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Revista USCS Direito
REVISTA
Universidade Municipal de São Caetano do Sul - Ano X - n. 17 - jul./dez. 2009 - ISSN 1518-594X
Arbitraje de inversión y America Latina
Francisco González de Cossío
Assassinos em série: uma questão legal ou psicológica?
Taís Nader Marta e Henata Mariana de Oliveira Mazzoni
O desacordo moral razoável na sociedade plural do estado democrático de direito
Joana Teixeira de Mello Freitas
Ano X - n. 17 - jul./dez. 2009
Desconsideração da pessoa jurídica: uma análise sob três perspectivas
Zilda Mara Consalter e Vinicius Dalazoana
A relação entre dignidade humana e interesse público
Zuenir de Oliveira Neves
Contratos internacionais de seguro marítimo de mercadorias:
uma análise comparativa entre a legislação brasileira e a inglesa
José Carlos de Carvalho Filho
El embrión humano o nasciturus como sujeto de derechos
Dora García Fernández
Ius cogens
Eber Betanzos
Desbordamiento de los mínimos morales en los derechos humanos: exclusión y justicia
Dora Elvira García
Conceito de minorias e discriminação
Jamile Coelho Moreno
A nova pirâmide jurídica: a prisão do depositário infiel vista pelo STF
Carlos João Eduardo Senger e Wallace C. Dias
Exegese sobre a “relativização” da coisa julgada: o que há por trás desta tendência?
José Nadim de Lazari e Gelson Amaro de Souza
A reserva legal como instrumento de efetividade da proteção da biodiversidade
Thiago Felipe S. Avanci
RESENHA
Da estrutura à função: novos estudos da teoria do direito
João Otávio Benevides Demasi
xcapadireito17.pmd
1
7/4/2010, 12:18
A Ratio do tipo Penal Ambiental e os Fundamentos da Constituição da República...
REVISTA
Antonio Celso Baeta Minhoto
Coordenador Editorial
ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
I
II
Revista USCS – Direito – ano X - n. 16 – jan./jun. 2009
Revista USCS Direito
Uma publicação da Universidade Municipal de São Caetano do Sul
Ano X – n. 17 - jul./dez. 2009
Reitor
Silvio Augusto Minciotti
Nilson Tadeu Reis Campos Silva
(UEM, Maringá, Brasil)
Pró-Reitores
José Turíbio de Oliveira
(Graduação)
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(Universidade Católica de Lisboa,
Lisboa, Portugal)
Eduardo de Camargo Oliva
(Pós-Graduação e Pesquisa)
Sérgio Tibiriçá Amaral
(UNITOLEDO,
Presidente Prudente, Brasil)
Joaquim Celso Freire Silva
(Extensão)
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(Administrativo e Financeiro)
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(Educação à Distância)
Coordenador Editorial
Antonio Celso Baeta Minhoto
Conselho Editorial
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(USCS, São Caetano do Sul, Brasil)
Antonio Celso Baeta Minhoto
(USCS, São Caetano do Sul, Brasil)
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(USP, São Paulo, Brasil)
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(USCS, São Caetano do Sul, Brasil)
Conselho Técnico
Professores do Curso de Direito
Coordenador do Curso de Direito
Vander Ferreira de Andrade
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de Publicações Acadêmicas
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Dora García Fernández
(Universidade Anahuac, México)
Jornalista Responsável
Roberto Elísio dos Santos
MTb 15.637
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(Universidade Complutense de Madri, Espanha)
Revisão
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(USP, São Paulo, Brasil)
José Reinaldo de Lima Lopes
(USP, São Paulo, Brasil)
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(Escuela Libre de Derecho, México)
Miguel Reale Junior
(USP, São Paulo, Brasil)
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Páginas & Letras Editora e Gráfica Ltda.
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500 exemplares
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São Caetano do Sul - SP - Brasil
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Fax: (11) 4239-3216
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A USCS, em suas revistas, respeita a liberdade intelectual dos autores, publica integralmente os originais que
lhe são entregues, sem, com isso, concordar, necessariamente, com as opiniões expressas.
A Ratio do tipo Penal Ambiental e os Fundamentos da Constituição da República...
III
NOTA DA COORDENAÇÃO
EDITORIAL
A presente edição da Revista de Direito da Universidade Municipal de
São Caetano do Sul será a última na modalidade impressa. Buscando um
alinhamento com as práticas e os procedimentos mais atuais, a Coordenação, num
trabalho conjunto envolvendo a gestão do curso e a Reitoria da Universidade,
decidiu por bem veicular a revista em foco exclusivamente por meio eletrônico.
Na próxima chamada de artigos (call of papers), procurar-se-á inserir as
informações necessárias para que os autores e o público em geral possam acessar
o endereço eletrônico da revista e, assim, viabilizar a submissão de seus artigos.
A linha editorial foi mantida, havendo sempre uma atenção especial com a
interdisciplinaridade e também com a transdisciplinaridade, o que, de acordo com
esta Coordenação Editorial, enriquece as pesquisas dentro do universo jurídico e
possibilita um debate mais extenso no âmbito do Direito que, sabidamente, enfrenta
desafios contemporâneos cada vez mais amplos e profundos.
Outro aspecto a ser mantido, uma característica da revista, é a busca pela
divulgação de pesquisas de todas as partes do Brasil e também do exterior. Visões
diferenciadas, muitas vezes acerca de um mesmo tema ou de temas semelhantes,
conduzem a um tratamento igualmente mais abrangente dos assuntos estudados,
o que parece ser um interessante benefício do ponto de vista científico.
Para este número, com expressiva contribuição de vários autores, brasileiros
e estrangeiros, constata-se a abordagem de muitos temas de interesse permanente
para a área do Direito. Arbitragem, assassinos em série, dignidade humana e
biodiversidade são algumas das questões abordadas nesta edição.
Espera-se que os leitores aproveitem as reflexões de alto nível
proporcionadas pelos artigos dos colaboradores aqui presentes, a quem se oferta
um especial agradecimento.
Coordenação Editorial
IV
Revista USCS – Direito – ano X - n. 16 – jan./jun. 2009
V
A Ratio do tipo Penal Ambiental e os Fundamentos da Constituição da República...
SUMÁRIO
1. Arbitraje de inversión y America Latina
Investment arbitration and Latin America
Francisco González de Cossío ...........................................................
7
2. Assassinos em série: uma questão legal ou psicológica?
Serial killers: a legal or psychological matter?
Taís Nader Marta e Henata Mariana de Oliveira Mazzoni ....................
21
3. O desacordo moral razoável na sociedade plural do estado
democrático de direito
The moral reasonable disagreement in plural society of the
democratic state
Joana Teixeira de Mello Freitas ..........................................................
39
4. Desconsideração da pessoa jurídica: uma análise sob três perspectivas
Disregard of legal entity: an analysis under three perspectives
Zilda Mara Consalter e Vinicius Dalazoana ........................................
53
5. A relação entre dignidade humana e interesse público
The relationship between human dignity and public interest
Zuenir de Oliveira Neves .....................................................................
67
6. Contratos internacionais de seguro marítimo de mercadorias:
uma análise comparativa entre a legislação brasileira e a inglesa
International marine insurance contracts of goods: a comparative analysis
between english and brazilian legislation
José Carlos de Carvalho Filho ............................................................ 77
7. El embrión humano o nasciturus como sujeto de derechos
The human embryo or nasciturus as subject of rights
Dora García Fernández .......................................................................
91
8. Ius cogens
Ius cogens
Eber Betanzos ................................................................................... 109
VI
Revista USCS – Direito – ano X - n. 16 – jan./jun. 2009
9. Desbordamiento de los mínimos morales en los derechos humanos:
exclusión y justicia
Overpassing minimum moral principles in human rights:
exclusion and justice
Dora Elvira García ............................................................................. 117
10. Conceito de minorias e discriminação
Concept of minorities and discrimination
Concepto de las minorías y la discriminación
Jamile Coelho Moreno ....................................................................... 141
11. A nova pirâmide jurídica: a prisão do depositário infiel vista pelo STF
The new juridical pyramid: the unfaithful trustee prison on the STF view
Carlos João Eduardo Senger e Wallace C. Dias ............................... 157
12. Exegese sobre a “relativização” da coisa julgada: o que há por trás
desta tendência?
Exegesis about the “relativization” of res judicata: what’s behind this
tendency?
José Nadim de Lazari e Gelson Amaro de Souza ............................. 171
13. A reserva legal como instrumento de efetividade da proteção da
biodiversidade
The environmental legal reserve as a tool on effective protection
of biodiversity
Thiago Felipe S. Avanci .................................................................... 187
RESENHA
Da estrutura à função: novos estudos da teoria do direito
From structure to function: new studies of the theory of law
João Otávio Benevides Demasi ........................................................ 211
7
Arbitraje de inversión y America Latina
1
Arbitraje de inversión y America Latina
Investment arbitration and Latin America
FRANCISCO GONZÁLEZ DE COSSÍO
GONZÁLEZ
COSSÍO ABOGADOS, S.C. (www.gdca.com.mx) Árbitro y abogado en casos nacionales e
internacionales. Profesor de Arbitraje, Arbitraje de Inversión y Arbitraje Deportivo,
Universidad Iberoamericana y Escuela Libre de Derecho. Anterior Coordinador del
Comité de Arbitraje de la Barra Mexicana, Colegio de Abogados. Representante alterno de México
ante la Comisión de las Naciones Unidas para el Derecho Mercantil Internacional.
Miembro del INSTITUTO MEXICANO DEL ARBITRAJE, LONDON COURT OF INTERNATIONAL ARBITRATION,
INTERNATIONAL ARBITRATION INSTITUTE y el Comité de Arbitraje y Solución de Controversias del
Artículo 2022 del Tratado de Libre Comercio para América del Norte.Árbitro del Tribunal Arbitral du
Sport, Lausanne, Suiza. E-mail para correspondência: [email protected].
DE
ABSTRACT
From a corner of international law hails a discipline which has historically caused
mischief: international investment law. The last few decades have witnessed an
interesting development: the channeling of disputes stemming there from through a
private dispute resolution mechanism: arbitration. Albeit successful in other realms,
its luck in Latin American is still an open question. And as history would have it, the
(incipient) Latin American flavor is becoming a matter of concern. This paper
comments on it, providing insight as to the right course of action and the implications
of failing to follow it.
Keywords: arbitration, international law, investment disputes.
8
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
1. INTRODUCCIÓN1
El humano produce muchas cosas. Produce arte. Produce música. Produce
cultura. Produce historia. Produce inventos y objetos para satisfacer sus necesidades.
En general, produce bienes y, lamentablemente, también males.
Una de sus producciones más importantes son las ideas. El motivo es doble;
uno filosófico y uno práctico. Primero, al hacerlo, responde a sus inquietudes más
profundas. Segundo, busca soluciones a problemas que enfrenta.
La importancia de esta producción no debe subestimarse. Las ideas han
mostrado ser las fuerzas más importantes de la historia de la humanidad.
El arbitraje de inversión es una idea –y del género práctico. Busca resolver los
problemas derivados del flujo internacional de activos, los cuales han mostrado ser serios.
Sin embargo, la idea tiene detractores. No sólo eso, tiene implicaciones
importantes para América Latina. A continuación se tratarán.
2. EL ARBITRAJE COMO MÉTODO PARA RESOLVER
LAS CONTROVERSIAS DE INVERSIÓN
A. ¿Porqué el arbitraje?
No es claro que el arbitraje sea la solución apropiada para resolver los problemas
que derivan de la inversión internacional. Tres motivos vienen a la mente. Primero,
constituye un acto de delegación en manos de particulares de la solución de problemas
que involucran a soberanos. Segundo, por su historia. El fenómeno ha propiciado
explotación, intervenciones, uso de la fuerza, presión diplomática y política. Y la
historia quiere repetirse. Tercero, los temas ventilados tienen implicaciones públicas.
Al ventilar la legalidad de actos de entes públicos se afecta una sociedad. Ante ello,
la utilización de un mecanismo in natura privado levanta cejas.
No debe. El motivo es triple:
1. La ausencia de una alternativa;
2. Es un contrapeso jurídico –no político– de actos gubernamentales;
3. Su ausencia resultaría en:
a) Impunidad;
b) Escenarios perder-perder; y
c) Presión política y diplomática.
Explicaré porqué.
1
Esta nota se nutre de GONZÁLEZ DE COSSÍO, F. Arbitraje de Inversión, Ed. Porrúa, México, D.F., 2009.
Arbitraje de inversión y America Latina
9
B. Ausencia de alternativa
La plausibilidad de la disciplina obedece al counterfactual. Sin la misma,
existe un universo importante de problemas que no encontrarían una solución
jurídica, sino política. Y la historia muestra que las soluciones políticas han tendido
a ser desafortunadas, en ocasiones bélicas. Pero inclusive sin llegar a extremos, en
ausencia de un cause jurídico, la única opción sería intervencionismo, presiones
diplomáticas y menos flujos internacionales.2 Un resultado en el que todos pierden.
Existe cierto paralelismo entre el derecho humanitario internacional y el
derecho de la inversión. No sólo porque ambos son excepciones en que otorgan
derecho de acción internacional a entes privados,3 sino por que ambos encuentran
su raison d’être en una (lamentable) circunstancia: el uso incorrecto del poder
público. Por ello, el arbitraje es un contrapeso internacional al poder. Sin el mismo
no existirían desincentivos contra cierto tipo de conducta que la historia muestra
que tiende a suceder. Su ausencia dejaría un vacío: cierto tipo de delitos
internacionales quedarían impunes.
Es cierto que éstas preocupaciones no carecen de respuesta. Podría por
ejemplo citarse la disponibilidad de una reclamación ante la Corte Internacional de
Justicia. A su vez, la política y presión internacional ofrecen una alternativa
realpolitik. Sin embargo, son insuficientes. El recurso ante la Corte Internacional
de Justicia requiere de consentimiento, el cual el Estado anfitrión puede simplemente
negar –¡y sin reproche alguno! Y la alternativa fáctica (diplomacia) tiende a no ser
adecuada. Sea por que el inversionista carezca de la suficiente influencia con su
Estado como para persuadirlo de llevarla acabo,4 o no se realice con la forma,
energía o diligencia que el inversionista hubiera preferido. O por que se a efectuada
por motivos distintos a los méritos del caso. Es decir, con la finalidad de lograr
otros fines. Y ello sin olvidar que, si bien el Estado de origen podría bajo derecho
internacional consuetudinario enderezar una reclamación internacional, lo cierto es
que no tienen que hacerlo.5 Luego entonces, por técnica jurídica, es necesario que
sea el interesado quien pueda recurrir.
2
Admito que el nexo régimen de inversión-existencia de la inversión aún es discutido por economistas.
Tradicionalmente, bajo derecho internacional sólo los Estados y organismos internacionales tienen
derecho de acción. Las personas (físicas o morales) son destinatarios del mismo, como lo son los
mares, espacio aéreo, el territorio, ríos, etcétera.
4
Los motivos de ello pueden ser diversos. Por ejemplo, mientras que los grupos de interés grandes
tendrán fácil acceso, los pequeños no. A su vez, el Estado cuya nacionalidad comparte el inversionista
puede ser renuente a querer friccionar su relación con el Estado receptor de la inversión. Etcétera.
5
Lo que es más, en ocasiones se han presentado reclamaciones internacionales por motivos que en
verdad distan de tener en mente a la víctima de los actos recurridos.
3
10
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
C. Beneficios accesorios
Existen además beneficios colaterales. Uno importante es la gradual mejora
del trato in genere que las autoridades dan no sólo a inversionistas extranjeros,
sino a la población en general.6 El motivo no sólo es la creciente existencia de
inversión extranjera en diversas ramas, sino que es más fácil adoptar a nivel nacional
prácticas profilácticas que siempre eliminen responsabilidad, que selectivamente
tratar mejor a entidades con inversión foránea.
Entendido lo anterior se observa cómo el derecho y arbitraje de inversión
tiene una función ex ante, no sólo ex post. Y no debe menospreciarse, pues puede
ser importante. La experiencia muestra que, sensibilizados de las implicaciones
internacionales que cierta conducta gubernamental (estatal o municipal) puede
tener, las autoridades proceden con más cuidado. Como resultado, la disciplina se
constituye en un auténtico contrapeso de la utilización abusiva del poder público.7
Existen también beneficios desde la perspectiva estatal. Los Estados no
sólo son importadores de capital; también exportan. Por ende, la disciplina es
recíproca: obliga y protege. Obliga al Estado en tanto es destinatario de capital
extranjero; y lo protege en tanto que es emisor del mismo.
3. EXPERIENCIA DE AMÉRICA LATINA
CON EL ARBITRAJE DE INVERSIÓN
A. El pasado: Doctrinas Calvo, Drago y Cárdenas
Los problemas de inversión extranjera no son nuevos. Un episodio mexicano
puede refrescar la memoria. Cuando en 1862 Juárez suspendió pagos de deuda
extranjera, propició la furia de España, Francia e Inglaterra, cristalizando el Tratado
de Londres, que propició la intervención de 1863. Dirk Raat lo describe así:8
Con las arcas vacías, Juárez se vio obligado a decretar una suspensión de pagos
de deuda extranjera por dos año. … mientras tanto, España, Francia e Inglaterra
6
Lo que un experto ha denominado un “compliance pull”. (JAN PAULSSON. Enclaves of Justice,
Transnational Dispute Management, June 2007, p. 12.) En sus palabras “…in Mexico … in the
wake of NAFTA we are told that officials have developed the salutary instinct of avoiding conduct
which might be criticized in an international forum: a direct case of compliance pull to the benefit
not only of foreigners, but –perhaps more importantly– also to the benefit of local citizens. …”.
7
Lo anterior no debe propiciar la idea que los beneficios son sólo del lado del inversionista; y mucho
menos que el Estado siempre es el ‘malo de la película’. La experiencia internacional muestra
frecuentes instancias de abuso del inversionista.
8
DIRK RAAT, William, Mexico, from Independence to Revolution, 1810-1910, University of Nebraska,
1982, p. 146-148.
Arbitraje de inversión y America Latina
11
acordaron “darle una lección a México”. Mediante el Tratado de Londres se
comprometieron a intervenir para proteger sus intereses. En enero de 1863 el
primer despacho desembarcó en Veracruz … bajo el comando del General Juan
Prim. … El país fue ocupado por fuerzas extranjeras …
[With the coffers empty, Juárez was forced to decree a two-year suspension of
payments on foreign debts. … Meanwhile, Spain, France and England had
agreed to “teach Mexico a lesson” by the Treaty of London undertook to
intervene to project their interests. In January 1863 the first detachments
landed at Veracruz … under the command of General Juan Prim. … The country
was occupied with foreign forces …]
Este tipo de actos se repitieron en países diversos de América latina. Ello
produjo un choque no sólo de fuerzas, sino de ideas. Mientras que los extranjeros
defendía que su inversión debía contar con un trato congruente con un estándar
externo establecido por el derecho internacional, los Estados latinoamericanos
insistían que sus propias leyes y constituciones, al garantizar tratamiento igualitario
a los inversionistas extranjeros, satisfacían los requisitos del derecho internacional.
Tres ideas brotaron la Doctrina Calvo, la Doctrina Drago y la Doctrina Cárdenas.
América Latina dio tres respuestas al debate ideológico indicado. A
continuación se resumirán.
1. Doctrina Calvo
La Doctrina Calvo, que lleva el nombre de su padre, Carlos Calvo, Ministro
de Relaciones Exteriores de Argentina,9 se fundamenta en dos principios:10 (a) los
Estados soberanos, estando libres y siendo independientes e iguales entre sí, gozan
del derecho a estar libres de toda interferencia por parte de otros Estados, sea
diplomática o por la fuerza; y (b) los extranjeros no pueden ser titulares de más
derechos, privilegios o prerrogativas que aquéllos concedidos a nacionales, por lo
que no pueden accionarse más que en tribunales y autoridades locales.11
De esta doctrina se derivó el instrumento que la implementa: la Cláusula
Calvo, definida como “la renuncia voluntaria por un contratante particular a
recurrir a la protección diplomática de su gobierno en cualquier causa
9
En su libro Le Droit International (Vol. 6, 5ª edición, 1885, p. 231), en donde dice que los extranjeros
que se establezcan en un país cuentan con los mismos derechos de protección que los nacionales,
pero no pueden solicitar protección adicional.
10
SHEA, DONALD R. The Calvo Clause, A Problem of Inter-American and International Law and
Diplomacy, University of Minnesota Press, Minneapolis, 1955, p. 19.
11
En Le droit international théorique et pratique, quinta edición, París, 1986. Citado por Shea, op. cit.
p. 18.
12
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
relacionada con su contrato”. La Cláusula Calvo encontró eco en la legislación
(constitucional y secundaria) en diversos países latinoamericanos. En el caso
mexicano fue acogida en el artículo 2712 y vasta legislación secundaria.13
2. Doctrina Drago
La Doctrina Drago lleva el nombre de su padre, el Ministro de Relaciones
Exteriores de Argentina, Luis María Drago, quien, mediante nota dirigida el 29 de
diciembre de 1902 al plenipotenciario argentino en Estados Unidos, Martín García
Merou, condena la intervención anglo-italo-germana en Venezuela para el cobro
de ciertas deudas contractuales y públicas no satisfechas, que dio origen a un
bloqueo pacífico, hundimiento de una escuadra venezolana, bombardeo de puertos
y otras medidas violentas.14 En su carta dice:
…el cobro similar de los empréstitos supone la ocupación territorial; significa la
supresión, o subordinación, de los gobiernos locales en los países a que se
extiende […] contrariando visiblemente los principios […] proclamados por las
naciones de América y muy particularmente la Doctrina Monroe, con tantos
celos sostenida en tanto tiempo por Estado Unidos…
El principio defendido: la deuda pública no justifica intervención armada.15
3. Doctrina Cárdenas
El presidente mexicano Lázaro Cárdenas, en un discurso pronunciado el 10
de septiembre de 1938, formuló una doctrina jurídica que guarda relación con estos
problemas, y que algunos sostienen que es una teoría jurídica más profunda
12
Fracción I del Artículo 27 de la Constitución Federal de los Estados Unidos Mexicanos, que dice
“Sólo los mexicanos por nacimiento o por naturalización y las sociedades mexicanas tienen derecho
para adquirir el dominio de las tierras, aguas y sus accesiones o para obtener concesiones de
explotación de minas o aguas. El Estado podrá conceder el mismo derecho a los extranjeros,
siempre que convengan ante la Secretaría de Relaciones en considerarse como nacionales respecto
de dichos bienes y en no invocar, por lo mismo, la protección de sus gobiernos por lo que se refiere
a aquéllos; bajo la pena, en caso de fallar al convenio, de perder en beneficio de la nación, los
bienes que hubieren adquirido en virtud de lo mismo.”
13
Artículo 2º de la Ley Orgánica de la Fracción I del artículo 27 de la Constitución y artículos 2º y 4º
de su Reglamento; artículo 3º de la abrogada Ley para Promover la Inversión Mexicana y Regular la
Inversión Extranjera y artículo 31 de su Reglamento; artículo 33 de la abrogada Ley de Nacionalidad
y Naturalización; artículo 12 de la Ley de Vías Generales de Comunicación; en la Ley de Instituciones
de Fianzas; Ley General de Instituciones y Sociedades Mutualistas de Seguros; y artículo 6º de la
Ley de Pesca.
14
Dicha doctrina fue expuesta también ante el Congreso Panamericano y las Conferencias de la Haya
en 1917.
15
QUEZADA, Ernesto. La Doctrina Drago, su esencia y concepto amplio y claro, Buenos Aires, 1919, p. 4.
Arbitraje de inversión y America Latina
13
escrupulosa que la Calvo y la Drago.16 En su esencia, niega la extraterritorialidad
de la ciudadanía y nacionalidad buscando simplemente suprimir de origen todas las
controversias jurídicas y políticas que derivan de antaño precisamente por el efecto
extraterritorial de uno y otro de ambos estatutos personales. Asevera que la
ciudadanía y la nacionalidad son estatutos que deben ser territoriales, deben de
carecer de extraterritorialidad. La persona (física o moral) que emigra a suelo
extraño debe contar con las facilidades y garantías necesarias para adquirir el
estatuto de la nacionalidad local, en absoluta similitud e igualdad con los derechos
y obligaciones de los nacionales del país hospitalario.17
B. El presente
En el presente, existen varios factores que acentúan la importancia del
arbitraje de inversión en América Latina.
1. El marco legal
El arbitraje en América Latina tiene un presente importante. Como lo hace
ver van den Berg:18
En el arbitraje de inversión latinoamericano los números son impresionantes: de
los más de 2,600 tratados bilaterales que existen actualmente, aproximadamente
el 20% incluyen a un país de la región. Adicionalmente, diversos países han
concluido o se encuentran negociando Tratados de Libre Comercio con capítulos
sobre inversión (ej., el Tratado de Libre Comercio entre República Dominicana,
Estados Unidos y Centroamérica (CAFTA, por sus iniciales en inglés); Chile y
Estados Unidos; Colombia y Estados Unidos).
El ámbito interamericano muestra una rica pluralidad de instrumentos que
aluden al arbitraje de inversión. Los resultados empiezan a verse. Mientras que
Argentina tiene 48 casos, México tiene 18, Ecuador 14 y Venezuela 9. A su vez,
Bolivia, Perú, Costa Rica y Chile están involucrados en ello.19
2. El Nacionalismo y el arbitraje de inversión
Una de las cosas más importantes que hace una ideología es proveer un
sentimiento de quienes somos, para luego darnos orgullo de ello. Al hacerlo se
16
MENDOZA, Salvador. La Doctrina de Cárdenas, antecedentes y comentarios, Ediciones Botas,
México, 1939, p. 29.
17
Ibid, p. 43.
18
GONZÁLEZ DE COSSÍO, Francisco. Arbitraje de Inversión, Ed. Porrúa, México, D.F., 2009, p. vii.
19
Ver: www. unctad.org / iia-dbcases.
14
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
responde una pregunta fundamental de la teoría política: porqué debemos optar por
convivir –y cómo– en lugar vivir aislados. Como dice Finlayson:20
Las ideologías no solo son maneras de pensar sobre el mundo sino maneras de
estar en él. Nos dan una sensación de lo que está sucediendo, organizan nuestras
percepciones de ciertas cosas y nos orientan en ciertos sentidos
[Ideologies are not just ways of thinking about the world but ways of being
within it. They give us a sense of what is going on, organise our perceptions of
certain things and orient us in certain directions.]
El nacionalismo es una ideología.21 Desafortunadamente, la respuesta del
nacionalismo es hostil hacia ‘los otros’ (quienes no son parte de ‘nosotros’). Además,
es exclusionista.
El nacionalismo es una ideología que obedece a factores sociales que rebasan
esta nota. Lo relevante a mencionar es que el nacionalismo ha brotado en América
Latina. Y ello ha tocado al arbitraje de inversión. Respetuoso de los motivos de la
ideología, deseo hacer notar sus consecuencias, centrándome en dos: económicas
y sociológicas.
a) Efectos económicos del aislacionismo
El efecto económico de optar por autarquía es el siguiente:
1. Oferta: oportunidades perdidas del lado de la oferta;
2. Demanda: oportunidades perdidas del lado de la demanda;
3. Estado: menos crecimiento económico;
4. Consumidor: menos opciones, menor diversidad de productos, menos libertad.
Explicaré porqué.
Aunque la autarquía financiera es una opción, visualicemos los resultados
de prohibir el fenómeno.
Suponiendo que fuera posible insular a cada país evitando flujos internacionales
de capital, el resultado sería que algunos países tendrían más capital del que
necesitan, mientras que otros tendrían menos.22 Ello arrojaría un doble resultado.
20
FINLAYSON, Alan. Nationalism, en ECCLESHALL, Robert. Political Ideologies, Routledge, London, p. 103.
Kedourie define al nacionalismo como: “A doctrine invented in Europe at the beginning of the nineteenth
century … the doctrine holds that humanity is naturally divided into nations, that nations are known by
certain characteristics which can be ascertained, and that the only legitimate type of government is
national self-government”. (KEDOURIE, Elie. Nationalism, Hutchinson, London, 1960, p. 12.)
22
Esta primer premisa es incuestionable.
21
Arbitraje de inversión y America Latina
15
Los países superavitarios enfrentarían un retorno decreciente de su capital, y los
países con capital insuficiente mostrarían oportunidades de negocio perdidas. Esto
último fomentaría apetito de capital, reflejando retornos crecientes a los ingresos
marginales de inversión, los cuales, en nuestra hipótesis, estarían indisponibles.
Es decir, mientras que a unos les sobrará a otros les faltará. Cuando algo
sobra, su precio baja. Cuando algo escasea, su precio sube. Por ende, en un
mundo ausente de intercambio de flujos internacionales se observará el (lamentable)
escenario de oportunidades perdidas en ambos bandos: tanto la oferta como la
demanda. Un escenario en el que nadie gana.
Entendida esta realidad se percibe porqué conviene que ambos grupos de países23
comercien con capital: ambos estarán en mejores circunstancias si el capital puede
moverse de un lado a otro. Así no se ‘desperdician’ oportunidades de negocio. Por ello,
aunque existan dificultades, la solución no puede (no debe) ser erradicar el fenómeno.
Lo anterior desde una perspectiva macro. Pero la perspectiva micro puede
ser aún más persuasiva. Los beneficios del fenómeno son defendibles desde dos
perspectivas: libertad y bienestar.
Desde una perspectiva de libertad, es preferible que los individuos puedan
mover su capital como les plazca. Desde la perspectiva de bienestar, es mejor
tener opciones que carecer de las mismas. Si algo logra el comercio es que amplía
oportunidades. Cuando las barreras caen, la gente de ambos lados de las fronteras
incrementa su bienestar al encontrar más oportunidades para consumir diferentes
tipos de productos (tanto en calidad como en precio).24 Pueden decidir consumir
productos que no han producido pagándolos con el superávit generado por los
productos que han producido y que no desean consumir, si creen que ello les
favorece. De no ser el caso, simplemente no lo hacen. De nuevo, más opciones.
La misma lógica aplica a las finanzas internacionales. De la misma manera
en que una economía puede consumir únicamente lo que produce, puede invertir
únicamente lo que ahorra. Ni más; ni menos. El comercio en capital permite que
los países separen su ahorro de sus opciones de inversión. Pueden invertir más de
lo que ahorran mediante préstamos del extranjero, o pueden invertir menos de lo
que ahorran prestando la diferencia (su superávit). Los cambios en el precio del
capital asegurarán que la oferta y demanda global se conjugue eficientemente
23
24
Deficitarios y superavitarios.
El parangón con el comercio en bienes y servicios es no sólo obligado sino conveniente puesto que
en esencia lo que está ocurriendo es justamente eso: se está comerciando con un bien. Mientras que
en el caso de comercio de bienes y servicios es un producto o servicio, en el caso de inversión
foránea es capital.
16
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como ocurre con los precios de los productos importados y exportados, llevando a
un desarrollo global. A un equilibrio óptimo.
Debo admitir que hay quien asevera que no se ha demostrado una correlación
entre la existencia de tratados y arbitraje de inversión y el fomento de la inversión.25 El
argumento merece dos respuestas. Primero, dado lo reciente del fenómeno, aún no se
genera información suficiente para conclusivamente demostrar el nexo.26 Segundo,
dicho argumento empírico adolece de algo: no hay contra qué compararlo. No sabemos
cuánta inversión hemos perdido por el simple hecho de que no nos hemos adherido al
CIADI. Y en cambio, el argumento conceptual tiene fuerza: la comunidad internacional
es sofisticada. Al momento de hacer el estudio de la viabilidad de una inversión, dentro
del elemento “riesgo” factora el riesgo político, el cual es reducido mediante la
disponibilidad de arbitraje de inversión. En caso de que el argumento conceptual no
persuadiera al escéptico, recurriría a un empírico: las instancias de conducta estratégica
por inversionistas para obtener protección de tratados.27
b) Efectos sociales del nacionalismo
Un ejemplo histórico ilustra el impacto de optar por una respuesta nacionalista.
El error más grave en materia de relaciones internacionales que un Presidente
Estadounidense ha cometido fue la firma de la Smoot-Hawley Tariff Act de junio
de 1930 que elevó los aranceles de Estados Unidos en forma importante.28 El
efecto que tuvo fue nada menos que desastrozo. Invitó retorsión de economías
extranjeras llevando, lo que de otra manera hubiera sido un declive económico
normal, a una depresión mundial. La reducción drástica en el comercio internacional
y la actividad economía redujo la influencia de los moderados frente a los nacionalistas
en Japón y pavimentó la victoria de los Nazis en Alemania en 1932. Japón invadió
China en 1931, estableciendo el clima que llevó a la Segunda Guerra Mundial.29
Como lo explica un experto:30
25
Además, existen jurisdicciones que reciben inversión sin haber ratificado siquiera un sólo tratado de
inversión (v.gr., Brasil).
26
Aunque han existido algunos. El autor tiene conocimiento de cuatro, que arrojan resultados
contradictorios o no conclusivos.
27
Las cuales describo genéricamente por razones de confidencialidad.
28
Esta legislación fue promulgada por motivos nacionalistas y proteccionistas.
29
JACKSON, John H., WILLIAM J. Davey y Alan O. SYKES, Jr., Legal Problems of International Economic
Relations, Third Edition, West Publishing Co., St. Paul Minn. 1995, pgs. 4 y 38.
30
COOPER, Richard N. Trade Policy and Foreign Policy, U.S. Trade Policies in a Changing World
Economy, Robert Stern Ed., The Massachussets Institute of Tecnology, 1987, pgs. 291-292. (“Valuable
lessons were learned from the Smoot-Hawley tariff experience by the foreign policy community: the
threat of tariff retaliation is not always merely a bluff; tariffs do influence trade flows negatively; a
decline in trade can depress national economies; economic depression provides fertile ground for
Arbitraje de inversión y America Latina
17
La experiencia de los aranceles Smoot-Hawley enseñó lecciones importantes a
la comunidad política internacional: la amenaza de retorsión arancelaria no
siempre es vacua; los aranceles influyen negativamente sobre los flujos de
comercio; una reducción de comercio puede deprimir economías nacionales;
una depresión genera tierra fértil para (pseudo) soluciones políticas radicales; y
los radicales políticos con frecuencia buscan aventuras (militares) para distraer
la atención de sus fracasos en la economía nacional. Las semillas de la Segunda
Guerra Mundial, tanto en el Lejano Oriente como en Europa, fueron sembradas
con la firma de los aranceles Smoot-Hawley.
En un discurso el (entonces) Director de la Oficina de Asuntos Económicos
del Departamento de Estado de Estados Unidos (Director of the Office of Economic
Affaires of the Department of State) Harry Hawkins expuso:31
Hemos aprendido que, cuando un país es hambreado económicamente, su gente
está más que dispuesta a seguir al primer dictador que surja y les prometa a
todos empleos. Los conflictos comerciales invitan no-cooperación, sospecha,
amargura. Las naciones que son enemigos económicos son improbables a
permanecer como amigos por mucho tiempo.
Si deseamos seguir la (aguda) advertencia del gran historiador Jorge
Santayana32 y evitar revivir las historia, debemos entender que el comercio internacional, y su fenómeno de moda – la Globalización – es positiva tanto por razones
económicas como sociales.33
3. Rechazos incipientes
Un resultado observable en la región al fenómeno del arbitraje de inversión
es la denuncia del Convenio CIADI por Argentina, Bolivia y Ecuador.
a) Argentina
Argentina es actualmente parte de 48 demandas de arbitraje de inversión.
Los montos son impactantes, como también lo son sus consecuencias (de prosperar).
politically radical nostrums; and political radicals often seek foreign (military) adventures to distract
domestic attention away from their domestic economic failures. The seeds of World War II, in both
Far East and in Europe, were sown by Hoover’s signing of the Smoot-Hawley tariff.”)
31
U.S. Department of State, Commercial Policy Series 74, pg. 3 (Pub. No. 2104, 1944). (“We’ve seen
that when a country gets starved out economically, its people are all too ready to follow the first
dictator who may rise up and promise them all jobs. Trade conflict breeds noncooperation, suspicion,
bitterness. Nations which are economic enemies are not likely to remain political friends for long.”)
32
Conocido por su lema: “quien desconoce la historia está condenado a revivirla”.
33
Al respecto, ver GONZÁLEZ DE COSSÍO, Francisco. Estado de Derecho: Un Enfoque Económico, Ed.
Porrúa, 2009, p. 82 et seq.
18
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
El origen de las demandas son las medidas que Argentina tomó en 2002 para
enfrentar su crisis financiera.
Mucho podría decirse al respecto. Si bien no es el lugar (ni el momento,
pues muchas reclamaciones están en curso) para pronunciarse sobre la rectitud de
las demandas y laudos que a la fecha existen, es válido decir que la adhesión al
CIADI no es la fuente del problema, sino una solución. De no existir la opción
CIADI, el resultado sería frustración, probablemente impunidad, presión política y
diplomática internacional, aún más pérdida de inversión y bienestar, y ostracismo
internacional. La aseveración no presupone responsabilidad. El autor no es quien
para emitir una opinión sobre ello (para eso están los árbitros). Pero no dejo de ver
el beneficio de que “alguien” pueda imparcialmente pasar juicio sobre ello. Y por
ello aplaudo el que exista el mecanismo. La opción sería la ley de la selva.34
b) Bolivia
Bolivia denunció el Convenio CIADI el 2 de mayo de 2007 dejando de ser
parte el 3 noviembre de 2007. Sus motivos oficiales son que considera que el
CIADI favorece a los inversionistas sobre los Estados anfitriones, que la función
del Banco Mundial hace incompatible el que administre arbitrajes, la confidencialidad,
los árbitros (que pueden también actuar como abogados de parte), el contenido
que se la ha dado a ciertas disciplinas y que “no hay caso alguno en que el Banco
Mundial haya sancionado a inversionistas por no cumplir con sus contratos”.
c) Ecuador
El 12 de junio de 2009 el poder legislativo de la República de Ecuador votó a
favor de denunciar el Convenio CIADI, del cual era parte desde febrero de 2001.
Los motivos esgrimidos son dos. Primero, para cumplir con la (recientemente creada)
prohibición contenida en el artículo 422 de su Constitución que dice “no se podrá
celebrar tratados o instrumentos internacionales en los que el Estado ecuatoriano
ceda jurisdicción soberana a instancias de arbitraje internacional, en controversias
contractuales o de índole comercial entre el Estado y personas naturales o jurídicas
34
Además, existe un lado positivo. Como bien dice el dicho, no hay mal que por bien no venga. Y las
crisis internacionales no son una excepción: generan conocimiento. Son fuentes de Derecho. Casos
distintos pueden ser citados en apoyo de la aseveración. En el caso Argentino, los casos han versado
sobre temas otrora abiertos e importantes. Por ejemplo, los (controvertidos) requisitos de jurisdicción,
las cláusulas paraguas, el agotamiento de recursos locales (incluyendo los polémicos “fork in the
road”), la diferenciación entre reclamaciones contractuales e internacionales, el alcance de las cláusulas
de nación más favorecida, el contenido de trato mínimo, trato justo y equitativo, plena protección
y seguridad, medidas equivalentes a expropiación, la responsabilidad internacional del Estado, el
estado de emergencia, medidas de salvaguarda, estado de necesidad y sus consecuencias
internacionales. Y esto podría ser la punta del iceberg.
Arbitraje de inversión y America Latina
19
privadas…”. Segundo, para “defender la soberanía de Ecuador, el manejo de sus
relaciones económicas con otros estados o empresas de otras nacionalidades”.
Los intercambios en la Asamblea Nacional al ventilar la conveniencia de
denunciar35 incluyeron preocupación por los montos por los que había sido demandada.
Ya desde octubre de 2007 había indicado que no aceptaría que la jurisdicción del
CIADI abarcara controversias relativas al manejo de sus recursos naturales no renovables,
entendiéndose por tales (pero no limitados a) recursos mineros e hidrocarburos.
Irónicamente, Ecuador –si bien demandado con frecuencia– había sido
victorioso en la mayoría de los casos.36 El paso guarda consistencia con retórica
nacionalista observable durante elecciones recientes.
e) Canadá
Pero no todo es rechazo. Canadá es un ejemplo alternativo que debe seguirse.
El motivo es su trasfondo: la estructura constitucional de Canadá hace que la adhesión
a un convenio internacional de tal envergadura tenga implicaciones locales importantes.
Dado que Canadá está compuesto por provincias y territorios independientes, ello fue
difícil, tanto jurídica como políticamente.37 Implicó casi 20 años de negociaciones entre
el gobierno federal, provincias y territorios.38 Como resultado, el 15 de diciembre de
2006 Canadá se convirtió en el signatario 155 del Convenio CIADI.
C. El futuro del arbitraje de inversión
George Bernard Shaw quien solía decir: ‘nunca pronostiques, y mucho menos
sobre el futuro’.39 Desobedeceré su sugerencia.
El arbitraje de inversión ha llegado para quedarse. Y ello es plausible. A
continuación fundamento ambas aseveraciones.
Es de preverse que el éxito del arbitraje de inversión continúe no sólo en el
futuro inmediato, sino el mediato. El motivo es doble: la infraestructura jurídica
mundial existente y el corpus de casos y literatura.
A la fecha, existen más de 2680 tratados de inversión, y los Estados siguen
negociando y celebrándolos. A su vez, el CIADI nunca ha sido más exitoso.40
35
Es al legislativo ecuatoriano a quien le corresponde denunciar bajo el artículo 419 de su Constitución.
Además que la denuncia ocurrió semanas después de una importante y publicitada victoria en una
demanda por más de dos mil millones de dólares.
37
Inter alia, dicho acto conlleva la necesidad de emitir una ley uniforme que facilite la aplicación y
armonice las leyes canadienses en concordancia con dicha convención.
38
La complejidad se magnificó dado que el Convenio CIADI carece de cláusula federal.
39
La cita no es textual.
40
De hecho, podría decirse que es víctima de su propio éxito.
36
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Existen casi 300 laudos de arbitraje de inversión. Y la mayoría de ellos es de la
última década. Ello hace de esta materia el área más dinámica del derecho internacional.
Además, constituye una rica masa crítica de conocimiento sobre la materia. Y la
literatura juega un papel importante. Se observa que cada laudo es disectado y comentado
por expertos en todas las esquinas del planeta–a veces en forma ardua.41 Ello propicia
una dialéctica mundial que enorgullecería a Georg Hegel, y que ha tenido como resultado
la creación de una verdadera ciencia especializada.
Por lo anterior, es predecible que el derecho y arbitraje de inversión no sólo
permanezca con nosotros, sino que se acentúe tanto en volumen como contenido.
Si el pronóstico es acertado, todos saldremos ganando.
REFERENCIAS
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US trade policies in a changing world economy. Cambridge, MA: The Massachussets Institute of Tecnology – MIT Press, 1987.
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Rick. Political ideologies: an introduction. 2. ed. London: Routledge, 1994.
GONZÁLEZ DE COSSÍO, Francisco. Arbitraje de inversión. México, DF: Porrúa, 2009.
______. Estado de Derecho: un enfoque económico. México, DF: Porrúa, 2007.
JACKSON, John H.; DAVEY, William J. & SYKES JR., Alan O. Legal problems of
international economic relations. St. Paul, MN: West Publishing Co., 1995.
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QUEZADA, Ernesto. La doctrina Drago, su esencia y concepto amplio y claro. Revista
de la Universidad de Buenos Aires, tomo XLIII, p. 355 y siguientes, Buenos
Aires, 1919.
SHEA, Donald R. The Calvo Clause, a problem of inter-american and international law and diplomacy. Minneapolis, MN: University of Minnesota Press, 1955.
41
Expertos de diferentes jurisdicciones son tan prestos a aplaudir como a criticar laudos que distan de
reflejar los paradigmas más aceptados sobre la materia.
21
Assassinos em série: uma questão legal ou psicológica?
2
Assassinos em série:
uma questão legal ou psicológica?
Serial killers: a legal
or psychological matter?
TAÍS NADER MARTA
Advogada; professora universitária; bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Bauru –
Instituição Toledo de Ensino – FDB/ITE; especialista em Direito Processual e em Direito
Constitucional, pela Universidade do Sul de Santa Catarina – Unisul. Atualmente, cursa pós-graduação
stricto sensu (Mestrado em Direito), tendo como linha de pesquisa “Sistema Constitucional de
Garantias”, sob a coordenação do Livre-Docente Luiz Alberto David de Araujo,
no Centro de Pós-Graduação da Instituição Toledo de Ensino – ITE, em Bauru.
E-mail para correspondência: [email protected].
HENATA MARIANA DE OLIVEIRA MAZZONI
Professora universitária; bacharel em Psicologia e Direito, pela Universidade do
Sagrado Coração – USC, de Bauru. E-mail para correspondência: [email protected].
RESUMO
A pessoa nasce ou se torna criminosa? Nasce ou se torna um serial killer, em razão
do meio em que vive e de seus traumas de infância? Isso é um mistério na psiquiatria,
e os estudiosos, em geral, ainda não conseguiram resolvê-lo nem entrar num
consenso sobre ele. Entretanto, não pode ser aceita a simplista explicação de que o
indivíduo nasceu assim e, não tendo pedido para nascer assim, não tem culpa e,
portanto, deve ser desculpado e absolvido quando comete crimes cruéis.
Palavras-chave: assassinos seriais, loucura, crueldade, psicóticos, psicopatas.
ABSTRACT
Can a person be born or become a criminal? Born or become a serial killer because of
the environment they live and their childhood trauma? This is a mystery in psychiatry
and scholars generally have failed to resolve or come to a consensus. However, it
can be accepted the simplistic explanation that the individual was born that way,
and not having asked to be born, would not fault and therefore should be excused
and acquitted when committing vicious crimes.
Keywords: serial killers, madness, cruelty, psychotic, psychopaths.
22
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1. INTRODUÇÃO
O crime é um fato tão antigo quanto o ser humano, e sempre impressionou
a humanidade. Dos crimes contra a pessoa, o homicídio é um dos que se apresenta
de maneira mais preocupante perante os indivíduos. Dentre todos os milhões de
casos de crimes horrendos cometidos através dos séculos, existem aqueles que
parecem ter vida própria. Apesar da passagem dos anos, eles continuam a manter
seu fascínio sobre a imaginação coletiva e a despertar o medo atávico de todos.
Por alguma razão, cada um desses casos – e as histórias que os acompanham
– toca em algo nas profundezas da condição humana, talvez devido às personalidades envolvidas, à insensatez da corrupção criminal, ao persistente incômodo da
dúvida sobre uma justiça que não se fez ou ao desapontamento de se saber que
ninguém foi considerado culpado. De qualquer forma, os casos permanecem como
mistério e deixam todos perplexos, ferindo fundo os indivíduos em suas considerações
sobre eles próprios como seres humanos e sobre suas relações sociais (DOUGLAS
& OLSHAKER, 2000).
Existem muitos aspectos a ser analisados sobre tal tema, dentre eles a dúvida
que surge: seriam os serial killers portadores de psicose, sofrendo com delírios e
alucinações, ou seriam delinquentes vaidosos buscando o crime como satisfação
de prazer, sofrendo então de uma psicopatia? E mais: em um ou outro caso, qual o
melhor tratamento (punição) a ser dado pelo Direito?
No centro do mundo misterioso e instigante do homicida serial, será encontrada a agressividade hostil, destrutiva e sádica, que se alimenta de profundos
sentimentos ambivalentes, mórbidos, obsessivos, cujo alvo, no final das contas, é o
próprio absoluto. Suas raízes remontam ao amor primitivo da criança, no qual estão
fundidos impulsos destrutivos; remontam à época primordial em que imperava o
que Freud chamou de sentimento oceânico, pelo qual a criança se sente fundida,
misturada no universo e com ele identificada, numa experiência primária de
onipotência narcisística. Portanto, o alvo das fantasias, das necessidades e da
hostilidade destrutiva do homicida serial é o próprio absoluto. Um absoluto jamais
alcançado e jamais alcançável, porque sempre procurado e perseguido por vias
profundamente equivocadas e mórbidas (SÁ, 1999).
Ademais, nos delinquentes, a vaidade se reveste de caracteres mórbidos,
nitidamente antissociais. A vaidade mórbida assoma, pois, em todas as partes.
Característica predominante na psicologia delituosa, tanto no crime individual como
nas multidões delinquentes. Quando, num país qualquer, ocorrem delitos de grande
repercussão, analisados pela imprensa e comentados pelo público, cria-se uma
atmosfera criminógena apropriada para tentar a vaidade dos predispostos. De acordo
Assassinos em série: uma questão legal ou psicológica?
23
com Lombroso, “a vaidade profissional é maior nos delinquentes do que nos cômicos,
nos literatos, nos médicos e nas mulheres elegantes” (INGENIEROS, 2003).
Se a luta contra o delito vier a consistir numa organização racional dos
meios preventivos, que impeçam os atos antissociais dos delinquentes, estas noções
de psicologia terão utilidade em função da polícia e da justiça. A ciência criminológica
começa a exercer influência sobre a evolução do Direito Penal.
Ocorre que as razões para que indivíduos cometam esses crimes continuam a
fascinar mais do que muitos outros, até porque assiste-se a uma sucessão interminável
de assassinos e predadores sexuais que, embora possam ter algum grau de doença
mental – já que não se pode, de modo deliberado, tirar outras vidas de maneira brutal
e ser mentalmente saudável –, ainda assim, podem ser penalmente responsáveis, já
que o fato de eventualmente possuírem alguma doença mental não significa que não
saibam diferenciar o certo do errado, ou que sejam necessariamente incapazes de
adequar seu comportamento e suas fantasias às regras sociais.
Mas é possível também que haja alguns criminosos tão fora de si a ponto de
não saberem que o que estão fazendo é errado, ou os que tendem a ter alucinações
ou ilusões, mas esses tipos são fáceis de ser identificados, pois demonstram ser tão
desorganizados e loucos que, em geral, são apanhados em pouco tempo.
O presente artigo se propõe, por meio de uma apreciação crítica, a analisar
quem são, como devem ser julgados, punidos e tratados os serial killers, além de
apresentar aspectos psicológicos a eles relacionados.
2. SERIAL KILLERS
Os assassinos em série (serial killers) constituem um capítulo à parte na
criminologia e uma dificuldade para a psiquiatria, uma vez que não se encaixam em
nenhuma linha específica do pensamento. Esses casos desafiam a psiquiatria e acabam
virando um duelo entre promotoria e defesa sobre a dúvida de ser o criminoso louco,
meio louco, normal, anormal etc. Do ponto de vista criminológico, quando um
assassino reincide em seus crimes com um mínimo de três ocasiões e com um certo
intervalo de tempo entre cada um, é conhecido como assassino em série.
A diferença do assassino em massa, que mata várias pessoas de uma só vez
e sem se preocupar pela identidade destas, e o assassino em série é que este elege
cuidadosamente suas vítimas, selecionando, na maioria das vezes, pessoas do mesmo
tipo e com características semelhantes. Aliás, o ponto mais importante para o
diagnóstico de um assassino em série é um padrão geralmente bem definido no modo
como ele lida com seu crime. Com frequência, eles matam seguindo um determinado
padrão, seja através de uma determinada seleção da vítima, seja de um grupo social
24
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
com características definidas, como prostitutas, homossexuais, policiais etc., por
exemplo. As análises dos perfis de personalidade estabelecem, como estereótipo dos
assassinos em série (evidentemente aceitando-se muitas exceções), homens jovens,
de raça branca, que atacam preferentemente as mulheres, sendo que seu primeiro
crime foi cometido antes dos 30 anos. Alguns sofreram uma infância traumática,
devido a maus-tratos físicos ou psíquicos, motivo pelo qual têm tendência a isolar-se
da sociedade e/ou vingar-se dela (BALLONE, 2003).
Como no resto do mundo, a maioria dos assassinos em série no Brasil é
constituída de homens brancos, que têm entre 20 e 30 anos, vieram de famílias
desestruturadas, sofreram maus-tratos ou foram molestados quando crianças. A
psicóloga clínica e forense Maria Adelaide Caires (apud CASOY, 2004: 18) apontou
– ao analisar os “casos brasileiros” – alguns pontos comuns entre eles: “[...] infância
negligenciada, violência sexual precoce, inabilidade escolar, sem norte, sem “casa”
e sem um agente disciplinador”.
Pesquisas indicam que cerca de 82% dos assassinos seriais sofreram abusos
físicos, sexuais, emocionais ou foram negligenciados e abandonados quando
crianças. Segundo Ilana Casoy, “é raro um (assassino serial) que não tenha uma
história de abuso ou negligência dos pais. Isso não significa que toda criança que
tenha sofrido algum tipo de abuso seja um matador em potencial”. Quando
crianças, geralmente, os assassinos em série tiveram um relacionamento interpessoal
problemático, tenso e difícil. Segundo a referida escritora, a chamada “terrível
tríade” parece estar presente na infância de todo serial killer. Os elementos que
compõem esta tríade são os seguintes: enurese noturna (urinar na cama) em idade
avançada, destruição de propriedade alheia e crueldade com animais e outras
crianças menores (CASOY, 2002).
Estas frustrações, ainda segundo análises de estereótipos, introduzem os
assassinos em série num mundo imaginário, melhor que seu real, onde ele revive
os abusos sofridos, identificando-se, desta vez, com o agressor. Por esta razão,
sua forma de matar pode se caracterizar pelo contacto direto com a vítima:
utiliza armas brancas, estrangula ou golpeia, quase nunca usa arma de fogo.
Seus crimes obedecem a uma espécie de ritual onde se misturam fantasias
pessoais com a morte. A análise do desenvolvimento da personalidade desses
assassinos seriais geralmente denuncia alguma anormalidade importante. Atos
violentos contra animais, por exemplo, têm sido reconhecidos como indicadores
de uma psicopatologia que não se limita a estas criaturas. Segundo o cientista
humanitário Albert Schweitzer (apud BALLONE, 2003), “quem quer que tenha se
acostumado a desvalorizar qualquer forma de vida corre o risco de considerar
que vidas humanas também não têm importância”.
Assassinos em série: uma questão legal ou psicológica?
25
Além disso, muitos homicidas seriais têm inteligência privilegiada (Ed
Kemper1, por exemplo, é gênio com QI superior a 140), o que se mostra paradoxal,
porquanto, ao mesmo tempo em que eram inteligentes, tiveram fraco desempenho
nas escolas, onde mais da metade deles não conseguiram sequer concluir o ciclo
escolar, obtendo notas medíocres (BONFIM, 2004).
De acordo com Casoy (2002: 16), “[...] serial killers são indivíduos que
cometem uma série de homicídios durante algum período de tempo, com pelo menos
alguns dias de intervalo entre eles”.
A vítima representa na verdade, na maioria das vezes, um objeto de fantasia
no qual o criminoso exercita seu poder e seu domínio. Também alguns serial killers
cometem seus crimes motivados por ódio às mulheres, desejo de controle, dominação
e vinganças reais ou algumas vezes imaginárias (CASOY, 2002).
O desejo de controle e poder sobre a vítima vem, em grande parte, explicado
pela violência e pelos abusos que a maioria desses indivíduos sofreu em sua infância.
Quanto à sua forma de atuar, os assassinos em série se dividem em
organizados e desorganizados. Organizados são aqueles mais astutos, que preparam
os crimes minuciosamente, sem deixar pistas que os identifiquem. Os desorganizados, mais impulsivos e menos calculistas, atuam sem se preocupar com eventuais
erros cometidos.
2.1. Serial killers organizados
São pessoas solitárias por se sentirem superiores e julgarem que ninguém
pode ser suficientemente bom para eles. São muitas vezes casados e socialmente
competentes, conseguindo – em muitos casos – bons empregos por parecerem
confiáveis e aparentarem saber mais do que na realidade sabem. Para eles, o crime
é um jogo: acompanham a perícia e os trabalhos da polícia; costumam observar de
maneira atenta os noticiários e retornar ao local onde mataram. Ademais, costumam
planejar o crime de maneira cuidadosa e carregar o material necessário para cumprir
suas fantasias e, ao interagirem com a vítima, gratificam-se com o estupro e a tortura.
Deixam poucas evidências no local do crime, escondem ou queimam o corpo da
vítima e levam um pertence da mesma como lembrança (CASOY, 2004).
1
De acordo com Newton (2005: 227), confinado em Vacaville, esse assassino serial norte-americano
– que matava estudantes e admitiu que depois cortou em tiras a carne de pelo menos duas vítimas
para cozinhá-las em uma panela de macarrão e devorar isso como uma forma de possuir sua presa
– se uniu a um grupo de internos voluntários para gravar livros para cegos e completou mais livros
que qualquer outro prisioneiro, com cerca de cinco mil horas de gravação feitas por ele.
26
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
2.2. Serial killers desorganizados
Também são seres solitários, mas tal característica decorre do fato de serem
estranhos, esquisitos. A característica de desorganização é uma marca: são
desorganizados com a casa, com o carro, com a aparência, com o trabalho, com o
estilo de vida etc. São introvertidos e não possuem condição de planejar um crime
de maneira eficiente. Casoy (2004) ainda descreveu as seguintes características:
[...] De forma geral agem por impulso e perto de casa, usando as armas ou os
instrumentos encontrados no local da ação. É comum manterem um diário
com anotações sobre suas atividades e vítimas, trocam de emprego
frequentemente e tentam fazer carreira militar ou similar, mas não passam no
teste. É raro manter [sic] qualquer contato com a vítima antes do crime, agem
de forma furiosa, gratificam-se com estupro ou mutilação post mortem e,
nesse grupo, é comum encontrarmos canibais e necrófilos. Têm mínimo
interesse no noticiário sobre seus crimes e deixam muitas evidências no
local em que mataram (CASOY, 2004: 23).
3. ASSASSINOS EM SÉRIE: PSICÓTICOS OU PSICOPATAS?
A questão que se coloca, quando se fala em assassinos em série, é se seriam
eles responsáveis por seus atos, ou seja, se cometeriam os crimes devido a um transtorno
metal (psicose) ou por simples maldade, gosto pelo sofrimento alheio, desejo em
transgredir as regras, sendo, então, nesse caso, portadores do transtorno de personalidade
antissocial – TPA (também conhecidos como sociopatas ou psicopatas).
Sobre esta questão, Ballone (2005) explicou que:
[...] podemos dizer que o assassino em série psicótico atuaria em consequência
de seus delírios e sem crítica do que está fazendo, enquanto o tipo assassino em
série psicopata atuaria de acordo com sua crueldade e maldade. O psicopata
tem juízo crítico de seus atos e é muito mais perigoso, devido à sua capacidade
de fingir emoções e se apresentar extremamente sedutor, consegue sempre
enganar suas vítimas.
Evidencia-se, então, que o assassino em série tanto pode ser classificado
como psicótico quanto como psicopata, sendo que, de acordo com a legislação
brasileira, teria ele, em decorrência de ser considerado responsável ou não por
seus atos, diferentes penalidades.
O indivíduo psicótico tem como características principais alucinações e delírios.
Alucinações são experiências de percepções que não têm fundamento na realidade. A
Assassinos em série: uma questão legal ou psicológica?
27
pessoa ouve, vê, sente ou cheira coisas que, na realidade, não existem. A mais comum
das alucinações é a auditiva, por meio da qual a pessoa ouve vozes que se referem ao
seu comportamento, criticando ou dando ordens. É importante destacar que, para os
indivíduos que experimentam alucinações, estas parecem ser reais, sendo a pessoa
incapaz de distinguir o que é alucinação e o que é real (HOLMES, 1997).
As alucinações estão relacionadas com os sentidos, as percepções. Já os
delírios são processos do pensamento do indivíduo.
Em relação ao delírio, a pessoa possui crenças que são mantidas, apesar de
evidências em contrário, ou seja, fazem parte apenas do pensamento do indivíduo.
Dentre os delírios mais comuns, destacam-se os seguintes: delírios de perseguição,
nos quais o indivíduo pensa que há pessoas espionando-o, conspirando contra ou
querendo prejudicá-lo; delírios de referência, onde objetos, acontecimentos ou
pessoas são percebidos como apresentando algum significado especial para a
pessoa, dirigidos especificamente a ela; e delírios de identidade, onde os indivíduos
acreditam ser outra pessoa. As pessoas normais também, por vezes, mantêm alguma
crença que não tem base na realidade; contudo, as crenças delirantes são mais
bizarras e mais resistentes a evidências contrárias do que as distorções que tais
pessoas vivenciam em seu cotidiano (HOLMES, 1997)
É evidente que o assassino em série não é uma pessoa normal. Mas não
significa que ele não tenha consciência do que faz. Os assassinos em série, em sua
maioria, são diagnosticados como portadores do transtorno de personalidade
antissocial e, muito embora possam não ter domínio para controlar seus impulsos,
sabem muito bem distinguir o que é certo e errado, tanto que se preocupam em não
ser apanhados (BALLONE, 2005).
Sobre a diferença entre o criminoso portador do transtorno de personalidade
antissocial e o portador do transtorno psicótico, este sim sujeito à medida de segurança
segundo a legislação brasileira, Kaplan, Sadock & Grebb (1997) consideraram
que, em relação aos pacientes com transtorno de personalidade antissocial, em
termos de conteúdo mental, estes sempre revelam uma ausência de delírios e
outros sinais de pensamentos irracionais, demonstrando, pelo contrário, um
aumentado senso de realidade, bem como uma boa inteligência verbal.
Geralmente, pessoas com o referido transtorno se apresentam como normais,
muitas vezes extremamente simpáticas e cativantes. Contudo, seus históricos irão
revelar mentiras, fugas de casa e da escola, brigas, abuso de drogas e atividade
ilegais (KAPLAN, SADOCK & GREBB, 1997). Tem-se, com isso, que a pessoa portadora
do transtorno de personalidade antissocial, na maioria dos casos, em sua infância e
adolescência, apresentava transtorno de conduta.
28
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
Pessoas com transtorno de personalidade antissocial têm como característica,
bastante acentuada, a ausência de ansiedade, culpa ou remorso. Ao cometer um
crime, por mais repugnante que seja aos olhos da sociedade, elas não demonstram
qualquer sentimento, a não ser o prazer. Aos olhos das outras pessoas, são tidas
como indivíduos “sem coração” (HOLMES, 1994).
O psicopata busca constantemente seu próprio prazer (mod.). Ele age como
se tudo lhe fosse permitido. Excita-se com o risco e com o proibido. Quando mata,
tem como objetivo final humilhar a vítima para reafirmar sua autoridade e realizar
sua autoestima. Para ele, o crime é secundário e o que interessa, de fato, é o
desejo de dominar, de sentir-se superior. De acordo com Antônio de Pádua Serafim2
(apud CASOY, 2004: 28):
[...] São considerados “predadores intraespécies” que usam charme,
manipulação, intimidação e violência para controlar os outros e para satisfazer
suas próprias necessidades. Em sua falta de confiança e de sentimento pelos
outros, eles tomam friamente aquilo que querem, violando as normas sociais
sem o menor senso de culpa ou arrependimento.
Marcante característica, presente nesse transtorno, é a contrariedade às
normas sociais de conduta. Para esses indivíduos (psicopatas), as regras sociais
não constituem uma força limitante, e a ideia de um bem comum é meramente
uma abstração confusa e inconveniente, pois:
[...] o transtorno de personalidade antissocial é caracterizado por atos antissociais
e criminosos contínuos, mas não é sinônimo de criminalidade. Em vez disso,
trata-se de uma incapacidade de conformar-se às normas sociais que envolvem
muitos aspectos do desenvolvimento adolescente e adulto do paciente (KAPLAN,
SADOCK & GREBB, 1997: 693).
Trata-se de pessoas que buscam enganar e manipular os outros para, desse
modo, obter alguma vantagem.
Outra característica de pessoas portadoras do transtorno é não aprender
com a punição. O indivíduo pode até ser preso, ficar anos na penitenciária, mas
não vai aproveitar esse tempo para “refletir” sobre seus atos, se arrepender; muito
pelo contrário, muitos vão aproveitar essa tempo para arquitetar seu próximo crime,
quando em liberdade.
Indivíduos com o transtorno de personalidade antissocial, por não apresentarem determinados sintomas psicológicos, como depressão, delírio, alucinações e
2
Psicólogo clínico e forense.
Assassinos em série: uma questão legal ou psicológica?
29
ansiedade, geralmente não recebem o diagnóstico de problema psicológico e não
são, portanto, submetidos a tratamento. Como seu comportamento normalmente é
ilegal, eles tendem a ser punidos, e não tratados, o que, como se viu, demonstra
pouca efetividade uma vez que não aprendem com a punição (HOLMES, 1997).
Quanto às explicações há, ainda, apenas hipóteses acerca das causas do transtorno
de personalidade antissocial. Para Holmes (1994: 19):
É importante reconhecer que nenhuma explicação ou conjunto de evidências pode
explicar todos os casos de TPA. Isto sugere que há provavelmente diferentes
formas de transtorno e que pode haver mais de uma explicação correta para ele.
O comportamento dos indivíduos com transtorno de personalidade antissocial
é tradicionalmente explicado como consequência de fatores socais e familiares.
Contudo, não podem ser descartadas as descobertas de pesquisas que indicam
haver diferenças cerebrais entre psicopatas e pessoas normais (CASOY, 2002).
4. DEFESA POR INSANIDADE USADA POR SERIAL KILLERS
Em qualquer caso de homicídio, a primeira responsabilidade dos promotores
e dos advogados é a determinação do estado mental do suspeito. Para isso, instaurase o chamado incidente de sanidade mental.
O incidente de sanidade mental é instaurado quando existe a suspeita de que
o acusado, em qualquer tipo de crime, possa ser doente mental. O processo
fica suspenso e o acusado é submetido ao exame, até que se comprove ou se
descarte essa possibilidade. No caso de haver um quadro mental que tenha
relação direta com o crime cometido, o réu é isento de pena (inimputável) e a
medida de segurança é aplicada, por ser o criminoso considerado perigoso. A
medida de segurança prevê tempo mínimo de internação (três anos), mas não
tempo máximo. A desinternação fica condicionada à cessação de
periculosidade, o que pode significar prisão perpétua em alguns casos
incuráveis (CASOY, 2004: 267).
A eventual insanidade, frequentemente alegada na tentativa de absolver o
assassino serial, quase nunca é constatada, realmente, pela psiquiatria, pois o fato
de o assassino ser portador de algum transtorno de personalidade ou parafilia não
faz dele um alienado mental.
Além disso, o transtorno de personalidade antissocial é, por vezes, citado no
caso de assassinos condenados com uma alegação de responsabilidade diminuída
(SIMS, 2001). Em contrapartida a essas afirmativas citadas por Sims, Cordeiro
(2003: 64) acrescentou que:
30
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
Tanto Kurt Schneider (1950) como Kraeplin (1896) descreveram as tipologias da
personalidade psicopáticas, não considerando o comportamento antissocial na
definição de personalidade anormal, considerada apenas em termos estatísticos
como um desvio da média geral. Trata-se de personalidades que provocam
sofrimento nos outros e em si (geralmente em menor grau) [...]
O termo abrange uma variedade de personalidades pervertidas, mas não
tem significado para a formulação de uma teoria ou para a pesquisa nem facilita a
comunicação clínica e a previsão. Tal conceito é apenas um juízo moral, disfarçado
de diagnóstico clínico (BLACKBURN, 1988).
Quando capturados, estes indivíduos costumam simular insanidade, alegando
múltiplas personalidades, esquizofrenia ou qualquer coisa que os exima de
responsabilidades, mas, na realidade, aproximadamente, apenas 5%3 dos assassinos
em série podem ser considerados mentalmente doentes no momento de seus crimes
(BALLONE, 2003).
De acordo com Michael Newton (2005: 105):
[...] De fato, as estatísticas mostram que apenas 1% dos delinquentes suspeitos
americanos pleiteiam insanidade no julgamento e apenas um, em cada três desses,
é finalmente absolvido. Os assassinos seriais, com seu bizarro ornamento de
sadismo, necrofilia e similares, parecem idealmente adequados para pleitos de
insanidade, mas mesmo aqui a vantagem contra absolvição é extrema. Desde
1900, nos Estados Unidos, apenas 3,6% dos serial killers identificados foram
declarados incompetentes para julgamento, ou liberados por insanidade.
Socialmente, os assassinos em série têm comportamento acima de qualquer
suspeita, ou seja, dissimulam muito bem seu lado criminoso, criando um verdadeiro
“verniz social”, como mencionado pela escritora Ilana Casoy. Isso deixa claro que
eles têm consciência de que fazem algo contrário às regras sociais, sendo, portanto,
difícil aceitar a alegação de inimputabilidade.
Também é evidente que, nos assassinos seriais, não existe a ausência de
compreensão da gravidade e das consequências de seus atos, isto explicado pela
empatia, conforme mencionado pelo psiquiatra forense Brent E. Turvey (apud
3
A título de exemplo, pode ser citado o caso de “Chico Picadinho”. De acordo com Casoy (2004), em
seu julgamento, a defesa alegou que o motivo do crime não fora torpe, justificando que Francisco
sofria de insanidade mental e seus crimes eram consequências da perturbação do réu. Alegou-se
também que aquele era um homicídio simples, sem dolo, pois o motivo da retalhação do corpo da
vítima não era sua ocultação, e sim o transe de perturbação mental do momento. A acusação
discordou, obviamente.
Assassinos em série: uma questão legal ou psicológica?
31
CASOY, 2002). O criminoso sabe que a vítima está humilhada, amedrontada e sofrendo,
pois é exatamente este resultado que eles buscam com seus atos.
[...] as doenças mentais propriamente ditas (psicoses) não têm sido apontadas
como causas muito frequentes de sociopatia. E, nas situações de criminalidade
mais graves, essas doenças representariam 5% (STUMPFL, 1936) da sua etiologia.
Em contrapartida, em cerca de 80% dos criminosos, têm sido comprovados
antecedentes pessoais e familiares de psicopatia (FONSECA, 1997: 517).
O sistema legal americano fornece ajuda de custo para indivíduos cujos
comportamentos aberrantes tenham sido compelidos por doença mental,
dispensando-os da punição como criminosos comuns. O público em geral ficou
indignado, nos últimos anos, por casos como aquele do assassino presidencial, John
Hinckley, em que os veredictos de “não culpado por insanidade” privaram réus da
execução ou prisão e, em vez disso, consignaram-nos a instituições mentais por
um prazo indefinido. As pesquisas de opinião pública revelam um consenso de que
muitos, ou a maioria dos delinquentes acusados, tentam “admitir culpa e pedir
clemência”, com esquemas de falsificação de insanidade, grande número deles
deslizando por brechas e cumprindo um “tempo fácil”, antes de ser liberados mais
uma vez para a sociedade (NEWTON, 2005).
5. PENA E MEDIDA DE SEGURANÇA
O homem nasceu eminentemente livre e apresenta – desde seu aparecimento
sobre a Terra – duas dimensões fundamentais, que são a “sociabilidade” e a
“politicidade”. Na realidade, são dois aspectos de um único fenômeno. Reforçando
tal ideia, Betioli ensinou que:
O homem é “sociável” e por isso tende a entrar em contato com seus semelhantes
e a formar com eles certas associações estáveis; porém, começando a fazer parte
de grupos organizados, ele torna-se um “político”, ou seja, membro de uma
“polis”, de uma cidade, de um Estado e, como membro de tal organismo, ele
adquire certos direitos e assume certos deveres (BETIOLI, 2000: 18).
A origem da pena coincide com o surgimento do Direito Penal em razão da
constante necessidade da existência de sanções penais em todas as épocas e em
todas as culturas. O homem é obrigado a abrir mão de parcela de sua liberdade
para poder usufruir da porção que manteve consigo e para garantir o bem comum.
A pena é a consequência jurídica principal que deriva da infração penal. Conforme
destacou Julio Fabbrini Mirabete:
Nos grupos sociais primitivos, a peste, a seca e outros fenômenos naturais
maléficos eram considerados manifestações divinas (totem). Para conter a ira
32
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
dos deuses, criam-se regras de proibição (sociais, religiosas e políticas), conhecidas por tabu, as quais, uma vez desobedecidas, acarretavam determinados
castigos. Assim, a infração totêmica – ou a desobediência às regras tabu – deu
origem ao que hoje se denomina crime e pena (MIRABETE, 2003: 35).
Fazendo uma retrospectiva histórica, pode-se concluir que as penas e os
castigos que o Estado impôs àqueles transgressores das normas foram evoluindo
em face de um sentido maior de humanização. Cesare Beccaria preconizou – já
em 1764 – que as penas desumanas e degradantes do primitivo sistema punitivo
cederam seu espaço para outras, com senso mais humanitário, com maior finalidade
de recuperação do delinquente:
É melhor prevenir os crimes do que ter de puni-los; e todo legislador sábio
deve procurar antes impedir o mal do que repará-lo, pois uma boa legislação
não é senão a arte de proporcionar aos homens o maior bem-estar possível e
preservá-los de todos os sofrimentos que se lhes possam causar, segundo o
cálculo dos bens e dos males da vida (BECCARIA, 1997: 27).
Desta forma, as penas corporais foram substituídas pelas penas privativas de
liberdade, persistindo este objetivo de humanização das penas, ainda nos dias de hoje.
A pena não tem uma definição genérica, válida para qualquer lugar e qualquer
momento. Consiste em um conceito legal de cada código penal em particular, em que
são elencadas sanções, cujas variações refletem as mudanças vividas pelo Estado.
Penas e medidas de segurança são formas de reação penal, dirigidas aos
delitos praticados no seio da sociedade. Sabe-se que ambas configuram formas de
equilíbrio social e, como tal, se destinam à preservação dos bens coletivamente
eleitos como relevantes à sociedade. Luiz Flávio Gomes (1990) elucidou que:
Até o surgimento do positivismo italiano (século XIX, segunda parte), as penas
constituíam a forma básica (senão única) de reação penal; os positivistas italianos
(Lombroso, Ferri e Garofalo), no entanto, baseados no naturalismo e no
determinismo, criaram e desenvolveram a ideia de que o homem criminoso deve
ser tratado por meio de medidas até que alcance a cura. Duas, portanto, as
fundamentais características das medidas de segurança então idealizadas: elas
devem ocupar o lugar da pena que tem por fundamento a culpabilidade (os
positivistas negavam a culpabilidade e, assim, preconizavam a abolição da pena)
e, ademais, devem durar o tempo necessário para a cura (tempo indeterminado).
Se a história do Direito Penal terminasse aí, diríamos que o único sistema de
reação penal teria sido o monista, que consiste na contemplação positiva de
uma consequência única ao delito: pena, baseada na culpabilidade, conforme os
clássicos, ou medida de segurança, baseada na periculosidade, segundo os
Assassinos em série: uma questão legal ou psicológica?
33
positivistas italianos. Ocorre que, desde o projeto de Código Penal suíço,
elaborado por Karl Stoos em 1893, ambas as formas de reação penal passaram a
ser previstas conjuntamente nos Códigos Penais de incontáveis nações: aí está
a origem do denominado sistema dualista ou dualismo (ou, ainda, doble via),
que significava a previsão em conjunto das duas modalidades de sanção penal:
pena e medida de segurança (GOMES, 1990: 257).
René Ariel Dotti explicou que:
A pena pressupõe a culpabilidade; a medida de segurança pressupõe a
periculosidade. A pena tem seus limites mínimo e máximo predeterminados (CP,
arts. 53, 54, 55, 58 e 75); a medida de segurança tem um prazo mínimo de 1 (um) a
3 (três) anos, porém o máximo da duração é indeterminado, perdurando a sua
aplicação enquanto não for averiguada, mediante perícia médica, a cessação de
periculosidade (CP, art. 97, §1º); pena exige a individualização, atendendo às
condições pessoais do agente e às circunstâncias do fato (CP, arts. 59 e 60); a
medida de segurança é generalizada à situação de periculosidade do agente,
limitando-se a duas únicas espécies: internação e tratamento ambulatorial – CP,
art. 96 (DOTTI, 1986: 621).
Na mesma intenção, expôs Luiz Flávio Gomes (1990) que:
Penas e medidas de segurança, conceitualmente, distinguem-se porque: 1. a
pena tem natureza retributivo-preventiva enquanto as medidas são só
preventivas; 2. a pena baseia-se na culpabilidade, enquanto a medida, na
periculosidade; 3. a pena aplica-se aos imputáveis e semi-imputáveis – as medidas
não se aplicam aos imputáveis; 4. a pena é proporcional à infração – a
proporcionalidade das medidas está na periculosidade; 5. a pena é fixa enquanto
a medida é indeterminada; 6. a pena está voltada para o passado (crimeculpabilidade-retribuição), enquanto as medidas miram para o futuro (curaprevenção) (GOMES, 1990: 258).
Desta maneira, percebe-se, dos ensinamentos acima transcritos, que, no plano
didático-teórico, existem substanciais diferenças entre penas e medidas de segurança.
5.1. Psicopatia no Código Penal
O Código Penal brasileiro – em seu artigo 26 – estabelece que é isento de
pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou
retardado, não era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente capaz de entender
o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
Se o indivíduo for incluso no caput do referido artigo, será considerado inimputável. O mesmo artigo 26, em seu parágrafo único, estabelece a possibilidade de semi-
34
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
imputabilidade quando o agente, em virtude de perturbação de saúde mental, ou por
desenvolvimento mental incompleto ou retardado, não era inteiramente capaz de entender
o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
Sobre o sistema adotado no Brasil, conforme a regra do artigo 26 e parágrafos
do Código Penal, Edilson Mougenot Bonfim (2004) esclareceu que:
Os diferentes sistemas punitivos para casos onde se discute a imputabilidade
penal (capacidade do agente de compreender o caráter ilícito do fato e de
determinar-se de acordo com esse entendimento – ou seja, a responsabilidade
penal) são os seguintes: aqueles onde as ações criminosas são imputadas ou
inimputadas aos acusados, ensejando uma total irresponsabilidade criminal. E
aqueles onde se aceita a chamada “região fronteiriça”, prevendo-se a semiimputabilidade, uma forma de responsabilidade penal diminuída, que permite a
atenuação da pena ou a substituição da pena por uma medida de segurança
consistente em tratamento médico (BONFIM, 2004: 31).
Sempre que houver dúvida sobre a capacidade de imputação jurídica de um
acusado, o juiz nomeia um perito para a realização de laudo. A perícia verificará o
grau de entendimento e autodeterminação do agente à época dos fatos.4
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Loucura e maldade (que é uma opção humana) não são sinônimos e não
podem ser assim considerados ao julgar-se um serial killer. A confusão muitas
vezes verifica-se na prática porque ocorreu uma vulgarização do conceito de
loucura. O que é louco? Quem é louco? “Você é louco” tornou-se expressão
comum, mas, para realizar julgamentos, é preciso fazê-lo com critérios científicos,
amparados na ciência.
As defesas dos assassinos seriais normalmente pleiteiam a medida de
segurança para seus clientes porque assim surgirá, todo ano, a possibilidade de sua
soltura, já que a lei manda, em eventos como esses – caso se aplique a medida de
segurança –, que se faça anualmente um exame de cessação de periculosidade.
4
Sobre referido exame, a Dra. Maria Adelaide de Freitas Caires ponderou que, na atividade psicológica,
envolvendo questões judiciais, o campo relacional ocorre em meio a uma interposição de fatores
que, em maior ou menor grau, comprometem a disponibilidade do examinando para a avaliação. É
comum ele chegar imbuído de desconfiança e, na sua grande maioria, não só chega com uma “tese”
já bem articulada para provar sua inocência ou sua sanidade, como cônscio das prerrogativas legais
de sua defesa (mentir/omitir informações). Além desses fatores, ele pode estar preocupado com a
repercussão judicial, da qual em geral tem ciência, que o resultado do exame pode suscitar: algumas
de seu interesse; outras contrárias a ele. (CAIRES, 2003: 128).
Assassinos em série: uma questão legal ou psicológica?
35
Ora, os serial killers possuem boa conversa, são convincentes e, em um
desses exames, podem facilmente convencer um psiquiatra de que estão recuperados
e conseguir um laudo favorável à sua soltura, até porque, se instalada a dúvida no
caso concreto, esta poderá ser resolvida a seu favor. Portanto, como se vê, é um
discurso falacioso dizer que a medida de segurança configura a prisão perpétua.
A tendência contemporânea mundial é no sentido da plena responsabilização
dos assassinos seriais, e isso é o correto do ponto de vista geral e social, uma vez
que tal atitude resguarda a sociedade da presença perigosa de tais criminosos,
colocando-os no cárcere, e do ponto de vista individual, tendo em vista que, ao
permanecerem presos, não irão fazer mal aos outros nem a si próprios. Contudo,
sabe-se que esses criminosos seriais, portadores do transtorno de personalidade
antissocial, não aprendem com a punição, ou seja, de nada resolveria deixá-los por
anos no cárcere, sem oferecer nenhum tratamento psicossocial, pois, como a
experiência mostra, quando colocados novamente em liberdade voltam a transgredir.
Não pode ser aceita a simplista explicação de que o indivíduo nasceu assim e,
não tendo pedido para nascer, não teria culpa e, portanto, deveria ser desculpado e
absolvido. Até porque esse “determinismo biológico” é muito perigoso, pois poderia
igualmente retirar o livre-arbítrio e a responsabilidade de diversos criminosos. Se
assim fosse, ninguém mais seria responsabilizado por nada. Entretanto, sabe-se que
o homem é um ser pensante e com vontade, capaz de realizar escolhas e deliberações;
portanto, tendo opções para agir, deve responsabilizar-se pelas escolhas.
O Direito Penal funda-se na responsabilidade individual, e esta não pode ser
cientificamente negada. Até porque ainda não existem tratamentos comprovados
nem remédios que façam efeito para psicopatas. Agora, cabe à ciência começar a
desvendá-los.
36
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
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38
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
Anotações
O desacordo moral razoável na sociedade plural do estado democrático de direito
39
3
O desacordo moral razoável na
sociedade plural do estado
democrático de direito
The moral reasonable disagreement
in plural society of the
democratic state
JOANA TEIXEIRA DE MELLO FREITAS
Advogada; pós-graduada em Direito Constitucional, pela Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais – PUC/MG. E-mail para correspondência: [email protected].
RESUMO
O desacordo moral razoável, termo cravado pela filosofia, constitui-se perante a
ausência de consenso sobre uma questão polêmica cujos argumentos antagônicos
são, ambos, originados de uma conclusão racional. O presente trabalho demonstra
o significado da existência do desacordo moral razoável em uma sociedade plural de
um Estado democrático.
Palavras-chave: desacordo moral razoável, Estado democrático de direito, pluralismo.
ABSTRACT
The moral reasonable disagreement is a term used by the liberal political theory that
consists in the non consensus before a question which contradictory arguments are,
both, originated from a reasonable conclusion. This article shows the meaning of the
existence of reasonable disagreement in a plural society of a Democratic State.
Keywords : moral reasonable disagreement, democratic state, plural society.
40
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1. INTRODUÇÃO
O Supremo Tribunal Federal, recentemente, foi incumbido de responder a
uma questão um tanto polêmica que levantou diversas vozes na sociedade brasileira.
A questão envolve uma série de argumentos a favor e outros contra a interrupção
da gestação de feto anencefálico. A Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental – ADPF n. 54, proposta pela Confederação Nacional dos
Trabalhadores na Saúde, discute a possibilidade, diante da ordem constitucional
brasileira, da interrupção da gestação nos casos de fetos anencefálicos. O mérito
ainda não foi julgado, mas, em decisão de sua liminar, em 1º de julho de 2004, o
Ministro Relator Marco Aurélio de Mello deferiu o pedido, aceitando os argumentos
da Confederação de que a gestação seria uma tortura psicológica para a genitora.
Entretanto, levada ao crivo do plenário, tal decisão não persistiu. Em outubro do
mesmo ano, a liminar foi cassada pelo Plenário do STF, vencidos os Ministros
Marco Aurélio, Carlos Brito, Celso de Mello e Sepúlveda Pertence.
A anencefalia é a má-formação fetal congênita em que o feto não apresenta
hemisférios cerebrais ou o córtex, nem nunca apresentará. Trata-se de anomalia
que resulta na inexistência de consciência, qualquer forma de cognição, vida social,
comunicação e emotividade. Restam, apenas, parcialmente, algumas funções
inferiores do sistema nervoso central, como a respiração, as funções vasomotoras
e a medula espinhal. Mesmo assim, a expectativa de sobrevida, nesses casos, é de,
no máximo, algumas horas após o parto. Essa gravidez é considerada uma gravidez
de risco em que a própria saúde da gestante fica potencialmente perigosa, devido
ao alto número de abortos espontâneos desses fetos. Aproximadamente, 65% dos
fetos anencefálicos morrem quando ainda no útero da mãe1.
A medicina não apresenta nenhuma solução ou qualquer tipo de intervenção
que possa reverter o diagnóstico, e o exame que detecta tal anomalia é considerado
praticamente infalível.
Diante deste quadro, a ADPF n. 54 traz à tona duas posições opostas,
construídas sobre fundamentos razoáveis. Por um lado, a posição a favor da
interrupção de tal gravidez traz diversos argumentos, dentre eles a inexistência de
vida humana, já que não há a formação completa do sistema nervoso; a dignidade
da mãe, que passa por situação análoga à tortura; e outros que não cabe a esse
1
DINIZ, Ribeiro apud BARROSO, Luiz Roberto. Gestação de fetos anencefálicos e pesquisas com
células-tronco: dois temas acerca da vida e da dignidade na Constituição. In: NOVELINO, Marcelo
(Org.). Leituras complementares de Direito Constitucional: direitos humanos e direitos fundamentais.
Salvador: Jus Podivm, 2008. p. 177.
O desacordo moral razoável na sociedade plural do estado democrático de direito
41
artigo explanar. A posição contrária, avessa à interrupção da gravidez no caso de
feto anencefálico, apresenta, também, seus argumentos. Seu principal fundamento
é a defesa do direito à vida do feto, que não deixa de ser um potencial de vida
humana, uma vez que a vida não se dá apenas com a formação saudável do sistema
nervoso central, mas com a fecundação.
Luiz Roberto Barroso, então, posicionando-se na questão, em artigo de sua
autoria, apontou que tal polêmica se insere no que a filosofia chama de desacordo
moral razoável. Não discorrendo muito sobre o assunto, o autor ensinou que “o
desacordo moral razoável é aquele que tem lugar diante da ausência de consenso
entre posições racionalmente defensáveis”2.
Neste ponto, surge o interesse deste trabalho. O que se pretende é esclarecer
a questão do desacordo moral razoável e a posição do Estado democrático de
direito diante de questões polêmicas que sejam entendidas como tal. Já que a
pluralidade é característica ontológica de um Estado democrático, seu posicionamento diante de questões que não são acolhidas por um consenso deve ser de
respeito e tolerância ou de imposição para assegurar o bem comum?
Para tentar responder a essa pergunta, foram trazidos a exame alguns casos
considerados por se caracterizarem como desacordos morais razoáveis que
aconteceram no País e no Direito comparado, além dos ensinamentos doutrinários
sobre o assunto.
Entretanto, antes de se chegar a esse ponto, cumpre destacar que as questões
consideradas como desacordos morais razoáveis que serão tratadas nesse trabalho
não são questões que versam sobre a escolha de políticas públicas, como formação
da vontade do Estado (ideia de justiça, de políticas sociais, dentre outras). O que se
abordará são questões mais próximas ao indivíduo, que dizem respeito a uma esfera
mais íntima, ligada, mesmo, às suas concepções morais. É isso que será visto adiante.
2. O DESACORDO MORAL RAZOÁVEL
Em uma sociedade democrática moderna, segundo explicado por John Rawls3,
em seu livro O liberalismo político, é comum a existência de um pluralismo de ideias
religiosas, filosóficas e morais que são incompatíveis entre si. Essas ideias, apesar de
incompatíveis, não perdem seu caráter de ser razoáveis. Isso porque surgem de
procedimentos que expressam princípios e concepções requeridos pela razão prática.
2
3
Ibid., p. 180.
RAWLS, John. El liberalismo político. Barcelona: Crítica, 2006, passim.
42
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
A origem do desacordo moral vem sendo discutida há muitos séculos. David
Hume4, no século XVIII, argumentava que somente em condições de escassez
moderada é que os conflitos morais surgem, demandando uma justa solução. Onde
haja abundância, de modo que todos tenham o suficiente para satisfazer seus desejos,
a justiça se tornaria uma cerimônia inútil. Conflitos morais que demandam soluções
justas simplesmente não iriam surgir. Hume sugeriu que extrema escassez também
eliminaria o desacordo moral. A razão é que, presumivelmente, os conflitos sobre
os bens em situação tão desesperante seriam resolvidos pela força. Gutmann &
Thompson5 acrescentaram a esse argumento a incompatibilidade de valores e o
entendimento incompleto como causas originárias do desacordo moral razoável.
Jeremy Waldron6, ao explicar a teoria de Rawls, distinguiu dois modelos de
desacordo, um ligado a princípios políticos e outro ligado a um desacordo filosófico
sobre o bem em uma sociedade pluralista. Este último, o desacordo moral razoável,
inclui desacordos entre argumentos religiosos e, também, entre concepções seculares
sobre o bem, como o hedonismo, o asceticismo, o intelectualismo e vários
argumentos éticos de autodesenvolvimento e de autorrealização. Assim, por
exemplo, um católico liberalista pode concordar mais com o marxista cético do que
com seu colega católico conservador sobre questões que envolvam o bem comum.
Pode-se perceber, então, que as questões morais envolvidas em um desacordo
moral estão ligadas a diversas esferas de um indivíduo. Marilena Chauí7 apontou
como elementos do senso moral de cada um a consciência de si, definindo seus
próprios valores e sua própria conduta, e a percepção do outro, respeitando os
valores do próximo e tolerando a sua conduta.
Os desacordos ligados a princípios políticos, por sua vez, demandam critérios
de maior legitimidade. Como vinculam a coletividade, requerem ser justificáveis ao
máximo para que todos se submetam àquela decisão. Gutmann & Thompson8
(2000) apontaram três características de argumentos morais importantes nas
decisões políticas: reciprocidade – devem ser usadas razões compartilhadas ou
que poderiam ser compartilhadas pelos cidadãos; publicidade – discussões em
arenas e fóruns públicos; e responsabilidade.
4
HUME, David apud GUTMANN, Amy & THOMPSON, Dennis. Democracy and disagreement. Cambridge:
Harvard University Press, 2000. p. 21.
5
Ibid., p. 22.
6
WALDRON, Jeremy. Law and disagreement. New York: Oxford University Press, 2004. p. 149-150.
7
CHAUÍ, Marilena apud BARROSO, Luiz Roberto. Op. cit., p. 181.
8
GUTMANN, Amy & THOMPSON, Dennis. Op. cit., passim.
O desacordo moral razoável na sociedade plural do estado democrático de direito
43
Na busca dessa legitimidade, Rawls9, Gutmann & Thompson10 e Waldron11
defenderam, cada um à sua maneira e com seus argumentos, apesar de próximos,
a deliberação democrática como ponto legítimo de tomada de decisões e
questionaram os meios institucionais adotados, na atualidade, para tanto, como a
decisão tomada pela maioria ou o controle judicial, o judicial review.
Gutmann & Thompson12 chegaram a afirmar que os princípios deliberativos
podem injetar coerência moral e racionalidade no processo democrático. Ao encorajar
um senso de propósito moral coletivo, a democracia deliberativa pode expressar uma
concepção de bem comum mais completa possível em uma sociedade moralmente
pluralista. Ademais, a deliberação pode clarear a natureza do conflito moral, ajudando
a distinguir entre o moral, o amoral e o imoral, e entre compatível, os valores
incompatíveis. Dessa forma, comparado a outros métodos de fazer decisões, a
democracia deliberativa aumenta as chances de se chegar a políticas justificáveis.
Entretanto, não é este o foco do presente trabalho. Pretende-se abordar o
desacordo moral razoável, desacordo entre concepções morais, filosóficas e, até,
religiosas dos indivíduos da coletividade; questões mais próximas ao indivíduo.
Quando esse desacordo é enfrentado pelo Estado democrático, interessa saber se
ele deve decidir em favor de uma posição ou permitir que cada um siga o seu
próprio entendimento. Isso porque é certo que a decisão impositiva tomada pelo
Estado vincula todos, tanto aqueles que concordam com a posição tomada como
aqueles que lhe são contrários. Não interessa, aqui, discorrer sobre tomadas de
decisões políticas e suas fontes de legitimidade.
Entende-se, com Luiz Roberto Barroso13, que são necessários consensos
mínimos em uma sociedade e que estes devem ser guardados pela Constituição de
um Estado. Direitos essenciais ao funcionamento de um regime democrático, como
a dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais, participação popular não
podem ser subtraídos dos órgãos deliberativos que decidem pela vontade da maioria,
uma vez que acabam garantindo o próprio espaço do pluralismo político. No entanto,
o que se quer abordar são questões que estão longe desses chamados consensos
mínimos e que envolvem o indivíduo em sua esfera de vida particular.
9
RAWLS, John. Op. cit., passim.
GUTMANN, Amy & THOMPSON, Dennis. Op. cit., passim.
11
WALDRON, Jeremy. Op. cit., passim.
12
GUTMANN, Amy & THOMPSON, Dennis. Op. cit., passim.
13
BARROSO, Luiz Roberto. Op. cit., p. 200.
10
44
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
2.1. Exemplos atuais e reais do desacordo moral razoável
Na introdução deste trabalho, inseriu-se o caso da interrupção da gestão de
feto anencefálico que, hoje, aguarda resolução no Supremo Tribunal Federal. Como
demonstrado, o caso traz duas posições razoáveis, pois construídas por princípios
da razão, mas que levam a soluções diametralmente diversas.
Além desse caso, o Supremo Tribunal Federal decidiu, na Ação Direta de
Inconstitucionalidade n. 3.510, pela constitucionalidade da Lei n. 11.105, de 2005, a
chamada Lei de Biossegurança. Esse foi um assunto que levantou diversas vozes
opostas, cada qual com seus argumentos moralmente razoáveis. A referida lei
disciplina a pesquisa com células-tronco embrionárias, autorizando o uso daquelas
obtidas de embriões humanos, produzidos mediante fertilização in vitro, que não
foram transferidos para o útero materno, após o consentimento dos genitores e a
adequação a diversos requisitos impostos na lei.
Por um lado, havia os argumentos a favor da constitucionalidade da lei, que
afirmavam não serem aqueles embriões vidas humanas, uma vez que não seriam,
nunca, implantados no útero materno, condição sine qua non para a formação
humana. Levantavam, ainda, a importância dessas pesquisas e o bem que elas
poderiam atingir a inúmeras pessoas que sofrem de diversas doenças e que poderiam
se beneficiar do uso de células-tronco. A posição oposta, contra o uso das células
embrionárias, defendia o direito à vida daqueles embriões que seriam potenciais de
vida humana, destacando, também, o perigo que essas pesquisas poderiam gerar,
como a clonagem humana e a seleção da espécie.
Por fim, o Supremo acolheu a primeira posição, declarando a constitucionalidade da lei. Concorda-se, mais uma vez, com Luiz Roberto Barroso14 ao afirmar
que o Congresso Nacional, com a edição da referida lei, permitiu o respeito ao
pluralismo, isto é, a autonomia de cada um, já que não obrigou ou alienou a
participação dos genitores no processo, mas, ao contrário, determinou como requisito
do uso das células embrionárias em pesquisas o seu consentimento. Assim, cada
um está apto a agir de acordo com sua moral pessoal.
A Suprema Corte Norte-Americana também já se deparou com casos que
envolvessem desacordo moral razoável. Em 1965, julgou o caso Griswold v.
Connecticut15, que se tornou um precedente na Corte. O caso envolvia uma lei do
Estado americano de Connecticut, que proibia o uso de contraceptivos. A lei
14
15
Ibid., p. 202.
US Supreme Court. Griswold v. Connecticut. 381 U.S. 479, 1965.
O desacordo moral razoável na sociedade plural do estado democrático de direito
45
determinava como crime o uso de qualquer remédio, artigo medicinal ou instrumento
com o propósito de prevenção contraceptiva.
A Suprema Corte julgou pela inconstitucionalidade da lei, fundamentandose na proteção constitucional ao direito à privacidade, inserido na garantia do devido
processo legal da 14ª Emenda, que assim dispõe:
[...] Nenhum Estado fará ou imporá nenhuma lei que restrinja os privilégios ou
imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos; nem poderá privar qualquer
pessoa de sua vida, liberdade ou propriedade, sem o devido processo legal ou
negar qualquer pessoa sob sua jurisdição a igual proteção das leis. (Tradução
da autora.).16
Essa foi uma decisão que valorizou a liberdade do indivíduo de qualquer
imposição arbitrária e limitações sem propósitos. Garantiu-se, assim, que a decisão
de planejamento familiar de um casal cabe exclusivamente a este, sendo assunto
privado do casal com seu médico.
Em um momento mais recente, a Suprema Corte Americana julgou o caso
Lawrence v. Texas17. Lawrence e Garner, 55 e 31 anos, respectivamente, à época,
homossexuais, foram presos, em 1998, em Houston, Texas, por praticarem atos sexuais
consensuais íntimos no interior de sua casa. Informado por uma denúncia anônima, o
xerife, dentro do apartamento de Lawrence, os prendeu e os enquadrou na lei texana
que proibia certas formas de contatos sexuais íntimos entre membros do mesmo
sexo. A Corte declarou que o estatuto texano não possuía nenhum legítimo interesse
que pudesse justificar sua intromissão na vida pessoal e privada do indivíduo.
Este caso é alarmante, já que muito recente, e, portanto, talvez leve ao
extremo radical de imposição de um argumento moral por parte do Estado texano.
Essa extremidade poderia até descaracterizar o caso como desacordo moral,
levando-o ao conceito de rigorismo moral por parte do Estado, sendo este o polo
extremo, oposto ao laxismo moral, da conduta moral correta. No entanto, presta
ilustrar uma questão que envolve, ainda hoje, desacordo (a igualdade entre casais
homossexuais e heterossexuais). Em uma sociedade pluralista, como a do Texas,
nos Estados Unidos, há espaço para argumentos contra e a favor dessa igualdade.
16
“No State shall make or enforce any law which shall abridge the privileges or immunities of citizens
of the United States; nor shall any State deprive any person of life, liberty, or property, without due
process of law; nor deny to any person within its jurisdiction the equal protection of the laws”.
UNITED STATES OF AMERICA. The Constitution of the United States, 1868. Disponível em: <http://
www.usconstitution.net/const.html>. Acesso em: 02 de fevereiro de 2009.
17
US Supreme Court. Lawrence v. Texas. 381 U.S. 479, 2003.
46
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
Porém, o que não parece razoável é a intromissão do Estado na esfera mais íntima
dos indivíduos para impor o seu posicionamento, mesmo que este seja o da maioria.
Tal ação é incompatível com um Estado democrático, que não subsiste sem o
espaço para a liberdade e a igualdade dos seus cidadãos.
São vários casos, em todo o mundo, que abarcam desacordos morais
razoáveis de questões próximas ao indivíduo. Outro exemplo foi a edição da lei
francesa, publicada em 2004, que proibiu o uso de véus islâmicos nas escolas da
França (e de outros artigos religiosos distintivos). A questão levantou tal revolta no
mundo mulçumano que resultou em um sequestro, no Iraque, de repórteres franceses,
com a exigência da revogação da referida lei para libertá-los. A lei entrou em vigor
próximo ao Dia Internacional da Mulher e foi justificada pelo então Presidente
Jacques Chirac, que declarou que as escolas não são lugares de promoção ou
refutação de qualquer religião e que a lei estava baseada nos princípios da laicidade
e nas fundações da República Francesa18.
O uso do véu para as jovens mulçumanas é sustentado por um dever religioso
muito forte. Para algumas, pode ser, sim, instrumento de subordinação, mas, para
outras, que de fato creem nas consequências religiosas e morais de seu não uso,
em sua comunidade, consiste em algo muito sério. Mais uma vez, trata-se de uma
imposição estatal de um argumento moral razoável, construído por princípios de
racionalidade, que suprimem e vinculam aqueles que se situam na posição contrária,
que também é construída por princípios da racionalidade (mesmo que advenham
de concepções religiosas, já que esse fato não exclui o caráter razoável de seus
argumentos, segundo Rawls19) e, portanto, um argumento moral razoável.
O que se percebe, nesses últimos casos apontados, é o impacto do
posicionamento do Estado quando este impõe um determinado argumento moral
razoável em detrimento de outro, sem que haja justificação para aqueles que serão
submetidos e vinculados a essa imposição. Democratas procedimentalistas e
constitucionalistas concordam, como apontaram Gutmann & Thompson20, que as
instituições democráticas não são justificadas, a não ser que rendam, geralmente,
resultados moralmente aceitáveis. Instituições democráticas que produzem políticas
que negam a alguns cidadãos liberdade de expressão ou outra oportunidade básica
de viver uma vida decente devem ser rejeitadas com base em argumentos morais.
A possibilidade dessa imposição estatal, diante de desacordos morais
razoáveis, é o que será analisado em seguida.
18
DREYER, Diogo. A França sem o véu. In: Portal Aprende Brasil, 2004. Disponível em: <http://www.
aprendebrasil.com.br/noticiacomentada/040109_not01.asp>. Acesso em: 02 de fevereiro de 2009.
19
RAWLS, John. Op. cit., passim.
20
GUTMANN, Amy & THOMPSON, Dennis. Op. cit., passim.
O desacordo moral razoável na sociedade plural do estado democrático de direito
47
3. A POSSIBILIDADE DE SUBSISTÊNCIA DO
DESACORDO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Primeiramente, buscando um conceito, Gilmar Mendes, Inocêncio Coelho e
Paulo Gustavo Branco explicaram que se entende como Estado democrático de
direito a organização política em que o poder emana do povo, que o exerce
diretamente ou por meio de representantes, escolhidos em eleições livres e
periódicas, mediante sufrágio universal e voto direto e secreto, para o exercício de
mandatos periódicos, como proclama, dentre outras, a Constituição brasileira. Mais
ainda, segundo os autores, já no plano das relações concretas entre o Poder e o
indivíduo, considera-se democrático aquele Estado de direito que se empenha em
assegurar aos seus cidadãos o exercício efetivo não somente dos direitos civis e
políticos, mas também e, sobretudo, dos direitos econômicos, sociais e culturais,
sem os quais de nada valeria a solene proclamação daqueles direitos21. Acrescentase o caráter do império objetivo da lei que determina a submissão da sociedade
civil e do Estado à lei objetiva e válida para todos, além de estabelecer as competências das autoridades estatais, legitimando suas ações.
Ademais, os autores acima mencionados trouxeram como um exemplo de
norma que abarca os princípios que envolvem o conceito de Estado de democrático
de direito o artigo I-2º da Constituição da União Europeia, que assim dispõe:
A União funda-se nos valores do respeito pela dignidade humana, da liberdade,
da democracia, da igualdade, do Estado de Direito e do respeito dos direitos,
incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias. Estes valores são
comuns aos Estados-Membros, numa sociedade caracterizada pelo pluralismo,
a não discriminação, a tolerância, a justiça, a solidariedade e a igualdade entre
mulheres e homens22.
Percebe-se, com esse dispositivo, que a democracia moderna parte do
pressuposto da pluralidade quando garante a legitimidade da decisão por maioria,
mas, ao mesmo tempo, resguarda os direitos da minoria. E assim o faz a Constituição
brasileira quando institui, como fundamento, a soberania popular e os meios de
tomada de decisão pelo critério da representação, além de assegurar a participação
popular por diversas maneiras.
São esses, aliás, traços essenciais da democracia moderna: a representação
e a participação. Rodolfo Pereira ensinou que:
21
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires & MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de
Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 149.
22
UNIÃO EUROPEIA. Tratado que estabelece uma Constituição para a União Europeia, 2004. Disponível
em: <http://www.sim.21publish.com/Tratado>. Acesso em: 02 de fevereiro de 2009.
48
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
[...] a função representativa, por um lado, associa-se, desde sua origem, à dinâmica
da representação dos interesses e, com isso, tende a reconhecer e garantir o
pluralismo ínsito às sociedades atuais. Continua, dizendo que a função
participativa, por seu turno, prende-se desde as origens às teses da vontade
pública/geral e, portanto, tende a estimular [...] ilhas de consenso necessárias ao
encaminhamento, processamento e solução das divergências23.
John Rawls24 abordou o tema, afirmando ser o pluralismo razoável um
resultado inevitável de instituições livres. Assim, a pluralidade será sempre um
traço de um regime democrático legítimo. Segundo o referido autor, faz parte da
tradição do pensamento democrático a concepção das pessoas como livres e iguais.
A ideia básica é que, em virtude de suas faculdades morais (uma capacidade para
um sentido da justiça e para uma concepção do bem) e das faculdades da razão
(de juízo, pensamento e as inferências vinculadas com essas faculdades), as pessoas
são livres. A posse dessas faculdades em grau mínimo requerido para ser membro
cooperante da sociedade faz com que as pessoas sejam iguais.
O desacordo moral razoável não rechaça os elementos essenciais de um
regime democrático. Ao contrário, tendo o pluralismo como traço essencial da
democracia moderna, caso se tenha que desacordar moralmente sobre políticas
públicas, melhor que seja em uma democracia que respeite ao máximo possível o
arcabouço moral de cada um.
4. A POSIÇÃO DO ESTADO EM FACE
DO DESACORDO MORAL RAZOÁVEL
Como se viu, as noções de pluralidade, liberdade e igualdade do cidadão
são intrínsecas ao conceito de democracia moderna. Rawls25 sustentou que, como
cidadãos livres e iguais, devem ser-lhes garantidos princípios de tolerância que
consistem em deixar que eles próprios resolvam as questões de religião, filosofia
e moral em concordância com o ponto de vista que professam livremente, sendo
que a concepção política protege os direitos básicos de todos. Claro que isso se
limita, como afirmado pelo autor em tela, aos direitos básicos do outro e nos
consensos mínimos da própria ordem. O que ele acabou por afirmar é que o
Estado deve abster-se de entrar especificamente em tópicos morais que dividam
as doutrinas compreensivas.
23
PEREIRA, Rodolfo Viana. Direito Constitucional democrático. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2008.
RAWLS, John. Op. cit., passim.
25
Ibid., passim.
24
O desacordo moral razoável na sociedade plural do estado democrático de direito
49
Rawls26 demonstrou, ainda, que as instituições do Estado justo precisam ser
neutras no resguardo de qualquer particular teoria do bem que cada cidadão deve
perseguir. Essa neutralidade abarca três caracteres básicos:
1. a ideia de racionalidade definida como a possibilidade de indivíduos
provenientes de diferentes experiências culturais trabalharem uns com os
outros politicamente e tolerarem as culturas de cada um;
2. a ideia de um consenso sobreposto, que precisa ser ampla o suficiente para
abarcar conjuntamente culturas distintas a serem consideradas pelos diversos
campos de regulação governamental e pela legislação;
3. a autonomia dos cidadãos do Estado justo, na esfera pública, invocando a
ideia de razão pública, cidadãos como membros ativos do debate, da legislação
e da revisão constitucional.
Resta, assim, demonstrado que a defesa rawlsiniana sobre o papel do Estado
diante de desacordos morais razoáveis é permitir espaço para a autonomia dos
cidadãos, de modo a agirem de acordo com seu arcabouço moral, respeitado os
direitos básicos dos outros. Dessa forma, o Estado respeita a pluralidade de sua
sociedade, garantindo seu aspecto de Estado livre, justo e democrático. No mesmo
sentindo, concluiu Luiz Roberto Barroso:
Não se trata de pregar, naturalmente, um relativismo moral, mas de reconhecer a
inadequação do dogmatismo onde a vida democrática exige pluralismo e
diversidade. Em situações como essa [interrupção da gestação de feto
anencefálico], o papel do Estado deve ser o de assegurar o exercício da autonomia
privada, de respeitar a valoração ética de cada um, sem a imposição externa de
condutas imperativas.27
5. CONCLUSÃO
O desacordo moral razoável é constituído pela ausência de consenso em
questões cujas posições, que apontam para soluções diversas, são construídas por
processos razoáveis. Razoáveis no sentido de serem produtos de procedimentos
da razão. Tais posições podem ser morais, filosóficas e até religiosas, o que não
retira o seu caráter de razoáveis, uma vez que são construídas por argumentos
partilhados ou que poderiam ser partilhados pelos membros que participam ou são
atingidos pela discussão.
26
BIRD, Colin. Democracy and its nightmares. In: The Hedgehog Review, Spring, 2000. Disponível
em: <http://www.virginia.edu/iasc/HHR_Archives/Democracy/2.1JBird.pdf>. Acesso em: 02 de
fevereiro de 2009.
27
BARROSO, op. cit., p. 181.
50
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
Esses desacordos se fazem presentes em um Estado democrático, já que,
existindo instituições livres, que garantam o pluralismo, a liberdade e igualdade dos
cidadãos, estes podem seguir e demonstrar suas concepções nas discussões que
lhes são importantes. Em especial, no caso de questões que envolvam decisões
relacionadas à vida privada do indivíduo, relacionadas à sua intimidade, às suas
convicções religiosas e à sua dignidade, por exemplo, o Estado democrático deve
permitir um espaço para que o indivíduo possa agir de acordo com suas concepções
morais razoáveis, exercendo sua autonomia. Isso, claro, não exclui os direitos básicos
garantidos a todos, nem as instituições de consenso mínimo na Constituição, mas,
ao contrário, é por eles limitado. Nesse sentido, o Estado democrático não deve
impor aos seus membros uma das posições de um argumento moral razoável,
ciente de que essa imposição poderia vincular indivíduos cujas concepções são
opostas a ela. É certo que a decisão do Estado vai além da esfera pessoal de um
cidadão, mas, envolvendo questões que afetam sua vida privada, íntima, o Estado
deve evitar impor uma das posições; ao contrário, deve garantir o exercício da
autonomia de cada um, de acordo com seus posicionamentos.
O presente trabalho procurou explanar esse conceito filosófico do desacordo
moral razoável e demonstrar, por meio de casos concretos, como o Estado pode se
abster, em determinadas esferas, para permitir a autonomia de cada cidadão. Nesse
sentido, o legislador não criminalizar determinada conduta, por exemplo, não significa
sua imposição. Nesse caso, cada indivíduo poderá escolher exercer ou não essa
conduta, de acordo com suas concepções morais. O mesmo acontece com o
Judiciário: impor, por suas decisões, posições que suprimam outros argumentos
morais razoáveis deve ser evitado ao máximo, principalmente quando se tratar de
questões mais próximas ao centro íntimo do indivíduo. Isso é característica de
respeito ao pluralismo de uma sociedade democrática moderna.
REFERÊNCIAS
BARROSO, Luiz Roberto. Gestação de fetos anencefálicos e pesquisas com célulastronco: dois temas acerca da vida e da dignidade na Constituição. In: NOVELINO,
Marcelo (Org.). Leituras complementares de Direito Constitucional: direitos
humanos e direitos fundamentais. 3. ed. Salvador: Jus Podivm, 2008.
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52
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
Anotações
Desconsideração da pessoa jurídica: uma análise sob três perspectivas
53
4
Desconsideração da pessoa jurídica:
uma análise sob três perspectivas
Disregard of legal entity: an analysis
under three perspectives
ZILDA MARA CONSALTER
Mestre em Direito Negocial, pela Universidade Estadual de Londrina – UEL,
no Paraná; professora das disciplinas de Direito Civil e Metodologia da Pesquisa Jurídica
nos cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG,
no Paraná; líder do Grupo de Pesquisa em Direito Obrigacional
(http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalhepesq.jsp?pesq=5471268018863867); advogada;
coautora de Negócio jurídico: aspectos controvertidos à luz do novo Código Civil
(São Paulo: Mundo Jurídico, 2005. 228 p.) e autora de Direito das obrigações em debate:
estudos sobre temas contemporâneos da teoria obrigacional (Ponta Grossa: Eduepg, in press).
E-mail para correspondência: [email protected].
VINICIUS DALAZOANA
Acadêmico do curso de Direito da Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG,
no Paraná; membro pesquisador do Grupo de Pesquisa em Direito Obrigacional
(http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalhepesq.jsp?pesq=547126801 8863867).
RESUMO
O presente artigo investiga as três principais teorias aplicáveis para conferir
efetividade aos processos em que pessoas jurídicas são executadas. Apresenta,
ainda, aspectos identificadores, raízes históricas, pressupostos de aplicabilidade e
efeitos de cada teoria. Além disso, retrata como se posicionam doutrina e tribunais
com relação às três técnicas, indicando qual a mais adequada a cada fattispecie.
Palavras-chave: pessoa jurídica, desconsideração, despersonalização inversa, teoria
da aparência.
ABSTRACT
It investigates the three main theories applied to give effect to the Lawsuits which
legal entities are executed. It shows aspects that identifies it, historical roots,
prerequisites for application and effects of each one. It shows how doctrine and
Courts position themselves related to those techniques, indicating which one is
more adequate for each case.
Keywords: legal entity, disregard, depersonalization reverse, appearance theory.
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1. NOTA INTRODUTÓRIA
As teorias da desconsideração da personalidade jurídica são instrumentos
de relevante utilidade prática, mas com vários requisitos de aplicabilidade que podem
despertar muitas dúvidas tanto no pleito pelos causídicos quanto na sua aplicação
pelos magistrados.
Disto surgiu a ideia de realizar um estudo sob as três perspectivas mais
atuais desta possibilidade: primeiro, delinear-se-á o atual “estado da arte”; depois,
encarregar-se-á de destacar os principais aspectos da teoria da desconsideração
inversa e, por derradeiro, apresentar-se-ão os meandros da teoria da aparência.
Essa postura se justifica em razão não somente da já mencionada aplicabilidade e utilidade dos institutos, mas também devido à confusão entre as suas
subespécies e, por vezes, ao desconhecimento de seus pressupostos de uso pela
comunidade jurídica.
2. DA DESCONSIDERAÇÃO CONVENCIONAL
Impende mencionar que a desconsideração da personalidade jurídica – a que
se chamará de convencional apenas para diferenciá-la das outras duas – constitui-se
em técnica de aperfeiçoamento da pessoa jurídica, porquanto a ausência de parâmetros
para desprezar a personalidade do ente moral poderia levar ao desvirtuamento do
instituto1. Neste diapasão, insta sublinhar que o mero débito insatisfeito perante a
sociedade não autoriza a sua desconsideração. Há outros pressupostos.
Gagliano & Pamplona Filho2 revelaram a adoção da formulação objetiva da
desconsideração, sendo a ideia majoritária no Direito pátrio:
[...] a teoria da desconsideração visa o (sic) superamento episódico da personalidade jurídica da sociedade, em caso de fraude, abuso ou simples desvio de
função, objetivando a satisfação de terceiro lesado junto ao patrimônio dos
próprios sócios, que passam a ter responsabilidade pessoal pelo ilícito causado.
Pode-se dizer que duas são as concepções desta teoria, a seguir explicitadas.
A objetivista, consagrada por Comparato3, que prescinde do elemento
anímico para desconsiderar a personalidade, facilitando sobremaneira a produção
de provas, tutelando com muito mais efetividade interesses de terceiros. Nesta, a
1
COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Vol. 2. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 38.
GAGLIANO, Pablo S. & PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de Direito Civil. Vol. I. 10. ed. São
Paulo: Saraiva, 2008. p. 228.
3
COMPARATO, Fábio Konder. apud COELHO, Fabio Ulhoa. Op. cit., p. 45.
2
Desconsideração da pessoa jurídica: uma análise sob três perspectivas
55
personalidade jurídica será desconsiderada sempre que configurado o desvio de
função ou a confusão patrimonial4.
A subjetivista, que elege a fraude como pressuposto fundamental.
Insta, ainda, para início de discussão, destacar a principal vantagem da teoria
da desconsideração, apresentada por Coelho5:
[...] aplicação da teoria da desconsideração não importa a dissolução ou anulação
da sociedade. Apenas no caso específico em que a autonomia patrimonial foi
fraudulentamente utilizada, ela não é levada em conta, é desconsiderada, o que
significa a suspensão episódica da eficácia do ato de constituição da sociedade,
e não o desfazimento ou a invalidação desse ato (grifou-se).
Historicamente, o primeiro caso a tangenciar a teoria da desconsideração,
embora não estejam nele presentes os fundamentos de aplicabilidade, foi o famoso
“Bank of United States vs. Deveaux”, de 18096.
Já o caso “Salomon vs. Salomon e Co.”, de 1897, é considerado o leading
case7: Aaron Salomon constituiu uma sociedade com seis membros de sua família,
atribuindo a cada um uma ação, ficando ele com as 20 mil restantes. Posteriormente,
emitiu títulos privilegiados de crédito em nome da empresa, e adquiriu-os como
pessoa natural. Sobrevindo a falência da sociedade, Salomon preferiu aos credores
quirografários e executou todo o patrimônio líquido da empresa. Não obstante a
House of Lords apregoar a separação estanque dos patrimônios, a tese desconsiderante repercutiu na Europa e nos Estados Unidos8.
Forçoso é citar, também, o caso “State vs. Standard Oil Co.”, julgado pela
Suprema Corte de Ohio, nos EUA, em 1892: “em que o poder de controle gerencial de
nove empresas petrolíferas concentrou-se nas mãos de acionistas dessa companhia,
sem qualquer alteração na estrutura e na autonomia das sociedades concorrentes”9.
O Direito inglês foi o pioneiro também na positivação da teoria, não obstante
não fazer menção a ela expressamente; a norma situava-se na seção 279 do
Companies Act, de 192910.
4
SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo Direito Societário. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 211.
COELHO, Fabio Ulhoa. Op. cit., p. 43.
6
NAHAS, Thereza Cristina. Desconsideração da pessoa jurídica: reflexos civis e empresariais no
Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. p. 96.
7
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro – teoria geral das obrigações. Vol. 2. São Paulo:
Saraiva, 2004. p. 9.
8
SILVA, Alexandre Alberto T. da. A desconsideração da personalidade jurídica no Direito Tributário.
São Paulo: Quartier Latin, 2007. p. 63-65.
9
COELHO, Fabio Ulhoa. Op. cit., p. 53.
10
Ibidem, p. 49.
5
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Já a tese doutoral de Rolf Serick (Universidade de Tübigen, década de
1950) constitui-se na primeira sistematização da teoria, tendo definido os parâmetros
de aplicação da mesma com fulcro, mormente, na jurisprudência estadunidense.
No Direito nacional, o precursor foi Rubens Requião, no artigo “Abuso de direito
e fraude através da personalidade jurídica”, publicado na RT n. 410, em 196911, destacandose também os trabalhos de Fábio Konder Comparato e José Lamartine Corrêa de Oliveira.
Na legislação, a teoria apareceria apenas décadas mais tarde: o primeiro diploma legal a
albergá-la foi o Código do Consumidor (Lei n. 8.078/90), em seu art. 28:
[...] o juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando,
em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração
da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência,
encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
[...] §5º: também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua
personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos
causados aos consumidores.
Os dispositivos sequenciais a este primeiro foram: a Lei Antitruste (Lei n.
8.884/94, artigo 18), a Lei Pelé (Lei n. 9.615/95, artigo 27), a Lei de Crimes
Ambientais (Lei n. 9.605/98, artigo 4º) e por fim, o Código Civil, artigo 50, todos
com termos parecidos ao do dispositivo alhures transcrito.
Impende, ainda, lembrar que o parágrafo 2º do artigo 2º da Consolidação
das Leis do Trabalho – CLT e os artigos 134 e 135 do Código Tributário Nacional
– CTN referem-se ao termo responsabilidade, e não desconsideração, como
observaram Gonçalves12, Silva13 e Oliveira14.
Também é impossível não lançar um repto ao “silêncio eloquente” do
ordenamento brasileiro quanto à disciplina processual da matéria. Seria de bom
alvitre uma lei processual que regulasse a temática, escoimando os litígios das
amiúdes dubiedades.
Quanto aos tribunais, do exame jurisprudencial, destaca-se a decisão na
sequência, com o fito de ilustrar a forma pela qual vêm se manifestando os magistrados:
A teoria maior da desconsideração, regra geral no sistema jurídico brasileiro, não
pode ser aplicada com a mera demonstração de estar a pessoa jurídica insolvente
11
REQUIÃO, Rubens apud SALOMÃO FILHO, Calixto. Op. cit., p. 274.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Op. cit., p. 64.
13
SILVA, Alexandre Alberto T. da. Op. cit., p. 119-120.
14
OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de. A dupla crise da pessoa jurídica. São Paulo: Saraiva, 1979. p. 529.
12
Desconsideração da pessoa jurídica: uma análise sob três perspectivas
57
para o cumprimento de suas obrigações. Exige-se, aqui, para além da prova da
insolvência, ou a demonstração de desvio de finalidade (teoria subjetiva da desconsideração) (sic), ou a demonstração da confusão patrimonial (teoria objetiva da
desconsideração). (STJ, RE n. 279.273/2003, Rel. Min. Nancy Andrighi).
Como visto, a jurisprudência brasileira é, de certo modo, reticente na aplicação
do instituto. Isto se deve, possivelmente, ao fato de que geralmente faz-se uma
intelecção regra/exceção, tratando a separação patrimonial como regra e o uso
desvirtuado da personalidade como exceção.
Esta exceção pode dar-se tanto pela fraude – formulação subjetiva – como
pela disfunção ou confusão de esferas – formulação objetiva.
O maior crítico deste posicionamento é Salomão Filho15, que apregoou que
“as soluções, mesmo sem admiti-lo, tendem sempre a um raciocínio regra/exceção”
e destacou: “na jurisprudência, fazem-se sentir fortemente as influências dessa
impostação funcional-unitária da doutrina”.
Assim, é mister enfatizar a destacada utilidade prática da teoria da desconsideração e, outrossim, lembrar que sua variabilidade concreta é maior do que
costumeiramente se afirma no Direito pátrio.
Na hercúlea tarefa de aperfeiçoamento do instituto, salutar é a preleção de
Fabio Ulhoa Coelho16, que arrematou esse primeiro tópico:
[...] a melhor interpretação judicial dos artigos sobre a desconsideração é a que
prestigia a contribuição doutrinária, respeita o instituto da pessoa jurídica,
reconhece a sua importância para o desenvolvimento das atividades econômicas
e apenas admite a superação do princípio da autonomia patrimonial quando
necessária à repressão de fraudes e à coibição do mau uso da forma da pessoa
jurídica.
Daí se extrai, também, mais um reflexo da aplicação desta teoria, qual seja,
a de coibir ou mitigar os abusos dos devedores que usam a pessoa jurídica como
“cortina de fumaça” para esgueirar-se dos seus credores e da força do Poder
Judiciário, apresentando-se em importante e eficaz ferramenta de entrega da
prestação jurisdicional a todos os que dela necessitam.
15
16
SALOMÃO FILHO, Calixto. Op. cit., p. 229.
COELHO, Fabio Ulhoa. Op. cit., p. 54.
58
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3. DA DESCONSIDERAÇÃO INVERSA
A desconsideração inversa é técnica punitiva, de sorte a exigir presentes
todos os seus pressupostos de aplicabilidade. Conquanto tais pressupostos muito
se assemelhem aos da desconsideração tradicional, a fraude que a desconsideração
inversa geralmente coíbe é o desvio de bens17.
Neste diapasão, sufragaram Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho
que a desconsideração invertida
[...] se dá quando o indivíduo coloca em nome da empresa seus próprios bens,
visando a prejudicar terceiro. [...] Em tal caso, deverá o juiz desconsiderar
inversamente a personalidade da sociedade empresária para atingir o próprio
patrimônio social, que pertence, em verdade, à pessoa física fraudadora18.
À guisa de definição, transcreve-se a preleção de Fabio Ulhoa Coelho: “Desconsideração inversa é o afastamento do princípio da autonomia patrimonial da pessoa
jurídica para responsabilizar a sociedade por obrigação do sócio”. (grifou-se)19.
Insta, ainda, lembrar a necessidade de se proteger o patrimônio social, bem
como os credores da sociedade. Destarte, a desconsideração em sentido inverso
deve ser limitada ao valor anteriormente desviado para o ente moral, conforme
propugnou Calixto Salomão Filho:
No caso imaginado, de transferência indevida de recursos à sociedade, a simples
devolução da contrapartida dessa transferência ao credor (devolução essa
evidentemente limitada ao valor da transferência) não representaria qualquer
diminuição de garantia. Nem mesmo qualquer agressão, direta ou indireta, ao
capital da sociedade. [...] Não há, assim, qualquer lesão aos credores sociais20.
No que tange à sua origem histórica, a teoria da desconsideração inversa da
personalidade jurídica consagrou-se doutrinariamente na década de 1950, em
clássica obra de Ulrich Drobnig, intitulada originalmente Haftungsdurchgriff bei
Kapitalgesellschaften21. Ele objetivava classificar a desconsideração em quatro
formas principais, sendo que a segunda, ou “primeira variante, em que credor
do sócio de sociedade de capitais busca acionar e executar a sociedade: seria a
penetração invertida” (destaques no original)22.
17
COELHO, Fabio Ulhoa. Op. cit., p. 46.
GAGLIANO, Pablo S. & PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Op. cit., p. 238.
19
COELHO, Fabio Ulhoa. Op. cit., p. 46.
20
SALOMÃO FILHO, Calixto. Op. cit., p. 223-224.
21
DROBNIG, Ulrich apud OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de. Op. cit., p. 329.
22
OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de. Op. cit., p. 333.
18
Desconsideração da pessoa jurídica: uma análise sob três perspectivas
59
Consoante dito alhures, a desconsideração invertida coíbe, via de regra, o
desvio de bens. Responsabiliza-se a sociedade por dívidas do sócio, quando este,
visando a lesar credores, transfere bens para a pessoa jurídica, continuando a
deles gozar livremente. Num primeiro momento, não se pode executar o ente moral,
dada a autonomia patrimonial. Não obstante, uma vez levantado o véu que escondia
o lícito, possibilita-se a satisfação dos credores lesados.
Também no Direito de Família se revela a utilidade do instituto, consoante
obtemperou Maria Helena Diniz, citando Rolf Madaleno:
[...] a teoria da desconsideração da personalidade jurídica pode ser aplicada na
solução de conflitos de Direito de Família, como nos casos em que um dos
cônjuges, ou conviventes, transfere bens conjugais em nome da empresa para,
sob o manto da personalidade jurídica, fraudar meação nupcial ou a do
convivente. [...] O mesmo se diga se o marido, planejando a separação, usar de
testa de ferro para retirar-se da sociedade e depois retornar a ela com o mesmo
número de quotas.23
É de se destacar, outrossim, que o “silêncio eloquente” do ordenamento
jurídico pátrio aqui também se repete – tal qual ocorria até poucas décadas atrás
quanto à teoria da desconsideração tradicional – quanto à desconsideração inversa.
Mitigando essa lacuna, o Enunciado n. 283 da IV Jornada de Direito Civil
pontificou: “é cabível a desconsideração da personalidade jurídica denominada
‘inversa’ para alcançar bens de sócio que se valeu da pessoa jurídica para ocultar
ou desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiros”.
É forçoso lembrar, todavia, que a desconsideração da personalidade jurídica
prescinde de lei para a aplicação. Não a utilizar, sob a alegação de ausência de
norma regulamentadora, é prestigiar a fraude e o abuso de direito no sistema
jurídico pátrio24.
No tocante aos pretórios, impende transcrever a seguinte decisão, que bem
demonstra a distinção entre as duas formas da desconsideração:
A conveniência de sua utilização no âmbito do Direito de Família já foi abordada
por Rolf Madaleno, em seu artigo intitulado “A disregard no Direito de Família”,
publicado na Revista Ajuris, 57/57-66: O usual dentro da teoria da despersonalização (sic) é equiparar o sócio à sociedade, e que dentro dela se esconde,
para desconsiderar seu ato ou negócio fraudulento ou abusivo e, destarte, alcançar
23
MADALENO, Rolf apud DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro: parte geral. 23. ed.
São Paulo: Saraiva, 2006. p. 302-303.
24
REQUIÃO, Rubens apud SILVA, Alexandre Alberto T. da. Op. cit., p. 93.
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seu patrimônio pessoal, por obrigação da sociedade. Já no Direito de Família sua
utilização dar-se-á de hábito, na via inversa, desconsiderando o ato, para alcançar
bem da sociedade, para pagamento do cônjuge credor familial, principalmente
frente à diuturna constatação nas disputas matrimoniais, de o cônjuge empresário
esconder-se sob as vestes da sociedade, para a qual faz despejar, senão todo, ao
menos o rol mais significativo dos bens comuns. (Rio Grande do Sul. TJRS. 7ª
Câmara. Ap. Cív. n. 598082162. Rel. Des. Maria Berenice Dias.)
Repise-se, outrossim, a imperiosidade da exigência da presença dos
pressupostos de aplicabilidade, sem os quais não se deverá desconsiderar a
personalidade societária. Nesse sentido, apregoou Ada Pellegrini Grinover:
Disso se extrai que, como já salientado, a eficácia e o mérito da desconsideração da
personalidade jurídica dependem também de seu adequado emprego. [...] A
desconsideração, como visto, não é medida que se possa ou que se deva banalizar
e não é panaceia para todos os males de credores em face de possíveis devedores25.
Finalmente, é mister sublinhar a relevante utilidade prática do instituto, potente
arma de satisfação creditória, com a entrega da prestação jurisdicional de forma
efetiva e eficaz.
4. DA TEORIA DA APARÊNCIA
A terceira teoria que, de algum modo, pode ser utilizada quando da análise
de relações jurídicas envolvendo pessoas abstratas é aquela que louva o aspecto
externo daquelas ligações, ou seja, a aparência dos fatos e até que ponto isso pode
gerar consequências no âmbito jurídico.
A teoria da aparência encontra ampla guarida no Direito nacional. Desde a
publicística, na “teoria do funcionário do fato”, até o Direito Processual Civil,
permeando igualmente a civilística em suas mais variadas imbricações. Não
obstante, seguindo a esteira das publicações precedentes, será aqui abordada a
seara obrigacional26.
Apregoaram Stolze Gagliano e Pamplona Filho que, “em determinadas
situações, a simples aparência de uma qualidade ou de um direito poderá gerar
efeitos na órbita jurídica”27. Destarte, pode uma situação fática, nula a prima
25
GRINOVER, Ada Pellegrini. Da desconsideração da pessoa jurídica. Interesse Público, v. 48, p. 13-30,
Belo Horizonte, 2008.
26
GAGLIANO, Pablo S. & PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Op. cit., p. 118.
27
Ibidem, p. 117.
Desconsideração da pessoa jurídica: uma análise sob três perspectivas
61
facie, ser admitida como eficaz pela norma jurídica, em vista da forma como se
externa socialmente.
Nesta linha de intelecção, atribui-se eficácia ao pagamento feito a credor aparente, que, consoante sufragaram Orlando Gomes e Edvaldo Brito, é “quem se apresenta
como tal ‘à base de circunstâncias unívocas’, capazes de ensejar a convicção, no
solvens, de que é o verdadeiro credor, eis que assim passa aos olhos de todos”28.
Para que o pagamento a credor aparente seja validado, é mister que
concorram dois requisitos: (a) a boa-fé é o subjetivo, e “pode ser destruída mediante
a demonstração de que o solvens tinha ciência de que o accipiens não era o
credor, ou podia ser declarado estranho à relação jurídica, [...]”29; e (b) a
escusabilidade do erro, havendo este que ser escusável, não devendo o direito
proteger os incautos.
Lembre-se que, neste tópico, reside um conflito de princípios jurídicos: de
um lado, o respeito aos contratos e o direito do credor de receber o regular
pagamento; de outro, o princípio da boa-fé, ora exigida do devedor criterioso30.
Neste diapasão, alertou Álvaro Villaça Azevedo que, “[...] neste caso, mais
alto se alça o princípio da boa-fé, norteador supremo do Direito. Ele é a única
coluna do templo do Direito que não pode ruir, em qualquer momento, sob pena de
negar-se o próprio fundamento da ciência jurídica.”31.
Impende, outrossim, salientar que a qualidade de “credor putativo” (artigo
309 do Código Civil – CC32) dependerá do jaez de cada caso concreto, devendo
sempre o magistrado ponderar os elementos casuísticos.
Quanto a isto, admoestou Silvio Rodrigues: “o problema de prova, nessa
matéria, é relevantíssimo, dado o arbítrio conferido ao juiz para decidir se o
accipiens pode ou não ser considerado credor putativo”33. Entregue a prestação
ao credor aparente, e seguidos os requisitos de validade da mesma, restará ao
credor real simplesmente exigir o pagamento indevidamente recebido pelo
accipiens putativo.
28
GOMES, Orlando & BRITO, Edvaldo (atualizador). Obrigações. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
p. 122.
29
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. Vol. II. 30. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 140.
30
Ibidem, p. 139.
31
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria geral das obrigações: responsabilidade civil. 10. ed. São Paulo:
Atlas, 2004. p. 135.
32
Art. 309 do CC. O pagamento feito de boa-fé ao credor putativo é válido, ainda provado depois que
não era credor.
33
RODRIGUES, Silvio. Op. cit., p. 140.
62
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Extenso é rol de exemplos onde emerge a figura da aparência, mas, consoante
Silvio Rodrigues, o caso mais frequente é o do herdeiro aparente34: “apresenta-se
essa figura quando uma pessoa, em virtude de dada circunstância, parece ser a
sucessora do de cujus, embora em rigor não tenha tal qualidade”35.
Álvaro Villaça Azevedo lembrou também que, “se alguém se intitula
proprietário de uma casa e a aluga a outrem, que paga, regularmente, os aluguéis,
caso fique provada a boa-fé deste e que aquele não seja o legítimo proprietário do
imóvel, válidos serão os pagamentos dos aluguéis realizados”36.
Pontes de Miranda mencionou, ainda, as hipóteses do inventariante sem
direito à nomeação e do testamenteiro aparente37.
Arnaldo Rizzardo trouxe a lume exemplos como o possuidor de cheque ao
portador, que o tenha subtraído ou mesmo falsificado a assinatura, de sorte a não se
perceber a diferença com a do titular da conta do depósito, a não ser mediante perícia;
e o cessionário de um crédito, vindo a anular-se, postumamente, o título creditício38.
Arnoldo Wald recordou interessante exemplo: “o síndico de um edifício que
foi eleito, conforme ata de assembleia geral, está autorizado a receber as
contribuições do condomínio, sendo considerado tal pagamento válido mesmo se
depois vier a ser anulada a assembleia por qualquer vício de forma”39. Finalmente,
mencione-se que não é credor putativo o falso procurador40.
Objetivando o melhor entendimento da temática, afigura-se ineludível o exame
jurisprudencial. Para isso, transcreve-se a seguinte decisão, que bem retrata o
tratamento dispensado à teoria da aparência nos pretórios nacionais:
Locação. Ação de despejo por falta de pagamento. Credor putativo. Art. 935
(309) do CC. Teoria da Aparência. Recurso desacolhido. I – Demonstrado que o
locatário teve inequívoca ciência da alienação do imóvel e de que deveria pagar
os locativos daí por diante ao novo proprietário, não se há como reputar válido
o pagamento realizado ao alienante. II – A incidência da teoria da aparência, em
face da norma do art. 935 do Código Civil, calcada na proteção ao terceiro de
34
RODRIGUES, Silvio. Op. cit., p. 137.
RODRIGUES, Silvio. Loc. cit.
36
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Op. cit., p. 134.
37
MIRANDA, Francisco C. Pontes de. Tratado de direito privado. Vol. XXIV. 3. ed. Rio de Janeiro:
Borsoi, 1971. p. 111.
38
RIZZARDO, Arnaldo. Direito das obrigações: Lei n. 10.406, de 10/01/2002. 4. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2008. p. 309.
39
WALD, Arnoldo. Curso de Direito Civil brasileiro: obrigações e contratos. Vol. II. 5. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1979. p. 55.
40
GONÇALVES, Carlos Roberto. Op. cit., p. 251.
35
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63
boa-fé, reclama do devedor prudência e diligência, assim como a ocorrência de
um conjunto de circunstancias que tornem escusável o seu erro (REsp n. 12.592SP (1991/0014208-5), 4ª T., Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 23/3/1993,
DJ, 26 de abril de 1993, p. 7.212) (grifou-se).
Para finalizar esse tópico, é importante mencionar que, na esfera legal,
especialmente no novel Código Civil, a teoria da aparência vem positivada, além
do já citado dispositivo (artigo 309 do CC), em diversos outros, como os artigos
686, 1.561, e 1.817, regendo relações obrigacionais puras ou não.
5. CONSIDERAÇÕES DERRADEIRAS
Após o estudo, é importante contrapor as teorias analisadas com o escopo
de traçar as suas precípuas distinções e/ou congruências e arrematá-lo de forma
adequada.
Calixto Salomão Filho diferençou as técnicas quanto à participação na
organização societária:
Apenas na ausência de participação da organização societária aplicar-se-iam
os institutos civilísticos em detrimento da teoria da desconsideração. Exemplo
típico é a teoria da aparência. Ali, trata-se de ato (ou sequência de atos) atinente
às relações externas da sociedade, em que não há participação da organização
societária41.
Além disto, impende considerar situações semelhantes àquelas acima
tratadas, em que a pessoa jurídica afigura-se como credor ou devedor putativo (ou
aparente), quando se aplicam, quantum satis, os mesmos princípios aduzidos e
expendidos alhures.
Também é de se destacar a possibilidade de aplicação da teoria da aparência
quando a pessoa jurídica, embora tenha a aparência de regular, de fato seja
organizada informalmente ou que desobedeça a algum requisito em sua composição
(verdadeiras sociedades de fato).
Neste caso, para haver eventual cobrança de créditos contraídos pela pessoa
jurídica (de fato), ao invés de aplicar-se a teoria da desconsideração ou da
desconsideração inversa, por não ocorrer, ao menos juridicamente, a existência
desta pessoa abstrata, a teoria a ser aplicada é a da aparência, e não aqueloutras
mencionadas.
41
SALOMÃO FILHO, Calixto. Op. cit., p. 237.
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Por outro lado, das três teorias, a que pode ser usada igualmente no Direito
de Família é a teoria da desconsideração inversa, para os casos de burla da meação
em caso de separação judicial, e a teoria da aparência, nos casos de devedores de
alimentos que desviam seu patrimônio para terceiros para escusar-se de adimplir
esse tipo de crédito pessoal.
Quanto a um comparativo entre as duas teorias da desconsideração, ressalvados os pressupostos de aplicação de cada uma, há que se destacar que ambas
apresentam-se muito úteis em situações opostas: quando o devedor pessoa física
utiliza-se da pessoa jurídica para desviar-se do pagamento de seus créditos pessoais
e quando, para privar credores da pessoa jurídica do adimplemento dos haveres,
desvia-se o patrimônio da mesma para o das pessoas físicas que com ela tenham
alguma conexão.
Cumpre repisar, em tempo, a necessidade da presença absoluta dos
pressupostos autorizatórios do desprezo da personalidade jurídica para que seja
aplicada qualquer das técnicas em comento.
A pessoa moral é criação valiosa do Direito moderno, instrumento de inefável
função na ordem socioeconômica hodierna. Se não se podem prestigiar condutas
fraudulentas, tampouco deve-se tornar o instituto da desconsideração panaceia
para todos os males.
Deste modo, entende-se, com este ato derradeiro, ter sido dado um satisfatório deslinde ao estudo proposto, vez que foram abordadas, mesmo que rapidamente, as três poderosas ferramentas que o ordenamento jurídico e o arcabouço
doutrinário fornecem aos que militam em prol da efetividade da Justiça, especialmente quando o instituto da pessoa jurídica é usado de forma incongruente com o
que dele se espera.
Desconsideração da pessoa jurídica: uma análise sob três perspectivas
65
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66
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
Anotações
67
A relação entre dignidade humana e interesse público
5
A relação entre dignidade
humana e interesse público
The relationship between human
dignity and public interest
ZUENIR DE OLIVEIRA NEVES
Advogado; especialista em Direito Público, pela Associação Nacional dos Magistrados Estaduais
– Anamages, em convênio com o UniCentro Newton Paiva, de Minas Gerais;
especialista em Direito Processual Civil, pelo Centro de Atualização em Direito – CAD da
Universidade Gama Filho – UGF; especialista em Direito Constitucional, pelo Instituto de Educação
Continuada – IEC da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC/MG.
E-mail para correspondência: [email protected].
RESUMO
O presente artigo visa a discorrer sobre as implicações trazidas pelo princípio da
dignidade humana – por sua vez alçado a fundamento do Estado democrático de
direito, conforme preleciona o artigo 1º, III, da CR/88 – sobre o conceito de interesse
público e o princípio que o alberga, qual seja a supremacia sobre o interesse privado.
Palavras-chave: bem comum, interesse público, princípio da dignidade da pessoa
humana, princípio da supremacia do interesse público.
ABSTRACT
This article aims to discuss the consequences brought by the principle of human
dignity, regarded as the reason of the democratic State of law, according to the
Brazilian Constitution (article 1, III) on the concept of public interest and its principle,
which is the supremacy over the private interest.
Keywords: common good, public interest, principle of human dignity, supremacy of
public interest.
68
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A relação travada entre o público e o privado não significou carência de
divergências, e a História só se fez síntese porque comportou antíteses. Estas,
entretanto, em sua maioria, foram baseadas em teorias unilaterais, que, apesar de
importantes, revelaram, no embate discursivo, verdadeiros “diálogos de surdos”, à
medida que valorizavam ora o interesse dos déspotas (absolutismo), ora o do
indivíduo, sem alcançar um “conceito de comunidade enquanto realidade portadora
de uma essência, valor e fim superiores ao indivíduo” – liberalismo individualista –
(MESSNER apud MARTINS FILHO, 2000), ora o da comunidade, sem atingir a “realidade
total da pessoa humana, com seus fins suprassociais e o seu valor de ordem
suprassocial” – coletivismo (MESSNER apud MARTINS FILHO, 2000).
Nesse trajeto, conceitos jurídicos foram vulnerados e direitos violados em
nome da defesa do que se concebia como interesse público. Este mesmo foi
considerado como sendo, em determinados momentos, o “da maioria”, em outros,
o “do Estado” e “da coletividade”.
Entretanto, atualmente, vozes têm se levantado no sentido de afirmar que o
termo “interesse público”, mesmo em se tratando de um conceito jurídico indeterminado, deve ser interpretado a partir da exigência de proteção da pessoa.
Com relação à sua hierarquia, a supremacia e a indisponibilidade, tidas, até
então, por axiomas utilizados em situações de contenção/suspensão/supressão, enfim,
de relativização dos direitos fundamentais pelos poderes estatais, alçados, alhures, à
condição de tutores dos interesses coletivos, têm sido postas à prova por assertivas
envolvendo as sub-regras da proporcionalidade do ato administrativo, consistentes
na adequação, na necessidade e na proporcionalidade em sentido estrito.
No fluxo desse entendimento, o presente artigo visa a discorrer sobre as
implicações trazidas pelo princípio da dignidade humana – por sua vez alçado a
fundamento do Estado democrático de direito, conforme preleciona o artigo 1º, III,
da CR/88 – sobre o conceito de interesse público e o princípio que o alberga, qual
seja a supremacia sobre o interesse privado.
2. UMA DICOTOMIA INVENTADA: A CONTRAPOSIÇÃO
ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO COMO REFLEXO
DA NÃO CONSIDERAÇÃO DO BEM COMUM
No entendimento do signatário deste artigo, o critério da titularidade do
interesse para diferençar a categoria pública da privada não só induz à perigosa
conclusão sobre uma contraposição, como, também, à crença na necessidade de
A relação entre dignidade humana e interesse público
69
superação de uma dicotomia, que – se considerada a definição desta palavra, pela
ciência lógica, como “divisão de um conceito em dois outros, em geral, contrários,
que lhe esgotam a extensão” (HOLANDA FERREIRA, 1993: 185) – não deveria ocorrer.
Caso se insista em definir o interesse público como sendo o “do Estado e
das pessoas jurídicas de direito público, bem como o interesse de todos sem ser de
nenhum particular” (GUSMÃO, 1995: 156), corre-se o risco de incursão no critério
excludente de interesses privados, negador, por sua vez, da perspectiva aristotélicotomista do bem comum, segundo a qual este é “o fim das pessoas singulares que
existem na comunidade, como o fim do todo é o fim de qualquer de suas partes”
(MARTINS FILHO, 2000).
Quando o Estado, na condição de gestor dos interesses da coletividade,
impõe normas de conduta, fá-lo para manter ou restaurar as possibilidades de
convivência da comunidade que o alçou a tal missão. Mas isso não o autoriza a,
encarnando os interesses da coletividade, furtar-se a conferir aos privados a eficácia
pretendida pelo ordenamento, sob o argumento de superioridade do interesse público,
pena de arranhadura do bem comum.
Se é correto dizer que cabe ao Estado gerir os interesses da coletividade,
impondo condutas para garantia do bem comum, não é razoável se pré-admitir que
aquilo a que correntemente se chama de interesse público seja superior e, dessa
forma, possa se opor ao que se denomina interesse privado, e vice-versa, porque
ambos hão de se relacionar de forma inclusiva, ou seja, garantindo-se
reciprocamente, a partir das noções elementares do bem comum, quais sejam a
finalidade, a bondade, a participação, a comunidade e a ordem1.
O contrário disso é interesse egoístico, que não se coaduna com a premissa
segundo a qual, desde que o homem existe, coexiste e convive, a viabilidade de
qualquer interesse que veicule depende do agir pautado na solidariedade, mínimo
necessário à existência e à estabilidade de qualquer organismo social e conteúdo
objetivo do bem comum2.
Conclui-se que a falsa noção de contraposição entre o interesse público e o
privado é reflexo do agir não orientado ou semiorientado à consecução do bem
comum. Assim,
1
2
A respeito, ver MARTINS FILHO (2000).
Segundo Alceu Amoroso Lima, “a alma do Bem Comum é a Solidariedade. E a solidariedade é o
próprio princípio constitutivo de uma sociedade realmente humana, e não apenas aristocrática,
burguesa ou proletária. É um princípio que deriva dessa natureza naturaliter socialis do ser humano”
(LIMA apud MARTINS FILHO, 2000).
70
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
Para fundamentar qualquer teoria social, é peça de fundamental importância o
Princípio do Bem Comum. Ao contrário do que se possa pensar, não é um
princípio meramente formal ou demasiadamente genérico e teórico, sem
conteúdo determinado, mas um princípio objetivo, que decorre da natureza
das coisas e possui inúmeras consequências práticas para o convívio social
(MARTINS FILHO, 2000).
3. A CONSECUÇÃO DO BEM COMUM DEPENDE
DO PROCESSO HISTÓRICO
Mas a deficiência no agir em conformidade com o bem comum não pode
constituir negativa ao caráter dinâmico da história e à necessidade de mudanças.
Assim, por exemplo, é que o próprio contexto social de insatisfação com os
métodos parciais de solução das controvérsias individuais, consistentes na autotutela
(ou autodefesa) e na autocomposição (desistência, submissão e transação), presentes
desde os primórdios civilizacionais, possibilitou a transição para a justiça pública,
cuja legitimidade se estende aos dias atuais. Essa transição permitiu a atribuição
da função ordenadora ao Estado, cuja ingerência nas relações privadas se deu,
primeiramente, por meio de árbitros supostamente imparciais, e, num segundo
momento, pelo surgimento de legisladores imbuídos da função de formular
parâmetros obrigatórios de julgar.
Da mesma forma se deu com o desenvolvimento do individualismo liberal,
afiançado pelo princípio da legalidade, e do regime jurídico-administrativo, calcado
no princípio da supremacia do interesse público, que manteve verticalizada a relação
entre Administração e indivíduo. O contexto de incontrolável personalização e patrimonialização absolutista do poder desaguou em reações que demandariam maiores
garantias dos direitos individuais, mediante a limitação dos poderes do Estado.
Isso não implica dar atestado de perfeição aos novos sistemas que se instalavam, mesmo porque, sob o pálio da justiça pública e do Estado liberal, direitos
vários foram violados sob o pretexto de garantia do interesse público, mas, ao
contrário, ressaltar que a relativa dicotomia não significou carência de divergências,
e a História só se fez síntese porque comportou antíteses. Estas, entretanto, como
já ressaltado, em sua maioria, foram baseadas em teorias unilaterais, que, apesar
de importantes, revelaram, no embate discursivo, verdadeiros “diálogos de surdos”,
à medida que valorizavam ora o interesse dos déspotas (absolutismo), ora o do
indivíduo, sem alcançar um “conceito de comunidade enquanto realidade portadora
de uma essência, valor e fim superiores ao indivíduo” – liberalismo individualista –
, ora o da comunidade, sem atingir a “realidade total da pessoa humana, com seus
A relação entre dignidade humana e interesse público
71
fins suprassociais e o seu valor de ordem suprassocial” – coletivismo (MESSNER
apud MARTINS FILHO, 2000).
Por outro lado, por mais procedentes sejam as críticas que denunciam
manobras ideológicas nos dois exemplos acima citados – mormente no segundo,
em que a ideia de unitarismo (um interesse, um gestor, um representante da vontade
geral etc.) foi marcante –, é necessário admitir que tanto a justiça privada quanto
o poder absoluto não comportariam a mesma abertura para a defesa da vida, da
liberdade e da integridade físico-psíquica, e que, portanto, violavam em maior
intensidade o bem comum.
4. A IMPORTÂNCIA DA DIGNIDADE HUMANA NO PÓS-POSITIVISMO
É atrelada à apreensão histórica da noção do bem comum que a influência
da perspectiva dita personalista ganha relevância a partir do constitucionalismo da
segunda metade do último século.
Não mais se deve considerar o homem como ser abstrato, autônomo e titular
de uma liberdade negativa (concepção liberal), nem animal político, atado a um
grupo social – parte de um todo –, que, algures, submetia-se a um poder superior
negador do direito à liberdade e à igualdade naturais (concepção organicista
aristotélica).
No magistério de Sarmento:
A ótica que prevalece nesta matéria no constitucionalismo contemporâneo é a
do personalismo, que busca uma solução de compromisso entre as concepções
individualista e coletivista. O ser humano é considerado um valor em si mesmo,
superior ao Estado e a qualquer coletividade a qual integre. Mas, de outra banda,
o homem que se tem em vista é um ser palpável, histórica e geograficamente
situado, que partilha valores e tradições com seus semelhantes e que tem
necessidades que devem ser atendidas. É o homem que não apenas vive, mas
convive (SARMENTO, 2003: 69).
Assim, o “novo constitucionalismo”, sob os auspícios da doutrina filosófica
personalista, passou a encarar o homem como ser concreto, cuja dimensão coletiva,
a despeito de autorizar eventuais restrições a direitos reconhecidamente
constitucionais, desde que respeitada a proporcionalidade, não o afasta do contexto
da máxima eficácia dos direitos e garantias fundamentais, constante do artigo 5,
§1º, da CR/88, que impõe o implemento do mínimo existencial.
Em tais circunstâncias, desponta, no epicentro da discussão, o princípio da
dignidade humana, alçado a fundamento do Estado democrático de direito, conforme
72
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
preleciona o artigo 1º, III, da CR/88, embora a preocupação com sua noção remonte
à era judaico-cristã3.
Desde então, a pós-modernidade tem presenciado o surgimento de teorias
jurídicas que tomam a justiça por fundamento do direito positivo, consentâneas, por
sua vez, com as necessidades de um neoconstitucionalismo principialista, adotante
do pós-positivismo como paradigma filosófico que confere força normativa à
Constituição e supera a legalidade estrita, sem, no entanto, reduzir o direito à moral.
Diz-se, sobretudo, que a neutralidade e a objetividade visadas pelo positivismo
kelseniano, pretensamente desvinculado da moral e da política, e equiparador da
legitimidade, da validade e da vigência, na busca de certeza jurídica, não contiveram
os desmandos hitleristas e fascistas, de ampla justificação legal e apoio popular.
Foi com a derrocada ítala e germânica, que, no contexto do pós-guerra,
resgatou-se definitivamente o compromisso humanista, assumido pelas revoluções
dos setecentos, e se aferiu a necessidade de efetivação dos direitos fundamentais,
por sua vez fundados na dignidade humana, fator este atribuidor de justificação
ética ao Estado, cujo poder é limitado pela Constituição. Dentre as funções do
mencionado princípio, destacam-se a de legitimador ético da Constituição, bem
como a de limitador e norteador da atuação do Estado, sem contar o papel
hermenêutico unificador da ordem jurídica que desempenha4.
5. POR UMA RELEITURA PÓS-POSITIVISTA DO
INTERESSE PÚBLICO: A DIGNIDADE HUMANA
COMO PARÂMETRO DE SUA IDENTIFICAÇÃO
Em razão da importância atualmente conferida ao princípio da dignidade
humana na pós-modernidade, tem-se problematizado não só o termo “interesse
público”, como, também, as alegações sobre sua superioridade.
Trata-se, sem margem de dúvidas, de posturas afinadas com o fenômeno
neoconstitucionalista da “filtragem”, segundo o qual procede-se à releitura
teleológica e sistêmica do direito – ex vi da legalidade enquanto juridicidade,
constitucionalidade ou legitimidade, levando-se em conta a força normativa atribuída
às bases do regime jurídico administrativo, de cujos princípios implícitos e explícitos
decorrem, diretamente, direitos subjetivos.
3
Segundo Sarmento, “a ideia de dignidade assenta raízes na tradição do pensamento judaico-cristão, a
partir da concepção do homem como ser criado à imagem e semelhança de Deus” (SARMENTO, 2003: 61).
4
A respeito, ver SARMENTO (2003: 70-73).
A relação entre dignidade humana e interesse público
73
Por tal razão, o interesse público não pode ser definido como sendo o do
Estado, porque este, além de ser tão só um elemento do espaço público, não detém
“carta branca” para restringir direitos, dada a ausência de cláusula geral que o
permita; nem como o da maioria ou o da coletividade, em face da supercomplexidade
social e da exigência de defesa e de socialização das minorias.
Conclui-se, na linha de entendimento de Grande Júnior (2006), que o interesse
público é aquele para o qual a Constituição, cujo núcleo é a dignidade humana, foi
projetada a realizar. Por abstrato, parece indeterminável, mas não o é, eis que sua
detecção se faz pela análise articulada da realidade com as regras e os princípios
próprios da Constituição ou da lei que com ela esteja conforme.
6. A INVIABILIDADE DA SUPREMACIA DO INTERESSE
PÚBLICO SOBRE O PRIVADO NO CONTEXTO DO
ESTADO SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO
A supremacia, tida, até então, por axioma utilizado em situações de contenção/
suspensão/supressão, enfim, de relativização dos direitos fundamentais pelos poderes
estatais, alçados, alhures, à condição de tutores dos interesses coletivos, tem sido posta à
prova por assertivas envolvendo as sub-regras da proporcionalidade do ato administrativo,
consistentes na adequação, na necessidade e na proporcionalidade em sentido estrito.
É que a Constituição não hierarquiza direitos fundamentais. Ao contrário,
organiza-os sistêmica e harmonicamente, sem desconsiderá-los em suas diferenças,
além de reputá-los intangíveis pelo Estado, com quem o homem, na modernidade,
rompeu a relação de “vassalagem” para ocupar a posição de cidadão. A mencionada
diferença não comporta a existência de um fundamento absoluto para os direitos
fundamentais, razão pela qual são eles considerados heterogêneos, e, assim,
dificilmente integralizáveis em sua plenitude.
Sobre o caráter heterogêneo dos direitos fundamentais, vale a lição de Bobbio
(1992):
Os direitos sociais, que se realizam mediante obrigações positivas, e as liberdades
tradicionais, que exigem obrigações negativas, um não fazer, são antinômicos,
no sentido de que o desenvolvimento deles não pode proceder paralelamente,
porque a realização integral de uns impede a realização integral dos outros. Dois
direitos fundamentais, mas antinômicos, não podem ter, um e outro, um
fundamento absoluto, ou seja, um fundamento que torne um direito e o seu
oposto, ambos, inquestionáveis e irresistíveis. O fundamento absoluto não é
apenas uma ilusão; em alguns casos, é também um pretexto para defender posições
conservadoras (BOBBIO, 1992: 33).
74
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
Uma vez constatada a antinomia, impõe-se a técnica da ponderação, realizável
previamente pela própria Constituição, ou, ainda, mediante conformação legislativa,
ou pelo Poder Judiciário, principalmente quando o órgão legiferante desconsidera
princípios constitucionais.
O que não se admite é que haja a supremacia de tal ou qual interesse,
porque é a mesma Constituição que, considerada em sua unidade material e formal
(ideias respectivas de relação total e de a-hierarquia entre os dispositivos), impõe
uma relativização atenta à máxima eficácia dos direitos fundamentais em face da
existência do princípio da dignidade da pessoa humana.
Por isso, autores há negando a superioridade conferida ao interesse público,
em verdadeira crítica ao “princípio” correlato5, que, segundo se afirma, se trata,
em verdade, de uma regra abstrata de preferência, verificável pela análise conjunta
e ponderada com outros interesses. Criticam-no como princípio, dada a sua abstrata
indeterminabilidade e incompatibilidade com a proporcionalidade e a concordância
prática, bem como a ausência de fundamento de validade de que é acometido.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A proeminência dos direitos fundamentais no constitucionalismo contemporâneo, porque atribuiu nova roupagem ao conceito de interesse público, fez com
que este se aproximasse mais da ideia de bem comum, aqui brevemente abordada
na perspectiva aristotélico-tomista, segundo a qual o todo e suas partes perseguem
o mesmo fim, a felicidade. Fora dessa perspectiva, a relação de oposição não se
dá entre os interesses público e privado, e sim entre interesse egoístico e bem
comum, que foi contrariado em suas noções básicas de finalidade, bondade,
participação, comunidade e ordem.
É nesse ponto que o princípio ético do bem comum e o princípio jurídico da
dignidade humana convergem para conferir justificação ética ao Estado, e não só
demonstrar a ausência de superioridade do interesse público sobre o privado, como
também a inexistência de dicotomia entre eles.
A despeito de não se ver razão nem para uma “dicotomia” (entendida como
contraposição) entre o interesse público e o privado nem, muito menos, para sua
superação, não se ignora a necessidade da técnica da ponderação em casos de
5
Para mais informações, consultar o ensaio intitulado “Repensando o princípio da supremacia do
interesse público sobre o particular”, de Humberto Ávila, que aponta limites conceituais e normativos
ao qualificativo de princípio atribuído à supremacia do interesse público.
A relação entre dignidade humana e interesse público
75
colisão, dada a diversidade de fundamentos dos interesses envolvidos, medida essa
que se justifica para que a persecução de um interesse não se converta no seu
exercício egoístico, violador da noção de comunidade.
Foi atentando para esse detalhe que a Constituição de 1988 erigiu à condição
de princípio a máxima eficácia dos direitos e garantias fundamentais, constante do
artigo 5º, §1º, da CR/88, e, conforme se notou, torna-se impossível pré-afirmar a
existência de um “princípio da supremacia do interesse público”, considerada a
noção de unidade material e formal da Constituição (ideias respectivas de relação
total e de a-hierarquia entre os dispositivos constitucionais).
Em termos amplos, a questão da dignidade humana e a supremacia do
interesse público chega a ter pontos de contato com a discussão sobre a legitimação
do poder político pelo direito, ou seja, a relação entre Têmis e Leviatã, tão bem
desenvolvida por Marcelo Neves (2008) em sua obra, que coloca a conciliação
entre poder eficiente e direito legitimador como um dos problemas do Estado
democrático de direito6.
Em termos específicos, lida com a elevação do princípio da dignidade humana
à condição de fundamento do Estado democrático de direito e a nova roupagem
que se dá ao interesse público no constitucionalismo contemporâneo, que se
concentra na pessoa concreta.
6
Segundo Neves (2008: XVIII), “nesse tipo de Estado, Têmis deixa de ser um símbolo abstrato de
justiça para se tornar uma referência real e concreta de orientação da atividade de Leviatã. Este, por
sua vez, é rearticulado para superar a sua tendência expansiva, incompatível com a complexidade
sistêmica e a pluralidade de interesses, valores e discursos da sociedade moderna.”
76
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
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Contratos internacionais de seguro marítimo de mercadorias: uma análise...
77
6
Contratos internacionais de seguro
marítimo de mercadorias: uma análise
comparativa entre a legislação
brasileira e a inglesa
International marine insurance
contracts of goods: a
comparative analysis between
english and brazilian legislation
JOSÉ CARLOS DE CARVALHO FILHO
Advogado; mestrando em Direito, pela Universidade Católica de Santos – Unisantos;
pós-graduado em Direito Civil e Direito Processual Civil, pela Universidade Estadual Paulista –
Unesp, de Franca. E-mail para correspondência: [email protected].
RESUMO
O presente estudo possui como objetivo uma análise comparativa entre a legislação
inglesa e a brasileira com relação aos contratos internacionais de seguro de mercadorias
no âmbito do Direito Marítimo. Serão traçados casos históricos relevantes que
interligam ambas as legislações, demonstrando que uma será originária da outra, mas
cada qual com sua característica peculiar. O interesse em contratar esse serviço protegerá
toda negociação, bem como terceiros interessados, o que se atém ao fato de que o
transporte marítimo é um dos mais econômicos quando se fala em logísticas
intercontinentais, mas também é o que mais oferece risco em seu trânsito.
Palavras-chave: contratos internacionais de seguro marítimo, legislações,
mercadorias, risco.
78
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
ABSTRACT
The aim of this study is to make a comparative analysis between english and brazilian
laws in international marine insurance contracts of goods. It will be traced historical cases
that connect both laws and demonstrate the origin from one another, but each with its
peculiar characteristic. The interest of contracting this service is based on the protection
of all negotiations, the parties who are tied, and, even though shipping is one of the most
economical intercontinental logistics it also offers the most risk in transit.
Keywords: international marine insurance contracts, laws, goods; risk.
1. INTRODUÇÃO
O Direito Marítimo surgiu como um ramo especial para as relações jurídicas,
pois, sendo um dos meios de transporte precursores para a expansão comercial
mundial, é tido como direito autônomo, mas conectado a demais códigos de leis.
Os contratos de seguro colocam em pauta uma crescente preocupação com a
segurança não só dos navios, mas também das mercadorias nele existentes, pois
aqui se fala em milhões de dólares em produtos e meses de trabalho para a realização
de uma negociação.
A evolução das cláusulas dos contratos internacionais de seguro marítimo
revela o esforço da indústria seguradora em acompanhar e responder, da melhor
forma, ao desenvolvimento, à concorrência e à complexidade da navegação e do
comércio marítimo. Tanto a legislação brasileira quanto a inglesa possuem alguns
pontos de divergência a respeito de como a lei vigora sobre esse vínculo jurídico;
entretanto, ambas terão o mesmo objetivo, ou seja, a harmonização entre as
partes envolvidas.
2. FATOS HISTÓRICOS RELEVANTES
O Direito Marítimo fundou-se a partir de códigos medievais, com destaque
para Os rolos de Oléron (Julgamentos de Oléron) e Consulado do mar; a
primeira publicação doutrinária – Ancient law merchant, escrita pelo inglês Gerard
Malynes – consistiu num resumo das práticas marítimas realizadas em alguns países
, que tratava sobre os contratos de seguro marítimo intitulado Guidon de la mer
(Guia do mar).
Alguns casos históricos de incidentes marítimos servem para ilustrar melhor
a importância desses contratos nas relações de negócios entre as partes. Foi a
partir de fatos reais que as legislações, principalmente a inglesa, inspiraram-se
para a criação de leis que vigorarão sobre sua corrente doutrinária.
Contratos internacionais de seguro marítimo de mercadorias: uma análise...
79
Pode-se mencionar, como exemplo, o incidente do navio Torrey Canyon,
um dos superpetroleiros mundiais1, de bandeira inglesa, que encalhou, derramando
milhares de toneladas de petróleo em alto-mar. Como consequência, catástrofes
ambientais incalculáveis, o que desvendou uma série de deficiências no sistema
jurídico internacional e inglês, mais especificamente, pois este era considerado, até
aquele momento, um dos mais aperfeiçoados. Esse fato marcou-se como o estopim
para diversas convenções – destaque para a Convenção de Bruxelas e a de Tóquio
–, que também colaboraram para a formação de regras para o seguro marítimo.
Mais recentemente, um caso, que demonstra a importância dos seguros
marítimos para ocorrências recentes de ataques piratas a mercadorias de navios,
foi noticiado por um site nacional, onde a matéria destacava:
Japoneses protegem navios na Somália
Uma missão antipirataria está sendo comandada pela Japan Maritime Self Defense
Force’s na região do Golfo do Áden, na Somália. Uma frota com 81 navios
mercantes está sendo escoltada pela instituição para protegê-los dos constantes
ataques piratas, colocando em prática uma lei que entrou em vigor em julho
passado, informou o governo japonês na última terça, dia 1/09/20092.
Esses incidentes, como se observa, servem como fontes para que os juristas
atentem a cada caso específico e colaborem para a evolução dos contratos
internacionais de seguro marítimo de mercadorias e suas cláusulas, como no primeiro
exemplo citado, que repercutiu internacionalmente entre os ecologistas e alterou
toda a legislação ecológica mundial na questão dos impactos ambientais e nos
casos de pirataria que, pela tendência moderna, se incluem como risco de guerra e,
portanto, foram inseridos em cláusulas nos contratos internacionais, principalmente
na legislação inglesa.
3. LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
3.1. Histórico brasileiro
Os interesses marítimos no Brasil são históricos e amplos. O mar foi via de
seu descobrimento, de colonização, de invasões e de comércio. Do ponto de vista
1
CALIXTO, Robson José. Incidentes marítimos: história, Direito Marítimo e perspectivas num mundo
em reforma da ordem internacional. São Paulo: Aduaneiras, 2004. p. 46.
2
GUIA MARÍTIMO NEWS. Japoneses protegem navios na Somália. Matéria publicada em 03/09/2009.
Disponível em: <http://www.guiamaritimo.com.br/nota.php?id=1605&gmn=1#>. Acesso em: 03
de setembro de 2009.
80
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
econômico, a maior parte de todo o comércio exterior brasileiro é realizada por
meio de transportes marítimos. Além disso, devem ser considerados os fatores
estratégicos, científicos, ecológicos, tecnológicos e geográficos que a matéria possui.
Nesse instante, surge, também, a preocupação com a segurança dos navios,
mercadorias e tripulantes, pois “despesas extraordinárias feitas a bem do navio ou
da carga, conjunta ou separadamente, e todos os danos acontecidos àquele ou a
esta, desde o embarque e partida até a sua volta e desembarque, são reputadas
avarias” (artigo 761 do Código Comercial – CCom).
Todo contrato internacional de seguro marítimo de mercadorias realizado
entre segurado e segurador tem como objetivo proteger a carga contra danos
inesperados, mas que possam ocasionar problemas homéricos nas relações. Em
regra, nem todos estão obrigados a contratar os seguros de mercadorias, uma vez
que o mesmo surge em decorrência dos Incoterms acordados. Entretanto, a sua
realização amenizará os impactos negativos gerados por possíveis avarias.
3.2. Legislação
Atualmente, convenções e tratados internacionais servem como embasamento para a utilização de princípios legais na aplicação do Direito Marítimo. O
Brasil, por não adotar legalmente o princípio da autonomia da vontade, normatiza
as relações marítimas por meio do Código Civil e do Código Comercial, da própria
Constituição Federal de 1988 e do Decreto-Lei n. 73/663. Mesmo caminhando
para tornar-se um Direito autônomo, as diretrizes do Direito Marítimo ainda estão
umbilicalmente ligadas a esses sistemas normativos, tratando-se de um direito
privado, mas com fortes influências do direito público.
O artigo 9º, caput, da Lei de Introdução do Código Civil destina-se às regras
aplicáveis aos contratos internacionais. Esse artigo legisla que as partes envolvidas
se submeterão às leis do país de celebração do contrato, mesmo que haja disposição
específica ou omissão da lei aplicável.
O ordenamento jurídico nacional legisla sobre informações necessárias para
se compor um contrato internacional de seguro marítimo de mercadorias e, para
isso, é importante que haja a descrição completa da mercadoria, a sua natureza,
além de peso, embalagem, valor, número de volumes, locais de embarque e
desembarque, riscos, veículo de transporte, valor do seguro e outras informações
3
Dispõe sobre o Sistema Nacional de Seguros Privados, regula as operações de seguros e resseguros
e dá outras providências.
Contratos internacionais de seguro marítimo de mercadorias: uma análise...
81
relevantes4. Tudo faz parte de uma burocracia que, ao mesmo tempo, protegerá os
interesses do segurador, do segurado e de terceiro interessado.
3.3. Artigos e sociedades legislativas
O Decreto-Lei n. 73, de 21 de novembro de 1966, juntamente com o Código
Civil vigente, em seus artigos 757 a 802, e o Código Comercial, entre os artigos 666
e 730, formam a base da legislação brasileira de seguros marítimos. Criaram-se,
portanto, sociedades anônimas e cooperativas de seguro por intermédio dos órgãos
integrantes do Sistema Nacional de Seguros Privados, como o Conselho Nacional
de Seguros Privados (CNSP), a Superintendência de Seguros Privados (Susep),
como já mencionado, e o Instituto de Resseguros do Brasil (IRB), que controlam e
disciplinam o mercado nacional.
Dispõe o artigo 666 do Código Comercial:
O contrato de seguro marítimo, pelo qual o segurador, tomando sobre si a fortuna
e riscos do mar, se obriga a indenizar ao (sic) segurado da perda ou dano que
possa sobrevir ao objeto do seguro, mediante um prêmio ou soma determinada,
equivalente ao risco tomado, só pode provar-se por escrito, a (sic) cujo
instrumento se chama apólice; contudo, julga-se subsistente para obrigar
reciprocamente ao segurador e ao segurado desde o momento em que as partes
se convierem, assinando ambas a minuta, a qual deve conter todas as declarações,
cláusulas e condições da apólice.
O Código de Defesa do Consumidor surge nesse campo, destacando a
questão contratual ao assegurar o equilíbrio entre os direitos e obrigações das
partes envolvidas, ou seja, reforça o comprometimento com a equidade de interesses
entre as partes a partir dessa intervenção regulamentadora, o que pode ser uma
garantia e uma fonte argumentativa a possíveis contratos abusivos.
Dispõe o Código de Defesa do Consumidor sobre os seguros:
CAPÍTULO III
Das Ações de Responsabilidade do Fornecedor de Produtos e Serviços
Artigo 101. Na ação de responsabilidade civil do fornecedor de produtos e
serviços, sem prejuízo do disposto nos Capítulos I e II deste título, serão
observadas as seguintes normas:
(...)
4
OCTAVIANO, Eliane Maria Martins. Curso de Direito Marítimo. Volume II. Barueri: Manole, 2008. p.
466-467.
82
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
II – o réu que houver contratado seguro de responsabilidade poderá chamar ao
processo o segurador, vedada a integração do contraditório pelo Instituto de
Resseguros do Brasil. Nesta hipótese, a sentença que julgar procedente o pedido
condenará o réu nos termos do art. 80 do Código de Processo Civil. (...).
3.4 .Características legais dos contratos nacionais de seguro
Como qualquer contrato, os seguros marítimos possuem características
específicas de acordo com sua aplicação. Assim, o seu início ocorre no momento
em que as mercadorias deixam o cais para ser carregadas a bordo, e seu
término ocorrerá no momento em que são colocadas em terra no porto de
destino, tendo um limite de 30 dias para que o navio inicie viagem e 30 dias
para descarga após o navio chegar ao ponto de destino. Trata-se de um padrão,
o que não impede que contratos adicionais sejam realizados entre as partes
para a extensão de sua validade.
Para que a seguradora fique obrigada a indenizar as partes pelas avarias
ocorridas às mercadorias, é necessário que a porcentagem do prejuízo seja igual
ou superior ao que foi estipulado na apólice, caso contrário essa franquia torna-se
inviável.
Os contratos de seguro nacionais devem possuir as seguintes características
legais para sua validação: (I) onerosidade, pois gera benefícios e vantagens para
um e outro; (II) bilateralidade, porque origina obrigações tanto para o segurado
como para o segurador, sendo tais obrigações o pagamento do prêmio pelo segurado
e a garantia prestada pelo segurador; (III) consensualidade, pois não mais se exige
a redução por escrito para formação do vínculo; (IV) adesão, por meio da qual o
segurado aceita cláusulas impostas pelo segurador na apólice impressa, não
ocorrendo discussão entre as partes.
O proprietário, seu representante legal, ou armadores em geral de embarcações com bandeiras nacional ou internacional, que farão suas inscrições ou seus
registros nas capitanias dos portos e órgãos subordinados – bem como as já inscritas
e registradas –, estão obrigados a contratar “o seguro obrigatório de danos pessoais
causados por embarcações ou por suas cargas5”.
O Guia de orientação e defesa do segurado, de 2006, elaborado pela
Susep, em seu glossário, lista as denominações dadas às partes e aos atos realizados
em um contrato de seguro: apólice; avaria; aviso de sinistro; condições gerais;
cosseguro; endosso; franquia; indenização; prêmio; proposta; resseguro; retro5
Dpem – Seguro obrigatório de danos pessoais causados por embarcações ou por suas cargas.
Contratos internacionais de seguro marítimo de mercadorias: uma análise...
83
cessão; risco; salvado; segurado; sinistro; e a descrição da própria Susep são os
termos adotados a fim de identificar as ações realizadas em um contrato.
Para todo seguro, busca-se garantir os direitos das partes envolvidas a fim
de prevenir o resultado de um evento inesperado quando existem duas ou mais
possibilidades, o que aqui se fala em “riscos6”. Dessa forma, as seguradoras são
contratadas para garantir a compensação desses eventos.
Naufrágio, encalhe, varação, abalroação/colisão da embarcação com qualquer corpo fixo ou móvel; explosão, incêndio, raio e suas consequências; ressacas,
tempestades e trombas marinhas; alijamento e arrebatamento pelo mar; queda de
lingada, nas operações de carga, descarga e transbordo; fortuna do mar, caso
fortuito ou de força maior são alguns dos exemplos de “riscos” cobertos pelos
contratos de seguro marítimo já que outra grande maioria de contratos securitários
não possui esse benefício.
Vale mencionar uma peculiaridade sobre os seguros marítimos para o caso
de mercadorias importadas, pois, por intermédio da Resolução CNSP7 n. 03, de 18
de janeiro de 1971, foram estipuladas como preferenciais as seguradoras estabelecidas no País. Assim, não só fica garantido o entendimento das leis como também
se evitam transtornos na conexão de competências, o que, por final, na prática,
facilita todo o desenvolvimento do processo.
3.5. Julgamentos
O Brasil já realizou julgamentos a respeito do assunto seguros marítimos
sobre mercadorias, como foi o caso da Apelação com Revisão CR 997938006 SP
(TJSP)8. Esse processo teve a Comarca de Santos como cenário, a apelante
Bradesco Seguros S/A e a empresa NST Terminais e Logísticas Ltda. No desfecho,
o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo não reconheceu o recurso de regresso
da apelante. São peculiaridades como esta que marcam os acontecimentos dentro
do Judiciário nacional quando o tema em questão se refere ao seguro marítimo de
mercadorias.
6
Evento incerto ou de data incerta que independe da vontade das partes contratantes e cuja ocorrência
dará direito à indenização descrita na apólice. Guia Susep, 2006, glossário.
7
Conselho Nacional de Seguros Privados.
8
Dados: 35ª Câmara de Direito Privado. Relator: José Malerbi. Julgamento: 13/10/2008. Publicação:
20/10/2008. Partes. Ementa: TRANSPORTE MARÍTIMO DE MERCADORIAS. SEGURO. AÇÃO REGRESSIVA. AVARIAS
NA CARGA. DEPÓSITO. INDENIZAÇÃO. COMPETÊNCIA. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/
filedown/dev1/files/JUS/TJSP/IT/CR_997938006_SP_13.10.2008.pdf>. Acesso em: 29 de setembro
de 2009.
84
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
4. LEGISLAÇÃO INGLESA
4.1. Histórico inglês
Ao dar continuidade a essa análise, busca-se agora o estudo sobre os contratos de acordo com a legislação inglesa, onde se verificará a sua influência na
construção das dos contratos internacionais de seguro marítimo nos demais países.
É relevante esse estudo, pois, a partir de experiências e casos concretos, formularam-se os primeiros contratos e se julgam os casos atuais.
O Reino Unido, mais especificamente a Inglaterra, possui uma legislação
originária conhecida como Common Law9 (Lei Comum), ou seja, um direito
costumeiro, de convenções constitucionais, casos práticos e jurisprudenciais. A
elaboração de uma legislação marítima, no que tange a assuntos de seguro, ocorreu
a partir de 1690, quando foi fundada a inglesa Lloyd’s10, a mais tradicional companhia
de seguros do mundo nos assuntos marítimos. Foi efetuado com ela o seguro do
transatlântico Titanic.
A fundação da Lloyd’s proporcionou à sociedade inglesa uma base jurídica
formal que lhe permitiu adquirirproperty and make byelaws with the full authority of
Parliament behind them. propriedade e fazer leis com plena autoridade parlamentar.It
confirmed Lloyd’s as a business institution with guidelines that can be seen Confirmamse, então, as regras de Lloyd’s, que se consolidou como uma instituição de negócios
com as orientações que podem ainda hoje ser trabalhadas com sucesso.
4.2. International marine insurance
Nesse contexto, a legislação inglesa adotaria, anos depois, como regra para
os seguros marítimos, as leis provenientes do English Marine Insurance Act
1906 (MIA 1906), ou Seguros Marítimos Ingleses – Ato de 1906, que regularizou
as ações no campo dos seguros marítimos. O MIA 1906 consiste numa codificação
de cerca de 200 anos de decisões judiciais, sendo que, ainda hoje, não há nenhum
documento equivalente a ela. Tal codificação também se tornou conhecida por ser
9
“A Common Law provém do Direito inglês não escrito que se desenvolveu a partir do século XII.
É a lei ‘feita pelo juiz’: a primeira fonte do direito é a jurisprudência. Elaborados por indução, os
conceitos jurídicos emergem e evoluem ao longo do tempo: são construídos pelo amálgama de
inúmeros casos que, juntos, delimitam campos de aplicação. A Common Law prevalece no Reino
Unido, nos EUA e na maioria dos países da Commonwealth. Influencia mais de 30% da população
mundial.” Panorama mundial do Direito. O Correio da Unesco, 2000, v. 28, n. 1, p. 26. Disponível
em: <http://www.ufrgs.br/bioetica/leiconce.htm>. Acesso em: 29 de setembro de 2009.
10
SOCIETY OF LLOYD’S. Cronologia sobre História de Lloyd’s. Disponível em: <http://www.lloyds.com/
About_Us/History/Chronology.htm>. Acesso em: 05 de setembro de 2009.
Contratos internacionais de seguro marítimo de mercadorias: uma análise...
85
“the mother of all marine insurance statutes11” (ou “a mãe de todos os estatutos
de seguros marítimos”).
De acordo com a palestra proferida pelo Professor Dr. Marko Pavliha:
(…) the contract of marine insurance is a special (insurance) contract of
indemnity which protects against physical and other losses to moveable
property and associated interests, as well as against liabilities occurring or
arising during the course of a sea voyage (R. Thomas). S. 1 of MIA 1906: A
contract of marine insurance is a contract whereby the insurer undertakes to
indemnify the assured, in manner and to the extent thereby agreed, against
marine losses, that is to say, the losses incident to marine adventure12.
Isso demonstra o quão importante se faz a análise crítica de casos vivenciados
pela sociedade inglesa na elaboração de leis que irão assegurar os interesses das
partes, bem como os interesses da sociedade.
O Ato de 1906 é utilizado nos casos de ausência de acordos das partes em
contrário. Todos os contratos marítimos de seguro subscritos na Inglaterra
encontram-se governados por vários conjuntos de cláusulas, também chamados
de Standard Marine Clauses, que, muitas vezes, eliminam o poder dos pressupostos
estabelecidos pela lei. Esse ato aprovou o uso da Lloyd’s Ship and Goods Form
of Policy (Formas de Política de Lloyd’s Navios e Mercadorias), anteriormente já
aprovado pela Lloyd’s, em 1779. O que fez o MIA 1906 foi elaborar cláusulas
anexas às políticas a fim de lidar com áreas determinadas de ineficácia da política
de Lloyd’s. Contudo, em 1983, aboliu-se a política de Lloyd’s, sendo esta substituída
por uma formulação mais simples, que age como uma folha de rosto para as cláusulas
relativas ao instituto.
Há a ideia de abolição também do MIA 1906, tendo em conta o estabelecimento de um código mais moderno. Entretanto, codificar novas regras não é
tarefa fácil para um país que tem como lei-mãe a Common Law. O funcionamento
real desta lei tem sido bastante satisfatório, dado que muitas das questões de fato
suscitadas são resolvidas por referência à evidência do mercado e também devido
11
Palestra: PAVHLIHA, Dr. Marko. Lecture on Marine Insurance Law. The course outline. IMO
International Maritime Law Institute. Malta, January 2004. Disponível em: <http://www.fpp.edu/
~mlas/slo/files/IMLI-Marine%20Insurance%20Law.pdf>. Acesso em: 08 de setembro de 2009.
12
O contrato de seguro marítimo é um contrato especial de indenização que protege contra perdas
físicas outros bens móveis e os interesses associados, bem como contra passivos que surjam ou
ocorram durante o curso de uma viagem pelo mar (R. Thomas). S. 1 de MIA 1906: um contrato de
seguro marítimo é um contrato pelo qual a seguradora se compromete a indenizar o segurado, na
forma e na medida acordada, em caso de perdas marítimas, ou seja, os prejuízos do incidente à
aventura marítima.
86
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
ao fato de os tribunais desempenharem um importante papel ao esclarecer as lides
sem dispor da lei.
O Judiciário inglês possui um papel fundamental ao esclarecer até onde a lei
pode ou não alcançar. Os tribunais já estão conseguindo desenvolver princípios
para situações novas aplicando a lei de forma mais flexível, de modo a refletir as
tendências do mercado. Assim, verifica-se que os tribunais ingleses conseguiram,
por intermédio de suas decisões, modernizar o Direito Marítimo de seguros.
O mercado de Londres Joint Hull Committee, formado pela Lloyd’s Underwriters’ Association – Associação de Seguradores Marítimos de Lloyd’s – em
consulta com as associações de armadores, seguradoras e corretores, desenvolveram a International Hull Clauses (IHC) – cláusulas internacionais do casco –
como um novo conjunto de cláusulas. O IHC entrou em vigor em 1º de novembro
de 2002.
No Institute Voyage Clauses of Hulls (ou Instituto de Viagem das Cláusulas
do Casco), surgem pontos destacados que dizem respeito apenas a matérias de
aplicação ao Direito inglês, ou seja, para uso apenas na política atual do mar.
Assim, destacam-se pontos que serão interpretados ao avaliar conflitos na órbita
dos seguros marítimos realizados com empresas de navios com bandeira inglesa.
As cláusulas da International Hull são divididas em três partes, sendo uma
parte a que contém as principais condições de seguro; a segunda parte, que apresenta
uma série de cláusulas adicionais que foram exigidas pelos assegurados e
adicionadas ao ITC (Institute Time Clauses) separadamente; e a terceira, que
contém provisões para sinistros e define os direitos e responsabilidades dos
seguradores e assegurados.
4.3. Cláusulas contratuais inglesas
Dentre os contratos de seguro, conforme a lei inglesa, algumas cláusulas
são mais utilizadas e têm como objetivo beneficiar o importador em caso de avarias
que possam ocorrer. Estas também estão divididas em três e serão definidas como
A, B e C. Cada cláusula terá uma característica específica e, assim, cada uma
atenderá a uma necessidade originária.
A cláusula A trata sobre o All risk (AR). Essa cláusula cobre riscos totais
ou parciais especificamente no objeto, possuindo uma cobertura mais completa
dentre as demais no seguro marítimo, salvo algumas exceções.
Na cláusula B, será tratado o Will average (WA). Cobrirá danos totais e
parciais já referentes ao volume, seja na carga, seja na descarga, avaria grossa e
Contratos internacionais de seguro marítimo de mercadorias: uma análise...
87
despesas de salvamento, colisão onde ambos são culpados, avarias simples e alguns
casos fortuitos de força maior. A Will Average excluirá algumas causas externas,
como embarques e desembarques, manipulação portuária, derrames e extravios,
contudo permitirá que cláusulas especiais e adicionais a complementem.
Por fim, a cláusula C, conhecida como FPA (Free of particular average),
refere-se à cobertura de perda total em decorrência de avaria grossa. Em situações de
avaria simples ou particular, a possibilidade de cobertura total fica restrita aos casos de
encalhe, naufrágio, soçobramento13, descarrilhamento de veículo terrestre ou
tombamento, colisão. Assim, ficam excluídas quaisquer hipóteses de cobertura em
avarias particulares, roubos ou extravios de mercadorias, exceto negociação anterior.
Desde 1996, consultas internacionais vêm sendo realizadas de modo a
aprimorar essas cláusulas e, no ano de 2009, algumas modificações foram realizadas
no que diz respeito às cláusulas de guerra e greve (Institute Cargo Clauses War
and Institute Cargo Clauses Strikes). Dentre outras modificações, destacam-se
as seguintes: (a) cláusula 4.3 – exclusão de preparação e embalagem; (b) cláusula
4.6 – exclusão de insolvência; (c) cláusula 7.3 – terrorismo; (d) cláusula 8 – cláusula
de trânsito; (e) cláusula 10 – alteração de viagem (novo).
Existirão as chamadas cláusulas acessórias e as de coberturas especiais.
Como o próprio nome diz, são pontos que não podem ser aplicados sem que cláusulas
básicas sejam utilizadas, e sua contratação dependerá, basicamente, de necessidades
do segurado, variando de acordo com legislações secundárias. Essas cláusulas
adicionais servem para completar os contratos de seguro em fatores específicos,
mediante negociação e pagamento de valores extras.
Convém citar algumas, devido à sua relevância para o transporte de
mercadorias. Nesse caso, têm-se as seguintes: a cláusula adicional transit in clause,
que trata da prevenção quanto ao porto de origem e destino, se ele não estiver
especificado no contrato; a cláusula held covered (omissões cobertas), segundo a
qual, não havendo má-fé, possíveis omissões do contrato ficam seguradas; a cláusula
adicional em trânsito, incluída a cláusula de depósito a depósito, o que segura a
mercadoria quanto ao transporte do depósito do exportador até o embarque no
navio; a cláusula de lucros esperados para seguros de importação, o que ampara
os casos de lucros não realizáveis devido a sinistros; finalmente, cláusula para
seguros de impostos sobre mercadorias importadas e cláusula de Direito Aduaneiro,
que previne o exportador quanto a possíveis problemas fiscais ao longo de
desembaraços aduaneiros, dentre outras.
13
Emborcar; virar de borco. Disponível em: <http://www.proriscoseguros.com.br/glossario.htm>.
Acesso em: 05 de setembro de 2009.
88
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
Sob esse enfoque, a legislação inglesa se destaca como uma das precursoras
nessa temática, não só pela longa experiência em navegações, mas também por
ter suas leis originadas a partir de casos concretos, visando ao bem comum.
5. PARALELOS COMPARATIVOS
O que se identifica a partir dos estudos sobre os contratos dos dois países é
uma legislação brasileira que possui uma união de interpretação entre o Código
Civil e o Código Comercial, regulamentando, especificamente, a aplicação das leis
securitárias marítimas. Em seu Título III, o Código Comercial se encontrará
totalmente dedicado às normas que regem a formulação de um seguro marítimo,
definindo desde a estrutura de formação de um contrato até peculiaridades que
devem ser atentadas.
No caso da legislação inglesa, a sua estrutura, por mais que esteja fomentada
em demais leis e casos práticos, se limitará a um único estatuto, o MIA 1906, o que
não impede que outros acordos sirvam de embasamento para o próprio contrato. A
partir dessa análise, pode-se verificar que, mesmo existindo para cada legislação
uma peculiaridade e forma estrutural, ambas tratarão de pontos em comum.
Os contratos internacionais de seguro marítimo nascem de uma mesma
fonte, e a legislação inglesa representa um papel importante nessa influência. As
diferenças surgem apenas quando o ordenamento nacional trata de prazos para
cumprimentos de obrigações e restrições à prática de atos dentro dos princípios
legais, enquanto os ingleses prezam o interesse coletivo e a interpretação de cada
caso específico.
6. CONCLUSÃO
Os meios de transporte marítimos destacam-se como sendo os primeiros
passos para a globalização e a industrialização dos países. Por esse motivo, os
contratos de seguro das mercadorias surgem como garantia para as relações
comerciais entre as partes. Tanto para a Inglaterra quanto para o Brasil, o comércio
marítimo é o grande colaborador para a expansão econômica de cada um.
A necessidade de adotar seguros para prevenir os riscos que o transporte
propicia e o interesse de buscar o melhor custo-benefício remetem os futuros
segurados a contratar empresas sem consultar a sua idoneidade, o que colocará
em risco toda a mercadoria existente. Com o aumento de seguradoras que buscam
lucros rápidos num mercado em franca expansão, os interesses se voltam para
contratos mal formulados e sem nenhum conhecimento quanto às leis a serem
Contratos internacionais de seguro marítimo de mercadorias: uma análise...
89
aplicadas. É na legislação inglesa que se encontrará a lei-mãe para os seguros de
mercadoria marítima e é nela que os demais países se basearão, com o propósito
de legislar sobre o tema.
Com um código de leis amparado pela Common Law, os doutrinadores
ingleses e seus juristas buscam fundamentos em casos práticos e julgados ao longo
da história, de modo a produzir soluções para controvérsias que beneficiem o
interesse comum, e não apenas uma parte. A partir da longa experiência inglesa,
os brasileiros, que possuem leis codificadas, criaram órgãos securitários com a
finalidade de elaborar normas específicas para os casos do Direito Marítimo, que,
mesmo com ares de Direito autônomo, possui laços estreitos com o Código Civil e
o Código Comercial.
Assim, reforça-se o ponto mencionado no início desse artigo, segundo o
qual, mesmo se tratando de países com ordenamentos jurídicos diferentes, os
contratos internacionais de seguro marítimo possuem a mesma fonte – o Direito
inglês – e o mesmo propósito: garantir a harmonia das relações entre as partes
envolvidas e prevenir riscos que possam afetar não só as referidas partes, mas
toda a coletividade.
REFERÊNCIAS
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de zonas costeiras e litorais pelo Acordo Ramoge: contribuições para o povo
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Aduaneiras, 2004.
CASTRO, Luiz Augusto de Araújo. O Brasil e o novo direito do mar: mar territorial
e zona econômica exclusiva. Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 1989.
GIBERTONI, Carla Adriana Comitre. Teoria prática do Direito Marítimo. 2. ed.
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CLAUSES.pdf>. Acesso em: 05 de setembro de 2009.
91
El embrión humano o nasciturus como sujeto de derechos
7
El embrión humano o nasciturus
como sujeto de derechos
The human embryo or nasciturus
as subject of rights
DORA GARCÍA FERNÁNDEZ
Profesora investigadora en la línea de Bioética y Derecho del Instituto de Investigaciones Jurídicas,
Coordinadora de Investigación y Publicaciones de la Facultad de Derecho de la Universidad Anáhuac
México Norte. Directora Editorial de la Revista Iuris Tantum. Miembro del Sistema Nacional de
Investigadores del CONACYT, México. Autora de varias obras jurídicas. www.doragarciaf.com.
RESUMEN
El análisis de la cuestión del comienzo de la persona humana es de vital importancia.
Es preciso reconocer el carácter de persona del embrión humano desde el momento
mismo de la fecundación. Es así que a partir de que el espermatozoide penetra el
óvulo comienza la existencia de la persona humana y desde entonces el embrión
debe ser sujeto de derechos que la legislación de cada país le debe reconocer.
Palabras claves: embrión humano, nasciturus, embriogénesis, derechos del embrión
humano.
ABSTRACT
The analysis of the moment that human life begins is of vital importance. It is
necessary to recognize that human embryos are persons since fecundation. In that
sense, since the sperm penetrates the ovum, a human being exists, and since that
point the embryo should be subject to rights that each and every country must
recognize.
Keywords: human embryo, nasciturus, embryogenesis, human embryo rights.
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Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
1. EL EMBRIÓN HUMANO: NASCITURUS
El hombre es un ser muy complejo. Su cuerpo está formado por millones de
células que se multiplican constantemente para sustituir a las que mueren por concluir
su ciclo de vida o por alguna otra causa. Pero, ¿desde cuando es ser humano?
Al respecto el profesor Jerôme Lejeune, catedrático de Genética de la
Universidad de la Sorbona, afirma que existe un ser humano:
[…] desde el momento mismo de la fecundación, desde el instante en que a la
1
célula femenina le llega toda la información que se contiene en el espermatozoide.
En el preciso instante de la unión de los gametos femenino y masculino , inicia
la formación de un nuevo ser, individual y autónomo. Se debe descartar la posibilidad
de un antes y un después, ya que no existe ninguna transformación esencial por la
cual el cigoto, embrión o el feto se convierta en algo que no fue desde el momento de
su concepción. Se es ser humano desde la concepción hasta la muerte.
En este mismo sentido, el Consejo de Europa estableció lo siguiente:
La ciencia y el sentido común prueban que la vida humana comienza en el acto
de la concepción y que en este mismo momento están presentes en potencia
2
todas las propiedades biológicas y genéticas del ser humano.
Pero, para entender estas afirmaciones es importante repasar someramente
el proceso de fecundación o concepción de un ser humano.
Cada célula humana cuenta con un núcleo en donde contiene 46 cromosomas,
formados por millones de genes o caracteres de la herencia. De la combinación de
estos genes dependen las características que nos hacen únicos e irrepetibles. A
toda esta información, contenida en las células de nuestro cuerpo, se le denomina
genoma o código genético.
El espermatozoide, la célula germinal3 masculina, y el óvulo, la célula germinal
femenina, están programados naturalmente para unirse y formar un nuevo ser
humano. Cada uno de ellos contiene la mitad de la información genética necesaria
para formar un hombre o mujer con sus características físicas y psicológicas propias,
distinto de todos los demás. Gracias a la unión de los gametos femenino y masculino,
1
LEJEUNE, Jerome, ¿Qué es el embrión humano?, Documentos del Instituto de Ciencias para la
Familia, Ediciones Rialp, Madrid, 1993.
2
Consejo de Europa, Resolución Núm. 4376, Asamblea del 4 de octubre de 1982.
3
Células germinales: Células reproductoras masculinas y femeninas capaces de dar origen a un
embrión. Art. 314, Ley General de Salud (LGS), dirección en Internet: http://www.scjn.gob.mx/
Legilación/, fecha de consulta: 23 de mayo de 2009.
El embrión humano o nasciturus como sujeto de derechos
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la célula que resulta de esta unión tendrá una dotación normal de 46 cromosomas:
23 proporcionados por el padre y 23 por la madre.
El conocimiento biogenético actual demuestra indiscutiblemente que el
embrión humano es tal desde el momento de la fecundación. Cuando un
espermatozoide (gameto masculino) fecunda un óvulo (gameto femenino) se
constituye un nuevo ser humano que técnicamente se llamará cigoto. Inmediatamente
después de la fusión de ambos gametos se dan una serie de eventos científicos
sucesivos y encadenados, que lleva al desarrollo del embrión humano.
Estos eventos científicos son:
1) La fusión de membranas de ambos gametos y la penetración del núcleo del
espermatozoide al óvulo: en la fecundación, el núcleo del espermatozoide
penetra el citoplasma del óvulo, en forma casi inmediata a la fusión de las
membranas. El núcleo, portando los 23 cromosomas paternos, constituye el
pronúcleo masculino.
2) El recambio de proteínas del ADN del espermatozoide: el ADN paterno
está contenido en el núcleo del espermio mediante unas moléculas de
proteínas, llamadas protaminas. Estas proteínas, después de la fecundación,
son rápidamente recambiadas por otras proteínas llamadas histonas que
están presentes en el citoplasma del óvulo.
3) Duplicación de los cromosomas en cada pronúcleo masculino y femenino,
por separado: el pronúcleo masculino y el femenino NO se fusionan. En
cada pronúcleo por separado sucede una duplicación de todos los
cromosomas. Estos núcleos se acercan, se interdigitan y desaparecen sus
envolturas nucleares y los 46 cromosomas duplicados se ordenan en el
cigoto, iniciándose la primera división celular.
4) Se originan las dos primeras células o blastómeros: la primera división celular
del cigoto da origen a las dos primeras células o blastómeros, evento que
ocurre horas después de la fecundación. Esta división separa a los 46
cromosomas duplicados (23 paternos dobles y 23 maternos dobles), de modo
que cada célula hija o blastómero recibe una copia de cada uno de los 46
cromosomas.
5) Primeros estadios del desarrollo embrionario: los dos blastómeros se
dividen a su vez en cuatro células y posteriormente en ocho y así
sucesivamente, hasta formar el embrión humano y luego el feto y finalmente
el recién nacido.4
4
SANTOS, Manuel, Revista Universitaria, Vol. 58, págs. 9-13, 1997, en “ Qué es lo sustativamente
nuevo que ha revelado la investigación moderna biogenética”, dirección en Internet: www.bio.puc.cl/
cursos/bio027/revuni1.htm, fecha de consulta: 16 de enero de 2003.
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El óvulo es una célula muy importante ya que lleva consigo el alimento necesario
para la subsistencia del nuevo individuo durante los primeros días de su existencia.
Durante la etapa fértil de la mujer, después de realizado el acto sexual, los
millones de espermatozoides depositados por el hombre en la vagina de la mujer
viajan varias horas con el fin de llegar y conquistar el óvulo que se encuentra
descendiendo por las trompas de falopio. La mayoría de los espermatozoides mueren
en el intento de llegar al óvulo y sólo los más fuertes logran encontrarlo para
fusionarse definitivamente con él y formar un cigoto5.
Este cigoto es un ser humano constituido por una sola célula que en su
interior contiene toda la información y la capacidad necesaria para desarrollarse
por sí mismo durante nueve meses con ayuda de su madre, hasta poder nacer. A
partir del momento de la concepción hay una serie de eventos que son una clara
evidencia de que los gametos ya no actúan como dos sistemas independientes
entre sí, sino como un nuevo sistema.
El cigoto tiene información genética que caracteriza a los organismos de la
especie homo sapiens y así se ha distinguido:
Capacidad informacional: información que puede dirigir el desarrollo de un ser
humano. El cigoto no posee todas las moléculas informativas para su desarrollo,
pero tiene las moléculas con potencial de adquirir capacidad de información,
cosa que se logra con el tiempo mediante interacciones con otras moléculas.
Contenido informacional: información que se puede usar para desarrollar un ser
humano, aunque no esté disponible en un determinado momento para hacerlo.
En este sentido, la mayoría de las células de un adulto tienen contenido
informacional pero únicamente usan una parte.6
Algunas horas después de la fecundación, el cigoto avanza por la trompa
mientras va multiplicando el número de sus células: 2, 4, 8, 16, hasta llegar a constituir
un ser de miles de millones de células, todas con un mismo código genético y cada
una de ellas con determinada información especializada7. Es durante este proceso
que los científicos llaman al nuevo individuo: embrión.8
5
6
7
8
Se le llama cigoto o zigoto a la célula huevo resultante de la fusión de dos gametos, uno masculino
y otro femenino. Diccionario de la Lengua Española, Océano, México, 1997, pág. 165.
“El estatuto del embrión”, en Cátedra de Biotecnología, Biodiversidad y Derecho, dirección en
Internet: www.biotech.bioetica.org, fecha de consulta: 1º de abril de 2008.
A este fenómeno se le llama diferenciación celular.
SÁNCHEZ SÁNCHEZ, Homero, El derecho a la vida del concebido no nacido, Tesis de la Facultad de
Derecho, Universidad Anáhuac, México, 2000, págs. 1-5.
El embrión humano o nasciturus como sujeto de derechos
95
Entonces, se puede deducir de lo anterior que el embrión humano es la
fusión de dos células altamente especializadas, extraordinariamente dotadas,
estructuradas y programadas, llamadas gametos: el óvulo y el espermatozoide.
Esta fusión se lleva a cabo durante el proceso de fecundación. El embrión humano
está caracterizado por una nueva y exclusiva estructura informativa que comienza
a actuar como una unidad individual. Se puede afirmar que el embrión es la forma
más joven de un ser humano.
Algunos sostienen que para poder hablar de vida humana se deben tener en
cuenta cuatro procesos básicos en el desarrollo del embrión:
1. La fusión de los gametos o fecundación, ya que aparece un genotipo
diferenciado del padre y de la madre.
2. La segmentación o proceso a través del cual se da la individuación.
3. La implantación en el útero, momento en el que se da una realidad nueva con
unidad y unicidad.
4. Aparición de la corteza cerebral, a la que se le considera como el sustrato
biológico de la racionalización.9
Muchos investigadores piensan que para que se dé la individualización de un
ser humano se precisan dos propiedades que ya se mencionaron antes: la unidad y
la unicidad. La unidad se refiere a la realidad positiva que se distingue de otra y la
unicidad es la calidad de ser único (e irrepetible).10
Otros autores opinan que el embrión carece de personeidad, la cual implica
una interioridad de autoconciencia y autoposesión, de tal modo que no puede ser
considerado una persona. Pero ¿qué pasa con aquellos individuos que por algún
accidente caen en coma y ya no poseen esta autoconciencia y autoposesión de la
que se habla? ¿Acaso ya no son personas?
Otra postura, contraria a la anterior es la que apoya Zubiri, quien opina que
la personeidad es lo constitutivo del ser humano, la raíz de su actuar, por lo cual
considera que el embrión sí tiene personeidad y por tal motivo es persona.11
Lejeune, en cambio, no habla del concepto de persona, simplemente sostiene
que el embrión es, sin ninguna duda, un ser humano y lo que lo define como tal es
9
JUNQUERA DE ESTEFANÍ, Rafael, Reproducción asistida, filosofía ética y filosofía jurídica, Tecnos,
Madrid, España, 1998, pág. 45.
10
Ibid, págs. 45-46.
11
X. ZUBIRI, El hombre y Dios, citado por JUNQUERA ESTEFANÍ, Rafael, pág. 46.
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su pertenencia a la especie humana. La protección del embrión y su rango especial
no dependen de cuándo se convierte en persona sino de las posibilidades de alcanzar
la situación de persona humana.12
Para determinar cuando es que comienza la vida humana, existen divergencias entre los especialistas. Algunos consideran que los embriones humanos son
entidades que se encuentran en un estado de desarrollo donde no poseen más que
un simple potencial de vida y durante los primeros 14 días posteriores a la
fecundación se le considera un “pre-embrión”13 y una vez anidado en el útero es
un embrión. Actualmente la ciencia ha dado la más rotunda razón al argumento de
que en cuanto ha concluido la fecundación (ya sea de forma natural o artificial) se
ha concebido un ser humano único e irrepetible (que no puede tener otro carácter
que el de persona) y nos encontramos, por lo tanto, ante un ser humano con derecho
a ser protegido por el ordenamiento jurídico.14 En efecto, las investigaciones de los
equipos de Richard Gardner y Magdalena Zernicka-Goetz concluyen lo siguiente:
El cigoto, la fase unicelular y primera de todo organismo, tiene ya una organización
individual. El término de la fecundación es un nuevo ser: una realidad viva
celular (cigoto) diferente de cualquier otra célula, puesto que posee polaridad y
asimetría, mostrando así que se ha constituido mediante un proceso de
autoorganización de la célula “híbrida” resultado de la fusión de los gametos
paterno y materno. El cigoto tiene los componentes moleculares nuevos (no
presentes en el óvulo ni en el espermio) que le hacen poseer ya el plano de
crecimiento según los ejes del cuerpo. La manifestación directa de la organización
embrionaria es que ya la primera división celular da lugar a la aparición de dos
células diferentes del cigoto, desiguales entre sí y con destino diferente en el
embrión. La interacción célula-célula activa informan a cada una de las células
15
de su identidad como parte de un todo bicelular.
Retomando lo anteriormente citado, el cigoto tiene carácter individual pues
está organizado de forma asimétrica, y de tal forma que en la primera división se
producen dos células distintas que se organizan en una unidad orgánica al interactuar
entre ellas. Cada ser humano, a lo largo de su vida, guarda memoria de esta primera
12
LEJEUME, J., op.cit., págs. 65-76.
En realidad “pre-embrión” es un término reductivista de la persona que lo acerca más a ser un
material biológico.
14
“Carta de una experta española a los Senadores de la República Oriental del Uruguay”, Natalia
López Moratalla, Universidad de Navarra, Departamento de Bioquímica y Biología Molecular,
dirección en Internet: http://www.bioeticaweb.com/Comentarios_juridicos/Moratalla_uruguay.htm,
fecha de consulta: 11 de junio de 2003.
15
H. PEARSON, “Your destiny from day one”, en Revista Nature, citado por LÓPEZ MORATALLA,
Natalia.
13
El embrión humano o nasciturus como sujeto de derechos
97
división por lo que pasa de ser un individuo unicelular a ser un organismo de dos
células y en consecuencia no existe lo que algunos llaman “pre-embrión”, es decir,
no se trata de una realidad diferente del embrión sino que se está ante este mismo
embrión pero en su etapa preimplantatoria.16 Más adelante este embrión se
convertirá en feto, luego en niño, adolescente, adulto y anciano. Desde el momento
de la concepción nos encontramos ante el mismo ser humano que pasará por todas
estas etapas durante su vida.
Ahora bien, en el ámbito jurídico, a este embrión, se le llama nasciturus,
que significa: “Ser humano como sujeto de derecho que ha sido concebido, pero
que no ha nacido aún.”17
2. CONDICIÓN JURÍDICA DEL NASCITURUS
Tradicionalmente la doctrina ha sostenido la idea de que la persona física
nace para el Derecho a partir de su nacimiento, es decir, a partir de que es expulsado
del vientre materno.
Para Jesús Ballesteros, en el plano jurídico hay que distinguir tres sistemas:
A. El sistema anglosajón, que niega la condición de sujeto de derechos al embrión
y le considera objeto de experimentación, material biológico disponible, simple
objeto y favorable a la clonación sin fines reproductivos. En una postura
parecida hay que considerar a la legislación española de 1989 y a la sentencia
del 2000, que autorizan la congelación de embriones y la utilización científica
de los mismos previo consentimiento informado de los padres, así como el
diagnóstico preimplantatorio, lo que tiene claro carácter eugenésico.
B. El modelo alemán, que ocupa una posición intermedia después de establecer
que las técnicas de fecundación asistida únicamente son lícitas si no hay
otro modo de combatir la infertilidad, o contra enfermedades hereditarias.
Asimismo, prohíbe tales técnicas a efectos de investigación. En la FIV sólo
se pueden fecundar los embriones que serán implantados.
C. El modelo iberoamericano, que defiende abiertamente el carácter personal
del embrión y por tanto lo considera sujeto de derechos. El estatuto del
18
embrión humano es la cuestión central de la Bioética.
16
Ibid.
PALOMAR DE MIGUEL, Juan, Diccionario para Juristas, Mayo Ediciones, México, 1981, pág. 901.
18
BALLESTEROS, Jesús, “El estatuto del embrión”, en http:// :www.mercaba.org/Filosofia/ética/BIO/
estatuto_del_embrion.htm, fecha de consulta: 29 de julio de 2009.
17
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En México, el jurista Rafael Rojina Villegas establece que el nasciturus
tiene personalidad antes de nacer, para ciertas consecuencias de derecho, como
son: capacidad para heredar, para recibir legados y donaciones. Y para ser heredero,
legatario o donatario se requiere tener personalidad jurídica ya que por tales calidades
se adquieren derechos patrimoniales. Se pudiera decir que el nasciturus está
representado por sus padres pero esta representación descansa en la existencia
del representado, de manera que se admite que el embrión humano es persona y
que tiene una capacidad mínima para considerarlo sujeto de derechos.19
Para fundamentar lo anteriormente expuesto, nuestro Código Civil otorga al
concebido y no nacido los siguientes derechos:
1) Derecho a heredar y a recibir donaciones
Artículo 1314. Son incapaces de adquirir por testamento por intestado, a causa
de falta de personalidad, los que no estén concebidos al tiempo de la muerte del
autor de la herencia, o los concebidos cuando no sean viables, conforme a lo
dispuesto en el artículo 337.
Artículo 2357. Los no nacidos pueden adquirir por donación, con tal que hayan
estado concebidos al tiempo en que aquélla se hizo y sean viables conforme a lo
dispuesto en el artículo 337.
Artículo 337. Para los efectos legales, sólo se tendrá por nacido al que,
desprendido enteramente del seno materno, vive veinticuatro horas o es
presentado vivo ante el Registro Civil. Faltando alguna de estas circunstancias,
no se podrá interponer demanda sobre la paternidad o maternidad. 20
2) Detener y modificar las obligaciones alimentarias de la sucesión hasta su
nacimiento.
Artículo 1638. Cuando a la muerte del marido la viuda crea haber quedado encinta,
lo pondrá en conocimiento del juez que conozca de la sucesión, dentro del
término de cuarenta días, para que lo notifique a los que tengan a la herencia un
derecho de tal naturaleza que deba desaparecer o disminuir por el nacimiento del
póstumo.
Artículo 1643. La viuda que quedare encinta, aun cuando tenga bienes, deberá
ser alimentada con cargo a la masa hereditaria.21
19
ROJINA VILLEGAS, Rafael, Derecho Civil Mexicano, Tomo I: Introducción y Personas, 7ª edición,
Porrúa, México, 1996, págs. 434-437.
20
Ibid.
21
Ibid.
El embrión humano o nasciturus como sujeto de derechos
99
3) Suspender la partición de la herencia.
Artículo 1648. La división de la herencia se suspenderá hasta que se verifique el
parto o hasta que transcurra el término máximo de la preñez, mas los acreedores
podrán ser pagados por mandato judicial.22
De acuerdo a lo anterior, la legislación civil reconoce, implícitamente, la
existencia del nasciturus como persona y no como cosa, en consecuencia es
inadmisible atentar contra su vida o su dignidad.
En cuanto a la condición jurídica del nasciturus, antes de las reformas, la
Ley General de Salud (LGS) establecía tres distintas etapas del desarrollo del
nasciturus:
Artículo 314. Para efectos de este título se entiende por:
[…] IV. Pre-embrión: el producto de la concepción hasta el término de la segunda
semana de gestación.
V. Embrión: el producto de la concepción a partir del inicio de la tercera semana
de gestación y hasta el término de la duodécima semana gestacional.
VI. Feto: el producto de la concepción a partir de la decimotercera semana de
edad gestacional, hasta la expulsión del seno materno […]23
Por otro lado, en el artículo 6º del Reglamento de la Ley General de Salud
en Materia de Control Sanitario de Disposición de Órganos, Tejidos y
Cadáveres de Seres Humanos24 (RLGSDOTC), sólo se reconocen dos etapas
del desarrollo del nasciturus, que son embrión y feto y no enuncia una fase “preembrionaria” como lo hacía la LGS.
La Ley General de Salud fue reformada en el año 2000 y en ella sólo se
reconocen dos fases del desarrollo del nasciturus:
Artículo 314. Para efectos de este título se entiende por:
[…] VIII. Embrión, al producto de la concepción a partir de ésta, y hasta el
término de la duodécima semana gestacional;
22
Ibid.
Art. 314, LGS.
24
Reglamento de la Ley General de Salud en Materia de Control Sanitario de Disposición de
Órganos, Tejidos y Cadáveres de Seres Humanos (RLGSDOTC), dirección en Internet: http://
www.scjn.gob.mx/Legilación/, fecha de consulta: 28 de mayo de 2009.
23
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IX. Feto, al producto de la concepción a partir de la decimo-tercera semana
de edad gestacional, hasta la expulsión del seno materno[…]25
El concepto de “pre-embrión” no tenía razón de ser ya que como argumenta
el genetista francés Jerome Lejeume, no se necesita ninguna subclase a la que
llamar “pre-embrión” porque no hay nada antes del embrión. Antes de éste hay un
óvulo y un espermatozoide que cuando se unen forman un cigoto que cuando se
divide se convierte en embrión o lo que él llama, un “jovencísimo ser humano”.26 Y
tal como lo afirma Robert Spaemann, filósofo alemán: “algo no puede llegar a ser
alguien”. El embrión, con independencia de si fue procreado por los medios naturales
o por los artificiales, es un ser humano, con su propia carga genética, alguien con
características que lo hacen único e irrepetible de entre los demás seres humanos.
3. AUTONOMÍA INTRÍNSECA DEL NASCITURUS
Para José Carlos Abellán, las personas gozan de una autonomía que permite
que se desarrollen como tales. Esto se logra mediante una sucesión de actos
voluntarios y, la mayoría de las veces, libres.
El embrión humano es una persona y por lo tanto posee, como los demás
seres humanos, una autonomía intrínseca.
En caso de conflicto de dos voluntades autónomas como lo es la de la madre
y la del embrión que se encuentra en su vientre, el Derecho hace prevalecer la
autonomía de la madre con un valor autárquico, es decir, con un poder para
“gobernarse” a sí misma.
Ante esta situación, es indispensable reivindicar el valor objetivo que
representa la autonomía que posee el embrión humano, la cual se deriva de su
dignidad como ser humano.27
Y así, aunque este embrión se encuentre en el vientre de su madre, ella no
debe pasar por encima de su autonomía y tomar decisiones, con respecto a ese
embrión, que no le corresponden, ya que el embrión humano representa una vida
biológica distinta de la madre, única e irrepetible.
25
Art. 314, Decreto por el que se reforma la Ley General de Salud, publicado en el Diario Oficial de
la Federación el 28 de abril de 2000.
26
LEJEUNE, Jerome, op.cit.,pág. 44.
27
ABELLÁN SALORT, José Carlos, “La autonomía del embrión humano”, en El inicio de la vida (Identidad
y estatuto del embrión humano), 2ª edición., Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, 1999, págs.
231 y 232.
El embrión humano o nasciturus como sujeto de derechos
101
Con respecto a esto, Rodríguez Luño-R. y López Mondéjar expresan lo
siguiente:
Se habla –con razón– de una dependencia del embrión respecto de la madre. Es,
sin embargo, una dependencia puramente extrínseca: la madre nutre al feto, que
no podría vivir sin ella, igual que sucede con el recién nacido. Pero el nuevo
organismo se forma bajo el influjo directivo y perfectamente ordenado de esa
especie de “centro de control” que constituye el genotipo. Estamos frente a un
caso de “autogobierno biológico”.28
4. PROTECCIÓN DEL NASCITURUS EN LA LEGISLACIÓN MEXICANA
De la protección del nasciturus se desprende cuál será la protección del
ser humano en sus etapas de niño, adolescente, adulto, anciano y moribundo29, de
ahí la importancia de que toda legislación reconozca los derechos del ser humano
desde el momento de la concepción.
En México, además de la Ley General de Salud y de su reglamento,
mencionados en el punto anterior, se encuentra el Reglamento de la Ley General
de Salud en materia de Investigación para la Salud (RLGSIS)30, en el que
también se distinguen sólo dos etapas del desarrollo del nasciturus (embrión y
feto) pero además lo protege de investigaciones que pudieran afectar su desarrollo
o que lo expongan a un riesgo, exceptuando la intervención que se tenga que hacer
para salvar la vida de la madre.
Nuestra Constitución en su artículo 4º (párrafo cuarto) establece que “Toda
persona tiene derecho a la protección de la salud”, y esto da a entender que el
embrión y el feto, al ser personas, también tienen derecho a la protección de su
salud y de su bienestar. Así, cualquier manipulación del nasciturus debe perseguir
siempre su bienestar y la procuración de su salud.
La vida del embrión se infiere es protegida por los artículos 14 y 16
constitucionales, en los que se establece lo que sigue: “Art. 14. …Nadie podrá ser
privado de la libertad o de sus propiedades, posesiones o derechos31, sino mediante
juicio seguido ante los tribunales previamente establecidos”. Y “Art. 16. Nadie
28
RODRÍGUEZ LUÑO-R y LOPEZ MONDÉJAR, La fecundación in vitro, citados por ABELLÁN SALORT, José
Carlos, pág. 241.
29
LOMBARDI, Luigi, citado por BALLESTEROS, Jesús, página de Internet citada anteriormente.
30
Reglamento de la Ley General de Salud en materia de Investigación para la Salud (RLGSIS) Arts. 4547, dirección en Internet: http://www.scjn.gob.mx/Legilación/, fecha de consulta: 28 de mayo de 2009.
31
En este caso el derecho a la vida.
102
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puede ser molestado en su persona, familia, domicilio, papeles o posesiones, sino
en virtud de mandamiento escrito de la autoridad competente, que funde y motive
la causa legal del procedimiento”.32 En este sentido, un ser humano –y el embrión
lo es– se entiende que está incluido en la protección constitucional que ofrecen los
artículos 4º, 14 y 16.
Ahora bien, la controversia que genera la inclusión del concebido no nacido
en el término de “persona” fue resuelta por el propio constituyente cuando por
motivo de las reformas a los artículos 30, 32 y 37 en materia de nacionalidad,
señaló expresamente, en el artículo tercero transitorio de la Constitución, que “las
disposiciones vigentes con anterioridad a la fecha en que el presente decreto entre
en vigor, seguirán aplicándose, respecto a la nacionalidad mexicana, a los nacidos
o concebidos durante su vigencia”.33
Por lo tanto, esta mención hecha por el constituyente en la que se les reconoce
derechos constitucionales a los concebidos, deja fuera de discusión legal si el
concebido no nacido es persona o no lo es.34
Por otro lado, la Suprema Corte de Justicia de la Nación, en su papel de
intérprete última de nuestra Constitución estableció en su tesis jurisprudencial 13/
2002 que “… el producto de la concepción se encuentra protegido desde ese momento
y puede ser designado como heredero o donatario. Se concluye que el derecho a la
vida del producto de la concepción, deriva tanto de la Constitución Política de los
Estados Unidos Mexicanos, como de los tratados internacionales y las leyes
federales y locales”.
Entonces, el embrión humano, desde el momento de su concepción, tiene el
derecho a la protección que debe ser dada por nuestras leyes a toda persona, es
decir, tiene derecho a la vida, a que se respete su dignidad como ser humano, a la
libertad y a preservar su salud. Y no obstante que su vida dependa biológicamente
de la madre, el embrión tiene su propia individualidad, su propio código genético,
que lo hace un ser humano único e irrepetible cuya existencia debe protegerse.
5. PROTECCIÓN JURÍDICA DEL NASCITURUS
EN EL DERECHO COMPARADO
En las legislaciones de los países europeos no existe una definición legal del
concepto de embrión, tampoco en el Convenio del Consejo de Europa sobre Derechos
32
Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos, Editorial Porrúa, México, 2009.
Diario Oficial de la Federación, 20 de marzo de 1997, citado por INCHAURRANDIETA SÁNCHEZ MEDAL,
Jaime, “Sobre el aborto...”, en revista El Mundo del Abogado, mayo 2007, pág. 36.
34
Ibid, pág. 36.
33
El embrión humano o nasciturus como sujeto de derechos
103
Humanos y Biomedicina. Este convenio no fue firmado por el Reino Unido por
considerarlo muy restrictivo y tampoco fue adoptado por Austria y Alemania por
considerarlo demasiado permisivo. Este instrumento no prohíbe la investigación
con embriones y no define lo que es una “adecuada protección” para el embrión en
el caso de que se permita la investigación. Sólo el Reino Unido permite la creación
de embriones con fines de investigación, en cambio Alemania y Austria prohíben la
investigación en sus ordenamientos jurídicos.35
En España, el artículo 15 de su Norma Fundamental establece que “Todos
tienen derecho a la vida y a la integridad física y moral…”36 Y es en este término
“todos” dónde se podría incluir el nasciturus quien queda entonces protegido por la
Constitución aún cuando no afirma explícitamente que sea titular del derecho
fundamental. Si nos ajustamos literalmente al texto parece que es suficiente su
redacción, pero existen diversas posiciones al respecto. Unos consideran que el término
“todos” incluye al concebido no nacido, otros, se inclinan por pensar que este término
sólo incluye a quienes hayan nacido y señalan que “todos” significa “todas las
personas”. Aunque los derechos no pueden ser ejercidos por alguien que todavía no
ha nacido, el derecho a la vida es un derecho inherente al embrión humano.37
En su Ley 14/2006 de 26 de mayo sobre Técnicas de Reproducción
Humana Asistida, se permite la investigación con embriones humanos. En este
ordenamiento no se le da al embrión el carácter de ser humano pues puede ser
utilizado en investigaciones con fines terapéuticos y reproductivos.
Ahora bien, en este país el aborto es un delito salvo en tres supuestos:
violación denunciada, graves taras físicas o psíquicas del feto (previo dictamen de
dos especialistas) y grave peligro para la vida o para la salud física o psíquica de
la madre (con el informe de un médico). Los médicos que emiten los dictámenes
deben ser distintos a los que practiquen el aborto. En la violación y la malformación
fetal los plazos para llevar a cabo el aborto son 12 semanas para el primer supuesto
y 22 para el segundo. Sin embargo, no hay límite de tiempo en caso de que exista
grave riesgo para la salud física o psíquica de la madre.
35
IAÑEZ PAREJA, Enrique, “Ética del uso de embriones humanos”, Departamento de Microbiología e
Instituto de Biotecología de la Universidad de Granada, España, en: http://www.ugr.es/~eianez/
Biotecnologia/clonetica.htm#_Toc3656107, fecha de consulta: 22 de octubre de 2009.
36
Art. 15, Constitución Española, en: http://narros.congreso.es/constitucion/constitucion/indice/
index.htm, fecha de consulta: 19 de octubre de 2009.
37
SANCHEZ BARRAGÁN, Rosa de Jesús, “Protección jurídica de la vida prenatal, con especial relevancia
en el Derecho Constitucional Español”, en: http://www.bioeticaweb.com, fecha de consulta: 30 de
septiembre de 2009.
104
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
Por último, el Código Civil Español expresa que el nacimiento determina la
personalidad, pero el concebido no nacido se tiene por nacido para todos los efectos
que le sean favorables.38 Estos efectos favorables se enfocan principalmente a
intereses económicos o de filiación, ya que este ordenamiento permite las donaciones
a los concebidos no nacidos.39
En Argentina se considera al nasciturus como una persona por nacer, por
ello, su derecho positivo reconoce que la existencia de la persona comienza en el
momento de la concepción. A nivel constitucional, el artículo 75 reconoce la
personalidad del niño por nacer durante toda la extensión del embarazo. Asimismo,
su Código Civil consagra el comienzo de la persona física desde el momento de la
concepción en el seno materno, siendo, desde ese momento, titular de un conjunto
de derechos. El artículo 51 de este ordenamiento establece que “todos los entes
que presentasen signos característicos de humanidad, sin distinción de cualidades
o accidentes, son personas de existencia visible”.40
En Brasil existen disposiciones que protegen los derechos del concebido,
pero que introducen una distinción entre el concebido y el nacido. En este país
existen tres posturas al respecto: Una es que la personalidad comienza desde la
concepción, otra es que el nasciturus posee una personalidad condicional y la
última es que el nasciturus tiene personalidad a partir de su nacimiento.41 Es así
que el Novo Código Civil Brasileiro expresa lo siguiente: “Art. 2º. A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei poe a salvo,
desde a concepção, os direitos do nascituro” que traducido al español significa:
“La personalidad civil del hombre comienza con el nacimiento con vida; más la ley
pone a salvo los derechos del nasciturus desde la concepción.”42
En 2005, fue aprobada por el Senado brasileño la Ley de Bioseguridad. Fue
una decisión muy polémica que enfrentó a la comunidad científica y religiosa de
Brasil, ya que dicho ordenamiento permite el uso de embriones generados a partir de
la fecundación in vitro y que están congelados desde hace más de tres años en
clínicas de fertilización en investigaciones y terapias médicas. Según los miembros
que avalaron dicha ley, ésta no viola el derecho a la vida, pero la Procuraduría General
38
Art. 29, Código Civil Español, en http://www.ucm.es, fecha de consulta: 1º de octubre de 2009.
Art. 627, ibid.
40
LAFFERRIERE, Jorge Nicolás, “El derecho ante la manipulación embrionaria”, en http://www.uca.edu.ar,
fecha de consulta: 1º de octubre de 2009.
41
Ibid.
42
Novo Código Civil Brasileiro, Cámara Municipal de Curitiba,en: http://www.cmc.pr.gov.br, fecha
de consulta: 1º de octubre de 2009.
39
El embrión humano o nasciturus como sujeto de derechos
105
de la República denunció que constituye una violación al principio constitucional que
asegura la protección de la vida humana ya presente el en embrión.43
En Chile, su Código Civil hace una distinción entre la existencia natural y la
legal de la persona, estableciendo que la existencia natural principia con la concepción
y se prolonga hasta el nacimiento, en cambio, la existencia legal de toda persona
principia al nacer, es decir, al separarse completamente de su madre.44 Pero, aunque
al nasciturus no se le reconozca existencia legal, la Constitución Política de Chile
asegura a todas las personas “el derecho a la vida y a la integridad física y
psíquica…” y establece también que “la ley protege la vida del que está por nacer”.45
Cabe resaltar que en Chile está prohibido el aborto en todas sus formas, aunque
sea por razones médicas.46
6. A MANERA DE CONCLUSIÓN
Es un hecho que el embrión humano es una realidad biológica que representa
el inicio de la vida humana, con su propia carga genética que lo distingue como un
ser único e irrepetible. Desde el mismo momento de la concepción posee plena
dignidad humana y por lo tanto, posee también el derecho fundamental de la vida,
por lo cual se le debe otorgar la protección jurídica necesaria.
El tema concerniente a la protección jurídica del embrión humano requiere de
un constante estudio derivado del vertiginoso avance de la investigación en las ciencias
de la salud, avance que muchas veces atenta contra la dignidad del nasciturus.
La desvalorización que algunas personas hacen a la vida humana en sus
primeros estadios es un grave atentado al embrión humano y a su dignidad como
persona, por ello es de suma importancia que la legislación de cada país lo reconozca
como sujeto de derechos.
43
Constitución de la República Federativa de Brasil, Artículo 5º, en: http://www.bibliojuridica.org/
libros/4/1875/2.pdf, fecha de consulta: 22 de octubre de 2009.
44
Art. 74, Código Civil Chileno, en: http://www.nuestroabogado.cl/codcivil.htm#primero, fecha de
consulta: 9 de octubre de 2009.
45
Art. 19 -1º de la Constitución Política de la República de Chile, en: http://www.leychile.cl, fecha de
consulta: 9 de octubre de 2009.
46
“La política y el aborto terapéutico en Chile”, en: http://www.spanish.xinhuanet.com, fecha de
consulta: 17 de marzo de 2009.
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Ius cogens
8
Ius cogens
Ius cogens
EBER BETANZOS
Director General de Política Criminal de la Fiscalía Especializada para la Atención de Delitos
Electorales. Estudió la carrera de abogado en la Escuela Libre de Derecho (ELD),
teología en la Escuela de Ciencias Religiosas de la Universidad LaSalle y filosofía en la Universidad
Panamericana. Es maestro en Estudios Humanísticos por el Instituto Tecnológico de Estudios
Superiores de Monterrey. Obtuvo el diploma de estudios avanzados en el Doctorado en Derechos
Humanos de la UNED. Profesor de argumentación jurídica en el Instituto Nacional de Ciencias
Penales y de historia del derecho patrio en la ELD. Es autor del libro Discordia Constitucional:
Benito Juárez y la Constitución de 1857. E-mail: [email protected].
RESUMEN
Durante mucho tiempo el tema del ius cogens fue sólo tópico de discusiones
académicas, pero adquirió gran actualidad desde que la Comisión de Derecho
Internacional de la ONU hizo referencia a él, en su proyecto de artículos acerca del
derecho de los tratados (1966). Por tal motivo en este artículo intentaremos delimitar
la noción de ius cogens, que no siempre es abordado por todos los estudiosos del
derecho internacional de la misma manera.
Palabras claves: Ius cogens, derecho internacional, derecho interno, coercibilidad.
ABSTRACT
For long time the topic of ius cogens in the international law was only for academic
purposes; but since the International Law Commission of the United Nations make
reference to them in the project of articles on international treaties (1966), the topic
gained a lot of relevance. For that reason this article tries to build elements for the
notion of ius cogens, which is not always, explained in the same way by the authors
of international law.
Keywords: ius cogens, international law, internal law, constraint.
110
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
1. LOS CARACTERES DE LAS NORMAS
PERTENECIENTES AL IUS COGENS
Para dar una idea más patente de lo que sería el ius cogens algunos autores
lo vincularon con nociones similares a su contenido normativo tomadas del derecho
interno, tales como las de orden público, como del derecho público o de derecho
constitucional; sin embargo, estas analogías utilizadas, en lugar de aclarar la noción
de ius cogens –al olvidar que existen diferencias considerables entre el orden
jurídico internacional y el estatal– más bien presentan obstáculos para la clarificación
de su concepto.
Esto no significa que el ius cogens sea necesariamente una noción exclusiva
del derecho internacional, ya que puede pertenecer en común al orden jurídico
internacional y al estatal –entendiendo el derecho como un todo jurídico que integra
reglas de conducta de observancia obligatoria de distinta naturaleza–, al mismo
tiempo que presenta caracteres muy diferentes según se le considere en uno o el
otro de estos ordenes.
Definido en el artículo 50 del Proyecto de Artículos acerca del Derecho de
los Tratados elaborado por la Comisión de Derecho Internacional de la Organización
de las Naciones Unidas se dispone:
Es nulo todo tratado en conflicto con una norma imperativa de derecho
internacional general de la que ninguna derogación es permitida y que no puede
ser modificada más que por una nueva norma de derecho internacional general
que tenga el mismo carácter.
Cabe tomar en cuenta que esta definición tomó en consideración tres elementos:
para tener la calidad de ius cogens; una norma debe ser al mismo tiempo:
1. Imperativa.
2. Pertenecer al derecho internacional general.
3. Anular los tratados concertados que violan sus disposiciones.
Por otra parte, en la Convención de Viena sobre el Derecho de los Tratados,
se establece en la Parte V. Nulidad, terminación y suspensión de la aplicación de
tratados, sección 2. Nulidad de los tratados, artículo 53:
Tratados que estén en oposición con una norma imperativa de derecho
internacional general (ius cogens). Es nulo todo tratado que, en el momento de
su celebración, esté en oposición con una norma imperativa de derecho
internacional general.
111
Ius cogens
Para los efectos de la presente Convención, una norma imperativa de derecho
internacional general es una norma aceptada y reconocida por la comunidad
internacional de Estados en su conjunto como norma que no admite acuerdo en
contrario y que sólo puede ser modificada por una norma ulterior de derecho
internacional general que tenga el mismo carácter.
En tal sentido, la académica mexicana, Loretta Ortiz Ahlf (1999), deduce de
este artículo elementos que identifica como característicos del ius cogens:
1. Debe tratarse de una norma de derecho internacional general que obligue a
todos los estados.
2. Ha de ser una norma imperativa, que no admite acuerdo en contrario.
3. Debe ser reconocido por la comunidad internacional en su conjunto.
4. Será modificable por otra norma que tenga el mismo carácter.
En otro parámetro, el ius cogens también ha sido definido por Erik Suy
(1967) como:
El cuerpo de reglas generales de derecho cuya inobservancia puede afectar la
esencia misma del sistema legal al que pertenecen a tal punto que el sujeto de
derecho no puede, bajo la pena de nulidad absoluta, apartarse de ellas por medio
de convenios particulares.
A partir de estos primeros elementos introductorios podemos explorar sus
elementos principales: a) ser una norma imperativa; b) tener carácter de una norma
de derecho internacional general. 3. Anular los tratados concertados que violan
sus disposiciones.
1.1. Norma imperativa
Con base en los elementos anteriores podemos partir de la idea de que una
norma imperativa no es sinónimo de norma obligatoria.
Todas las normas de derecho internacional son en principio obligatorias; sin
embargo, si bien el hecho de que se cree una obligación para a cargo de un Estado
significa que otro estado tendrá derecho de exigir su aplicación.
En este sentido, también es cierto, que por regla general, un sujeto de derecho
puede renunciar al derecho de exigir su aplicación y aceptar que la obligación que
respecto a él existe no se aplique.
112
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
Por tanto, es posible que dos Estados soberanos decidan que en lo que se
refiere a sus relaciones mutuas, no se apliquen ciertas normas del derecho
internacional que les imponen obligaciones mutuas, o decidan aplicar normas distintas
a las previstas por el derecho internacional general.
En contraposición, el ius cogens se caracteriza porque un Estado no puede
liberarse de las obligaciones que le impone una norma de ius cogens con respecto
a otro Estado ni siquiera mediante un tratado; es decir, con el consentimiento de
ese otro Estado (no puede renunciar por sí mismo a sus derechos).
De lo visto, podemos colegir que el ius cogens -como su nombre lo indicapresenta un carácter prohibitivo, pero en un sentido muy particular, ya que el alcance
de esta prohibición es inhabilitar cualquiera de sus disposiciones.
El ius cogens introduce una limitante a la autonomía de la voluntad de los
estados, a su libertad contractual, considerada tradicionalmente absoluta al
representar una faceta muy importante de la soberanía de los Estados, de tal manera
que el ius cogens puede ser considerado en prejuicio de la soberanía de los Estados.
Sin embargo, se contra argumenta: la garantía suprema de la independencia
política y económica de los pueblos no es la soberanía absoluta, sino el derecho
internacional que garantiza su respeto, aunque ello sin duda no dejar de ser relativo,
pues el imperio del derecho internacional también se relaciona con las condiciones
fácticas de voluntad de cumplimiento en los estado soberanos.
Un punto que merece recalcarse es que si las normas de ius cogens son
normas fundamentales y de una gran importancia para la sociedad internacional,
no por ello todas las normas fundamentales –es decir de inserción en el entramado
constitucional de las naciones– del derecho internacional forman parte del ius
cogens.
Cabe tomar en cuenta que la prohibición de toda derogación de las normas
de derecho internacional que conforman el ius cogens puede justificarse, de manera
general, por dos hipótesis:
a) Existencia de reglas destinadas a proteger intereses que superan a los intereses
individuales de los estados, en el marco de las garantías fundamentales. Por
ejemplo: normas relativas al respeto de los derechos del hombre a partir del
supremo respeto a la dignidad humana, sobre todo en el caso de que se
perjudique a todo un grupo de personas.
b) Prohibición que garantice la protección del Estado en contra de sus propias
debilidades o en contra de la excesiva fuerza de sus eventuales socios
internacionales. Ello representa una protección en contra de las desigualdades
113
Ius cogens
en el poder de negociación, tales como el establecimiento de cláusulas de
garantía a sectores estatales en posición de desventaja.
1.2. Norma de derecho internacional general
El hecho de que el ius cogens conste exclusivamente de normas del derecho
internacional general recalca su carácter de universalidad.
Sí expresa valores de carácter ético, desde luego estos no pueden ser
impuestos por medio de la fuerza imperativa que le pertenece más que si son
absolutos y por consiguiente no conocen límites geográficos en su aplicación.
Con base en lo anterior es posible formular esta pregunta: ¿Puede concebirse
el ius cogens regional? Una concepción así no es imposible, por el momento no
ésta reconocido, pero señalemos que si algunas reglas validas en el grupo particular
de un estado son consideradas especialmente importantes, y deben por tanto
prevalecer sobre otras, no resultará necesario que adquieran el carácter de ius
cogens.
Aún así, si se puede elaborar el ius cogens regional, estará subordinado al
ius cogens mundial, tal como lo define la Comisión de Derecho Internacional, ya
que éste prohíbe expresamente que un grupo de estados soberanos pueda derogar
sus existencias, hasta en las relaciones mutuas de sus miembros.
Es importante señalar que una noción en donde sí existe acuerdo amplio es
en la idea de derecho internacional general, como el conjunto de las normas aplicables
a todos los estados miembros de la sociedad internacional, por oposición a las
normas internacionales aplicables sólo a algunos de ellos y que constituye el derecho
internacional particular, ya sea en forma regional, local o bilateral.
Debemos hacer énfasis en este punto: la definición del artículo 50 del Proyecto
de Artículos acerca del Derecho de los Tratados da cuenta que toda norma de ius
cogens puede ser modificada por una norma de la misma naturaleza, de donde
descubrimos que se pueden encontrar normas imperativas, además de las que
expresamente pertenecen al ius cogens.
De esta forma se observa que las normas de ius cogens son normas de
derecho positivo, y por lo tanto, se integran al orden jurídico por el juego del sistema
de fuentes del que este orden consta.
Sin embargo, todos los modos de formación del derecho internacional no
pueden dar origen a normas de ius cogens. Sólo pueden hacerlo los que son el
principio del derecho internacional general y sobre este punto el Proyecto de la
Comisión de Derecho Internacional guardó silencio.
114
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
1.3. Anular los tratados concertados que violan sus disposiciones
Este es el carácter esencial de la institución del ius cogens y deriva de la
preminencia jerárquica que se establece sobre las fuentes del derecho internacional
a favor de éste, una vez generados los consensos necesarios que generen un vínculo
jurídico obligatorio en este sentido.
Sin duda, en esta materia, la nulidad de una norma jurídica constituye la
sanción más grave del derecho internacional, mismo que emana de manera muy
directa de la importancia fundamental que adquieren las normas de ius cogens
para la sociedad internacional.
Por ello la violación del ius cogens no sólo provoca la nulidad de los tratados
contrarios -salvo en el caso de que se aluda a un tratado que establezca una nueva
norma de ius cogens, donde no habría derogación sino modificación de sus
contenidos- sino que también involucra la nulidad de una regla consuetudinaria
regional o local, interna o internacional, que conlleva a una derogación de sus
disposiciones.
2. CLASIFICACIÓN DE UNA NORMA DEL DERECHO INTERNACIONAL
GENERAL EN EL IUS COGENS
Si se parte de la idea, desde el punto de vista jurídico, de que el carácter
específico del ius cogens obedece al hecho de que todo acto particular que provoca
una derogación de sus disposiciones se anula, es este carácter el que debe ser
establecido cada vez que se presuponga que una norma determinada del derecho
internacional general forma parte de él.
Cabe señalar que esta demostración es difícil de hacer en lo que se refiere
a los principios generales del derecho, en el sentido del artículo 38 del Estatuto de
la Corte Internacional de Justicia, de donde constituyen principios comunes a todos
los órdenes jurídicos, por tanto no se imponen por las necesidades propias de la
comunidad internacional, basados en principios de igualdad de derechos, la
obligatoriedad de los pactos, igualdad soberana, solución de controversias por medios
pacíficos –excluyendo en toda forma el uso de la fuerza–, la protección de los
derechos humanos y la buena fe en los acuerdos.
Tómese nota de que la aparición de normas con carácter de ius cogens es
relativamente reciente en el debate, aunque el derecho internacional se encuentra
en un proceso de rápida evolución.
115
Ius cogens
Esto se nota con más claridad en el comentario al artículo 50 del Proyecto
de Artículos acerca del Derecho de los Tratados (artículo 53, modificado por la
Conferencia de la Convención de Viena de 1969) cuando nos dice:
La comisión estimó conveniente establecer en términos generales que un tratado
es nulo si es incompatible con una norma de ius cogens y dejar que el contenido
de esta norma se forme en la práctica de los Estados y la jurisprudencia de los
tribunales internacionales.
De este modo, en su análisis, nos atendremos a las normas de derecho
convencional y a las de derecho consuetudinario:
2.1. En el derecho convencional internacional
Adquirirá el carácter de ius cogens, si el tratado que la consagra dispone
expresamente que toda derogación de sus disposiciones será sancionada con la anulación.
Por ejemplo, el artículo 49 del Proyecto de la Comisión, que dispone que un tratado
cuya concertación se obtuvo por medio de amenazas o del empleo de la fuerza es nulo.
La consecuencia de esta disposición es dar el carácter de ius cogens a la
norma que prohíbe la amenaza o el empleo de la fuerza con vistas a imponer a un
Estado la aceptación de un tratado.
2.2. En el derecho consuetudinario
Hay que partir del consensus sobre el que se fundamenta la costumbre:
existe la convicción de que la norma tiene tal importancia que no puede descartarse
mediante un particular y que, por consiguiente, conlleva la anulación de todo convenio
concertado convenido por los estados. Por ejemplo el no reconocimiento a
situaciones de facto establecidas como violatorias al derecho internacional y a la
inhabilitación del recurso de guerra.
En el informe de 1966 de la Comisión de Derecho Internacional presentó
algunos ejemplos de ius cogens:
a. Un tratado internacional relativo a un caso de uso ilegítimo de la fuerza, con
violación de los principios de la Carta de la ONU.
b. Un tratado internacional relativo a la ejecución de cualquier otro acto delictivo
en derecho internacional.
c. Un tratado internacional destinado a realizar o tolerar actos tales como la
trata de esclavos, la piratería o el genocidio, en cuya represión todo estado
está obligado a cooperar.
116
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
d. Los tratados internacionales que violen los derechos humanos, la igualdad
de los Estados o el principio de la libre determinación.
En la doctrina también se mencionan como ejemplos de normas de ius
cogens: las que prohíben la guerra de agresión, el genocidio, la piratería, el comercio
de esclavos, el uso de la fuerza, las que protegen los derechos humanos, la no
intervención, la autodeterminación de los pueblos.
Además la jurisprudencia internacional ha echado mano de las normas de
ius cogens para dar resolución a los conflictos planteados, como norma imperativa
para los Estados (Casos de la plataforma continental del Mar del Norte fallo de 20
de febrero de 1969, caso relativo a la Barcelona Traction, Light and Power Company
Limited fallo de 24 de julio de 1964 y fallo de 5 de febrero de 1970, entre otros)
Finalmente, a manera de comentario final, es conveniente tener en cuenta
que la demostración de que una norma cualquiera del derecho internacional general
posee el carácter de ius cogens requiere para cada caso una amplia investigación,
en el que los caracteres centrales radicaran en la función de obligatoriedad entre
los estados, sin admitir acuerdos en contrario.
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117
9
Desbordamiento de los mínimos
morales en los derechos humanos:
exclusión y justicia
Overpassing minimum moral principles
in human rights: exclusion and justice
DORA ELVIRA GARCÍA
Profesora - investigadora de tiempo completo de la Escuela de Humanidades y Ciencias Sociales de
Instituto Tecnológico y de Estudios Superiores de Monterrey (ITESM), Campus Ciudad de México.
Actualmente es Líder de Investigación de Proyectos de Humanidades de la institución señalada.
Coordinadora de la Cátedra UNESCO-Tecnológico de Monterrey sobre Ética y Derechos humanos.
Autora de Variaciones en torno al liberalismo, Ed. Galileo /Universidad de Sinaloa, 2001, México;
El liberalismo hoy. Una reconstrucción crítica del pensamiento de John Rawls, Ed. Plaza y
Valdés,2003, México; Del poder político al amor al mundo. Hannah Arendt; Ed. Porrúa, 2005,
México; Perspectivas y aproximaciones en torno a la política, la ética y la cultura desde la
hermenéutica analógica, Ed. Dúcere, 2004, México. Coordinadora y editora de varios libros, entre
ellos El sentido de la política; Derechos humanos y hermenéutica analógica; Etica, persona y
sociedad, ética, profesión y ciudadanía, Estudios de género y hermenéutica analógica.
[email protected].
RESUMEN
El presente texto lleva a cabo una reflexión en torno a situaciones que cotidianamente
vivimos en nuestro mundo contemporáneo y que son generadoras de severas
injusticias. Es preciso continuar con la defensa de los derechos humanos dado que
su contravención rompe con los límites morales. Situaciones de clara injusticia por
la exclusión que muchos seres humanos sufren, proceden de diversas causas, entre
ellas, la absolutización de lo económico y su despreocupación generalizada en
torno a la responsabilidad moral.
Palabras claves: derechos humanos, mínimos morales, injusticia, responsabilidad.
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ABSTRACT
This text makes a reflection on some realities lived in our contemporary world which
produces severe injustices. We have to continue the defense of human rights because
the failure to do so destroys moral boundaries. Injustice is evident because human
beings suffer exclusion, and this injustice is caused by the absolutization of
economics and the forgetting of moral responsibility.
Keywords: human rights, moral minimums, injustice, responsability.
“La ética, enteramente autónoma, sigue proporcionando
el referente normativo para juzgar el mundo y para abrigar
una modesta esperanza respecto a su transformación, una
esperanza ligada al imperativo del disenso, esto es, al
imperativo moral de decir que no a cuanto se nos antoja
intolerable por injusto e indigno”
Javier Muguerza 1
“Para quienquiera que fuera una vez excluido y destinado
a la basura no existen sendas evidentes para recuperar la
condición de miembro de pleno derecho. Tampoco existen
caminos alternativos, oficialmente aprobados y proyectados, que cupiera seguir (o que hubiera de seguir a la fuerza)
hacia un título de pertenencia alternativo. […]¿Se tiran
las cosas por causa de su fealdad o son feas porque se las
ha destinado al basurero?
Zigmunt Bauman2
1. A MODO DE INTRODUCCIÓN: EL SUSTRATO
HUMANO SIGUE SIENDO LO MORAL
¿Por qué seguir pensando en la necesidad de la ética en nuestros días?¿Por
qué continuar con las consideraciones en torno a los derechos humanos? Preguntas
como éstas son recurrentes y han de vislumbrarse de manera obligada porque
existen personas que están en situaciones absolutamente inaceptables e injustas
en diversos aspectos humanos.
1
MUGUERZA, J, citado en GUERRA, M.J. y ARAMAYO, R. Los laberintos de la responsabilidad. España:
CSIC/Plaza y Valdés Editores, 2007, p. 12.
2
BAUMAN, Z. Vidas desperdiciadas. Barcelona: Paidós, 2005, pp. 30 y 13.
Desbordamiento de los mínimos morales en los derechos humanos: exclusión y justicia
119
Es preciso repensar qué es lo que hemos venido haciendo para con ello
evitar repetir y reproducir, en la medida de lo posible, los graves problemas que
generan tales situaciones que responden a modelos que necesariamente tenemos
que repensar. Sólo así podremos cambiarlos y combatirlos para humanizarlos.
Dentro de tales modelos, uno de los grandes equívocos que ha persistido en
el pensamiento contemporáneo y que se ha reforzado por la intención constante de
pensar en el “crecimiento” de la producción de recursos únicamente desde el
marco de la economía. Ésta ha sido una pretensión persistente de reducir todos los
problemas humanos únicamente al ámbito económico. Como sabemos además,
tales formas reduccionistas son las que han generado la debacle que se está
sucediendo en el mundo, porque se deja de lado un terreno fundamental en la vida
humana: el ámbito moral.
Las realidades como las que apuntamos han propiciado situaciones de violencia
que apreciamos en cada instante en nuestro país. Ellas van más allá de los límites de
lo moral, de modo que esta transgresión se evidencia como forma de destrucción de
lo humano y por ende resulta ser profundamente injusta para quienes la sufren.
Es precisamente este desbordamiento moral el que ha generado el desmoronamiento de los ámbitos humanos, desde los mismísimos derechos humanos hasta
los elementos de carácter económico y político que constituyen el andamiaje humano.
Se han recrudecido las formas de relación humana de cuño violento que
avasallan recurrentemente los derechos humanos. Una de esas formas de violencia
es la exclusión, –hermanada generalmente a situaciones de pobreza– que con sus
diversas cartas de presentación y expresión ocasiona –en los segmentos relegados
y repudiados de la humanidad– la cancelación de esos derechos, con la consecuente
deriva de las diversas formas de abyección humana provocada por instancias de
dominio, de abuso y arbitrariedad de unos seres humanos sobre otros.
Esto marca la significación de los que están fuera, es decir, de los excluidos
como residuos de la humanidad, como desechos que no hay por qué incluir. Las
consideraciones que se hagan en torno a ellos están generalmente impregnadas de
desprecio, sin pensar que son consecuencias de una sociedad injusta que no les ha
procurado ni permitido tener lo necesario para ser apreciados y por ende incluidos
dentro de esa sociedad.
Quisiera destacar a lo largo de este escrito, que desde la existencia de una
conciencia moral es posible atestiguar cómo la ruptura de los límites morales
expresados en estos fenómenos de exclusión, significa la destrucción de lo humano.
Desde ahí es que la tarea que ha de llevar a cabo una ética crítica es abordar los
problemas de carácter ético que se articulan con su dimensión social, que es la
120
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
justicia3. Tal faena crítica “empieza cuando el sujeto se distancia de las formas de
moralidad existentes, de sus usos “normales”, y se pregunta por la validez de sus
reglas y comportamientos”4 poniéndolos en tela de juicio, sobre todo cuando tal
moralidad permite situaciones inaceptables tales como la exclusión inhumana, que
hace de los derechos humanos recursos fútiles. De ahí que tenga que pensarse en
la defensa de lo humano como algo debido por su raigambre moral, sobre todo ante
situaciones amenazantes y desde ahí se apele a la urgente responsabilidad moral.
Esta última se tiene que enfrentar a las identidades rotas de aquellos que son dejados
fuera de los beneficios de los que sí se ubican dentro. El fenómeno de la pobreza tan
complicado hoy día –porque no sólo tiene que ver con recursos materiales– es un
ejemplo que constituye causa y efecto del fenómeno de la exclusión.
Las situaciones de injusticia y de falta de consideración a los derechos
humanos se derivan de causales que generalmente –aunque no únicamente– son
del dominio económico, y a la par, tienen efectos tan destructivos que dejan a
quienes resultan excluidos, como simples residuos humanos.
El tema es evidentemente moral, y aunque el punto de partida ha de tener
ese mismo tinte –por lo que tiene que ver con los derechos humanos– sin embargo,
sus implicaciones son de carácter social, político, económico y legal. Éstas últimas
han de ser consideradas para la reconstrucción de los elementos propios de lo
humano, elementos que han sido recurrentemente desdeñados y pisoteados por
quienes muestran una faz de dominio generadora de enorme injusticia.
2. LA DEFENSA DE LO HUMANO FRENTE A LOS PARADIGMAS
DEL CONTINUO CRECIMIENTO ECONOMICISTA. Y, ¿LA
RESPONSABILIDAD?
Hoy día, por desgracia nos encontramos sometidos a múltiples intereses que
destruyen lo humano que nos es propio, al violentarlo y reducirlo a mero instrumento
sujeto a diversos tipos de dominio. Como apuntábamos antes, uno de ellos es
innegablemente de carácter prevalentemente económico, ámbito el que ha venido
extendiéndose de manera incesante en todos los espacios humanos, inundando y
tiñendo con su fuerza las demás áreas humanas. Este reduccionismo de carácter
económico ha hecho que todos los terrenos de lo humano contengan una tonalidad
económica, con lo que se evidencia una reificación de lo humano con los demoledores
resultados que ya conocemos en el horizonte actual, por la ruina de las personas.
3
4
VILLORO, L. Sobre el principio de la injusticia: la exclusión, en Isegoría, 22, 2000, p. 103.
Ibid, p. 111.
Desbordamiento de los mínimos morales en los derechos humanos: exclusión y justicia
121
Cabe entonces una obligada reflexión en torno a la relevancia de la
responsabilidad de las acciones. Es preciso advertir “los vericuetos, a veces
pobremente iluminados, de los laberintos de la responsabilidad: el incremento de la
desigualdad fruto de la globalización económica,”5 entre otros graves fenómenos
que conllevan formas de violencia y de exclusión en los diferentes campos humanos.
Todas estas situaciones han sido favorecidas por el mismo ser humano y las
diversas fuerzas que lo amenazan son generadas por quienes pretenden los beneficios
individuales sin apreciar el colectivo y propiciadas por quienes buscan el dominio
de todos los espacios posibles, sin estimar las consecuencias. Así, en general el ser
humano contemporáneo ha buscado –sin contención alguna– una infinita
omnipotencia, así como un crecimiento incesante y perpetuo de un “cada vez más”.6
Con ello, la ruptura de los límites –en todos sentidos– ha provocado la creación de
nuevos mercados, dado que los existentes no satisfacen la voracidad de muchos
seres humanos. Las consecuencias han sido de gran alcance y han tenido efectos
en toda la sociedad, pero por obvias razones han recaído sobre los más débiles, que
quedan fuera de cualquier oportunidad de participación, y los que difícilmente son
parte de los pocos beneficios.
La crisis que vivimos hoy día tiene relación con esa desmesura7, así como
con el debilitamiento de de aquello que humanamente es valioso. Y en esta misma
coloratura podemos preguntar –hoy– con Arendt ¿cómo se va a resolver el enorme
problema de “una sociedad de trabajadores sin trabajo”8 construida en una sociedad
que ha sido pensada para el crecimiento, pero que no tiene crecimiento?
El problema es que, aun estando en plena recesión, no se han cambiado los
paradigmas de crecimiento, lo cual hace que la situación sea en realidad muy
dramática. ¿Podríamos pensar que lo importante es crecer en humanidad –teniendo
en cuenta todas las dimensiones que conforman la vida humana– y no sólo en una
5
GUERRA, M.J. y ARAMAYO, R. Los laberintos de la responsabilidad. España: CSIC/Plaza y Valdés
Editores, 2007, p. 10.
6
RIDOUX, N. Menos es más. Introducción a la Filosofía del Decrecimiento, Barcelona; Los Libros del
Lince, Barcelona, 1999, p. 10.
7
Ibid, p. 11.
8
Cfr., ARENDT, H. La Condición Humana. Barcelona: Paidós, 1998, pp. 138-142 y 181-185; algo
similar piensa Bauman cuando afirma que hoy día “uno de cada tres empleados ha ocupado el
mismo puesto en la misma empresa en menos de un año. Dos de cada tres han estado en el mismo
puesto menos de cinco años. En Gran Bretaña, hace veinte años, el 80% de los empleos eran del tipo
40/40 (semana laboral de 40 años durante 40 años de vida) y estaban protegidos por una compacta
red de contención sindical, jubilatoria y de derechos compensatorios. Hoy solo el 30% de los
empleados entra en esa categoría y el porcentaje sigue disminuyendo y velozmente”, p. 27, en
BAUMAN, Z. En busca de la política, Buenos Aires: FCE, 2003, p. 27.
122
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de ellas, como lo ha pretendido la filosofía del decrecimiento?9, en donde tal
decrecimiento significa “desacostumbrarnos a nuestra adicción al crecimiento,
<<descolonizar nuestro imaginario>> de esta ideología productivista desconectada
del programa humano y social”10. El proyecto del decrecimiento pasa por un cambio
de paradigma y de criterios para generar una transformación de las instituciones, y
desde ella una incorporación de los más desfavorecidos a los proyectos comunes y
con ello una posibilidad de que no queden soslayados.
Es necesario hacer decrecer la desigualdad de algún otro modo, ya que,
desde el modelo que ya conocemos –del crecimiento económico– se ha demostrado
que a pesar de sus intenciones, no ha reducido las desigualdades existentes. Con
estas desigualdades llevadas a su máxima expresión, se han violentado los límites
de aceptación del daño humano, y de esa manera se ha forzado la aceptación de lo
inaceptable e inadmisible por injusto.
Desde aquí no se puede negar la existencia de un desbordamiento de los
mínimos morales en lo relacionado con los derechos humanos. Tal “sobrepasamiento”
ha sido recurrentemente vivido por quienes están y han estado en situaciones de
permanente exclusión y heredada pobreza que resulta a todas luces injusta e
inaceptable. De ahí que sea preciso la búsqueda de superación de tal realidad para
dar cuenta de la responsabilidad que tenemos ante los perjuicios que la humanidad ha
generado tanto en las personas directamente como en su hábitat..
De nuevo podemos decir que la filosofía del decrecimiento (que significa
decrecer en lo que no nos es propio y crecer en lo humano) nos invita a pensar que
estamos en un mundo de recursos limitados, por lo que no es posible un crecimiento
indefinido. Además, frente a las crisis –como la que vivimos actualmente– es preciso
reconocer la necesidad de compartir, de agrandar la responsabilidad hacia los otros11,
así como la obligación de actuar con sobriedad y evitar el sobreconsumo.
9
La filosofía del decrecimiento es un movimiento que nació a finales de los años 70’s del Siglo XX. Su
portavoz ha sido Serge Latouche quien conjuntamente con otros pensadores críticos del desarrollo
y la sociedad del consumo como Ivan Illich, André Gorz, Cornelius Castoriadis o Francois Partant
se ha opuesto a las adicciones del consumo. Hoy día este movimiento ha logrado repuntar como
proyecto social, político y económico frente a las sociedades del “perpetuo crecimiento” y defienden
que no es necesario crecer para vivir bien. Ellos señalan que este sistema del crecimiento camina
hacia el colapso, como puede evidenciarse en el cambio climático, la extinción de las especies, la
propagación de las enfermedades relacionadas con la contaminación, etc. Latouche señala que los
pilares del decrecimiento son revaluar, reconceptualizar, reestructurar, relocalizar, redistribuir, reducir,
reutilizar y reciclar. Ridoux –a quien citamos recurrentemente en este escrito– es asimismo quien ha
elaborado un libro en donde se presentan estas apuestas de la filosofía del decrecimiento.
10
RIDOUX, N. Menos es más. Introducción a la Filosofía del Decrecimiento, Barcelona: Los Libros
del Lince, 1999, p. 11.
11
Análogamente con el modo agrandado de pensar de corte kantiano y retomado por Arendt.
Desbordamiento de los mínimos morales en los derechos humanos: exclusión y justicia
123
Siguiendo la misma lógica del exceso podemos apreciar cómo los valores
dominantes vigentes se plasman en un cada vez más, y se traducen en “cada vez
más rápido”, “cada vez más cosas”, “cada vez más poder”, “cada vez más rentable”.
Estas formas de vivir nos han conducido a las encrucijadas en las que estamos en
todos niveles y en casi todos los sentidos, y han hecho que, en el ánimo de la
constante e incesante ambición material se malogre la humanidad. Ese quebranto
se ubica: desde el mismo descompuesto habitat hasta la recurrente generación de
violencia que no respeta la dignidad; ahí en donde todo está en venta y en una
lógica de apropiación infinita, por la que se favorece una mayor producción que
por desgracia –como podemos verlo actualmente– no logra subsanar las necesidades
de trabajo limitado para quienes lo demandan en vistas de poder tener recursos
para apropiarse de cosas, de consumir sin pensar12.
Por ello, hemos de exigir que los valores humanistas se consideren de manera
seria y se refuercen en aras de la defensa y atrincheramiento del espacio moral
para evitar su desvanecimiento. Si todavía hubiera quienes desearan la defensa del
concepto ilustrado de progreso, habríamos de hacerle entender que tal progreso no
puede ser de otro modo sino en lo humano, en el engrandecimiento de los recursos
morales que son los que defenderán a la humanidad de su extinción.
Desde los años 30´s (1931) Keynes en sus Perspectivas económicas para
nuestros nietos apuntaba que sus nietos –es decir nuestra generación–, deberíamos
de liberarnos de la coacción económica de modo tal que trabajáramos únicamente 15
horas a la semana. Esta reducida jornada semanal de trabajo –articulada con una
mayor solidaridad– nos posibilitaría compartir el nivel de producción logrado en la
jornada de trabajo, lo cual nos salvaría de las situaciones tan cotidianas de
<<depresiones nerviosas>> que invaden a casi todo el mundo. Esta propuesta significa
“trabajar menos para vivir mejor”, que se antoja sumamente deseable. Resulta muy
grave que se trabaje para obtener satisfactores superficiales, y en ese proceso de su
alcance vamos demoliendo nuestra vida, nuestra salud y la posibilidad de vivir mejor
con menos cosas. Y esa es la gran cuestión, porque con una forma de vivir así nos
reducimos a ser meros consumidores, pero no sólo, además nos esclavizamos por la
angustia por pagar, cuestión que se resuelve si trabajamos más. Construimos con ello
un círculo vicioso y destructivo de lo humano, nos consumimos para “tener” y ese
“tener” se solventa únicamente con exceso de trabajo; no se deja tiempo para nada
más porque es fundamental trabajar para soportar los gastos.
Con una reducción de las jornadas de trabajo se buscaría una vida con un
equilibrio mayor y en aras de la realización personal, no únicamente en la vida
12
CORTINA, A. Por una ética del consumo, Madrid: Taurus, 2003, pp. 30-40.
124
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profesional sino también en la vida familiar, en las cuestiones del barrio, en la
búsqueda una vida asociativa, así como la participación en actividades políticas, en
la práctica o incursión en las cuestiones de arte, o cualquier actividad que cada
quien quisiera desarrollar.
Esta propuesta nos presenta la posibilidad de un tipo de vida más frugal, una
vida moderada y sobria que considere sobre todas las cosas los valores humanistas.
La reducción en la producción se compensaría viviendo mejor. Los empleos serían
más en número y serían más gratificantes13; podría equilibrarse el trabajo intelectual
y el manual, con lo que se combatiría por ejemplo, la obesidad, una de las epidemias
de nuestro siglo.
Con esta apuesta se estaría proponiendo una relocalización de la economía
y esto significaría un mayor desarrollo humano para todos, además de la superación
de las barreras que generan situaciones de desventaja, de exclusión y de pobreza.
Por eso, el decrecimiento no es regresión, ni la frugalidad es desigualdad, como
tampoco hay una renuncia al progreso. Se pretende más bien su resignificación
como progreso humano, progreso moral y espiritual.
Decrecimiento significa la recuperación del espíritu crítico que se requiere
para ir por el camino de un verdadero desarrollo humano14, y también quiere decir
el retorno a una moderación que favorezca el desarrollo humano en su sentido más
profundo e integral: en sus dimensiones cultural, filosófica, política, relacional y
contemplativa. Es un “desarrollo que por su sencillez y profundidad pueda ser
compartido por todas las personas”15. Es una nueva forma de vida que es preciso
construir individual y colectivamente y en la que se el compartir se convierte en
una de las características fundamentales.
Mientras el crecimiento económico siga siendo considerado como referente
absoluto, y se busque que sea infinito, no podrá ser alcanzado, sino que seguirá generando exclusión, además de que continuará amenazando el medio en el que vivimos.
Tendremos que centrarnos en lo que somos, y en ese sentido podremos “ser
sensibles a la profundidad de los instantes más sencillos […] (así como) “menos
bienes pero más vínculos”16.
13
RIDOUX, N. Menos es más. Introducción a la Filosofía del Decrecimiento, Barcelona; Los Libros
del Lince, Barcelona, 1999, p. 16.
14
Ibid, p. 18.
15
Ibid, p. 18.
16
Ibid, p. 21.
Desbordamiento de los mínimos morales en los derechos humanos: exclusión y justicia
125
Una forma de vida pensada desde lo humano nos permitirá un futuro más
humanizado, más justo y con opciones más viables para el oscuro panorama que se
nos presenta en torno a los fenómenos diversos que constituyen la exclusión y
violentan a su vez a los derechos humanos. Frente a estos problemas tenemos una
enorme responsabilidad.
La responsabilidad tiene que emerger de las acciones sociales y políticas
bien planteadas y en disposición a mantenernos fieles al aquello que constituye el
fin que persigue tal acción social y respecto de la cual nuestras acciones son
valoradas.
Con Arendt diríamos que debemos responder por el mundo, que involucra
una trama intersubjetiva, y desde ahí que hable de responsabilidad colectiva que
implica responder ante otros. Además este responder ante otros tiene que ver con
el pensamiento representativo y de la imaginación que nos posibilita “ponernos en
el lugar del otro” para evitar el mal y con ello evidenciar la responsabilidad. Pero
además de esta responsabilidad intersubjetiva podemos señalar la que tiene una
caracterización objetiva y fue propuesta por Hans Jonas en su apuesta por la
obligada preservación del planeta y del aseguramiento de las condiciones de la
vida humana libre y digna en el futuro.
Estar instalados de manera confortable en una cultura de la autocomplacencia
y de la autoindulgencia hace que los deberes que emanan de la responsabilidad
queden oscurecidos e invisibilizados17.
Toda esta ceguera ante lo otro tiene como consecuencia la exclusión de las
personas, por los efectos que se generan desde la violencia al mundo y a la naturaleza
que impacta finalmente en aquellos que están situados en los peores lugares del
campo social.
Tenemos que dar cuenta sobre nuestras acciones en la práctica vital a través
del razonamiento práctico aristotélico, o de la sagesse pratique ricoeuriana que
significan la responsabilidad de la moral vivida enfrentada a los “otros” abandonados
en situaciones de violencia, miseria e injusticia que se expresan cuando quedan
excluidos y etéreos.
17
GUERRA, M.J. “Responsabilidad <<ampliada >> y juicio moral”, en GUERRA, M.J. y ARAMAYO, R.
Los laberintos de la responsabilidad. España: CSIC/Plaza y Valdés Editores, 2007, p. 105.
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3. IDENTIDADES ROTAS: LA INVISIBILIDAD DE LOS EXCLUIDOS
“La política occidental se constituye
sobre todo por medio de la exclusión”
G. Agamben18
La identidad logra construirse en los espacios compartidos, ahí es también
en donde se cimenta el reconocimiento mutuo, pero es asimismo el lugar en el que
se lleva cabo su contraparte: la exclusión.
La exclusión significa el rechazo a una persona o cosa que queda fuera del
lugar que ocupaba19, así como la situación de desventaja en los diversos ámbitos
económico, político, social y profesional. Es asimismo la no inclusión de un sujeto,
su sustracción, descarte y marginación del grupo al que pertenece.
Las diversas formas de exclusión expresan la ceguera de aquellos no
reconocidos a quienes les queda únicamente una tarea de sobrevivencia y que
quienes no pueden realizar sus acciones en lo público no podrán tampoco ejercer la
libertad propia de este ámbito y no podrán alcanzar los fines colectivos ni los medios
para su logro. Con ello la buscada participación colectiva se cancela y se revoca
también el alcance de lo común. La condición que permitiría tal búsqueda está en
el juicio prudencial al dejar de absolutizar las condiciones privadas subjetivas y las
idiosincrasias determinantes de las perspectivas individuales para incluir a los que
están más allá, es decir, a “los otros”. El recurso del modo amplio de pensar20
nos hace trascender las propias limitaciones individuales con lo que se exige la
presencia de los demás. Al rescatar esta habilidad kantiana de ver las cosas no
sólo desde nuestro propio punto de vista sino en la perspectiva de todos los que
acontezca que estén presentes21 se posibilita compartir el mundo con todos ellos.
Este compromiso de carácter moral intenta anular las posibilidades de la exclusión.
Los efectos de la exclusión evidencian la ruina de los campos de lo político,
lo social y lo económico al no poder defender la ruptura de las identidades, la
pérdida de la dignidad y el menoscabo de la honorabilidad humana. Este maltrecho
escenario es el detonador recurrente para las diversas formas de exclusión y se
acompaña –generalmente– por la desconfianza en la administración de la justicia y
18
AGAMBEN, G. Homo Sacer, El poder soberano y la nuda vida, Valencia: Pre-textos, 2003, p. 16.
Según la definición de la Según la definición del Diccionario de la Real Academia, www.rae.es.
20
Recurso kantiano propuesto por ARENDT en ARENDT, H. Lectures on Kant’s political philosophy,
United States of América: University of Chicago Press, 1995, p. 75.
21
ARENDT, H. Between Past and Future, Eight Excercises in Political Thought, USA: Penguin Books,
1993, p. 221.
19
Desbordamiento de los mínimos morales en los derechos humanos: exclusión y justicia
127
la recurrente negligencia oficial. Si a estas realidades les añadimos la cultura del
miedo y del silencio en que vivimos hoy día, así como la discordancia entre las
legislaciones protectoras de los derechos humanos, tenemos como resultado un
ambiente de oportunidad para quienes se aprovechan de estas circunstancias, (como
ha pasado hoy día con aquellos que se dedican por ejemplo, a la trata de personas.)
Estos grupos vulnerables se conforman como los excluidos, ellos cargan con la
mácula de ser quienes no tienen derecho a nada. Son aquellos que “constituyen la
otra cara de la sociedad que ella misma se niega a mirar”22
Quien está excluido se encuentra aislado en alguno de los sentidos vitales,
esto significa que puede tener algunas desventajas en cuanto al reconocimiento ya
sea de sus derechos legales o a su ejercicio efectivo, a también a la cuestión
material que robustece las desventajas a tal grado que constituya como algo
irreversible. Desde ahí es que como afirma Levinas, mirar el rostro del otro “cara
a cara” quiere decir que lo comprendo desde su otredad, y no desde mi posición ya
que esto último significa violentarlo.
Asimismo, se puede suponer la exclusión social con un enfoque de carácter
institucional y desde esa perspectiva la exclusión se aprecia cuando la misma
sociedad condesciende en aceptar diferentes formas de discriminación, al negar el
acceso a bienes y servicios, a los espacios de intercambio y a los recursos requeridos
para llevar a cabo el papel de ciudadanos.
Excluir a los conciudadanos significa ubicarlos en una situación de carencia
de satisfacción de las necesidades humanas básicas, en tanto otros grupos tienen
mucho más de lo necesario. De ahí que se indaguen los procesos estructurales que
dan lugar a estas situaciones de exclusión, así como los elementos culturales
ideologizados y los mecanismos que han generado la exclusión en relación a los
recursos personales y comunes.
Como lo ha señalado Amartya Sen23, es necesario desbrozar los factores y
elementos que generan la pobreza, así como su conformación generada mediante
los procesos sociales que posibilitan o niegan las oportunidades de trabajo y el
acceso a políticas públicas.
Por desgracia, la exclusión social se reproduce debido a que quienes están
en las instancias socio-político-económicas no incorporan en su seno a los grupos
y a las personas peor ubicadas en la escala social, dejándolos a la deriva, ya sea
22
SUTTON, S. “La exclusión social y el silencio discursivo” en Voces y contextos, México: Otoño, núm.
II, año I, 2006, p. 7.
23
SEN, A. Desarrollo y libertad, Planeta, España, 2000.
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soslayándolos de manera explícita, o simplemente negándose a plantear avances
que se permeen en los diferentes ámbitos de lo social, lo cultural y lo político. El
problema es que estas exclusiones de carácter social, cultural y político conllevan
la exclusión ética que está subyaciendo bajo las primeras.
La exclusión ética violenta la dignidad humana plural y anula la presencia de
las personas. Por ello, la pluralidad como modelo de inclusión ha de propiciar los
puntos en común en las sociedades para evitar la marginación, la exclusión, la
discriminación o la masificación al destruir la esfera de lo común y con ella cualquier
posibilidad de libertad y de reconocimiento.
Frente a estas amenazas se impone una reflexión en torno a la obligada
pluralidad en es espacio de lo humano, para evitar los enormes problemas que
genera la exclusión, entendida como el concepto que expresa una realidad en la
que algunas personas o grupos quedan en situación de desventaja. Es los espacios
limítrofes en donde aparecen las llamadas identidades negativas que se relacionan
por lo general con las profundas desigualdades sociales, y se van generando desde
el margen y el límite. Esta situación marginal se vuelve sinónima a las categorías
de pobre, campesino y de obrero que están entre estos grupos contiguos y excluidos.
Los que están afuera, los expulsados, los “otros irreductibles” se parecen a aquellos
hombres “superfluos” a los que se refería Hannah Arendt cuando hablaba de quienes
estaban simplemente de más. Esas identidades emergen de los márgenes,
identidades que se van construyendo en el entramado de la exclusión, la pobreza y
la ignorancia y que están a expensas del dominio quienes están en el centro, es
decir quienes están en sociedades tan egoístas e individualistas que resultan ser
tan “monstruosas” como los mismos criminales. Esas identidades casi borradas
por excluidas, han emergido en la solicitud de reconocimiento para superar el
desprecio, que se convierte en su peor enemigo, dado que en muchas ocasiones se
aprovechan de esas circunstancias para el dominio, el provecho y el lucro con la
dignidad de quienes hacen el papel de víctimas.
En los espacios en los que se violentan todos los derechos de las personas no
hay lugar, ni es posible pensar en la consideración de las apuestas humanizantes que
concebimos en nuestras reflexiones, en torno a los ciudadanos con sus especificidades
como las pensaban los clásicos. Las cosas son muy diferentes, y en esos espacios de
violencia hay cuestiones muy complicadas que se han hecho indiscernibles.
Hoy día, cuando las líneas divisorias entre lo público y lo privado son tan
tenues y tan sutiles, la distinción que hacemos los ciudadanos entre la ciudad y la
casa resulta muy complicada, así como la distinción entre nuestro cuerpo biológico y
nuestro cuerpo político, o entre lo que es incomunicable y mudo y lo que es comunicable
y expresable. Se trastocan los espacios propios de la realización biológica con los
Desbordamiento de los mínimos morales en los derechos humanos: exclusión y justicia
129
espacios públicos, y en éstos es en donde propiamente se llevan a cabo las acciones
humanas que han de incluir el diálogo, el discurso y donde en todo caso, se tiene que
actuar de manera concertada para garantizar el respeto y evitar la exclusión. Estas
posibilidades han sido arrebatadas a quienes viven en sociedades en las que la ley no
ha podido afincarse porque se ha puesto en entredicho la vida política de los ciudadanos
en su integridad física por su expolio en el sentido más humano.
El abandono y el despojo de lo humanamente debido, –tanto en lo que se
refiere a la mera supervivencia y alude a lo económico, como a aquello que posibilita
la palabra y el diálogo– deja a esas personas excluidas a su suerte, deambulando a la
deriva, en los cobijos más ruines, menesterosos y decadentes que podamos pensar.
Las agresiones han sido y son tales que los desbordamientos de las acciones
con carácter de inhumanidad han extinguido el ámbito moral. Tales acciones han
arrebatado aquello que procura “la última oportunidad de conservar la dignidad”24
y por ende el derecho a tener esos derechos humanos, como lo apuntó en su
análogo momento Arendt. El contenido de esta frase es profundo, ya que hay una
separación entre lo meramente humano y lo político que muestra la escisión de los
derechos del hombre y los derechos del ciudadano. Por ello, hablar del “derecho a
tener derechos”25 da cuenta clara de la situación de los excluidos, porque siempre
que haya quienes queden exceptuados de ciertas formas de ciudadanía se les está
negando la posibilidad de tener derechos. Con esto se evidencia asimismo la
exclusión del debate político. El término “excluidos” se relaciona necesariamente
con el concepto de “víctimas” cuando hay violencia política, y cuando el enfoque
que se lleva a cabo es moral26.
Al destruir lo humano y reducirlo únicamente a lo biológico, se echa por
tierra la conquista histórica de los derechos humanos. Desde estas preocupaciones
es que surgieron y continúan presentes algunas reflexiones críticas que pretenden
visualizar lo que sucede con la vida y con lo biológico en el espacio político. Fue
“Michel Foucault [quien] comenzó a orientar sus investigaciones con una insistencia
cada vez mayor en lo que definía como biopolítica, es decir, la creciente implicación
de la vida natural del hombre en los mecanismos y los cálculos del poder”.27 Esto
significa que la vida se convierte en aquello que constituye lo central del espacio
24
KRALL, H., en TODOROV, T. Frente al límite. México: Siglo XXI, 2004, p. 24.
Tal como lo pensó Arendt cuando acuñó su famosa y muy significativa frase de “derecho a tener
derechos”, en ARENDT, H. Los Orígenes del Totalitarismo, 2. Imperialismo. Madrid: Alianza
Universidad, 1987, p. 430.
26
REYES MATE, M. “La justicia de las víctimas” en Revista Portuguesa de Filosofía, Tomo LVIII,
2002, pp. 299-318.
27
AGAMBEN, G. Homo Sacer, El poder soberano y la nuda vida, Valencia: Pre-textos, 2003, p. 151.
25
130
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
público y de la política, de modo que el engarce de zoe y bíos28 es unas de las
formas definitorias en la política de muchas partes del mundo. El cuerpo –el de la
nuda vida- que se emplaza en el espacio político y se convierte en lo biopolítico, se
reduce a la zoe dejando de lado la bios, que representa lo verdaderamente humano29.
Los espacios de exclusión se constituyen en aquellos en los que la vida
moral no es viable, ya que “un ser humano empujado hacia el extremo por formas
de vida inhumana […] pierde gradualmente todas las nociones del bien y del mal”30
y esto, significa estar “sin duda, moralmente muertos”.31
Las preguntas en torno a la humanidad restante son oportunas, sobre todo cuando
se ha vivido lo más terrible y execrable, y en donde la libertad se reduce a casi nada. Si
esto es así, ¿en dónde queda la humanidad si no hay elecciones de ningún tipo?, ¿queda
lugar para la vida moral cuando sus límites se han desbordado de manera absurda?
La situación de exclusión constituye un estado de sitio continuo en donde la
sociedad está a la deriva en un espacio que parece agrandarse como la tierra de
nadie y en donde, si bien todos estamos, quienes son más frágiles son aquellos que
están más marginados, dado que ellos son el blanco más susceptible para ser usados,
vendidos, expoliados y un sin fin de los etcéteras más execrables a los que son
sometidos a lo largo de su vida. Como hemos podido apreciar hasta aquí, el trato
que se da a la exclusión parte desde una concepción de la justicia que permita la
inclusión de todos los sujetos32. Sin embargo, la realidad nos evidencia y se nos
muestra implacable, por lo que parece que el camino habría de ser al revés, tal
como lo propone Villoro cuando apunta que “cabe pues explorar una alternativa:
dar razón de la idea de justicia por la voluntad de disrupción de una situación
percibida como injusta.”33 Hemos de partir de nuestras propias experiencias en las
que se evidencia la injusticia real así como la experiencia de la marginalidad para
28
La bios alude a la vida en sentido humano y es la que puede permitir pensar en una biografía, y aquí
la auténtica vida humana es la que para Arendt significa aquella que se lleva a cabo en la palabra y
en la acción. Por su parte, zoé alude a la vida en un sentido meramente biológico, y es lo que
Agamben entiende como nuda vida. En Arendt la verdadera vida es aquella que se da en el espacio
público, en lo político en donde se realiza el discurso, el habla y la acción. Esta acción fue
tergiversada después de los griegos y los romanos, en la Edad Media cuando la mayor importancia
se le dio a la contemplación, y en la Edad Moderna se canceló por el surgimiento de lo social, de la
burocracia y sus mecanismos de la ley de nadie.
29
AGAMBEN, G. Homo Sacer, El poder soberano y la nuda vida, Valencia: Pre-textos, 2003, p. 151.
30
TODOROV, T. Frente al límite. México: Siglo XXI, 2004, p. 38.
31
Ibid, p. 38.
32
VILLORO, L. “Sobre el principio de la injusticia: la exclusión”, en Isegoría, 22, 2000, “Globalización
y Derechos humanos”, p. 104.
33
Ibid, p. 103.
Desbordamiento de los mínimos morales en los derechos humanos: exclusión y justicia
131
“proyectar lo que podría idealmente remediarla.”34 Con ello, y como lo propone
Javier Muguerza estaríamos generando una “alternativa del disenso” que es la que
ha de fundar los derechos humanos.35 Partamos entonces, desde las causas de la
exclusión en la que vivimos.
4. CAUSALES DE LA EXCLUSIÓN
“Las causas de la exclusión pueden ser distintas para quienes las
padecen, los resultados vienen a ser los mismos”36.
Z. Bauman
La fragmentación es por desgracia unos de los más grandes males de la
humanidad y de la que desafortunadamente no estamos exentos en nuestro días,
porque quienes perpetran los diversos modos de exclusión lo hacen desde una
quiebra moral. Y esta ruptura se lleva a cabo sobre los seres humanos que son
despojados de la confianza en sí mismos, así como de la autoestima necesaria para
mantener también su supervivencia social. Todos ellos han devenido superfluos,
inútiles, innecesarios, indeseados, despreciables. Son los declassés que no poseen
ningún estatus definido y por ellos son considerados sobrantes.
Por desgracia y como sabemos, la meta central que ha prevalecido –como
ha sido durante los siglos– se adscribe fundamentalmente al interés y a la ganancia
de carácter económico. La absolutización de lo económico –que no considera los
valores, la ética y la cultura– en todos los ámbitos de la vida ha generado enormes
problemas y hunde sus raíces ahí donde hay un menoscabo del orden gubernamental
y una clara inaplicabilidad de la ley. Los efectos y las consecuencias conocidos y
que ya hemos apuntado, generan la esclavización, la cosificación y aniquilación de
los seres humanos en tanto personas. Es una de las consecuencias de la movilidad
contemporánea y de las migraciones de quienes se trasladan de un sitio a otro en
donde se convierten en <<residuos humanos>>.37 Esta situación es, –a decir de
Bauman– un efecto secundario de la misma construcción del orden, de modo
que en este último hay quienes están dentro y quienes están <<fuera de lugar>>,
que significa que son los indeseables y son los no aptos. Es también el efecto
secundario del mismo “progreso económico” que no ha podido proceder sin humillar,
sin degradar, sin devaluar las formas de “ganarse la vida”.
34
VILLORO, L. “Sobre el principio de la injusticia: la exclusión”, en Isegoría, 22, 2000, “Globalización
y Derechos humanos”, p.104.
35
MUGUERZA, J. Ética, disenso y derechos humanos, Madrid: Argés, 1998.
36
BAUMAN, Z. Vidas desperdiciadas. Barcelona: Paidós, 2005, p. 58.
37
Ibid, p. 16.
132
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
Como sabemos, a partir de la Modernidad, las regiones atrasadas y
subdesarrolladas se han convertido en reducto para la exportación de “<<seres
humanos superfluos>> y conspicuos vertederos dispuestos para los residuos
humanos de la modernización.”38
La pregunta obligada se dirige hacia un elemento central –señalado renglones
arriba de este apartado, a saber: la aplicación de la ley. ¿Dónde está la ley que
coarte los comportamientos destructivos de lo humano y que confine los tratos
humillantes y desvalorizadores de quienes hay que proteger? Apreciar este mundo
exige -como apunta Bauman– dirigir otra mirada a esta realidad que compartimos.
La condición de aquellos seres humanos excluidos tiene efectos absolutamente destructivos porque generalmente las implicaciones de su utilización lo
convierten en lo que Agamben llamó el homo sacer39 –es decir, aquellos que son
sacrificables en su nuda vida–40. Esta situación se lleva a cabo en un contexto
político deteriorado y minado en lo más hondo.
El paradigma del concepto de nuda vida está en los prisioneros de los
campos de concentración que funge como un concepto modélico de la exclusión
y el expolio en donde las vidas humanas simplemente no tienen valor alguno. Esos
personajes, los más ruines y más sometidos y por ello nombrados por Primo Levi
como el “musulmán” –término retomado por Giorgio Agamben– alude a aquellos
seres humanos que perdieron toda dignidad e inutilizaron todo afán de resistencia y
de honorabilidad humana. Al ser desvalijados de toda su humanidad se definen
como aquellos que simplemente buscan no morirse de hambre, por lo que son “lo
intestimoniable”41. Después de ver estas figuras casi subhumanas se puede afirmar
con Arendt que en este mundo “todo es posible” y “todo está permitido”42.
38
BAUMAN, Z. Vidas desperdiciadas. Barcelona: Paidós, 2005, p.16.
Homo sacer que es la principal categoría de los residuos humanos según Giorgio Agamben.
40
El concepto de nuda vida, se entiende como la vida natural o biológica es un concepto central en
Agamben y se remite a Hannah Arendt en la distinción de Bios y zoe. ARENDT, H. La Condición
Humana, Barcelona: Ed. Paidós, 1998, p.111. También cfr., FOUCAULT, M. Vigilar y Castigar,
México: Siglo XXI, 1991, pp. 24ss.
41
Este término tiene orígenes inciertos y parece que tiene que ver con el fatalismo que se atribuye al
islamismo y a la posición de postración que tienen los árabes cuando están orando, posición en la
que se veía a los prisioneros. Lo intestimoniable por sufrir las situaciones más abyectas e indecibles.
42
Como lo señaló Arendt cuando afirmaba “allí donde estas nuevas formas de dominación asumen su
estructura auténticamente totalitaria superan este principio, que sigue ligado a los motivos utilitarios
y al interés propio de los dominadores y penetran en un terreno que hasta ahora nos resultaba
completamente desconocido: el terreno donde <<todo es posible>>. […] Lo que se rebela contra el
sentido común no es el principio nihilista de que <<todo está permitido>>, que se hallaba ya
contenido en la concepción utilitaria y decimonónica del sentido común. Lo que el sentido común y
la <<gente normal>> se niegan a creer es que todo sea posible. ARENDT, H. Orígenes del totalitarismo:
Totalitarismo, España: Alianza Editorial, 1987, p.656.
39
Desbordamiento de los mínimos morales en los derechos humanos: exclusión y justicia
133
Todo esto se acompaña de una situación de excepción, en donde la nuda
vida –entendida como la vida a la que se puede dar muerte– es sustituible y
superflua. Ahí se insertan también las Versuchenpersonen43, que son aquellas
personas manejadas y consideradas –como diría Bauman44– como residuos
humanos. Esos seres humanos quedan a-bandonados, de modo tal que en esa
ambigüedad está excluido-incluido en la comunidad y por ende está dentro y está
fuera de la ley. Aquéllos que están en tal situación de “excepción” resultan ser
innecesarios para la sociedad que no los incluye, o como apunta Bauman, esos
grupos son “desechables” al constituir un conjunto de residuos humanos a través
de los cuales se evidencia ese ámbito en el que se suspende cualquier viso de
legalidad, aún para quienes deberían ejercerla45. Lo más grave del asunto es que
ese estado se perpetúa y se convierte en la regla, que sumado a la indiferencia
hace que, –como apunta Primo Levi en Naufragés–: “para que el mal se realice
no es suficiente que se produzca la acción de algunos; hace falta todavía que la
gran mayoría esté a su lado, indiferente…”46 como sucede con quienes sufren la
extrema pobreza. Dentro de las esferas de la moralidad no cabría la posibilidad de
pensar en la vida de algún individuo como una vida que “no merece ser vivida”.
Por ello la existencia de vidas que resultan innecesarias y por lo tanto se pueden
desechar porque están de más y no entran en el diseño de las formas de la convivencia
humana.47 Todos ellos son consumidores fallidos de nuestra sociedad de consumo,
implican un costo y no involucran un apoyo; son, siguiendo a Bauman: “<<víctimas
colaterales>> del progreso económico, imprevistas y no deseadas.”48 Por ello es que
pueden ser excluidas, y en ese margen utilizadas y esclavizadas sin problema.
Desde ahí es que si existe insatisfacción de las necesidades requeridas significa
que además de la exclusión se precisa hablar de un concepto concomitante, al menos
en el ámbito social: la pobreza. Dar cuenta de ella nos hace –según Sen- que reconozcamos su dimensión relativa que se compagina con el entorno social, pero además
existe una dimensión absoluta, es decir, que hay condiciones mínimas indispensables
–relacionadas con capacidades y funciones básicas– necesarias para perseguir y
diseñar los planes de vida, en aquellas cuestiones que son posibles de alcanzar.
43
AGAMBEN, G. Homo Sacer, El poder soberano y la nuda vida, Valencia: Pre-textos, 2003, p.195 y
ss. En el texto es traducido como cobayas, entendiéndolo según el Diccionario de la Real Academia
como los “conejillos de Indias”, www.rae.es.
44
BAUMAN, Z. Vidas desperdiciadas. Barcelona: Paidós, 2005, pp. 24 y 25.
45
Ibid.
46
LEVY, P. Les naufragés et les rescapés, París: Gallimard, 1989, citado en TODOROV, T. Frente al
límite. México: Siglo XXI, 2004, p. 166.
47
BAUMAN, Z. Vidas desperdiciadas. Barcelona: Paidós, 2005, p. 46.
48
Ibid, p.57.
134
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
El desbordamiento de lo moral del que hemos venido hablando, niega cualquier
trazo deseable de justicia. De ahí que el fenómeno de la pobreza muestre que la
desigualdad material entre las personas no sólo se queda ahí, sino que se extiende
en graves diferencias en la posibilidad de participación y por ende, de la distribución
del poder político. Esto hace posible la dominación de unos sobre otros49.
Sen considera a las capacidades en tanto categorías generalmente no tomados
en cuenta por la política de la justicia distributiva de los Estados. Desde esta
consideración es importante apuntar que ni la riqueza, ni los bienes, ni los recursos
se traducen automáticamente en bienestar y libertad de las personas.
Pobreza y justicia social constituyen los ejes para una reflexión
contemporánea en torno a una ciudadanía igualitaria, inclusiva y por ende
participativa. El autorrespeto que significa “igualdad en igual reconocimiento, respeto
y garantía de los derechos y libertades políticas”50. En este reconocimiento se
implica el que sean seres humanos iguales pero lo que se insiste es que por serlo
deben recibir justamente la distribución de la riqueza, de los recursos, de los bienes
y las oportunidades. Todo esto posibilita llevar a cabo la libertad en el sentido de
agencia y poder y toma enorme fuerza cuando se presenta ante los grupos
sistemáticamente excluidos por la falta de reconocimiento. Esto se traduce en una
acumulación de desventajas sociales en relación con los demás ciudadanos y que
se convierten en “problemas prácticos relativos al ejercicio de las libertades civiles.51
Es importante insistir como lo ha hecho Nancy Fraser, que la dimensión
política de los derechos básicos que ha de ser reconocida por todos y por ello es
fundamental, para el alcance de la justicia que se lleve a cabo, además del
reconocimiento, la redistribución.
La pobreza imposibilita la participación, porque desde la desigualdad se niega
su reconocimiento, y por ende se excluye y no se permite compartir la decisión
pública. A su vez y por el otro lado, cerrando el círculo podemos ver que en lo
político es en donde se generan las instituciones que van a propiciar y a defender
tanto a los miembros de esa asociación política, y también se defenderán sus
acciones, sus búsquedas en el espacio de la participación y decisión política. Sólo
así podrán pensarse como verdaderos ciudadanos, como respetables.
Por ello es que los programas asistencialistas poco ayudan dado que se
centran en la mera distribución de bienes, como programas únicos y focalizados y
49
SAHUÍ, A. Igualmente libres. Pobreza , justicia y capacidades, México: Ed. Coyoacán, 2009, p. 20.
Ibid, p. 36.
51
Ibid, p.58.
50
Desbordamiento de los mínimos morales en los derechos humanos: exclusión y justicia
135
no en la cuestión de la libertad como desarrollo centrada en las capacidades y en la
posibilidad de acciones de aquellos que están peor ubicados en un tejido de las
relaciones sociales.
Amartya Sen no se equivocaba cuando al hablar del desarrollo como libertad
apuntaba que quien carece de medios para tener una vida mejor no tiene la libertad
para hacer muchas cosas para sí y para otros, que como un humano responsable
podría realizar. Las sociedades que prosperan a costa del hambre, del sufrimiento,
del escarnio, y de situaciones como la trata de personas no pueden ser aceptadas
bajo ningún pretexto, de modo que ante la visualización de estos problemas es
fundamental la toma de conciencia de la misma ciudadanía para la defensa continua
de los derechos de estas personas de una manera responsable y solidaria.
Así, si la exclusión significa la condición fundamental de la injusticia52,
significa que es preciso insertar a aquellos que juegan un papel de dentro-fuera,
ya que los excluidos no están realmente fuera de la sociedad porque cooperan
en ella. El problema es que no se les reconoce como iguales en los procesos y
mecanismos de decisión. Sus voces discordantes no se toman en cuenta por no
considerarse relevantes en la construcción de la agenda pública y en los procesos
decisorios.
Una forma de violencia es la corrupción que ha logrado el dominio de la
sociedad traspasando el umbral de la política, como lo fue para Arendt el fenómeno
del totalitarismo que tuvo como objetivo la dominación y el infierno construido por
el hombre.53
Una de las ideas del nazismo fue precisamente que existían personas de
diversas especies, unas superiores y otras inferiores. El efecto de esta consideración
es de todos conocida, y ha sido deplorada basándonos en la apuesta contraria, a
saber: que nuestra especie es una y está compuesta por individuos quienes merecen
una idéntica consideración moral.54 Esta intuición está incorporada en el lenguaje
de los derechos humanos en el que la capacidad de considerar un número cada vez
mayor de personas que pretenden que se les trate como nos gustaría a todos que
nos trataran, de modo que con ello se pretendería la deseada universabilidad de
tales derechos. La historia vivida nos ha mostrado que cuando los seres humanos
gozan de derechos defendibles, es decir, cuando se protege y mejora su agencia
como individuos, es menos probable que existan abusos sobre ellos.
52
VILLORO, L. “Sobre el principio de la injusticia: la exclusión”, en Isegoría, 22, 2000, p. 104.
ARENDT, H. Totalitarismo, 2, Imperialismo, Madrid: Alianza Editorial, 1987.
54
Ibid, p.30.
53
136
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5. A MODO DE CONCLUSIÓN
La destrucción de lo humano no es novedad, lo que sí lo es son las formas en
que se destruye. Y para esto necesitamos refrendar e insistir en la realización e
implementación de aquello que defiende lo humano, es decir, recurrir a los derechos
humanos que han sido conquistas históricas importantísimas. Los matices que haya
que hacer nos obligan a repensarlos, pero no a desecharlos. Desde ahí tenemos
que pensar en lo que se constituye como propiamente humano para no soslayar su
relevancia y mostrarnos responsables ante la violación de tales derechos.
Afirmar que los derechos humanos son obligatorios y de alta prioridad,
significa que han de ser considerados como normas que mandan y no meras metas,
y esto significa que es preciso alcanzar sus demandas dado que obligan y han de
prevalecer como normas de suprema prioridad. Por ello, frente a la experiencia de
su recurrente violación, los defensores de estos derechos deberán ver estrategias
para los cambios políticos para alcanzar tales estrategias, que se constituyen en
metas. Una de las mediaciones que han de considerarse para el alcance de los
fines es la urgencia en la implementación de leyes que impulsen la implementación
de los derechos humanos. Sin embargo, a pesar nuestro, la promulgación de leyes
parece no ser todavía suficiente para la realización de los derechos humanos; la
implementación de leyes no garantiza su respeto y realización, por ello, como
podemos ver, sólo pueden garantizarse en aquellas sociedades que tienen la suerte
de haber generado actitudes en la gente y en los gobiernos que comprenden los
derechos y su necesidad por sí mismos, y no necesitan de la obligatoriedad. Pero la
solución no será completa si no hay una conjunción de esfuerzos que intervengan
en los cambios reales.
Por un lado, se busca alcanzar las metas legislativas en torno a los derechos
humanos, pero además es preciso generar políticas apoyen fácticamente a través
de intervenciones que generen cambios plausibles, desde las comunidades más
pequeñas hasta comprender a toda la sociedad. Con ello se irá trabajando en círculos
concéntricos, a la manera de los círculos de la Metáfora de Hierócles55 para ir
ampliando la comprensión y la comprehensión de los derechos humanos, de modo
55
Mencionados en Martha C. Nussbaum. Hierócles el estoico planteó una teoría de “círculos morales”
que consiste en que existen varios niveles de grupos humanos a los que se les aplica nuestra
consideración moral, de modo que en los primeros círculos estamos nosotros mismos, luego los
círculos de la familia, la ciudad, la patria y finalmente el círculo de la humanidad entera. Y el ser
humano tiene como tarea el acercamiento de los círculos yu así considerar a quienes están más
alejados tan digno de aprecio como nosotros mismos. N USSBAUM , M.C. “Patriotismo y
cosmopolitismo”, en NUSSBAUM, M.C. Identidad pertenencia y “ciudadanía mundial”, Barcelona:
Paidós, 1999.
Desbordamiento de los mínimos morales en los derechos humanos: exclusión y justicia
137
que en todos los ámbitos se entienda y se asuma la defensa de la misma humanidad.
Esto se realizaría mediante la generación de programas de inclusión, mediante
educación y políticas que generen la mejora de los más empobrecidos, que
generalmente son los excluidos. Y a la par de los programas formativos que insistan
en el fundamental crecimiento humano alude a un crecimiento moral y no
únicamente económico. Estos programas han de entenderse a toda la sociedad
porque los que excluyen son los mejor situados. Es necesario ampliar los ámbitos
de la responsabilidad humana y el desarrollo de una conciencia prudencial que
pueda sopesar lo que es fundamental para los seres humanos para que así nos
centremos en lo verdaderamente importante.
Desde ahí es que el tema de la exclusión ha de formar parte de los debates
políticos académicos, en donde se tienen que considerar la marginación, la privación
y la pobreza, como cuestiones centrales. Quienes sufren exclusión sufren desventajas
generalizadas en términos de educación, empleo, vivienda, recursos financieros,
así como falta de oportunidades para tener acceso a la distribución de tales
oportunidades y por ende son sustancialmente menores que las del resto de la
población y la persistencia de tales desventajas permanece a lo largo del tiempo.56
La exclusión es un fenómeno social cultural ético-político que cuestiona y amenaza
los valores de la sociedad57, por ello no es únicamente la insuficiencia de ingresos,
sino que revela algo más que la desigualdad social, y tiene implicaciones que
evidencian el peligro de una sociedad fragmentada, con lo que se amenaza la
cohesión social de los Estados por la recurrente injusticia. De este modo, como
algunos teóricos han señalado: la exclusión viene dada por la negación o
inobservancia de los derechos sociales, que incide en el deterioro de los derechos
políticos y económicos. Es cierto que la exclusión se relaciona generalmente con la
pobreza, y se evidencia sobre todo en los países más pobres.
Los derechos humanos han de ser más morales y consecuentemente sus
implicaciones legales y políticas serán más humanizadas y desde ahí habrían de ser
vistos como un lenguaje, no para la proclamación y la promulgación de verdades
eternas, sino como un discurso para la mediación de los conflictos y amenazas en
contra de la humanidad. El consenso que pueda generase puede ser una condición
necesaria para un acuerdo deliberativo que presuponga un desarrollo del respeto y
reconocimiento mutuo y la cancelación de cualquier forma de esclavitud, además
de un compromiso común en relación con los universales morales, que nos hacen
pensar en el alcance de los derechos humanos.
56
ARAHAMSON, P. “Exclusión social en Europa:¿vino viejo en odres nuevos?” en MORENO, L. (comp.),
Unión Europea y Estado de Bienestar, Madrid: CSIC, 1997, p.123.
57
Ibid, p.123.
138
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Actualmente y en nuestro país la principal amenaza para los derechos
humanos no proviene únicamente de la tiranía sino también de la anarquía y la
indiferencia, y parece que ahí es donde se quedan esas brechas en las que se cuela
la situación de exclusión. Por ello, la necesidad del orden estatal y de una ciudadanía
consciente y pensante ya que ella que funge como garantía para los derechos.
Esta situaciones nos obligan a buscar una transformación en la imaginación
ético-política como señala Zizek58, que significa desarrollar una ética que habrá de
generar cambios reales porque acepta la contingencia, pero que está “dispuesta a
arriesgar lo imposible” en el sentido de romper posiciones estandarizadas. Por ello,
podemos pensar que la ética sigue proporcionando el referente normativo para
que, como dice Javier Muguerza podamos abrigar una modesta esperanza que
lejos de ser pasiva, se liga al disenso en tanto nos neguemos a aceptar aquello que
no es tolerable por injusto y por indigno.59
58
59
ZIZEK, S. Arriesgar lo imposible, Madrid: Trotta, 2004, p.25.
MUGUERZA, J. Ética, disenso y derechos humanos, Madrid: Argés, 1998.
Desbordamiento de los mínimos morales en los derechos humanos: exclusión y justicia
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141
Conceito de minorias e discriminação
10
Conceito de minorias
e discriminação
Concept of minorities
and discrimination
Concepto de las minorías
y la discriminación
JAMILE COELHO MORENO
Advogada; bacharel em Direito, pela Instituição Toledo de Ensino – ITE, de Bauru, São Paulo;
mestranda em Direito no Centro de Pós-Graduação da Instituição Toledo de Ensino – ITE.
E-mail para correspondência: [email protected]
.
RESUMO
Sob qualquer aspecto, ao analisar-se o processo de formação da sociedade brasileira
(e dos demais países do Novo Mundo), visualiza-se, como indispensável menção, o
relevante papel dos grupos minoritários em relação ao restante da sociedade. Antes
de se estudar a respeito dos direitos das minorias, é mister estudar mais acerca das
chamadas minorias. É imprescindível que a defesa de tais grupos seja promovida não
apenas no que tange aos direitos individuais e coletivos, mas também em face e em
defesa dos interesses de todo o restante da população. Para tanto, há necessidade de
uma prévia análise acerca da discriminação a que essa camada da população está
sujeita. Nesse esteio, para que efetivamente se consiga promover a defesa de tais
grupos, é importante conceituar o que seria essa discriminação, bem como apontar as
diferenças existentes entre este ato da sociedade, o preconceito e a intolerância.
Palavras-chave: conceito, minorias, discriminação.
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ABSTRACT
In any way, in analyzing the process of formation of Brazilian society (and other new
world countries), we see as essential to mention the important role of minority
groups in relation to the rest of society. Before studying the rights of minorities, it is
necessary studying more about the so-called minorities. It is essential that the
defense of such groups is promoted not only in terms of both individual and collective
rights, but also in face and in the interests of the rest of the population. Therefore,
there is need for a previous analysis about the discrimination that this population is
subject. In this mainstay, to actually succeed in promoting the protection of such
groups, it is important to conceptualize what would be this discrimination, and
point out the differences between this act of society, prejudice and bigotry.
Keywords: concept, minorities, discrimination.
RESUMEN
En todo sentido, para examinar el proceso de formación de la sociedad brasileña (y de
otros países en el nuevo mundo), es esencial decir el importante papel de los grupos
minoritarios en relación con el resto de la sociedad. Antes de estudiar los derechos de
las minorías, importante estudiar más sobre las llamadas minorías. Es esencial para
promover la protección de estos grupos no sólo en lo que respecta a los derechos
individuales y colectivos, sino también en el interés del resto de la población. Por lo
tanto, hay una necesidad de análisis previo de la discriminación que este sector de la
población está sujeta. En esta línea, de manera que podamos promover la protección
de esos grupos, es importante conceptualizar esta discriminación, y señalando las
diferencias entre este acto de la sociedad, el sesgo y la intolerancia.
Palabras clave: concepto, minorías, discriminación.
1. INTRODUÇÃO
Antes de se estudar a respeito dos direitos das minorias, da proteção
constitucional, infraconstitucional e internacional ou, ainda, a respeito dos instrumentos
para efetivação de tais direitos, é mister estudar mais acerca das chamadas minorias.
Cabe a todos, enquanto estudantes e praticantes do Direito, promover a defesa de
tais grupos não apenas no que tange aos direitos individuais e coletivos, mas também
em face e em defesa dos interesses de todo o restante da população. Por isso, é
fundamental analisar alguns aspectos básicos deste tema prévio.
Historicamente, sempre se fez presente, no Brasil, uma cultura importada,
baseada em valores estrangeiros, herdada dos colonizadores europeus que aqui pouco
Conceito de minorias e discriminação
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tencionavam investir, mas somente queriam extrair riquezas, fazendo do País um
simples produtor de matérias-primas e produtos agrários (NASCIMENTO, 2005: 120).
Com efeito, observou-se, desde a formação do País, uma cultura escravagista,
iniciada com a mão de obra indígena, depois substituída pela negra e, por que não,
já no começo do século XX, pela imigrante.
Numa cultura escravagista, sabe-se que o trabalho era coisa para escravos
e o valor das pessoas era aferido de acordo com as suas relações, seus parentescos
e suas posses, sedimentando a cultura clientelística, cultura esta que, lamentavelmente, ainda está em vigência na política brasileira.
Ao longo dos tempos, é certo que muito desta cultura se esvaiu, mas não o
suficiente para que determinadas práticas discriminatórias não se façam presentes.
Sabe-se que o legislador constituinte originário cuidou de vedar quaisquer tipos de
preconceito ou discriminação, explicitamente. Todavia, na prática, tais vedações não
se apresentam completamente eficazes, nem se resumem à previsão constitucional.
Após os dramáticos acontecimentos na ex-União Soviética e na ex-Iugoslávia,
ou seja, após o colapso dos regimes comunistas, o tema minorias voltou a se
destacar na agenda internacional, situação que não ocorria desde o período
entreguerras (quando o debate se deu no âmbito da Liga das Nações). Os condenáveis acontecimentos da Segunda Guerra Mundial ocasionaram o reconhecimento
do vínculo existente entre o respeito à dignidade do ser humano e à paz.
Da mesma forma, houve o reconhecimento de que as ordens jurídicas
nacionais, sujeitas a alterações de acordo com o regime político atuante, não eram
suficientemente eficazes para tutela dos direitos dos indivíduos. Nesse esteio, a
Carta das Nações Unidas estampa tais considerações e pode ser considerada
como vetor para o ulterior processo de universalização dos direitos humanos.
Em prosseguimento, no ano de 1947, a Comissão de Direitos Humanos criou
uma subcomissão com a finalidade de prevenção da discriminação e de proteção
das minorias. Ao ver rejeitadas todas as propostas de definição do termo minoria,
esta subcomissão decidiu, em meados da década de 1950, condensar suas atividades
na prevenção da discriminação, restringindo-se a recomendar a inclusão de uma
provisão referente à proteção de minorias nos instrumentos internacionais de direitos
humanos a serem elaborados dali em diante.
Então, a visão preponderante era a de que os direitos das minorias estariam
suficientemente protegidos pelo enfoque individual e universal que os direitos
humanos assumiram no período pós-guerra. Esta visão, ao seu turno, fez com que,
em meados da década de 1950, o tópico minorias passasse a ser excluído da
agenda internacional (WUCHER, 2000: 4).
144
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De todo o contexto histórico de descolonização, que consagrou o princípio
da não discriminação, foi somente a partir da inclusão do artigo 27 no Pacto
Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 1966, que novamente abordou-se
acerca do tema minorias. Em 18 de dezembro de 1992, a Assembleia Geral das
Nações Unidas adotou a Declaração sobre os Direitos de Pessoas Pertencentes a
Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e Linguísticas.
Apesar de seu caráter jurídico e não vinculativo, esta declaração é
considerada o instrumento de abrangência global mais generoso em termos de
“discriminação positiva”, vale dizer, a que mais confere direitos especiais às minorias
(PIRES apud WUCHER, 2000: 03).
A sobredita declaração proíbe a discriminação com base na raça, no sexo,
na língua e na religião. Porém, é omissa em relação à efetiva proteção das minorias.
Assim, após o fim da estrutura bipolar do mundo, no âmbito da ONU, a Declaração
de 1992 pode e deve ser considerada como o marco inicial dos novos debates
sobre as minorias.
2. CONCEITO DE DISCRIMINAÇÃO
Discriminação é a prática de ato de distinção contra pessoa do qual resulta
desigualdade ou injustiça, sendo essa distinção baseada no fato de a pessoa
pertencer, de fato ou de modo presumido, a determinado grupo. Discriminar é
excluir, é negar cidadania e, via de consequência, a própria democracia. Todavia,
para que a igualdade seja garantida a todos, não basta apenas a eliminação das
diferenças, mas sim a obtenção da igualdade e, para tanto, torna-se necessário
identificar as verdadeiras origens da desigualdade. Nessa linha, é importante
colacionar as palavras de Elida Séguin:
Inicialmente, deve-se procurar o sentido das palavras discriminação, preconceito
e intolerância. Discriminar é diferençar, distinguir, discernir, separar, especificar
(Aurélio Buarque de Holanda). Sérgio Abreu afirma que a palavra discriminação
surgiu no fim do século XIX, na França e na Alemanha, “utilizada na Psicologia,
sem a ideia de tratamento desigual”, somente no século XX passou a ser ligada,
“em matéria econômica e sobretudo no Direito e na política, para as minorias e
todas as formas de tratamento desigual”.
No entender de Norberto Bobbio, por discriminação entende-se uma
diferenciação injusta ou ilegítima porque vai contra o princípio fundamental de
justiça, segundo o qual devem ser tratados de modo igual aqueles que são iguais
(2002: 108-109). Nesse sentido, o renomado filósofo explicou que:
Conceito de minorias e discriminação
145
Num primeiro momento, a discriminação se funda num mero juízo de fato, isto é,
na constatação da diversidade entre homem e homem, entre grupo e grupo. Num
juízo de fato deste gênero, não há nada reprovável: os homens são de fato
diferentes entre si. Da constatação de que os homens são desiguais, ainda não
decorre um juízo discriminante.
O juízo discriminante necessita de um juízo ulterior, desta vez não mais de fato,
mas de valor: ou seja, necessita que, dos dois grupos diversos, um seja
considerado bom e o outro mau, ou que um seja considerado civilizado e o outro
bárbaro, um superior (em dotes intelectuais, em virtudes morais etc.) e o outro
inferior... Um juízo deste tipo introduz um critério de distinção não mais factual,
mas valorativo (BOBBIO, 2002).
Em prosseguimento, Bobbio concluiu que:
A relação da diversidade, e mesmo a de superioridade, não implica as consequências da discriminação racial... Da relação superior-inferior podem derivar
tanto a concepção de que o superior tem o dever de ajudar o inferior a alcançar
um nível mais alto de bem-estar e civilização, quanto a concepção de que o
superior tem o direito de suprimir o inferior. Somente quando a diversidade leva
a este segundo modo de conceber a relação entre superior e inferior é que se
pode falar corretamente de uma verdadeira discriminação, com todas as
aberrações decorrentes (BOBBIO, 2002).
A despeito da evolução das ciências, as pessoas quedaram-se silentes aos
novos tempos, bem como à necessidade de aceitar segmentos especiais ou
diferenciados da sociedade, surgindo, assim, o preconceito. Desta forma, preconceito pode ser conceituado como:
Conceito ou opinião formado antecipadamente, sem maior ponderação ou
conhecimento dos fatos, ideia preconcebida; julgamento ou opinião formada sem
se levar em conta o fato que os conteste; prejuízo (ABREU apud SÉGUIN, 2002: 55).
O preconceito, por sua vez, está associado não só aos que são diferentes,
mas também àqueles cuja ação do tempo os modifica. Nessa esteira, é importante
colacionar as palavras de Elida Séguin (2002) ao abordar o mesmo tema:
[...] Para dar uma pálida ideia, o preconceito contra o idoso chegou a tal ponto
que foi cunhada a expressão etarismo. Interessante observar que a questão
está sendo revertida pelo mercado consumista: descobre-se que os menos jovens
constituem uma possibilidade de consumo que deve ser explorada.
Não se pode deixar de consignar que o próprio grupo social aceita e cria uma
estigmatização positiva a determinados comportamentos, como os delitos de
trânsito, típicos da classe média. O motorista amador que provoca acidentes,
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muitas vezes evitáveis, é visto como uma vítima da fatalidade. São cidadãos
respeitáveis que involuntariamente causaram danos, tão vítimas quanto suas
vítimas, desconhecendo o grupo social que o comportamento gerador foi leviano,
imprudente e inconsequente. É o grupo se autodefendendo. A postura dos
Tribunais vem sendo alterada para enxergar nos delitos de circulação um dolo
eventual (SÉGUIN, 2002: 57).
O ilustre Professor Dalmo de Abreu Dallari (apud VIANA & RENAULT, 2000: 14) viu
como raízes subjetivas do preconceito, a ignorância, a educação domesticadora, a
intolerância, o egoísmo e o medo. Para ele, o preconceito não só acarreta a perda de
respeito pela pessoa humana como introduz a desigualdade e a injustiça. O referido autor
ressaltou, ainda, o preconceito da polícia e dos juízes em relação às camadas mais pobres
da população. Afirmou, além disso, o renomado jurista que ninguém nasce com preconceitos
e, para evitar o preconceito, propôs uma autofiscalização:
É preciso estarmos sempre muito atentos quando for proferir julgamentos sobre
uma pessoa, uma ideia, uma crença. Mas além disto acredito muito na educação
libertadora de Paulo Freire... Acho que assim como o preconceito é incutido pela
educação, ele pode ser eliminado pela educação (...). Eu acredito na existência de
direitos universais. Resguardados estes direitos é indispensável que se resguarde
também o direito à diferença. Aliás, é interessante, existe uma declaração contra
o preconceito, aprovada pela Unesco e que acentua exatamente isto, o direito à
diferença. Quer dizer, eu não posso exigir que todos sejam iguais, não posso
valorizar mais um do que o outro (DALLARI apud VIANA & RENAULT, 2000: 14).
Sobre esse aspecto, historicamente, desde o Código de Hamurabi, havia a
previsão de castigos proporcionais ao mal causado, assim como se faziam distinções
nas penas de acordo com a classe social da vítima. Ou seja, ferir ou matar um
escravo era menos grave do que alguém do clero.
Com o advento do Código de Manu, já não se levava em conta a classe
da vítima, mas apenas a proteção dos valores dos brâmanes, cujo poder se
encontrava no ápice dos demais poderes da sociedade hindu. A Lei das XII
Tábuas, diferentemente dos demais códigos, estabeleceu, ainda que provisoriamente, uma igualdade social inédita, excluindo do Direito Penal toda e qualquer
distinção de classes sociais.
É importante distinguir o preconceito e a discriminação da intolerância. A
intolerância deve ser compreendida de uma melhor forma através do estudo de
seu antônimo, ou seja, do conceito de tolerância:
Condescendência ou indulgência para com aquilo que não se quer ou não se
pode impedir. Boa disposição dos que ouvem com paciência opiniões opostas
Conceito de minorias e discriminação
147
às suas. Med. Faculdade ou aptidão que o organismo dos doentes apresenta
para suportar certos medicamentos1.
Nesse sentido, a Convenção Relativa à Luta Contra a Discriminação no
Campo do Ensino (UNESCO, 1960) adotou “princípios de tolerância”, conceituando
o termo da seguinte forma:
Tolerância é respeito, aceitação e apreciação da rica diversidade de nossas
culturas mundiais, nossas formas de expressão e formas de ser humano. Isto é
reforçado através do conhecimento, da abertura, da comunicação e da liberdade
de pensamento, consciência e crença. Tolerância é harmonia na diferença. Não é
apenas um dever moral, é também um requisito político e legal.
A legislação brasileira, principalmente a Lei Maior, veda diversas práticas
discriminatórias, baseadas em diferentes critérios. Ao final, a questão principal das
vedações previstas tanto em normas constitucionais como infraconstitucionais é a
garantia do princípio da igualdade, previsto no artigo 5º, caput, da Constituição Federal.
Todavia, não é suficiente a criação de novos tipos penais ou a majoração
das penas já existentes. A sociedade deve atacar a discriminação e a intolerância
no âmago da questão: através da educação, verdadeiro agente de modificação
social (SÉGUIN, 2002: 59). Ao final, pode-se dizer que, em verdade, todos são
diferentes, já que cada indivíduo é uno e irrepetível, um patrimônio da humanidade,
sendo certo que só determinado indivíduo pode dar a sua pequena parcela de
contribuição ao acervo humano.
Por outro lado, os seres humanos são todos iguais. Para Hannah Arendt
(apud VIANA & RENAULT, 2000: 19), filósofa e pensadora política que se preocupou
não só em entender como explicar a política e a violência dos dias atuais, notadamente a partir do nazismo e do bolchevismo, as pessoas não nascem iguais, pois se
tornam iguais como membros de uma coletividade em virtude de uma decisão
conjunta que garante a todos direitos iguais.
A igualdade, na visão da referida filósofa, pressupõe uma sociedade onde
prevaleça, necessariamente, um mínimo de igualdade no plano econômico (frisese, muito diferente da situação econômica atual do Brasil). Segundo a pensadora
alemã, a igualdade resulta da organização humana, pois as pessoas não nascem
iguais e não são iguais nas suas vidas.
É a lei que torna (ou deveria tornar) os homens iguais, ou seja, as diferenças
deveriam ser igualadas por meio das instituições e, da mesma forma, a igualdade
1
TOLERÂNCIA. In: PRIBERAM. Dicionário da língua portuguesa. Lisboa: Priberam Informática, 2009.
Disponível em: <http://www.priberam.pt/dldlpo>. Acesso em: 12 de junho de 2009.
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Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
deveria ser garantida e ter espaço na esfera pública (já que a diferença tem lugar
na esfera privada). E, concluindo, Arendt afirmou que, se os homens fossem iguais,
não poderiam entender-se; se não fossem diferentes, não precisariam nem da
palavra, nem da ação para se fazer entender.
Sabe-se, então, que tanto a não discriminação quanto as reivindicações por
medidas positivas se baseiam no princípio da igualdade, tão consagrado e previsto
inúmeras vezes (e tal repetição não é despicienda) na Lei Maior. Na medida em
que a não discriminação se constitui num princípio já consagrado pelo Direito
Internacional (deixar-se-á aqui de aprofundar o tema nesse âmbito, especificamente,
eis que não se está tratando acerca dos direitos das minorias), a adoção de medidas
positivas – discriminação positiva – continua sendo matéria controvertida.
Após a Segunda Guerra Mundial, o princípio da interdição da discriminação,
melhor dizendo, o princípio da não discriminação, passou a integrar, exaustiva e
sucessivamente, a maioria dos instrumentos internacionais de direitos humanos no
âmbito da ONU que tratam das diversas categorias de direitos e pessoas a serem
protegidas. Portanto, dispositivos de não discriminação e de igualdade encontramse, atualmente, em vários documentos, desde a Carta das Nações Unidas até o
Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
Com efeito, este princípio consagrou-se como universal do direito internacional
de direitos humanos e, por assim ser, como cardeal de proteção das minorias,
constituindo-se como respaldo normativo amplo às reivindicações das minorias.
Já as medidas de discriminação positiva caracterizam-se por ser medidas
especiais que permitem a preservação das características das minorias, que visam
a assegurar a pessoas pertencentes a grupos particularmente desfavorecidos uma
posição idêntica às dos outros membros da sociedade, proporcionando, portanto,
uma igualdade no exercício de direitos.
Diferentemente do que ocorreu com o princípio da não discriminação, estas
medidas foram aos poucos complementadas pelo legislador internacional, em razão
da constatação da insuficiência das regras de não discriminação em relação a
determinados grupos de pessoas. Então, tanto o princípio de não discriminação
quanto as medidas de discriminação positiva assentam-se no princípio da igualdade.
Atualmente, o entendimento primeiro é fundamentado na concepção aristotélica
de que deve ser dado tratamento igual ao que é igual e tratamento desigual ao que é
diferente. Como já dito alhures, muito ao contrário do já consagrado princípio da não
discriminação, a questão da discriminação positiva é altamente controversa.
Deveras, a inércia dos Estados em aceitar as medidas positivas de
discriminação em benefício de determinados grupos, quando previstas em
Conceito de minorias e discriminação
149
instrumentos internacionais, é, na maioria das vezes, motivada por receios de que
possa haver certa ingerência em assuntos internos por parte da comunidade
internacional (WUCHER, 2000: 55).
Todavia, aqui já se iniciou, de uma forma mais direta, a abordagem acerca
do tema minorias. Mas, para abordar qualquer assunto sobre tal tema, é mister
aprofundar mais as questões a respeito das chamadas minorias.
3. CONCEITO DE MINORIAS
No plano internacional, a falta de consenso em torno dos elementos centrais
do conceito minoria impede êxito na elaboração de uma definição universalmente
aceita. A atual problemática das minorias é, sem sombra de dúvidas, um tema mais
do que amplo, eis que a complexidade da questão expressa-se, notadamente pelo
seu caráter interdisciplinar, não só no âmbito internacional público, mas pelo fato
de o tema transcender o campo jurídico.
A questão mais relevante a ser considerada no momento de se conceituar
minoria é saber identificar quais indivíduos pertencem à determinada minoria, em
meio à diversidade de minorias e seus respectivos contextos em todo o mundo. É
importante aqui ressaltar a impossibilidade da existência de dois contextos idênticos,
envolvendo minorias de diferentes Estados, vez que cada minoria, da mesma forma
que a situação em que se encontra, tem suas próprias características, diferenciandose, com efeito, em graus diferentes, de contextos a respeito dos grupos minoritários
em cada Estado, quando analisado individualmente.
A palavra minoria inúmeras vezes aparece acompanhada de um adjetivo
indicativo da origem da própria destinação. Ou seja, as minorias “nacionais”,
“étnicas”, “religiosas” e “linguísticas” estampam a própria proteção internacional
das minorias e seus respectivos direitos. Referindo-se aos direitos atinentes a
minorias, O’Donnel constatou que: “Sin embargo, su aplicación también se
dificulta por la falta de una definición clara y universalmente aceptada del
término minoría” (apud WUCHER, 2000: 43). Ou seja, os problemas de definição
devem ser analisados na grande e considerável diversidade de minorias, bem
como seus respectivos contextos em todo o mundo.
O conceito de “minorias históricas”, segundo Gabi Wucher, portanto, ao se
opor ao de “minorias novas”, exclui, a priori, “grupos vulneráveis” outros que as
tradicionais minorias étnicas, linguísticas e religiosas (2000: 51). A fim de buscar
um significado para minoria, Aurélio Buarque de Holanda Ferreira definiu o termo
como “inferioridade numérica; parte menos numerosa duma corporação deliberativa,
e que sustenta ideias contrárias às do maior número” (1994: 11).
150
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
Ou, ainda, pode-se encontrar o significado de minoria como inferioridade
em número; a parte menos numerosa de um corpo deliberativo2. De fato, nem
mesmo a Organização das Nações Unidas conseguiu chegar a um conceito
universalmente aceito, já que sempre houve muita hesitação sobre o assunto: a
Declaração Universal não tratou particularmente dos direitos das minorias, ficando
esta tarefa ao encargo do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (ONU,
1966), primeiro instrumento normativo internacional da ONU a tratar sobre o tema,
mas que, ainda assim, não forneceu uma definição segura de minoria, pregando
de modo genérico o respeito aos direitos dos grupos minoritários, como evidenciado
em seu artigo 27, in verbis:
Artigo 27 – Nos Estados em que haja minorias étnicas, religiosas ou linguísticas,
as pessoas pertencentes a essas minorias não poderão ser privadas do direito
de ter, conjuntamente com outros membros de seu grupo, sua própria vida
cultural, de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua.
Nessa esteira, José Augusto Lindgren Alves (1997) salientou que as
argumentações para tamanha hesitação têm origem na dificuldade de conciliação
das posições assimilacionistas dos Estados do Novo Mundo (formados por
populações imigrantes) e as dos Estados do Velho Mundo, com grande gama de
grupos distintos em seus territórios nacionais.
E, ainda, o mesmo autor advertiu que as razões mais profundas para as
hesitações nessa área se acham expostas no prefácio de Francesco Capotorti em
seu estudo sobre minorias, datado de 1977 (para a regulamentação do artigo 27 do
Pacto dos Direitos Civis e Políticos), a saber: desconfianças dos Estados em relação
aos instrumentos internacionais de proteção dos direitos das minorias, vistos como
pretextos para interferência em assuntos internos; ceticismo quanto ao fato de se
abordarem, em escala mundial, as situações distintas das diversas minorias; a crença
na ameaça à unidade e à estabilidade interna dos Estados pela preservação da
identidade das minorias em seu território e, finalmente, a ideia de que a proteção a
grupos minoritários constituiria uma forma de discriminação.
Diante da necessidade de uma definição de minoria, a Subcomissão para a
Prevenção da Discriminação e a Proteção das Minorias, criada pela ONU,
encomendou ao perito italiano Francesco Capotorti (anteriormente citado) um estudo
que resultou na seguinte definição de minoria que, por sua vez, será a definição
adotada no presente trabalho:
2
MINORIA. In: PRIBERAM. Dicionário da língua portuguesa. Lisboa: Priberam Informática, 2009.
Disponível em: <http://www.priberam.pt/dldlpo>. Acesso em: 5 de junho de 2009.
Conceito de minorias e discriminação
151
Um grupo numericamente inferior ao resto da população de um Estado, em
posição não dominante, cujos membros – sendo nacionais desse Estado – possuem
características étnicas, religiosas ou linguísticas diferentes das do resto da população
e demonstre, pelo menos de maneira implícita, um sentido de solidariedade, dirigido
à preservação de sua cultura, de suas tradições, religião ou língua (CAPOTORTI
apud WUCHER, 2000: 78).
Infere-se dessa definição que o citado autor elencou o elemento numérico,
o da não dominância, da nacionalidade e da solidariedade entre os membros
da minoria como constitutivo de uma minoria. Não há, todavia, consenso no que diz
respeito ao elemento numérico, qual seja, o tamanho de uma minoria.
De um lado, tem-se que as medidas especiais em benefício de uma minoria
muito pequena seriam inversamente proporcionais à capacidade financeira do Estado.
Por outro lado, tem-se que a titularidade ou o exercício propriamente dito de direito
individual não poderia depender do tamanho do grupo ao qual o indivíduo pertence.
Inegavelmente, o elemento numérico, por si só, não é suficiente para caracterizar uma minoria que necessite de proteção especial do Estado. Já o elemento
nacionalidade, por sua vez, levanta outras controvérsias, na medida em que é
questionável se, para reivindicar direitos, as pessoas pertencentes às minorias devem
ser cidadãos do Estado em que, de fato, vivem. Nesse sentido, a subcomissão, em
primeira sessão, afirmou que pessoas que pertencem às minorias precisam ser
nacionais do Estado em que vivem (WUCHER, 2000: 47).
Em prosseguimento, o elemento da solidariedade entre os membros da
minoria, visando à preservação de sua cultura, suas tradições, sua religião ou seu
idioma, tem grande importância, eis que implica critério subjetivo, vale dizer, na
manifestação de vontade implícita ou explícita de preservação das próprias
características. Com efeito, na visão do Tribunal Permanente de Justiça Internacional, pertencer a uma minoria é mais uma questão de fato que de vontade:
No que respeita ao elemento subjectivo da noção de minoria, o Tribunal Permanente
de Justiça Internacional rejeitou o argumento segundo o qual a declaração de
pertença a uma minoria era o único factor que condicionava a possibilidade de
exercício dos direitos previstos pelos Tratados [...]. O Tribunal declarou que as
minorias eram definidas por elementos objectivos, como a raça ou a religião, e não
por simples declarações de vontade das pessoas. Essa declaração deve constituir
a constatação de um facto, e não a expressão de uma vontade, o que excluía assim
o elemento subjectivo da noção de minoria (PIRES apud WUCHER, 2000: 48).
A questão de maior relevância, neste aspecto, é determinar qual o indivíduo
que, de fato, pertence a uma minoria, ou seja, que pode reivindicar direitos dados a
152
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
uma determinada minoria. É necessário salientar que há duas definições para
caracterizar minorias, envolvendo as concepções sociológica e antropológica.
Na sociologia, o termo “minoria” normalmente é um conceito puramente
quantitativo, referindo-se ao subgrupo de pessoas que representa menos da metade
da população total, sendo certo que, dentro da sociedade, ocupa uma posição
privilegiada, neutra ou marginal.
Todavia, no aspecto antropológico, a ênfase é dada ao conteúdo qualitativo,
referindo-se aos subgrupos marginalizados, ou seja, minimizados socialmente no
contexto nacional, podendo, inclusive, constituir uma maioria em termos quantitativos.
Dessa forma, para ser objeto de tutela internacional, a minoria deve, necessariamente, ser caracterizada pela posição de não dominância que ocupa no âmbito
do Estado em que vive.
O elemento de não dominância, por si só, é o que caracteriza os chamados
grupos vulneráveis. A despeito da confusão entre os conceitos de minorias e
grupos vulneráveis (as primeiras caracterizadas por ocupar uma posição de
minoria no país onde vivem, no sentido literal da palavra, enquanto os segundos
podem se constituir de grande contingente numérico destituído de poder, mas que
guarda certa cidadania e os demais elementos que poderiam transformá-los em
minorias, como as mulheres, as crianças e os idosos), deixar-se-á aqui de ater-se à
diferença existente, posto que, na prática, ambos sofrem sobremaneira de
discriminação e intolerância por parte da sociedade.
Via de regra, quando se fala em minorias e grupos vulneráveis, logo se
pensa em crianças, mulheres, idosos, aidéticos, homossexuais, pessoas com
deficiência. Todavia, a cada dia surgem novos grupos ou, ainda, reconhece-se
tratamento diferenciado – e discriminatório – recebido por determinadas pessoas
que apresentam alguma característica peculiar, como a população carcerária ou
os egressos do sistema penitenciário.
3.1. Critérios de classificação
O Pacto dos Direitos Civis e Políticos, muitas vezes criticado, traz, em seu
dispositivo já transcrito alhures, somente questões acerca das minorias étnicas,
linguísticas e religiosas. As minorias étnicas são grupos que apresentam, entre seus
membros, traços históricos, culturais e tradições comuns, diferentes dos verificados
na maioria da população. Minorias linguísticas são aquelas que usam uma língua,
sem levar em consideração se esta é escrita ou não, distinta da língua da maioria da
população ou da adotada oficialmente pelo Estado. Por sua vez, minorias religiosas
caracterizam-se por grupos que professam uma religião distinta da professada pela
Conceito de minorias e discriminação
153
maior parte da população, mas não apenas uma outra crença, como o ateísmo. No
entanto, não é possível ater-se somente a tais minorias, visto que o critério de
identificação das minorias envolve aspectos tanto objetivos quanto subjetivos.
O aspecto objetivo envolve a visualização da realidade das minorias, por
meio de documentos históricos e testemunhas que corroborem os laços étnicos,
linguísticos e culturais destes grupos. Já o critério subjetivo envolve o reconhecimento da minoria, da sua existência reconhecida pelo Estado. Vale ressaltar aqui
que o não reconhecimento de uma minoria por parte do Estado não o dispensa de
respeitar os direitos do grupo minoritário.
A partir da distinção apontada, no que diz respeito ao elemento objetivo ou
subjetivo, outra classificação de minorias é viabilizada segundo os objetivos das
minorias e de seus membros: a diferenciação entre “minorities by force” e “minorities
by will” (WUCHER, 2000: 50). No entender do autor, entende-se por by force aquelas
minorias e seus membros que se encontram numa posição de inferioridade na sociedade
em que vivem e que almejam, tão somente, não ser discriminados em relação ao
resto da sociedade e, ato contínuo, querem adaptar e assimilar-se a esta.
De outra sorte, as minorias by will e seus membros exigem, além de não ser
discriminados, a adoção de medidas especiais as quais lhes permitam a preservação
de suas características coletivas (culturais, religiosas e linguísticas). Tais minorias,
visando a preservar as indigitadas características, não querem se assimilar à
sociedade em que, de fato, vivem, mas sim integrar-se a ela (o que, diga-se de
passagem, é muito diferente; todavia, não há o propósito de ater-se, no presente
trabalho, a tais distinções, em virtude de não ser o foco do mesmo) como unidade
distinta do restante da população. Gabi Wucher (2000) asseverou ainda que:
Esta distinção é de suma importância para o presente trabalho, visto que a
definição aqui adotada enfoca as minorias by will, ou seja, as minorias combativas
e autoafirmativas que aspiram à preservação de suas próprias características e
rejeitam ser assimiladas à maioria da população.
É necessário, nessa linha, mencionar ainda a existência de outros grupos,
tais como as pessoas portadoras de deficiência, os homossexuais e os transexuais,
dentre outros que, em princípio, não se enquadrariam nos modelos étnicos, linguísticos
e religiosos.
4. CONCLUSÃO
O conceito antropológico, que envolve o aspecto qualitativo e não quantitativo,
parece mais adequado à situação do tema, tendo em vista que considera o real
154
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
quadro de submissão dos grupos minoritários aos majoritários. No Brasil, onde o
preconceito é um elemento constante nas atitudes da sociedade, não podem de
forma alguma ser deixadas de lado as comparações entre aqueles grupos conflitantes, visto que são necessárias à conscientização dos membros da própria minoria
de que seus direitos estão sendo violados.
Com referência às questões de definição, a ênfase conferida aos acordos
bilaterais e, principalmente, àqueles programas de cooperação técnica, justamente
pelo enfoque político, aponta uma solução bastante pragmática, tendo em vista que
tais acordos já se referem a determinado grupo de minorias, o que impede uma
maior abrangência quando da aplicação dos direitos destes grupos.
Dessa forma, a proposta central deste trabalho se restringe em classificar
minorias, ao invés de defini-las, a despeito de eventuais problemáticas de uma
subsequente “escala de direitos”, conforme proposto por Gabi Wucher (2000: 136).
Em relação ao princípio da não discriminação e a medidas positivas, a breve abordagem
enfatizou a necessidade de se alcançar uma igualdade de fato para todos.
Aliás, é de ressaltar que a própria Lei Maior desequipara as pessoas com
base em múltiplos fatores, quais sejam, raça, cor, sexo, renda, situação funcional e
nacionalidade, dentre outros. Assim, ao contrário do que se poderia supor à vista
da literalidade da matriz constitucional da isonomia, o princípio, em muitas de suas
incidências, não apenas não veda o estabelecimento de desigualdades jurídicas,
como, ao contrário, impõe o tratamento desigual.
Não obstante, ainda, as citações da legislação internacional sobre o tema, a
falta de especificação do mesmo no ordenamento jurídico pátrio leva, muitas vezes,
à impunidade e à omissão do Estado, sendo certo que é justamente nessa esteira
que se faz necessário um trabalho de educação e respeito de toda a sociedade, que
também tem o dever de resguardar os direitos do próximo.
Dessa forma, mesmo considerando todas as dificuldades enfrentadas pelas
minorias, bem como as barreiras impostas à modificação dessa situação, percebese a intensa luta desses grupos pela sua sobrevivência e pela manutenção dos seus
costumes. Para ajudá-los na manutenção de sua identidade, é preciso que a própria
sociedade, munida do poder de participação que possui, realize mudanças sociais
que venham a preservar a cultura e os direitos de tais grupos, contribuindo para
efetiva integração social de todos.
Conceito de minorias e discriminação
155
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.
157
A nova pirâmide jurídica: a prisão do depositário infiel vista pelo STF
11
A nova pirâmide jurídica: a prisão do
depositário infiel vista pelo STF
The new juridical pyramid: the unfaithful
trustee prison on the STF view
CARLOS JOÃO EDUARDO SENGER
Advogado; procurador de Justiça; doutor em Direito, pela Universidad del Museo Social
Argentino – UMSA, em Buenos Aires; professor e consultor do curso de
Direito da Universidade Municipal de São Caetano do Sul – USCS.
WALLACE C. DIAS
Bacharelando em Direito, pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul – USCS.
E-mail para correspondência: [email protected]
.
RESUMO
A pirâmide jurídica, proposta na obra de Hans Kelsen, recebeu um novo patamar a
partir do julgamento sobre prisão do depositário infiel. O Supremo Tribunal Federal
refez sua posição clássica de escalonar os tratados internacionais como lei ordinária,
de sorte que, na visão hodierna, os pactos de direitos humanos merecem um status
supralegal, posição esta não prevista pelo constituinte de 1988. Neste trabalho,
serão estudados os reflexos desta decisão e como ela pode alterar o Direito como
um todo, seja na esfera internacional, seja na nacional.
Palavras-chave: direitos humanos, depositário infiel, pirâmide jurídica.
ABSTRACT
The juridical pyramid proposal in the work of Hans Kelsen received a new level from
the trial on arresting of an unfaithful trustee. The Supreme Court has remade his
classic position to scale the international treaties and statutory law, in view of
today’s human rights pacts worth a supra-status, position not foreseen for the
constituent in 1988. This work will study the consequences of this decision and
how it can alter the law as a whole, within the international or national sphere.
Keywords: human rights, unfaithful trustee, juridical pyramid.
158
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
1. HISTÓRICO DO CASO
O caso estudado por este trabalho é especificamente o Habeas Corpus n.
87.585-8/TO, tendo como relator o Ministro Marco Aurélio de Mello, que foi julgado
em 03/12/2008, representando verdadeira inovação no Direito brasileiro.
O processo refere-se à legitimidade da prisão do depositário infiel, positivada pelo
Código Penal no inciso III do parágrafo 1º do artigo 168. O referido Código, em vigor
desde a década de 1940, estabelece a pena de reclusão de um a quatro anos e multa.
Em 1988, com o advento da Constituição cidadã, novamente destacou-se a
possibilidade da prisão do depositário infiel. Aliás, impende destacar que isto ocorre
sob amparo de cláusula pétrea, vez que é no artigo 5º, inciso LXVII, que se
encontra a positivação, in verbis: “não haverá prisão civil por dívida, salvo a
do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação
alimentícia e a do depositário infiel” (grifou-se).
O egrégio Superior Tribunal Federal já havia se posicionado em matéria
sumulada de número 619, constatando que: “A prisão do depositário judicial pode
ser decretada no próprio processo em que se constituiu o encargo, independentemente
da propositura de ação de depósito”.
Os tribunais estaduais também conferiam vigência e eficácia à prisão do
depositário, pois nada obstava a aplicação da pena tão bem fixada nos ordenamentos
nacionais e amplamente aceita pelos juristas à época.
Quando tudo indicava pacificação do tema em aceitar a prisão do depositário
infiel, perfez-se conflito normativo quando o Brasil ratificou o Pacto de São José
da Costa Rica (ou Convenção Americana de Direitos Humanos) pelo Decreto n.
678/92. Tal pacto tornou expressamente defesa a prisão por dívida, apenas
permitindo no caso de pensão alimentícia:
Artigo 7º
(...)
7 – Ninguém deve ser detido por dívida. Este princípio não limita os mandados
de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de
obrigação alimentar1.
Poucos anos depois da ratificação, em 1997, o pacto já gerava efeitos na
jurisprudência. O Tribunal de Justiça de São Paulo, 7ª Câmara de Direito Público,
julgou o Habeas Corpus n. 059.816-5/9-00, tendo como relator o Desembargador
Barreto Fonseca, e por votação unânime proferiu a seguinte ementa: “Em face da
1
Disponível em: <http://www2.mre.gov.br/dai/m_678_1992.htm>. Acesso em: 21 de outubro de
2009.
A nova pirâmide jurídica: a prisão do depositário infiel vista pelo STF
159
adesão do Brasil ao Pacto de São José da Costa Rica, não subsiste mais a prisão
civil de depositário infiel”2.
Os ínclitos desembargadores do julgado entenderam que o referido pacto
havia obstado tacitamente o instrumento normativo constitucional que declarava a
prisão civil do depositário.
Apesar de não haver manifestação expressa sobre a recepção do pacto
como parte integrante da Constituição, há indícios disso quando se trata do artigo
5º, LXVII: “É que no caput do artigo estão declaradas garantias constitucionais
mínimas, que podem ser ampliadas por tratados constitucionais (parágrafo 2º do
artigo 5º da Constituição da República)”3.
A jurisprudência caminhava no entendimento de o pacto ter força constitucional, aceitando-no como parte integrante do rol das garantias individuais tuteladas
por cláusulas pétreas, porém um novo fato incidiria no tema. Mais adiante, no ano
de 2004, atribulando ainda mais a já tormentosa questão, o Congresso, por meio de
Emenda Constitucional n. 45, redefiniu o artigo 5º da Constituição, acrescentandolhe o parágrafo 3º. Tal parágrafo permitiu força constitucional a todo tratado de
direito humano aprovado em votação de 3/5 de ambas as Casas Legislativas.
Por certo que o Pacto de São José da Costa Rica não havia sido votado
nestes termos; contudo, ele já recebia os benefícios da aplicação assegurada pelo
parágrafo 2º do mesmo artigo constitucional. Estaria tal pacto escalonado como
norma constitucional pelo parágrafo 2º ou, por uma interpretação sistemática, só
com aprovação do Congresso adquiriria tamanha força? A Emenda n. 45 poderia
afetar a vigência constitucional de pacto constituído outrora?
Estas são questões de direito que tornaram ainda mais complexa a prisão do
depositário infiel, de tal modo que a submeteram até o grau máximo de jurisdição
nacional, o Supremo Tribunal, protetor dos elementos constitucionais com repercussão geral. Já era chegada a hora de uma definição concreta delimitar os ditames
do Pacto de São José da Costa Rica.
Um tema de tanta relevância clamava por pacificação, de maneira que não
é mera coincidência o fato de a doutrina posicionar-se e observar atentamente o
resultado que traria a concepção do Supremo. Os institutos do Direito internacional
e direitos humanos estavam em avaliação. Estes elementos enfrentados pelo
Supremo foram transcritos em linha temporal para melhor didática:
2
Disponível em: <http://esaj.tj.sp.gov.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=1307348>. Acesso em: 31
de setembro de 2009.
3
HC n. 059.816-5/9-00. Rel. Desembargador Barreto Fonseca, julgado em 03/11/1997.
160
○
○
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
○
○
○
○
19
40
Código
Penal
19
88
CF/88
19
92
Ratificação
do Pacto de
São José
20
04
20
08
○
Emenda
n. 45/2004
○
○
○
○
○
Posição
do STF
Com facilidade, nota-se quão complexo foi o julgado, que teve a missão de
definir um conjunto de abordagens jurídicas das mais diversas áreas: Direito
Constitucional, Internacional, Penal, Civil e, até mesmo, Filosofia e Teoria Geral
do Direito.
De maneira resumida, pode-se afirmar que os caminhos dos votos cruzaram
os aspectos jurídicos descritos abaixo.
a) Prevalência de norma: Direito nacional X Direito internacional.
b) Eficácia de normas constitucionais (plena ou limitada).
c) Hermenêutica constitucional do inciso LXVII do artigo 5º e parágrafos.
d) Escalonamento de normas na pirâmide kelseniana4.
e) Valores dos direitos humanos.
f) Direito comparado.
2. O PACTO NO ORDENAMENTO NACIONAL
Diante da ratificação, em 1992, é refutável questionar sobre a inclusão do
Pacto de São José da Costa Rica no Direito brasileiro. A problemática está em
qual escala do Direito nacional encontra-se este instrumento, ou seja, não se
questiona se ele faz parte, mas como faz parte.
O Supremo defendeu, na Ação Declaratória de Inconstitucionalidade n. 1.4803/DF, a paridade dos pactos com leis ordinárias, mantendo-as como normas
igualmente escalonadas. Todavia, no julgamento focado por este trabalho, os
ministros estudaram duas posições totalmente diversas para o Pacto de São José:
4
Hans Kelsen não utilizava a expressão “pirâmide” em sua teoria. Aqui, fez-se uso do termo de
maneira puramente pragmática.
161
A nova pirâmide jurídica: a prisão do depositário infiel vista pelo STF
a) com força constitucional imediata, pelos parágrafos 1º e 2º do artigo 5º
da CF;
b) com força supralegal, em virtude de não ter sido votado nos termos do
parágrafo 3º do artigo 5º da CF, podendo, contudo, tornar-se constitucional
caso esta votação seja feita.
Abandonou-se, desta forma, para os instrumentos internacionais de direitos
humanos, a clássica posição de que os tratados são leis ordinárias. Posição esta
que seria a terceira hipótese não defendida no julgado, como se demonstra abaixo
na pirâmide jurídica:
○
○
○
○
○
○
○
Constitucional
○
○
○
○
○
○
○
Constituição
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
Supralegal
○
○
○
○
○
○
Pacto
São José
da Costa
Rica
○
○
○
○
○
○
○
○
○
Ordinário
○
○
5
Lei ordinária (Código Penal)
○
○
Lei complementar
○
○
○
Resoluções, decretos, portarias
A figura acima demonstra as possíveis soluções para escalonar o pacto, das
quais prevaleceu a inovadora tese defendida pelo Ministro Gilmar Mendes: classificálo como supralegal. Assim, cria-se um novo “degrau” que supera as leis, mas não
alcança o salutar título de norma constitucional até que seja votado como emenda.
No curso do processo, o Ministro Gilmar Mendes frisou que, caso os pactos
tornem-se dispositivos impreterivelmente com força constitucional, haveria o risco
de “revogação de normas constitucionais com o advento dos tratados”6. O referido
jurista destacou, também, que seria trabalhoso definir quando a Constituição
absorveu ou não o instrumento internacional: “(...) fico a imaginar a confusão, diria
até a babel que nós poderíamos instaurar. Primeiro, com a pergunta sobre se
determinado tratado é tratado de direitos humanos (...)”7.
5
Nem todos os doutrinadores aceitam a supremacia da lei complementar sobre a ordinária. Para estes,
ambas estão no mesmo patamar, em igualdade.
6
HC n. 87.585/TO. Rel. Ministro Marco Aurélio de Mello, julgado no dia 03/12/2008, publicado no
dia 26/06/2009.
7
Idem.
162
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
Por outro lado, o Ministro Celso de Mello, defensor da constitucionalidade
dos tratados de direitos humanos, argumentava que o parágrafo 2º do artigo 5º da
Constituição Federal é “(...) – verdadeira cláusula geral de recepção – autoriza o
reconhecimento de que os tratados internacionais de direitos humanos possuem
hierarquia constitucional (...)”8. Além disso, destacava, também, que, na dúvida de
classificação e aplicação dos tratados humanos, sob a perspectiva hermenêutica,
“valorizar-se-á o sistema de proteção aos direitos humanos (...)”9, conferindo, desta
forma, força de norma constitucional.
O Ministro Sepúlveda Pertence lembrou, em ocasião oportuna, que o egrégio
Supremo estaria por refazer sua posição quando disse: “Temos decisões posteriores
à ratificação do Pacto San José, insistindo na legitimidade da prisão”10.
Inquestionavelmente um empecilho obstaria a solução do Ministro Gilmar
Mendes: o pacto em questão, enquanto supralegal, está acima do Código Penal;
contudo, ainda submete-se à Constituição (que autoriza a prisão do depositário
infiel). Como, então, não o tornar inconstitucional? Isto é o que demonstra o próximo
item deste trabalho, trazendo a solução do próprio ministro para o caso.
3. EFICÁCIA DO ARTIGO 5º, INCISO LXVII, DA CONSTITUIÇÃO
Antes de verificar a argumentação para resolver o conflito do Pacto de São
José da Costa Rica com a Constituição, é preciso observar a diferença entre vigência
e eficácia.
O tema não é moderno: a diferença entre vigência e eficácia encontrou grande
teorização com o célebre Hans Kelsen. Este jurista (KELSEN, 2006) definia a vigência
como a existência formal da lei dentro do ordenamento jurídico, enquanto que a
eficácia era a existência fundada na aplicabilidade concreta das leis. Segundo ele:
Como vigência da norma pertence à ordem do dever-ser e não à ordem do ser,
deve também distinguir-se a vigência da norma da sua eficácia, isto é, do fato
real de ela ser efetivamente aplicada e observada, da circunstância de uma conduta
humana conforme a norma se verificar na ordem dos fatos11.
Assim sendo, a vigência relaciona-se com o conflito normativo constitucional;
já a eficácia, ao fiel cumprimento e vontade de aplicação normativa. Entretanto, é
8
HC n. 87.585/TO. Rel. Ministro Marco Aurélio de Mello, julgado no dia 03/12/2008, publicado no
dia 26/06/2009.
9
Idem.
10
Idem.
11
KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. p. 11.
163
A nova pirâmide jurídica: a prisão do depositário infiel vista pelo STF
errado imaginar que basta a vigência para a norma ser válida; para isto, é necessário
que, além de obedecer às exigências formais da lei, esta contenha, no mínimo,
certa eficácia, de maneira que não seja letra morta válida tão somente na abstração.
Este foi o fato atestado por Kelsen (2006):
Uma norma que nunca e em parte alguma é aplicada e respeitada, isto é, uma
norma que – como costuma dizer-se – não é eficaz em uma certa medida, não será
considerada como norma válida (vigente)12.
Já para Miguel Reale, a norma possui três elementos: validade formal ou
técnico-jurídica (vigência), validade social (eficácia) e validade ética (fundamento da norma)13.
A parte técnica formal da norma é definida por agente competente para
legislar (e.g. norma federal), pela competência material (e.g. norma de trânsito),
bem como pela legitimidade de procedimento (e.g. votação em quórum de 3/5)14.
Cumpridos estes três pressupostos, a norma é válida no plano de vigência.
Este insigne jurista brasileiro, embora de doutrina tridimensionalista,
coadunou-se com Kelsen na importância da eficácia, dizendo de forma semelhante
a ele: “O certo é, porém, que não há norma jurídica sem um mínimo de eficácia, de
execução no seio do grupo”15.
Quando se estudam normas, é preciso estar atento para ambos os elementos
– os dois possuem igual importância para o jurista, obviamente que o sociólogo
está mais próximo da eficácia na medida em que o jurista está da vigência; contudo,
só por meio de um mutualismo científico pode-se estruturar a validade da norma.
Perfazendo de maneira mais visualizável estas ideias defendidas por Reale e Kelsen,
poder-se-ia estruturá-las no seguinte esquema:
Vigência
Validade formal
Norma
supostamente
válida
Norma
válida
Eficácia
12
Validade material
KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. p. 12.
REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. p. 105.
14
Ibidem, p. 110.
15
Ibidem, p. 113.
13
164
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
O caso aqui estudado, referente ao Pacto de São José da Costa Rica, é de
matéria constitucional. Tais normas não costumam enfrentar problemas de vigência,
vez que são de escalonamento mais alto; estando no topo da pirâmide jurídica, só
podem conflitar com outras normas constitucionais.
No plano constitucional, as normas possuem a máxima vigência (constituem o
topo da pirâmide), porém apresentam diversos tipos de eficácia. Esta divisão dos
tipos de eficácia não é matéria pacífica porquanto José Afonso da Silva, Celso Ribeiro
Bastos e Maria Helena Diniz formularam teorias diferentes de classificação16.
Insta dizer que a divisão de José Afonso da Silva (2002) é mais utilizada e
conhecida, inclusive pelo Superior Tribunal Federal em julgamento do Mandado de
Injunção n. 438-2-GO, publicado no DJU, em 16 de agosto de 199517. Esta divisão
é feita da seguinte forma18:
a) normas de eficácia plena: autoaplicáveis, efeitos imediatos;
b) normas de eficácia limitada: sem eficácia até regulamentação
infraconstitucional posterior;
c) normas de eficácia contida: sujeitas às restrições de aplicabilidade por
meio de norma infraconstitucional.
Estas informações foram essenciais para o Supremo Tribunal Federal
caracterizar a supralegalidade do Pacto de São José da Costa Rica sem gerar
conflito com o artigo 5º, LVXII, da Constituição.
Caracterizando o artigo 5º, LVXII, como norma de eficácia limitada, entendeu
o Ministro Marco Aurélio de Mello que o legislador regulou a prisão civil do
depositário infiel de forma permissiva e não vinculada, ou seja, permitiu à norma
infraconstitucional tornar crime o depositário infiel, mas apenas se desejasse, pois
é ato discricionário.
O Pacto de São José agora proíbe tornar eficaz a prisão civil por meio do
Código Penal; contudo, não proíbe a Constituição de autorizá-lo. A prisão do
depositário é vigente na Constituição, mas sem eficácia por não contar com norma
infraconstuticional que torne possível a pena. Sendo o Código Penal lei ordinária, o
pacto proíbe os seus dispositivos contrários.
16
ARAUJO, Luiz Alberto David. Curso de Direito Constitucional. p. 18-24.
Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=(4382.
NUME.%20OU%204382.ACMS.)&base=baseAcordaos>. Acesso em: 23 de agosto de 2009.
18
SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das normas constitucionais. Revista dos Tribunais, p. 89-91.
17
165
A nova pirâmide jurídica: a prisão do depositário infiel vista pelo STF
Manifestou-se, neste sentido, o Ministro Marco Aurélio de Mello, valendose da teoria da eficácia das normas para que o Pacto de São José, mesmo estando
abaixo da Constituição, tenha efeitos jurídicos plenos. Segundo ele: “(...) a
Constituição Federal continua a prever a possibilidade (...). Só que esta norma,
para ter eficácia e concretude, depende da regulamentação da prisão, inclusive
quanto ao instrumental, para alcançar-se esta mesma prisão”19.
O Ministro Celso de Mello, em análise hermenêutica da intenção do legislador,
definiu que a eficácia infraconstitucional da pena é discricionária ao legislador:
Na realidade, as exceções à cláusula vedatória da prisão civil por dívida devem
ser compreendidas como um afastamento pontual da interdição constitucional
dessa modalidade extraordinária de coerção, em ordem a facultar, ao legislador
comum, a criação desse meio instrumental nos casos de inadimplemento
voluntário e justificável de obrigação alimentar e de infidelidade depositária20.
E também frisou, em concordância com o Ministro Marco Aurélio de Mello,
que “(...) a regra inscrita no inciso LXVII do artigo 5º da Constituição não tem
aplicabilidade direta, dependendo, ao contrário, da intervenção concretizadora do
legislador (...)”21.
Em síntese, o Pacto de São José não impede que a Constituição autorize,
mas impede que norma ordinária torne aplicável a prisão, incidindo no momento
em que o Código Penal concederia eficácia, e não quando a Constituição permitiu.
Por estar acima da lei ordinária, o referido pacto tem poder de intervir na aplicação
do Código Penal, mas jamais poderia fazer isto no texto constitucional. O
procedimento ocorre, portanto, desta forma:
Constituição
Autoriza a prisão
Norma ordinária
(Código Penal)
○
○
○
○
○
Norma
aplicável
Pacto de São José
Veta a eficácia
infraconstitucional
19
HC n. 87.585/TO. Rel. Ministro Marco Aurélio de Mello, julgado no dia 03/12/2008, publicado no
dia 26/06/2009.
20
Idem.
21
Idem.
166
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
4. A CONSEQUÊNCIA DO JULGAMENTO (NOVOS VALORES)
Os direitos humanos, que já foram e ainda hoje são negados por muitos
juristas, consistem numa destas questões tão complexas que retornam quando se
presume já estarem superadas.
Michel Villey, jurista francês, lutou arduamente contra o conceito de direito
humano. Chegou até mesmo a dizer que “o aparecimento dos direitos humanos atesta
a decomposição do conceito do direito”22. Mais adiante, confirmando esta posição,
ressaltou-a com mais vigor, condenando: “Esses não juristas, que foram os inventores
dos direitos humanos, sacrificaram-lhe a justiça, sacrificaram o direito”23.
Desde os jusnaturalistas, há uma luta para listar os direitos inerentes do
homem, aqueles que o acompanham enquanto ser existente, e não somente na
qualidade de cidadão – valores que constituem a supremacia da racionalidade e do
amor e preocupação ao próximo.
O problema foi encontrar uma paridade de direitos: o homem não é o mesmo
em todos os tempos e em todos os espaços. A ideia de normas transcendentais, que
parecia uma falácia coberta por argumentos sofismáveis, sofreu inúmeras críticas
de Kelsen: “Os seus representantes não proclamam um único Direito natural, mas
vários Direitos naturais, muito diversos entre si e contraditórios uns com os outros”24.
Cada vez mais, via-se a impossibilidade de atingir um direito do homem. Este
é ser biologicamente constituído como tal, enquanto que o Direito apresenta maior
interesse no cidadão, ou seja, no indivíduo juridicamente vinculado a algum preceito
normativo. Alegou, de forma semelhante à Kelsen, o jurista francês Villey (2008):
Ó medicamento admirável! – capaz de tudo curar, até as doenças que ele mesmo
produziu! Manipulados por Hobbes, os direitos do homem são uma arma contra
anarquia, para a instauração do absolutismo; por Locke, um remédio contra o
absolutismo, para a instauração do liberalismo; quando se revelam os malefícios
do liberalismo, foram a justificação dos regimes totalitários e dos hospitais
psiquiátricos25.
Talvez não existam os “direitos” humanos, mas valores internacionais existem,
conforme o próprio Villey confessou26. Transformados em pactos, eles possuem
uma maior aplicabilidade, são positivados, recebem eficácia e vigência no ordenamento.
22
VILLEY, Michel. O direito e os direitos humanos. p. 163.
Idem. p. 164.
24
KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. p. 245.
25
VILLEY, Michel. O direito e os direitos humanos. p. 162.
26
Ibidem. p. 94.
23
A nova pirâmide jurídica: a prisão do depositário infiel vista pelo STF
167
O Pacto de São José da Costa Rica trouxe para o Direito nacional novos
valores que não só auxiliaram o constituinte (pois o pacto é anterior à Constituição),
como também alterou toda a ideia clássica da pirâmide kelseniana.
O Supremo Tribunal Federal convenceu-se da relevância do pacto em questão
quando o escalonou em nível totalmente novo: a supralegalidade, em outras palavras,
aquilo que não é constitucional por vigência, mas com tão grande eficácia axiológica
que supera as leis comuns.
Os instrumentos internacionais de direitos humanos demonstram iniciar o
caminho indireto para o constitucionalismo mundial proposto por Luigi Ferrajoli
(2007)27, célebre jurista italiano. Na medida em que constituições são revistas para
melhor se adequarem aos valores formalizados pelos pactos, tem-se uma inversão
na antiga ordem social: a sacramental soberania interna, que era comumente
defendida no século XVIII, está enfraquecendo e cedendo espaço para uma
soberania pactual-valorativa internacional.
A prisão do depositário infiel gera muitas suscitações não apenas nas mais
altas cortes, mas em todo o Judiciário nacional. A doutrina debruça sobre o tema:
Álvaro Villaça Azevedo (1993), por exemplo, criticou a efetividade da prisão civil28,
mesmo ressaltando o poder intimidatório que exerce.
Em que pesem os benefícios advindos, a interpretação da Suprema Corte
não foi totalmente recepcionada nos círculos acadêmicos. O jurista Ingo Wolfgang
Scarlet, durante uma palestra do XXIX Congresso Brasileiro de Direito Constitucional, disse que: “A prevalência da Constituição possibilitaria a prisão. Nesse
caso, o Supremo está afirmando a supraconstitucionalidade dos tratados”29.
Este jurista acredita que o Supremo esvaziou o poder infraconstitucional,
impedindo-o de receber um poder regulamentar que a Constituição emitiu. Disse,
ainda, que esta decisão foi política porquanto o STF alargou a competência quando
não tornou o pacto um dispositivo com força constitucional (permitindo ao STJ
também julgar tais casos)30.
Outros doutrinadores argumentam que a vedação do pacto não atinge todo
tipo de depositário infiel, mas tão somente os oriundos de alienação fiduciária. De
encontro a isso, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro proferiu em ementa: “(...)
27
FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno. passim.
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Prisão por dívida. p. 159-160.
29
Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2009-jun-11/constitucionalista-questiona-proibicaoprisao-depositario-infiel>. Acesso em: 29 de setembro de 2009.
30
Idem.
28
168
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
Porém, tendo o STF estendido a vedação constitucional à hipótese de infidelidade
no deposito de bens, inclusive nos casos de alienação fiduciária (...)”31. Notadamente, ao valer-se da palavra “inclusive”, o Tribunal do Rio de Janeiro incluiu
todos os casos de depósito infiel, e não apenas os de alienação fiduciária.
A jurisprudência cada vez mais se mostra inclinada a aceitar a posição do
STF, e o mesmo tribunal tornou explícita a concordância em outra ementa:
Habeas Corpus. Decreto de prisão de depositário infiel. Inadimissibilidade.
Entendimento do Supremo Tribunal Federal. Concessão da ordem32.
A tendência é que, devido à grande aceitação do Pacto de São José, o
Congresso convoque votação para conferir-lhe força constitucional, elevando ainda
a importância dos pactos no Direito brasileiro e resolvendo de vez certa dúvidas
que ainda existem.
5. CONCLUSÃO
Em suma, O Pacto de São José foi mais do que recepcionado pelo
ordenamento jurídico brasileiro, ele foi valorizado, posto em posição extremamente
vantajosa, ainda que não atinja o ápice da constitucionalidade.
A decisão do acórdão conferiu grande aplicabilidade para os instrumentos
internacionais, configurando verdadeira segurança jurídica para a assinatura destes.
Além disto, reestruturou o escalonamento normativo, reavaliou os valores clássicos
da jurisprudência e, até mesmo, refez o posicionamento da Suprema Corte.
Não se pode, contudo, escusar-se de destacar os problemas que permanecem: se os tratados de direitos humanos são supralegais, qual é o critério para
caracterizar um tratado como sendo de direito humano? Tal controle será feito de
forma discricionária pelo Judiciário até que o Supremo defina-se sobre a matéria? É
mesmo possível confirmar a existência de direitos humanos? Estaria o STF atestando
que há jusnaturalismo, vez que aceita o termo “direitos humanos” e até utiliza-o?
A questão propedêutica de o Direito provir da razão humana ou das normas
estatais, ou melhor, do jusnaturalismo contra o positivismo não terminou e está
longe de terminar. Contudo, é inegável perceber que o positivismo está perdendo a
sua força, que possuía desde o início do século XX.
31
32
TJ-RJ. Apelação n. 2009.001.48179. Rel. Paulo Maurício Pereira. Julgado em 23/09/2009.
TJ-RJ. HC n. 2009.144.00302. Rel. Antonio Carlos Esteves Torres. Julgado dia 13/10/2009.
A nova pirâmide jurídica: a prisão do depositário infiel vista pelo STF
169
Os tempos hodiernos revelam que o constitucionalismo não é tão inflexível; aliás,
sequer é sinônimo de normativismo. Os valores conduzem o Judiciário atual de tal forma
que os pactos de direitos humanos receberam força superior à própria norma interna do
país, àquela elaborada na Casa Legislativa do povo e dos Estados-membros.
Há, de fato, a possibilidade de que, fortificando os valores comuns das nações,
torna-se tangível uma norma mundial geral, uma constituição das constituições
(nas linhas de Ferrajoli). Por certo que este é um tema futuro, mas o caminho já
mostra sinais de possibilidade.
REFERÊNCIAS
ARAUJO, Luiz Alberto David & NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito
Constitucional. 9. ed., rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2005.
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Prisão civil por dívida. São Paulo: RT, 1993.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da constituição.
Coimbra: Almedina, 1998.
FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno. 2. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2007.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. São Paulo:
Milenium, 2003.
KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006.
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o Direito Constitucional Internacional.
3. ed. São Paulo: Max Limonad, 1997.
REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. 27. ed., ajustado ao novo Código
Civil. São Paulo: Saraiva, 2002.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 22. ed. São
Paulo: Malheiros, 2002.
______. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1982.
VILLEY, Michael. O Direito e os direitos humanos. São Paulo: Martins Fontes,
2008.
170
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
Anotações
Exegese sobre a “relativização” da coisa julgada: o que há por trás desta tendência?
171
12
Exegese sobre a “relativização”
da coisa julgada: o que há por trás
desta tendência?
Exegesis about the “relativization”
of res judicata: what’s
behind this tendency?
JOSÉ NADIM DE LAZARI
Advogado; mestrando em Direito, pelo Centro Universitário Eurípedes de Marília/SP – Univem;
pesquisador do Grupo de Iniciação Científica “Novas Perspectivas no
Processo de Conhecimento”, sob orientação do Prof. Dr. Gelson Amaro de Souza.
E-mail para correspondência: [email protected].
GELSON AMARO DE SOUZA
Procurador do Estado de São Paulo aposentado; mestre em Direito, pela Instituição Toledo de Ensino
– ITE, de Bauru, São Paulo; doutor em Direito das Relações Sociais – com área de concentraçã
o em Direito Processual Civil–, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP;
integrado ao corpo docente do Mestrado em Direito e na graduação em Direito da Universidade
Estadual do Norte do Paraná – Uenp; ex-diretor e atual professor dos cursos de graduação e pósgraduação em Direito, das Faculdades Integradas “Antônio Eufrásio de Toledo” de Presidente Prudente
– Fiaetpp, São Paulo. Leciona também na graduação das Faculdades Adamantinenses Integradas – FAI,
de Adamantina, São Paulo; é professor convidado da Escola Superior de Advocacia – ESA, de São
Paulo e da pós-graduação das Faculdades Integradas de Ourinhos – FIO, São Paulo, da
Escola Superior de Direito de Mato Grosso – Esud, de Cuiabá, e das Faculdades Integradas de Três
Lagoas – Aems, Mato Grosso do Sul; advogado militante em Presidente Prudente, São Paulo.
E-mail para correspondência: [email protected].
RESUMO
Por intermédio dos métodos lógico e dedutivo, o presente ensaio trata da
relativização da coisa julgada e de seus desdobramentos na esfera constitucional
da segurança jurídica. Isto porque se mostra como medida plausível e consciente
saber até que ponto tal instituto pode ser mitigado em prol do anseio por um
pronunciamento não ofensivo aos ditames da justiça e da constitucionalidade.
Palavras-chave: coisa julgada, relativização, segurança jurídica, inconstitucionalidade, injustiça.
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ABSTRACT
Through logical and deductive methods, this essay discusses the relativization of
the res judicata and its consequences to legal security. In this sense, will compare
reviews favorable and contrary about the application this institutes.
Keywords: res judicata, relativization, legal security, unconstitutionality, injustice.
1. LINHAS PREAMBULARES
O homem é fruto da sua contradição. Ao passo que se perfilha a proposições
benéficas que lhe são judicialmente reconhecidas, inclusive invocando-as e valendose de tais como “escudo protetor” ante a possibilidade de sua ofensa (como deve
ser, na verdade), busca incansavelmente desconstituir o que lhe é desfavorável,
mesmo que isso importe negar o que outrora já foi absolutamente revestido de
imutabilidade a bem de outrem.
Sem circunlóquios, é assim que funciona com a coisa julgada e sua
relativização: após um dilatado período de batalhas nos tribunais, através das querelas
judiciais e da “guerra de nervos” que apelações, agravos, embargos etc.
proporcionam, o “combatente” se vê diante de um pronunciamento judicial que
encerra a lide e proclama a “paz entre as partes”. Todavia, mesmo após o “fechar
das cortinas”, mas antes ainda do “apagar das luzes”, há a possibilidade de “atos
extras” que desconstituam a res judicata – quais sejam: a ação rescisória, nos
termos dos artigos 485 e seguintes do Código de Processo Civil; a impugnação (ou
embargos) sobre título judicial fundado em lei ou ato normativo declarado
inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou
interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo STF como incompatíveis com a
Constituição Federal, com base no artigo 475-L, parágrafo 1º, e artigo 741, parágrafo
único, da Lei Adjetiva; e a possibilidade de revisão da coisa julgada por denúncia
de violação à Convenção Americana de Direitos Humanos, formulada pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos1 – para que o vencedor possa, enfim,
tranquilizar-se acerca da decisão proferida.
Então, suplantados todos os entreveros, quando menos se espera, acena-se
pela possibilidade de injustiça ou inconstitucionalidade em um julgamento e
surge a proposta de “relativizar” a coisa julgada por meios não convencionais,
porém lícitos.
1
Acrescentou-se às duas convencionais modalidades de desconstituição da coisa julgada esta terceira
modalidade, lembrada por Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga e Rafael Oliveira (2008: 579).
Exegese sobre a “relativização” da coisa julgada: o que há por trás desta tendência?
173
Quando se fala em decisão “inconstitucional”, parece clarividente que faz
alusão àquela que fere os ditames da Lei Max brasileira. Mas, quando se fala em
decisão injusta, o que seria ela afinal? Sintetizando e “relativizando” uma definição
– assim como se quer relativizar a coisa julgada –, uma decisão injusta seria aquela
que não atende aos anseios de um indivíduo, embora ela seja justa para outro, que
propôs uma ação contra o primeiro e obteve êxito.
Ademais, falar em “relativização da coisa julgada” remonta à nominação
questionável: afinal, ou “é” ou “não é” coisa julgada; e não “pode ser” coisa julgada2.
Até mesmo porque “relativizar” a coisa julgada é inviabilizar, de plano, a segurança
jurídica que uma decisão imutável proporciona. Ao que parece, este “sopro processual
nos ouvidos ansiosos por novidades” acompanha a moda de relativizar tudo, seguindo
a ideia “einsteniana” de que tudo no mundo é relativo. Nem tudo é relativo, contudo.
É com base na questão envolvendo a segurança jurídica ao ordenamento
material-processual, bem como atentando a uma suposta “mitigação” deste instituto,
que este ensaio quer se debruçar sobre a matéria.
2. DA COISA JULGADA MATERIAL E A QUESTÃO
ENVOLVENDO A SEGURANÇA JURÍDICA
Preceitua o artigo 467 do Código de Processo Civil acerca da coisa julgada
substancial, espécie de coisa julgada que interessa a bem da formulação deste
ensaio: “Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e
indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário”.
Como bem se vê, trata-se da hipótese em que foi proferida, nos autos, decisão
definitiva, nos termos do artigo 269 do Diploma Processual, e contra este pronunciamento não mais cabe qualquer tipo de recurso que permita a manifestação da
parte irresignada.
2
É importante deixar no papel, para efeitos de análise e crítica à nominação “relativização da coisa
julgada”, a opinião, diferente e complementar àquela formulada pelo autor desta exegese, de José
Carlos Barbosa Moreira (2008: 225): “É que, quando se afirma que algo deve ser ‘relativizado’,
logicamente se dá a entender que se está enxergando nesse algo um absoluto: não faz sentido que se
pretenda ‘relativizar’ o que já é relativo. Ora, até a mais superficial mirada ao ordenamento jurídico
brasileiro mostra que nele está longe de ser absoluto o valor da coisa julgada material: para nos
cingirmos, de caso pensado, aos dois exemplos mais ostensivos, eis aí, no campo civil, a ação
rescisória e, no penal, a revisão criminal, destinadas ambas, primariamente, à eliminação da coisa
julgada. O que se pode querer – e é o que no fundo se quer, com dicção imperfeita – é a ampliação
do terreno ‘relativizado’, o alargamento dos limites da ‘relativização’”.
174
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
Melhor explicando-a, asseverou Câmara (2004: 469):
Por tal motivo, as sentenças definitivas, as quais contêm resolução do objeto do
processo [...], devem alcançar também a coisa julgada material (ou substancial).
Esta consiste na imutabilidade e indiscutibilidade do conteúdo (declaratório,
constitutivo, condenatório) da sentença de mérito, e produz efeitos para fora do
processo. Formada esta, não poderá a mesma matéria ser novamente discutida,
em nenhum outro processo.
“Imutabilidade” e “indiscutibilidade”. São estas as duas palavras-chave pelas
quais tanto se almeja quando se ingressa numa peleja judicial, as quais estão contidas
no universo constitucional da chamada “segurança jurídica”, nobre axioma alçado
à esfera de cláusula pétrea no 36º inciso do artigo 5º da Constituição Federal
pátria, e que expressamente trata, em seu terceiro item, da “coisa julgada”3.
Neste prumo, conveio a Didier Jr., Braga & Oliveira (2008: 552) conciliar o
instituto da coisa julgada com a questão envolvendo a segurança jurídica:
A coisa julgada é instituto jurídico que integra o conteúdo do direito fundamental
à segurança jurídica, assegurado em todo Estado Democrático de Direito,
encontrando consagração expressa, em nosso ordenamento, no artigo 5º,
XXXVI, da CF. Garante ao jurisdicionado que a decisão final dada à sua demanda
será definitiva, não podendo ser rediscutida, alterada ou desrespeitada – seja
pelas partes, seja pelo próprio Poder Judiciário4 (grifou-se).
Entretanto, em que pese o status de “porto seguro” adquirido pela res judicata
ao longo dos tempos, o que permitiu sua acoplagem ao princípio da segurança
jurídica num “casamento” perfeito, parece haver uma temerária tendência em
desconsiderá-la como tal, em razão de possíveis decisões injustas ou inconstitucionais
cristalizadas, o que teria colocado em xeque a soberania da coisa julgada.
3
“Artigo 5º: [...] XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa
julgada” (grifou-se). Fica clarividente, pois, que a Carta de 1988 recepcionou o parágrafo 3º do
artigo 6º do Decreto-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução ao Código Civil), o
qual prevê: “Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba mais
recurso”. Assim, apesar de sua definição se dar no plano infraconstitucional (tanto no CPC como na
LICC), a essência da res judicata encontra-se “petrificada” no quinto artigo da Constituição Federal,
o que lhe garante a condição de direito fundamental explícito.
4
Também relacionando a coisa julgada ao princípio da segurança jurídica, Teresa Arruda Alvim
Wambier e José Miguel Garcia Medina (2003: 21) definiram a res judicata como um “[...] instituto
cuja função é a de estender ou projetar os efeitos da sentença indefinidamente para o futuro. Com
isso, pretende-se zelar pela segurança extrínseca das relações jurídicas, de certo modo em
complementação ao instituto da preclusão, cuja função primordial é garantir a segurança intrínseca
do processo, pois que assegura a irreversibilidade das situações jurídicas cristalizadas
endoprocessualmente” (grifou-se).
Exegese sobre a “relativização” da coisa julgada: o que há por trás desta tendência?
175
Acerca deste processo de “desconsideração”, bem observou Baptista da
Silva (2008: 307):
Vivemos um tempo singular, que alguém qualificou de a “era da incerteza”. [...] As
coisas que pareciam perenes, mesmo as coisas sagradas, ou aquelas tidas como
naturais, como a família, acabam desfazendo-se ante a voracidade das transformações
culturais. [...] Neste quadro natural, não deve surpreender que a instituição da coisa
julgada, tida como sagrada na “primeira modernidade”, entre em declínio5.
Em verdade, tal posicionamento tem se tornado crescente em razão de um
“processo de esquecimento” acerca da real função da coisa julgada, qual seja, a
de fornecedora de “garantia de segurança”, e não de “justiça”, como idealizam os
“relativizadores”. Neste diapasão, coube a Didier Jr., Braga & Oliveira (2008:
552) fazer tal distinção:
A coisa julgada não é instrumento de justiça, frise-se. Não assegura a justiça
das decisões. É, isso sim, garantia da segurança, ao impor a definitividade da
solução judicial acerca da situação jurídica que lhe foi submetida (grifou-se).
Sublinham-se, na citação supra, as assertivas de que “[...] a coisa julgada
não assegura a justiça [...]”, mas sim “[...] a garantia da segurança das decisões”.
Neste prumo, convém dissecar a frase para melhor entendê-la: com relação à
primeira afirmativa, há que se considerar que o conceito de “justiça” é
demasiadamente complexo para uma definição final e objetiva. Há um pluralismo
de fatores que a norteiam, mas, de certa forma, todos eles estão ligados à questão
da vulnerabilidade humana a possíveis falhas que possam transformar o justo em
injusto num “piscar de olhos”6. Assim, às vezes, diante de um deslize do litigante
5
Na mesma direção, Eduardo Talamini (2005: 61) tratou este processo mitigatório como um “ciclo
natural das coisas”, ao afirmar que: “A íntima vinculação entre coisa julgada e o princípio da
segurança jurídica comporta ainda outra indagação. Trata-se de saber em que medida a própria
segurança jurídica, no Estado moderno, não teria perdido seu relevo sistemático em prol de outros
valores – hipótese em que a coisa julgada poderia ter tido o mesmo destino”.
6
Tal asserção encontra guarida nas palavras de Donaldo Armelin (2008: 99). Veja-se: “A desarmonia
entre a decisão judicial transitada em julgado e o valor Justiça pode ocorrer em razão de várias
circunstâncias. Algumas podem ser suscitadas por serem consideravelmente mais frequentes e
podem ser reconhecidas, tal como supra examinado, até mesmo no rol das hipóteses de cabimento
da ação rescisória de sentença. São elas: (a) o erro, dolo ou fraude do órgão judicante; (b) a fraude da
parte ou dos órgãos auxiliares da Justiça; (c) o erro ou a inércia da parte no seu desempenho
processual, nisso compreendido o erro, dolo ou omissão de seu representante técnico; (d) a evolução
do estado da técnica, em se tratando de meio de prova; (e) má aplicação do direito à espécie sub
judice”. Observa-se, portanto, que as causas enumeradas pelo ilustre doutrinador como capazes de
influir no resultado de uma decisão, e que são, segundo ele, “consideravelmente mais frequentes”;
amoldam-se à questão da vulnerabilidade do homem a possíveis falhas, sejam elas acidentais,
intencionais, ou até mesmo inevitáveis, como é o caso do item “d”, acima elencado.
176
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
em sua empreitada na busca pela verdade, como a ausência de um documento ou
a perda de um prazo, o Estado-juiz profere decisão que não reflete o real direito
daquele, mas, mesmo assim, esta decisão terá sido justa, vez que um pronunciamento
final deve estar isento de benevolências ou malevolências quanto à falha que o
ensejou; caso contrário, estar-se-ia manchando a imparcialidade do órgão julgador.
Da mesma maneira, a injustiça pode advir do outro lado. A título ilustrativo,
a falibilidade pode se dar na figura de um médico que não consegue salvar seu
paciente mesmo na mais corriqueira das cirurgias. Às vezes, pode se dar na pessoa
de um alpinista que falha em sua empreitada ao cume de uma montanha. E como
não podia deixar de ser, ela também pode se dar na figura de um magistrado que
peca em sua decisão, proferindo-a contra a forma ou contra matéria dispositiva.
Em ambos os casos, em não sendo percebido o vício, o pronunciamento proferido pelo juiz pode convalidar caso se esgote a via recursal ou a via de ação (leiase ação rescisória). Verifica-se, assim, que mesmo uma sentença eivada de vícios
pode fazer coisa julgada. Por isso, diz-se que a coisa julgada não assegura a justiça.
Já com relação à segunda afirmativa, começa-se a explicá-la com um
questionamento: afinal, o que a coisa julgada objetiva garantir então? Com efeito, a
coisa julgada vem oferecer respaldo à segurança jurídica das partes, de maneira
que visa a evitar o desrespeito a um pronunciamento judicial. Assim, se o
pronunciamento é injusto e já está cristalizado, que se valham as partes dos típicos
meios processuais desconstituidores da coisa julgada já enumerados no primeiro
capítulo deste ensaio.
Por fim, para reforçar a necessidade de manutenção da soberania da res
judicata, insta acrescentar que a coisa julgada não é somente questão de
segurança jurídica às partes; é também instrumento de manutenção da supremacia
do Judiciário como poder solucionador de conflitos, como bem observou Barbosa
Moreira (2008: 233):
A estabilidade das decisões é condição essencial para que possam os
jurisdicionados confiar na seriedade e na eficiência da máquina judicial. Todos
precisam saber que, se um dia houverem de recorrer a ela, seu pronunciamento
terá algo mais que o fugidio perfil nas nuvens. Sem essa confiança, crescerá
fatalmente nos que se julguem lesados a tentação de reagir por seus próprios
meios, à margem dos canais oficiais. Escusado sublinhar o dano que isso causará
à tranquilidade social.
Sob este ângulo, pode-se dizer que a coisa julgada é o “carimbo” que confere
o rótulo de “obrigatório” ao pronunciamento concluso; caso contrário, a peleja terá
sido em vão.
Exegese sobre a “relativização” da coisa julgada: o que há por trás desta tendência?
177
Desta forma, as três modalidades revisoras da coisa julgada que foram
singelamente citadas no capítulo anterior, na qualidade de medidas excepcionais que são,
não visam a comprovar a fragilidade da res judicata, mas sim o compromisso que o
Judiciário assume de tentar ser o mais perfeito possível quando de sua resposta jurisdicional.
Logo, se fosse possível sintetizar todos os parágrafos acima em um só,
poder-se-ia dizer que a coisa julgada não guarda qualquer relação com a justiça,
embora seja esse seu objetivo. Quanto à segurança jurídica, contudo, ambas são
absolutamente interdependentes. Assim, quando se fala na abstratização da coisa
julgada, isto se dá pelo lapso memorial de que o compromisso da coisa julgada é
com a segurança jurídica, e não com a justiça.
3. DA RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA:
INADMISSIBILIDADE OU PERTINÊNCIA?
Como bem dito anteriormente, ao longo dos tempos a coisa julgada edificouse sobre as pilastras da segurança jurídica às partes e ao processo. Trata-se de
ícone absoluto, imperioso, de maneira que, ao contrário do que se pensa, os três
institutos revisores vistos no primeiro capítulo não são a possibilidade de mitigá-lo,
mas sim de preservá-lo soberano.
Doutrinariamente, contudo, há quem transpasse a tríade reformuladora da res
judicata, abrindo uma “cláusula geral de revisão”, a qual proporciona que a decisão
judicial jamais se solidifique quando injusta ou inconstitucional. Esta proposta apregoa
a possibilidade atemporal de reaver uma decisão, portanto, por meios que não os
processualmente reconhecidos. Trata-se da “relativização da coisa julgada atípica”.
Adepto da possibilidade de desconstituição em havendo dissonância com a Lei
Max pátria, Nascimento (2003: 13) propôs o “banimento” da sentença cristalizada com
essa qualidade, por intermédio da decretação de sua nulidade, conforme se pode observar:
A coisa julgada é intocável, tanto quanto os atos executivos e legislativos, se,
na sua essência, não desbordar do vínculo que deve se estabelecer entre ela e o
texto constitucional, numa relação de compatibilidade para que possa revestirse de eficácia e, assim, existir sem que contra a mesma se oponha qualquer
mácula de nulidade. Essa conformação de constitucionalidade tem pertinência,
na medida em que não se pode descartar o controle do ato jurisdicional, sob
pena de perpetuação de injustiças. Por esse motivo, nula é a sentença que não
se adequa ao princípio da constitucionalidade, porquanto impregnada de carga
lesiva à ordem jurídica. Impõe, desse modo, sua eliminação do universo processual
com vistas a restabelecer o primado da legalidade. Assim, não havendo a
possibilidade de sua substituição no mundo dos fatos e das ideias, deve ser
decretada sua irremediável nulidade (grifou-se).
178
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
Por sua vez, Delgado (2003: 46) foi fenomenológico ao defender a
possibilidade de abstratização. Veja-se:
O avanço das relações econômicas, a intensa litigiosidade do cidadão com o
Estado e com o seu semelhante, o crescimento da corrupção, a instabilidade das
instituições e a necessidade de se fazer cumprir o império de um Estado de
Direito centrado no cumprimento da Constituição que o rege e das leis com ela
compatíveis, a necessidade de um atuar ético por todas as instituições políticas,
jurídicas, financeiras e sociais, tudo isso submetido ao controle do Poder
Judiciário, quando convocado para solucionar conflitos daí decorrentes, são
fatores que têm feito surgir uma grande preocupação, na atualidade, com o
fenômeno produzido por sentenças injustas, por decisões que violam o círculo
da moralidade e os limites da legalidade, que afrontam princípios da Magna
Carta e que teimam em desconhecer o estado natural das coisas e das relações
entre os homens. A sublimação dada pela doutrina à coisa julgada, em face dos
fenômenos instáveis supracitados, não pode espelhar a força absoluta que lhe
tem sido dada, sob o único argumento (sic) que há de se fazer valer o império da
segurança jurídica.
Valendo-se dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade para
justificar a mitigação da segurança jurídica e, consequentemente, da res judicata,
asseveraram Theodoro Júnior e Cordeiro de Faria (2003: 112):
Não há de se objetar que a dispensa dos prazos decadenciais e prescricionais na
espécie poderia comprometer o princípio da segurança das relações jurídicas.
Para contornar o inconveniente em questão, nos casos em que se manifeste
relevante interesse na preservação da segurança, bastará recorrer-se ao salutar
princípio constitucional da razoabilidade e proporcionalidade. Ou seja, o Tribunal,
ao declarar a inconstitucionalidade do ato judicial, poderá fazê-lo com eficácia
ex nunc, preservando os efeitos já produzidos como, aliás, é comum no direito
europeu em relação às declarações de inconstitucionalidade.
Em posição intermediária, Freitas Câmara (2008: 32) perfilhou-se à possibilidade de abstratização, sobretudo quando a questão relacionar-se à inconstitucionalidade (e não à injustiça) da decisão, formulando uma espécie de “relativização
condicional da coisa julgada”:
É, pois, possível relativizar a coisa julgada, afastando-a, sempre que o conteúdo
da sentença firme contrariar norma constitucional. Deste modo, não havendo
qualquer fundamento constitucional para impugnação da sentença transitada
em julgado, será impossível relativizar-se a coisa julgada material, podendo
esta ser afastada apenas nos casos previstos em lei como geradores de
rescindibilidade (artigo 485 do Código de Processo Civil), no prazo e pela
forma legais (grifou-se).
Exegese sobre a “relativização” da coisa julgada: o que há por trás desta tendência?
179
No extremo oposto, há aqueles que pendem pela inaceitabilidade da
abstratização da res judicata. Assim, contrariamente à hipótese de relativização
da coisa julgada pela utilização de instrumentos metajurídicos, podem-se utilizar os
argumentos de Marinoni (2008: 282-283):
A “tese da relativização” contrapõe a coisa julgada material ao valor justiça, mas
surpreendentemente não diz o que entende por “justiça” e sequer busca amparo
em das modernas contribuições da filosofia do direito sobre o tema.
Aparentemente parte de uma noção de justiça como senso comum, capaz de ser
descoberto por qualquer cidadão médio (l’uomo della strada), o que torna
imprestável ao seu propósito, por sofrer de evidente inconsistência [...]. O
problema da falta de justiça não aflige apenas o sistema jurídico. Outros sistemas
sociais apresentam injustiças gritantes, mas é equivocado, em qualquer lugar,
destruir alicerces quando não se pode propor uma base melhor ou mais sólida.
Por sua vez, Nery Júnior (2006: 598) implodiu a ideia de desconstituição da
coisa julgada por uma suposta causa maior, qual seja, a inquebrantabilidade da
Constituição Federal, ao alegar que:
A supremacia da Constituição é a própria coisa julgada, enquanto manifestação
do Estado Democrático de Direito, fundamento da República (CF, 1º caput), não
sendo princípio que possa opor-se à coisa julgada como se esta estivesse abaixo
de qualquer outro instituto constitucional. Quando se fala na intangibilidade da
coisa julgada, não se deve dar ao instituto tratamento jurídico inferior, de mera
figura do processo civil, regulada por lei ordinária, mas, ao contrário, impõe-se o
reconhecimento da coisa julgada com a magnitude constitucional que lhe é
própria, ou seja, de elemento formador do Estado Democrático de Direito, que
não pode ser apequenado por conta de algumas situações, velhas conhecidas
da doutrina e da jurisprudência [...].
Sem extremismos, mas não menos legalista, Santos Lucon (2008: 345) partiu
para um interessante posicionamento, qual seja:
[...] é o caso de se ampliar casos para a ação rescisória. No caso de descoberta
científica apta a demonstrar o erro na solução dada ao caso concreto quando era
impossível valer-se de determinada prova, seria o caso de admitir a ação rescisória
a partir do momento em que o interessado obtém o laudo, em vez do trânsito em
julgado da sentença rescindenda (grifou-se)7.
7
A opinião do autor em muito se assemelha à do processualista José Maria Rosa Tesheiner (<http:/
/www.tex.pro.br/wwwroot/33de020302/relativizacaodacoisajulgada.htm>. Acesso em: 21/10/2003),
segundo Alexandre Freitas Câmara (2008: 27), o qual afirmou, em análise às palavras de Tesheiner,
que “[...] há um tendência, bem moderna, de desdenhar, senão de eliminar o instituto da coisa
julgada”. Sustentou o autor, então, que o melhor seria, para os casos – relativamente raros – de
sentenças “objetivamente desarrazoadas”, abrir-se a possibilidade de sua rescisão a qualquer tempo.
180
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
Ademais, jurisprudencialmente, a questão está longe de ser pacificada. O
Superior Tribunal de Justiça tem decidido tanto pela possibilidade como pela vedação
à abstratização da coisa julgada, senão veja-se:
Processual civil. Recurso especial. dúvidas sobre a titularidade de bem imóvel
indenizado em ação de desapropriação indireta com sentença transitada em
julgado. Princípio da justa indenização. Relativização da coisa julgada.
1. Hipótese em que foi determinada a suspensão do levantamento da última
parcela do precatório (artigo 33 do ADCT), para a realização de uma nova perícia
na execução de sentença proferida em ação de desapropriação indireta já
transitada em julgado, com vistas à apuração de divergências quanto à localização
da área indiretamente expropriada, à possível existência de nove superposições
de áreas de terceiros naquela, algumas delas objeto de outras ações de
desapropriação, e à existência de terras devolutas dentro da área em questão.
2. Segundo a teoria da relativização da coisa julgada, haverá situações em que a
própria sentença, por conter vícios insanáveis, será considerada inexistente
juridicamente. Se a sentença sequer existe no mundo jurídico, não poderá ser
reconhecida como tal, e, por esse motivo, nunca transitará em julgado.
3. “A coisa julgada, enquanto fenômeno decorrente de princípio ligado ao Estado
Democrático de Direito, convive com outros princípios fundamentais igualmente
pertinentes. Ademais, como todos os atos oriundos do Estado, também a coisa
julgada se formará se presentes pressupostos legalmente estabelecidos. Ausentes
estes, de duas, uma: (a) ou a decisão não ficará acobertada pela coisa julgada, ou
(b) embora suscetível de ser atingida pela coisa julgada, a decisão poderá, ainda
assim, ser revista pelo próprio Estado, desde que presentes motivos preestabele-
E concluiu: “O que absolutamente não pode prevalecer é a ideia de que possa qualquer juiz ou
tribunal desrespeitar a coisa julgada decorrente de decisão proferida por outro órgão judiciário, de
igual ou superior hierarquia, a pretexto de sua nulidade ou erronia”. Já José Carlos Barbosa Moreira
(2008: 248) não entendeu que seja o caso de se “ampliar as hipóteses de ação rescisória”. Contudo,
o autor debruçou-se especialmente sobre a questão da precisão técnica que se consubstancia quando
já há pronunciamento consolidado e afirmou: “O mais importante, ao menos do ponto de vista
prático, é o da descoberta científica suscetível de demonstrar a erronia da solução dada anteriormente
ao litígio, em época na qual não era possível contar com determinada prova. Para a hipótese do
exame de DNA, como registrado, a jurisprudência já vem atenuando, por via interpretativa, o rigor
do texto do Código (artigo 485, VII), para admitir a rescisória com fundamento no laudo pericial,
incluído no conceito de ‘documento novo’. O socorro hermenêutico tem, contudo, alcance limitado:
não serve para o caso de já haver decorrido o biênio decadencial (artigo 495) quando da realização do
exame. Atenta a relevância da matéria, julgamos conveniente modificar aí a disciplina, não para
abolir o pressuposto temporal – pois, com a ressalva que se fará adiante, relutamos em
deixar a coisa julgada, indefinidamente, a mercê de impugnações -, mas para fixar o termo
inicial do prazo no dia em que o interessado obtém o laudo, em vez do trânsito em julgado
da sentença rescidenda” (grifou-se).
Exegese sobre a “relativização” da coisa julgada: o que há por trás desta tendência?
181
cidos na norma jurídica, adequadamente interpretada.” (WAMBIER, Tereza Arruda
Alvim & MEDINA, José Miguel Garcia. O dogma da coisa julgada: hipóteses de
relativização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 25).
4. “A escolha dos caminhos adequados à infringência da coisa julgada em cada
caso concreto é um problema bem menor e de solução não muito difícil, a partir
de quando se aceite a tese da relativização dessa autoridade – esse, sim, o
problema central, polêmico e de extraordinária magnitude sistemática, como
procurei demonstrar. Tomo a liberdade de tomar à lição de Pontes de Miranda e
do leque de possibilidades que sugere, como: (a) a propositura de nova demanda
igual à primeira, desconsiderada a coisa julgada; (b) a resistência à execução,
por meio de embargos a ela ou mediante alegações incidentes ao próprio processo
executivo; e (c) a alegação incidenter tantum em algum outro processo, inclusive
em peças defensivas.” (DINAMARCO, Cândido Rangel. Coisa julgada inconstitucional Coordenador Carlos Valder do Nascimento. 2. ed.. Rio de Janeiro: América
Jurídica, 2002. p. 63-65). 5. Verifica-se, portanto, que a desconstituição da coisa
julgada pode ser perseguida até mesmo por intermédio de alegações incidentes
ao próprio processo executivo, tal como ocorreu na hipótese dos autos.
6. Não se está afirmando aqui que não tenha havido coisa julgada em relação à
titularidade do imóvel e ao valor da indenização fixada no processo de
conhecimento, mas que determinadas decisões judiciais, por conter vícios
insanáveis, nunca transitam em julgado. Caberá à perícia técnica, cuja realização
foi determinada pelas instâncias ordinárias, demonstrar se tais vícios estão ou
não presentes no caso dos autos.
7. Recurso especial desprovido.
(REsp n. 622.405/SP. Rel. Ministra Denise Arruda, Primeira Turma, julgado em
14/08/2007, DJ 20/09/2007, p. 221) – cabimento.
Agravo regimental. Recurso especial. Precatório complementar. Juros moratórios.
Incidência até o depósito da integralidade da dívida. Coisa julgada. Relativização
da coisa julgada. Não aplicação.
I – Havendo expressa determinação na sentença exequenda, já transitada em
julgado, da inclusão dos juros moratórios no precatório complementar, não há
mais espaço para discussão sobre os referidos juros, em virtude do princípio da
coisa julgada.
II – Esta c. Corte entende que estão fora do alcance do parágrafo único do artigo
741 do CPC as sentenças transitadas em julgado anteriormente a sua vigência,
ainda que eivadas de inconstitucionalidade. Precedente (EREsp n. 806.407/RS,
DJU de 14/4/2008). Agravo regimental desprovido.
(AgRg nos EDcl no REsp n. 1012068/RS. Rel. Ministro Felix Fischer, Quinta
Turma, julgado em 17/06/2008, DJe 04/08/2008.)
182
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
Postos todos os posicionamentos, em que pese o tecnicismo em exteriorizálos aos olhos do leitor, aquele que veda incondicionalmente o fenômeno da
abstratização é o que deve prosperar.
Com efeito, desconsiderar a coisa julgada “inconstitucional” ou “injusta” parece
uma fidalga tentativa a princípio, mas cuja boa vontade dos que a defendem não
sopesa uma consequência temerária em segundo instante. Isto porque, se há uma
decisão inconstitucional, como “último suspiro” do litigante inconformado, há a
possibilidade de recurso extraordinário perante o Supremo Tribunal Federal, de modo
que, se por algum motivo não houver tal possibilidade, é porque a decisão não é de
fato inconstitucional ou a parte não foi capaz de utilizar em seu “leque de cartas” o
recurso extraordinário por desídia própria. Desta forma, desconsiderar atipicamente
a res judicata inconstitucional não seria a “atividade saneadora ao julgado aviltante”,
como se subintitula a relativização, mas sim um prêmio à incompetência daquele que
esteve diante de uma suposta decisão inconstitucional e, quando realmente pôde,
nada fez. É mais fácil jogar a culpa no Judiciário. Ou, ainda, alegar-se-ia que mesmo
o STF, guardião da Constituição pátria, pode equivocar-se em seu posicionamento?
Porque, se afirmativa a resposta, pode-se dizer que o povo estará diante de uma
grave situação: nem mais na mais alta cúpula judicial do País poder-se-á confiar nas
palavras de um pronunciamento final.
Por outro lado, o ato de abstratizar uma decisão injusta se daria meramente
por motivos metajurídicos, principiológicos, fenomenológicos ou, simplesmente, não
legislados; ao passo que, caso se modificasse a decisão antes cristalizada, a injustiça
ficaria “trocando de lado” infindavelmente; ou alguém discorda de que, se for
possível relativizar a coisa julgada uma vez, este mesmo pronunciamento relativizado
não poderá sê-lo novamente, e novamente, enquanto houver argumentos das partes?
Com maestria, sobre a questão opinou Barbosa Moreira (2008: 245-246):
Suponhamos que um juiz, convencido da incompatibilidade entre certa sentença
e a Constituição, ou da existência, naquela, de injustiça intolerável, se considere
autorizado a decidir em sentido contrário. Fatalmente sua própria sentença
ficará sujeita à crítica da parte agora vencida, a qual não deixará de considerála, por sua vez, inconstitucional ou intoleravelmente injusta. Pergunta-se: que
impedirá esse litigante de impugnar em juízo a segunda sentença, e outro juiz
de achar possível submetê-la ao crivo de seu próprio entendimento? O óbice
concebível seria o da coisa julgada; mas, se ele pôde ser afastado com relação
à primeira sentença, por que não poderá sê-lo quanto à segunda? É claro que
a indagação não se porá uma única vez: a questão poderá repetir-se, em princípio, ad infinitum, enquanto a imaginação dos advogados for capaz de descobrir inconstitucionalidades ou injustiças intoleráveis nas sucessivas sentenças (grifou-se).
Exegese sobre a “relativização” da coisa julgada: o que há por trás desta tendência?
183
Ademais, “abrir” o artigo 485 do Código de Processo Civil a novos incisos,
contrariando sua condição de numerus clausus, pode tornar a ação rescisória
mais um “recurso” da parte derrotada contra o que lhe é desfavorável, e não é
esse seu objetivo. Pode-se observar que o artigo 485 é situacional, e apenas para
situações esporádicas que eventualmente possam ocorrer. Assim, a única
modificação que este autor entende plausível, reiterando as palavras do brilhante
doutrinador José Carlos Barbosa Moreira, é admitir, no caso da precisão técnica
que somente se torna possível após já existir decisão consolidada, que o prazo da
rescisória seja contado a partir da obtenção desse laudo “saneador”. A modificação,
portanto, seria no artigo 495, e não no artigo 485 do Diploma Adjetivo.
Em epítome, admitir a ação rescisória contra decisões “injustas” ou “inconstitucionais” a transformaria em mais um “recurso” (se é que assim se pode dizer)
relutante e/ou meramente protelatório, ou seja, a título ilustrativo, admite-se a
modificação da coisa julgada injusta ou inconstitucional no artigo 485 do CPC, e
quando acabarem as armas da parte perdedora, ainda lhe sobrará a ação rescisória
como chance derradeira.
Isto é, senão arriscado demais à supremacia do Judiciário como poder, mais
um duro golpe na luta da Justiça pelo processo civil teleológico e contra a morosidade
processual.
4. LINHAS DERRADEIRAS
Por todo o explanado, apesar da demonstração de posicionamentos diversos
(o da possibilidade irrestrita de relativização, o da possibilidade da relativização
somente ante um pronunciamento inconstitucional, o pendor pela inclusão de novos
incisos no artigo 485 do Código de Processo Civil, e o que defende a vedação absoluta
às hipóteses de relativização), perfilha-se este autor ao último posicionamento.
Isto porque, em primeiro lugar, do contrário, fica a impressão da possibilidade
de criação de um “mecanismo revisor amplíssimo”. Ora, em observando tal hipótese,
verifica-se a existência de uma situação espectral: a coisa julgada, antes atributo
de tranquilidade (em regra) ao litigante vencedor e de resignação ao perdedor,
perderia este efeito diante da possibilidade de desconstituição.
Em que pesem as melhores intenções dos que a defendem, parece um tanto
abstrata sua admissão no ordenamento jurídico. Fala-se hodiernamente em “processo
civil teleológico (ou finalístico)” e em “função social do processo”, de maneira que,
pelo primeiro, deve-se zelar pela evicção de protelações desnecessárias e por um
resultado o mais próximo possível do status quo ante; e pela “função social”, temse que é preciso observar a condução do processo da maneira mais equânime
184
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
possível. Falar em flexibilização da coisa julgada parece, por critério de exclusão,
mais próximo do segundo item, ou seja, os valores “celeridade processual” e
“segurança pelo resultado” são substituídos pelo valor “justiça social”.
Contudo, a ideia da função social deve ser acoplada ao processo civil de
resultado, para que ambos sejam interpretados harmoniosamente. Do contrário,
admitir o casualismo da coisa julgada pode levar à seguinte situação: revisa-se a
decisão transitada em julgado por ela ter ferido o princípio da razoabilidade, por
exemplo, mas fere-se a ideia contemporânea do processo civil teleológico, vez que
mesmo o resultado, pelo qual tanto se busca, não é mais absoluto.
Ademais, valer-se de elementos fenomenológicos e “empossá-los” na
condição de desestruturadores da res judicata pode ser arriscado, vez que, por
não estarem previstos em codificação alguma, são passíveis de interpretações
diversas, e nem sempre a diversidade é positiva. Isto porque os próprios conceitos
de “justiça” e “constitucionalidade” são relativizados. Assim, na opinião deste autor,
um instituto somente pode ser relativizado quando esta metamorfose for
unicamente benéfica. Para que isto ocorra, é preciso que o “elemento relativizador”
seja absoluto, o que não ocorre na hipótese da relativização da coisa julgada, pois
os conceitos de “justiça” e “constitucionalidade”, elementos relativizadores da coisa
julgada, são relativos, e não absolutos como necessitariam ser.
Exegese sobre a “relativização” da coisa julgada: o que há por trás desta tendência?
185
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A reserva legal como instrumento de efetividade da proteção da biodiversidade
187
13
A reserva legal como
instrumento de efetividade da
proteção da biodiversidade
The environmental legal reserve
as a tool on effective protection
of biodiversity
THIAGO FELIPE S. AVANCI
Advogado; mestrando em Direito, pela Universidade Católica de Santos – Unisantos, área de
concentração em Direito Ambiental; bolsista do Programa de Suporte à Pós-Graduação de
Instituições Privadas de Ensino Superior, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior Prosup/Capes. E-mail para correspondência: [email protected].
RESUMO
O debate sobre restringir ou não o direito de propriedade continua atual: a quem
cabe suportar este ônus? O presente artigo objetiva expor argumentos favoráveis à
reserva legal, bem como rebater alguns argumentos contrários a esta. Este estudo
tem o propósito, ainda, de demonstrar a importância deste instituto como garantidor
da biodiversidade.
Palavras-chave: reserva legal, função social da propriedade, limitação da propriedade,
biodiversidade.
ABSTRACT
Is it possible to restrict the right of property? And, if it is so, who shall bear this
burden? This manuscript’s objective is to expose pros of the Environmental Legal
Reserve, and, as well, to confront some arguments against this institute. Finally, the
objective is to demonstrate the importance of this institute as a tool that guarantees
the biodiversity.
Keywords: environmental legal reserve, social function of property, restrictions on
property, biodiversity.
188
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
1. INTRODUÇÃO
A importância – ou não – da reserva legal sempre foi objeto de muitos
estudos sob os mais diversos embasamentos: biológicos, ecológicos, jurídicos e,
neste caso, com preponderância de direitos individuais, tais como sociais e coletivos.
Objetiva-se demonstrar que este instrumento de efetividade do direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado é, sem sombra de dúvida, um dos mecanismos
pelo qual a proteção à biodiversidade (ou diversidade biológica) será preservada.
A reserva legal (RL) constitui um grupo constitucionalmente chamado de
espaços especialmente protegidos (artigo 225, parágrafo 1º, III), neste podendo
se enquadrar, ainda, as áreas de preservação permanente (APPs) e as unidades
de conservação (UC). É necessário, contudo, distinguir a função jurídica de cada
um destes espaços especialmente protegidos.
Ao contrário das unidades de conservação, que objetivam a conservação ou
a preservação1 de áreas maiores ou menores de um determinado ecossistema
dentro de um bioma2, a reserva legal possui esta mesma função de proteção, porém
disseminada por todas as propriedades rurais do País. Em assim sendo, por mais
que o Poder Público se esforce na criação de unidades de conservação (que
demandam verbas para sua criação e manutenção), nunca será capaz de criar
tanto desta modalidade de espaço especialmente protegido quanto o necessário
para a manutenção da biodiversidade e do equilíbrio ecológico no Brasil. Reside
nesta necessidade a reserva legal.
Em linhas gerais, o artigo 225 da Constituição declara que o direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado é um direito e dever de todos. A reserva
legal, enquanto faceta da função social da propriedade, constitui-se em efetiva
limitação desse direito em benefício da coletividade.
Mediante isto, a reserva legal será analisada como sendo um instrumento de
garantia à conservação da biodiversidade.
1
Em fortes cores e apertada síntese, o conservacionismo de Gifford Pichot (século XIX) estabeleceu
como meta o uso racional dos recursos naturais, procurando benefício para a maioria, inclusive para
as gerações futuras; o preservacionismo de Aldo Leopold (século XX) objetivava a natureza intocável
pela ação humana, preservando-a como ela é. Assim sendo, no presente artigo, a palavra
“preservação” foi utilizada com o sentido de manutenção integral e a palavra “conservação”, com o
sentido de usar os recursos da natureza de forma racional.
2
Bioma é um conjunto de ecossistemas com características similares em função de clima, altitude,
latitude, regime hidrográfico, solo etc.
A reserva legal como instrumento de efetividade da proteção da biodiversidade
189
2. BIODIVERSIDADE
2.1. Análise conceitual
Há, ainda hoje, uma dificuldade de comunicação entre os cientistas do Direito e
os cientistas da Biologia e Ecologia. Em função desta dificuldade, os conceitos sobre
biodiversidade tendiam a ser limitativos, uma vez que não abarcavam todos os aspectos
deste objeto. Antes da Convenção da Diversidade Biológica (CDB) – Rio/92, não era
incomum ler que biodiversidade é ou a variedade de vida existente na Terra ou a
variedade de vida, em diferentes aspectos, existente na Terra3. Mesmo após a CDB,
ainda permanecia uma tendência da comunidade científica de, tal e qual seus
antecessores, estabelecer conceitos semelhantes, mas puramente quantitativos4.
Rompendo com esta tendência conceitual, a CDB alargou o leque de
elementos componentes do conceito de biodiversidade, nos termos do artigo 2º:
Diversidade biológica significa a variabilidade de organismos vivos de todas as
origens, compreendendo, dentre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos e
outros ecossistemas aquáticos e os complexos ecológicos de que fazem parte;
compreendendo ainda a diversidade dentro de espécies, entre espécies e de
ecossistemas.
Em verdade, este conceito revela que a ausência de diálogo entre os cientistas
pode levar a uma impropriedade etimológica. Ao observar a parte final do conceito
apresentado pela CDB, tem-se que há a inclusão da expressão “diversidade (...)
de ecossistemas”5. Ainda no artigo 2º da CDB, que foi reproduzido pela Lei do
Sistema Nacional de Unidades de Conservação – Snuc (Lei n. 9.985/00, artigo 2º,
inciso III), é dado o conceito como sendo “um complexo dinâmico de comunidades
vegetais, animais e de microorganismos e o seu meio inorgânico que interagem
como uma unidade funcional”. Eis a impropriedade. Etimologicamente, biodiversidade (biodiversidade, contração de diversidade biológica = do grego bios, vida;
oikus, casa/lugar) necessariamente deve estar associada à vida, ao passo que
incluir em um conceito de biodiversidade o termo “ecossistema” automaticamente
se inclui, também, “o seu meio inorgânico”.
3
Neste sentido: GASTON, Kevin J. & SPICER, John I. Biodiversity: an introduction. 2. ed. Malden, MA:
Blackwell Publishing. 2004. p. 3-4; e WILSON, Edward O. Biodiversity. Washington: National Academy
Press, 1988.
4
“Andy Dobson (1996: 132) definiu biodiversidade como sendo a “soma de todos os diferentes tipos
de organismos que habitam uma região, tal como o planeta inteiro, o continente africano, a Bacia
Amazônica, ou nossos quintais” (tradução do autor). Apud MAGALHÃES (2006: 24).
5
No original, em inglês: “Biological diversity” means the variability among living organisms from all
sources including, inter alia, terrestrial, marine and other aquatic ecosystems and the ecological
complexes of which they are part; this includes diversity within species, between species and of ecosystems.
190
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
Afora esta pequena impropriedade que a CDB cometeu6, seria possível dizer,
acertadamente, que podem ser percebidos três elementos no conceito de
biodiversidade, os quais, somados, servem de conceito a este objeto: variedade genética;
variedade de espécies; variedade de vida em ecossistemas. Com isto, fica abarcada
a variabilidade: de indivíduos, de espécies e de indivíduos e espécies na comunidade.
Neste sentido, Wilson (1988), revendo o conceito quantitativo dado em 1988, agora
forneceu um conceito qualitativo que permite a visualização dos três elementos acima
descritos, em que biodiversidade pode ser definida como toda a variação hereditária, em todos os níveis de organização, desde os genes de uma determinada população ou espécie, passando pelas espécies dentro de um todo ou
de parte de uma comunidade e, finalmente, englobando as próprias comunidades que compõem a parte viva dos multivariados ecossistemas do mundo7.
2.2. Aspectos da biologia e ecologia acerca da biodiversidade
Muito se fala em biodiversidade e em sua importância em função de um
valor intrínseco8. Se analisada sob um ponto de vista biocêntrico, a manutenção
da biodiversidade é fundamental como medida de manutenção da própria
biodiversidade, ou melhor, da vida como um todo no planeta Terra. Explicando
melhor: a extinção de espécies é um evento que ocorre naturalmente. Todavia, a
extinção de espécies por fatores naturais (salvo eventos esporádicos de extinção
em massa) ocorre gradativamente, permitindo que espécies dependentes daquela
espécie em processo de extinção consigam se adaptar às novas condições.
É a amplitude da biodiversidade que faz com que estas espécies, em processo
de adaptação, consigam fazê-lo de modo eficaz. Esta biodiversidade é importante,
neste caso, sob duas perspectivas distintas: a primeira é a biodiversidade genética,
garantindo que indivíduos mais bem adaptados às novas condições possam perpetuar
a espécie; a segunda, a biodiversidade de espécies, em que se verifica uma maior
probabilidade de substituição daquela espécie em extinção nos processos ecológicos
e na cadeia alimentar.
Sob um ponto de vista jurídico e, pelo fato mesmo, necessariamente, antropocêntrico, tem-se que é por meio da conservação da biodiversidade, que se permitirá a
6
Neste sentido, MAGALHÃES (2006: 24).
REAKA-KUDLA; WILSON & WILSON (1997: 1): “(…) is defined as all hereditarily based variation at all
levels of organization, from the genes within a single local population or species, to the species
composing all or part of a local community, and finally to the communities themselves that compose
the living parts of the multifarious ecosystems of the world.”
8
Preâmbulo da CDB.
7
A reserva legal como instrumento de efetividade da proteção da biodiversidade
191
continuidade da existência do animal Homo sapiens no planeta Terra, uma vez que
serão mantidos processos ecológicos necessários à agricultura, pecuária e pesca –
base da alimentação humana – e até mesmo processos regulatórios do clima
(temperatura, pluviosidade etc.). O equilíbrio dos diversos processos é tênue, de maneira
que a menor alteração que resulte em extinção de espécies na base da cadeia alimentar
ou na base dos processos naturais fará ruir toda a pirâmide sobre a qual se ergue.
Como já foi dito, o processo de extinção de espécies é algo natural, que,
independentemente da vontade humana, sempre ocorreu e sempre ocorrerá. No
entanto, com a efetiva ação humana, os processos de extinção de espécies aumentaram drasticamente e de maneira muito mais acentuada. Repetindo o já dito acima,
quanto mais rápido um processo de extinção, maior a probabilidade de que as espécies
dependentes daquela não consigam se adaptar, o que gera um efeito dominó, com
danos possivelmente irremediáveis ao bioma de que fazem parte.
O impacto antrópico hodierno vai além da extinção de uma espécie apenas.
Com o desenvolvimento tecnológico, necessidades de expansão da civilização
(fronteira agrícola, avanço desenfreado urbano, busca de matérias-primas), há
extinção de ecossistemas e biomas inteiros em questão de anos ou décadas.
Quer por seu valor intrínseco, sob uma perspectiva ética, filosófica ou
religiosa, quer sob um prisma jurídico e antropocêntrico, é por meio da biodiversidade
que há maior probabilidade de a vida se sustentar no planeta Terra.
2.3. Biodiversidade e Direito nacional
Todo o ordenamento jurídico, nacional e internacional desenvolveu uma série
de normas que visam a proteger a biodiversidade pelos motivos já expostos no item
anterior. É necessário frisar que um instrumento normativo não necessariamente
mencionará a expressão “biodiversidade” ou “diversidade biológica”, mas, ainda
sim, esta será objeto de sua tutela, direta ou indiretamente. Por óbvio, é possível
afirmar que todo instrumento normativo que tutele a proteção ambiental resultará
em proteção à biodiversidade, visto que é parte essencial e fundamental à manutenção de um meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Mediante isto, é necessário encontrar nas normas nacionais e internacionais
objetos de tutela específicos da biodiversidade. Reporta-se ao conceito de biodiversidade para encontrar estes objetos específicos: variedade genética, variedade de
espécies e variedade de vida em ecossistemas. Bem assim, qualquer norma nacional,
tratado ou declaração internacional que verse sobre proteção genética, proteção
de espécies e proteção da vida ou da vida em ecossistemas estará, por força de
consequência, tutelando a biodiversidade, independentemente de citar esta palavra.
192
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
Eis que, quando a Constituição Federal declara, no artigo 225, caput, que
é direito de todos um meio ambiente ecologicamente equilibrado, o qual deve ser
preservado para as presentes e futuras gerações, pressupõe-se que, para a
prevalência deste direito, deve ser assegurada a biodiversidade. Neste mesmo
sentido, quando o parágrafo 1º, incisos I, III e IV, determina que é obrigação do
Poder Público preservar e restaurar os processos ecológicos e prover o manejo
ecológico das espécies e dos ecossistemas; definir espaços especialmente
protegidos; exigir estudo prévio de impacto ambiental; bem como o parágrafo 4º
daquele mesmo artigo define diferentes biomas e ecossistemas como patrimônio
nacional, enfim, todos são uma faceta da biodiversidade, qual seja, a “diversidade
de vida em ecossistemas”. Por outro lado, ficaria bem representada a faceta
“variedade genética” no artigo 225, parágrafo 1º, inciso II, no qual consta a
preocupação com o patrimônio genético nacional. Finalmente, a faceta “variedade
de indivíduos” pode ser encontrada no inciso VII do mesmo parágrafo 1º, em
que se determina ser obrigação do Poder Público proteger a fauna e a flora,
vedando práticas que possam extinguir espécies ou que submetam animais a
maus-tratos.
Nota-se, com isto, que, muito embora a Constituição Federal não tenha, em
momento algum, usado a expressão biodiversidade, ainda sim é um excelente
exemplo de instrumento de sua tutela. E, para citar algumas outras leis que também
lidam com o tema e não necessariamente o nomeiam, encontram-se os seguintes
dispositivos legais: o Código Florestal (Lei n. 4.771/65); a Lei de Proteção à Fauna
ou Código de Caça (Lei n. 5.197/67); Lei das Estações Ecológicas e das Áreas de
Proteção Ambiental (Lei n. 6.902/81); Política Nacional do Meio Ambiente (Lei n.
6.938/81); Lei de Proteção aos Cetáceos (Lei n. 7.643/87); Decreto sobre Medidas
de Proteção à Mata Atlântica (Decreto n. 750/93); Lei do Sistema Nacional de
Unidades de Conservação (Lei n. 9.985/00); a Política Nacional da Biodiversidade
(Decreto n. 4.339/02); a Lei das Florestas Públicas (Lei n. 11.284/06).
3. RESERVA LEGAL COMO INSTRUMENTO
DE EFETIVIDADE DA PROTEÇÃO DA BIODIVERSIDADE
3.1. Conceito de reserva legal e diferenciação com área
de preservação permanente e com unidade de conservação
“Reserva legal”, “área de preservação permanente” e “unidade de conservação” são, indubitavelmente, exemplos de áreas especialmente protegidas a que se
refere o inciso III do parágrafo 1º do artigo 225 da Constituição. Esses três institutos
jurídicos têm finalidade comum mediata de garantir um meio ambiente ecologica-
A reserva legal como instrumento de efetividade da proteção da biodiversidade
193
mente equilibrado, sendo instrumento de manutenção da biodiversidade e,
consequentemente, dos processos ecológicos. O que diferencia cada um destes
institutos é seu fim imediato. Neste artigo, a análise dos outros dois institutos se
dará de modo superficial, dado que o objeto central é a reserva legal.
Do conceito dado às “áreas de preservação permanente” no artigo 1º,
parágrafo 2º, inciso II, do Código Florestal (incluído pela MP n. 2.166-67, de 2001),
podem-se extrair alguns aspectos conceituais: é uma área protegida; pode estar
coberta ou não por vegetação nativa, ou seja, pode encontrar-se desmatada, com
vegetação exótica ou com vegetação nativa, mas ainda sim será APP; possui a
função específica (ou imediata) de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a
estabilidade geológica, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações
humanas; e apresenta função auxiliar de preservar a biodiversidade, o fluxo gênico
de fauna e flora.
Muito embora o legislador não tenha especificado ou diferenciado as funções
da APP, é necessária uma análise dentro de um contexto legislativo. Da leitura do
artigo 2º e do artigo 3º do mesmo Código Florestal9, percebe-se um fim específico
da APP: preservar uma parte inorgânica frágil de um ecossistema por meio da
preservação de sua parte orgânica, com o fim de se garantir o bem-estar das
populações humanas. Não parece correto dizer que a preservação de uma montanha
por meio de uma APP vise, imediatamente, à conservação da biodiversidade. Mais
acertado será dizer que a preservação da biodiversidade é um instrumento que
dará estabilidade geológica à referida montanha. E, da mesma forma, nascentes,
mata ciliar, dunas, restingas, enfim, toda a biodiversidade que sustém os sistemas
inorgânicos de um ecossistema.
A Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, tal e qual as APPs
e a reserva legal, também possui um fim mediato de garantir a existência de um
meio ambiente ecologicamente equilibrado, manter a biodiversidade e proteger
espécies ameaçadas, dentre outros aspectos (artigo 4º, incisos I e II, da Lei n.
9.985/00). Seu fim específico, no entanto, será conservar10 um determinado espaço
territorial e seus recursos ambientais com características naturais relevantes, nele
9
Com exceção do artigo 3º, alíneas “g” e “f”, que atribuem às APPs a função de proteger sítios de
excepcional beleza e de asilar exemplares da fauna ou da flora ameaçados de extinção, o que se
explica devido à falta de áreas especialmente protegidas – a lei do Snuc é de 2000 – quando da edição
original do código, em 1965.
10
O legislador andou bem ao utilizar a expressão “conservar” ao invés de “preservar”. Deveras, o
Snuc lida com preservação e com conservação, porém o instituto mais amplo abarca o mais específico,
sendo certo que, dentro da ideia de conservação, há necessidade de preservação para manutenção do
desenvolvimento sustentável.
194
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
incluindo as águas jurisdicionais (artigo 2º, inciso I, da mesma lei). Deveras, esta
ideia de conservação de um determinado ecossistema e bioma por meio do
estabelecimento de um local dotado de relevantes características naturais é o que
difere “unidades de conservação” da “reserva legal”. Nas unidades de conservação,
a atuação será feita em escala reduzida, uma vez que é impossível ao Poder Público
criar, administrar e manter de unidades de conservação em quantidade necessária
à manutenção de todos os processos ecológicos e climáticos. Eis aí a necessidade
da reserva legal.
Conforme já foi dito, a função imediata da reserva legal é similar à das
unidades de conservação, no que tange à conservação de um determinado
ecossistema e bioma. Difere, no entanto, a maneira como esta conservação se
dará num e noutro instituto: nas unidades de conservação, muito embora possam
ter área maior do que a reserva legal de uma propriedade, se somadas as reservas
legais de todas as propriedades, tem-se que a área total deste instituto será,
certamente, maior. Assim, conclui-se que a reserva legal promove uma proteção
em maior escala aos ecossistemas e biomas.
É interessante notar que a reserva legal não é fruto de uma simples
“delegação” do Poder Público aos particulares de um dever que lhe competia. O
artigo 225, caput, da Constituição Federal impõe concomitantemente ao Poder
Público e à coletividade o dever de defender e preservar o meio ambiente
ecologicamente equilibrado para a atual e futuras gerações. Em virtude disso, o
legislador infraconstitucional está exercitando norma constitucional ao estabelecer
a restrição da propriedade com a reserva legal.
O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é direito e dever de
todos, constituindo-se em verdadeiro direito difuso ou direito fundamental de terceira
geração. Em função disso, é necessária a imposição de limites à propriedade,
direito típico de primeira geração de direitos fundamentais, de modo que esta esteja
condizente com sua função social (direito fundamental de segunda geração) e com
sua função ecológica (direito fundamental de terceira geração). O direito individual
perde força em detrimento do direito social e do direito da coletividade. Bem assim,
a reserva legal é uma limitação do direito de propriedade, situada em uma terceira
geração de direitos fundamentais.
Em suma, a reserva legal possui função mediata de realização do direito
fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e função imediata de
garantir o uso sustentável dos recursos naturais; conservar e reabilitar os processos
ecológicos; conservar a biodiversidade e abrigar e proteger a fauna e a flora nativas
(artigo 1º, parágrafo 2º, inciso III, do Código Florestal).
A reserva legal como instrumento de efetividade da proteção da biodiversidade
195
3.2. A coletividade e a reserva legal:
constitucionalidade ou a tragédia dos comuns?
Muitos autores, dentre eles Gandra S. Martins (2009), defendem que a
reserva legal é inconstitucional porque transfere a um grupo muito pequeno – qual
seja, o de proprietários rurais – o dever de manter a reserva legal11. O argumento
utilizado é que o artigo 225 da Constituição Federal impõe o dito dever ao Poder
Público e à coletividade. Ocorre que coletividade, no entender de Gandra S. Martins,
não se constitui apenas em “um pequeno número de proprietários. Coletividade
representa, no País, a comunidade geral, ou seja, 175 milhões de brasileiros, e não
umas poucas centenas de milhares de grandes, médios e pequenos proprietários”12.
O argumento é quase convincente, porém os defensores desta tese não levam em
consideração que a interpretação da Constituição e de princípios gerais de direito
deve ser feita em bloco, e não isoladamente. Três são os contrapontos que devem
ser observados quando o tema é reserva legal e coletividade: enriquecimento ilícito
dos proprietários, isonomia aristotélica e restrição justificada de um direito individual.
A tragédia dos comuns ensinou a todos que existe uma tendência humana
em se apropriar do lucro, transferindo os prejuízos à coletividade (ubi emolumentum,
ibi onus) e cuja resposta jurídica foi a teoria do risco. Se assim não fosse, estarse-ia utilizando um modelo que prima pelo enriquecimento ilícito, ou seja, um modelo
por meio do qual a sociedade arcaria com o ônus e o proprietário, apenas com o
gozo. Tendo em vista que o Direito pátrio veda o enriquecimento ilícito, tem-se, por
força de consequência, que aquele que irá receber os lucros também deverá arcar
com o ônus. Com a reserva legal, a situação é a mesma. Senão veja-se: é fato que
toda a coletividade, nela inclusa os próprios proprietários, irá se beneficiar com a
instituição da reserva legal; porém, também é fato que os proprietários de terra são
os únicos da coletividade que retiram daquela terra os lucros de sua exploração.
Assim sendo, se existe uma porção da coletividade que recebe um único gozo (o
meio ambiente ecologicamente equilibrado) e existe outra porção da mesma
coletividade que obtém mais do que um gozo (o lucro da exploração da terra e o
meio ambiente ecologicamente equilibrado), é compatível com a vedação ao
enriquecimento ilícito que esta última porção da coletividade receba o ônus de
arcar com a instituição e a manutenção da reserva legal.
11
Ainda neste sentido, VIEIRA DUTRA, Ozório. O discurso ideológico e a ilegalidade da “reserva
legal”. Disponível em: <http://www.reservalegal.com.br/artigos.htm>. Acesso em: 09 de novembro
de 2009.
12
GANDRA S. MARTINS, Ives. A defesa do meio ambiente. Valor Econômico, 25/03/2004. Disponível
em: <http://www.reservalegal.com.br/artigos_ives.htm>. Acesso em: 09 de novembro de 2009.
196
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
Deveras, tal princípio está muito ligado à isonomia aristotélica, defendida na
Constituição brasileira. Aquele que possui maiores condições deve arcar com um
ônus maior e, em contrapartida, aquele que possui condições mais limitadas deve
arcar com um ônus menor. Não parece associado à ideia de isonomia o fato de um
trabalhador urbano, que ganha muitas vezes um salário igual ou inferior a um salário
mínimo, tenha que arcar com um novo tributo ou tenha que ver uma parcela de
seus tributos ser destinada à criação e à manutenção de reserva legal de um
latifúndio em que nunca sequer sonhou estar. Muito embora este trabalhador, citado
no exemplo, receba o gozo do meio ambiente ecologicamente equilibrado, a solução
de sobretaxá-lo mostra-se absolutamente incompatível com a isonomia jurídica (e
até mesmo tributária). Caberá ao referido trabalhador urbano promover o meio
ambiente ecologicamente equilibrado por outros meios, e não arcando com o ônus
deste instrumento, a reserva legal.
Sempre que se fala em restrição de um direito individual, automaticamente se
associa tal aspecto à ideia de Estado autoritário. Não é o caso. É princípio básico de
direito que o interesse público prepondera sobre o particular.13,14 Para a construção
de uma sociedade igualitária, livre, justa e solidária; a erradicação da pobreza e da
marginalização; a redução das desigualdades sociais e regionais; e a promoção do
bem de todos (artigo 3º, incisos I, III e IV, da Constituição Federal), é necessário que
direitos limitem direitos. Bem assim, os direitos coletivos limitam os direitos sociais
que limitam, por sua vez, os direitos individuais. Aqui surge um paradoxo: muitos
proprietários de terra estão dispostos a respeitar os direitos do trabalhador rural
(direito social ou direito fundamental de segunda geração), aceitando arcar com os
ônus decorrentes da relação de emprego; paralelamente, muitos destes mesmos
proprietários de terra não reconhecem e, por conseguinte, não estão dispostos a
arcar com os ônus decorrentes da manutenção do meio ambiente ecologicamente
equilibrado (direito coletivo ou direito fundamental de terceira geração).
Assim sendo, em resumo, não há inconstitucionalidade alguma na reserva
legal. Trata-se de um instrumento de proteção ambiental, um ônus, destinado a
quem é proprietário de terra, que recebe, além do gozo, que é o meio ambiente
ecologicamente equilibrado, o lucro pela utilização daquela terra.
13
Ao contrário do afirmado por Vieira Dutra: “Não existe mais prevalência do interesse público e
coletivo sobre o interesse particular”. Op. cit.
14
O Projeto de Lei n. 5.397/09 propõe uma solução interessante: a remuneração por serviços ambientais.
Esta solução, da forma como apresentada, não parece contrária ao sistema jurídico nacional, já que
“os instrumentos econômicos serão concedidos sob a forma de créditos especiais, recursos, deduções,
isenções parciais de impostos, tarifas diferenciadas, prêmios, financiamentos” etc. Porém, entendese que esta remuneração deve ser feita no que diz respeito às realizações que vão além das obrigações,
ou seja, as realizações voluntárias. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/sileg/
Prop_Detalhe.asp?id=437370>. Acesso em: 03 de novembro de 2009.
A reserva legal como instrumento de efetividade da proteção da biodiversidade
197
3.3. Peculiaridades sobre a reserva legal
3.3.1. Estabelecimento de porcentagens em biomas
Apontou Granziera (2009) que a ideia do estabelecimento da reserva legal
não é nova. O Código Florestal de 1934 (Decreto n. 23.793/34) estabelecia a
proibição de derrubada de 25% (um quarto) de vegetação nativa da área da
propriedade, sendo passível o infrator, inclusive, de detenção e multa (artigo 86
15
daquela lei) . O Código Florestal de 1965 revogou a referida lei de 1934, e, em sua
redação original, não havia a disciplina deste instituto. Com o advento da Lei n.
7.803/89, o termo reserva legal foi instituído e o instituto foi revivificado, já que a
antiga redação do artigo 16 do Código Florestal de 1965 apenas havia instituído a
proteção às “florestas particulares”. Nela, foram fixados valores de reserva legal
em 50% para as regiões Norte e para a parte norte da região Centro-Oeste (antiga
redação do artigo 44 do Código Florestal) e 20% para o restante do Brasil (antiga
redação do parágrafo 2º do artigo 16 da mesma lei).
Com a edição da Medida Provisória n. 1.511, de 25 de julho de 1996, a
porcentagem de reserva legal relativamente ao bioma Amazônia foi mantida nos
50% estabelecidos pela Lei n. 7.803/89. Esta porcentagem se manteve até a edição
da Medida Provisória n. 2.080/00, quando foi fixada nova porcentagem àquele
bioma, 80% (redação então dada ao artigo 44 do Código Florestal). Com a edição
da Medida Provisória n. 2.166/01 e a efetivação legislativa das medidas provisórias
por meio da Emenda Constitucional n. 32, este valor de 80% é o vigente para
aquele bioma (artigo 16, I, do Código Florestal)16.
No que tange ao cerrado, com o advento da Medida Provisória n. 1.736/99,
o legislador excepcionou o cerrado localizado na chamada Amazônia Legal.
Estabeleceu, assim, 50% de reserva legal para o bioma Amazônia e 20% para o
bioma Cerrado, localizados na Amazônia Legal. Com a edição da Medida Provisória
n. 2.080/00, foi fixada nova porcentagem àquele bioma, os atuais 35% (artigo 16,
inciso II, do Código Florestal).
Com a Exposição de Motivos n. 19/96, apresentada por Luiz Felipe Lampreia,
então Ministro das Relações Exteriores, e por José Israel Vargas, então Ministro
da Ciência e Tecnologia, o Presidente da República Fernando Henrique Cardoso
15
16
In: Direito Ambiental. São Paulo: Atlas, 2009. p. 355.
O Projeto de Lei n. 1.876/99 objetiva a redução da reserva legal do bioma Amazônia da Amazônia
Legal para 50% (e, possivelmente, o aumento da reserva legal para o bioma Cerrado, na mesma
região, para o mesmo valor): “Artigo 6º. A reserva legal respeitará a seguinte proporção em relação
à área de cada imóvel: I – cinquenta por cento na Região Amazônica; II – vinte por cento nas demais
regiões.”. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=17338>. Acesso
em: 03 de novembro de 2009.
198
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
passou a observar a necessidade de aumento da área de reserva legal no bioma
Amazônia situado na Amazônia Legal. A referida exposição de motivos levou em
conta um extenso estudo realizado principalmente na região Norte do País, no que
dizia respeito ao avanço desenfreado da fronteira agropastoril, bem como à
derrubada de árvores para a indústria madeireira.
Assim, a referida exposição de motivos afirmou que:
(...) para reverter o quadro de crescimento do ritmo do desflorestamento na
Amazônia, é necessária não apenas a adoção de um conjunto de medidas que
permitam, de um lado, intensificar o monitoramento e vigilância, em especial
nas áreas críticas, e de outro lado, reduzir a pressão antrópica sobre o meio
ambiente com a fiscalização dirigida e eficiente, como, também, promover a
reorientação da atividade produtiva para um modelo de uso sustentável dos
17
recursos naturais da região .
Por esta razão, seria necessária, dentre outras medidas, a “alteração do
artigo 44 do Código Florestal, ampliando a reserva legal para, no mínimo, 80% de
cada propriedade rural da região amazônica constituída de fitofisionomias florestais,
onde não será permitido o corte raso; (...)”18.
O bioma Amazônia possui uma característica de fragilidade muito peculiar.
Apesar da exuberância de vida, a densa vegetação se sustenta em um solo
excessivamente pobre e ácido. Com o passar de milhares de anos e decomposição
vegetal, o solo amazônico ganhou uma relativamente fina camada de solo rica em
nutrientes. Esta camada de solo se sustenta por conta da fixação das raízes vegetais
e em função do ciclo de vida das formações vegetais. Com a eliminação das
formações vegetais nativas, a região passaria a sustentar uma savana e,
posteriormente, o processo resultaria na desertificação. O solo daquela região é
muito diferente dos solos das regiões Nordeste, Sul e Sudeste que, há 500 anos,
sustentam lavouras plantadas em regime contínuo.
De uma forma ou de outra, o legislador não objetiva a inviabilidade econômica
da terra quando estabelece uma reserva legal de 80%. Objetiva, sim, que o
proprietário de terra adote medidas de preservação integradas com o seu
desenvolvimento econômico. É possível a utilização econômica da área de reserva
legal desde que previsto e observado o plano de manejo. O que não é possível para
este bioma, em função de suas características frágeis, é o corte raso da mata
17
Disponível em: “Código Florestal Brasileiro – Blog” <http://cirosiqueira.blogspot.com/2009/01/
exposio-de-motivos-da-mp-que-elevou-os.html>. Acesso em: 03 de novembro de 2009.
18
Idem.
A reserva legal como instrumento de efetividade da proteção da biodiversidade
199
nativa. O bioma Amazônia, afora sua importância em termos de biodiversidade, é
determinante no clima do Brasil e da América do Sul, de maneira que, se for
relegado à desertificação, todo o continente e o mundo irão padecer.
Nesta mesma época, percebeu-se a importância do bioma Cerrado, como
sendo fonte de biodiversidade muito peculiar e de equilíbrio igualmente delicado.
Além do mais, o bioma Cerrado mostra-se como importante área de transição
entre o bioma Amazônia e os demais biomas do Brasil. Por estas razões, o Executivo
estabeleceu proteção ligeiramente maior do que a ordinariamente atribuída ao
restante do País, fixando a porcentagem de 35% de reserva legal.
3.3.2. Posse e averbação
O artigo 1º, parágrafo 2º, inciso III, do Código Florestal determina que a
reserva legal deve existir tanto em caso de posse quanto no caso de propriedade.
Neste último caso, a reserva legal deverá ser averbada à margem da matrícula do
imóvel. Tendo em vista a óbvia ausência de documentação de detentores de posse
rural, o legislador resolveu a questão determinando que o possuidor se comprometa
com a manutenção da reserva legal mediante assinatura de termo de ajustamento
de conduta – TAC. Por meio do referido documento, com força de título executivo,
é estabelecida a localização da reserva legal, suas características ecológicas básicas
e a proibição de supressão de sua vegetação, tudo conforme consta no artigo 16,
parágrafo 10, do Código Florestal.
A averbação, prevista no parágrafo 8º do artigo 16 do Código Florestal,
possibilita a fixação e consequente estabilidade da reserva legal em uma determinada
área da propriedade rural. A exigência da averbação é imediata19, porém somente
será punida administrativamente após 11 de dezembro de 2009, nos termos do
artigo 152 do Decreto n. 6.514/0820. Assim, o equilíbrio biológico propiciado pela
reserva legal será mantido, independentemente da transmissão, do desmembramento
ou da retificação de área. Alguns magistrados interpretaram que há apenas a
necessidade de averbação da reserva legal em áreas onde seja encontrada formação
19
Muito embora o Código Florestal não estipule prazo, isto não significa a desobrigação de averbar
a reserva legal. No item 4, “a”, deste artigo, será visto que a Lei n. 7.803/89 reinstituiu a reserva legal
no País. Assim, ao contrário, significa que a reserva legal deverá ser averbada imediatamente à
vigência daquela lei ou, quando muito, dentro de um prazo razoável. Passados 20 anos daquela lei,
ainda se discute a necessidade de averbação ou não deste instituto...
20
O governo sinaliza possibilidade de prorrogação do prazo para imposição da referida multa
administrativa pela não averbação da reserva legal para 11 de junho de 2010. Último Segundo, 28/10/
2009. Disponível em: <http://ultimosegundo.ig.com.br/economia/2009/10/28/stephanes+ve+
problemas+em+adiar+averbacao+de+reserva+legal+8963943.html>. Acesso em: 10 de novembro
de 2009.
200
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
vegetal nativa. Porém, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu, sobre a averbação
da reserva legal, que “é dever do proprietário ou possuidor de imóveis rurais, mesmo
em áreas onde não houver florestas, adotar as providências necessárias à
restauração ou à recuperação das formas de vegetação nativa” 21, sendo certo que
“a exigência de averbação da reserva legal à margem da inscrição de matrícula do
imóvel, no ofício de registro de imóveis competente, não se aplica somente às
áreas onde haja florestas, campos gerais ou outra forma de vegetação nativa”22.
3.3.3. Localização
Eis aqui outra diferença fundamental entre as APPs e a reserva legal, recapitulando os conceitos de ambos os institutos. A APP, pelo fato de ter uma função
imediata de garantir a preservação de um determinado recurso natural inorgânico,
é automaticamente fixada por força do conteúdo dos artigos 2º e 3º do Código
Florestal. Diferentemente, o artigo 16, parágrafo 4º, do Código Florestal, por interpretação inversa, confere ao proprietário da terra escolher o local em que será
constituída a reserva legal, desde que aprovada pelo órgão ambiental competente,
atendidos alguns critérios. Com isto, deve ser observado o plano de bacia hidrográfica, o plano diretor municipal, o zoneamento ecológico-econômico e outras categorias de zoneamento ambiental. Além disto, a reserva legal deve estar em
proximidade com outras reservas legais, APPs, UC ou outra área legalmente protegida, com o fim de criar os chamados “corredores ecológicos”, que possibilitam a
conservação da biodiversidade por meio do fluxo gênico.
3.3.4. Plano de manejo florestal sustentável
Tendo em vista a conservação da biodiversidade, dos recursos naturais, dos
processos ecológicos e a proteção da fauna e da flora nativas, o legislador impôs a
impossibilidade de supressão em corte raso das formações vegetais dentro da
reserva legal (artigo 16, parágrafo 2º, do Código Florestal e artigo 10 do Decreto n.
5.975/06). No entanto, isto não significa que o proprietário da terra irá ficar impedido
de utilizar aquela área de reserva legal. Em verdade, o mesmo artigo 16, parágrafo
2º, do Código Florestal impõe ao proprietário a elaboração de um plano de manejo
florestal sustentável – PMFS. Nos termos o artigo 2º, parágrafo único, do Decreto
n. 5.975/06, é o documento técnico que determinará as diretrizes para a administra21
RMS n. 22.391/MG. Recurso Ordinário em Mandado de Segurança n. 2006/0161522-1. Relator(a)
Ministra Denise Arruda (1.126). Órgão julgador T1 – Primeira Turma, data do julgamento, 04/11/
2008, data da publicação/Fonte DJe, 03/12/2008.
22
Idem.
A reserva legal como instrumento de efetividade da proteção da biodiversidade
201
ção daquela reserva legal, visando à obtenção de benefícios econômicos, sociais e
ambientais. Assim sendo, manejo florestal sustentável é, nos termos do artigo 3º,
inciso VI, da Lei n. 11.284/06:
(...) a administração da floresta para a obtenção de benefícios econômicos,
sociais e ambientais, respeitando-se os mecanismos de sustentação do
ecossistema objeto do manejo e considerando-se, cumulativa ou alternativamente, a utilização de múltiplas espécies madeireiras, de múltiplos produtos
e subprodutos não madeireiros, bem como a utilização de outros bens e serviços
de natureza florestal; (...)
Tem-se, pois, que o PMFS constitui-se em um verdadeiro estatuto destinado
àquela determinada área de reserva legal, elaborado com o fim de estabelecer
normas de conduta do proprietário, possibilidade de extração vegetal, possibilidade
de corte, possibilidade de exploração turística, tudo levando em conta a capacidade
de absorção de impactos do referido ecossistema. De fato, constitui-se infração
administrativa, prevista nos artigos 48, 51 e 51A do Decreto n. 6.686/08: impedir
ou dificultar a regeneração natural de reserva legal; destruir, desmatar, danificar
ou explorar qualquer tipo de vegetação nativa em área de reserva legal; executar
manejo florestal sem autorização prévia do órgão ambiental competente, enfim,
infrações puníveis com multa que variam de R$ 1.000,00 a R$ 5.000,00 por hectare
ou fração, dependendo da infração.
3.3.5. A pequena propriedade e a reserva legal
O artigo 1º, parágrafo 2º, inciso I, conceitua pequena propriedade rural (ou
posse rural familiar) como sendo aquela explorada por força do trabalho pessoal do
proprietário ou posseiro e de sua família. A atuação de outros trabalhadores nestas
áreas é admitida, o que normalmente ocorre em épocas de colheita. Porém, esta
ajuda de terceiro deve necessariamente ser eventual. A definição restringe, ainda, no
tocante à renda bruta, que esta deverá ser proveniente, no mínimo, 80% de atividade
agroflorestal ou do extrativismo. Finalmente, há limitação da área da propriedade:
• cento e cinquenta hectares, se localizada nos Estados do Acre, Pará,
Amazonas, Roraima, Rondônia, Amapá e Mato Grosso e nas regiões
situadas ao norte do paralelo 13ºS, dos Estados de Tocantins e Goiás, e ao
oeste do meridiano de 44ºW, do Estado do Maranhão ou no pantanal matogrossense ou sul-mato-grossense;
• cinquenta hectares, se localizada no polígono das secas ou a leste do
meridiano de 44ºW, do Estado do Maranhão; e
• trinta hectares, se localizada em qualquer outra região do País.
202
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
Nota-se que o legislador procurou privilegiar os proprietários de terra que
foram, nas décadas de 1950, 1960, 1970 e 1980, para a região Norte, atendendo
aos incentivos de ocupação promovidos pelos programas governamentais de
desenvolvimento da Amazônia e da região Norte (Sudam23 etc.). Por este motivo,
houve ampliação da área da pequena propriedade para aqueles Estados. No chamado
“polígono das secas”, a motivação é clara: o legislador objetiva promover incentivos
para que o proprietário permaneça em sua terra, gozando do status de pequena
propriedade terras com até 50 hectares ou 350 mil metros quadrados.
Mais uma vez mostrando sensibilidade, o legislador estabeleceu permissivo
para as pequenas propriedades incluírem o plantio de espécies arbóreas frutíferas
ornamentais ou, mesmo, espécies exóticas industriais, tudo com o fim de facilitar a
viabilidade econômica da terra. O parágrafo 3º do artigo 16 do Código Florestal
exige, no entanto, que o plantio destas espécies seja feito de modo intercalado ou
em consórcio com as espécies nativas.
Com efeito, apesar do permissivo para aumento e manutenção da viabilidade
econômica da terra, o legislador não afastou o fim da reserva legal, determinando
que haja, de modo intercalado ou em consórcio, a existência de espécies nativas.
Em sede de interpretação lógico-linguística, os sistemas intercalar e consorcial
pressupõem que haja, pelo menos, metade de um grupo principal e outra metade de
outro grupo. Assim, deve ser respeitada pelo menos a metade de espécies nativas,
uma vez que é o grupo principal, posto que o fim da reserva legal é a conservação de
um ambiente natural24. Nada obstante, se o órgão ambiental entender que determinada
área, de extrema sensibilidade ecológica, não pode ser alterada, sob pena de grave
prejuízo ambiental, poderá e deverá estabelecer porcentagem superior ao mínimo de
50%, decisão que deve prevalecer. No entanto, o órgão ambiental não poderá conceder
autorização para manejo com espécies exóticas em porcentagem que ultrapasse o
mínimo de 50% para a cobertura vegetal nativa.
Outro exemplo de proteção que a legislação ambiental fornece ao pequeno
proprietário encontra-se na questão da recomposição de área de reserva legal,
situação em que o órgão ambiental estadual deverá oferecer suporte técnico para
implementação desta medida (artigo 44, parágrafo 1º, do Código Florestal). Além
desta, pode-se citar outro exemplo de proteção ao pequeno proprietário no que
23
24
Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia.
Neste sentido, o Projeto de Lei n. 4.524/2004 e o Projeto de Lei n. 4.091/2008 objetivam a fixação
de porcentagem de manutenção de 50% de vegetação nativa em áreas protegidas exploráveis
economicamente. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=271008>.
Acesso em 03 de novembro de 2009.
A reserva legal como instrumento de efetividade da proteção da biodiversidade
203
tange à averbação graciosa da reserva legal, nos temos do parágrafo 9º do artigo
16 da mesma lei.
3.3.6. Cômputo de APP como RL
Mais uma vez mostrando interesse pela manutenção da viabilidade econômica
de uma área rural, o legislador estabeleceu determinados limites a extensões de
terra especialmente protegidas que, se somadas, não poderão ultrapassar determinada porcentagem. Em outras palavras, estas áreas especialmente protegidas, mais
especificamente as APPs, poderão ser computadas como reserva legal em determinadas situações. Bem assim, o parágrafo 6º do artigo 16 do Código Florestal autoriza
o cômputo de áreas de preservação permanente como reserva legal em propriedades
rurais em que aquelas primeiras, somadas, atinjam porcentagem superior a25:
• 80% sobre a propriedade rural situada na Amazônia Legal;
• 50% sobre a propriedade rural situada no restante do País;
• 25% sobre a pequena propriedade rural com menos 50 hectares, localizada
no polígono das secas;
• 25% sobre a pequena propriedade rural com menos 30 hectares, localizada
em qualquer outra região do País.
No entanto, esta exceção não muda o regime jurídico de uso e proteção
nas APPs computadas como reserva legal: o parágrafo 7º do artigo 16 do Código
Florestal institui uma reserva legal com regime jurídico de uso e proteção de
APP. Exemplificando, uma propriedade rural situada em qualquer lugar do Brasil
(exceto na Amazônia Legal) que possua APPs em porcentagem de 45% de sua
área terá que instituir uma reserva legal de 5,1% pelo menos. Neste exemplo, as
APPs naquela área rural (45% da área) serão consideradas reserva legal, porém
com regime diferenciado de APP; deverá o referido proprietário instituir reserva
legal propriamente dita em porcentagem de 5,1% de sua área, reserva legal esta
que terá regime tradicional. Com isto, esta propriedade terá uma área de reserva
legal de 50,1%.
25
Neste caso, muito embora o legislador não tenha especificado, trata-se de porcentagem superior, e
não igual e superior. Isto porque as propriedades rurais situadas na Amazônia Legal já possuem
reserva legal de 80%. Assim, se fosse incluído o valor inicial (por exemplo, 80%), automaticamente
todas as propriedades na Amazônia Legal teriam 1% pelo menos de sua área enquadrada nesta
exceção de cômputo de áreas protegidas, o que seria ilógico dentro do contexto legal.
204
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
Se uma determinada propriedade, por outro lado, contiver APPs que totalizem
área superior àquelas instituídas no parágrafo 6º do artigo 16 do Código Florestal,
por exemplo, 90%, ainda assim deverão ser mantidas tanto as APPs quanto a
reserva legal com regime de APP. Neste exemplo, 50,1% da propriedade será
considerada reserva legal com regime jurídico de APP e o restante, 39,9%, continuará
sendo APP propriamente dita. Este mecanismo de compensação especial não
autoriza, por exemplo, que o proprietário desta fazenda mantenha apenas 50,1%
da área de sua propriedade que constitui APP e derrube para utilização o restante.
3.3.7. Possibilidades ao proprietário no caso de RL inferior ao mínimo:
recomposição, regeneração, compensação (condomínio e
servidão) e doação de áreas para o Estado para desapropriação
nas unidades de conservação?26
A lei ambiental federal prevê quatro hipóteses para o restabelecimento da
área de reserva legal em porcentagem inferior à legalmente exigida. Estas medidas
podem ser adotadas isolada ou conjuntamente, todas previstas no artigo 44 do
Código Florestal. Em uma primeira análise, poder-se-ia interpretar que a legislação
federal não estabelece uma ordem de preferência na aplicação destes
mecanismos, uma vez que, no caput do artigo 44 da citada lei, consta a expressão
“deve adotar as seguintes alternativas, isoladas ou conjuntamente”. Entrementes,
não é o caso. Em uma análise contextual da lei, observando o fim precípuo da
reserva legal como sendo instrumento de manutenção da biodiversidade e
resguardo de uma parte de um ecossistema e bioma, observa-se ser necessário
o respeito à ordem imposta pela lei, ou seja, preferencialmente recomposição e
regeneração, secundariamente compensação e, por fim, a doação de áreas para
regularização fundiária27. Já que não houve estabelecimento claro na ordem de
26
O Projeto de Lei n. 1.876/99 apresenta algumas soluções interessantes, como oferecer “incentivo” à
recomposição da reserva legal bem como assegurar de seu registro, previstas em seu artigo 7º: o parágrafo
1º do referido projeto decreta que são nulos todos os atos notariais relativamente àquele imóvel que não
averbou sua reserva legal; o parágrafo 2º consolida o que a jurisprudência já vinha julgando, ao efetivamente
declarar que as áreas de reserva legal não recompostas são tributadas normalmente pelo Imposto sobre a
Propriedade Territorial Rural – ITR; o parágrafo 3º apresenta uma das melhores soluções para o problema,
pois estabelece que todos os estabelecimento oficiais ficam proibidos de fornecer crédito aos proprietários
que não tenham regularizado sua reserva legal. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/sileg/
Prop_Detalhe.asp?id=17338>. Acesso em: 03 de novembro de 2009.
27
O Projeto de Lei n. 6.424/05 propõe a reforma do Código Florestal, permitindo a recuperação de
reservas legais com espécies exóticas, anistia para os desmatamentos realizados antes de julho de
2006 (sem obrigatoriedade de recuperação) e definição das áreas de preservação permanentes pelos
poderes locais. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=310397>.
Acesso em: 03 de novembro de 2009.
A reserva legal como instrumento de efetividade da proteção da biodiversidade
205
aplicação destes mecanismos, cabe ao órgão ambiental responsável estipular a
melhor solução ao bioma e ecossistema, não cabendo a escolha do mecanismo
apenas pela vontade do proprietário.
A recomposição é o processo pelo qual se restaura um determinado pedaço
devastado de um ecossistema. O inciso I do artigo 44 estabelece que a recomposição se dará com o plantio de espécies nativas, de forma que, a cada três anos, a
décima parte da área total da reserva legal da propriedade seja recuperada. Esta
recuperação é dificultosa, uma vez que as espécies vegetais se dividem de acordo
com suas características e capacidade de sobrevivência ante as condições. Assim,
existem espécies pioneiras (ou formações pioneiras), ou seja, espécies melhor
adaptadas às condições de terreno e clima propiciam condições mais favoráveis
para que outras formações vegetais tenham condições de ali se instalar. O legislador
observou esta necessidade natural e estabeleceu o concessivo de que, para a criação
da mata secundária, sejam utilizados, em um primeiro momento, formações
pioneiras, mesmo que exóticas (caso em que serão utilizadas de modo temporário),
as quais irão propiciar condições às demais formações vegetais nativas (artigo 44,
parágrafo 2º, do Código Florestal).
A regeneração, por sua vez, diferentemente da recomposição, pressupõe a
existência de vegetação nativa, a qual se encontra mais ou menos atingida ou
devastada. Este mecanismo também tem como objetivo a recondução daquela
determinada área ao status quo ante o impacto (normalmente antrópico), de forma
a restabelecer o ecossistema original. A sua viabilidade será observada pelo órgão
ambiental competente, o qual poderá determinar o isolamento da área em regeneração, tudo nos termos do parágrafo 3º do artigo 44 do Código Florestal. Esta
legislação federal ainda protege áreas em regeneração, estabelecendo a proibição
da “implantação de projetos de assentamento humano ou de colonização para fim
de reforma agrária, ressalvados os projetos de assentamento agroextrativista,
respeitadas as legislações específicas” (parágrafo 6º do artigo 37A) e a criminalização das ações de “impedir ou dificultar a regeneração natural de florestas e
demais formas de vegetação”, contravenção passível de pena de três meses a um
ano ou multa (artigo 26 e alínea “g”).
A compensação prevista no artigo 44, inciso III, do Código Florestal implica
a não instituição da reserva legal em uma dada propriedade rural mediante o
estabelecimento desta mesma reserva legal em “outra área equivalente em
importância ecológica e extensão, desde que pertença ao mesmo ecossistema e
esteja localizada na mesma microbacia”.
A importância da localização da área em que será instituída a reserva
legal compensada está em consonância com a finalidade daquele instituto. Ora,
206
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
se a reserva legal tem como função a conservação ambiental de uma determinada
fatia de um ecossistema de um bioma, seria ilógico promover a conservação de
outro ecossistema ou, ainda, de outro bioma. Assim, o legislador optou por
estabelecer como critério o estabelecimento dentro de uma microbacia, já que
os cursos de água e formações lacustres são determinantes para a formação de
um ecossistema. Outro motivo para a instituição da reserva legal compensada
na mesma microbacia encontra-se na (delicada) relação floresta-solo-água, ou
seja, no equilíbrio do ciclo hidrológico que somente se dá com o estabelecimento
de formação da vegetação nativa. Na absoluta impossibilidade de compensação
na mesma microbacia, o legislador concede permissivo de o órgão ambiental
estabelecer a reserva legal na “maior proximidade possível entre a propriedade
desprovida de reserva legal e a área escolhida para compensação, desde que na
mesma bacia hidrográfica e no mesmo Estado” (parágrafo 4º do artigo 44 do
Código Florestal), e desde que também respeitadas as demais condicionantes
fixadas no inciso III do artigo 44.
A servidão florestal (artigo 44A) e o condomínio (parágrafo 11 do artigo 16)
são exemplos legalmente previstos de medidas de compensação28. Sem que haja
aprofundamento incompatível com o conteúdo deste artigo, é necessário destacar
alguns pontos acerca destes dois institutos, todos observados por normativa do
Código Florestal. Assim, se forem estabelecidos, deverão se encontrar dentro de
uma mesma microbacia (artigo 44, III); respeitar a reserva legal e a APP da
propriedade que receberá, por compensação, a reserva legal da outra propriedade
(artigo 44-A); ser aprovados pelo órgão ambiental (artigo 16, parágrafo 11); e ser
averbados no Registro de Imóveis (artigo 16, parágrafo 8º).
A última medida para restabelecimento da área de reserva legal em
porcentagem inferior à legalmente exigida é a doação de áreas para o Estado
para regularização fundiária das unidades de conservação, prevista no artigo
44, parágrafo 6º. Inicialmente, a Medida Provisória n. 2.166-67/01 desonerava
o proprietário da necessidade da reserva legal pelo período de 30 anos. Porém,
com a Lei n. 11.428/06, a referida norma foi alterada para uma desoneração
definitiva. Por este mecanismo, o proprietário que não possui reserva legal
poderá comprar uma determinada área equivalente à sua reserva legal em
uma unidade de conservação que, muito embora de domínio público, ainda
possua processos de expropriação pendentes de regularização. Em outras
28
Tecnicamente, a doação de áreas para o Estado para regularização das unidades de conservação
também seria uma medida de compensação, porém, dadas as suas características peculiares, será
observada como categoria separada.
A reserva legal como instrumento de efetividade da proteção da biodiversidade
207
palavras, o Estado delegou ao particular a permissão de não instituir a reserva
legal (em suas próprias terras) se “ajudar” o Poder Público a pagar as
indenizações de expropriação das terras particulares situadas no interior das
unidades de conservação de domínio público.
A problemática é a seguinte: muito embora unidades de conservação tenham
fim mediato idêntico à reserva legal, sua função imediata é diferenciada.
Hodiernamente, não há respeito a uma ordem dos processos de restabelecimento
da reserva legal, ou seja, o órgão ambiental dificilmente impõe que primeiramente
seja estudada a possibilidade de recomposição ou de regeneração da área. Desta
feita, em não havendo benefício de ordem para tentativa de aplicação da
recomposição e da regeneração de uma área, a doação de áreas pendentes de
regularização fundiária pode vir a ser utilizada em larga escala como permissivo
para a não implementação da reserva legal. Não há, aqui, um posicionamento
contrário a esta medida: se por um lado esta medida pode (e deve) ser mantida, por
outro lado deve ser utilizada apenas na mais absoluta impossibilidade de se
restabelecer a reserva legal por outras formas. Assim, cabe ao órgão ambiental o
bom senso em sua utilização.
4. CONCLUSÃO
Foi visto exaustivamente que a reserva legal é instrumento de consecução
da conservação da biodiversidade. Sua função peculiar é distinta das outras
modalidades de espaços especialmente protegidos. Toda vez que um determinado
direito individual é limitado para a realização de um direito social ou coletivo
(transindividual), haverá comoção dos detentores do referido direito individual.
Historicamente, mutantis mutandi, um bom exemplo desta comoção é aquela
efetuada pelos ricos industriais no período anterior às leis trabalhistas. Em um
primeiro momento, aqueles se opuseram às tentativas de estabelecimento de
condições de trabalho humanamente aceitáveis, uma vez que isto implicaria a
diminuição do lucro (mais-valia marxista). Contudo, posteriormente, estes mesmos
industriais perceberam que o empregado satisfeito com seus ganhos e com seu
ambiente de trabalho é capaz de fornecer um lucro ainda maior.
No caso da proteção ambiental, a sistemática é a mesma. Neste primeiro
momento, os empresários, agricultores e pecuaristas se opõem ao estabelecimento
de medidas ambientais que irão reduzir prima facie o seu lucro. Contudo, ainda
não houve o insight de que o “fim do mundo com as condições de suportar a vida
humana” (o que certamente se dará com a devastação dos recursos naturais) não
é lucrativo... O que as gerações passadas diziam ser um evento que, se ocorresse,
208
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
o seria em um futuro longínquo, a geração presente observa que o futuro longínquo
não é tão distante assim: o futuro é agora.
A reserva legal é um dos mecanismos necessários ao impedimento da perda
da biodiversidade, mediante a manutenção de uma pequena área de um determinado
ecossistema. Mesmo nos casos em que a área de reserva legal é substancialmente
grande (como ocorre no bioma Amazônia), a conservação de um bioma frágil
prepondera sobre os interesses econômicos da exploração das atividades
agropastoris. Ao contrário do afirmado por alguns autores29, o interesse público
(mais precisamente o interesse da coletividade) prepondera sobre o interesse privado,
já que o Brasil ainda é um Estado democrático de direito, e não uma anarquia ou
um sistema político-econômico liberalista que se pauta em “laissez faire, laissez
aller, laissez passer”.
29
Vide nota 13.
A reserva legal como instrumento de efetividade da proteção da biodiversidade
209
REFERÊNCIAS
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American Library, 1996.
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WILSON, Edward O. Biodiversity. Washington: National Academy Press, 1988.
210
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
Anotações
211
RESENHA
BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do Direito.
Apresentação de Celso Lafer. 1. ed. Barueri: Manole, 2007. 285 páginas.
Da estrutura à função:
novos estudos da teoria do direito
From structure to function: new
studies of the theory of law
JOÃO OTÁVIO BENEVIDES DEMASI
Advogado; mestrando em Direito Internacional, pela Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo – Fdusp; membro do Fórum Latino-Americano de Jovens Árbitros da
International Chamber of Commerce – ICC; membro efetivo da Comissão de Comércio
Exterior da Ordem dos Advogados do Brasil/seção São Paulo – Comex-OAB-SP.
O objetivo desta resenha é extrapolar as análises meramente descritivas e
expressar a essência da obra em referência pela síntese dos valores encontrados,
de modo a deixar latitude analítica a cada leitor.
O livro Da estrutura à função: novos estudos de teoria do Direito, de
Norberto Bobbio, foi traduzido para o português e lançado no Brasil pela Editora
Manole em seminário realizado na Bovespa,1 com a presença da ilustre flor
acadêmica tributária do filósofo do Direito e sociólogo italiano. Na composição da
mesa do seminário, estavam Celso Lafer, apresentador da obra; Mario Losano,
seu prefaciador, discípulo direto de Bobbio; Tércio Sampaio Ferraz Júnior, um
admirador da obra de Bobbio; e Carlos Mariano, presidente da Bovespa e acolhedor
da ideia de criação do espaço Norberto Bobbio na respectiva entidade, celebrado
com o lançamento desta tradução no Brasil.
Os dez ensaios abordam aspectos variados sob os seguintes títulos: A função
promocional do Direito; As sanções positivas; Direito e as ciências sociais; Em
direção a uma teoria funcionalista do Direito; A análise funcional do Direito:
tendências e problemas; Do uso das grandes dicotomias na teoria do Direito; A
grande dicotomia; Teoria e ideologia na doutrina de Santi Romero; Estrutura e
função na teoria do Direito de Kelsen; Tullio Ascarelli. Os 10 ensaios de caráter
jurídico, histórico, sociológico e filosófico examinam temas jurídicos vistos pelo
prisma da Sociologia, mas sempre fundamentados na Filosofia do Direito.
1
Bolsa de Valores de São Paulo. A partir de 2008, passou a se chamar Bolsa de Valores, Mercadorias
e Futuros – BM&FBovespa.
212
Revista USCS – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
Bobbio fez uma leitura transdisciplinar e pôs de lado a visão estritamente
jurídico-sistemática do Direito, criada pela obra de Kelsen, para expressar o Direito
inserido na Sociologia de tal modo que traz à tona a finalidade e a função do
Direito, não só como instrumento de manutenção e propagação de sistemas sociais,
mas também como institucionalizador jurídico de atividades econômicas sob a fumaça
do bom Direito.
Imbuído desta ideia, o autor em tela serviu seus ensaios de uma franqueza e
de uma variedade de autores de linhas ideológicas distintas para somar, em um mosaico
integrativo, não discriminatório e sempre acolhedor da melhor razão, demonstrativo
de uma liberdade de pensamento singular para uma realidade na qual imperava a
guerra fria. A escritura dos ensaios transmite uma pessoalidade do referido autor que
faz com que se sinta Bobbio em um diálogo constante com o leitor.
Bobbio, aliás, é um gênio: construiu e reconstruiu a teoria kelseniana do
ponto de vista histórico, jurídico e sociológico e filosófico; expôs uma polivalência
e multiplicidade de leituras raras aos juristas para, finalmente, implodir Kelsen e,
entre a neblina e os escombros, expressar visões de tal modo que realizou o adágio:
o aluno supera o mestre. Na metáfora da palavra, Bobbio fez como a série de
quadros de Picasso sobre “Las meninas”, de Velásquez, ou traduziu para o piano e
orquestra “Quadros de uma exposição”, de Mussorgsky. Bobbio peneirou a
eternidade de Kelsen, Hart ou Vivante, mas foi além, como Debussy, e deixou uma
impressão pessoal de Ascarelli e de sua magna opera jurídica modelar, capaz de
fazer dos leitores filhos e irmãos de um mesmo espírito acadêmico, atos à moda de
Ascarelli, tal qual um moto perpetuo de Paganini – inquietante, dilacerante do
Direito posto nacional e comparado, procurador e legador de uma verdade d’alma
científica não só jurídica, mas também humana. Uma lição de vida.
O livro é um cume e um ponto de inflexão bobbiano. A cada capítulo, o
Direito é posto dentro da sociedade sob o escrutínio de ser um fenômeno dinâmico,
promocional de uma humanidade melhor destinada ao bem comum e à realização
individual promovida pelo Estado bonificador, e não mais sancionador e repressor.
Bobbio perscrutou e promoveu um Direito destinado a atender, cada vez mais,
às paulatinas e difíceis e complexas necessidades de um Estado nacional não mais
regulador de todos os direitos e obrigações individuais e coletivas, mas obrigado a dar
liberdade às relações contratuais privadas individuais e empresariais, perante uma
estrutura jurídica estanque a se transformar para promover interesses gerais maiores.
Imagina-se haver, nesta obra, uma solução para a crise do Estado de bemestar social que se avizinhava na década de 1970, com o aumento do preço do barril
de petróleo, tendo em vista não mais se aceitar, implicitamente, que setores sociais se
RESENHA
213
beneficiassem do Estado sem nada contribuir com o que estimulava a reforma do
edifício jurídico então vigente para a multiplicação das normas de condutas bonificadas,
com o fito de estimular o gênio criador do ser humano em sua esfera empreendedora.
Tais valores estão realmente a ser vistos, a exemplo do que ocorre na maioria das
nações. A França está a superar esta questão há mais de 20 anos. No Brasil, a
Constituição de 1988 é garantidora, mas ainda pouco promotora de um direito
bonificador. Como Bobbio disse, somente a partir de 1960 o Direito deixou de ser um
fenômeno repressivo e sancionador para ser promotor e bonificador.
Quem faz boas ações vai para o céu. De acordo com Bobbio, cabe ao Estado
estimular que sejam dadas ao cidadão condições de boas ações. Bobbio pensou que
deve o Estado instrumentalizar a estrutura jurídica com a função de conduzir o homem
a fazer boas ações. São exemplos disso: a diminuição geral do valor cobrado sobre a
renda empresarial e individual; a criação de leis com alíquotas menores para pesquisa
e desenvolvimento de firmas de nanotecnologia e biotecnologia, de modo a estimular,
bonificar e conduzir ações privadas com a função de promover o bem-estar individual
pelo lucro obtido e, consequentemente, o bem comum.
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REVISTA DE Revista
DIREITO
USCS
USCS DA
– Direito
– ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
NORMAS PARA PUBLICAÇÃO
1. Os trabalhos devem ser inéditos no Brasil.
The papers must be unpublished in Brazil.
2. Na análise dos trabalhos, será levada em conta
a pesquisa, a linguagem, a relevância do tema
e a contribuição do autor para o tema.
On the papers analysis, it will be taken on
relevance the research, the language, the
relevance of the subject and the author’s
contribution for the theme.
3. Os textos devem ser digitados em fonte Times New Roman, corpo 12 (doze),
espaçamento 1,5 (um e meio) e recuo na primeira linha de 1 cm (um centímetro).
The papers must be keyed on Times New Roman
12, 1,5 space (between lines) and 1 cm
paragraph.
4. A configuração da página deve ser papel tamanho A4, com margem superior e esquerda
de 3 cm (três centímetros) e margem inferior
e direita de 2 cm (dois centímetros).
The configuration page is 3cm (superior and
left) and 2 cm (bottom and right), on A4 size.
5. Junto com o trabalho, deve ser enviada, por email, uma autorização simples de publicação
na Revista do Direito da USCS.
With the paper, must be sent, by e-mail, a
publishing authorization, specially for the
USCS Law Magazine.
6. Os artigos devem possuir de 10 (dez) a 15
(quinze) laudas. Excepcionalmente, poderão
ser aceitos trabalhos acima de 15 (quinze)
laudas. Não serão aceitos trabalhos com menos de 10 (dez) laudas.
The articles have to content 10 to 15 pages.
Exceptionally, could be accepted bigger
papers. Paper with less than 10 pages won’t
be accepted.
7. As avaliações dos trabalhos enviados são de
competência exclusiva do Conselho Editorial
da revista, sendo que sua decisão é soberana e
irrecorrível.
The paper evaluation is a exclusive
prerogative of the magazine council and its
decision is sovereign.
8. As citações devem se restringir ao estritamente
necessário e ser feitas segundo o determinado
pela ABNT, no estilo nota de rodapé.
The quotes could be used only when strictly
necessary e have to obey the ABNT rules
(www.abnt.com.br), on footnote style.
Exemplo/Example:
CHIAVENATO, I. Administração nos novos tempos. São Paulo: Atlas, 1999. p. 32.
Para citações maiores (superiores a três linhas,
segundo a ABNT), deve-se fazer um recuo e alterar o espaçamento entre linhas, mantendo-se o
tamanho da letra (12). Ver o exemplo abaixo:
For bigger quotes (above 3 lines), it have to do
a retreat and change the space between lines,
keeping the letter size (see the example below):
De outra parte, em análise econômica do direito, com base no princípio da “reserva do
possível”, pois a efetivação do direito à saúde
importa gastos financeiros e recursos de outra
ordem (material humano e equipamentos), poder-se-ia defender que somente o administrador, dentro de sua discricionariedade, poderia
implementar as políticas públicas que dizem
com o direito à saúde; no entanto, o Supremo
Tribunal Federal, já deixou assente que
(...) a cláusula da “reserva do possível – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo
Estado, com a finalidade de exonerar-se, dolosamente, do cumprimento de suas obrigações
constitucionais, notadamente quando, dessa
conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de
direitos constitucionais impregnados de um
sentido de essencial fundamentalidade” (cf. RE
n. 410.715-AgR / SP, Rel. Min. Celso de Melo,
unânime, J. 22.11.2005, p. 11/12).
9. A referência bibliográfica deve ser inserida ao
final do artigo, segundo o disposto no item
anterior.
The bibliography reference mus be insert at the
end of the paper, just like the number 8 above.
10. Os artigos devem trazer, obrigatoriamente, em
português e inglês, título, resumo (máximo de
50 palavras) e palavras-chave (máximo de quatro), bem como sumário, somente em português.
Articles, in a mandatory way, have to show a
title – if the text is in english, the title is only in
english – abstract (50 words maximum) and
a summary.
RESENHA
Segue exemplo./ See the example.
A questão dos portadores de deficiência
e sua concreta inserção no mercado de
trabalho: o caso do Posto Ecobrasil em
São Sebastião, SP
The handicapped people issue and its concrete
insertion on the work market: the EcoBrasil
Gas Station case in São Sebastião, SP
Antonio Celso Baeta Minhoto
RESUMO
A caracterização de um grupo social como
minoria; as peculiaridades da situação do
portador de deficiência como grupo
minoritário; o caso do Posto EcoBrasil em
São Sebastião e a inserção dos portadores de
deficiência no mercado de trabalho local.
Palavras-chave: portadores; deficiência;
inserção social; trabalho.
ABSTRACT
The characterization of a social group as a
minority; the handicapped people particular
situation as a minority group; the EcoBrasil gas
station case in São Sebastião and the
handicapped people insertion on the local work
market.
Keywords: handicapped people; deficiency;
social insertion; work.
12. Serão aceitos artigos em português, espanhol, inglês
e italiano. Nos textos em português, as citações
em língua estrangeira deverão ser traduzidas pelo
autor, sob sua responsabilidade pessoal.
215
It will be accepted articles in portuguese,
spanish, english and italian. Quotes in other
languages must be translated by the author,
under his-her personal responsibility.
13. Logo ao final de seu nome, lançado no artigo, o
autor deverá inserir uma nota de rodapé e, nesta,
relatar seu currículo de modo sucinto, destacando formação acadêmica em nível de pós,
atividades profissionais e acadêmicas e referência a, no máximo, um livro de sua autoria.
As a first footnote, the author have to indicate
his-her resume, in a brief version, with his-her
principal and professional occupations and,
if is the case, a reference of a book of his-her
authorship.
14. Todos os artigos devem ser enviados por email ao seguinte endereço eletrônico:
[email protected].
All the papers must be sent to:
[email protected].
15. Para os artigos publicados, constará, ao lado
do(s) nome(s) do(s)(as) autor(es)(as), seu(s)
respectivo(s) e-mails.
For the published papers and beside the
author(s) name(s), will be registered his(her)
e-mail(s).
17. O desatendimento de quaisquer dos requisitos
aqui dispostos implicará a recusa liminar do
trabalho.
The non-observation of any of this
requirements involves the immediately papers
refusal.
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Anotações
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