletivo e no ordenamento do poder superior (RINELLA, 1999). Na base
das formulações de Althusius estava a sua preocupação em defender a pluralidade social
frente à intervenção desmedida do Estado (CAVALCANTI, 2008; ENDO, 1994).
Depois de Althusius, os estudiosos que se debruçaram sobre a noção de
subsidiariedade e seus desdobramentos – entre eles Locke, Tocqueville, Hegel,
Montesquieu, Humboldt – estiveram mais interessados nas autoridades políticas,
centrando o debate no papel e nas funções do Estado, representado sempre como a
autoridade suprema (RINELLA, 1999; ENDO, 1994). A compreensão do conceito por
estudiosos assaz díspares desenvolverá, durante o século XIX, uma noção desnaturalizada
da subsidiariedade, tornando-a suscetível ao oportunismo: caso exemplar é o da corrente
liberal, a qual se valeu unicamente do aspecto normativo negativo da subsidiariedade, ou
seja, do princípio de não ingerência do Estado (RINELLA, 1999).
Será com Pierre Proudhon que a subsidiariedade define novamente o eixo
estruturante para a solução do dilema posto entre a autoridade e a liberdade. Ao
analisar o federalismo como um princípio de organização social – e não apenas
como organização do Estado –, Proudhon restabeleceu o duplo aspecto normativo
da subsidiariedade onde o confine entre ingerência e não ingerência é demarcada
pela capacidade (BAGGIO, 2004; RINELLA, 1999). O federalismo de Proudhon
tinha o objetivo de extinguir o conflito social ao utilizar a noção de subsidiariedade
para equilibrar a felicidade do indivíduo e a eficiência social, mas o longo período
de centralização característico do Estado Social colocou de lado o duplo aspecto
normativo da subsidiariedade (BAGGIO, 2004).
Para Endo (1994), é fundamental o papel político da Igreja, desde o fim do século
XIX, em resgatar a duplicidade da subsidiariedade e transformá-la em um importante
princípio na função do Estado. A compreensão atual da noção de subsidiariedade é
consoante à Doutrina Social da Igreja, a qual tem balanceado os aspectos positivos
e negativos segundo a circunstância histórica e as demandas sociais mais prementes
(RINELLA, 1999). Em 1891, o papa Leão XIII afirma, na Encíclica Rerum Novarum,
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1 Salvo consideração contrária, todas as traduções
realizadas são de minha
responsabilidade.
2 Os pactos de Althusius em
nada se comparam com os
contratos sociais de Rousseau. Para Althusius, a existência da sociedade enquanto
ligação entre os indivíduos
existia por naturalidade. Assim, os pactos sucessivos
possuíam um caráter político
(RINELLA, 1999).
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a necessidade de intervenção do Estado nos problemas sociais provenientes do
liberalismo da Revolução Industrial. A Igreja, dessa forma, se compromete com os
problemas sociais e condena, pela primeira vez, a exploração do pobre pelo capitalismo
ao mesmo tempo que rechaça a solução socialista (ENDO, 1994; PASARIN, 2001).
No período entreguerras, o papa Pio XI, na Encíclica Quadragesimo Anno (relativo
ao aniversário de quarenta anos da Rerum Novarum), procede pela acepção negativa da
subsidiariedade, ao pregar o princípio de não ingerência do Estado. O posicionamento da
Igreja é proveniente do ceticismo com que enxergava o regime fascista italiano (ENDO,
1994; CAVALCANTI, 2008). Mesmo assim, a Encíclica retoma, inicialmente, as
colocações de Leão XIII e, por isso, resguarda a duplicidade normativa da subsidiariedade.
Será em o Quadragesimo Anno que a Igreja terá a primeira formulação condensada do
princípio da subsidiariedade. Nas palavras do papa Pio XI (1931)
Verdade é, e a história o demonstra abundantemente, que, devido à mudança de condições, só as grandes sociedades podem hoje levar a efeito o que antes podiam até mesmo as
pequenas; permanece contudo imutável aquele solene princípio da filosofia social: assim
como é injusto subtrair aos indivíduos o que eles podem efectuar com a própria iniciativa
e indústria, para o confiar à colectividade, do mesmo modo passar para uma sociedade
maior e mais elevada o que sociedades menores e inferiores podiam conseguir, é uma
injustiça, um grave dano e perturbação da boa ordem social. O fim natural da sociedade e
da sua acção é coadjuvar os seus membros, não destruí-los nem absorvê-los.
[...] Persuadam-se todos os que governam: quanto mais perfeita ordem jerárquica reinar
entre as varias agremiações, segundo este princípio da função “supletiva” dos poderes
públicos, tanto maior influência e autoridade terão estes, tanto mais feliz e lisonjeiro será
o estado da nação.
A evolução da noção de subsidiariedade, depois de Pio XI, é uma constante
na Doutrina Social da Igreja, tornando-se ponto fulcral dos ensinamentos do papa
João Paulo II, como é possível observar na Encíclica Centesimus Annus (relativa ao
centésimo ano da Rerum Novarum):
As anomalias e defeitos, no Estado assistencial, derivam de uma inadequada compreensão
das suas próprias tarefas. Também neste âmbito, se deve respeitar o princípio de subsidiariedade: uma sociedade de ordem superior não deve interferir na vida interna de uma
sociedade de ordem inferior, privando-a das suas competências, mas deve antes apoiá-la
em caso de necessidade e ajudá-la a coordenar a sua acção com a das outras componentes
sociais, tendo em vista o bem comum. (Papa João Paulo II, 1991).
Com a Igreja Católica, o conceito de subsidiariedade adquiriu sua dimensão
definitiva ao equilibrar os aspectos positivo e negativo do princípio. Isso só foi possível
porque no centro de equilíbrio encontra-se um valor ontológico para a Igreja, que
é o de dignidade humana. Liberdade e igualdade – que formulam os dois aspectos
subsidiários – não são, na Doutrina Social da Igreja, valores absolutos e dissociáveis
do valor da dignidade. A subsidiariedade torna-se fundamental para a promoção da
dignidade humana, uma vez que garante a concretização da liberdade ao mesmo
tempo que garante a razão de ser da sociedade, que seria a de assistir os indivíduos
(RINELLA, 1999; ENDO, 1994; Cavalcanti, 2008).
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Porém, ao analisar o conceito de subsidiariedade enquanto princípio ordenador
em um dos maiores exemplos de sua aplicabilidade atual – a União Europeia –,
Pesarin (2001, p. 55) retoma a acepção de que os aspectos positivos e negativos do
conceito acabam por dar margem para que o princípio seja utilizado em acordo com
a conveniência mais do que com a convicção:
[...] chegamos à conclusão que o princípio da subsidiariedade se inscreve, antes de mais
nada, em uma perspectiva pragmática. Conceito dotado de uma extraordinária flexibilidade, o princípio da subsidiariedade tem permitido avançar em um processo animado por
lógicas contrárias entre as quais o projeto federalista não é mais do que uma das opções.
A subsidiariedade caracterizar-se-ia, então, como uma resposta paliativa à falta
de consenso sobre a integração europeia, definindo formas de agir consoante o
caso e a vontade política dos envolvidos (PESARIN, 2001). Talvez o que escape da
análise de Pesarin é o fato de que a quantidade de critérios pelos quais é possível
definir a ação subsidiária é o que transforma o princípio em algo tão flexível, e não
o princípio em si. Para Rinella (1999), existe uma diferença entre a subsidiariedade
teórica e a subsidiariedade dogmática, a qual deve traduzir o conceito em normas às
vezes divergentes entre si. Por fim, deixamos em aberto essa questão ao apresentar
os critérios definidos por Endo (1994) para a ação subsidiária – melhor consecução,
eficiência, eficácia, efeito da ação e necessidade – para que possamos entender durante
a análise dos casos propostos como se dá a escolha dos critérios que legitimam o
princípio da subsidiariedade a partir de um leque tão subjetivo de conceitos.
2.1. A subsidiariedade enquanto modelo de análise
Interessa-nos saber, agora, como é possível estabelecer um modelo teórico de
referência para um princípio que traz em sua origem uma relação assaz dinâmica
entre Estado e Sociedade. Na década de 1950, Hans Stadler (apud RINELLA, 1999)
reconheceu três elementos essenciais que servem como parâmetro de interpretação
das manifestações da subsidiariedade: os sujeitos, os objetos e as asserções normativas.
Os sujeitos da relação se contrapõem sempre entre grupos sociais menores e grupos
sociais maiores. Essa divisão não pressupõe, porém, uma relação hierárquica entre os
grupos, mas sim uma condição de sujeitos ativos (os que agem subsidiariamente) e
sujeitos passivos (os que se sujeitam à ação subsidiária). Apesar de Stadler posicionar a
família e o Estado invariavelmente como as formas sociais, respectivamente, menores
e maiores, a contraposição entre os sujeitos é relativa, uma vez que os sujeitos ativos
podem, num outro momento, tornar-se sujeitos passivos. O importante é compreender
que a subsidiariedade contrapõe o indivíduo às formações sociais e, as formações
sociais menores às formações sociais maiores (RINELLA, 1999).
Os objetos são tarefas, encargos e atividades que os indivíduos e grupos menores
podem exercer autonomamente tendo bons resultados. Stadler ressalta a necessidade
dos indivíduos e grupos menores possuírem os meios necessários para a realização das
suas finalidades que, a princípio, são sempre estatutárias. Apenas na inexistência dos
meios necessários é que entram em jogo os grupos sociais maiores. Nesse momento, para
Rinella (1999), os grupos sociais maiores possuem dois padrões de ação que colocam
em questão a localização do poder decisional: a ação pode ser apenas integrativa ou
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totalmente substitutiva em relação ao grupo menor. Seja qual for o padrão, para que
possua a devida legitimidade no momento da ativação da ação subsidiária, ele deve ser
resultado da codecisão entre os sujeitos envolvidos.
As asserções normativas derivam do ordenamento jurídico. Ao estabelecer a ação
subsidiária através da norma, o ordenamento jurídico reconhece o princípio em si
resguardando a subtração do grupo social menor pelo grupo social maior e reconhecendo
o direito de ação do grupo social maior caso aja necessidade. As asserções normativas
configuram-se por dois espectros: expressão através de normas relacionadas ao caso em
específico, e através da interpretação da norma geral que afirme o princípio da ação.
Seja um ou outro, valem as palavras de Rinella (1999, p. 43): “Em ambos os casos, o
princípio de subsidiariedade é destinado a assumir um conteúdo pontual, juridicamente
determinado e/ou determinável, dogmaticamente enquadrado, colocado em um
contexto de referência normativa suficientemente delineado.”
Os três elementos descritos por Stadler podem ser suficientes para reconhecer as
partes integrantes da ação subsidiária, porém devemos nos preocupar também com a
direção em que se dá a ação. Isso se faz necessário para que possamos entender como a
subsidiariedade trata a separação entre Estado e sociedade. Por isso, faz parte de nosso
modelo de análise a distinção entre subsidiariedade horizontal e subsidiariedade vertical.
Idealizada por doutrinadores constitucionalistas italianos, a divisão institui,
no caso da subsidiariedade vertical, a relação entre o Estado e os outros entes
estatais; no caso da subsidiariedade horizontal, a relação entre Estado e sociedade
(CAVALCANTI, 2008). Para Endo (1994), o princípio de subsidiariedade surgiu
para proteger e promover a subsidiariedade horizontal, ou seja, o direcionamento
do poder em direção à sociedade. É a sua fusão com o federalismo que deslocou o
interesse do matiz horizontal para o matiz vertical, representado pelo processo de
territorialização do Estado. Seja pela sua característica horizontal, seja pela vertical, o
que deve estar no centro do debate é a construção solidária da ideia de bem comum
(CAVALCANTI, 2008).
A subsidiariedade vertical relaciona os entes estatais menores (governos municipais
e regionais) com os entes estatais maiores (governo nacional e federal) de forma a dar
mais liberdade de atuação aos entes menores gerando, por sua vez, maior colaboração
entre as instituições e maior eficácia na gestão. De caráter ascendente (do municipal
para o nacional) ou descendente (do nacional para o municipal), “todas as sociedades
inferiores (município) colocam à disposição toda capacidade para realização do Bem
Comum nacional e mundial, e as sociedades maiores (União) oferecem ajuda a todas
as sociedades que estão na esfera da sua competência” (CAVALCANTI, 2008, p. 221).
Inicialmente existente como a representação da delimitação entre o público e o
privado, de forma a garantir a esfera de autonomia dos grupos ditos naturais, como
a família e a Igreja (ENDO, 1994), a subsidiariedade horizontal deve funcionar,
atualmente, como a superação do dualismo público-privado. Atuando de forma
a valorizar a relação entre Estado e sociedade, a subsidiariedade horizontal deve
contribuir para o favorecimento da iniciativa e responsabilidade do indivíduo e das
associações tornando mais eficaz e pertinente o papel do Estado: “Há compreensão
de que público não é aquilo que pertence ao Estado, mas aquilo que contribui ao bem
comum, ou seja, o bem de todos.” (CAVALCANTI, 2008, p. 222, grifo no original).
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3. Os elementos de proximidade
do planejamento urbano
Escolhemos o urbano enquanto campo temático por entendermos que ele
se configura como um espaço constituído por uma densidade de relações entre os
indivíduos e os grupos sociais e que, ao mesmo tempo, é o resultado da expressão
concreta destes processos de interação. A cidade não é vista, dessa forma, pela sua
dimensão singular, única, mas como o local de interação de processos sociais que
têm origem em diversas escalas espaciais e em diversas temporalidades (ABREU,
2003). Em síntese, a instância local enquanto espaço onde o geral se confunde com
o particular, complexificando os mecanismos de legibilidade, nas palavras de Baggio
(2004, p. 333): “[...] lugar de encontro das subjetividades e da multiplicação dos
modos de convivência, uma forma de organização social, acima de tudo, dinâmica,
que possibilita a constante transformação das relações sociais.”
É importante ter em mente esse contexto indefinido das forças de atuação na cidade
para compreender a complexidade com que lidam o Estado e a sociedade nas intervenções
que realizam para adequar o espaço urbano às demandas que se apresentam – sejam elas
locais ou não. A principal metodologia ou estratégia para realizar essas intervenções é o
planejamento (SOUZA, 2002; MEIA, 1996). Com o planejamento é possível dar coerência, no tempo e no espaço, às transformações urbanísticas. Desse modo, o planejamento
coloca-se como um instrumento para a organização social, orientado para a predição das
ações que se dão no cotidiano: uma forma de compatibilizar autonomia individual, autonomia coletiva e uma determinada coerência geral (SOUZA, 2002). É nesse sentido que
podemos estabelecer uma relação entre subsidiariedade e planejamento urbano.
A principal condição que devemos ter em mente com relação ao planejamento
é que seja qual for o matiz ideológico-político que o institui, assim o faz sempre para
referendar a centralidade do Estado nas transformações do espaço urbano (SOUZA,
2002). Mesmo assim, argumentamos que, dentro da noção de subsidiariedade, é
possível ao planejamento urbano elaborar os instrumentos de intervenção através
da proximidade entre os grupos decisionais e os grupos afetados diretamente pelas
suas implicações. Essa é a estrutura que deve estar em análise e, para tal, precisamos
identificar os elementos que definem essa proximidade subsidiária, ou seja, quais são
os seus sujeitos, objetos e asserções normativas. Mesmo tendo em conta as diferenças
entre os países estudados, é possível identificar os três elementos.
Os sujeitos dizem respeito, na subsidiariedade vertical, ao Estado Nacional e os
governos subnacionais nas suas mais diferentes formas, sejam elas regiões, estados,
municípios, comunas, conselhos, freguesias. No que resguarda a subsidiariedade
horizontal, temos o Estado e a sociedade, esta também nas suas mais variadas
formas: cidadãos individuais, associações, movimentos sociais, entidades privadas,
organizações não governamentais, entidades acadêmicas e de pesquisa etc. O
objeto subsidiário é o próprio planejamento urbano. Interessa-nos saber, nos países
estudados, de quem é a competência pelo planejamento urbano, quando e como é
instituída esta competência, as condições da participação e os instrumentos utilizados
pelo planejamento. Por fim, as asserções normativas dizem respeito à existência, no
ordenamento jurídico, da transferência de competência entre os níveis de governo e
entre esses níveis e os indivíduos e grupos sociais, assim como as condições jurídicas
em que a norma garante a transferência e os desdobramentos do planejamento.
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4. O caso português
Como Estado Unitário, Portugal pressupõe a existência de poderes locais
(chamados de autarquias locais, representadas pelos Municípios e Freguesias) na
organização democrática do Estado. Em acordo com o art. 235º-2 da Constituição
Portuguesa, “as autarquias locais são pessoas coletivas territoriais dotadas de órgãos
representativos, que visam à prossecução de interesses próprios das populações
respectivas”. A relação subsidiária entre as autarquias locais e o Estado é garantida
enquanto princípio constitucional desde a sétima revisão, em 1997, como é
possível observar no art. 6º-1 (grifo nosso): “O Estado é unitário e respeita na
sua organização e funcionamento o regime autonómico insular e os princípios
da subsidiariedade, da autonomia das autarquias locais e da descentralização
democrática da administração pública.”
Para Canotilho e Moreira (2007), a incidência do princípio é diretiva à organização
e funcionamento do Estado Unitário. Os autores afirmam que a cristalização do
princípio tem “a ideia de proximidade do cidadão e de administração autónoma,
com a consequente separação de atribuições, competências e funções dos órgãos da
administração autárquica” (CANOTILHO; MOREIRA, 2007, p. 233-234, grifo no
original). No caso português, o princípio da subsidiariedade tem o objetivo de garantir
que os interesses das populações das autarquias locais – em acordo com o citado art.
235º-2 – sejam realizados pelos municípios e freguesias, que são os entes autárquicos
mais próximos do cidadão (CANOTILHO; MOREIRA, 2007). Mas como opera,
nesse contexto, o planejamento urbano?
É prerrogativa da Assembleia da República definir as bases do ordenamento do
território e do urbanismo (art. 165º-1, alínea z). Porém, ao tratar da habitação e do
urbanismo, no art. 65º-4, é possível observar a competência concorrente na elaboração
dos instrumentos de planejamento:
O Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais definem as regras de ocupação,
uso e transformação dos solos urbanos, designadamente através de instrumentos de planeamento, no quadro das leis respeitantes ao ordenamento do território e ao urbanismo,
e procedem às expropriações dos solos que se revelem necessárias à satisfação de fins de
utilidade pública urbanística.
Até o final da década de 1980, a concorrência, em casos conflituosos, era decidida
a favor do Estado, e não das autarquias. Os tribunais administrativos portugueses
ignoravam o princípio da subsidiariedade ao julgar casos em que a excessiva
regulamentação dos Planos Regionais de Ordenamento do Território subtraía os
regulamentos dos Planos Municipais de Ordenamento Territorial. Os tribunais
apresentavam como argumento a preferência em aplicar as disposições legislativas
que reconheciam a superioridade hierárquica regional em detrimento do princípio
da subsidiariedade que dava respaldo à regulamentação municipal (MORAIS, 1999).
Com a aprovação da Lei nº 48/1998, que estabelece as bases da política
de ordenamento do território e do urbanismo, a subsidiariedade torna-se um dos
princípios gerais da política ao definir a coordenação dos procedimentos nos diversos
níveis da Administração Pública sempre “por forma a privilegiar o nível decisório
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mais próximo do cidadão” (art. 5º-c). O mesmo artigo, na alínea f, garante também a
participação dos cidadãos no acesso à informação e à intervenção nos procedimentos
de elaboração, execução, avaliação e revisão dos instrumentos, assim como já o fazia o
art. 65º-5 da Constituição.
A lei do ordenamento define um sistema de gestão territorial (capítulo II), o
qual se organiza nos âmbitos nacional, regional e municipal. O sistema se concretiza
pela articulação dos seus instrumentos de gestão do território: (i) instrumentos de
desenvolvimento territorial: programa nacional da política de ordenamento do
território, planos regionais de ordenamento do território, planos intermunicipais de
ordenamento do território; (ii) instrumentos de planejamento territorial: plano diretor
municipal, plano de urbanização, plano de pormenor; (iii) instrumentos de política
setorial; e (iv) planos de natureza especial. Interessa-nos, aqui, compreender a relação
entre os instrumentos de desenvolvimento territorial e os de planejamento territorial.
O art. 10º-1 estabelece que “os instrumentos de planeamento territorial devem
prosseguir as orientações definidas pelos instrumentos de desenvolvimento territorial”.
E é nos instrumentos de planejamento territorial que se define o regime de uso do
solo, no qual se procede a sua classificação e qualificação (art. 15º-1 e art. 15º-4). A
elaboração e aprovação dos instrumentos são definidas pelo art. 20º, porém – assim
como toda a base da política de ordenamento do território e do urbanismo – estes
procedimentos tiveram o seu regime jurídico regulamentado pelo Decreto-Lei nº
380/1999, e cabe aqui a sua análise: (i) o programa nacional é elaborado pelo Governo
e aprovado pela Assembleia da República; (ii) os planos regionais são elaborados pelas
Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) e aprovados pelo
Conselho de Ministros;3 (iii) os planos intermunicipais são elaborados pelos municípios
integrantes e, após parecer da CCDR, aprovados pelas Assembleias Municipais; (iv)
os planos municipais são elaborados pelas câmaras municipais e, após parecer da
CCDR, aprovados pelas Assembleias Municipais – porém, caso apresentem alguma
incompatibilidade com outros planos, ficam sujeitos à ratificação pelo Governo. Em
síntese: o regime de uso do solo – que deve respeitar o programa nacional, os planos
regionais e intermunicipais de ordenamento do território – é definido pelas autarquias
locais, as quais podem ter que se sujeitar à ratificação do governo caso haja dissonância
entre os planos.
Por fim, interessa-nos saber como a participação da sociedade opera dentro do
sistema de gestão. A participação, apesar de princípio geral, não é traduzida como
parte integrante do sistema; ela está contida na elaboração dos instrumentos de gestão
territorial. O Decreto-Lei nº 380/1999, nos seus artigos 5º e 6º, transformou a
redação do art. 5º-f da Lei nº 48/98 e do art. 65º-5 da Constituição em dois direitos –
direito à informação e direito à participação – que garantem à sociedade a intervenção
na elaboração dos instrumentos. O direito à informação garante a consulta dos
procedimentos realizados, a obtenção de cópias de documentos e informações sobre
disposições diversas. O direito à participação garante a possibilidade de formular
sugestões e pedidos de esclarecimento. Ainda referente ao direito de participação,
no caso de planos de urbanização e planos de pormenor – planos de menor alcance
territorial –, é facultado aos interessados apresentar à câmara municipal propostas
de contrato para a elaboração de um projeto de plano. Nesses casos, o contrato não
substitui o plano nem os procedimentos de elaboração, adquirindo eficácia na medida
em que for incorporado ao plano.
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3 As Comissões de Coordenação e Desenvolvimento
Regional são serviços periféricos da administração direta do Estado, no âmbito do
Ministério do Ambiente, do
Ordenamento do Território
e do Desenvolvimento Regional, com sedes em Porto,
Coimbra, Lisboa, Évora e Faro
(Decreto-Lei nº 134/2007).
O Conselho de Ministros faz
parte da estrutura do Governo e é constituído pelo
Primeiro-Ministro,
pelos
Vice-Primeiros-Ministros, se
os houver, e pelos Ministros
(art. 184º da Constituição).
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Para além da positivação dos dois direitos, o Decreto-Lei em questão também
estabeleceu os procedimentos para a apreciação pública dos instrumentos. Em todos
os âmbitos, os instrumentos possuem uma estruturação muito parecida: (i) durante
a elaboração, existe o acompanhamento por uma comissão estabelecida pelo nível
da Administração Pública que possui a competência em elaborar o instrumento (a
qual pode, ou não, ser constituída exclusivamente por entidades públicas); (ii) ainda
durante a elaboração, ocorre a concertação (dependendo do instrumento, ela pode se
integrar ao procedimento de acompanhamento) com as entidades que formularam
objeções às futuras orientações do instrumento; (iii) emitido o parecer da comissão
de acompanhamento (que alude à coerência entre os instrumentos de gestão do
território), a Administração Pública abre o período de discussão pública, que consiste
na recolha de observações e sugestões sobre o instrumento.
Após a discussão, a Administração Pública deve ponderar e divulgar os
resultados da discussão pública, assim como elaborar a versão final do plano. Em
síntese: os procedimentos de participação são definidos pelo próprio Estado Unitário
e uniformizados para todos os instrumentos. Aos interessados, cabe o direito à
informação e à participação; porém, a vinculação das observações e sugestões com o
plano não é compulsória, ou seja, uma vez justificada a Administração Pública não
tem a obrigação de levá-las em consideração na versão final do plano.
5. O caso italiano
A ideia de tornar a Itália um Estado Regional está presente desde o Ressurgimento,
no século XIX, e é sucessivamente resgatada pelo Partido Popular através do seu líder
Don Sturzo, vindo a se concretizar com o art. 5 da Constituição de 1948 e a tomar
corpo definitivamente nas reformas da década de 1970 (AIME, 1996). No Estado
Regional, existe a instituição de um poder legislativo por parte das regiões, porém,
sem existir uma coexistência de ordenamentos jurídicos diferentes, uma forma de
descentralização e autonomia que se coloca entre o Estado Unitário e o Estado Federal
(CHAGNOLLAUD, 2005).
Na Constituição Italiana, a positivação do princípio da subsidiariedade é
explícita. Enquanto o art. 114 reconhece a existência de Comunas, Províncias, Cidades
Metropolitanas e Regiões, o art. 118 institui que: “As funções administrativas são
atribuições das Comunas salvo, para assegurar o exercício unitário, sejam conferidas
às Províncias, Cidades metropolitanas, Regiões e Estado, com base nos princípios
da subsidiariedade, diferenciação e adequação.” A consolidação do princípio como
ordenador da organização administrativa do Estado é a Lei nº 59/1997, conhecida
como Lei Bassanini, que conferiu às leis ordinárias – e não mais às mudanças
constitucionais – a possibilidade de delegar funções e competências para as Regiões e
entes locais com o intuito de simplificar a administração. A instituição de funções e
competências deve seguir vários princípios, sendo o primeiro deles
[...] o princípio de subsidiariedade, com atribuição da generalidade das competências e
das funções administrativas das comunas, províncias e comunidades montanas, segundo
as respectivas dimensões territoriais, associativas e organizativas, com exclusão tão somen-
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te das funções incompatíveis com estas mesmas dimensões, atribuindo a responsabilidade
pública também a fim de favorecer o absorvimento das funções e das competências de
relevância social das famílias, associações e comunidades, às autoridades territorialmente e
funcionalmente mais próximas aos cidadãos interessados. (Item a, inciso 3, art. 4).
Entre as competências concorrentes do Estado e Regiões está o Governo do
Território (art. 117 da Constituição), no qual se inclui o planejamento urbano. A lei
geral é denominada Legge Urbanistica Statale nº 1.150/1942, a qual define o exercício
da disciplina urbanística através de planos e normas sobre a atividade construtiva
edilícia. Observa-se que a lei geral estabeleceu dois níveis territoriais para a elaboração
dos planos: Planos Territoriais de Coordenação (nível regional) e Planos Reguladores
Comunais (nível comunal), sendo os últimos divididos em Planos Reguladores Gerais
e Planos Reguladores Particularizados.
O Plano Territorial de Coordenação tinha sua elaboração realizada pelo
Ministério dos Afazeres Públicos e era aprovado por Decreto Presidencial. O Plano
Regulador Geral devia ser elaborado pela própria Comuna; depois de pronto, as
associações sindicais, entes públicos e instituições interessadas teriam trinta dias
para fazer observações. Passado o tempo regulamentar, o PRC era então aprovado
por Decreto do Ministério dos Afazeres Públicos depois de parecer do seu Conselho
Superior. Por fim, o Plano Regulador Particularizado tinha sua elaboração similar ao
Plano Geral, porém com aprovação realizada do Chefe Regional de obras públicas.
Com o Decreto do Presidente da República nº 8/1972, o Estado transferiu para as
Regiões as funções administrativas da matéria urbanística, incluso a competência de
aprovação dos Planos Territoriais de Coordenação e dos Planos Reguladores Comunais.
Também foram transferidos às Regiões os escritórios regionais de obras públicas
(que anteriormente faziam a aprovação dos Planos Reguladores Particularizados).
Com a transferência cada vez maior de competência, as Regiões acabaram por se
diferenciarem na regulamentação do governo do território. O que apresentaremos a
seguir é a constituição do sistema instituído pela Região da Toscana.4
O Estatuto Regional, aprovado em 2004, é tácito ao reconhecer a subsidiariedade
como princípio que rege a autonomia tanto institucional (subsidiariedade vertical)
quanto social (subsidiariedade horizontal) com o objetivo de “avizinhar na mais ampla
medida os cidadãos da organização da vida social e do exercício das funções públicas”
(item 1, art. 58). O Estatuto institui a Conferência Permanente das Autonomias
Sociais, que se encontram três vezes ao ano, para formular propostas e consultas ao
Conselho Regional (art. 61). Seguindo o princípio, é instituído também o Conselho
das Autonomias Locais para representar o sistema de órgãos locais, com funções
consultivas e propositivas (art. 66).
As normas para o governo do território foram regulamentadas pela Lei Regional
nº 1/2005. No capítulo II são instituídos os sujeitos do governo explicitamente através
do princípio da subsidiariedade: “As funções administrativas relativas ao governo
do território são atribuídas, no âmbito da respectiva competência, às comunas, às
províncias e às Regiões, que as exercitam no respeito das disposições da presente lei,
com base no princípio da subsidiariedade, diferenciação e adequação.” (item 1, art. 7)
O capítulo garante também a participação dos cidadãos, singulares ou associados, na
elaboração dos instrumentos de planejamento territorial.
Os instrumentos são instituídos em três níveis: Plano de Direção Territorial
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4 Queremos enfatizar o caráter exemplificativo da Região
da Toscana, visto que a questão regional italiana tem se
desdobrado de formas variadas consoante às realidades
das suas regiões. Escolhemos
a Toscana por entender que é
uma das que melhor traduz o
princípio da subsidiariedade
na estipulação de um sistema
de governo do território.
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(nível regional); Plano Territorial de Coordenação Provincial (nível provincial); e
Plano Estrutural Comunal (nível comunal). Para garantir a coerência entre os planos
é realizada uma validação integrada. Essa validação compreende a verificação técnica
da compatibilidade nos usos dos recursos essenciais do território. Após a elaboração,
existe o prazo de sessenta dias para que qualquer ente ou cidadão apresente observações.
Os planos são elaborados e aprovados pelos próprios níveis de competência, ou seja,
o PDT pela Região, o PTCP pela Província e o PEC pela Comuna. Existe ainda, a
cargo da Comuna e em consonância com o PEC, o regulamento urbanístico (onde
é disciplinado o uso e ocupação do solo), o plano complexo de intervenção (plano
de transformação do território através de execução programática pública e privada)
e o plano de atuação (plano de detalhamento do regulamento urbanístico e do
plano complexo de intervenção). Esses três instrumentos são aprovados pela própria
Comuna, a qual deve depositar o seu conteúdo por quarenta e cinco dias – após a sua
elaboração – para que possam ser feitas observações.
A lei institui nos três níveis decisionais (Região, Província e Comuna), como
instituto de participação, a figura do Garante da Comunicação. É função do Garante
assegurar o conhecimento das escolhas relativas às fases procedimentais de formação
e adoção dos instrumentos de planejamento territorial, assim como promove a
informação desses procedimentos aos cidadãos (item 1, art. 20). Apesar de não trazer
um maior detalhamento dos procedimentos de participação – o Garante é o único
instituto de participação previsto na lei e é definido em dois artigos –, a Toscana possui
uma lei específica que regulamenta a participação na elaboração das políticas regionais
e locais, a Lei Regional nº 69/2007.
A lei estabelece a participação como um direito e retoma o princípio da
subsidiariedade estabelecido no Estatuto Regional. Para tal, é instituído a Autoridade
Regional para a Garantia e Promoção da Participação. A Autoridade remete-se ao
Conselho Regional, o qual nomeia o titular do cargo. É esperado que a Autoridade
organize debates públicos sobre as grandes intervenções de relevância ambiental,
territorial, social e econômica, com a utilização de metodologias participativas (no
caso de intervenções ambientais e territoriais, a Autoridade organiza o processo em
conjunto com o Garante Regional). A Autoridade possui dois instrumentos para
auxiliar a sua competência: a informação e a atividade formativa. No primeiro,
garante-se a difusão da informação sobre os atos e documentos existentes acerca dos
projetos; no segundo, realizam-se cursos de formação.
No art. 21 existe a delimitação específica para a coordenação entre a lei da
participação e a lei do governo do território. Nesse artigo, são garantidos os princípios
e institutos da Lei nº 1/2005 e a iniciativa por parte do Garante Regional em instituir
os procedimentos participativos no caso do Plano de Direção Territorial. A lei deixa em
aberto a possibilidade dos outros entes locais, na fase de elaboração dos instrumentos
de planejamento territorial, abrirem mão dos institutos criados pela lei da participação.
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6. O caso brasileiro
O federalismo pode ser visto como a realização do princípio da subsidiariedade na vida
política. Ele abraça o princípio da subsidiariedade, mas não é idêntico a ele porque, concretamente, o federalismo não requer que o Estado seja ordenado em acordo com o princípio da subsidiariedade. (KÜHNHARDT, 1992, p. 54)
A relação entre federalismo e subsidiariedade – no momento em que não são
diretamente sinônimos – se deve ao fato de que ambos os conceitos compreendem
a necessidade de gerar e manter simultaneamente a unidade e a difusão do poder
em nome da diversidade (PASARIN, 2001). A partir disso, podemos entender
por que a subsidiariedade não é, necessariamente, um princípio expresso na
constituição brasileira.
Para Cavalcanti (2008, p. 222), “a estrutura constitucional de 1988 e o modelo
federalista descentralizado são manifestações claras, mesmo que não tácitas, do princípio
da subsidiariedade no aspecto vertical”. Como podemos, então, reconhecer a existência
da subsidiariedade no modelo federalista brasileiro? Horta (2003, p. 27) responde que
“é na repartição de competência da Constituição Federal de 1988 que se localiza a forma
mais avançada da inclusão da subsidiariedade em texto constitucional brasileiro”. Ao
definir a organização do Estado através da existência federativa da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios, assim como as suas competências, a constituição
brasileira, implicitamente, instala um sistema de pluralidade de ordenamentos jurídicos
que devem se relacionar através do princípio da subsidiariedade.
O direito urbanístico – ramo do direito que trata da ocupação, uso e transformação
do solo – é considerado competência concorrente entre a União, os Estados e o
Distrito Federal, como definido no art. 24, inciso I. Ao município compete, conforme
o art. 30, inciso VIII, “promover, no que couber, adequado ordenamento territorial,
mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo
urbano”. Porém, consoante aos instrumentos de planejamento, é exclusivo da União,
em acordo com o art. 21, inciso IX, elaborar e executar planos nacionais e regionais
de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social. Já o art. 182 –
que em conjunto com o art. 183 define os princípios da política urbana – garante
exclusividade do Poder Público Municipal em elaborar e aprovar o Plano Diretor
Municipal, sendo que este é considerado o instrumento básico de desenvolvimento
urbano ao definir a função social da propriedade. Existe, em conclusão, uma
delimitação constitucional precisa da responsabilidade, assim como a garantia de não
ingerência, na elaboração dos instrumentos.
O Brasil não possui um código de urbanismo, tendo a matéria do direito
urbanístico difusa por vários diplomas, sendo os principais deles a Lei nº 6.766/1966,
que dispõe sobre o parcelamento do solo para fins urbanos; a Lei nº 10.257/2001,
que regulamenta os art. 182 e 183 da Constituição (conhecida como Estatuto das
Cidades); e a Lei nº 11.977/2009, que dispõe sobre a regularização fundiária de
assentamentos urbanos. Iremos nos ater, aqui, ao Estatuto das Cidades.
O Estatuto estabelece as diretrizes gerais para a execução da política urbana no
Brasil (art. 2º). Entre elas se destacam, no escopo deste estudo, a gestão democrática
por meio da participação da população e de associações representativas (inciso II);
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cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade
(inciso III); e a ordenação e controle do uso do solo (inciso VI). A Lei estabelece,
também, quais são os instrumentos da política urbana (art. 4º): (i) planos nacionais,
regionais e estaduais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico
e social; (ii) planejamento das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e
microrregiões; (iii) planejamento municipal (entre eles o Plano Diretor Municipal
e a gestão orçamentária participativa); (iv) institutos tributários e financeiros; (v)
institutos jurídicos e políticos; (vi) estudo prévio de impacto ambiental (EIA) e estudo
prévio de impacto de vizinhança (EIV).
Não é definida, no texto da lei, a vinculação entre os instrumentos no que
tange aos entes federados, ou seja, o planejamento municipal não tem a obrigação
de se adequar aos planos nacionais, regionais e estaduais. Mesmo quando define as
disposições sobre o Plano Diretor (art. 39 a 42), o Estatuto garante a autonomia
dos municípios em elaborar e aprovar os planos sem a interferência das entidades
maiores. Concomitantemente, no que tange à participação da população, o Estatuto
estabelece que, durante o processo de elaboração e fiscalização da implantação do
Plano, o Poder Municipal deve garantir a promoção de audiências públicas e debates
com a população e associações representativas, assim como a publicidade e o acesso
dos documentos e informações produzidos. O Plano Diretor deve conter, ainda, um
sistema de acompanhamento e controle.
O Estatuto traz um capítulo específico sobre a gestão democrática da cidade
(capítulo IV), no qual estabelece os instrumentos a serem utilizados: (i) órgãos
colegiados de política urbana, nos níveis nacional, estadual e municipal; (ii) debates,
audiências e consultas públicas; (iii) conferências sobre assuntos de interesse urbano,
nos níveis nacional, estadual e municipal; e (iv) iniciativa popular de projeto de lei e
de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano. Os órgãos colegiados
deram início, no Brasil, a uma maior densidade na instituição de Conselhos Nacional,
Estaduais e Municipais para acompanhar a elaboração e execução da política urbana.
Em consoante aos conselhos, foi instituído em 2003 a Conferência Nacional das
Cidades, precedida das etapas estaduais e municipais. O capítulo, em ordem geral,
estabelece ainda as disposições de participação sobre a gestão orçamentária participativa,
um dos instrumentos de planejamento municipal. A vinculação entre elaboração dos
instrumentos e gestão democrática define uma mudança de caráter do planejamento
urbano, centrado anteriormente no produto final do plano diretor, para um caráter
processual de debate público e de articulação de instrumentos de ordem diversa.
Ainda relativo à participação da população na elaboração dos instrumentos de
planejamento municipal, o Conselho Nacional das Cidades editou duas resoluções
sobre a elaboração de Planos Diretores: resolução nº 25/2005 e resolução nº 34/2005.
A primeira delas, além de reforçar algumas disposições do Estatuto das Cidades, detalha
recomendações sobre o processo de participação (art. 3º a 10º), como, por exemplo:
ampla comunicação pública; ciência do cronograma e dos locais das reuniões com
antecedência de no mínimo 15 dias; promoção de ações de sensibilização, mobilização
e capacitação; requisitos para as audiências públicas; a garantia de que as audiências
podem ser convocadas pela Sociedade Civil; entre outras. A Resolução nº 34/05,
ao estabelecer os conteúdos mínimos do Plano Diretor, detalha quais devem ser os
instrumentos do sistema de acompanhamento e controle do Plano (art. 6º e 7º).
O detalhamento dos procedimentos de elaboração e participação por parte da
152
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JULIANO
GERALDI
União poderia ser entendido como o desvirtuamento da ordem federativa.5 O papel
do município na Federação é complexo devido à sobrecarga de competências e à
diminuição do volume de repasses por parte das outras entidades (CAVALCANTI,
2008). Esse contexto enfraquece a autonomia municipal ao minar as condições de
realização dos seus objetivos últimos. Por mais que o ordenamento jurídico deixe brechas
no entendimento de até onde, especificamente, pode-se interferir nos procedimentos,
a forma como se dão as relações de capacidade de atuação e financiamento das ações
no Brasil cria um sistema no qual os entes menores acabam por se condicionar
às definições dos entes maiores para que garantam, ao final, a realização dos seus
objetivos (ARRETCHE, 2002). Isso é observável no caso do repasse de recursos da
União e dos Estados aos Municípios para elaborar o Plano Diretor, momento no qual
os entes maiores definem a metodologia que deve ser utilizada em contrapartida ao
financiamento dado.
7. Conclusões possíveis
Começamos a última parte deste ensaio lembrando que a subsidiariedade não é
simplesmente um movimento exclusivo de descentralização, mas sim um princípio
que resguarda o alcance de objetivos a partir de uma visão organicista da sociedade,
tendo ao centro o indivíduo e sua capacidade de atuação frente ao contexto social.
Isso significa que todo procedimento subsidiário emana do indivíduo para esferas
superiores com o intuito de adequar capacidade e eficiência. Ou seja, a centralidade
que os sujeitos da ação subsidiária tomam nos processos depende, em grande medida,
da sua capacidade em realizar as tarefas necessárias com eficiência. A subsidiariedade
transforma-se, assim, em instrumento de regulação da tensão entre autonomia e
autoridade – uma forma de equilibrar liberdade e governo.
Tomando em conta a estruturação entre Estado e sociedade, nos três países
estudados é visível a centralidade que o Estado desenvolveu, seja no poder central, seja
no poder local, ao aliar capacidade e eficiência. Essa centralidade acabou por separar
a ação subsidiária entre uma componente vertical (dentro do próprio Estado) e uma
componente horizontal (do Estado para a sociedade). Nos três países, respeitado as
suas características específicas, é possível observar iniciativas para transferir capacidades
de atuação para a sociedade. Para uma melhor análise dos contextos comparados,
apresentamos o Quadro 1 que sintetiza a análise.
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153
5 O caso do município de São
Paulo é paradigmático no
sentido de entender até onde
esse detalhamento pode estar incluído no ordenamento
jurídico do direito urbanístico brasileiro. Tendo a legalidade do processo de revisão
do Plano Diretor questionada
por ação civil pública (processo nº 053.08.111161-0
na 5a Vara de Fazenda Pública do Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo), o argumento central da ação era
de que o processo não havia
levado em consideração as
resoluções do Conselho das
Cidades. Porém, na sentença
expedida em julho de 2010,
a Justiça não acatou o argumento, tendo em conta que
as resoluções não teriam a
competência constitucional
para definir o procedimento
municipal.
S U B S I D I A R I E D A D E
E
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U R B A N O
Quadro 1 – Síntese da análise
Subsidiariedade Vertical
Sujeitos
Objetos
Asserções Normativas
Portugal
Caráter descendente:
do Estado para os
Municípios.
Ordenamento Territorial e
Planejamento Urbano são
competências conjuntas.
Os Planos Diretores
devem respeitar os
planos hierarquicamente
superiores.
O princípio é garantido
pela Constituição.
Lei específica rege a
matéria urbanística.
Itália
Caráter descendente:
do Estado para as
Regiões, e destas para
as Comunas.
Ordenamento Territorial e
Planejamento Urbano são
competências conjuntas.
Os Planos Diretores
devem respeitar os
planos hierarquicamente
superiores.
O princípio é garantido
pela Constituição.
Lei específica rege a
matéria urbanística.
Caráter descendente:
da União para os
Municípios.
Planejamento Urbano é
competência exclusiva dos
Municípios.
Não existe vinculação direta
entre Planos Diretores e
outros planos, porém os
planos diretores devem
respeitar a hierarquia
jurídica de instrumentos
com rebatimento no
planejamento urbano.
O princípio é garantido
pela organização
federativa.
Lei específica rege a
matéria urbanística.
Sujeitos
Objetos
Asserções Normativas
Participação da
sociedade em caráter
majoritariamente
consultivo nos níveis locais.
O princípio da
participação é garantido
pela Constituição.
Lei específica garante o
direito da Sociedade em
intervir no processo de
planejamento.
Brasil
Subsidiariedade
Horizontal
Portugal
Caráter descendente:
dos Municípios para
a sociedade.
Itália
Caráter descendente:
das Comunas e
Regiões para a
sociedade.
Participação da sociedade
em caráter consultivo/
deliberativo nos níveis
locais e regionais.
O princípio da
participação é garantido
pela Constituição.
Lei específica garante
a participação
da Sociedade na
elaboração dos
instrumentos.
Brasil
Caráter descendente:
da União, Estados
e Municípios para a
sociedade.
Participação da sociedade
em caráter consultivo
na União e nos Estados,
e em caráter consultivo/
deliberativo nos níveis
locais.
O princípio da
participação é garantido
pela Constituição.
Lei específica estabelece
a gestão democrática
das cidades.
Todos os três países possuem uma subsidiariedade vertical descendente, que tem
como ponto final algo que alude ao espaço local. Porém, apresentam diferenças consideráveis. Enquanto existe um escalonamento nos casos português e italiano, no caso
brasileiro o planejamento urbano é delegado da União diretamente para os Municípios – o que é prova do municipalismo instalado com a Constituição de 1988. Além
disso, apesar do planejamento urbano ser de competência exclusiva dos Municípios
no Brasil, tanto Portugal quanto Itália possuem mecanismos para garantir uma maior
coesão entre os instrumentos locais e as políticas nacionais de ordenamento territorial.
154
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JULIANO
GERALDI
O fato de os municípios brasileiros possuírem, na letra da lei, maior autonomia na elaboração dos seus instrumentos não significa, por outro lado, uma maior capacidade de
atuação do nível local. As contingências do contexto brasileiro, onde não é garantida
aos Municípios a capacidade material de elaborar seus instrumentos, acaba por reportar um controle indireto dos níveis mais altos da federação sobre a atuação municipal,
principalmente no momento das transferências orçamentárias.
No que tange à subsidiariedade horizontal, a figura do Estado – principalmente
no que alude ao governo local – ainda é considerada o sujeito responsável em operar o
planejamento urbano de forma competente e eficaz. Apesar de os três países possuírem
uma subsidiariedade horizontal com fluxos em direção à sociedade, parece haver
uma dificuldade maior em subsidiar a ação social. Nos três contextos não existe uma
transferência direta do poder decisório para a sociedade, sendo que todos os institutos
dependem da validação ou não pelo Estado, apresentando-se majoritariamente na
forma consultiva aos indivíduos e grupos sociais. No caso brasileiro, parece haver uma
passagem de um contexto de plano-produto para plano-processo, ou seja, os institutos
de participação não estão relacionados apenas com o momento de elaboração do
plano, mas em todo o processo de intervenção. Na Itália, o momento de deflexão
parece já ter surgido, porém, visto as especificidades regionais, deverá ocorrer de forma
mais lenta e com grande diferença espacial no território.
Não é possível estabelecer uma dinâmica mecânica para a operacionalização
do princípio da subsidiariedade. A definição da atuação dos grupos sociais pela
competência e eficácia está demasiada vinculada com o contexto sociopolítico
dos países e com a influência que suas formações históricas tiveram na gênese da
tensão entre autonomia e autoridade. No momento em que parece haver uma maior
facilidade em descender o objeto da subsidiariedade dentro do seu matiz vertical – ou
seja, dentro da organização política do Estado, em vez do matiz horizontal, em direção
à sociedade –, a operacionalização do princípio deixa transparecer que, nos três países
estudados, o Estado centraliza-se como a entidade responsável por estabelecer a
coerência geral entre os diversos grupos sociais. Cabe agora, nos três países, garantir
que o caráter democrático estabeleça uma relação virtuosa entre a subsidiariedade
vertical e a subsidiariedade horizontal.
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Juliano Geraldi é pesquisador do PEOPLES’ – Observatório da Participação, da Inovação e dos Poderes Locais,
do Centro de Estudos Sociais
da Universidade de Coimbra. Mestre em Geografia e
Doutorando doutorando em
Democracia no Século XXI
(Universidade de Coimbra,
Portugal). E-mail: <juliano_
[email protected]>.
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P L A N E J A M E N T O
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JULIANO
GERALDI
A b s t r a c t A principal way of accessing housing for the urban poor in Buenos
Aires is through the illegal occupation of land, thereby creating informal settlements.
This article examines the development of informality, patterns of social mobility and
residential trajectories within and between informal settlements in Argentina’s capital in
recent decades. Using survey and interview data among residents in a variety of informal
settlements complemented with field observation and secondary data, it is shown that there
is much variation in dwellers’ perspectives and the strategies they employ to secure their
tenure and livelihoods. Furthermore, it is shown how government policy and law condition
not only the emergence of informality, but also the particular shape it takes.
Keywords:
subsidiarity; urban planning; Portugal: Italy; Brazil.
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O Programa Minha Casa
Minha Vida na metrópole
paulistana: atendimento
habitacional
e padrões de segregação
Eduardo Marques
Leandro Rodrigues
Resumo
Este artigo analisa a produção do programa Minha Casa Minha Vida
na região metropolitana de São Paulo. O trabalho parte de uma revisão das principais
características e críticas ao programa para investigar o volume de produção, sua adequação
à demanda habitacional para cada faixa de renda na região, assim como a localização dos
empreendimentos. Utilizando técnicas de geoprocessamento, são levantados os padrões de
segregação dos empreendimentos com relação a distâncias a centralidades, a equipamentos
públicos e aos conjuntos produzidos pelas políticas habitacionais prévias. Os dados
confirmam análises anteriores com relação à localização periférica dos empreendimentos,
em especial para a primeira faixa de renda. Entretanto, considerando os padrões de
localização dos conjuntos existentes e faixas de renda comparáveis, os resultados sugerem
que o programa tem produzido conjuntos menos isolados do que as políticas prévias, não
sendo possível afirmar que o programa apresente os mesmos resultados territoriais que as
políticas precedentes.
Pal avras-Chave:
Política habitacional; Minha Casa Minha Vida;
segregação; periferia; São Paulo.
Este artigo analisa a produção habitacional do Programa Minha Casa Minha
Vida (MCMV), na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), em especial no que
diz respeito à localização dos empreendimentos e aos padrões de segregação presentes
na metrópole. Até junho de 2013, 557 empreendimentos haviam sido contratados
na RMSP, totalizando 107.589 unidades habitacionais (UH). Dentre elas, 34%
destinaram-se à faixa 1 (famílias que ganham de 0 a 3 salários mínimos), 39% à faixa
2 (famílias que ganham 3 a 6 salários mínimos) e 27% à faixa 3 (famílias que ganham
entre 6 e 10 salários mínimos).
Como se sabe, esse programa federal contribuiu sensivelmente para elevar o
volume da produção habitacional nos últimos anos, após décadas de ausência de
investimentos massivos do governo federal no setor, que foi bastante comemorado
pela comunidade das políticas habitacionais. Entretanto, certos aspectos do programa
têm sido alvos de críticas, em especial com relação ao déficit habitacional e à segregação
social no espaço. Em primeiro lugar, a distribuição da produção do MCMV não estaria
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159
O PROGRAMA MINHA CASA MINHA VIDA NA METRÓPOLE PAULISTANA
ajustada à distribuição do déficit por faixas de renda. Em nível nacional, a faixa 1 –
relativa a no máximo 3 salários mínimos de renda familiar mensal – representa 89,7%
do déficit (BRASIL, 2011), mas o programa incluía apenas 40% das unidades para
esta faixa. Em contrapartida, as faixa de renda mais elevadas estariam recebendo muito
mais recursos do que a sua participação no déficit habitacional. Um segundo conjunto
de críticas diz respeito à localização geográfica dos empreendimentos. Considerando
o pequeno papel destinado aos governos locais na implementação do programa e a
grande discricionariedade experimentada pelos produtores privados, o programa
estaria gerando uma nova onda de periferização nas cidades brasileiras, com todas as
conhecidas consequências negativas dessas formas de produção do espaço.
O presente artigo testa empiricamente essas hipóteses para a RMSP, analisando
a distribuição da produção por faixas e as localizações dos empreendimentos. Como
veremos, embora o padrão de localização dos empreendimentos seja bastante
periférico, as críticas presentes na literatura devem ser matizadas se levarmos em
conta os padrões de segregação existentes na cidade e aqueles a que esteve submetida
a produção habitacional pública produzida nas décadas passadas.
O texto tem três partes, além desta introdução e da conclusão. Na seção seguinte,
explicaremos as linhas gerais do programa e as críticas que tem recebido. Na segunda
seção, apresentaremos a produção na região metropolitana de São Paulo, tanto em
termos quantitativos como no que diz respeito à sua distribuição geográfica geral. Na
terceira parte, investigamos a dimensão espacial do programa em detalhes, analisando
dois aspectos: os padrões de segregação dos empreendimentos, comparando-os com
as localizações dos conjuntos construídos pela Companhia de Habitação de São Paulo
(COHAB) e pela Companhia do Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU),
bem como os conteúdos sociais e econômicos das regiões nas quais foram construídos
os empreendimentos do MCMV.
1. O Minha Casa Minha Vida
Nesta seção apresentamos as principais características do programa e as mais
importantes críticas levantadas pelo debate. Não temos a pretensão de construir uma
revisão abrangente sobre qualquer dos dois pontos, pois já se encontram disponíveis
excelentes trabalhos realizando esta tarefa (CARDOSO; ARAGÃO, 2013), mas
apenas construir um pano de fundo para a análise que se segue.
O programa habitacional foi constituído em 2008 e conta com duas fases: a
primeira, estabelecida em 2009, por meio da Lei no 11.977/2009, e a segunda em
2011, com a Lei no 12.424/2011. Além desses dois instrumentos legais, o programa é
regido por uma série de portarias interministeriais e decretos presidenciais. Cada uma
das duas fases do programa objetivava construir 1 milhão de moradias para famílias
com renda inferior a 10 salários mínimos (SM) mensais.
Embora focado na produção habitacional, o programa tentava alcançar objetivos
mais gerais, ligados ao reforço da atividade econômica em um contexto de crise
econômica internacional (KRAUSE; LIMA NETO; BALBIM, 2013). Algumas das
mais importantes decisões em termos de desenho do programa foram derivadas do
imperativo de produzir resultados imediatos, dado aquele objetivo econômico. Uma
das principais consequências disso foi uma pequena aderência do MCMV às diretrizes
160
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ED UARDO
MARQUES
E
L E AND RO
ROD RI GU ES
estabelecidas pelo Plano Nacional de Habitação (PlanHab) de 2004, segundo críticos
(BONDUKI, 2009; KRAUSE; LIMA NETO; BALBIM, 2013). A primeira fase
foi concluída em 2011 com a construção de 4.493 empreendimentos totalizando
743.430 unidades (CARDOSO; ARAÚJO; JAENISCH, 2013) – e a segunda fase
ainda está em andamento.
A estrutura de implementação criada para o programa foge bastante à tradição do
setor habitacional no Brasil. A Caixa Econômica Federal (CEF) é gestora operacional
do MCMV, recebendo e aprovando (ou não) as propostas de construção dos
empreendimentos apresentadas diretamente por empresas da construção civil. Aos
governos locais coube principalmente a viabilização da questão da terra, após a adesão
ao programa junto à CEF.
O objetivo declarado do programa foi a redução do déficit habitacional nacional.
A principal inovação do programa situa-se nas condições para o atendimento das
famílias mais pobres, prevendo elevado subsídio para as famílias enquadradas na faixa
1 (entre 0 e 3 salários mínimos mensais de renda familiar), subsídio moderado para
famílias da faixa 2 (entre 3 e 6 salários mínimos) e ausência de subsídio para as famílias
da faixa 3 (entre 6 e 10 salários mínimos de renda). Além disso, as três faixas têm
acesso ao Fundo Garantidor da Habitação (FGHab), o qual viabiliza um sistema de
compensação no caso de instabilidade de renda dos mutuários.
Cada faixa salarial possui o seu produto habitacional correspondente: famílias
da faixa 1 adquirem a moradia por meio dos recursos do Fundo de Arrendamento
Residencial (FAR), ou, caso estejam reunidas em uma entidade organizadora (EO),
por meio do Fundo de Desenvolvimento Social (FDS). As famílias da faixa 2 e 3
têm acesso às linhas de financiamento habitacionais da CEF, que foram agrupadas
ao MCMV e cujos recursos financeiros têm como origem o Fundo de Garantia por
Tempo de Serviço (FGTS).
Os produtos habitacionais podem ser subdivididos também nos destinados às
pessoas físicas (PF) ou à pessoa jurídica (PJ): no primeiro caso os financiamentos
habitacionais são contratados diretamente pelo mutuário nas agências da CEF.
O segundo caso, diferentemente, envolvem operações de créditos destinadas às
construtoras, cujo recurso financeiro pode ser oriundo do FAR, do FDS ou do FGTS.
Adicionalmente, para os empreendimentos das faixa 2 ou 3, há ainda o
financiamento feito pela CEF à pessoa física, e para a faixa 1 a participação da prefeitura
que cadastra e sorteia as famílias que poderão adquirir a moradia pelo MCMV. Se
o empreendimento se destina a uma entidade organizadora (EO) da faixa 1, não há
participação da prefeitura, pois é a EO quem seleciona e indica as famílias que serão
beneficiadas pelo programa – na prática, as próprias famílias participantes da entidade.
Um aspecto positivo do programa é a quantidade de recursos financeiros
destinados ao atendimento das famílias mais pobres, os quais são convertidos em
amplo subsídio para faixa 1 e moderados subsídios para a faixa 2. Porém, o MCMV
tem recebido diversas críticas, e analisaremos neste texto dois conjuntos de crítica: o
atendimento da faixa 1 na RMSP e a segregação socioespacial dos empreendimentos
na metrópole paulistana.
Em nível nacional, o programa destinou originalmente 47% dos seus recursos
financeiros para famílias enquadradas na faixa 1 (BRASIL, 2009), proporção elevada
na fase 2 para 60%. Porém o déficit habitacional na faixa de até 3 SM é de 89,6%,
segundo cálculo da Fundação João Pinheiro (BRASIL, 2011). Consequentemente, o
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161
O PROGRAMA MINHA CASA MINHA VIDA NA METRÓPOLE PAULISTANA
déficit na faixa 1 “pode ser reduzido pelo PMCMV em 7,13%, enquanto que na faixa
de 3 a 10 SM o déficit seria reduzido em 99,63%” (NASCIMENTO; TOSTES, 2011).
Além disso, o MCMV tenderia a “[beneficiar] segmentos de classe média [...] gerando
mercado para o setor privado, com risco reduzido” (BONDUKI, 2009, p. 13).
Na mesma direção foram Arantes e Fix (2009) ao afirmar que se manterá a
tendência do não atendimento das classes que realmente precisam do subsídio.
Bonduki (2009) alertou para o risco de o programa produzir moradias precárias com
pequena aderência ao perfil do déficit, cuja concentração está localizada na faixa 1.
Com efeito, o autor em questão afirmou que se a meta do programa de construir
400 mil unidades habitacionais para tal faixa fosse alcançada, “apenas 6% do déficit
deveria ser atendido” (BONDUKI, 2009, p. 14).
A localização dos empreendimentos é outro ponto criticado, pois o programa
estabeleceu apenas um conjunto de características básicas sobre os tipos de UH
e conjuntos a serem produzidos. Os primeiros estudos investigando satisfação
dos beneficiários sugerem diversas críticas às tipologias e aos padrões construtivos
(CARDOSO et al. 2013). Os empreendimentos estavam limitados a 500 unidades no
caso de conjuntos e 300 no caso de condomínios, mas não se estabeleceu restrição à
construção de empreendimentos contíguos. Como veremos a seguir na análise dos dados
de São Paulo, isso aconteceu em vários casos, aumentando substancialmente a escala dos
espaços construídos, mas não se pode considerar como o padrão geral do programa.
A literatura tem apontado a ausência de maiores controles sobre a localização
dos empreendimentos, que levaria a mais um ciclo de produção de habitações em
localizações periféricas, reforçando a segregação social no espaço e repetindo em certa
medida as experiências do período Banco Nacional da Habitação (BNH) (ARANTES;
FIX, 2009; BONDUKI, 2009; ROLNIK; NAKANO, 2009, CARDOSO; ARAÚJO;
JAENISCH, 2013; PEQUENO, 2013). Em cidades com mais de 50 mil habitantes
e em regiões metropolitanas, o custo da terra urbana é alto, fazendo com que as
construtoras procurem terras afastadas das áreas urbanizadas de forma a diminuir
seus custos e maximizar seus lucros (CARDOSO, 2013; CARDOSO; ARAÚJO;
JAENISCH, 2013).
O próprio Ministério das Cidades reconheceu esse risco ao afirmar em cartilha
do programa que “é importante tomar cuidado para não reproduzir as velhas práticas
de programas habitacionais que constroem conjuntos com pouca qualidade e mal
localizados” (BRASIL, 2010, p. 22). Por isso, o programa prioriza os estados e
municípios que tenham doado “[...] terrenos localizados em área urbana consolidada
para implantação de empreendimentos vinculados ao programa” (BRASIL, 2010, p.
35). No entanto, esse é o único incentivo para tentar coibir a possível localização
periférica dos empreendimentos e não há controles mais fortes para que esse incentivo
expresso nos textos oficiais se transforme em um traço da política implementada.
Esse problema seria reforçado pelo programa ter relegado ao segundo plano a
ação dos governos estaduais e municipais: “assim, os projetos não são formulados a
partir do poder público ou da demanda organizada, [...] não são definidos como parte
da estratégia municipal de desenvolvimento urbano e podem inclusive contrariála” (ARANTES; FIX, 2009, p. 3-4). Como os projetos são apresentados pelas
construtoras, eles são “estritamente concebidos como mercadorias, rentáveis a seus
proponentes” (ARANTES; FIX, 2009, p. 4). Disso decorreria a existência de uma
forte lógica de mercado no programa, tal como ocorreu durante o BHN, a qual seria
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contrária ao atendimento da faixa 1.
As análises empíricas existentes confirmam essas hipóteses no que diz respeito à
segregação. Araújo, Cardoso e Jaenish (2013) analisaram o padrão de distribuição dos
empreendimentos na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ), destacando
a sua localização periférica. Pequeno (2013), por outro lado, realizou o mesmo
exercício para a Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), chegando a conclusões
similares com relação às tendências de periferização. Os dados reportados por Mercês
(2013) e Moisés et al. (2013) também destacam o padrão periférico para o caso dos
empreendimentos em Belém e Goiânia, respectivamente.
Entretanto, nos parece que a análise da segregação realizada até o momento
pelos estudos existentes pode ser aprimorada. Em primeiro lugar, pois alguns
estudos analisam apenas a produção do programa para a faixa 1, desprezando uma
parte importante da produção (e também do déficit) para a faixa 2 que, em cidades
específicas pode ser muito relevante e obedecer a um padrão espacial diferenciado.
Além disso, e mais importante, a análise da segregação não pode levar em
conta apenas uma análise da distribuição geral dos empreendimentos em mapas ou
detalhando a discussão no máximo ao nível dos municípios. Embora essas dimensões
sejam importantes, representam apenas uma primeira abordagem ao problema, pois
não seria razoável prever que o MCMV promoveria empreendimentos em localização
muito centrais ou em bairros habitados por classes altas, como de resto não o fez
nenhum programa público de habitação. Isso sugere que para analisar os padrões de
segregação, precisamos estabelecer metodologicamente parâmetros comparativos com
relação a distâncias e localizações. Apenas assim poderemos levar em conta as diferenças
de escalas das diferentes cidades, a existência de estruturas urbanas policêntricas, assim
como avaliar o programa com relação à produção habitacional pública existente. Com
relação a esta última, também tem escapado ao debate que o estoque de UH produzido
pelo Estado, por meio das Companhias Habitacionais, é mais claramente comparável
com a faixa 2 do MCMV em termos de renda do que com a faixa 1, pois a produção
do modelo BNH priorizou grupos de renda próximos àquela.
As próximas seções analisam o padrão espacial dos empreendimentos do MCMV
na região metropolitana de São Paulo levando em conta essas dimensões. Na que se
segue, analisamos as características gerais da produção do programa por faixas e no
espaço da metrópole. Na terceira seção, testamos os argumentos críticos relativos à
segregação social no espaço, lançando mão de ferramentas de geoprocessamento para
precisar os padrões de segregação associados aos empreendimentos para as três faixas
do programa.
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O PROGRAMA MINHA CASA MINHA VIDA NA METRÓPOLE PAULISTANA
2. O Minha Casa Minha Vida na região
metropolitana de São Paulo
Até junho de 2013, foram contratados 557 empreendimentos na RMSP pelo
MCMV, totalizando 107.589 unidades, sendo que naquela data 26.019 unidades já
haviam sido entregues e outras 64.623 unidades estavam em obras. Dentre as unidades
contratadas, 34,1% destinam-se para faixa 1, 38,5% para a faixa 2 e 27,4% para a
faixa 3. Apenas para estabelecer patamares de comparação, vale reportar que Cardoso,
Araújo e Jaenisch (2013) indicam 42.492 unidades construídas na RMRJ, 53% delas
para a faixa 1. Fortaleza, por outro lado, recebeu 15.285 unidades, sendo 80% para a
faixa 1 (PEQUENO, 2013), enquanto Belém teve 7.243 unidades, sendo 49% para
a faixa 1 (MERCÊS, 2013).
Em termos de empreendimentos, a distribuição é um pouco diferente,
considerando os diversos tamanhos médios dos conjuntos. A faixa 1 apresenta, na
RMSP, conjuntos um pouco maiores, com 241 unidades, em média, resultando em 152
conjuntos, enquanto a faixa 2 tinha média de 176 unidades em 235 empreendimentos
e a última faixa incluía 173 unidades por conjunto e 170 empreendimentos. Além
disso, as unidades produzidas representavam 15,5% do déficit de 694.047 unidades
da região metropolitana de São Paulo, conforme calculado por Furtado, Lima Neto
e Krause (2013). Esse cálculo de déficit segue a metodologia da FJP (BRASIL, 2011)
e inclui unidades a repor por precariedade, e a prover por adensamento excessivo,
comprometimento excessivo com aluguel e coabitação.
Entretanto, a distribuição da produção por faixas sugere que a proporção do
déficit enfrentado efetivamente pelo programa foi bem menor, visto que o déficit se
concentra fortemente na faixa 1, enquanto a produção em São Paulo se concentra nas
faixas 2 e 3. Os custos de aluguel na metrópole, por exemplo, são muito superiores à
média nacional, concentrando parcelas mais elevadas do déficit em faixas de renda mais
alta (a parcela do déficit por comprometimento excessivo em aluguel é de 37% em São
Paulo, contra 28% em nível nacional, utilizando os dados dos autores). Embora isso
tenha sido levado em conta no Plano Nacional de Habitação, não é considerado pelo
MCMV (KRAUSE; LIMA NETO; BALDIM, 2013).
Furtado, Lima Neto e Krause (2013) estimaram a participação da faixa 1 em
apenas 9% nacionalmente para 2007. A tabela a seguir estima o déficit por faixas na
região metropolitana de São Paulo, partindo de dados da Fundação João Pinheiro
e de Furtado, Lima Neto e Krause (2013). Como se pode ver, 76% do déficit na
metrópole paulistana localiza-se na faixa 1, 13% na faixa 2 e apenas 2% na faixa 3.
No conjunto, a produção do programa reduziu 15,5% do déficit, mas apenas 7% na
faixa 1 e 46% na faixa 2, e além de zerar na faixa 3, a sua produção foi muito além
do déficit. Portanto, embora o programa tenha contribuído para a redução do déficit
na RMSP, isso ocorreu em uma proporção bem inferior ao esforço despendido pela
política implementada.
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Tabela 1. Proporção do DH atendido pelo MCMV na RMSP, por faixas
Faixa 1
Faixa 2
Faixa 3
Total
Déficit Habitacional Urbano
RMSP
524.005
90.226
15.269
694.047
%
75,5
13
2,2
100
UH Produzidas na RMSP
36.713
41.455
29.421
107.589
%
34,1
38,5
27,3
100,0
Proporção do DH atendido
(em %)
7,0
45,9
192,7
15,5
Fonte: Cálculo do CEM a partir de dados da CEF e da FJP e Furtando, Lima Neto e Krause (2013).
Em termos dos subcomponentes do programa, a produção na RMSP envolveu
uma distribuição bastante clara. Na faixa 1 a produção do FAR foi amplamente
predominante (115 empreendimentos), com FDS-Entidades em um distante
segundo lugar (com 33 empreendimentos) e apenas alguns em Urbanização (e 4
empreendimentos). As faixas 2 e 3 apresentaram perfis similares, com quase apenas
Apoio à produção (203 empreendimentos para a faixa 2 e 145 para a faixa 3), seguidos
de Imóvel na Planta (32 empreendimentos na faixa 2 e 25 na faixa 3). De uma forma
geral, portanto, quando falamos de faixa 1 estamos discutindo empreendimentos
FAR alienação, assim como quando nos referimos às faixas 2 e 3 analisamos Apoio à
produção.
Uma primeira abordagem à questão da segregação pode ser feita com a observação
de mapas e como a distribuição espacial dos empreendimentos varia substancialmente
por faixas optamos por apresentar a localização de cada faixa em separado. O Mapa
1 apresenta a informação da faixa 1: o padrão é periférico, atingindo também áreas
urbanas consolidadas. Merecem destaque a região de Itaquera e o extremo da Zona
Leste de São Paulo, o norte da Cidade Tiradentes, mas também regiões no Jardim
Ângela, no Bairro dos Pimentas em Guarulhos, em Mogi das Cruzes, em Poá e em
Suzano e no ABC paulista, em especial em Diadema, Santo André e Mauá. Pode-se
também observar a presença de alguns empreendimentos (três) localizados no centro
de São Paulo, contratados muito recentemente e ainda não construídos.
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O PROGRAMA MINHA CASA MINHA VIDA NA METRÓPOLE PAULISTANA
Mapa 1. Localização dos empreendimentos da faixa 1 do MCMV, RMSP
Fonte: Dados da Caixa Econômica Federal trabalhados em cartografia CEM.
O Mapa 2 apresenta a distribuição dos empreendimentos da faixa 2: o padrão
da localização é mais disperso e menos periférico, com inúmeros empreendimentos
na região mais interna do município de São Paulo, bem como no centro, no bairro
Ipiranga, e na zona norte. Isso é contrastante com o que reportaram Cardoso, Araújo
e Jaenisch (2013) sobre a ausência de empreendimentos nas áreas centrais do Rio
de Janeiro, pois em São Paulo, existem alguns empreendimentos das faixas 2 e 3 em
áreas do centro tradicional. Porém, há empreendimentos nas regiões mais periféricas,
como um grande aglomerado em Cajamar, e na região oeste, em Barueri, em Jandira,
em Itapevi e em Osasco. A zona leste do município de São Paulo também recebeu
muitos empreendimentos, mas em regiões mais consolidadas próximas dos centros de
Itaquera e São Miguel Paulista.
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Mapa 2. Localização dos empreendimentos da faixa 2 do MCMV, RMSP
Fonte: Dados da Caixa Econômica Federal trabalhados em cartografia CEM.
O Mapa 3, por fim, apresenta a distribuição dos empreendimentos da faixa
3: o padrão é similar ao da faixa 2. Na verdade, é possível dizer que em termos de
macrolocalização o conjunto dos empreendimentos da faixa 3 é mais periférico do
que o da faixa 2 ao menos no que diz respeito à presença de conjuntos na região mais
interna da metrópole. Chama atenção também uma menor presença de conjuntos em
Mogi das Cruzes. O Mapa indica uma distribuição ampla na zona Leste de São Paulo
e no Jardim Ângela, nos municípios do oeste da metrópole e em Guarulhos e na região
do ABC paulista, e no município de São Paulo próximo ao ABC.
Vale ressaltar a presença de agrupamentos de empreendimentos em Cajamar, em
Mauá, e no bairro de Campo Limpo, em São Paulo. Na verdade, trata-se de agrupamentos
de empreendimentos para as faixas 2 e 3 construídos por várias construtoras diferentes
incluindo 19 empreendimentos no sul de Cajamar e 30 empreendimentos em Mauá.
Além disso, há alguns empreendimentos que são para faixa 2 e 3 ao mesmo tempo,
como é o caso do Máximo Guarulhos, da construtora Cury, localizado na Vila
Augusta. Por fim, devemos mencionar que alguns empreendimentos possuem parte
das UH vendidas pelo MCMV, e o restante é comercializado fora do MCMV, para
famílias que ganham mais do que 10 SM: é o caso do AcquaPark Condomínio Club,
localizado também na cidade de Guarulhos.
Esses fenômenos merecem maior atenção das futuras pesquisas sobre o MCMV:
é preciso investigar quais são as áreas das metrópoles que tendem a concentrar
empreendimentos para faixa 2 e 3, bem como quais são as estratégias envolvidas na
divisão das UH, do mesmo empreendimentos que serão vendidas para faixa 2 e 3,
assim como daquelas que não serão comercializadas pelo MCMV.
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O PROGRAMA MINHA CASA MINHA VIDA NA METRÓPOLE PAULISTANA
Mapa 3. Localização dos empreendimentos da faixa 3 do MCMV, RMSP
Fonte: Dados da Caixa Econômica Federal trabalhados em cartografia CEM.
3. Analisando segregação residencial
no Minha Casa Minha Vida
A análise dos padrões de segregação nos conjuntos do MCMV será realizada
em várias etapas de detalhamento sucessivo de forma a investigarmos não apenas a
segregação em termos geométricos, mas socioespaciais, sempre considerando as faixas
do programa de forma diferenciada. Primeiramente, avaliamos a escala dos conjuntos.
Em segundo lugar, investigamos a distância dos empreendimentos a centralidades
na região metropolitana. Em seguida, investigamos a distância dos empreendimentos
a equipamentos importantes, como as redes do metrô e da CPTM, assim como de
conjuntos já construídos pela COHAB e pelo CDHU. Em um terceiro momento,
comparamos os conteúdos sociais dos entornos dos empreendimentos para avaliar se a
construção dos conjuntos inserirá seus moradores em entornos menos pobres ou mais
pobres e precários em termos urbanos.
Com relação à escala dos conjuntos, dentre os empreendimentos contratados,
apenas 16 tinham mais de 500 unidades, limite de tamanho do programa, sendo que
dois deles tinham 1.500 unidades cada. Entretanto, a mera observação dos números
de empreendimentos não expressava a concentração espacial dos empreendimentos.
São inúmeros os agrupamentos de empreendimentos em locais contíguos, embora por
vezes produzidos por empresas distintas. No total, 38 agrupamentos apresentam mais
de 500 unidades, sendo o maior deles em Cajamar para as faixas 2 e 3, totalizando
aproximadamente 3.200 unidades. Portanto, embora haja conjuntos de porte, a maior
parte dos empreendimentos não apresenta grande escala.
Para a análise das distâncias das centralidades, consideramos não apenas as
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distâncias às principais centralidades da metrópole, mas também a subcentros regionais,
pois embora a distribuição dos empregos seja fortemente radial e concêntrica a partir
do Centro Expandido diversos outros serviços se encontram disseminados por várias
centralidades. Foram consideradas, portanto, não apenas as distâncias às centralidades
mais importantes – Praça da Sé (centro histórico) e Berrini-Marginal Pinheiros (atual
centro de negócios), mas também à centralidade mais próxima considerando uma
estrutura policêntrica composta de: Praça da Sé, Berrini-Faria Lima e os centros de
Santo Amaro, da Penha, de São Bernardo do Campo, de Santo André, de Osasco, de
Mogi das Cruzes e de Guarulhos. Vale dizer que as distâncias reportadas dizem respeito
a distâncias euclidianas simples entre a localização pontual do empreendimento e a
centralidade mais próxima. A informação é apresentada na tabela a seguir. Como é
difícil analisarmos as distâncias sem um padrão externo de comparação, calculamos e
incluímos também na tabela as distâncias de conjuntos da COHAB e do CDHU às
mesmas centralidades.
Tabela 2. Distâncias a centralidades por faixas MCMV, COHAB e CDHU (km)
Faixa 1
Faixa 2
Faixa 3
COHAB
CCHU
Média
Desvio
Média
Desvio
Média
Desvio
Média
Desvio
Média
Desvio
Distância a Sé
26,0
12,0
21,3
10,5
18,7
7,6
18,4
6
23,3
10,2
Distância a
Berrini
28,2
14,3
23,3
11,9
19,5
8,3
22,2
8,2
25,8
14,2
Distância à
centralidade
mais próxima
9,5
4,9
7,8
4,8
7,7
4,5
10,5
4,3
10,2
6,5
Fonte: Dados da Caixa Econômica Federal, trabalhados sobre cartografias CEM.
Observemos primeiro os empreendimentos do MCMV. Como se pode ver,
a distância varia entre as faixas, mas tende a ser relativamente estável no interior
delas, como atestam os baixos desvios em relação às médias. Os padrões de distância
são claramente ordenados, sendo a faixa 1 mais distante e a faixa 3 a mais próxima
às centralidades analisadas. A tabela nos indica grandes distâncias médias entre os
empreendimentos e as centralidades mais importantes da região metropolitana
(Sé e Berrini) – entre aproximadamente 19 e 28 quilômetros. Entretanto, quando
consideramos centralidades secundárias no interior da metrópole, as distâncias caem
substancialmente para entre 8 e 10 quilômetros. Outra informação interessante é que
a diferença entre as distâncias das faixas do programa caem quando consideramos
centralidades secundárias, embora a primeira faixa continue a apresentar as maiores
distâncias. Apesar dessas ponderações, as distâncias dos empreendimentos do
Minha Casa a centralidades são significativas, mesmo com relação às centralidades
secundárias, permitindo sustentar uma razoável segregação desses empreendimentos
na escala da metrópole.
As informações relativas a conjuntos da COHAB e do CDHU, entretanto,
estabelecem um padrão externo de comparação que acrescenta informações
interessantes. As distâncias médias dos conjuntos existentes na região metropolitana
de São Paulo variam entre 18 a 26 quilômetros das centralidades mais importantes
e aproximadamente 10 quilômetros de qualquer centralidade, valores bastante
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O PROGRAMA MINHA CASA MINHA VIDA NA METRÓPOLE PAULISTANA
próximos dos encontrados nos empreendimentos do Minha Casa Minha Vida, em
especial dos empreendimentos da faixa 1. Empreendimentos da faixa 3 do MCMV,
por outro lado, têm padrões de distâncias similares aos conjuntos da COHAB com
relação à Sé e à Berrini, mas apresentam distâncias substancialmente menores (em
torno de 8 quilômetros) do que esses (em torno de 10 quilômetros) no que diz
respeito às demais centralidades.
Portanto, em termos de distância a centralidades, os empreendimentos da
faixa 1 do MCMV se assemelham bastante a conjuntos da COHAB e sobretudo do
CDHU. Os empreendimentos das faixas 2 e 3 apresentam menores distâncias do que
os conjuntos já existentes na metrópole paulistana. Vale ressaltar que a faixa de renda
de atendimento tradicional da COHAB e do CDHU não coincidia com a faixa 1,
mas com a faixa 2. Portanto, é com essa faixa que se pode comparar efetivamente as
políticas do modelo BNH e, consequentemente, ao menos sob esse ponto de vista,
a localização da produção do MCMV é menos periférica que as políticas anteriores.
Entretanto, é muito diferente estar próximo ou distante a uma centralidade
principal ou secundária. Por essa razão, a Tabela abaixo explora as diferentes
centralidades presentes no universo de cada faixa. Como se pode ver, as centralidades
mais comuns para as três faixas são Osasco, Santo André, Mogi das Cruzes, Guarulhos
e Penha, embora com predominância diferente dependendo da faixa. Enquanto para a
faixa 1 Mogi e Penha se destaquem, para a faixa 2 o destaque está em Osasco, Penha e
Mogi e para a faixa 3 em Osasco e Santo André. Vale destacar que nesse caso as médias
dizem respeito a empreendimentos e não a unidades.
Tabela 3. Distribuição dos centros mais próximos a empreendimentos MCMV, por
faixas (%)
Faixa 1
Mogi das Cruzes
Penha
Faixa 3
26
16,2
4,1
20,1
17,4
15,9
13
20,4
23,5
Santo André
12,3
14,5
20,6
Guarulhos
10,4
10,2
11,2
Osasco
1 As maiores distâncias ocorrem entre seis conjuntos
localizados no município de
Guararema e conjuntos da
COHAB e do CHDU (40 e 11
quilômetros, respectivamente), além das estações do
Metrô (45 quilômetros). A
maior distância dentre todas
as analisadas é de 13 quilômetros, entre estações da
CPTM e esses mesmos empreendimentos. Esses resultados são de alguma forma
esperados, já que a rede do
metrô só alcança o município
de São Paulo e a COHAB é
uma empresa pública do município de São Paulo.
Faixa 2
Santo Amaro
11
7,7
10
São Bernardo
5,2
4,3
10,6
Sé
1,9
8,5
4,1
0
0,9
0
100,0
100,0
100,0
Berrini
Total
Fonte: Dados da Caixa Econômica Federal, trabalhados sobre cartografias CEM.
Mas qual será o padrão de acessibilidade dos empreendimentos a equipamentos?
Além disso, como usamos os conjuntos existentes da COHAB e do CDHU como
parâmetro? Será que esses se localizam próximos aos empreendimentos do Minha
Casa? Parar testar essas dimensões, calculamos as distâncias euclidianas simples dos
empreendimentos do Minha Casa Minha Vida, a estações do Metrô e da CPTM, à
escola mais próxima e aos conjuntos existentes. A informação é apresentada na tabela
a seguir. Considerando a existência de algumas poucas localizações que fogem ao
padrão, reportamos as medianas, que descrevem mais precisamente os padrões gerais.1
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Tabela 4. Distâncias medianas a conjuntos e equipamentos (km), por faixa
Est. Metro
Est. CPTM
Hospital
SUS
Escola
COHAB
CDHU
Faixa 1
4,0
3,6
4,7
0,3
3,5
1,9
Faixa 2
4,1
2,5
4,8
0,3
4,6
2,6
Faixa 3
4,6
3,4
3,7
0,3
3,9
2,5
COHAB
2,3
3,4
1,5
0,1
Cdhu
3,9
2,9
2,8
0,2
Fonte: Dados da Caixa Econômica Federal, trabalhados sobre cartografias CEM.
As distâncias às estações da CPTM são mais baixas do que a estações do metrô para
todas as faixas, o que é esperado, considerando o padrão mais periférico da primeira
rede. A diferença é superior para empreendimentos das faixas 2 e 3. As distâncias dos
conjuntos existentes da COHAB e do CDHU, por outro lado, tendem a ser bem
inferiores a estações de metrô, produto da concentração de conjuntos em Itaquera,
mas similar aos dos empreendimentos do Minha Casa no que diz respeito à CPTM.
A presença de equipamentos escolares é bastante próxima para todas as faixas,
o que já era de se esperar considerando a distribuição ampla desses equipamentos
no território nos dias de hoje, mesmo nas periferias mais distantes. Por outro lado, a
distância a hospitais públicos é substancialmente maior para os empreendimentos do
Minha Casa, em especial nas faixas 1 e 2, do que dos conjuntos existentes. A pequena
distância dos conjuntos da COHAB é produto da grande concentração desses na
Cidade Tiradentes.
Considerando o desenho do programa, seria de se esperar que empreendimentos
da faixa 1 fossem os mais próximos aos conjuntos existentes, que os da faixa 3 fossem os
mais distantes, e que as maiores distâncias ao sistema de transportes fossem observadas
com os conjuntos da faixa 1 (e as menores com os da faixa 3). Não é exatamente o
quadro que se observa na tabela. Embora empreendimentos da faixa 1 tendam a estar
mais próximos de conjuntos, os da faixa 3 não são os mais distantes. Por outro lado, os
empreendimentos da faixa 3 são os mais distantes do metrô, que tem uma rede menos
periférica do que a CPTM. Além disso, os empreendimentos do MCMV apresentam
maior proximidade com conjuntos do CDHU do que da COHAB em todas as faixas.
Segregação residencial diz respeito à homogeneidade de conteúdos sociais das
áreas da cidade, separados por distâncias de outros espaços também homogêneos.
Desse modo, outra forma de acessarmos as dimensões relativas à segregação é
comparando as características dos entornos dos empreendimentos com as que
podemos imaginar que sejam os dos futuros moradores dos empreendimentos. As
ferramentas de geoprocessamento nos auxiliam nisso mais uma vez, pois podemos
gerar estimativas a partir dos dados do Censo de 2010 das características sociais
dos moradores dos entornos dos empreendimentos a uma dada distância. No caso,
utilizamos entorno de 500 metros. A tabela a seguir apresenta a informação, incluindo
dados similares relativos a conjuntos da COHAB e do CDHU e para o conjunto da
região metropolitana, para estabelecer parâmetros de comparação.
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O PROGRAMA MINHA CASA MINHA VIDA NA METRÓPOLE PAULISTANA
Tabela 5. Características sociais médias dos entornos (500 metros) do MCMV, COHAB, CCHU e RMSP, 2010
Minha Casa Minha Vida
Faixa 1
Faixa 2
Faixa 3
COHAB
CDHU
RMSP
Características sociais
1.003,5
1.419,81
1.519,18
952,9
1.063,25
2.028,90
Anos médios de estudo
7,0
8,09
8,35
7,1
7,24
8,7
Alfabetizados de 5 a 9 - %
5,9
5,34
5,28
5,6
5,50
76,1
Pessoas com mais de 65 anos - %
4,4
6,28
6,72
5,1
5,07
8,5
Pessoas com menos de 10 anos - %
18,1
16,09
15,52
17,6
17,05
14,2
População em setores subnormais - %
12,4
8,20
8,61
10,2
7,70
3,3
Domicílio alugado - %
14,9
12,32
12,84
21,8
24,26
23
Domicílio próprio em aquisição - %
17,2
19,84
20,28
15,4
16,11
7,6
Água da rede - %
97,7
99,00
99,31
99,2
97,15
98,9
Domicílio com esgoto e sanitário exclusivo - %
85,5
89,07
89,66
92,3
88,14
92
Domicílio com serviço de lixo por caminhão - %
92,8
95,39
94,83
92,3
93,22
80,1
Domicílio com serviço de lixo por caçamba - %
3,0
2,61
3,31
7,4
4,99
2,7
Domicílio com energia rede, medidor exclusivo - %
81,5
86,25
86,98
85,8
85,42
86,7
Presença de identificação no logradouro
82,60
89,22
91,41
91,5
89,95
89,9
Presença de iluminação pública
96,81
98,64
98,56
96,3
96,15
97,7
Presença de pavimento
92,97
97,52
97,63
96,8
95,68
97
Presença de calçada
83,69
92,37
91,47
90,0
90,23
92,8
Presença de meio-fio
91,24
96,10
94,65
92,0
91,28
94,4
Presença de bueiro
41,40
46,77
48,25
51,9
46,86
50,3
Presença de rampa para cadeirante
2,24
4,18
4,18
2,1
1,14
6,8
Presença de arborização
70,78
74,59
74,76
62,4
70,60
97
Presença de esgoto a céu aberto
3,54
2,57
2,48
5,5
3,75
3,4
Presença de lixo acumulado
4,10
3,57
3,51
5,3
4,47
3,9
Renda média
Domicílio e infraestrutura
Entorno do setor censitário
Fonte: Dados da Caixa Econômica Federal, trabalhados sobre cartografias CEM.
Como se pode ver, em termos de características sociais, o entorno dos
empreendimentos da faixa 1 distancia-se muito das médias da região metropolitana
e se assemelha às dos conjuntos do CDHU e, em especial, da COHAB. Na verdade,
a semelhança com o entorno de conjuntos existentes é impressionante, sugerindo
espaços praticamente iguais. O único indicador que sugere maior precariedade nos
locais de implantação dos empreendimentos da faixa 1 é a proporção da população
habitante de setores subnormais. Os entornos das faixas 2 e 3, como era de se esperar,
apresentam renda, escolaridade e alfabetização mais altas e estrutura etária mais velha,
embora ainda distantes das médias da metrópole.
Com relação às características dos domicílios e ao acesso a infraestrutura, as
condições das faixas 2 e 3 também são melhores, quando comparadas com a faixa 1 e
quase indiferenciadas entre si. A presença relativa de domicílios alugados é maior no
entorno dos empreendimentos do Minha Casa, assim como é menor a proporção de
172
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domicílios próprios em aquisição, provavelmente como produto da maior escala dos
conjuntos mais antigos, aglomerados em complexos. Novamente as condições são
inferiores à média da metrópole, mas chama a atenção que os entornos de condomínios
da COHAB e do CDHU tendam a ter maiores proporções de lixo coletado por
caçamba e menos medidores coletivos de energia, indicadores de baixa qualidade do
serviço de infraestrutura prestado.
A maior escala dos conjuntos pode explicar também os indicadores de entorno,
apresentados na parte inferior da tabela. Essas variáveis dizem respeito a elementos
do espaço construído observados pelo recenseador do Censo durante a coleta
de dados, e não ao domicílio em si. Como se pode ver, os empreendimentos do
programa Minha Casa Minha Vida apresentam condições muito inferiores às médias
da cidade, embora as condições novamente melhorem entre as faixas da mesma
forma que anteriormente. Nesse caso, entretanto, é a faixa 2 que se assemelha aos
conjuntos existentes da COHAB e do CDHU, com os empreendimentos da faixa
3 apresentando melhores condições médias. Os empreendimentos da faixa 1, por
outro lado, foram implantados em locais caracterizados mais frequentemente por
um grau de precariedade urbana mais alta em termos da ausência de meios fios,
bueiros, rampas para cadeirantes, pavimentação etc. Exceto por alguns indicadores
específicos, entretanto, os patamares de infraestrutura não são muito baixos, apesar
de serem inferiores aos das demais faixas e conjuntos existentes.
Portanto, em termos de entorno, os empreendimentos da faixa 1 se assemelham
aos conjuntos habitacionais existentes na metrópole, enquanto os das faixas 2 e 3
apresentam melhores condições, exceto para o entorno dos setores, onde apenas a
faixa 3 apresenta melhores condições. Como a produção tradicional das companhias
habitacionais estava concentrada em faixas similares à faixa 2, é possível dizer que a
semelhança com os entornos das COHAB contribui, embora de forma tênue, para
a redução da segregação, diferentemente do que tem sido considerado pela maior
parte dos analistas.
Por fim, para completarmos a análise dos empreendimentos sob o ponto de vista
da segregação, cruzamos a sua localização com uma tipologia de espaços construída
em Marques (2013) com dados do Censo de 2010. Essa classificação foi obtida a
partir de análise de cluster das presenças relativas de classes sociais, construídas
seguindo a classificação ocupacional EGP (ERICKSON; GOLDENTHORPE;
PORTOCARRERO, 1979), alterada por Barbosa e Marschner (2013). Com tais
procedimentos metodológicos, foram delimitados cinco tipos de espaço relativamente
homogêneos em termos de seus conteúdos sociais (mas descontínuos no território
da metrópole). Enquanto na análise precedente analisamos as características dos
moradores no espaço imediato de inserção dos empreendimentos, nesse caso a
comparação é entre aquelas características sociais e os conteúdos dos sociais dos
espaços em que se inserem em uma escala mais ampla. A informação é apresentada no
gráfico, mostrando a predominância de cada tipo de espaço na produção de cada faixa.
R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 5 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 1 3
173
O PROGRAMA MINHA CASA MINHA VIDA NA METRÓPOLE PAULISTANA
Gráfico 1. Distribuição dos empreendimentos de cada faixa por tipo de espaço
Fonte: Dados da Caixa Econômica Federal, trabalhados sobre cartografias CEM.
Como era de se esperar, a localização das faixas varia substancialmente por
tipo de espaço, embora obedeça a um claro ordenamento. A faixa 1 está fortemente
concentrada em espaços dos trabalhadores manuais – 66%, embora com uma parcela
não desprezível em espaços médio-baixos misturados – 26%. As faixas 2 e 3 apresentam
perfis relativamente similares. Em ambos os casos a predominância é em espaços médiosmisturados e médio-baixos misturados, embora com ênfases invertidas. A faixa 3
apresenta maior proporção de sua produção em espaços médios-misturados, enquanto
a faixa 2 tem mais presença em espaços médio-baixos misturados. A faixa 2, por outro
lado, também apresenta uma parcela não desprezível em espaços dos trabalhadores
manuais (cerca de 20%). Não há praticamente nenhum empreendimento em espaços
das elites e muitos poucos da faixa 2, principalmente, no espaço das classes médiasaltas misturadas. Essas informações confirmam as anteriores e reforçam a similaridade
em termos de localização da faixa 1 com a produção habitacional pública tradicional
paulistana (e brasileira), assim como indicam que as faixas 2 e 3 tenderam a produzir
um padrão diferente e muito menos periférico em termos socioespaciais.
Conclusão
Como vimos, o programa Minha Casa Minha Vida apresentou uma expressiva
produção desde o seu início na região metropolitana de São Paulo, alcançando cerca
de 105.000 unidades. Diferentemente de outras regiões do país, o programa atendeu
uma parcela relativamente pequena da faixa 1 e mais altas proporções das faixas de
maior renda. A proporção de atendimento à faixa 1 foi relativamente reduzida – em
torno de 35% (essa proporção alcançou 60% na média nacional), o que representou
uma baixa proporção do déficit nessa faixa atendido – cerca de 7%. Por outro lado,
46% do déficit estimado para a faixa 2 foi atendido, enquanto o déficit da faixa 3 foi
atendido integralmente e ultrapassado amplamente.
Em termos de localização, ficou comprovado para São Paulo o padrão periférico
174
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E
L E AND RO
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de localização dos empreendimentos já destacado pela literatura. Os empreendimentos
do programa se localizam relativamente longe de centralidades e de grandes
equipamentos de transporte, mas não de forma discrepante com relação ao que
tradicionalmente o poder público produz na região. Em geral, os empreendimentos da
faixa 1 tendem a ter distâncias a centralidades relativamente similares aos de conjuntos
existentes da COHAB e do CDHU, enquanto empreendimentos das faixas 2 e 3
apresentam acessibilidade maior a centralidades. Em termos dos conteúdos sociais
dos entornos, os entornos dos empreendimentos da faixa 1 novamente se assemelham
muito aos de conjuntos existentes, enquanto os das faixas 2 e 3 se distanciam desse e
se aproximam das médias da metrópole. Essa informação é confirmada pela análise do
tipo de espaço onde os conjuntos têm sido implantados. Enquanto empreendimentos
da faixa 1 são predominantemente implantados em espaços de trabalhadores manuais,
mantendo o padrão de segregação, empreendimentos das faixas 3 e 2 têm sido
lançados principalmente nos espaços médios misturados e médios-baixos misturados,
respectivamente. Como os conjuntos existentes beneficiaram principalmente uma
faixa correspondente à faixa 2 do MCMV, é possível dizer que o padrão de localizações
na região metropolitana de São Paulo é menos periférica do que a produção anterior,
embora as distâncias sejam bastante elevadas.
Em termos de segregação residencial, portanto, é possível dizer que os
empreendimentos do programa na região metropolitana de São Paulo têm seguido a
lógica geral dos padrões de segregação da metrópole, mas sem intensificá-los, como
sugeriria uma parte substancial da literatura existente. Dado o porte da produção
executada, entretanto, é também evidente que se perdeu uma importante chance de
contribuir para uma alteração mais intensa dos padrões de segregação social presentes
na metrópole paulistana.
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175
Eduardo Marques é professor livre-docente do Departamento de Ciência Política
da USP e pesquisador do
Centro de Estudos da Metrópole. Doutor em Ciências
Sociais (Unicamp). E-mail:
<[email protected]>.
Leandro Rodrigues é pesquisador do Centro de Estudos
da Metrópole, graduado em
ciências sociais (FFLCH/USP).
Mestrando do Departamento
de Ciência Política da USP.
E-mail: <[email protected]>.
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Abstract
This article analyzes the production of the Minha Casa Minha
Vida program at the metropolitan region of São Paulo. Departing from a review of the
main features of the program and the criticisms that have been raised against it, the study
investigates its production, its adequacy to the housing demand for each income band at the
region, as well as the location of the projects. Using GIS techniques, we study the segregation
patterns of the projects considering their distances to centralities, to public equipment and
to the housing projects produced by previous policies. The data confirm previous analyses
which state the peripheral location of the projects, in special for the first income band.
However, considering the location of the existing projects for comparable income bands,
176
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MARQUES
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ROD RI GU ES
the results suggest that the program produced less isolated projects than previous policies,
not being accurate to state that the program presents the same territorial results than the
preceding policies.
Keywords:
Housing policy; Minha Casa Minha Vida; residential
segregation; urban periphery; São Paulo.
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177
URBANIZAÇÃO EXTENSIVA
E O PROCESSO DE
INTERIORIZAÇÃO DO ESTADO
DE SÃO PAULO: UM ENFOQUE
CONTEMPORÂNEO
Admir Antonio Betarelli Junior
Roberto Luís de Melo Monte-Mór
Rodrigo Ferreira Simões
Resumo
O propósito deste trabalho é discutir a formação, produção e organização do
espaço urbano no estado de São Paulo a partir do processo de interiorização da indústria
paulista no final dos anos 1970. O lócus da análise é a indústria, uma vez que no enfoque
contemporâneo o processo de industrialização sempre esteve articulado com a produção da
espacialidade urbana. Conciliando o método diferencial-estrutural (shift-share), a Análise
de Componentes Principais (ACP) e a análise de cluster, foi possível evidenciar que tal processo
teve como resultado o fenômeno de urbanização extensiva. Os resultados “fotográficos”
apontam que houve uma extensão virtual das condições gerais do tecido urbano-industrial
de forma que centralidades polarizadoras e regiões circunvizinhas apresentam vantagens
locacionais e competitivas, formando, assim, aglomerações urbanas no território paulista,
principalmente, nas regiões beneficiadas pelo processo de interiorização da indústria.
P a l a v r a s - c h a v e : urbanização extensiva; análise multivariada;
análise de cluster; método diferencial-estrutural; indústria; São Paulo.
1. INTRODUÇÃO
É conhecido que o processo de urbanização no espaço é formado pelos aspectos
históricos, particularmente, desde as reestruturações e reorganizações do espaço
socioeconômico nas origens do capitalismo urbano-industrial. Isso equivale também,
sobremaneira, para as novas formações do espaço urbano no mundo contemporâneo
(SOJA, 2000). Como resgata Magalhães (2008), a histórica econômica apresenta uma
relação intrínseca com a produção do espaço urbano de tal forma que é imprescindível
sua análise. Não diferente, a história da industrialização brasileira se revela com
um dos fatores marcantes na transformação das cidades em metrópoles, da forma
e configuração do tecido urbano no território (e.g. reestruturação produtiva). Para
Harvey (1975), o urbanismo representa um estágio da história e deve ser tratado como
um conjunto de relações sociais que reflete as relações estabelecidas ao longo de uma
sociedade como um todo. Áreas urbanas, suburbanas e rurais são afetadas e incluídas
dentro do processo de urbanização. O que significa dizer que o campo também se
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179
U R B A N I Z A Ç Ã O E X T E N S I VA E O P R O C E S S O D E I N T E R I O R I Z A Ç Ã O
1 Na Leitura de Harvey
(1975) sobre Lefebvre, a sociedade industrial não é vista
como um fim propriamente
dito, mas como um estágio
preparatório para o urbanismo. Ademais, conforme o
autor, a industrialização era
um produtor de urbanismo
e agora é produto do próprio
processo de urbanização.
urbanizou à medida que as condições de produção urbano-industriais, antes restritas
às cidades, se estenderam para além dos limites legais do espaço urbano e adquiriram
dimensão regional e até mesmo nacional (MONTE-MÓR, 2006b).
Conceitualmente, a sociedade urbano-industrial corresponde a uma expressão do
espaço social (re)definido pela urbanização e estendido por todo o território através
do tecido urbano. Dito em outras palavras, a cidade [lócus do excedente produtivo
(manifesto da riqueza), do poder (classes dominantes) e da festa (expressão cultural e
ideológica)], invadida pela indústria, implode sobre sua centralidade (e.g. concentração
de pessoas, de atividades, de riquezas, de coisas e de objetos, de instrumentos) e explode
sob a forma de tecido urbano sobre o seu entorno (LEFEBVRE, 1999).1 As grandes
cidades industriais se estendem sobre suas periferias de modo a acomodar as necessidades
de produção e a lógica das suas indústrias, seus provedores e trabalhadores, gerando
amplas regiões urbanizadas no seu entorno: regiões metropolitanas (MONTE-MÓR,
2006a). Nessa nova forma de urbanismo, o fundamental é a reorganização das forças
de produção para aproveitar as vantagens da mecanização, mudanças tecnológicas e
economias de escala de produção.
Em linhas gerais, nota-se que as metamorfoses das centralidades e periferias
(implosão e explosão, segundo Lefebvre) de uma sociedade industrial para a produção
da espacialidade urbana sempre, de certa forma, estiveram articuladas. O tecido
urbano, formado por essa metamorfose, estende a forma e processo socioespacial e as
condições de produção para o espaço regional e nacional como um todo. Contudo,
a extensão do fenômeno urbano, sintetizado pelo tecido urbano assim formado,
dependerá da necessidade das indústrias quanto às demandas de produção e da
reprodução coletiva da força de trabalho e de como o Estado tratará essas demandas
no espaço urbano (MONTE-MÓR, 2006a).
Outra característica não menos importante do processo de urbanização é
o surgimento de um contramovimento interior, ou seja, a produção do espaço
urbano vem gerando uma grande diferenciação interna e local, compensando, desse
modo, possíveis homogeneidades alcançadas na escala global (LEFEBVRE, 1999).
Isto significa dizer, tomando por base os discursos de Soja (2000), que no mundo
contemporâneo o espaço urbano-regional guarda as especificidades locais, embora o
processo de globalização e seus padrões homogêneos tenham invadido as localidades.
Dessa maneira, existem na formação do tecido urbano graus de identidades locais
misturados (hibridismo) com padrões gerais da globalização (e.g. culturas, regime de
produção e de regulação social e política). Aliás, o espaço urbano-regional, baseado
na cultura, sociedade e economia, alcança e se expande para todas as demais regiões
urbanizadas no mundo. Por outro lado, um centro urbano individual, seja ele grande
ou pequeno, contém um mundo inteiro dentro de si. Portanto, é possível também
afirmar que o espaço urbano local torna-se global; e o global torna-se local.
Além disso, nesse processo globalizado observa-se uma crescente debilidade
cultural e de identidade que caracterizam os vínculos em um lugar (desterritorização) e
o surgimento de novas formas e combinações socioespaciais e identidades territoriais
que são diferentes e mais complexas (reterritorização). As centralidades do tecido
(rede) urbano brasileiro, sejam elas hipercentros ou hinterlândias (hinterlands), não
são exceções dessa nova realidade do espaço urbano (reestruturado sobre a moderna
metrópole). Isso porque as múltiplas interdependências socioeconômicas e espaciais
existentes nos níveis locais estão articuladas e são sensíveis às forças reestruturadoras
180
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A D M I R A N TO N I O , RO B E RTO LU Í S MO NTE -MÓ R, RO D RI GO F E RRE I RA
que possam haver, sejam elas locais ou distantes (STORPER, 1997). Dessa maneira,
a organização dessas interdependências (sociais, econômicas e políticas) no espaço
urbano é por natureza mutável (caleidoscópica) e não ocorre de forma linear, uma vez
que, conforme Soja (2000), esses níveis operam em um mecanismo retroalimentador
no espaço (dialética socioespacial).
Cabe ressaltar que a natureza mutável do espaço urbano se estende também para
o seu espaço real, uma vez que a produção do espaço urbano gera, configura, (re)define
e (re)organiza novos centros urbanos. Assim, locais antes periféricos tornam-se centros
e vice-versa e, com isso, o espaço urbano policêntrico também é multipolarizador.
Destarte, existem dificuldades de traçar uma linha que separa o que é de dentro e o
que é de fora da cidade, entre cidade e zona rural, subúrbio e não cidade, entre natural
(real) e artificial (imaginário). Portanto, o mundo contemporâneo é um mundo “sem
fronteiras” (SOJA, 2000).
O estímulo da aglomeração urbana, por seu turno, advém das relações de mercado
e das convenções locais não comercializáveis (i.e. aprendizado, inovação, habilidade
de desenvolver a organização), ou seja, da reflexividade econômica. Trata-se de uma
sinergia interativa entre organizações (instituição e firma), tecnologia (shumpeteriana)
e o território (geografia econômica) (STORPER, 1997). É um fenômeno urbanoregional, o que aponta para a invalidade de qualquer visão dualista entre a esfera
urbana e regional. O que se nota na metrópole do mundo contemporâneo2 é que ela
é marcada por uma miríade de processos: fusões e difusões, crescimento implosivo
e explosivo, desconcentração e reconcentração – enfim, tudo embrulhado em uma
única metrópole (MAGALHÃES, 2008; SOJA, 2000).
Todas essas discussões da produção e organização do espaço urbano no mundo
contemporâneo tiveram como “pano de fundo” o estudo do filósofo Henri Lefebvre.
Não diferente a essa tradição, Roberto Monte-Mór propõe o conceito de Urbanização
Extensiva. Esse conceito “descreve o processo de extensão das condições gerais de
produção3 urbano-industrial para além das cidades, atingindo espaços próximos
e longínquos, onde as relações socioespaciais urbano-industriais se impõem como
dominantes, independentemente da densidade urbanística variada” (MONTE-MÓR,
2005, p. 435). Trata-se de uma metáfora para indicar que o urbano ganhou dimensões
globais representando todo o espaço social, de forma que caracteriza a extensão do
tecido urbano-industrial pelas condições gerais de produção como também a extensão
da própria práxis urbana (i.e. esfera sociopolítica e cultural) gerada nas centralidades
urbanas (MONTE-MÓR, 2006b).
Por meio deste conceito, torna-se interessante discutir como a produção do
espaço urbano se originou e como ganhou um caráter expansivo no território paulista.
Para isso, faz-se um breve resgate histórico da configuração do espaço brasileiro
para, posteriormente, discutir e analisar os efeitos do processo de interiorização da
indústria no estado de São Paulo sobre a configuração do seu próprio tecido urbano.
De antemão, averigua-se que a extensão virtual das condições gerais do tecido urbanoindustrial, tanto quanto da práxis urbana, produziram as bases para novas integrações
e (re)organização do espaço brasileiro e paulista. Contudo, uma ressalva deve ser
feita. Diante da complexidade de lidar com o conceito de urbanização extensiva, este
trabalho apenas pretende apresentar uma “fotografia” parcial desse próprio conceito
sobre o estado de São Paulo, enfatizando a relação entre a industrialização e produção
do espaço urbano, tanto quanto alguns fatores locacionais (entenda-se como alguns
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181
2 Vale ressaltar que a essa
reconfiguração empírica geográfica, do novo padrão e
especificidades da forma, da
função e do comportamento urbano corresponde uma
nova discussão além do moderno e que emergiu devido
à globalização e à reestruturação econômica pós-fordista nos anos finais da década
de 1970.
3 Refere-se ao conceito marxista de condições gerais de
produção e estende o conceito para a regulação e legislação do trabalho, encargos
trabalhistas e previdenciários
e serviços públicos e privados
requeridos pela produção e
consumo capitalista industrial.
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fatores de condições de produção) que possam auxiliar na análise. Assim, a fim de
reforçar a articulação no espaço entre a indústria, o tecido urbano e as condições
gerais de produção, foram selecionados três métodos, a saber: o método diferencialestrutural (shift-share), Análise de Componentes Principais (ACP) e análise de cluster.
2. ASPECTOS HISTÓRICOS E O ESPAÇO URBANO
No Brasil, de industrialização fordista periférica e incompleta, a produção
do espaço urbano esteve concomitantemente vinculada às políticas territoriais
(concentradora e integradora) dos governos militares até as ações de interiorização
do desenvolvimento do período juscelinista. Antes, por volta do século XIX, havia
subespaços com dinâmicas próprias e baixo grau de interdependência que, a partir de
1940 e por meio de um processo de mecanização do território (i.e. integração orientada
por um ousado programa de investimento em infraestrutura), possibilitou a integração
de tais subespaços (e.g. tem-se a integração através de estradas de ferro e da construção
de rodovias entre as diversas regiões brasileiras). Tal integração já representava
uma resposta do Estado em face das necessidades das indústrias, particularmente
beneficiando as regiões do Sudeste (MONTE-MÓR, 2006a; SANTOS, 1993). Para
Santos (1993), a industrialização, prevalecente a partir de 1940 no Brasil, era vista
como processo social complexo que inclui desde a formação de um mercado nacional,
esforços de equipamento do território para torná-lo integrado, expansão do consumo
em diversas formas que impulsiona a vida de relações (terciarização), até o efetivo
processo de urbanização.
Isto posto, os investimentos em infraestrutura econômica (rodovias, comunicações, energia), serviços financeiros, entre outros, foram concentrados nas áreas centrais
das grandes cidades, particularmente no sudeste, a fim de expandir as condições urbanas (industriais de produção) que permitiriam a expansão do consumo dos bens duráveis para a produção industrial fordista que se instalaria no país a partir do “milagre
brasileiro”. Com isso, houve grande crescimento entre os anos 60 e 70 das periferias
metropolitanas, das capitais estaduais e cidades médias. Dessa maneira, a urbanização
se estendeu virtualmente ao território nacional integrando os diversos espaços regionais principalmente a centralidade urbano-industrial de São Paulo. Além disso, através
do tecido urbano brasileiro, também estenderam todo o aparato do Estado, incluindo
a legislação trabalhista, os seguros sociais, serviços de saúde e educação, sistema bancário, enfim, o conjunto das condições gerais de produção exigidas pela industrialização
fordista (MONTE-MÓR, 2005, 2006a, 2006b).
Portanto, a extensão virtual dessas condições urbano-industriais a todo o espaço
nacional, tanto quanto a práxis urbana, produziram as bases para a integração espacial,
amparada pela urbanização extensiva. Entre as articulações das regiões metropolitanas
e os centros industriais estenderam-se os acessos às novas fontes de matérias-primas, a
infraestrutura econômica (transporte, energia e comunicações, criando e estendendo
as próprias condições de produção e consumo). No final do século XX, o urbano
já se fazia presente em todo o território nacional (MONTE-MÓR, 2006a). Nesse
sentido, a urbanização extensiva se fez presente na história recente da formação urbana
do espaço brasileiro, de forma a integrar, não apenas os espaços urbanizados restritos
182
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às cidades, mas também os espaços rurais e regionais ao espaço urbano-industrial
virtualmente hegemônico e mais claramente manifesto no consumo coletivo e
individual expandido. Isso só ocorreu devido à expansão da base material para atender
às necessidades das relações de produção entre indústria e sociedade que ocorrem na
própria produção do espaço (MONTE-MÓR, 2006a, p.10).
Esses aspectos históricos, juntamente com alguns aspectos internos à economia
paulista, dotaram o estado de São Paulo com a mais ampla e complexa rede urbana e
base industrial do país. Quando se observa internamente a história econômica desse
estado, nota-se que tal configuração se deve, em grande parte, aos efeitos econômicos
observados desde o complexo cafeeiro. Naquela época, já se observavam os efeitos
geradores de economia de escala e de economias externas que expandiram o mercado
e proporcionaram uma ampla acumulação do capital. Ademais, tais efeitos, verificados
principalmente no meio urbano foram responsáveis pela constituição de um potente
mercado estruturado e espalhado no interior do estado, de forma a privilegiar os pontos
nodais da rede de transportes e comercialização do café. Dessa maneira, a configuração
espacial possuía uma complexa e diversificada rede urbana com articulações entre
diversos subcentros regionais (CAIADO, 1995; CANO, 1977).
Considerando que industrialização e urbanização sempre estiveram articuladas, a
expansão da rede paulista de cidades seguiu acompanhada pelo processo de formação
da indústria brasileira. A capital paulista passou a concentrar de forma crescente a
produção industrial, transformando-se no maior polo de atração de migrantes e na
maior metrópole do país. Com taxas anuais de crescimento populacional superiores
às do Brasil desde 1940, o desempenho migratório adquiriu peso relevante para o
comportamento observado em todo o período de concentração industrial (CAIADO,
1995). Aliás, conforme Lemos et al. (2003), a industrialização consolidou a hegemonia
paulista e dali emergiu uma hierarquia urbano-industrial extremamente desigual.
O padrão locacional da indústria paulista se concentrava na Região Metropolitana
de São Paulo (RMSP) em detrimento do interior. Contudo, por volta da década de
1970, já se iniciava um movimento conhecido como o processo de interiorização da
indústria. Os investimentos industriais realizados em alguns municípios paulistas (com
grandes encadeamentos de diversas atividades industriais), as ações em infraestrutura
realizadas pelos órgãos públicos (modernização do transporte rodoviário e ferroviário,
isenções fiscais), a articulação da moderna agricultura com o setor industrial, aliado ao
grande mercado do estado, tanto para insumos e bens intermediários como para bens
finais, foram os principais motivos que provocaram um processo de interiorização do
desenvolvimento (CANO, 1992). Desse modo, são patentes as ações do setor privado
e público para garantir e estender as condições gerais de produção urbano-industrial
para além da RMSP, ou seja, em direção ao interior paulista. Nos termos de Santos
(1993), pode-se afirmar que o processo de interiorização assemelha-se com o que o
autor chamou de uma metropolização contemporânea da desmetropolização.
Diniz (1993, 1995, 2002) analisa as políticas macroeconômicas de caráter
industrial e regional e aponta que a dinâmica econômica paulista, além do processo
de reestruturação produtiva, promoveu uma reversão da polarização da Região
Metropolitana de São Paulo (RMSP). Além disso, o autor destaca uma reconcentração
de atividades intensivas em ciência, tecnologia e conhecimento. Tais atividades
necessitam fatores locacionais contemporâneos (condições de produção urbanoindustriais), como centro de ensino, pesquisa e desenvolvimento; disponibilidade de
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mão de obra diversificada e qualificada; infraestrutura de transporte e setor de serviços
urbanos modernos; e interdependências regionais.
No processo de interiorização, de acordo com Caiado (1995), verificou-se que os
setores industriais mais dinâmicos, inicialmente localizados na capital e em seu entorno
imediato, se direcionaram às regiões de Campinas, Sorocaba, São José dos Campos e
Baixada Santista. Juntas, tais regiões representavam 78,63% do valor de transformação
industrial (VTI) do interior em 1980. Esta afirmação pode ser corroborada pelos
números: a RMSP perdeu participação relativa no valor adicionado industrial, ou seja,
de 64,1% para 58,1% no início de 1990. Por outro lado, no interior observa-se que a
região administrativa de Campinas aumentou sua participação de 15,1% para 19,2%
do VTI no mesmo período. Com menos destaques estão as regiões administrativas
de São José dos Campos (5,4% para 6,3%) e as de Sorocaba (de 4,0% para 4,9%). A
exceção a essas evidências corresponde ao declínio da participação do valor adicionado
da Baixada Santista (de 4,3% para 2,6%).
Em consonância com esse movimento processual de interiorização, desde a década
de 1970 constata-se que as taxas demográficas da Região Metropolitana de São Paulo
arrefeceram, enquanto que no interior se aceleraram. Dentre as regiões administrativas
do interior, destacam-se as de Campinas, do Vale do Paraíba, de Sorocaba, de Ribeirão
Preto, de Bauru, de Franca, Barretos, Central, Registro e Santos (SEADE, 1992).
Apesar disso, a dispersão do fluxo imigratório pelo interior não significou uma
contratendência no processo de urbanização, ou seja, os fluxos migratórios ocorreram
no sentido rural-urbano ou urbano-urbano. Os movimentos migratórios fortaleceram
algumas cidades como polos de atração regional de forma que apresentam uma grande
relação com o desempenho econômico regional (PATARRA; BAENINGER, 1994).
As regiões de Santos, Sorocaba, São José dos Campos, Ribeirão Preto e Campinas são,
como suas cidades vizinhas, as mais beneficiadas no processo de interiorização.
A dinâmica demográfica em direção ao interior paulista também influiu nas taxas
de urbanização (população urbana/população total) – conceito do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE). Visualizando os mapas da Figura 1 nota-se que tais
taxas cresceram de modo geral em todo o estado de São Paulo. O destaque repousa
a trajetória de crescimento da taxa de urbanização nas regiões mais beneficiadas pelo
processo de interiorização das indústrias, levando, conforme Caiado (1995), um
padrão de urbanização até então vigente somente na metrópole (capital).
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Figura 1 – Taxa de urbanização das microrregiões paulistas (anos selecionados)
Fonte: IBGE, Censos demográficos de 1970, 1980, 1991 e 2000.
Entretanto, vale destacar duas ressalvas. Primeiro, à medida que se estende o
processo de concentração espacial das indústrias e da população, por meio das economias de aglomeração num processo circular cumulativo, intensificam-se também
as deseconomias de aglomeração urbana (e.g. renda fundiária urbana) (PEREIRA;
LEMOS, 2003). Segundo, embora haja ressalvas quanto ao conceito empregado (taxa
de urbanização), uma vez que no mundo contemporâneo torna-se difícil distinguir o
que é urbano ou rural, tais mapas apontam para certa configuração do tecido urbano.
Entretanto, ao analisar as regiões que apresentam vantagens competitivas, vantagens
locacionais e são especializadas, sobremodo na indústria, pode-se extrair parcialmente
as condições gerais de produção que se estendem por todo o território do estado. Até
porque, conforme Harvey (1975), na nova forma de urbanismo, o fundamental é a
reorganização das forças de produção para aproveitar as vantagens da mecanização,
mudanças tecnológicas e economias de escala de produção. Dessa maneira, a indústria
é o lócus da análise, uma vez que no enfoque contemporâneo o processo de industrialização esteve sempre articulado com a produção da espacialidade urbana.
Embora o processo de interiorização, acentuado nos anos 1980 e 1990, tenha
gerado uma desconcentração das atividades industriais e das taxas demográficas,
existem discrepâncias e desigualdades regionais com graus variados de industrialização
e urbanização. Como decorrência disso, os fatores locacionais e a dinâmica econômica
das regiões paulistas seguem a mesma lógica de tais assimetrias.
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3. METODOLOGIA
Nesta seção será apresentada a descrição do método diferencial-estrutural (shiftshare), da Análise de Componentes Principais (ACP) e da análise de cluster.
3.1 Método diferencial-estrutural
O método diferencial-estrutural tem por finalidade descrever o crescimento
econômico de uma região em termos da sua estrutura produtiva. Para tanto, por
meio de um conjunto de identidades contábeis, o método aponta duas razões para
o crescimento de uma região: a) a região pode crescer mais que as outras em virtude
da sua composição produtiva ser dominada por setores dinâmicos ou b) porque a sua
estrutura tem participação crescente no total das regiões, independente da existência de
setores. Por essas razões, o crescimento regional é decomposto entre um componente
estrutural e um componente diferencial (HADDAD, 1989).
Além desses componentes, Esteban-Marquillas introduz os efeitos alocação e
competitivo, ao lado dos efeitos estruturais e diferenciais, para analisar os componentes
do crescimento regional. Sua argumentação reside no fato que valores da variação
diferencial no emprego regional não são devidos apenas ao comportamento do setor
na região (rit - rtt), mas ao efeito competitivo nessa região. Por outro lado, o crescimento
regional pode estar oculto por transformações na variação competitiva; assim, o autor
considera também o efeito alocação (HADDAD, 1989). Feitas essas observações, é
possível formalizar o modelo de forma que o ano inicial (2000) será representado
por “0” e o ano final (2005) corresponderá a “1”. Os componentes do crescimento
regional serão definidos como: variação regional (R), variação estrutural (E), variação
diferencial (D), efeito competitivo (C) e efeito de alocação (A). Dessa maneira, segue:
(1)
em que
= variação total, ou seja, a diferença entre o emprego do período final e
inicial na região j;
Variação Total Líquida
(1a)
em que = acréscimo do emprego se a região j tivesse a taxa de crescimento do
= crescimento do emprego de todas as
emprego de todas as regiões;
regiões;
= taxa do crescimento do emprego no setor i em todas as regiões;
= taxa de crescimento do emprego no setor i da região j; e
= emprego homotético, isto é, emprego no setor se a região j tivesse a mesma estrutura
de emprego de São Paulo.
186
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3.2 Análise de Componentes Principais (ACP)
O método de componentes principais foi introduzido por Karl Pearson em
1901 e constrói um conjunto de variáveis
,
, ortogonais (estatisticamente
independentes) a partir de combinação linear de k-variáveis aleatórias ( ,..., ).
Essas variáveis ortogonais são propriamente conhecidas como componentes principais,
não são correlacionadas entre si e captam toda a variabilidade das variáveis originais,
ou seja, as variáveis ortogonais são definidas a partir de uma matriz de covariância. Os
componentes principais permitem reduzir e classificar os dados originais mantendo a
maior parte das informações (ANDRADE, 1989; MINGOTI, 2005). Formalmente,
as combinações lineares são expressas como:
(2)
Essas combinações não são correlacionadas (ortogonais) e atingem maiores
variâncias possíveis. Em outras palavras, as combinações lineares maximizam
e
sujeito a
=1. Cada variância é definida como:
(3)
em que
é uma matriz de correlação.
Além disso, as variáveis ortogonais são calculadas a partir dos pesos
de
forma que o primeiro componente ( ) corresponda a uma parcela maior da
variabilidade das variáveis originais e, assim, sucessivamente, o que permite escrever:
.
3.3 Análise de cluster
A análise de cluster é por natureza uma análise exploratória que busca identificar
grupos similares dentro de uma amostra maior. Nesses termos, com tal análise é possível
sintetizar o número de dados, apontar os valores extremos (outliers) e sugerir hipóteses
sobre a relação das variáveis. O seu algoritmo agrupa os indivíduos (microrregiões)
similares em categorias iguais a partir de k variáveis associadas (MANLY, 1986). O
critério de agrupamento dos indivíduos se dá com base na sua proximidade, indicada
geralmente por distâncias euclidianas.
A análise de cluster é subdividida em uma abordagem hierárquica e uma de partição.
Nesse trabalho será adotado exclusivamente o método hierárquico e aglomerativo (parte
do indivíduo), o que significa dizer que os indivíduos são agrupados sequencialmente
de acordo com suas semelhanças, formando subgrupos e grupos de acordo com as
influências das suas similaridades encontradas em cada estágio.
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4. BASE DE DADOS E TRATAMENTO
DAS VARIÁVEIS
4 Correspondem 12 variáveis
filtradas após os resultados
da matriz de correlação.
A base de dados utilizada para o estudo das 63 microrregiões paulistas corresponde
ao emprego efetivo por atividades econômicas de 2000 e 2005 da Relação Anual de
Informações Sociais (RAIS). Vale destacar que a principal vantagem da RAIS é o nível
detalhado de desagregação geográfica e setorial dos dados. Contudo, sua limitação
reside principalmente na exclusiva cobertura de emprego formal. Dessa maneira,
para a aplicação do método shift-share, tanto quanto algumas medidas clássica de
localização e especialização, serão adotados os dados de emprego efetivo da indústria
(classificação do IBGE).
Por outro lado, para analisar os fatores aglomerativos e desaglomerativos das
microrregiões paulistas, por meio da Análise de Componentes Principais (ACP),
foram desenvolvidas variáveis proxys4 com base nos dados de emprego efetivo de
2005 da RAIS sob referência dos trabalhos de Pereira e Lemos (2003), Lemos et al.
(2003), Pereira (2002), Martins (2003) e Betarelli Junior e Simões (2011). O Quadro
1 apresenta as 12 variáveis selecionadas.
Quadro 1 – Descrição e significado das 12 variáveis selecionadas
Variável
Coeficiente de
Especialização
Fórmula e definição
tal que i representa o setor e j a região (microrregião).
é a distribuição do emprego na região;
Interpretação
Compara a estrutura produtiva da microrregião em relação à estadual.
Quando se aproxima de 1, a região apresenta um elevado grau de
especialização em um dado setor ou está diversa da estrutura do
emprego estadual (HADDAD, 1989).
é a distribuição do emprego estadual.
Grau de
industrialização
Analfabetismo
GINDUST = POind / POurb
POind é o pessoal ocupado (PO) na indústria (IBGE 6
setores);
POurb é o pessoal ocupado urbano (PO total - PO agrícola).
ANALFAB = POanalfab / PO1564
PO1564 são as pessoas ocupadas com idade entre 15 e 64 anos.
POBREZ = POmsm / POurb
Nível de pobreza
Massa salarial
da indústria de
transformação
Mercado
POmsm são as pessoas ocupadas urbanas que recebem
menos de um salário mínimo (SM) de dezembro.
MSINDTR = (MSindtr / MStotal)*100
MSindtr é a massa salarial da indústria de transformação;
MStotal trata-se massa salarial industrial total.
MERCADO = MSub / POurb
MSub é a massa salarial total menos al da agrícola.
188
Está associada com a economia de urbanização (no sentido que
apresenta um mercado local significativo de compradores e de
vendedores), de forma que provoca maiores efeitos de encadeamento
(para frente e para trás).
Representa a baixa qualificação da força de trabalho da região e atua
como um fator desaglomerativo para as atividades intensivas em
trabalho qualificado. Contudo, para setores que não são demandantes
de qualificação, essa variável pode representar uma fonte de atração.
Pode representar deseconomias de urbanização pelo seu nível de
pobreza (altos custos sociais) ou pode também ser um fator atrativo
para as atividades intensivas em trabalho, uma vez que equivale a um
mercado de trabalho de baixo custo.
Tem-se o intuito de captar o peso relativo das atividades industriais,
refletindo numa concentração relativa das áreas de mercado e os
efeitos de encadeamentos oriundos de tais industriais. Isto posto, tal
variável denota um fator aglomerativo subjacente da economia de
urbanização.
O propósito é tentar captar o poder de compra do mercado local
(fator aglomerativo), contudo também pode ser tratado o custo da
força de trabalho urbano. Nesse trabalho, considerou como um fator
aglomerativo de urbanização.
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Força de
trabalho
especializado
Oferta de
serviços
produtivos
FESPEC = POesp / POurb
POesp é o técnicos e profissionais ocupados dos
subgrupos da RAIS: 201 (biotecnologia e metrologia),
202 (eletromecânica), 214 (engenheiros), 221 (biólogos),
222 (agrônomos), 300 (mecatrônicos e eletromecânicos),
301 ( laboratório), 311 (ciências físicas e químicas), 312
(construção civil), 313 (eletroeletrônica e fotônica), 314
(metalomecânica), 316 (mineralogia e geologia), 317
(informática), 318 (desenhistas técnicos e modelistas),
319 (ciências físicas e químicas), 320 (biologia), 321
(agropecuária), 323 (ciência da saúde animal), 325
(bioquímica e da biotecnologia).
SERVICOS = POservesp / POOserv
POservesp é o pessoal ocupado das seguintes categorias:
serviços industriais de utilidade pública; instituições de
crédito, seguros e capitalização; comércio e administração
de imóveis, valores mobiliários, serviços técnicos; transporte
e comunicações;
Procura-se obter o nível de qualificação da força de trabalho, o
que representa uma vantagem potencial de uma cidade, ou seja,
economias de urbanização.
Esta variável envolve-se com o conceito de economias de urbanização
de modo que mede o nível de oferta de serviços.
POOserv é o pessoal ocupado total da atividade de serviços.
Economia de
escala
ECESCALA = PO100urb / POurb
PO100urb trata-se do pessoal ocupado em empresas com mais
de 100 funcionários.
é o emprego do setor i e região j (microrregião);
é o emprego do setor i de todas as regiões;
Quociente
locacional:
três grupos da
indústria de
transformação
é o emprego de todos os setores da região j
(microrregião);
corresponde ao emprego total do Estado.
QLWEB: Produtos minerais não metálicos; metalúrgica; e
papel, papelão, editorial e gráfica;
QLDINAM: Mecânica; material elétrico e comunicações;
material transporte; química de produtos farmacêuticos,
veterinários e perfumaria;
QLTRAD: Madeira e mobiliário; Borracha, fumo, couro,
peles, similares e indústrias diversas; têxtil do vestuário e
artefatos de tecido; calçados; produtos alimentícios, bebidas
e álcool etílico.
Esta variável denota a economia de escala propriamente como função
do tamanho relativo das empresas.
Tem-se a finalidade de capturar as economias de localização, uma vez
que o quociente locacional é uma medida de localização de forma
que compara a participação percentual de uma região em um setor
particular com a participação percentual da mesma região no total de
emprego (nacional ou estadual) (HADDAD, 1989).
No conjunto da variável QLWEB (indústrias weberianas), as indústrias
são intensivas em capital de tal modo que são orientadas a se localizar
próximo da sua matéria-prima.
Na variável QLDINAM, a maioria dos setores é atraída para os centros
consumidores com ampla oferta de serviços produtivos e demandam
força de trabalho qualificada.
Por fim, na variável QLTRAD, os setores são intensivos em trabalho,
inclusive demandam baixa qualificação da força de trabalho, e são
direcionados para locais com baixos salários.
Fonte: Betarelli Junior e Simões (2011).
5. RESULTADOS E DISCUSSÕES
Pela abordagem de Esteban-Marquillas, o efeito de alocação (A) aponta que o
crescimento regional pode ocorrer porque a região detém e combina as suas vantagens
competitivas com sua especialização (transformações na variação competitiva). Quando
se decompõe tal efeito entre seus componentes para a indústria, observam-se combinações
variadas para as microrregiões paulistas. Na Figura 2 constata-se uma aglomeração
espacial no tocante às vantagens competitivas e especialização do setor industrial.
Nota-se que 10 microrregiões circunvizinhas ou próximas [São Carlos (MR25),
Jaú (MR21), Rio Claro (MR26), Limeira (MR27), Piracicaba (MR28), Mogi Mirim
(MR31), Tatuí (MR43), Sorocaba (MR46), Jundiaí (MR47) e Bragança Paulista
(MR48)] à microrregião de Campinas (MR32) formam um aglomerado espacial. Isso
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5 No município está localizado o polo tecnológico
campineiro que é cercado de
duas grandes universidades,
a Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp) e a Pontifícia Universidade Católica
de Campinas (PUCCAMP).
ratifica, sem dúvida, o resultado do processo de interiorização da indústria tratado por
Azzoni (1986), Cano (1992) e Diniz (1993, 1995, 2002). Nessas regiões, observa-se
uma moderna infraestrutura de transporte (e.g. rodovias dos Bandeirantes, Anhanguera
e D. Pedro I) que interliga essas microrregiões e setores intensivos de conhecimento,
uma concentração de pesquisa e um mercado de trabalho especializado (e.g. Campinas
e São Carlos). Em particular, na região de Campinas, existem universidades e centros
de pesquisa, o que representa uma espécie de sinergia de inovação para os agentes
produtores locais (MONTENEGRO; BETARELLI JUNIOR, 2009).5
Figura 2 – Efeito alocação das microrregiões paulistas à indústria (2000 e 2005)
Ademais, as microrregiões de Fernandópolis (MR2), de São José do Rio Preto
(MR4), de Novo Horizonte (MR8), de Lins (MR19), de Ourinhos (MR40) e Franca
(MR12) também revelam vantagens competitivas e são especializadas no setor industrial.
A microrregião de Franca (MR12) é altamente especializada na produção de calçados e
derivados do couro, representando uma vantagem competitiva para este setor industrial.
Na região de Fernandópolis, existe uma moderna agricultura articulada com a indústria
(e.g. produção de açúcar e álcool, cítricos, café, milho e soja, com altos índices de
mecanização e alta produtividade) (SOUZA; GARCIA, 1999).
Embora a microrregião de São Paulo detenha uma força de trabalho altamente
qualificada, principalmente aquelas voltadas para atividades setoriais baseadas na
ciência, na técnica e no conhecimento, o nível de emprego entre 2000 e 2005 da
indústria nessa microrregião cresceu menos que a média do estado (desvantagem
competitiva). Uma das explicações mais plausíveis reside no fato de que as indústrias
não encontram mais vantagens para se localizar nessa microrregião, sendo direcionadas
para o interior paulista (e.g. Campinas), onde são competitivas e especializadas.
Como resultante, atraída pela maior oferta de emprego qualificado, a mão de obra
especializada, que antes se encontrava na microrregião de São Paulo, se movimenta
para o interior. Esse movimento é característico do processo de interiorização no
estado, uma vez que ocorre por duas vias: pelo movimento das atividades setoriais
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e pelo movimento migratório.6 Nesse sentido, conforme Diniz (1993, 1995, 2002),
o movimento desse processo promoveu uma “desconcentração concentrada”. E esse
movimento é observado nos períodos de 2000 e 2005.
Tal movimento, impulsionado pelas ações do processo de interiorização na
década de 1970 (fator eminentemente histórico), (re)organizou as articulações
e interdependências socioespaciais no território do estado de São Paulo. Existe
uma aglomeração espacial em torno da microrregião de Campinas que, de certa
maneira, configura e indica a ocorrência de um processo de extensão das condições
urbano-industriais. Isso significa que tais resultados podem também ser oriundos
do processo de urbanização extensiva, ou seja, do transbordamento do processo de
urbanização para áreas circunvizinhas. Todavia, em complemento de tal observação,
o método ACP contribui para identificar as forças aglomerativas e desaglomerativas
das microrregiões paulistas.
Dessa maneira, utiliza-se o método de ACP para as 63 microrregiões paulistas no
ano de 2005, considerando as 12 variáveis originais (vetor aleatório). Pela Tabela 1,
verifica-se que o primeiro componente, que representa 42,19% da variância, aponta
nitidamente para forças de direções opostas. De um lado, os coeficientes das variáveis
aglomerativas (e.g. MERCADO, FESPEC, SERVICOS, ECESCALA) registram
sinais positivos e, de outro, as variáveis desglomerativas com sinais negativos (e.g.
CESP, ANALFAB, POBREZ).
Tabela 1 – Coeficientes dos componentes principais1
Fonte: Elaboração própria
Por sua vez, no segundo componente, responsável por 18,9% da variabilidade
do vetor aleatório, três coeficientes são significativos (GINDUST, MSINDTR e
QLTRAD). De certa forma, os mesmos captam o peso e a intensidade de industrialização
como fator aglomerativo, sobretudo, por indústrias tradicionais intensivas em trabalho.
O terceiro componente, que representa 10,3% da variância dos dados, aponta que as
microrregiões tendem a atrair uma estrutura produtiva mais diversificada de tal forma
que absorva a oferta de trabalho no mercado local (qualificado e não qualificado).
Notoriamente, se a força de trabalho é o principal fator aglomerativo nesse componente,
logo esse fator vale menos para as indústrias weberianas ( QLWEB ) – orientadas para
a fonte de matéria-prima.
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6 Tal justificativa é corroborada por Caiado (1995), conforme abordado na seção 2
desse trabalho.
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Dadas as descrições dos componentes principais de maior variância, é possível
realizar uma representação gráfica a fim de averiguar as similaridades e diferenças
existentes entre as microrregiões em cada quadrante cartesiano (Gráfico 1). No
quadrante inferior esquerdo (Q1) estão as microrregiões com alto nível de pobreza
e analfabetismo e que ao mesmo tempo apresentam um alto grau de especialização.
Essas regiões têm por natureza um baixo grau de industrialização e suas atividades
não geram economia de escala. Além desses fatores adversos, a sua economia tem um
reduzido mercado interno (poder de compra) e uma baixa (ou inexistente) força de
trabalho especializada. Na composição da sua estrutura industrial, é possível observar
que setores dinâmicos e indústrias weberianas estão ausentes. Tal caracterização é
mais evidente para as microrregiões de Itanhaém, Caraguatatuba, Campos do Jordão,
Registro e Capão Bonito.
No quadrante inferior direto (Q2) estão as microrregiões especializadas em
setores tradicionais (intensivo de trabalho) onde o nível de pobreza e analfabetismo
é acentuado. Na sua economia o poder de compra é baixo (mercado) e o nível de
qualificação da força de trabalho é reduzido. Isso reforça a ausência de setores dinâmicos
e indústrias weberianas. A principal diferença com o Q1 é que neste quadrante as
microrregiões têm um maior grau de industrialização, voltadas principalmente para
setores tradicionais. As microrregiões de Auriflama, Novo Horizonte, Ourinhos e
Barretos são bons exemplos desse Q2. Aliás, com um menor grau de analfabetismo
e pobreza e com maior especialização em setores tradicionais, destacam-se as
microrregiões de Birigui, Lins e Franca.
No quadro superior direito (Q3), concentram-se as microrregiões com maior
grau de industrialização de tal forma que geram economias de escala, em especial os
setores dinâmicos e indústrias weberianas. Na sua economia existe uma predominância
de trabalho qualificado e um relativo mercado local amplo. Ademais, o grau de
analfabetismo e pobreza é baixo. Nesse quadrante se destacam as microrregiões de
Limeira, Sorocaba, Mogi Mirim e Tatuí. Destarte, se concentram regiões altamente
industrializadas e que também detêm altos fatores aglomerativos urbanos.
No último quadrante superior esquerdo (Q4), encontram-se as microrregiões que
exibem uma estrutura industrial composta, sobretudo por setores dinâmicos e indústrias
weberianas. São microrregiões com alto poder aquisitivo no mercado local e com uma
grande concentração de oferta de serviços. O grau de industrialização é bem menor
quando comparado com as microrregiões do Q3. Isto aponta para o fato de que existem
municípios das microrregiões do Q4 que estão voltadas, sobretudo, para a atividade
agropecuária e serviços. Em suma, as microrregiões do Q4 apresentam uma estrutura
de atividades altamente diversificada e completa, quando comparada com os demais
quadrantes, visto que os seus municípios são especializados na agropecuária, indústria
e serviços. Essa observação é reforçada pela direção oposta da variável CESP (grau de
especialização). As principais microrregiões com essas características são: São José dos
Campos, Campinas, Osasco, Mogi das Cruzes, Itapecerica da Serra e São Paulo.
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Gráfico 1 – Distribuição das microrregiões em torno dos dois primeiros
Para auxiliar a tipologia que evidencia as características de efeitos locacionais
urbanos das microrregiões paulistas extraídas dos resultados do método ACP, utiliza-se
a análise de cluster. Da mesma forma que o método ACP, a análise de cluster considera
as 12 variáveis destacadas e revela como as microrregiões paulistas podem ser agrupadas
pelas influências das suas similaridades.7 Isto posto, gerou-se um mapa de cluster. O
mapa da Figura 3 tem dois grupos: G1 e G2.
Figura 3 – Grupos formados por variáveis locacionais no estado de São Paulo (2005)
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7 Tal técnica utilizou a distância euclidiana e o método
Ward para o agrupamento
de casos (microrregiões). O
coeficiente de cluster, que
mede o quanto o agrupamento das microrregiões
condiz com as 12 variáveis,
registrou um valor de 0,897.
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No segundo grupo (G2) concentram-se as microrregiões que detêm uma estrutura
produtiva mais diversificada, de forma que imperam nas suas economias os fatores
aglomerativos (alto poder aquisitivo, alta oferta de serviços e força de trabalho qualificada).
São correspondentes às microrregiões do quadrante 3 e 4. No primeiro grupo (G1) estão
as microrregiões com alto grau de analfabetismo, pobreza e especialização na sua estrutura
produtiva. É interessante notar no mapa que as microrregiões que exibem uma estrutura
industrial são compostas, sobretudo, a) por setores dinâmicos e indústrias weberianas;
b) por um alto poder aquisitivo no mercado local; c) por uma grande concentração
de oferta de serviços; e d) por uma predominância de trabalho qualificado, formando
um aglomerado urbano em torno de São Paulo e das principais regiões beneficiadas
do processo de interiorização da economia paulista, isto é, Baixada Santista, Sorocaba,
São José dos Campos, Ribeirão Preto e Campinas. Nota-se que tal configuração reforça
que algumas regiões (i.e. entorno de Campinas) promovem vantagens competitivas para
indústria (vide Figura 1). Esse fenômeno, ao beneficiar os vizinhos imediatos, pode ser
entendido como um processo de urbanização extensiva. Isso porque as condições gerais
de produção urbano-industriais se estenderam via “tecido urbano” para além das cidades
até as regiões (capitais e do processo de interiorização) de forma que elas estão articuladas
entre si e com as pequenas e médias centralidades no seu entorno (vide Figura 4).
De acordo com o mapa da Figura 4, as microrregiões que revelam vantagens
competitivas e são especializadas para o setor industrial, sejam elas atingidas direta
ou indiretamente (regiões circunvizinhas) pelo processo de interiorização, também
apresentam, na grande maioria, vantagens locacionais e taxas de urbanização
acima de 80% que favoreceram as condições gerais de produção urbano-industrial.
Adicionando a rede de transporte rodoviária, pode-se ter uma melhor dimensão do
espaço urbano que está em contínua expansão e mutação, gerando e (re)organizando
novos centros. Toda a extensão do tecido urbano no território paulista tem como
principais centralidades polarizadoras a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) e
as regiões de Campinas, Sorocaba, São José dos Campos e Baixada Santista.
Figura 4 – Aspectos que caracterizam a rede urbana paulista
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6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho pretendeu oferecer contribuições acerca da formação, produção
e organização do espaço urbano no estado de São Paulo por meio de um enfoque
contemporâneo. Considerando que a metamorfose da cidade (implosão e explosão,
segundo Lefebvre) e de uma sociedade industrial e a resultante produção de uma
espacialidade urbana sempre, de certa forma, estiveram articuladas, buscou-se
resgatar os principais aspectos históricos do processo de industrialização paulista que
influíram na configuração do tecido urbano e na articulação das redes (socioespaciais
e transporte) no seu próprio território. Assim, conciliando o método diferencialestrutural (shift-share), a Análise de Componentes Principais (ACP) e a análise de
cluster, foi possível evidenciar que o processo de interiorização da indústria no estado,
de caráter histórico (iniciado nos anos 1970), teve como resultado o fenômeno de
urbanização extensiva. O que se pode observar, pelas “fotografias” ilustradas, é que
houve uma extensão virtual das condições gerais de produção manifestas no tecido
urbano-industrial estendido, de forma que centralidades polarizadoras e regiões
circunvizinhas apresentam vantagens locacionais e competitivas, formando, dessa
maneira, aglomerações urbanas (reflexividade econômica). Embora não tenha sido
discutido ao longo do trabalho, é provável que, quando as condições gerais do tecido
urbano-industrial se estenderam no território paulista, as práxis urbanas também
caminharam no mesmo sentido, gerando práticas sociais e políticas características de
espaços urbano-industriais.
De modo geral, o processo de interiorização das indústrias no estado de São Paulo,
iniciado na década de 1970, constitui-se um dos fatores históricos proeminentes da
extensão do tecido urbano no estado. Observa-se a formação e configuração de novas
centralidades urbanas que se articulam com seu entorno imediato de tal forma que
influenciam e comandam cada vez mais a lógica dos espaços de produção e consumo.
Novas centralidades se formam no entorno que, em última instância, são comandadas
por uma centralidade maior. Esse processo de urbanização, característico no mundo
contemporâneo, engloba redes interdependentes tanto em nível local como global
e estão estruturadas de forma razoavelmente hierarquizada, incluindo uma série de
centralidades (hinterlands) de pequeno e médio porte polarizadas por uma centralidade
maior – a metrópole. Nesse formato, o tecido urbano constitui-se de aglomerações
urbanas de diversos tamanhos no entorno dos hipercentros metropolitanos e urbanos.
Entretanto, Soja (2000) aponta que a expansão do tecido urbano-industrial, oriundo
do seu núcleo central, através de eixos, tornaria tal hierarquia de subcentros uma só
unidade urbana, ou seja, um espaço-cidade.
Ademais, diante dos resultados discutidos, observa-se que o processo de
interiorização das atividades econômicas e da migração, mormente nos anos 1980
e 1990, que inicialmente beneficiou diretamente Campinas, São José dos Campos,
Sorocaba, Ribeirão Preto (agricultura moderna), Santos (Baixada Santista) e Jundiaí,
provocou também uma desconcentração concentrada na estrutura da economia do
estado, que é ratificada por uma “fotografia” nos anos de 2000 e 2005.
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195
Admir Antonio Betarelli Junior é doutor pelo Centro de
Desenvolvimento e Planejamento Regional (CEDEPLAR),
Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: <[email protected]>.
Roberto Luís de Melo Monte-Mór é professor adjunto pela
Faculdade de Ciências Econômicas - CEDEPLAR/UFMG. E-mail: <monte-mor@cedeplar.
ufmg.br>.
Rodrigo Ferreira Simões é professor adjunto pela Faculdade
de Ciências Econômicas - CEDEPLAR/UFMG. E-mail: <[email protected]>.
U R B A N I Z A Ç Ã O E X T E N S I VA E O P R O C E S S O D E I N T E R I O R I Z A Ç Ã O
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Abstract
The main aim of this paper is to discuss the formation, organization
and production of urban areas in State of São Paulo (Brazil) in the variant of the process
of industry’s internalization in the late ‘70s. As industrialization has always been linked
to the production of urban spatiality in contemporary approach, the locus of analysis is the
industry. Combining the method shift-share (Esteban-Marquillas), Principal Component
Analysis (PCA) and cluster analysis, we noted evidence that this process has resulted
in the phenomenon of extensive urbanization. The main findings of these applications
(“photographic”) indicated that there was a virtual extension in general conditions of the
urban-industrial fabric so that polarizing centralities and surrounding regions present
locational and competitive advantages, forming, therefore, urban agglomerations in
the territory of São Paulo, mainly in the regions benefiting with the process of industry’s
internalization.
Keywords:
extensive urbanization; Internalization of the industry; Shiftshare; Multivariate Analysis; São Paulo (Brazil).
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POLÍTICAS SOCIAIS
E POLÍTICAS DE CULTURA:
TERRITÓRIOS
E PRIVATIZAÇÕES CRUZADAS
Cibele Saliba Rizek
Resumo
O artigo se baseia em pesquisa que apontou para novas formas de
captação de recursos por meio da promoção de práticas culturais que se interligam à gestão
de serviços públicos de saúde na Zona Leste da Cidade de São Paulo, sob a direção de
organizações sociais privadas. O cruzamento entre modos de captação, gestão terceirizada
da cultura e equipamentos de saúde aponta para uma intersetorialidade inédita dessas
práticas, o que configura o que poderia ser identificado como um planejamento social
privado, redesenhando formas de atuação e margens do Estado por meio de um conjunto
de relações entre os programas sociais e a população em condições de pobreza na maior
cidade brasileira. Os bairros da última periferia Leste da cidade de São Paulo conformam
assim um terreno de experimentações dessas práticas cruzadas para além das caracterizações
clássicas das zonas periféricas das grandes metrópoles brasileiras que apontavam para a
precariedade das condições de vida bem como para o nascedouro de movimentos sociais,
suas demandas, sujeitos e linguagens de direitos, tal como foram percebidos e enunciados a
partir do final dos anos oitenta do século XX.
Pal avras-chave
Políticas sociais; políticas públicas; privatização;
periferias urbanas
Apresentação
Este texto tem como objetivo apresentar achados de pesquisa que apontam para
um conjunto de novas formas de captação de recursos por meio de eventos e práticas
culturais e de gestão de serviços privatizados de saúde na zona leste da cidade de São
Paulo. O cruzamento entre modos de captação, gestão terceirizada da cultura e de
ações e equipamentos de saúde apontam para a intersetorialidade dessas práticas de
modo inédito, conformando o que poderia ser identificado como um planejamento
social privado minucioso por parte de organizações sociais de cultura e de saúde que
redesenham formas de atuação e margens do estado nas suas relações com programas
sociais e com a população em condições de vulnerabilidade na maior cidade brasileira.
Alguns bairros da periferia leste da cidade de São Paulo conformam assim um terreno de experimentações dessas práticas cruzadas para além das caracterizações clássicas das
zonas periféricas das grandes metrópoles brasileiras que apontavam para a precariedade das
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P O L Í T I C A S
1 Esse conjunto de achados
de pesquisa dizem respeito
especificamente a bairros
da zona leste da cidade de
São Paulo, sobretudo no que
diz respeito à privatização e
gestão dos equipamentos de
saúde. Os achados de pesquisa iniciais que forneceram
as pistas para uma incursão
mais aprofundada na questão são provenientes de anos
de acompanhamento de atividades e práticas em Cidade
Tiradentes – no extremo leste do município que pode ser
caracterizado como um dos
últimos bairros da cidade a
se formar. Cidade Tiradentes ficou conhecida como “o
maior conjunto habitacional
da América Latina”, tendo
sido formada a partir de
remoções provenientes de
obras e de intervenções por
toda a cidade de São Paulo.
Apesar de inicialmente constituída por pequenos edifícios da COHAB, o bairro cresce a partir de combinações
entre loteamentos e edifícios
constituídos de forma regular e pedaços de território
ocupados irregularmente. A
presença de assentamentos
regulares ao lado de outros
pouco ou nada regulares e/
ou regularizáveis – favelas,
habitações que se transformam em estabelecimentos
comerciais, edifícios da COHAB, terrenos e encostas
também ocupados irregularmente, acabou por configurar uma população de cerca
de 215.000. O bairro cresce
mais do que a média dos bairros paulistanos e tem 72%
de sua população ganhando
em média 2 salários mínimos mensais (Cf. <http://
www.prefeitura.sp.gov.br/
cidade/secretarias/upload/
saude/arquivos/publicacoes/
Boletim_CEInfo_Censo_02.
pdf>, consultado em maio
de 2012). Ao lado de Cidade
Tiradentes, Guaianases é um
bairro também constituído
por populações de baixa renda e conta – somando-se a
população de Lajeado – com
cerca de 250.000 habitantes.
Esses bairros estão a cerca de
35 km do centro da cidade.
Guaianases conta com o serviço de trens da CPTM e Cidade Tiradentes apenas com o
serviço de algumas linhas de
ônibus, reconhecidamente
insuficientes para o transpor-
S O C I A I S
E
P O L Í T I C A S
D E
C U LT U R A
condições de vida bem como para o berço de movimentos sociais que se deslocavam das
reivindicações relativas às carências para a constituição de demandas, sujeitos e linguagens
de direitos, tal como foram percebidos e enunciados a partir do final dos anos 80 do século
XX. O que esses achados de pesquisa parecem apontar é um terreno fértil para a ação de
grupos e de empreendimentos privados que crescem em espiral oferecendo, gerindo e promovendo serviços, ações e práticas no campo da assistência, conformando novas formas de
gestão do cotidiano dessas populações e reconfigurando as relações entre o Estado e seus
serviços, as populações que habitam esses territórios e a plêiade de programas e políticas
sociais que vêm reconfigurando as dimensões cotidianas, as práticas de consumo, formas
de sociabilidade e formas de expressão dessas populações.
Indícios e achados
Em visitas a campo e a partir da sistematização de informações de pesquisa,
a coincidência entre um conjunto de iniciativas de cunho cultural e a gestão de
programas e equipamentos de saúde começou a se delinear como inquietação. Afinal
como se cruzavam escolas de música, faculdades, oficinas culturais, grandes atividades
culturais em eventos importantes da agenda paulistana e hospitais, postos e agentes e
programas de saúde e assistência à família no extremo leste da cidade de São Paulo?
Essas indagações são o ponto de partida deste texto.
A partir de informações dispersas, surgiram indícios que apontavam para uma política inusitada de captação de recursos e de investimento em saúde na zona leste1 da cidade
de São Paulo. O primeiro indício provém da terceirização dos serviços de saúde que foi se
estendendo pela região como parte de uma política de privatização da gestão de saúde no
município e no estado de São Paulo. Esses mecanismos de transferência de gestão da saúde do Estado para organizações sociais tiveram início a partir do final da gestão Erundina,
em 1992 – e se estenderam até hoje. O segundo indício decorre da presença concomitante de instituições encabeçadas por religiosas católicas tanto em hospitais e programas
de saúde – como o Estratégia Saúde da Família e seus equipamentos de ancoragem, até
postos de saúde que atendem parcela nada desprezível da população que habita Cidade
Tiradentes e outros distritos da zona leste de São Paulo – como em ações, instituições e
programas de cunho cultural. A Organização de Saúde STX,2 além do hospital municipal
de Cidade Tiradentes, também é responsável pela gestão de grande hospital, em Itaquera,
parcela mais consolidada da periferia da cidade e local do estádio que sediará a abertura da
Copa do Mundo de 2014. As mesmas irmãs deram origem, há algumas décadas, a uma
escola privada de cunho religioso de primeiro e segundo grau, a uma faculdade de música,
moda e design entre outros cursos, outra unidade de ensino superior em Itaquera que
abriga inclusive um curso de medicina e programas privados e pós-graduação, bem como
uma oficina cultural/escola de música da cidade, originalmente do estado de São Paulo; a
OS Cultural também se faz presente em grandes eventos culturais como o Festival de Inverno de Campos do Jordão,3 bem como na gestão terceirizada de evento eleitoralmente
significativo na cidade de São Paulo: a Virada Cultural que consiste em espetáculos nas
ruas, praças e espaços da cidade durante 24 horas.
Assim, para entender os processos que têm lugar no complexo de instituições de
saúde geridas pelas organizações STX, é preciso poder perceber como se entrecruzam
serviços e captação de recursos por meio de um mecanismo de privatização da cultura e
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de terceirização dos equipamentos e serviços públicos de saúde de modo entrecruzado.4
Esse achado de pesquisa, ausente na literatura sobre cultura e saúde em São Paulo e no
Brasil, parece se constituir em um caso único que cruza gestões e arbitragens privadas
tanto das atividades culturais quanto de dimensões relativas à assistência à saúde, em
suas injunções com a assistência social às famílias.5
Para compreender esse cruzamento, é preciso mencionar que esses processos têm
por base dimensões legais instituídas em momentos e em instâncias diversas ao longo
das últimas décadas no Brasil. Outro elemento a destacar diz respeito ao fato de que é no
estado de São Paulo que esses dois expedientes se cruzaram significativamente. Trata-se
de uma intrincada forma de engenharia organizacional que combina investimentos e
aplicação de recursos cruzando setores de forma bastante complexa, o que requer uma
fina apreensão e manejo dos meandros dos processos de financiamento assim como uma
perspectiva cruzada que permita caminhar pelos processos de terceirização da saúde no
estado que parece ser a meca brasileira da privatização dos serviços públicos, graças a duas
décadas de governo do PSDB, partido que defendeu os expedientes dessas privatizações
e terceirizações, sobretudo dos serviços de saúde. Também é importante notar que esse
partido participou de forma significativa das últimas duas gestões municipais, depois
de ter derrotado a prefeita Marta Suplicy em 2004. Essa confluência entre governos
municipal6 e estadual é um elemento importante para a captação e investimento que
se pretende discutir como fato consumado no estado de São Paulo, mas que se desenha
como tendência em outros estados e municípios do país, a julgar por algumas linhas de
financiamento do Ministério da Cultura, em especial as que vinculam Saúde e Cultura.7
A Lei Rouanet
Graças a um conjunto importante de transformações que ganharam fôlego nos últimos 30 ou 40 anos – tanto no Brasil quanto em âmbito mundial –, as grandes empresas,
o Estado, bancos e corporações que dão materialidade à forma organizacional do capital
mundializado e financeirizado descobriram a cultura e a arte como negócio, como nova
fronteira de investimento e como possibilidade de gestão, cálculo e administração em uma
escala inédita. Esse processo ganhou densidade e visibilidade no Brasil graças à Lei Rouanet – finalmente implementada entre o final dos anos 1980 e início dos anos 1990.
Trata-se de uma lei de incentivo por meio de benefícios fiscais que possibilita que parte das
pessoas físicas e jurídicas apliquem parcela de imposto devido à União em atividades culturais, conseguindo benefícios obtidos sobre o valor do incentivo, viabilizando iniciativas
culturais. A mesma medida jurídica também instituiu o Fundo Nacional de Cultura e o
Programa Nacional de Apoio à Cultura. O apoio às atividades culturais pode, desde então,
ser estabelecido por doações e patrocínio, o que favorece e se entrelaça às práticas de marketing empresarial. Uma das questões importantes sobre a Lei Rouanet e a política brasileira
de cultura diz respeito à crescente hegemonia do financiamento privado das atividades de
cultura, bem como terceirizações e privatizações de teatros e agências do Estado, entregues
a organizações privadas sob a forma de OSs (organizações sociais) e/ou ONGs. A instituição desse conjunto de benefícios fiscais acabou por se configurar em uma política cultural
de privatização dos recursos e dos processos de arbitragem sobre objetos de investimento
ou, pelo menos, de crescente participação das formas privadas na gestão e na escolha de
práticas e objetos de financiamento. Ganha relevância o acoplamento entre interesses dos
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te adequado da população. A
partir de achados e informações dispersas, seguindo pistas e indícios, acabei por perceber que grande parte dos
equipamentos e serviços de
saúde das periferias paulistanas está sendo gerida por
contratos com organizações
sociais, como se constatará
adiante. A especificidade das
OSs identificadas no texto
está assim no cruzamento
entre as atividades de saúde
e de cultura.
2 Nome fictício. A necessidade de nomes fictícios prejudica também algumas menções de fontes.
3 Grande festival de música
que acontece anualmente,
compondo-se de concertos,
apresentações, cursos e oficinas de convidados nacionais
e internacionais.
4 Em visita ao Hospital de Itaquera, em maio de 2011, um
dos responsáveis pelo serviço de oncologia pediátrica
afirmou que a estratégia era
a captação de recursos pelos
grandes eventos culturais
para a manutenção do serviço de ponta no hospital de
Itaquera. Essa pista deu origem ao mapeamento desse
texto.
5 Ver Isabel Georges e Yumi
Garcia, A produção da “demanda”: viés institucional e
implicações políticas da terceirização do trabalho social,
ANPOCS, Caxambu, 2011.
6 O então prefeito de São
Paulo foi vice-prefeito da gestão Serra pelo Democratas.
Posteriormente concorreu e
ganhou a prefeitura da cidade e fundou outro partido
sem alteração significativa
de suas posturas dentro do
espectro político brasileiro.
7 Ver os editais Cultura e Saúde e Rede Saúde e Cultura no
sítio <http://www.cultura.
gov.br>, consultado em 20 de
outubro de 2012.
8 SEGNINI, Liliana. O que permanece quando tudo muda.
Cadernos do CRH, v. 24, número especial, 2011.
P O L Í T I C A S
9 Ver: <www.cultura.gov.br/
apoio_a_projetos>. Consultado em setembro de 2009.
10 A origem da proposta
dos CEUs teve lugar na gestão petista de Marta Suplicy
(2001/2004) para reforçar
a infraestrutura de áreas da
cidade relegadas à ausência de equipamentos públicos, de educação e cultura.
(Ver:
<www.prefeitura.
consultado
sp.gov.br>,
em 15 de agosto de 2012).
Os centros de educação
unificados foram planejados com três objetivos: “1. Desenvolvimento integral das crianças e dos
jovens – reunindo ações
educativas da Prefeitura em
um polo, para o qual confluem Centro de Educação
Infantil (300 vagas), Escola
Municipal de Educação Infantil (900 vagas) e Escola Municipal de Ensino Fundamental
(1.260 vagas), otimizando
equipamentos e serviços. O
Centro oferece infraestrutura para o desenvolvimento
integral da aprendizagem em
seus diferentes aspectos; 2.
Polo de desenvolvimento
da comunidade – os Centros se tornarão polos irradiadores e reorganizadores
de relações sociais no bairro
[...]; 3. Polo de inovação
de experiências educacionais – [...] o objetivo é que
o CEU atue como Centro de
Referência, estendendo o conhecimento adquirido para
as demais escolas da região.”
O projeto dos CEUs incorporou, assim, uma série de experiências no planejamento
e construção de redes educacionais, tanto no aspecto do
“continente” (o prédio escolar) como no do “conteúdo”.
Em 2003 foram entregues 21
unidades, viabilizando mais
de 50 mil novas vagas.
11 Segundo a Secretaria de
Cultura do Estado de São
Paulo, o programa Projeto
Guri conta com 51.000 alunos em todo o estado. Esse
projeto, considerado o maior
programa sociocultural brasileiro, consiste em ocupar
as crianças no contraturno
escolar com cursos de iniciação, aprendizado e teoria
musical. Sua gestão é realizada por duas organizações
sociais ligadas à Secretaria de
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governos de inspiração neoliberal que propuseram a expansão do livre mercado e os interesses das grandes corporações em aumentar seu raio de ação, açambarcando a produção
de arte e cultura, minimizando custos por meio de renúncia fiscal e maximizando lucros
através dos processos de marketing corporativo.
Essa tendência de aumento do financiamento privado é perceptível desde meados
dos anos 1980, ainda que a incidência desses financiamentos sobre a produção cultural
ganhe importância a partir de 1995.8 Observa-se ainda, desde o final dos anos 1990
até meados da primeira década do século XXI, um crescimento vertiginoso do Fundo
Nacional de Cultura e o crescimento exponencial concomitante dos recursos investidos
através do mecenato, por meio da Lei Rouanet.9 Esse mecanismo está na base de toda
política de relações entre Estado e capital corporativo, inclusive corporações estatais
em relação ao financiamento da cultura. Trata-se, portanto, de renúncia fiscal, de
investimento de fundo público por meio de um processo de arbitragem privada.
Parece plausível afirmar que os projetos que recebem mais investimento oriundo
do mecenato são os que têm origem em grupos artísticos ou empresários da indústria de
entretenimento mais consolidados e/ou com maior expressão e visibilidade midiática.
Assim, artistas consolidados, ou o consagradíssimo Cirque de Soleil, receberam recursos
oriundos desse mecanismo de parceria Estado/corporações privadas, o que não impediu
a cobrança de ingressos em casas de espetáculo localizadas nos grandes eixos de expansão
urbana das capitais brasileiras. Cabe ainda destacar a participação significativa de empresas
públicas nesse processo de captação – entre elas, a Petrobras, com peso relevante nesse
universo de ofertas de possibilidades de financiamento da produção cultural e artística.
Assim, em um contexto de políticas que reforçam a importância estratégica do mercado
de financiamentos e oportunidades de investimento, o Estado transfere recursos públicos
para as grandes corporações e elas definem as diretrizes da relação entre arte, mercado
e fundos públicos, programas e modos de investimento. Se são as empresas públicas de
caráter ainda predominantemente estatal que estão entre as maiores financiadoras, podese apontar que há aí uma opção econômica, mas, sobretudo, também política. Trata-se
de uma política de gestão das artes por meio de decisões cujo núcleo se desenha a partir
das grandes corporações conformadas como eixos decisórios a respeito do que se financia
e do que se promove como práticas culturais no Brasil.
Dessa perspectiva, as artes e espetáculos – em especial as atividades relativas à música
e à musica erudita no caso da OS STX – são principalmente modo de captação privada
de recursos públicos para, por meio de um conjunto significativo de investimentos,
promover o atendimento em saúde com foco na zona leste, de modo associado a um
conjunto de programas socioculturais, pelas diversas regiões da cidade, em especial nos
CEUs10 onde acontecem as atividades que resultam da gestão do Projeto Guri.11
As atividades da OS Cultural STX contam com os seguintes parceiros:
CTEEP;12 Prefeitura do Estado de São Paulo; Instituto Itaú Cultural; Secretaria do
Desenvolvimento Social do Estado de São Paulo – Governo Estadual, por meio do
Centro De Esporte, Cultura e Lazer; Instituto Abril Cultural; AECID – Embaixada
da Espanha no Brasil – Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o
Desenvolvimento; Camargo Correa; Fundação OSESP; Lei de Incentivo à Cultura
– Lei Rouanet. Contam ainda com o apoio institucional da missão diplomática dos
Estados Unidos da América no Brasil. Apontam como suas principais filiações a
International Federation of Arts Councils and Culture Agencies; a World Association
of Symphonic Bands and Ensembles e a Internacional Society of Performing Arts.
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A OS de Cultura STX constituiu polos importantes do desenvolvimento do
Projeto Guri por toda a cidade de São Paulo. Estão presentes na zona norte atuando
nos CEUs Pera Marmelo, Vila Perus e Vila Atlântica; na zona sul, nos CEUs Vila
Alvarenga, Cidade Dutra, Casa Blanca, Meninos, PEFI Imigrantes e CEU Navegantes;
na zona leste por meio dos CEUs da Vila Curuçá, Jambeiro, Jardim São Carlos, Parque
Vereda, Rosa da China e São Mateus; na zona oeste nas Comunidades Harmonia e
Ponte Brasilitália; na região central da cidade, em unidades alocadas na Achiropita,
nas Casas de Solidariedade I e II e na Julio Prestes.
A OS de Cultura STX define sua inserção no Projeto Guri do Governo do Estado
de São Paulo como uma associação entre educação musical e a inclusão sociocultural
de crianças e adolescentes. O programa – lançado em 2008 a partir de uma iniciativa
da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo – é gerido nesses polos já mencionados
pela OS de Cultura STX. Para atingir esse objetivo de educação musical e “inclusão
social”, a OS conta com um conjunto de atividades definidas como apoio social
integrado às crianças e adolescentes, nos termos que se seguem:
O Guri STX conta com uma equipe de assistentes sociais que atuam em sintonia com os
educadores e demais funcionários do programa. O serviço social acompanha o dia a dia dos
alunos nos polos de ensino, identifica suas possíveis demandas e os encaminha às redes sociais
existentes. O objetivo é criar um ambiente favorável ao aprendizado, ajudando a construir a
autonomia crítica dos estudantes, famílias e comunidades. Na condição de agentes catalisadores de processos coletivos, os assistentes sociais do Guri STX dedicam-se a facilitar a comunicação entre a cultura escolar e a cultura de origem das crianças e jovens atendidos pelo programa.
Os assistentes sociais elaboram, executam e avaliam ações socioeducativas, preventivas e de
enfrentamento de situações emergentes que afetam as crianças e jovens, tais como violência,
dificuldades interpessoais e problemas econômicos ou de saúde. Também transmitem aos estudantes e suas famílias conhecimentos de deveres e direitos sociais, incluindo os mecanismos
de acesso por meio das políticas públicas e redes sociais já existentes.13
Dessa perspectiva, as atividades dos assistentes sociais incluem: visitas
domiciliares; atendimentos e encaminhamentos; palestras; oficinas temáticas; reuniões
e capacitações. Cabe salientar que o projeto se inscreve em uma zona de articulação
entre ensino musical e trabalho social/inclusão, sendo um dos beneficiários das leis
de incentivos fiscais/Lei Rouanet. Nesse caso, a captação se faz inclusive diretamente,
como se depreende da citação abaixo:
As empresas tributadas com base no Lucro Real podem destinar até 4% do seu IR, até o
dia 30/12/2011, para nossos projetos culturais, aprovados pelo Ministério da Cultura. Se
sua empresa pode se beneficiar da Lei Rouanet, destinando seu IR para o Guri STX, você
transformará os seus recursos em Instrumentos Musicais para crianças e adolescentes de
6 a 18 anos, moradoras de regiões de alta vulnerabilidade social da Capital e Grande São
Paulo. Nosso projeto está contemplado no artigo 18 da Lei Rouanet, sua empresa poderá
abater 100% do recurso investido em sua declaração de IR.14
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Estado da Cultura: a Associação Amigos do Projeto Guri
– fora da cidade de São Paulo – e a OS STX, responsável
por 50 polos na capital, com
13.500 alunos.
12 Trata-se da maior concessionária privada de transmissão de energia elétrica
em atuação no país, responsável pela transmissão de
quase 100% da energia elétrica produzida no estado de
São Paulo.
13 Sítio da OS, consultado
em 18 de agosto de 2012.
14 No sítio já citado.
15 É preciso mencionar que
o que aparece neste texto
como uma dimensão localizada é um modelo de gestão
muito mais amplo. Atualmente, 37 hospitais, 38 ambulatórios, um centro de referência,
duas farmácias e três laboratórios de análises clínicas
são administrados por esta
forma de gerenciamento. Os
novos hospitais colocaram a
serviço do SS cerca de 4.300
leitos no estado de São Paulo. Esse modelo de gestão
privada foi regulamentado
pela Lei nº 14.132, de 24 de
janeiro de 2006 que dispôs
sobre a qualificação de entidades sem fins lucrativos
como organizações sociais. É
possível ainda mencionar algumas dessas organizações,
tais como: OS INSTITUTO DE
ATENÇÃO BÁSICA E AVANÇADA À SAÚDE – IABAS – AMA
SORRISO Contrato de Gestão
nº 026/2009; OS SANTA CASA
DE MISERICÓRDIA DE SANTO
AMARO, responsável por PSM
José Sylvio de Camargo (Santo Amaro) Contrato de Gestão
nº 25/2009 (Zona Sul); OS
CASA DE SAÚDE SANTA MARCELINA – Microrregião Cidade
Tiradentes/Guaianases Contrato de Gestão nº 01/2007,
Hospital Municipal Cidade
Tiradentes Contrato de Gestão nº 02/2007, Microrregião
Itaim Paulista Contrato de
Gestão nº 10/2008, Lote 3 –
PA Atulapa Girão Rabelo – PA
Dra. Glória R. Santos Bonfim
– PSM Dr. Julio Tupy Contrato de Gestão nº 15/2009;
OS CENTRO DE ESTUDOS E
PESQUISAS DR. JOÃO AMORIM – CEJAM – Microrregião
M’Boi Mirim. Contrato de
P O L Í T I C A S
Gestão nº 03/2007 e Hospital Municipal M’Boi Mirim
Contrato de Gestão nº
04/2008 (Zona Sul); OS ASSOCIAÇÃO CONGREGAÇÃO DE
SANTA CATARINA – Microrregião Cidade Ademar Contrato de Gestão nº 05/2008
e Microrregião Socorro/Parelheiros Contrato de Gestão
nº 11/2008 (Zona Sul); OS
ASSOCIAÇÃO PAULISTA PARA
O DESENVOLVIMENTO DA
MEDICINA – Microrregião Vila
Maria/Vila Guilherme Contrato de Gestão nº 06/2008
(Zona Norte), Contrato de
Gestão nº 27/2010 – Território Aricanduva/Sapopemba/
São Mateus Contrato de Gestão nº 07/2008 e Lote 1 – PSM
Augusto Gomes de Matos/
PA São Mateus Zona Leste 1;
contrato de Gestão nº
23/2009 – OS SANTA CASA
DE MISERICÓRDIA DE SÃO
PAULO Microrregião Jaçanã/
Tremembé Contrato de Gestão nº 08/2008 (Zona Norte).
Ver Organizações Sociais no
Sistema de Saúde de São Paulo: <www.frentecontraprivatizacaope.com.br/blog/wp.../
DADOS-OSs>.
16 Cf. sítio da os/ aps/
nasf/ asp, consultado em
15/08/2012.
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Social, cultural, assistencial – tudo
isso e mais um pouco: As OS STX15
A partir de seus sítios, além de visitas a campo realizadas em 2010 e 2011 em
Cidade Tiradentes, é possível mapear as atividades mais importantes dessas organizações
sociais articuladas: a Organização de Saúde e a Organização de Cultura STX.
Do ponto de vista de suas atividades em saúde, a história da parceria com os
governos do estado e da cidade de São Paulo remonta a 1998, pela instalação de uma
unidade em Itaim Paulista, distritos dos mais precários a leste do território paulistano.
Além dos 260 leitos hospitalares, pronto-socorro, ambulatório de especialidades
e outros serviços, conta com uma biblioteca e uma unidade de apoio ao Projeto
Jovem Cidadão em parceria com a Secretaria de Justiça e o Ministério Público, por
onde passaram 289 jovens, entre os quais aqueles que foram destinados a serviços
comunitários como cumprimento de pena por “infrações leves”.
Em outro município contíguo à cidade de São Paulo, também a leste, encontrase outro Hospital STX – OSS Itaquaquecetuba, em funcionamento desde 2000,
em parceria com o Governo Estadual. A unidade conta com 249 leitos e atende 11
municípios da região. Entre seus projetos, encontram-se: coleta seletiva de resíduos,
tratamento de efluentes, Programa de Educação Ambiental (Comunidade e Escola,
em parceria com fundação vinculada a uma indústria química); o Projeto Alegrendo
junto às crianças internadas; o projeto de prevenção do câncer de mama.
Ainda são responsáveis por uma AMA – Assistência Médica Ambulatorial – a
partir de uma parceria entre o Hospital STX e a Prefeitura de São Paulo – que oferece
atendimento primário e secundário em saúde, buscando amenizar o fluxo de pacientes
destinados ao complexo hospitalar de Cidade Tiradentes e de Itaquera. Tendo como
origem a unidade AMA, os pacientes são encaminhados às Unidades Básicas de Saúde
ou hospitais responsáveis pela continuidade do acompanhamento clínico; uma AME
– Ambulatório Médico de Especialidades Médicas da Zona Leste (departamento da
Casa de Saúde STX) –, cuja finalidade é a gestão e execução de consultas, cirurgias
ambulatoriais e exames.
Além desses equipamentos, alguns bastante entrelaçados com outros programas
de assistência social, a Organização de Saúde STX se encarrega da implementação e
gestão dos NASF (Núcleos de Apoio à Saúde da Família), que
[...] têm a proposta de apoiar as equipes de saúde da família na busca de resoluções mais
efetivas à complexidade dos problemas de saúde encontrados no território. Suas ações estão pautadas pelo acolhimento ao usuário e ao trabalho de humanização da atenção, para
o desenvolvimento coletivo de ações que integrem políticas sociais, educação, esporte,
cultura, trabalho e lazer. Trata-se de mais um espaço destinado à prevenção de doenças e
promoção da saúde [...]16
A OS aponta que sua ação tem por base a Portaria nº 154 de 24 de janeiro de
2008, que institui as ações de saúde destinadas a garantir às pessoas e à coletividade
condições de bem-estar físico, mental e social. Enuncia como grande objetivo “instituir
a plena integralidade do cuidado físico e mental aos usuários do SUS por intermédio
da qualificação e complementaridade do trabalho das Equipes de Saúde da Família”.
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Em seu sítio são mencionados os seguintes núcleos: Equipes Itaim Paulista:
NASF Silva Teles (Jaraguá); NASF D. João Nery (Jardim Campos); NASF Sana
Rita (Jardim Robru); NASF Nova Curuçá (Curuçá Velha); NASF Indaiá (KEmel,
Atualpa). Equipes Cidade Tiradentes-Guaianases: NASF Barro Branco (Jardim
Vitória, Dom Angélico); NASF Carlos Gentile (Inácio Monteiro); NASF Profeta
(Ferroviários, Gráficos); NASF Cosmopolita (Jardim Soares); NASF Primeiro de
Outubro (Bandeirantes, Fanganielo); NASF Celso Daniel (Santa Luzia). Equipes
São Miguel: NASF Santa Inês (União Vila Nova, Adão Manoel); NASF Nitro
Operária (Jardim Maia, Nova São Miguel); NASF Tersio Ventura (Pedro José Nunes).
Equipes Itaquera: NASF Santo Estevão (Vila Santana, Vila Ramos, Jardim Copa);
NASF Santa Terezinha (Gleba do Pêssego, Jardim Helian, Nossa Senhora do Carmo,
Santa Maria).
Esses núcleos implementam programas que fazem parte da Estratégia Saúde da
Família – que a OS de Saúde STX define como “Estratégia que cria vínculo”.17 O
programa está implantado
em quase todos os Municípios, com atuação de mais de 28 mil equipes, 16 mil equipes
de Saúde Bucal e 218 mil Agentes Comunitários no Brasil. Só na cidade de São Paulo são
mais de 1.200 equipes distribuídas em 31 Subprefeituras pertencentes a cinco regionais.
Apesar do significativo número, a cobertura na cidade ainda permanece baixa, cerca de
30% para 783 mil habitantes cadastrados. Sob a orientação da OS de Saúde STX estão
255 equipes de Estratégia Saúde da Família, sendo elas distribuídas pela Zona Leste: Aricanduva – 03, Cidade Tiradentes – 32, Ermelino Matarazzo – 20, Guaianases – 33, Itaim
Paulista – 56, Itaquera – 32, Penha – 7, São Mateus – 33 e São Miguel Paulista – 39.18
Nota-se uma ação que pode ser reconhecida como um planejamento minucioso
das atividades e ações sociais e de saúde em âmbito local e territorial. Trata-se do
que se poderia denominar Planejamento Social Privado,19 constituindo agentes e
territorialidades de ação ora mais circunscritas à zona leste – como no caso das ações,
práticas e equipamentos de saúde –, ora utilizando outros expedientes de inserção
territorial muito mais ampla como as ações vinculadas ao Projeto Guri ou os grandes
eventos culturais da cidade.
Em seu discurso a OS de Saúde STX reafirma os ganhos de agilidade e melhoria
na prestação de serviços públicos de saúde, bem como sua observância aos princípios
que norteiam o Sistema Único de Saúde no Brasil.20 Também é preciso notar que
em 2001, a Casa de Saúde STX participou da implantação das organizações sociais,
o que aconteceu, inicialmente, na zona leste de São Paulo e ao longo das regiões
norte e sul. Assim, há um caráter de pioneirismo nessa participação e na reorganização
da Atenção Básica ao se tornar parceira da Secretaria Municipal de Saúde para as
subprefeituras de Cidade Tiradentes, Ermelino Matarazzo, Guaianases, Itaquera, Itaim
Paulista, São Miguel e São Matheus.21 Com a parceria, coube à OS de Saúde STX a
contratação, realocação, administração e capacitação de trabalhadores, denominados
“colaboradores”, para atuar nas respectivas subprefeituras. O contrato ainda
contemplava o repasse dos recursos e bens necessários a fim de garantir a execução
das atividades, seguindo uma lógica de “autonomia, flexibilidade e agilidade”. Em seu
discurso, a Organização de Saúde STX afirma:
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17 O Programa Saúde da Família foi implantado na zona
leste de São Paulo em 1996,
por meio de parceria com a
Secretaria Estadual de Saúde
e, posteriormente, em 2001
com a Secretaria Municipal
de Saúde. Passados 13 anos
desde a criação, o Programa
Saúde da Família evoluiu e
atualmente se denomina
Estratégia Saúde da Família
(ESF), em função de uma nova
proposta de reorganização e
reestruturação do sistema.
18 A OS afirma ainda que nas
regiões onde o trabalho da
ESF é efetivo os resultados
podem ser mensuráveis, pois
há uma melhor cobertura de
casos prioritários, como: gestantes, diabéticos, hipertensos, crianças menores de dois
anos, idosos, pacientes com
tuberculose e hanseníase. O
impacto maior teria sido na
diminuição da mortalidade
infantil – a cada 10% de cobertura da ESF a mortalidade
infantil diminui em 4%. Do
período de implantação até
os dias de hoje a ESF teve importantes conquistas, como a
inclusão dos Agentes Comunitários, além da renovação
do papel do enfermeiro por
meio da ampliação do atendimento clínico, valorização do
trabalho multidisciplinar e de
equipe, integralidade dos cuidados com profissionais qualificados e ênfase na promoção e prevenção intersetorial.
19 Ver a esse respeito Pantoja
(2012). A dissertação define
como planejamento social privado a ação extensa e bastante significativa da Vale do Rio
Doce no interior do Estado do
Maranhão.
20 Tornou-se portanto uma
“organização social de acordo
com a Lei nº 14.132 – Decreto nº 47.012. Os princípios do
SUS são legalidade, impessoalidade, moralidade e economicidade. Cabe notar que a
menção à legalidade é fundamental porque responde a um
conjunto de críticas que afirmam que a terceirização das
atividades fim nos serviços de
saúde é inconstitucional.”
21 Note-se que são bairros
localizados na chamada zona
leste da cidade de São Paulo,
que poderiam ser pensados
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[...] a parceria de sucesso da instituição com a Secretaria rendeu resultados positivos nos
principais indicadores de saúde, o que contribuiu para a conquista do contrato de ‘Gestão
de Organização Social de Saúde’ para Microrregião de Cidade Tiradentes e Guaianases,
região que conta com população estimada em 493.816 mil habitantes. O processo deu-se
por meio de licitação e o acordo com o poder público foi firmado em 15/02/2008. Na
fase inicial do contrato, a Instituição assumiu a gestão integral de 15 Unidades Básicas
de Saúde (UBS) que também contam com o ‘Programa Saúde da Família’, ao longo do
processo, novas unidades foram incorporadas e, em setembro de 2008, foi concluída uma
nova etapa com a inclusão da Microrregião de Itaim Paulista.
em um gradiente de consolidação. Entre eles, Cidade
Tiradentes, Guaianases e São
Mateus podem ser mencionados como distritos mais
pobres classificados como
regiões de fronteira e pouco
consolidadas da cidade.
[...] Entre as responsabilidades contratuais estão: gestão de Unidades pela Organização
Social; Apoio à integração territorial com o objetivo de explorar e orientar o trabalho
entre as equipes e população atendida (o que é) importante facilitador para identificar
os problemas de saúde da comunidade; sistema de pagamento com acompanhamento e
controle dos recursos aplicados; novas ações e Termo de permissão de uso, baseado em
metas com reunião de avaliação trimestral, onde serão avaliados os indicadores do Serviço de Atendimento ao Usuário (SAU), educação permanente, comissão de prontuários,
cadastro de profissionais, apoio à integração, cobertura PSF e vacinal, qualidade PSF e
demanda Assistência Médica Ambulatorial (AMA).
Alguns apontamentos finais
22 Ver Pantoja, I. – op. cit.
A primeira observação resultante desses dados, aparentemente desconexos,
é exatamente sua articulação. Considerados separadamente, a gestão privada de
programas de cultura, de ensino musical a espetáculos e a gestão de equipamentos de
saúde em todos os âmbitos (de grandes hospitais terceirizados até a gestão de programas
de saúde da família) já apontam para sua extensão, principalmente no escopo da cidade
de São Paulo. Quando articulados, a questão se complexifica: tanto porque apontam
para um planejamento de captação e investimentos bastante intrincado quanto porque
induzem a pensar planejamento local e territorial privado assim como planejamento
de um fluxo de captações e investimentos que potencializam a ação cultural e de
saúde. Essas instâncias ainda ganham novas dimensões quando a elas se somam as
práticas de acompanhamento e gestão das famílias, jovens e crianças, tanto do ponto
de vista da saúde da família quanto do ponto de vista da “inclusão sociocultural” de
crianças e jovens. Uma gestão da vida se esboça em meio a essas articulações entre o
trabalho social/cultural e de inclusão, o trabalho em saúde e o acompanhamento de
crianças e jovens. Essa dimensão é tão mais instigante e problemática quanto mais se
enuncia como uma gestão privada da vida das populações em situação de precariedade,
que se estende pelos territórios onde as OS Saúde e Cultura se fazem presentes. Um
planejamento social privado22 de “inclusão” das famílias, que as toma unidades, se
desenha por seu intermédio. É importante destacar esse acoplamento entre práticas
educacionais/culturais e de saúde e um trabalho social de acompanhamento, quer
pela Estratégia Saúde Família, quer pelo Projeto Guri. Também fica claro que um
importante processo de captação tem lugar pelas parcerias com os institutos culturais
de grandes empresas, ou diretamente com outras grandes empresas, entre as quais
bancos, distribuidoras de energia, grandes construtoras. Essa captação é direta e se
206
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soma ao repasse de verbas públicas pelos processos de gestão tanto dos programas de
saúde quanto de grandes equipamentos como hospitais, grandes eventos e programas
socioculturais como o Projeto Guri.
Outra observação importante diz respeito a um processo de distribuição do
trabalho da OS de Saúde STX pelo território da cidade, bem como distribuição
territorial de outras práticas da OS de Cultura STX. Se o trabalho social vinculado
ao Projeto Guri e ao ensino de música e inclusão social se espraia pelos territórios da
cidade de São Paulo, o trabalho de parceria em saúde se concentra na zona leste da
cidade e adjacências, estendendo-se para outros municípios também a leste da região
metropolitana. Essas formas de territorialização são um resultado: das políticas
de terceirização e de instituição de parcerias público-privadas nas áreas de saúde,
loteadas entre diferentes entidades, obedecendo critérios vinculados aos bairros e
aos interesses e conveniências de cada parceiro; e de uma política de financiamento
da cultura e de atividades culturais, que se distribuem de outro modo pelo território
e pelas populações mais ou menos “vulneráveis”, mais ou menos empobrecidas da
cidade. Também é importante notar que as OSs – e a OS STX em particular –
captam recursos provenientes de imposto devido (além das parcerias com grandes
empresas e com o Estado) de modo a “potencializar” sua ação – tanto no caso da
saúde como no caso das atividades e práticas culturais, inclusive a Escola de Música
Tom Jobim, no centro da cidade de São Paulo23 – sempre vinculada a um trabalho
social “muito significativo”.
Ainda da perspectiva de uma discussão das novas formas e dos novos conteúdos
e agentes das políticas sociais e das políticas de combate à pobreza no Brasil – e
São Paulo parece ser um caso exemplar desse ponto de vista –, cabe lembrar, como
apontam analistas e algumas entidades, bem como as entidades de representação dos
médicos (sindicato e conselhos), que a propalada economia de recursos do Estado
pode no mínimo ser discutida e questionada,24 especialmente quando se tem em vista
a captação de recursos públicos por meio de leis de incentivo à cultura que permitem
o investimento de fundos públicos na forma de imposto devido, permanentemente
sujeitos a uma arbitragem privada da perspectiva de como e onde são investidos. Cabe
ainda mencionar a magnitude desses recursos – suficientes para a abertura recente pelas
OS STX, de uma unidade universitária privada na zona leste da cidade de São Paulo,
que abarca cursos de graduação e de pós-graduação voltados para a saúde, inclusive um
curso de Medicina. Observe-se a diversificação de algumas especialidades e formas de
atendimento do Hospital de Itaquera, que conta com um serviço de oncologia infantil
de ponta, financiado parcialmente por recursos captados por meio das parcerias e
gestão privada de grandes equipamentos públicos e com a arrecadação proveniente dos
espetáculos e concertos musicais, dos fundos arrecadados via Ministério da Cultura,
por meio das leis de incentivo. Quem arbitra sobre seus investimentos? O que restou
do caráter público das dimensões da saúde e da cultura, especialmente aqueles voltados
para as populações mais pobres, exatamente aquelas que supostamente são os alvos das
propostas e dos mecanismos de inclusão?
Finalmente, é preciso recuperar as considerações de Amélia Cohn sobre a
questão das políticas de combate à pobreza no Brasil, seus emaranhados e labirintos.
Cohn aponta que a política de saúde e demais políticas sociais brasileiras estariam
no fio da navalha. Buscando pensar os liames entre condicionalidades, agentes e
programas, e afirma que
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207
23 A Universidade Livre de
Música (ULM),com sede no
Bom Retiro, foi transferida
em 2001 para o prédio localizado no Largo General
Osório, na Luz, passando a
se chamar Centro de Estudos Musicais Tom Jobim e,
posteriormente, Escola de
Música do Estado de São
Paulo – Tom Jobim (EMESP
Tom Jobim). Em 2009, a organização social STX passou
a administrá-la.
24 O Blog FAX Sindical aponta os dados abaixo, no mínimo, reveladores de um descompasso entre o discurso
da economia e eficiência e
os resultados dos processos
de terceirização e parcerias:
“A terceirização dos serviços
de saúde no estado de São
Paulo provocou um rombo
de aproximadamente R$ 147
milhões. Esse valor equivale
ao somatório do déficit de 18
hospitais que são administrados por Organizações Sociais
de Saúde (OSS) – em que se
transfere para instituições filantrópicas o gerenciamento
de hospitais públicos. Neste
modelo, o poder público continua a arcar todos os gastos
de funcionamento e paga
mais uma taxa de administração. O governo estadual
justifica a implementação
deste modelo por ser ‘exemplo de economia e eficiên-
P O L Í T I C A S
S O C I A I S
E
P O L Í T I C A S
D E
C U LT U R A
[...] um tema muito pouco desenvolvido [...] é como fica essa questão do Estado produtor,
do Estado provedor e do Estado regulador na área da saúde. [...] Como é que nós vamos
apostar [...] no caso das OSCIP, na capacidade de regulação do Estado? Todas as análises
de regulação [...] vêm mostrando a capacidade que o mercado tem [...] de capturar as
agências de regulação com seus interesses, aí sim, privados. [...] Como é que vamos resgatar essa capacidade de regulação do Estado se ela demanda o fortalecimento da dimensão
política e o fortalecimento da esfera pública? E isso numa conjuntura em que as restrições
fiscais [e] os contingenciamentos existem, em que o nosso sistema de proteção social está
indo para uma linha [de cobertura] da população, que está aumentando os gastos na
área social – [...] segundo os últimos dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(IPEA) –, mas que está, ao mesmo tempo, criando um sistema híbrido de proteção social,
assumindo, de um lado, políticas que correspondem a direitos e, de outro, programas que
correspondem a semidireitos ou quase direitos. O Programa Bolsa Família não é um direito [...] mas é um programa de transferência condicional de renda. Qual é uma das suas
condicionalidades? Ações na área da saúde para gestantes e crianças. Assim, a saúde, que
é um direito, para outro programa torna-se uma obrigação, transformando-se num fator
restritivo para a população ter acesso ao benefício. No entanto, não resta dúvida de que
a condicionalidade da saúde imprime maior eficácia ao setor propriamente dito. Como
[...] enfrento essa dubiedade? Percebem como se está caminhando no fio da navalha? A
dubiedade é resolvida da seguinte forma: o não cumprimento da condicionalidade significa [...] um questionamento e uma demanda para os governos locais irem atrás da criança
que não está vacinada, que não está na escola etc. É muito mais um questionamento para
a administração pública do que para a família. Só que isso vem representando o aumento
da demanda por serviços, sobretudo nas áreas mais pobres, nos municípios mais pobres.
E com isso começa o exercício da bola de neve. Em síntese, creio que o desafio que se
apresenta para nós é: [...] qual a relação que se vai estabelecer nesse novo projeto da saúde
enquanto questão social, hoje, reatualizada entre as dimensões técnica, política e social
das políticas de saúde? [...] Como articular os níveis macro e micro de análise? [...] Tenho
me dedicado, nos últimos anos, a discutir as questões sociais e sempre fiquei intrigada
com a questão da porta de saída do Programa Bolsa Família. Isso porque, recentemente,
verificam-se muitos avanços em políticas distributivas na área social, mas não em políticas
redistributivas, porque políticas redistributivas implicam [...] reformas estruturais na sociedade, investimentos em políticas estruturais. Então [...] as políticas de transferência de
renda e políticas de saúde, entre elas, são políticas que funcionam muito para o combate à
pobreza; no entanto, a desigualdade está caindo muito pouco em nossa sociedade, porque
seu enfrentamento não se dá por meio de políticas distributivas, o combate à desigualdade
está nas políticas de caráter estrutural – e acho que é este o novo desafio que a sociedade
brasileira tem pela frente.25
cia’. Porém, dos 34 hospitais
públicos geridos por OSS,
apenas quatro possuem balanço financeiro positivo. 18
hospitais possuem patrimônio negativo e os outros doze
não apresentaram balanço
referente a 2010. Em 2008
e 2009, o custo total com os
hospitais terceirizados foi em
média 50% mais caro do que
os hospitais administrados
diretamente pelo governo.
Os gastos públicos correspondentes aos anos de 2006
a 2009 com as OSS aumentaram 114% – foram de R$ 190
milhões para R$ 1,96 bilhão.
Um dos hospitais que apresenta déficit – no valor de
R$ 4,2 milhões ­– é o Hospital
Mário Covas [...], gerenciado
pela OSS Fundação ABC. O
seu chefe de neurocirurgia
é o médico e ex-secretário
de Esporte, Jorge Pagura,
acusado de ter ligação com
o esquema de fraudes em
licitações e pontos de plantões médicos no Sistema Público de Saúde de São Paulo.”
(Blog “Vi o Mundo”, Vivian
Fernandes. Blog Fax Sindical,
consultado em 15 de agosto
de 2012).
25 COHN, A. Saúde e desenvolvimento social. Saúde e
Sociedade, São Paulo, v. 18,
abr./jun. 2009.
Cibele Saliba Rizek é professora associada do Instituto
de Arquitetura e Urbanismo
da USP (São Carlos). Pesquisadora do CENEDIC - Centro
de Estudos dos Direitos da Cidadania da USP. Doutora em
Sociologia pela USP. E-mail:
[email protected]
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CIBELE SALIBA RIZEK
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especial, 2011.
Abstract
This article is based on research that pointed to new ways of
raising funds through the promotion of cultural practices that are interconnected to the
management of public health services in the Eastern Zone of the City of São Paulo, under
the direction of private social organizations. The cross between fundraising, outsourced
management of culture and health equipment points to an unprecedented relationship
between the sectors of these practices, which sets up what can be identified as a private
social planning. This process redrew the margins of the State redefining the relationship
between social programs and policies and poor population in the largest Brazilian city.
The peripheral neighborhoods of the Eastearn outskirts São Paulo became an experimental
field of these practices, more than classical character of precarious forms of life or the place
of origin of social movements, demands, subjects, right languages, as they were known
specially from the 80´s Brazilian sociological literature.
Keywords
Social policy; public policies; privatization; urban peripheries
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209
Resenhas
Urbanismo na Era Vargas:
a transformação das
cidades brasileiras.
Vera F. Rezende (org.).
Niterói: Editora da UFF; Intertexto, 2012.
Fania Fridman
Ao comemorar vinte anos, a Rede de Pesquisa
Urbanismo no Brasil publicou uma coletânea de onze
artigos de autoria de Vera Rezende; Sarah Feldman;
Ana Fernandes; Maria Cristina da Silva Leme; José
Francisco Bernardino Freitas; Marlice Soares de
Azevedo; Célia Ferraz de Souza e Maria Soares de
Almeida; Eneida Maria Souza Mendonça; Virginia
Pontual e de Maria Lais Pereira da Silva que tratam
da prática urbanística em capitais brasileiras nos dois
primeiros governos de Getúlio Vargas (1930-1945).
Além das singularidades dos projetos para as cidades
examinadas em cada trabalho e dos valiosos dados
empíricos, a riqueza desse livro também se revela ao
suscitar importantes argumentos. Vejamos.
O período que se inicia com a Revolução de
outubro de 1930 tendo à frente o Pai dos Pobres é
associado à modernização conservadora e às intensas transformações que sacudiram o país em diversos
âmbitos. Foi época de radicalização política, precedida por movimentos e acontecimentos de vulto como
o tenentismo, a organização do Partido Comunista,
a Coluna Prestes e a Semana de Arte Moderna 1922.
Questões externas também influenciaram as tomadas de decisão: para superar a crise do café decorrente da Grande Depressão de 1929, a principal meta
foi deslocar o eixo dinâmico da economia do país
por meio de políticas planejadas e orientadas para
a industrialização e a diversificação da agricultura.
Com o nacionalismo como ideologia e o Estado
acima dos conflitos sociais – a historiografia já
consagrou a habilidade de Vargas em adiar conflitos
e conciliar opostos –, a hegemonia da elite agráriomercantil ficou atenuada sem a imediata dominação
dos interesses da burguesia industrial e financeira
ou do proletariado urbano que se tornaram forças
emergentes. Para o fortalecimento do capitalismo
nacional consagrado pela Constituição de 1934, o
Estado interventor, mesmo sujeitando sindicatos,
recebeu o apoio da classe trabalhadora mediante
o estabelecimento da jornada de oito horas e do
salário mínimo e a organização dos Institutos
de Aposentadoria e Pensões (IAPs) de inúmeras
categorias profissionais com a incorporação das
Caixas de Aposentadoria e Pensões. A burguesia
urbana se fez presente nos Conselhos Técnicos (do
Petróleo, de Águas e Energia, do Café, do Comércio
Exterior, de Política Industrial e Comercial, de
Economia e Finanças, de Mobilização Econômica
e de Serviços Públicos com representantes da
indústria, do comércio e de ministérios nomeados
pelo presidente) e nos Conselhos Consultivos (cujos
componentes eram indicados pelos interventores)
instituídos em cada estado e no Distrito Federal.
Estes possuíam competência para opinar e sugerir
providências às autoridades municipais, estaduais
e federais tal qual a supressão de impostos ou o
estabelecimento ou extinção de municípios, entre
outras medidas.
A administração pública desempenhou
relevante papel enquanto agente da modernização
e do controle da produção e do espaço mediante
a criação de novos organismos – ministérios,
autarquias, departamentos e institutos – e a
promulgação de leis e códigos. Se é inquestionável
a prioridade dada pela Revolução de 1930 à
integração do mercado nacional via reorganização
econômica, este objetivo seria alcançado através da
ampliação dos sistemas viário e urbano. E desde o
início da década de 1930 são propostos tanto planos
de remodelação das cidades brasileiras quanto
programas territoriais constando de políticas de
povoamento, de transporte e de comunicação. Nesse
sentido, nos Anos Getúlio institucionalizaram-se no
Brasil o urbanismo e o planejamento por intermédio
da geração de uma burocracia técnica para atuar na
estrutura governamental. Entenda-se que apesar
ou em decorrência dos constrangimentos impostos
pelos regimes liberal-democrático (1934-1937)
e autoritário (Estado Novo), a legitimação desses
campos profissionais pôde se dar pela separação
das funções executivas das legislativas, ou seja, pelo
afastamento da política das atividades de gestão.1
1 Enquanto alguns jornais noticiavam os “movimentos da modernidade”
de Mussolini e de Hitler, durante o Estado Novo germanófilos e antisse-
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Desse modo, se a gestão pública neutra substituiu
o conflito, o controle administrativo deve ser
vinculado ao exercício político.
Os artigos da coletânea também evidenciam
que desde a década de 1920 grupos de intelectuais,
militares, eclesiásticos, empresários, trabalhadores e
funcionários públicos pleiteavam ações nas cidades,
antecipando as intervenções físicas e as novas formas
de gestão municipal empreendidas a partir de 1930.
Contribuíram para a constituição do saber técnico e
o enfrentamento dos problemas urbanos a abertura e/
ou reformulação de cursos superiores para a formação
de especialistas; a circulação de livros e artigos
acerca dos princípios e instrumentos do urbanismo
europeu e norte-americano (como o zoneamento, a
contribuição de melhoria e a expropriação marginal) e
dos mecanismos institucionais que foram divulgados
pelos docentes, consultores e quadros técnicos das
prefeituras; as conferências pronunciadas por Le
Corbusier e Alfred Agache;2 a realização de congressos
e exposições enquanto fóruns de veiculação de ideias;
e a atuação da grande imprensa e de organizações
sociais e profissionais, entre as quais o Rotary Club,
os Institutos Histórico e Geográfico, a Sociedade
Amigos da Cidade de São Paulo, a Sociedade Amigos
da Cidade do Rio de Janeiro, o Centro Carioca, o
Centro Industrial do Brasil, o Instituto dos Arquitetos
e o Clube de Engenharia, estimulando debates sobre
as soluções para as mazelas urbanas. Foi aventada a
suspeita de que essas organizações ocuparam o espaço
político deixado pelo fechamento das Câmaras
Municipais durante o Estado Novo.
A Constituição de 1937 promoveu o município
à qualidade de “órgão constitutivo dos poderes”
justificando-se assim a criação de entidades, entre
elas as Comissões de Planos organizadas nos
Departamentos das Municipalidades.3 Inspiradas
mitas ocuparam cargos no alto escalão do governo que, aliado à Igreja,
definia os comunistas como “homens sem Deus”. Cabe também relembrar o julgamento de mais de dez mil acusados após o Levante Comunista de 1935 e os assassinatos de motivação política.
2 Expressiva foi sua influência na posição de autor ou consultor de
planos e projetos para o Rio de Janeiro, parque Farroupilha em Porto
Alegre, Cidade Satélite da Pampulha em Belo Horizonte, Curitiba, bairro
Interlagos em São Paulo, Petrópolis, Vitória, Cabo Frio, Araruama e São
João da Barra. Agache ainda sugeriu uma Direção ou Repartição Permanente do Plano subordinada ao Executivo composta por pessoas com
conhecimento da matéria urbana.
3 As Comissões do Plano das capitais e das maiores cidades brasileiras
eram integradas pelos quadros administrativos; cidadãos notáveis vinculados a associações comerciais e profissionais; e por representantes da im-
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nas Comissões norte-americanas, fizeram-se “espaços
de legitimação do urbanismo, de adequação de
práticas à realidade urbano-industrial, assim como
de fortalecimento do município”. E demonstraram a
aceitação da ideia de plano – um conjunto de regras
implantadas pelo serviço público para remodelação
das cidades que cresciam com a industrialização,
e não apenas de seus pedaços – entre governantes,
elite burocrática, associações civis e profissionais
e a opinião pública. No entanto, apesar da sua
composição multidisciplinar e de suas subcomissões
(serviços públicos, finanças, gestão, zoneamento,
museus-monumentos...), os planos permaneceram
vinculados ao antigo ideário, privilegiando sobretudo
as obras viárias, pouco incorporando os novos temas e
problemas, expressando “a opção pelo urbanismo de
projetos fracionados [...] e não por aquele constante
da agenda urbanística em discussão, baseado em
dados e levantamentos, embora contemplando
intervenções locais integradas”.
Para a concentração de poder no processo decisório do aparelho de Estado, foram instituídos
outros canais, igualmente voltados para as políticas
públicas. Os Departamentos Administrativos dos
governos estaduais (ou Conselhos Administrativos,
também chamados de Daspinhos, com membros indicados pelo presidente) eram órgãos de assistência
técnica, jurídica e de fiscalização das finanças dos governos estadual e municipal. Substituindo as Assembleias Estaduais, hierarquizavam os interesses dos
grupos políticos locais com a aprovação (ou não) dos
orçamentos dos estados e municípios e opinavam
sobre decretos a serem expedidos pelo interventor
ou pelos prefeitos. Os Departamentos também definiram a vocação (industrial, estância hidromineral
ou de centro turístico) de diversas cidades brasileiras,
acompanharam os projetos de edificações, a implantação de obras públicas e elaboraram planos de urbanização e regulamentos.
Do mesmo modo que as transformações políticas, econômicas e institucionais, as Comissões, Conselhos Técnicos e Departamentos evidenciam a centralidade atribuída aos espaços urbanos. No livro, foi
prensa, do Rotary Club, da Sociedade Brasileira de Turismo (Touring Club
do Brasil) e do Automóvel Club. Nas cidades do interior seu papel foi exercido por instituições externas ao corpo municipal. Assinale-se também
que os Departamentos de Organização Administrativa existiam em São
Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais ainda na primeira metade de 1930.
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levantada a hipótese que na Era Vargas delineou-se a
política nacional para as cidades quando o governo
incorporou a questão urbana, seja pela pressão popular, seja por necessidade de estabelecimento das
melhorias exigidas pela industrialização. Essa política vinculava-se ao sistema técnico de administração, à legislação, à habitação, ao conhecimento do
território, à criação de novas cidades e aos planos
diretores. “É nesse sentido, portanto, que nos parece
ser possível trabalhar, para o período em tela, com a
ampliação da ideia de planejamento como função de
governo”, sendo a cidade o objeto estratégico de atuação e o urbanismo uma prática em prol do interesse
público, paradoxalmente ancorada na despolitização
e tecnificação da atuação profissional buscando formas de conciliação entre o capital e o trabalho.
Quanto à legislação, pela Constituição de 1934
a propriedade do solo ficou dissociada do subsolo,
agora concedida e controlada pelo poder federal.
Assinalem-se ainda o artigo 113 (item 17), dando
função social à propriedade, e o artigo 124, relativo
à cobrança da contribuição de melhoria sobre a
valorização do imóvel urbano originada pelas obras
públicas, autorizando o governo a ingerir-se no
direito de propriedade submetendo-a ao interesse
coletivo. Ainda que esses dois artigos tenham
sido prescritos pela Constituição de 1937, neste
mesmo ano foram promulgados preceitos jurídicos
relativos aos loteamentos e, posteriormente, normas
sobre desapropriação por utilidade pública pelos
municípios, estados e territórios.4 E quando a
atividade imobiliária já se consolidara em aplicação
segura garantindo uma renda aos proprietários, a Lei
do Inquilinato congelou os aluguéis.
Nessa política nacional para as cidades, ocorreu
uma significativa mudança no trato da moradia
operária que, inserida na agenda governamental,
orientou-se pela ação dos IAPs e de iniciativas locais.
Tomando-se o exemplo paradigmático do Código
de Obras do Rio de Janeiro (Decreto no 6.000 de
1937), verifica-se que visando “o ordenamento
racional da cidade” delimitou os locais para as
habitações proletárias e determinou a extinção das
favelas e cortiços com a transferência das famílias
para unidades habitacionais salubres. À espera da
4 Os territórios federais do Amapá, Rio Branco, Guaporé, Iguaçu e Ponta
Porã foram instaurados em 1943.
conclusão de tais unidades, milhares de pessoas
foram deslocadas para os Parques Proletários
Provisórios, logo transformados em permanentes.
Por outro lado, praticamente um quarto das novas
moradias aprovadas pela Prefeitura foram erigidas
pelos IAPs nos subúrbios. Para inúmeras cidades
constata-se ainda que no período Vargas não foram
poucos os decretos proibindo favelas e os planos
urbanísticos que propuseram a construção de bairros
operários em locais afastados servidos pelas linhas
férreas. Nesse sentido, admite-se que a produção da
casa dos pobres sendo alvo da intervenção do Estado
deslocou o problema da “forma” da habitação para
o “espaço”, ou seja, de “questão social” converteu-se
em “questão urbanística”.
As intervenções sugeridas pelos planos e
implantadas nas urbs brasileiras – a modernização
das áreas centrais e seus arredores mais valorizados,
a expulsão da população trabalhadora para os
afastados bairros populares onde se localizariam
as indústrias e a criação de melhores condições
para a nova economia – tiveram como efeito a
formação de periferias empobrecidas. Expandindo o
espaço, durante os anos 1940 nos maiores núcleos
delinearam-se metrópoles que exigiram a mudança
dos pressupostos da intervenção: de urbanismo para
planejamento (incluindo as regiões) nas operações
“cúmplices do desenvolvimento desejado”.
Em relação ao território, base de afirmação da
nova sociedade e do sentimento de nacionalidade,
este precisava ser conhecido e administrado. Com
esse objetivo, o Instituto Nacional de Estatística
(1934) e o Conselho Nacional de Geografia (1937)5
foram anexados em 1938 ao Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística. Seu primeiro projeto,
conhecido como Lei Geográfica do Estado Novo ou
Campanha dos Mapas Municipais, foi determinar
as coordenadas das cidades e vilas brasileiras. Sendo
de competência da União a definição dos limites do
território nacional e o recenseamento da população,
coube aos interventores solicitar aos prefeitos a
definição do quadro urbano e suburbano tanto
dos núcleos quanto das vilas dos distritos de cada
5 No Conselho Nacional de Geografia discutiam-se, com a presença de
intelectuais, militares e de funcionários, questões relativas à integração
territorial, colonização agrícola e à localização da nova capital no sentido
de subsidiar decisões do governo.
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município, relação que deveria vir acompanhada por
uma planta. Servindo para o controle e a ocupação,
todas as sedes municipais com pelo menos 200
moradias tornaram-se cidades de acordo com
o Decreto-Lei Federal no 311 de 1938, e vários
programas idealizaram novos assentamentos urbanos
vinculados a projetos industriais e/ou de colonização
localizados em regiões vazias no interior do país.
Outras instituições foram criadas em 1937: o
Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,
oferecendo uma nova perspectiva para o urbanismo
ao aderir às propostas modernistas e à preservação
de objetos artísticos e de edificações consideradas
representativas arquitetônica e culturalmente das
raízes brasileiras; e o Departamento Nacional
de Estradas e Rodagens, para integrar o país
promovendo planos e os meios de comunicação
entre as regiões e a rede urbana.6
Primazia dos interventores, o “plano urbanístico da Era Vargas” para as capitais previu obras
viárias para a melhoria da circulação entre os bairros e em direção ao centro com a abertura de avenidas e o alargamento de ruas, cuja referência em
muitos casos teria sido o Plano de Avenidas para
São Paulo (publicado em 1930), um sistema radial-perimetral aliado a princípios de zoneamento
e a instrumentos normativos e de financiamento.
A política abrangente de remodelação urbana que
também sofreu influência estética trazida pelo
6 A Inspetoria dos Monumentos Históricos havia sido organizada em
1934, dando origem às inspetorias estaduais em Pernambuco, Bahia
e Minas Gerais. Naquele mesmo ano foi publicado um Plano Geral de
Viação Nacional cuja prioridade estava na integração da rede ferroviária
com a navegação fluvial. O 1º Plano Rodoviário Nacional do DNER foi
aprovado somente em 1944.
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movimento moderno, priorizou a reconstrução e
a expansão da área central, o zoneamento com a
setorização das atividades, novos índices urbanísticos e códigos edificatórios, o sistema de parques
e jardins, novos bairros residenciais para as classes média e alta, a instalação de zona industrial,
dos bairros operários e de obras de infraestrutura
e equipamentos7 que revertessem em favor do desenvolvimento das economias tradicional e industrial e da nova ordem social.
Se “a modernidade e o autoritarismo foram
dois movimentos que fizeram parte do mesmo processo”, a intenção do urbanismo para esta “cidade
moderna do autoritarismo” foi a de criar uma nova
imagem, torná-la vitrine e instrumento de propaganda do governo Vargas que favorecesse o sentimento de unidade. Os decretos de desapropriações
e a derrubada de quadras deram origem a avenidas
remodeladas e grandiosas, cenário dos desfiles da
juventude e de paradas militares “quando se comemorava a exaltação à pátria”.
São estas, entre tantas dignas de nota, as contribuições trazidas nesse livro. Se o Tempo Getúlio vem
sendo revisitado e despertando interesse de autores
de diversos campos disciplinares, o “Urbanismo na
Era Vargas: a transformação das cidades brasileiras”
constitui-se em obra de referência obrigatória. As
pesquisas ali publicadas ajudam a decifrar o urbanismo e o planejamento urbano daquele período que,
anos depois, teriam longa carreira entre nós.
7 Que podiam incluir o aterro de mangues, o desmonte de morros (semelhante ao que ocorrera com o morro do Castelo carioca), a urbanização de encostas, a ampliação da área portuária, as edificações para
o ensino, a religião e a saúde quanto à pavimentação e iluminação nos
subúrbios.
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Território, Estado
e políticas públicas
espaciais
Marília Steinberger (Org)
Brasília: Ler Editora/CNPq, 2013
Ricardo Farret
Pesquisador Associado junto ao NEUR
– Núcleo de Estudos Urbanos e Regionais
da Universidade de Brasília
A obra Território, Estado e políticas públicas
espaciais, organizada por Marília Steinberger,
economista e professora do Departamento de
Geografia da Universidade de Brasília, é fruto de
uma linha de pesquisa que, com o apoio do CNPq,
vem sendo desenvolvida desde meados dos anos
2000 e que tem no tema “políticas públicas espaciais”
os seus pontos de partida e chegada. Trata-se do
segundo produto dessa linha de investigação, dando
continuidade ao livro publicado em 2006, Território,
ambiente e políticas públicas espaciais.
A premissa central da linha de pesquisa parte
da observação de que nem todas as políticas públicas
nacionais – como a ambiental, a de ordenamento
territorial, a regional, a urbana e a rural – podem
ser adequadamente enquadradas na categorização
corrente de políticas econômicas, sociais e setoriais.
Nesse caso, segundo a organizadora, em comum,
elas têm um DNA específico: uma fundamentação
espacial, pois o que as une é o conceito de espaço
geográfico, entendido, com base no pensamento de
Milton Santos, não como mero receptáculo das ações
humanas, mas como uma entidade histórico-social
que, ao ser produzido/modificado, transforma-se
num ‘território usado’, isto é, abriga ‘a materialidade
mais a vida que a anima’. É a partir desse arcabouço
que a linha de pesquisa que dá origem ao livro
se aprofunda em análises comparativas entre
os discursos das políticas públicas brasileiras,
formuladas desde o final dos anos 1950.
De modo a identificar se e como o espaço/
território estava nelas presente, o livro se concentra
nas políticas formuladas no horizonte temporal
dos anos posteriores a 2002, quando, conforme os
autores, começa de fato a retomada da produção de
políticas públicas nacionais. Esse corte temporal não
é gratuito.
De fato, no contexto do neoliberalismo, vigente
até o início dos anos 2000, o pensamento dominante
do estado mínimo levou o Estado Brasileiro, a
despeito da edição de inúmeras medidas de política
macroeconômica, à omissão em relação à formulação
de um planejamento nacional e de políticas públicas,
substituídas por uma gestão pontual e localista,
via programas e projetos, inclusive ambientais,
regionais, urbanos e rurais.
Como observa Antonio Carlos Galvão na
sua Apresentação, depois de resistir à adoção
dos princípios neoliberais nos anos 1980 e a ela
sucumbir nos anos 1990, foi a partir de 2002 que
o Brasil, ao retomar o campo das políticas sociais
(centradas no combate à fome e à pobreza) e
transformá-lo em eixo de estruturação de um novo
projeto de desenvolvimento nacional – o qual, tendo
como pano de fundo um quadro de profundas
desigualdades sociais e espaciais –, fez com que o
território emergisse como uma possibilidade e uma
promessa para a reorganização do planejamento e
das políticas públicas. Território, aqui entendido
como ‘território usado’, na concepção conceitual
de Milton Santos, como a expressão inequívoca da
política, dos homens, mais que das coisas.
Numa tentativa de analisar o sentido e o
direcionamento dessa retomada (do planejamento
e) das políticas públicas, a partir de 2002, depois
de identificar uma trajetória errática nessas políticas
– com um misto de “participacionismo” e “ranço
tecnocrático e autoritário”–, o livro prescreve a
necessidade de discutir novos enfoques de políticas
públicas, tais como o repensar a sua categorização/
tipologia e transferir as bases teórico-conceituais
sobre o espaço geográfico e ‘território usado’ para
a prática de sua produção. No livro, as respostas
a tais questões encontram amparo numa linha
metodológica que divide as políticas (e “quase
políticas”) entre aquelas fortemente ancoradas no
território e aquelas de outra natureza, embora com
visíveis implicações espaciais.
Com Prefácio e Apresentação altamente
elucidativos no que concerne às imbricações do
planejamento e da formulação das políticas públicas
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com as ideologias de desenvolvimento no mundo
contemporâneo, o livro compõe-se de três partes.
A primeira, Discussões teóricas e metodológicas, com
três capítulos, examina o atual sentido do Estado
e sua relação com políticas públicas e território;
a importância política da categoria ‘território
usado’; e os parâmetros analíticos adotados para
o entendimento da relação políticas públicasdiscursos. Para isso, o livro apoia-se em análises da
atualidade capitalista, elaboradas por autores de
peso, tais como Eric Hobsbawn, Jürgen Habermas,
Boaventura de Sousa Santos, David Harvey e István
Mészáros, visando a examinar o papel do Estado
e dos espaços nacionais. Ao lado disso, a fim de
relacionar essas ideias às especificidades brasileiras,
é inserido nessa parte do livro o pensamento
de importantes autores nacionais, como Celso
Furtado, Helio Jaguaribe, Milton Santos, Carlos
Lessa e Samuel Pinheiro Guimarães.
Nas partes restantes – a segunda, Políticas
públicas espaciais, e a terceira, Políticas de relevante
impacto espacial-territorial –, os autores do livro,
a partir de uma criteriosa análise de documentos
oficiais, realizam um trabalho de fôlego visando à
identificação do real conteúdo das políticas públicas
nacionais, por meio de três parâmetros que dão a
necessária unicidade à análise: (i) o conteúdo formal
da proposta; (ii) o ‘jogo político’ de fazer política e
(iii) a abordagem espacial-territorial –este último
considerado como o parâmetro-síntese das acepções,
explícitas e implícitas, de espaço e território nos
documentos analisados.
Nesse enfoque, enquanto a segunda parte, em
cinco capítulos, vasculha as políticas ambiental, a
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de ordenamento territorial, a regional, a urbana
e a rural, a terceira, também com cinco capítulos,
disseca as políticas industrial, a de turismo, a de
habitação, a de transportes e a de inclusão digital,
totalizando dez políticas públicas específicas.
Finalmente, cabe destacar outros aspectos
do livro que, sendo produzido de forma coletiva
e na academia – mas não exclusivamente para
a academia –, reforçam a qualidade da obra. Em
primeiro lugar, a autoria distribuída entre alunos
e ex-alunos de Marília Steinberger, a organizadora
da obra, denotando a verdadeira função do
desenvolvimento de uma linha de pesquisa
acadêmica; em segundo lugar, a total adesão dos
diversos artigos que compõem o livro ao seu marco
teórico-metodológico. Foge, assim, do padrão,
muitas vezes presente em obras dessa natureza, em
que os artigos têm vida própria, no mais das vezes,
uma coletânea de textos requentados, distanciados
do foco proposto. Finalmente, quando, não
raras vezes, é mais fácil publicar um livro que
um artigo em revista científica de credibilidade,
a obra inova ao criar um Conselho Editorial, ad
hoc e independente, constituído por professores de
diversas universidades, nenhum da Universidade
de Brasília, o que legitima ainda mais a obra.
Concluindo, torna-se importante assinalar que,
pela atualidade e relevância de sua temática, pela
consistência teórico-metodológica de sua produção
e pelo seu conteúdo final, não hesito em recomendar
a leitura e a discussão dessa obra aos segmentos da
academia e aos formuladores de políticas públicas
engajados na retomada da questão espacial no
planejamento brasileiro, em todas as suas escalas.
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BENEVOLO, L. História da arquitetura moderna. São Paulo: Perspectiva, 1981.
GODARD, O. “Environnement, modes de coordination et systèmes de légitimité: analyse de la catégorie de
patrimoine naturel”. Revue Economique, Paris, n.2, p.215-42, mars 1990.
Se houver até três autores, todos devem ser citados; se mais de três, devem ser citados os coordenadores, organizadores
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Utilizou- se o papel offset 90g/m². Rio de Janeiro, 2014.
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