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No Reino da Ficção: o Espaço e a
Literatura Conventuais
Ms. Sara Manuela Ribeiro Martins Augusto
Universidade Católica Portuguesa
“(…) houve uma hora em que as aves mostraram mais liberdade nos bicos, do
que nas asas; com estas cortam o ar, com estes ensina agora aos racionais:
ilustradas pela águia sua Rainha, que bebia luzes na esfera do Sol, se atreveram
a dar documentos aos homens; começaram a missão pelos claustros; que aonde são mais obrigatórias as virtudes, estão mais importantes os avisos, e nestes
não se deve olhar a quem os dá, mas só ao que são”.
(Soror Maria do Céu, Aves
Ilustradas, 1734, p. 1)
1.
O tempo passou pelo Mosteiro da Esperança de Lisboa. Da sua influência, da
sua riqueza, do seu espaço, hoje pouco resta: algumas peças de arte em museus,
Com a primitiva invocação de Nossa Senhora da Piedade da Boavista, o mosteiro foi fundado por D. Isabel de Mendanha, fidalga ilustre, para acolher religiosas nobres. Depois da
autorização da bula pontifícia de 16 de Janeiro de 1524, começou a ser edificado em 1527,
ainda não estando terminado em 1532, quando faleceu a sua benemérita fundadora. Foi
D. Joana d’Eça que continuou a sua obra, aumentando e reformando os edifícios durante o
século XVI. As primeiras religiosas, vindas do Funchal e de Santarém, entraram no Convento
em 1536, tendo sido Soror Inês de Deus, a sua primeira abadessa. A invocação popular
nasceu da fundação de uma Confraria de Nª Srª da Esperança na igreja do mosteiro, que
conduziu, com a importância que foi ganhando, à designação de Mosteiro da Esperança,
como desde então foi conhecido. Depois de extintas as ordens religiosas em 1834, só em
1888, quando faleceu a última freira do mosteiro, o Estado tomou posse do Convento, Igreja
e demais dependências. Em Dezembro desse mesmo ano, procedeu-se ao inventário da
riqueza do mosteiro, que rapidamente se dispersou por diferentes entidades que, com rara
avidez, solicitaram os bens arrolados. Grande parte da superfície do mosteiro está hoje ocupada com a Avenida D. Carlos I e com o Quartel do Batalhão de Sapadores de Bombeiros,
sendo praticamente imperceptíveis as suas originais configuração e riqueza. Sobre a história
1340 - Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano
azulejos dispersos e uma considerável produção literária, de temas diversos, entre a
narrativa alegórica e o ensinamento moral, do melhor que na literatura barroca portuguesa se escreveu. Todo o espólio se funde no mesmo estilo eloquente, onde reinam a metáfora e a imagem, e se reafirma a mais do que antiga ligação entre literatura e pintura. No espaço envolvente, encontramos notícias da mesma exuberância,
na extrema e rica decoração, na abundância da talha dourada, no constante trabalho
de azulejaria e pintura, desde o interior sagrado da igreja e da sacristia, ao espaço
comum no refeitório ou nos claustros. A vivência religiosa do Mosteiro tinha rosto,
manifestando-se na linguagem simbólica das expressões pictórica e literária de uma
forma similar e complementar. Desta forma, fomos encontrando figuradas na azulejaria as narrativas contadas pelas ilustradas sorores do Convento da Esperança. Ou
teremos lido nas longas e enredadas novelas as histórias contadas nos azulejos?
2.
Fundado em 1527, o mosteiro foi ricamente decorado no correr dos séculos
XVI, XVII e XVIII, como nos mostra um dos mais importantes documentos sobre a
fundação e a história do convento, o manuscrito F. 955, da Biblioteca Nacional. O
Livro da Fundação, Ampliação e Sítio do Convento de Nossa Senhora da Piedade da
Esperança, actualizado até 1750, apresenta um conjunto de informações que dá conta do embelezamento da igreja, dos edifícios, dos claustros, dos jardins e demais
dependências do mosteiro, anotando as obras e respectivos gastos de cada abadessa.
As notícias sobre a azulejaria não são abundantes e muito menos descritivas, mas
permitem perceber como, em épocas distintas, se aplicaram diferentes tipos de azulejo nos mais diversos espaços do mosteiro. Entre 1594 e 1620, os apontamentos
e notícias do Mosteiro da Esperança, da sua fundação à demolição do edifício e suas dependências, cf.: Livro da Fundação, Ampliação e Sítio do Convento de Nossa Senhora da Piedade da Esperança da Cidade de Lisboa: o qual mandou escrever a Abadessa Soror Francisca
dos Anjos, no ano de 1620. Sendo Ministro Provincial dos frades menores da observância o
muito Reverendo Padre Frei Jeronimo de Deus; Francisco da Fonseca Benevides, No Tempo
dos francezes, Lisboa, Tipografia “A Editora”, 1908, pp. 51-53; Jorge Cardoso, Agiológio
Lusitano, vol. I, ed. facsimilada, com estudo e índices de Maria de Lurdes Correia Fernandes,
Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2002, p. 18 (f); João Baptista de Castro,
Mapa de Portugal antigo e moderno, Lisboa, Of. Patriarcal de Luiz Ameno, 3 vols., 17621763 (vol. III, p. 429); Américo Costa, Diccionario Chorographico de Portugal, Continental e
Insular, vol. VII, Ed. de autor, 1940 (1929-1949), p. 583-584; Durval Pires de LIMA, História
dos mosteiros, conventos e casas religiosas de Lisboa, na qual se dá notícia da fundação e
fundadores das instituições religiosas, capelas e irmandades desta cidade, 2 vols, Lisboa:
Câmara Municipal, 1950-1972 (vol. II, pp. 317-327); A. Vieira da Silva, O Mosteiro da Esperança, Lisboa, 1950; Bernardo Vasconcelos e Sousa (Dir.), Ordens Religiosas em Portugal.
Das Origens a Trento – Guia Histórico, Lisboa, Livros Horizonte, 2005, pp. 301-302.
Livro da Fundação, Ampliação e Sítio do Convento de Nossa Senhora da Piedade da Esperança: Soror Jerónima de Jesus, entre 1594 e 1596, “concertou o vão do claustro, fazendo
repartimento nelle de alegretes [conjunto de banco com floreira ou canteiro, usado como
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são mais detalhados, mas, a partir de 1635, as referências tornam-se pouco específicas, quase omissas. De qualquer forma, permitem perceber como acompanham
as tendências do azulejo em Portugal. Nos séculos XVI e XVII utilizou-se o azulejo
ornamental, com motivos decorativos variados, geralmente em composições interligadas, chamado brutesco, fosse policromo ou a azul e branco, como é referido no
Livro da Fundação. A imprecisão surge a partir de meados do século XVII: dá-se
notícia do azulejamento de várias dependências e do gasto com o azulejador, mas
sem qualquer referência mais específica. Contudo foi nesta altura que, no panorama da azulejaria portuguesa, se impuseram, em policromia, os painéis figurativos
e os frontais de altar, além dos últimos padrões para “tapetes” (a partir de 1650),
verificando-se, depois de 1680, a alteração cromática que conduziria à estandardização dos “azuis e brancos”.
O Livro da Fundação e os documentos que resultaram da inventariação do
património, aquando da tomada de posse do Estado, em 1888, e da demolição
Convento, nos finais do século XIX, permitem reconstituir parte de um cenário privilegiado no campo da azulejaria, agora disperso e descontextualizado. O nosso
mobiliário de jardim] de azulejo, tudo na forma em que hoje está”; neste seu segundo triénio
como abadessa, também “fez o dormitório novo nas casas que foram da Rainha. Acrescentou e
renovou a enfermaria” (f. 25r). Soror Madalena do Horto, abadessa por três triénios e responsável
pelas avultadas obras na igreja do mosteiro, entre 1612 e 1614 mandou fazer obras na capelamor do convento, sendo “o arco da dita capella e paredes della guarnecidas da mesma pedraria
e azulejo brutesco” (f. 30r). Soror Inês de S. Paulo, entre 1606 e 1608, “mandou azulejar e dourar
uma das paredes do corpo da igreja e o topo da banda do coro dela, e a outra mandaram fazer
os irmãos das confrarias, e o mais com o outro topo do cruzeiro assi como está” (f. 28r). Soror
Francisca dos Anjos, entre 1618 e 1620, levou a cabo grandes obras de reforma, sendo de maior
interesse as do refeitório, em que “guarneceo as paredes deste de azulejo branco e azul de lavor
brutesco”, combinando-as com painéis a óleo, e as obras no antecoro, onde as paredes foram
guarnecidas de “azulejo branco e azul de lavor seguido que rematam sete painéis, que se reformaram, e fizeram de novo as guarnições deles” (fls 34r-34v).
Ibidem: Soror Antónia da Piedade, entre 1635 e 1638, “mandou azolejar o capitolo, e renovar a pintura dele” (f. 40v). Soror Margarida dos Anjos, entre 1664 e 1667, mandou “azulejar
as duas casas da Portaria” (f. 59r). Soror Maria de S. José, entre 1670 e 1673, gastou 34.440
reis no “azoleyjo da mesma Sanchristia” (f. 61v). Soror Margarida dos Anjos, no seu segundo
triénio, entre 1676 e 1679, pagou 9.900 reis ao “Azoleijador” (f. 64r). Por fim, Soror Helena
da Cruz, entre 1694 e 1697, “mandou azolejar a caza das madres Abadessas” (f. 67v).
Paulo Pereira (dir.), História da Arte Portuguesa, vol. II e III, Lisboa, Círculo de Leitores,
1995; J. M. dos Santos Simões, Azulejaria em Portugal no século XVII, 2 vols, 2ª ed. revista
e actualizada, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.
J. M. dos Santos Simões, Azulejaria em Portugal no século XVII, vol. I, p. 13: sistematização
da azulejaria do século XVII em quatro períodos principais, caracterizados pelas diferenciações tipológicas.
Sobre este aspecto cf. Francisco da Fonseca Benevides, No Tempo dos francezes, pp. 5153; João Pedro Monteiro, “Os vasos floridos do Convento de Nossa Senhora da Esperança de
Lisboa”, Azulejo, Lisboa, nº 1, 1991, pp. 33-43; A. Vieira da Silva, O Mosteiro da Esperança.
Foi também consultada a Acta da Sessão Camarária de 8 de Abril de 1891, na Biblioteca do
Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Lisboa.
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estudo vai contemplar dois grupos distintos de azulejos, que chegaram até hoje em
boas condições e que têm sido alvo de importantes estudos e reproduzidos em
significativas publicações, procurando estabelecer as devidas e necessárias relações com a produção literária do mesmo espaço conventual.
3.
O primeiro grupo corresponde ao conjunto da produção de azulejaria de meados do século XVII, constituída por azulejo brutesco, composto em silhar ou em
tapete, e por painéis de vasos floridos. Tendo em conta a dispersão do património
do mosteiro, tem sido feito um trabalho fundamental de recolha e de sistematização de alguns dos mais significativos exemplares, apesar de, por alguns dados que
recolhemos, pensarmos que estará longe de estar completo. Contudo, para este
trabalho, mais do que um levantamento exaustivo, pareceu-nos mais interessante o
facto de os estudos sobre estas albarradas e painéis figurativos afirmarem a necessidade de uma interpretação iconológica, que ultrapassasse a mera função decorativa. Numa época em que as artes se conjugavam para “significar”, apresentando
J. M. dos Santos Simões, Azulejaria em Portugal no século XVII, vol. I, p. 13; sobre os painéis ornamentais ou brutescos: pp. 189-199.
Foram recolhidas em: J. M. dos Santos Simões, Azulejaria em Portugal no século XVII,
vol. II, p. Est. XXII-XXIII; Roteiro do Museu Nacional do Azulejo, 2ª ed., Instituto Português
de Museus, 2005, pp. 67 e 82; Rouge et Or. Trésors du Portugal baroque. Paris, Musée
Jacquemart-André, Institut de France. Catálogo da Exposição 25 septembre 2001/25 février
2002, pp. 222 e 223; José Meco, O Azulejo em Portugal, Lisboa, Alfa, 1993, p. 148; João
Pedro Monteiro, “Os vasos floridos do Convento de Nossa Senhora da Esperança de Lisboa”,
Azulejo, Lisboa, nº 1, 1991, pp. 33-43. Para além do silhar, encontramos duas albarradas
no Museu Nacional do Azulejo; uma albarrada no Museu Aberto Sampaio, em Guimarães;
duas albarradas na Escola Secundária Domingos Sequeira, em Leiria, acompanhadas de um
painel figurativo (representando o pavão sobre o esquife); uma albarrada na Escola Secundária Marquês de Pombal, em Lisboa; um painel figurativo, fotografado por Santos Simões
(obra citada, II, Est. XXII), de paradeiro desconhecido. Com a parte central destas albarradas
coincide a representação de dois vasos floridos, amputados das figuras que os ladeavam,
localizados no Convento de Nossa Senhora da Esperança, em Alcáçovas. J. P. Monteiro
pronuncia-se sobre esta coincidência, obra acima citada, p. 39: “Assim, temos que azulejos
de vasos floridos idênticos que tiveram a sua origem numa matriz erudita comum, surgiram
em dois conventos que, no século XVII, eram da mesma invocação. Naturalmente trata-se de
algo mais do que uma simples coincidência e acreditamos que, em ambos os casos, o vaso
florido foi investido da mesma função: simbolizar a Virtude Teológica da Esperança. As duas
encomendas poderão ter sido simultâneas e feitas à mesma oficina”.
João Pedro Monteiro, “Os vasos floridos do Convento de Nossa Senhora da Esperança de
Lisboa”, Azulejo, Lisboa, nº1, 1991, pp. 33-43; e ainda “O frontal de altar da capela de
Nossa Senhora da Piedade, Jaboatão, Pernambuco”, Oceanos: Azulejos. Portugal e Brasil,
nº 36/37, Outubro 1998/Março 1999, pp. 158-176.
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uma narrativa, do mesmo modo que a literatura assumia uma faceta pictórica, a
decoração dos espaços revestia-se necessariamente de uma leitura alegórica.
Pelas quatro albarradas e pelos dois painéis figurativos, que constituem os
exemplares conhecidos, multiplicam-se as aves e as flores. À exuberância dos arranjos florais, de diversas e coloridas formas, corresponde o carácter exótico e
fantástico das aves que ladeiam os vasos, sustentados por sátiros e decorados com
carrancas e frutos. Entre as composições florais adejam e pousam pequenas pegas,
acompanhadas dos papagaios, pavões e aves do paraíso pousados na base, em simetria. Desde o final do século XVI que seria este o cenário do claustro do Convento da Esperança, com grande “repartimento de alegretes de azulejo”.
O significado dos elementos decorativos já foi sendo explicado, atribuindo às
flores a virtude da Esperança e ao Pavão a vitória sobre a Morte10, tal como foi dada
a relevância devida à obra de Frei Isidoro de Barreira, o Tratado das Significações
das Plantas, Flores, e Frutos, de 169811, como fonte de interpretação aplicável tanto às artes pictóricas como literárias12. No que diz respeito às aves, a sua alegorização tinha como esteio toda uma tradição, manifesta nos bestiários e nos livros de
aves, que descobria nas coisas da natureza símbolos da criação divina, e que foi
recuperada na arte barroca, conjugando a lição tradicional com o gosto pela alegoria e pela procura de novas analogias13.
É todo este universo alegórico que perpassa igualmente pela obra literária de
Soror Maria do Céu (1658-1753), duas vezes abadessa do Convento da Esperança.
Levada por um sério intuito pedagógico e moralizador, Maria do Céu recorreu por
J. P. Monteiro, “O frontal de altar da capela de Nossa Senhora da Piedade, Jaboatão,
Pernambuco”, pp. 172-173: “Também um painel seiscentista representando um pavão de
cauda aberta sobre um túmulo (Escola Secundária Domingos Sequeira, Leiria), simbolizando a vitória sobre a morte, fazia um todo com um conjunto de seis vasos floridos, símbolos
da virtude da Esperança (…) outrora encomendados para o Convento de Nossa Senhora da
Esperança na mesma cidade, e por sua vez com o vaso idêntico a outros colocados num vão
de janela no convento de Nossa Senhora da Esperança em Alcáçovas”.
11
Frei Isidoro de Barreira, Tratado das Significaçoens das Plantas, Flores, e Fruttos, que se
referem na Sagrada Escrittura, Tiradas de Divinas e Humanas Letras, com suas breves considerações. Lisboa, Of. de Manoel Lopes Ferreira, 1698 (ed. facsimilada), Lisboa, Alcalá,
2005. Sobre as flores, afirma Frei Isidoro de Barreira, p. 16: “As flores em commum significão esperanças: porque assi como das flores se esperão fruttos, que ellas promettem, assi das
esperanças bens, porque sempre esperanças se tem a respeito de bens, e não de males”.
12
Cf. Ana Hatherly, “As misteriosas portas da ilusão. A propósito do imaginário piedoso de
Sóror Maria do Céu e Josefa d’Óbidos”, in O ladrão cristalino. Aspectos do imaginário barroco,
Lisboa, Cosmos, 1997, pp. 13-41; Sara Augusto, A Alegoria na ficção alegórica do Maneirismo
e do Barroco, Viseu, Faculdade de Letras da Universidade Católica Portuguesa, 2004; idem,
“O Papagaio Ilustrado – lição e exemplo na ficção barroca”, Máthesis, Viseu, 14, 2005, pp.
137-148; idem, “A multiplicação das fábulas na ficção narrativa de Soror Maria do Céu”, Forma Breve. Revista de Literatura, Aveiro, 3, 2005, pp. 121-133.
13
Maria Isabel Rebelo Gonçalves, “Livro das Aves”, in Dicionário de Literatura Medieval
Galego e Portuguesa, org. e coord. de Giula Lanciani e Giuseppe Tavani, Lisboa, Caminho,
1993. Cf. O Livro das Aves, Lisboa, Edições Colibri, 1999.
10
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sistema à dupla estrutura da alegoria, conjugando o deleite e a fruição do enredo
com a lição que se propunha transmitir, processo exigido pela ortodoxia do contexto
religioso. São três as obras em que as aves e as flores se multiplicam, se animizam,
assumindo forma e voz, portadoras de sentidos edificantes: Escarmentos de Flores,
ms. datado de 1681; Aves ilustradas em avisos para as Religiosas servirem os ofícios
dos seus Mosteiros, de 1734, e Metáforas das Flores mostradas em documentos mui
proveitosos, publicada em Obras Várias e Admiráveis, de 173514.
A primeira obra, Escarmentos de Flores, que até hoje se mantém inédita15,
constitui uma pequena novela, em que cinco flores se lamentam do engano a que
a vaidade as conduziu, tornando-se a sua infelicidade exemplo para as “flores humanas”. Em correspondência, cinco aves comentam as palavras de cada flor, dando maior consistência à lição que se pretende transmitir: que a vida terrena é efémera e que a alma humana não pode fundar a eternidade para que foi feita em
valores terrenos como a vaidade e a lisonja16.
A mesma estrutura fundada na analogia compõe as Metáforas das Flores, de
173517, num total de vinte e quatro metáforas, que repetem uma sequência dupla,
distinta mas complementar. A primeira parte é constituída por uma apólogo, onde
variadas flores actuam como personagens, num sistema que tende para o dualismo
enquanto representação da virtude e do vício, assim como dos respectivos recompensa e castigo. A segunda parte consiste no comentário e na interpretação de cada
entrecho ficcional, sendo que, no final das metáforas, obtemos um equivalente
conjunto de sentenças morais. A transmissão da doutrina tornava-se mais eficaz
pelo recurso ao universo metafórico, que permitia a concretização e a visualização
do conceito doutrinário.
Quanto às Aves ilustradas, obra publicada em 1734, constitui um fabulário
cuja principal virtude claramente enunciada na folha de rosto seria constituir um
conjunto de “avisos para as Religiosas servirem os ofícios de seus Mosteiros”18. Este
conjunto de avisos foi organizado em catorze discursos, correspondendo a catorze
aves diferentes, em que cada uma se constitui como narradora e como voz pronunciadora de conselhos destinados a distintas funções desempenhadas pelas religiosas. Para além do simbolismo individual, torna-se mais evidente a analogia entre
A mesma estrutura é seguida em Apólogos das Pedras Preciosas (In Obras Várias e Admiráveis, Lisboa Ocidental, por Manuel Fernandes da Costa, 1735).
15
Trata-se do Ms. 199, da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, que atribui a autoria a Soror Maria do Céu.
16
Em correspondência com o desengano confessado pelas flores (Maravilha, Rosa, Girassol,
Narciso, Margarida), o discurso das aves (Cisne, Rouxinol, Águia, Filomena, e uma Ave
estrangeira) desenvolve um conjunto de antíteses que vem a constituir o principal temário
da literatura barroca (Engano / Desengano, Vaidade / Efemeridade, Beleza / Ruína, Luz /
Sombra, Aparência / Verdade).
17
In Obras Várias e Admiráveis, Lisboa Ocidental, por Manuel Fernandes da Costa, 1735.
18
Aves ilustradas em avisos para as Religiosas servirem os ofícios dos seus Mosteiros, Lisboa,
por Miguel Rodrigues, 1734.
14
Sara Manuela Ribeiro Martins Augusto - 1345
cada ave e as suas características e a função específica de cada religiosa, como é
possível perceber pelo “Index dos discursos, de que se compõe este livro”19. Entre
as diversas aves, o pavão empresta os “olhos” da cauda à Madre Abadessa, para
vigiar o seu mosteiro; o Papagaio ensina à Rodeira o valor do silêncio; e a Pega
recomenda à Escrivã o máximo de rigor nas contas do mosteiro. Por estes exemplos, podemos mostrar a importância da alegoria e da fábula no contexto didáctico
e religioso conventual de Seiscentos.
4.
O segundo grupo de azulejos, que pode ser visto na Casa Museu dos Patudos, em
Alpiarça20, é constituído por cinco painéis, colocados na sala que faz a ligação entre
diversas dependências e permite o acesso ao segundo piso. Posteriores a 1680, segundo a cronologia da azulejaria portuguesa, os painéis figuram, numa paleta de azul e
branco, cenas cuja temática religiosa e hagiográfica acompanham, à esquerda do acesso pela escadaria, representações de cariz profano, à direita do acesso principal.
No sentido dos ponteiros do relógio, excluindo dois painéis claramente posteriores não originários do Convento, começamos por encontrar apontamentos hagiográficos. No primeiro painel, entre uma moldura de dois atlantes está representada uma figura de eremita, descalço, com as vestes cingidas por um rosário e riscando o chão
Catorze discursos: O Pavão à Prelada; A Andorinha à Vigária da Casa; A Chamariz à Vigária
do Coro; O Pintasirgo à Mestra das Noviças; O Pardal à Madre das Confissões; O Roxinol às
Sacristans; O Galo à Porteira; O Papagaio à Rodeira; A Pega à Escrivã; A Rola à Celeireira; O
Ganso à Provisora; A Pomba à Enfermeira; A Cegonha à Refeitoreira; A Coruja à Roupeira.
20
A atribuição da origem dos azulejos da Casa dos Patudos ao Convento da Esperança de
Lisboa constitui uma memória que perdura no tempo e que pode provir de dois aspectos
determinantes. Em primeiro lugar, a figura conhecida de José Relvas (Golegã, 1859- Alpiarça. 1929) que, para além do papel que no panorama político desempenhou na instauração
da República, foi homem de grande cultura, sensibilidade e requinte, pode ter estado na
origem da instalação dos painéis na sua casa de Alpiarça. Com efeito, na Casa dos Patudos,
em Alpiarça, que mandou remodelar no início do século XX, reuniu uma considerável colecção de arte, que, depois da sua morte, foi legada, juntamente com a Quinta dos Patudos,
ao município de Alpiarça, vindo a constituir a Casa dos Patudos – Museu de Alpiarça, desde
1960. Por outro lado, à Igreja Paroquial de Alpiarça, acabada de construir em 1889 e que
hoje apresenta um acervo de peças (altares, imagens, paramentos e quadros) dos séculos
XVI e XVII, foi cedido um largo conjunto de elementos decorativos, por decreto de 24 de
Janeiro de 1889, tendo sido entregues logo em Fevereiro. Cf. A. Vieira da Silva, O Mosteiro
da Esperança, pp. 19 e 23: referem-se três altares, um oratório, imagens, sinos e objectos
de ornamentação, cedidos à Junta de paróquia de Alpiarça, em Fevereiro de 1889. É possível que, por via desta transferência, tenham também chegado a Alpiarça os azulejos em
questão, mas que, também, por vontade de José Relvas fossem colocados no museu que já
era a sua Casa dos Patudos, onde seriam preservados. J. M. dos Santos Simões, in Azulejaria
em Portugal no século XVII, vol. II, pp. 156-157, não estabelece qualquer relação entre os
azulejos do Museu de Alpiarça e o antigo Convento da Esperança.
19
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com um bordão. Fazendo esquina, estão representadas duas cenas hagiográficas, relacionadas com a vida de Santa Clara e os seus milagres, abundantemente relatados na
Legenda21, composições que teriam todo o cabimento no espaço do Convento da Esperança, de religiosas franciscanas.
Este mesmo ímpeto hagiográfico, abundantemente figurado na azulejaria, encontramo-lo também na produção literária conventual, tanto de Soror Maria do Céu
como de Soror Madalena da Glória. Em 1715, Maria do Céu narrou a história de
Santa Catarina, Rainha de Alexandria22, e Madalena da Glória contou as vidas de
Santa Rosa de Santa Maria23, “astro brilhante” e “flor do Paraíso”, e de Santo Agostinho, que mereceu os valorosos epítetos de “Águia real”, “Fénix abrasado” e “Pelicano amante”24. As metáforas nos títulos apresentam uma exaltação da virtude num
grau só comparável ao intuito didáctico pretendido. Desta forma, a leitura e a meditação sobre o exemplo tornavam-se essenciais na formação religiosa conventual.
Cf. Santa Clara de Assis. Escritos – Biografia – Documentos, Tradução, introduções, notas
e índices de Frei José António Correia Pereira, Braga, Editorial Franciscana, 1985.
22
A Fénix aparecida na vida, morte, sepultura e milagres da gloriosa Santa Catarina, Rainha
de Alexandria, Virgem e Mártir, com sua novena e perigrinação ao Sinai, Lisboa, na Oficina
Real Deslandesiana, 1715.
23
Astro brilhante em novo mundo, fragrante flor do paraíso plantada no jardim da América:
história panegírica e vida prodigiosa de Santa Rosa de Santa Maria, Lisboa Ocidental, por
Pedro Ferreira, 1733. A esta mesma santa fez a Novena de Santa Rosa de Santa Maria, Epítome da sua vida, Lisboa, na Oficina da Música e da Sagrada Religião de Malta, 1734.
24
Águia real, Fénix abrasado e Pelicano amante. História panegírica e vida prodigiosa do ínclito
Patriarca que alcançou ouvir da boca de Deus o título de Grande, S. Agostinho, Lisboa, na Oficina Pinheiriense da Música e da Sagrada Religião de Malta, 1744.
21
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No lado direito da sala, os painéis ensaiam figurações diferentes, de índole
profana, que poderiam ocupar os espaços áulicos e de lazer do convento. Ocupando praticamente toda a parede direita, o primeiro painel está dividido em duas
cenas similares. Por entre o cenário bucólico e edifícios de traça exótica, dois pares
de figuras masculinas, separados por colunas e vegetação, de roupagens diferentes
e consequente estatuto social diverso, representam situações de “conversação”,
arte principal na sociabilidade barroca, em que os gestos e as expressões faciais
acompanham a eloquência, exprimindo conselho e admiração.
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Fazendo esquina, situam-se os dois últimos painéis. O primeiro episódio apresenta um confronto singular, pelo insólito e pela desigualdade de forças, entre um
cavaleiro, vestido como cortesão e montado num cavalo aguerrido, e um hussardo
em fuga; o segundo painel ensaia um episódio de sedução e de facécia amorosa,
representando uma moça que, de olhar sereno, entre duas figuras masculinas colocadas em perspectiva desproporcionada, segura e apresenta flores no regaço. A mão
de um dos moços, rodeando-lhe o colo, parece querer chegar às flores, de forma um
tanto dissimulada e escondida.
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Estas mesmas representações profanas ganham mais sentido quando encontram correspondência na abundante produção ficcional narrativa de Soror Maria
do Céu e de Soror Madalena da Glória, onde as cenas representadas na azulejaria
se repetem de novela para novela, mesmo nas narrativas especificamente alegóricas. Neste último conjunto, situam-se A Preciosa. Alegoria Moral25, e Enganos do
bosque, Desenganos do Rio26, da autoria de Soror Maria do Céu, e o Reino de Babilónia27, de Soror Madalena da Glória. Trata-se de uma produção literária que,
estruturada pela alegoria, permite a coexistência de dois universos distintos no
mesmo enunciado, sendo que o segundo sentido assume um carácter essencial
para a definição espiritual e didáctica da obra. Em qualquer uma das obras, o enredo básico envolve uma protagonista feminina, prefiguração da alma humana, sujeita às mais duras tentações no seu caminho para a salvação eterna. Sucedem-se os
palácios encantados, as festas e as galanterias mundanas, os príncipes malévolos e
sedutores, combates mortíferos em que a fortaleza e as demais virtudes são a garantia da vitória e da recompensa divina.
Para além da alegoria, talvez seja, contudo, na produção ficcional de carácter
moral, constituída pelas longas narrativas Agravo e desagravo da Misericórdia28, de
Maria do Céu, e Brados do Desengano29, de Madalena da Glória, que a correspondência seja mais justa com a representação pictórica dos azulejos. Na sua estrutura, cada uma destas obras é constituída por um longo universo diegético, disperso
por níveis narrativos distintos, constituindo uma rede de narrativas de encaixe que
envolve o leitor sobretudo pela diversidade de tempos e de espaços em que se situam. Os enredos versam a matéria amorosa, que se vai desenrolando de uma
forma tortuosa até a um final apoteótico de conversão, de reconhecimento e de
união, recompensa devida depois de longas páginas de infelicidade, de engano, de
desilusão, de disfarce, de vingança, de duelos e perseguições. Nas viagens, estrutura privilegiada na narrativa barroca, os protagonistas e os seus interlocutores passam por conventos, ermidas e eremitérios, por cidades e universidades, passam
pelas durezas do combate, e nas cortes conversam e encantam formosas donzelas.
Em todos os espaços, se impõe o perfil do homem cortês, educado nas maneiras e
na eloquência, dando relevo à virtude da conversação. Entre o seduzir e o persuadir, o aconselhar e o avisar, se vai da narrativa profana à narrativa moral.
A Preciosa. Alegoria moral, Lisboa Ocidental, na Oficina da Música, 1731.
Enganos do Bosque, Desenganos do Rio. Primeira e Segunda Parte, Lisboa Ocidental, por
António Isidoro da Fonseca, 1741.
27
Reino de Babilónia, ganhado pelas armas do Empíreo; Discurso Moral, Lisboa, por Pedro
Ferreira, 1749. No mesmo grupo, apesar de uma configuração diferente da estrutura alegórica, poderíamos colocar Orbe Celeste adornado de brilhantes estrelas e dous ramilhetes: um
colhido pela consideração, outro pelo divertimento, Lisboa, por Pedro Ferreira, 1742.
28
Ms., s.d.
29
Brados do Desengano contra o profundo sono do Esquecimento. Em três histórias exemplares para milhor conhecer-se o pouco que duram as vaidades do mundo e o poder das
divinas inspirações, Lisboa, por Domingues Rodrigues, 1749.
25
26
1350 - Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano
5.
A representação na azulejaria, lado a lado, de cenas hagiográficas e de cenas
profanas não constituiu um procedimento irregular ou insólito nos espaços religiosos na época barroca. Da mesma forma, foi prática comum na produção literária
conventual. O caso do Convento da Esperança será um dos mais significativos,
com a produção literária de Soror Maria do Céu e Soror Madalena da Glória, nos
seus diversos géneros e temas. O facto que nos pareceu digno de relevo e que procurámos demonstrar foi a singular correspondência entre a representação pictórica
da azulejaria e os temas preponderantes da produção literária. Terão constituído
partes distintas mas complementares de um programa comum da expressão da vivência religiosa e da mundividência barroca.
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